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BÍBLIA PANTEÍSTA A religiosidade do presente Régis Alain Barbier

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BÍBLIA PANTEÍSTA A religiosidade do presente

Régis Alain Barbier

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BÍBLIA PANTEÍSTA - a religiosidade do presente SUMÁRIO

PREFÁCIO

1. DO ESTADO-DE-SER

2. ABRINDO O TABERNÁCULO DO SABER

1 – DEVIR

1. O ETHOS

2. A EVOLUÇÃO 3. O CONFRONTO 4. O POSICIONAMENTO 5. A PRUDÊNCIA 6. MOTIVAÇÃO E ESPERANÇA 7. UNIDADE E TRANSCENDÊNCIA 8. METAFÍSICA COSMO-EXISTENCIAL

2 - DO RELIGAR

1. ESPECIFICANDO TERMOS 2. DESCOBRINDO UM RUMO 3. ENTUSIASMO EXISTENCIAL 4. COSMOVISÃO E UTOPIA

3 - A ORIGEM É O PRESENTE

1. A VERDADE DOS JÔNICOS E DOS PERSAS 2. TRADIÇÕES PRIMORDIAIS 3. NATURAR, NATURANDO 4. DICOTOMIAS TRADICIONAIS 5. NAS RAIAS DA CRIAÇÃO 6. DA TRAMA UNIVERSAL 7. COR DOCTRINALE DO DIVINO IMEDIATO

4 - RELIGIOSIDADE

1. UNIFICAÇÃO, ÉTICA E CRIATIVIDADE 2. DA COSMOVISÃO INDÍGENA 3. A GRANDE TRIBO 4. ÂMBITOS POLARES E DIVERGENTES 5. CONSIDERAÇÕES LIBERTADORAS

5 - AUTOTRANSCENDÊNCIA

1 - DEFINIÇÃO 2 - HIPÓTESE XIS 3 - DINÂMICA EVOLUTIVA 4 - COORDENADAS METAFÍSICAS 5 - A FLECHA DE EROS 6 - O PANTEÃO DOS PAGÃOS 7 - DOS ACRÉSCIMOS TEOLÓGICOS

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6 - DAS VIRTUDES TEOLOGAIS

1. RES SENSITANS E SEMÉTICA 2. DAS VIRTUDES À LUZ DA RAZÃO NATURAL 3. REVELAÇÃO DOS FUNDAMENTOS 4. A REALIZAÇÃO DO DIVINO

7 – EXPERIÊNCIA MÍSTICA

1 - DA SUA ESSÊNCIA E CARATERÍSTICAS 2 - DAS SUBSTÂNCIAS COMO OPÇÕES DE BUSCA 3 - DA INTEGRAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS 4 - O PRINCÍPIO DA INDIFERENÇA CAUSAL 5 – TRIANGULAÇÃO

8 - DA CRIATIVIDADE DOS POEMAS E MITOS

1. ESPIRITAR OU SABER 2. PRESENCIALIDADE E CIÊNCIA METAFÍSICA 3. PROCESSOLOGIA EXISTENCIAL

9 - MENSAGEM ESSENCIAL

1. DOM OU DOMÍNIO 2. RAZÃO QUALIFICADA 3. ESTETICIDADE, LEGITIMIDADE e HISTORICIDADE 4. A VIA 5. A FISIOLOGIA DA INTENÇÃO 6. O DOM E AS MENSAGENS DA SEMÉTICA

10 - CONJUGANDO O ESTADO-DE-SER

1. O ADVENTO DO CONJUGADOR 2. QUEDA, CRUZ E REDENÇÃO 3. EQUINÓCIOS, SOLSTÍCIOS E VIRTUDES CARDEAIS

11 – CONCLUINDO 1. ACIMA DOS CONCEITOS

12 - APENSO

1. DEFINIÇÕES E NEOLOGISMOS 2. VÍNCULOS IDEOLÓGICOS 3. REFERÊNCIAS INCOMPLETAS, MAS EXTENSIVAS 4. DA FUNDAÇÃO DE UMA SOCIEDADE PANTEÍSTA

BIBLIOGRAFIA

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REFÁCIO

"A Natureza sabe eludir todos os nossos estudos e conceitos; não é mais fácil no que mostra, do que no que esconde" - Matias Aires, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, p. 287.

1 – DO ESTADO-DE-SER

O Cosmos1, constante processo de criação e destruição, segue, inexorável, o seu destino; sujeito absoluto, não está a serviço, amoroso e justo, atendendo aos ensejos e esperanças da humanidade, tampouco, encontra-se em oposição. A transposição da harmonia natural, música das esferas, em virtudes sociais, união, amor e justiça, é a missão e dever precípuo da humanidade, um esforço construtivo que cada pessoa ciente deveria transmitir à comunidade, operando essa versão de momento a momento. Cada indivíduo é uma expressão genuína e ímpar da Natureza, narrada à luz de uma cultura: uma compreensão original, única, e, por isso, as duas colunas do templo essencialista, sede deste panteísmo filosófico, configuram o estado natural, Natureza e Ser (N & S) ou estado-de-ser2, relação basilar, locus e templo definitório, terminante, da existencialidade. A consagração panteísta é a percepção da ordem natural, a transmutação dessa ordenação em harmonia metafísica, no encontro de si com o outro. A busca é a verdade do indivíduo e depende da estrutura cognitiva, sensorial e abstrata, desaguando em termos universais, revelando razões mais completas, integradas. Não há, no âmbito dessa compreensão metafísica essencialista espaço para sectarismo, monopólio ou massificação; do reconhecimento imediato da essência decorrem reflexões, deliberações: posicionamentos naturalistas

1 Sendo Cosmos, Universo e Natureza considerados divinos, optamos pelo uso da maiúscula na grafia destas três

palavras quando não adjetivadas. 2 Estado-de-ser: expressão cunhada no sentido de acentuar o conceito de que inexiste um ser separado de um estado,

senão como hipótese, desafiando, desta forma, o conceito dualista matéria versus espírito; rompendo o idealismo numa

fenomenologia radical, de cunho existencialista, superando alguns psicologismos típicos da fenomenologia na sua fase

inaugural; transcendendo, por definição, os discursos pondo em oposição consciência e corporalidade.

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[somos Natureza]; eco-humanistas [interdependência]; panteístas [o conceito Deus refere-se, radicalmente, a Universo]: pareceres acrescidos de singularidades, evidência de que somos únicos.

Iniciando do ethos3, natureza fundamental do estado-de-ser, é possível redescobrir o eixo de perspectiva metafísica cosmo-existencial4, confrontar a existencialidade com virtude, motivação e prudência, em busca da aspiração filosófica: unidade e transcendência. Nesse processo, onde conceitos são sendas, denota importante especificar termos e encontrar uma cosmovisão entusiasta, evocando uma utopia existencial efetiva em tracionar o vivente em direção à eutimia dos antigos. Nesta busca, valores verdadeiros estão disponíveis desde o início desta civilização, hoje em declínio, precipuamente, na Jônia pré-socrática onde os fundadores da filosofia elaboravam o Logos5, sem dicotomias, das raias da criação até à atualidade da trama universal, celebrando a doutrina do divino imediato. A ética e a unicidade criativa da cosmovisão primordial, dos ditos ‘pagãos’ e ‘indígenas’ na referência cultural dominante, a todos pertencem, aptos a experienciar a realidade libertadora das ponderações sensatas estabelecidas entre âmbitos aparentemente polares e divergentes. Descendo da cruz sacrificial, em busca de uma evolução trilhando uma coordenada metafísica salutar, o Logos, a dialética, convidam a vislumbrar sem acréscimos teológicos, a bem-aventurança do antigo panteão, apontando a importância da res sensitans, referindo à ciência da semética e à divulgação dos semes e virtudes correspondentes6: a intenção correta, a escolha sensata e o benquerer, à luz da razão natural, ou ampliada, revelam, com sabor e discernimento, os fundamentos íntimos da realização do divino.

2 - ABRINDO O TABERNÁCULO DO SABER Uma das funções dos filósofos é a criação de conceitos. A experiência mística, a sua busca, desaguando na criatividade máxima por intermédio de inúmeros caminhos, escapa, intrinsecamente, das descrições prosaicas, exigindo ilustrações capazes de diferenciar as contingências culturais oriundas das disciplinas tradicionais, da universalidade fenomênica do processo. Nas fronteiras da consciência, no solar da unicidade, à poesia sagrada compete evocar a imponência genuína e presencialidade do encontro com a vida; a filosofia, devidamente restituída da sua original plenitude cognitiva, alargada da imagética mítica, eleva os garimpeiros de essencialidades a uma encruzilhada, onde deverão escolher

3 Ver definição de ethos na parte final do livro, 12 - Apenso. 4 Ver definição da expressão em 12 – Apenso. 5 Logos: inteligência natural e razão justa, ponderada, do estado-de-ser em todas as suas escalas: 1: do estado-de-ser

humano, onde essa inteligência se formula, à luz da razão natural; 2: ao estado-de-ser cósmico, totalidade em si, e,

igualmente, in situ na humanidade, o totum por ela conhecido, manifesto e refletido. 6 Ver a definição dos termos semética e semes no Apenso.

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uma via: espiritar ou saber; sacrificando a vida ao hipotético Éden dos pregadores, espiritando, ou, anuindo com as raízes e fundamentos, progredir em busca de saber. Conhecer, experienciar e abrir o tabernáculo da maioridade e do saber, realizar o grande talento, desenhado, como potencial, no ímpeto do processo evolutivo; a busca filosófica amadurece e qualifica a razão do dom de reconhecer a ética diretora na natureza espontânea da autopoiese, onde a sapiência do estado-de-ser se patenteia, demonstrando a superioridade axiomática das virtudes. Revela-se que a redenção é um processo natural, superando a animália sem rejeitá-la, afirmando a regência da natureza universal em todos os encontros, vitalizando o ânimo supremo, ajuizando a supremacia do belo, moldando uma realidade magistral, onde a hiperconsciência supera a subconsciência, na realização de uma espiral existencial criativa e serena. A capacidade de reconhecer-se legítimo, em todas as dimensões, históricas e míticas, em sintonia harmoniosa com a verdade e fluxo do porvir, é a única fonte de vitalidade e força: não há redenção senão na arte e no poder se deixar inspirar pela beleza e grandeza da Natureza universal. O sentido mais extático do fenômeno existencial reside na possível glória e criatividade do estado-de-ser: atualidade, onde a origem é presente, qualificada.

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como graça e alicerce ontológico primaz, efetividade magna, quintessencial, de referência universal: ethos autorizador do fenômeno vital.

2 – A EVOLUÇÃO

Fomentando vida com desdobramentos imprevisíveis, a evolução é surpreendente. O inevitável confronto com a mutabilidade criativa, a dinâmica da impermanência, encoraja reações adaptativas, com sucessos distintos, mas, de alguma forma, minorando a elaboração diversiva do sossego fundador. O estado-de-ser encontra posicionamentos emulando o ethos original, minorando rupturas, separações e perdas, de acordo com as suas singularidades, e, graças aos artifícios e idiossincrasias culturais. Progressivamente, o fenômeno existencial se complexifica, aliando, na humanidade, com excelência, uma instância lúcida, observadora e prudente, justaposta às impulsividades, inquietudes e anseios típicos do vivente, levado pelo fluxo da impermanência, evoluindo entre satisfações e frustrações.

3 – O CONFRONTO

Essas necessidades profundas, buscas, originam a filosofia, a ética, a teologia e os movimentos religiosos, de religação: reencontrar o ethos original. No budismo filosófico, exemplarmente, a postura angular demanda aceitação, conformação, domínio e extinção dos desejos, e, em paralelo, exortar à contemplação serena da grandeza e perfeição dos fenômenos. Em outros cultos, opções igualmente resultantes das tradições chinesas e hindus, os fiéis dedicam-se ao exercício de uma ampla disciplina, concentrados no intento reunidor, como no taoísmo filosófico e ioga; louvores feitos de corpo e alma, no imo de uma vida investida no cultivo da ética, sentimentos piedosos, praxes e rituais diversos. Atitudes atendendo aos mesmos desafios existenciais são exemplificadas, com variações, na tradição monástica: renúncias ao se confrontar com a aleatoriedade e amoralidade; na filosofia, a evitação é uma forma de enfrentamento encontrada em filósofos como Schopenhauer. Outras buscas elaboram as relações de interdependências do corpo e da pisque; a partir destas correlações, construindo disciplinas, encontrando alguma forma de satisfação e alívio na tentativa de dominar o problema existencial; cultivando um estilo mais sensitivo e físico de aprimoramento, galgando sabedoria em práticas instituídas, versões microcósmicas dos temas universais, em formatos históricos e tradicionais; intentos inspirando as artes dos cavaleiros e samurais, com zelo e fidelidade, dedicados aos seus compromissos, treinamentos, confrarias e hierarquias cooperantes. Outras nuanças existenciais, desdobramentos, refletem e encurvam a incognoscibilidade e insignificância teleológica em atitudes e postura centradas na atualidade circunstanciada do estado-de-ser, dedicando o momento ao cultivo sapiente de valores e esteticismos evocando a

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essência original, em todas as escalas e latitudes, das ponderações metafísicas e pragmáticas do estoicismo e epicurismo, à mais espontânea e ousada criatividade e alegria do khayamismo. Outras repostas, imprecisas, desordenadas, apressam e evaporam a busca ao julgar que, apesar de toda a prudência, o destino resulta consumido pelo tempo, inevitável: concluindo ser conveniente aproveitar o máximo, procurando emoções fortes, ariscando explosivas desmedidas. O fluxo e refluxo da vitalidade, as ressacas e desgastes, ocasionalmente, lançam as buscas na infertilidade corrompida do niilismo.

4 - O POSICIONAMENTO

Aberto às abstrações e buscas epistemológicas, o existente possuidor de inteligência e força, tende a interpretar os fenômenos a partir de um stratum cognitivo definidor, uma temática convicta, radical. Em resposta à perplexidade metafísica, indivíduos com propensão mais agregativas e naturalistas, exercitam a intuição mítica em perspetivas históricas, evocando civilizações anteriores, Eras e raças de ouro, prosperando perfeitas em harmonia universal; visionando uma criação, antropocentricamente estimada boa, amorosa, natureza mãe. Nestes decursos esperançosos, as rupturas se ordenam como ciclos, perfazendo movimentos desenhados a partir das antinomias inerentes à manifestação: montanhas implicam vales; bom tempo, mau tempo, e, um previsível e esperado retorno da serenidade. Ou então, como na religiosidade abraâmica ou na gnose, intua-se uma queda, transcendente e transcendental, fruto de uma desobediência, responsabilidade e falta humana: alguma forma de desrespeito às leis da Natureza incorrendo em degeneração, final retorno e reintegração esperançosa, com estágio apoteótico, sobrenatural. Extrapolando a paradoxalidade espantosa da metafísica, conota-se que essas formas de enfrentamento existencial, exuberando em teologismos teísticos, ou devaneios míticos, não fornecem, em última análise, razão ou propósito final, uma vez que o ponto de partida é igualmente o de chegada. Imaginar uma sucessão de patamares, tampouco fornece sentido terminativo: por ser a evolução imaginável, seja, como processo infinito, ou, destinada a chegar a um estado absoluto, a partir de onde, tudo teria, necessariamente, origem, e, não tendo onde findar a não ser no mesmo e idêntico ponto absoluto de partida: regressos infinitos ou retornos ao mesmo absoluto original e final - o Alfa e o Ômega, algo desprovido de teleologia justamente por ser absoluto. Estes temários celestiais, tramas e leques de reações existenciais – aventurescas, estéticas ou hedônicas, éticas, religiosas, filosóficas e possíveis ecletismos - reportam a grandes caraterizações, inatas e culturais, vocações ordenáveis em dois termos fundamentais, como potências primas: 1: obediência a valores, reação passiva, conservadora, e, 2: reação criativa, espontânea, busca e descobrimento de novos modos e respostas.

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5 - A PRUDÊNCIA

Mas, preciso e sensato, é viver sabiamente, aceitando a incognoscibilidade, o despropósito redutor das teleologias; contentar-se com o sentido essencial, interno, viver um projeto eco-humanista sem maiores pretensões; receber as possibilidades, limites existenciais e filosóficos sem exuberâncias reativas: não se deixar fascinar por elaborações vãs e incertas, potencialmente rigorosas e dogmáticas, trilhar as singularidades mais bem adaptadas às necessidades, ao momento, de acordo com as inclinações próprias, a partir de uma intenção amistosa e de respeito ao outro e ao seu espaço. Prudente, é praticar a tolerância, ponderação e previdência, as virtudes, para viver melhor nos rebotes da história; usufruir plenamente os bons momentos, superando os maus, com o auxílio dos recursos da cultura filosófica; no contexto histórico, tentar viver com a calma e a autoridade de um sábio, ciente das profundezas espantosas da essência cujo lume criativo é o ethos unitivo e pacífico.

O desdobramento dessa postura pressupõe um conhecimento profundo, ainda incomum na cultura do momento: consciência de que uma existencialidade hipotética, estranha e independente de nosso arco existencial, não pode ser, efetivamente, cogitada; uma elaboração cognitiva que não se relaciona ao solipsismo, mas, reconhecendo não ser possível cogitar uma realidade ou consciência radicalmente estranha e independente: hipóteses nulas. A ciência da realidade origina na interseção e contato da psique com o tangível, com o que é alteridade: nestes encontros, a subjetividade, em busca de generalizações conceituais, abstrações, especulações absolutistas, tende a extrapolar, dissipar e evaporar o real; um fenômeno próprio dos símbolos, espelhos da mentalização e imaginação. Trata-se de uma tendência atinente ao cogitar; a metafísica é inerente ao ato da conceptualização coerente: especulando, origino metafísica.

Termos como eternidade, infinito, certamente inevitáveis e úteis na geração de ferramentas conceptuais8, não são objetiváveis, independentes. Denota-se uma referência confirmando o nominalismo que nega a realidade independente dos universais: o uso de uma designação geral não implica na existência exclusiva e formal da coisa por ela nomeada; a abstração e imaginação não apontam descobertas de concretudes, abstrair não significa realizar objetos. A plenitude reporta ao essencial, presença imediata não fracionável em termos de espaço e tempo; a inteireza agrega os termos e ordens antagônicos em completude alógica cujo signo e sintoma primaz e o ethos. No âmago do estado-de-ser, berço do ethos definidor, desponta a verdade unitária, a originação criativa 8 Testar, supor, conjeturar, imaginar, fantasiar, extrapolar, distorcer, abusar, radicalizar, padronizar, etc., são

ferramentas cognitivas imprescindíveis, de magna utilidade.

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do fenômeno que se compreende como relação unitária sujeito-objeto, fonte prístina de todos os termos e quaisquer conceptualizações. Revelando e inspirando, intuindo, a configuração metafísica dos inúmeros processos e fenômenos motivando a totalidade das reações existenciais, filosóficas e culturais, a realidade profunda, Natureza cósmica, demonstra ser abissal, ecoando o incognoscível jorrando do estado-de-ser. Assim definida, essa reação filosófica radical - transcendendo as elucubrações tradicionais mediadas e dirigida por especialistas, usos e costumes - evoca um conhecimento imediato, intuitivo, florando primordialmente nos campos teóricos do eco-humanismo e naturalismo, e, nestes termos, reveste a iluminação, insight estético e ético, de compreensibilidade sóbria e suficiente, evocando uma perspetiva metafísica cosmo-existencial, essencialista.

6 - MOTIVAÇÃO E ESPERANÇA

É típico da humanidade ignorar a dominância prevalecente e universal da essência, imaginando-se centralmente privilegiada, num cosmocentrismo antropocêntrico restrito, traçado às medidas do ego: ingenuidade, senão mais geocêntrica, metafísica, pressupondo que o Cosmos9 gira em torno da natureza humana, zelador, divino e perfeito. Candura persistente ancorada na experiência da harmonia original e atávica, relativa à genealogia pervagante e efetividade universal, congregante, dos contextos gestacionais; impressões magnificadas na valência vital e comovente das expectações otimistas, imaculadas esperanças, mas, prosaicamente ordenadas em proveitosas doutrinações eclesiais. A ingenuidade das esperanças idealistas mascara as imperfeições, impedindo de ir além do mundo das ideias, absolutismos hipotéticos, para ver, refletido no espelho realista da historicidade, reflexos inversos, advindos, igualmente, do eixo original: sentir, nos olhares e fácies, a instintividade natural e persistente dos ânimos alcançando humanidade, impulsividade distorcida no jogo das intenções egóicas, das imprevisibilidades e inconstâncias. Tendo a coragem de, igualmente, confrontar esses reflexos à luz natural da razão, tão próximos, sensíveis e atuais, permite evencer e domar os absolutismos mirabolantes, alados, e, com intenção firme, decidida e ponderada, transformar esperanças vãs, contra-evolutivas, descompostas em rogações, desejos, pedidos e convicções dogmáticas, numa heurística própria ao domínio, afirmação e exercício de uma mais perfeita humanidade. Uma prática inicialmente modesta, mas, revestida de um saber filosófico ponderado, estimulando um movimento eco-humanista evolutivo e atualizado, em busca da expressão, voluntária e desinteressada, de mais perfeição – a estética e ética, pela arte do respeito, harmonia convivial e maioridade, sem outras intenções de que o próprio desfrute, individual e comunitário, das virtudes esboçadas na vanguarda do processo evolutivo, eventualmente apuradas no resplendor da razão qualificada10.

10 Conceito discutido na segunda parte do capítulo 9 – Mensagem essencial.

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Essa metafísica essencialista, embora assentada nos ditames sóbrios da razão natural, não parece destinada a devenir um movimento de massa, por evocar posicionamentos responsáveis, não hierarquizados, transcendendo dependências, minus valias, exigindo independência, liberdade e criatividade, na construção dos significados, conhecimento do estado-de-ser: nada prometendo, oferecendo apenas a sabedoria da filosofia, exaltando o esforço próprio, sem elucubrações e expectativas sobrenaturais. É, contudo, natural do filósofo alimentar alguma esperança na capacidade humana de um dia aprender a viver em harmonia consigo mesmo e com toda a biosfera; vivendo, sem reservas, a amplitude do essencial.

7 - UNIDADE E TRANSCENDÊNCIA

O essencialismo celebra uma dedicação metafísica monista; a reação essencial ao conceito de divino não evoca dicotomia ou dualismo espiritualista; não há, para o filósofo essencialista, como ocorre nas teorias xamanistas, dois astrais ontológicos qualitativamente opostos, um superior e outro inferior: existe um único evento, a realidade, apta a ser descrita como uma interação de instâncias polares integrando a unidade. Não encontrando dualismo metafísico à luz dessa filosofia apurada, realize-se estar em casa no cerne da Natureza, busca-se evolução e aprimoramento procurando instilar mais harmonia, viver melhor, sabiamente, aqui e agora, onde a vida se manifesta, contribuindo para a construção de uma cultura responsável e sensata. Para o filósofo, o Universo, absoluto criador de si mesmo, sempre existiu, de uma forma ou de outra, real e potencial; atine-se estar integrado, os elementos constituintes do estado-de-ser pertencem ao Universo ‘desde o começo dos tempos’. O indivíduo é o núcleo fundador das suas próprias dúvidas e incertezas, a ele compete organizar e balizar significados, conhecer e refletir posicionamentos frente às proposições e ditames da cultura; os direcionamentos, respostas e configurações decorrentes, são peculiares, como a vida, flexíveis e mutantes, evolutivos - não se confinam em grades curriculares teóricas e dogmáticas. Nessa busca, cada indivíduo é sua própria autoridade metafísica, verdade exercitada através de escolhas ou omissões. Debates, explorações amistosas de temáticas dentro de um ânimo igualitário, compartilhante, onde se aprende, mas, igualmente, oferece e ensina, fortalecem um processo evolutivo responsável, autonomia e criatividade. O indivíduo é expressão genuína e essencial da Natureza, narrada nos espelhos da cultura e compreensão: respostas rígidas, inflexíveis, objetificam e desvirtuam a criatividade metafísica do estado-de-ser. No âmbito desse entendimento naturalista e eco-humanista, tudo é interdependente; não há espaço eficaz para intermediários, interpostos entre um ser hipotético e uma natureza objetiva, com efeito, estado-de-ser integrado ao Cosmos. A transcendência é um processo onde o intervalo transitando entre o saber e a ignorância filosófica é regido, com virtude, pela pedagogia, dialógica e maiêutica, mas, desvirtuado pela catequese.

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É parte intrínseca do caráter filosófico não ecoar as expressões ideológicas típicas do messianismo ou profetismo, respeitar os diversos posicionamentos existenciais como caminhos do estado-de-ser. Não pretendendo modificar as reações e elaborações dos indivíduos, a perspectiva metafísica cosmo-existencial, essencialista11, abre espaços para os que comungam dessa mesma compreensão. Não se intentam recompensas além dos benefícios imediatos de um cogitar mais claro, de uma busca ponderada num compasso confortável; o estado-de-ser só necessita apreciar o que é, dentro de uma intenção e virtude sempre renovadas. Faz parte do modo essencialista de conhecer, cuidar das atitudes existenciais, ações e escolhas; a possibilidade de perceber os obstáculos e superá-los é natural; a jornada em busca de si mesmo, ampliando valores além dos condicionamentos e limites da cultura, é uma construção criativa, ímpar, onde, cada indivíduo é líder da sua própria religiosidade.

8 – METAFÍSICA COSMO-EXISTENCIAL

O fenômeno da diferenciação e distinção é a natureza mais essencial, o princípio realizador fundante, criador, chave de todas as ontologias; nada existe sem distinção: a unidade é fenomênica e virtual, igualmente, realidade e abstração, unidade revelada na interdependência de todas as coisas; uma hipotética remoção das distinções retira a possibilidade de qualquer ontologia. A hipotética ruptura ontológica em busca de existencialidade implica uma distinção; nada pode ser conformado ao campo existencial e à realidade sem uma forma de diversidade. Afirmar existir um ser, sujeito absoluto, é possível, linguisticamente: mas, para um ser absoluto conferir consciência de si, necessitaria conhecer a si mesmo, distinguir a si mesmo: eu sou, implica uma distinção, a objetividade do sujeito. A compreensão eco-humanista opta por não extrapolar em torno desse princípio metafísico e estrutural; aceitar essa razão sem projetar alguma forma de dualismo metafísico12, optando por manter a percepção de uma estrutura unitária e polar, onde a coesão dos campos complementares e contrastantes sustenta as bases da existência e criatividade, fomentando abundância, construindo oportunidades de diálogos e encontros, sem gerar percepções antagônicas, dualidades morais, sectarismos normativos e dogmáticos. Para o essencialista, a Natureza é sublime; uma simples flor à beira de um caminho, posta em destaque no verde intenso da folhagem, brilha como uma pedra preciosa, colorindo e elevando o ânimo. Neste exemplo, a natureza-flor chama por valores

11 Trata-se do eixo de perspectiva aqui destacado e denominado eixo de perspectiva metafísica cosmo-existencial,

abrangendo um arco de tensão incluindo desde a estrutura cognitiva do Homo sapiens até à estrutura cósmica e

princípios operantes, configurando o arco filosófico por excelência, como um arco-íris, ajuntando o macrocosmo ao

microcosmo, integrando arché a physis, o singular e multíplice numa ordem unitária evocando o Logos eternamente

gerador de Arete(s) variáveis em excelência - ver definição completa em 12 - Apenso. 12 Seja um dualismo metafísico absoluto, como no maniqueísmo, ou, com possível redenção como nas religiosidades

abraâmicas.

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mais sutis, aponta na direção de bons sentimentos e humores, de fato, um milagre de esplendor. Um pássaro, um rosto, um gesto, uma nuvem, a Natureza por inteiro, carrega, em si, uma estética profunda, tanto na geometria das formas quanto na harmonia das cores e tons, nas ligações. A relação da flor com a folhagem adjacente induz e faz ressoar no estado-de-ser receptivo um ânimo tendente na direção dessa mesma perfeição; ao contemplar a harmonia da Natureza, por contágio e mimetismo psíquico, explode um impulso em busca de equilíbrio, ponderação, alegria e justiça: virtudes reunida em amor. Na ponta vanguardista e evolutiva do estado-de-ser humano, a ética mana da estética como a semente brota da boa terra. Um processo consciencial, apoiado na estrutura do real: um elemento natural singelo, uma flor à beira do caminho, espontaneamente, conflagra um encontro extático e sublime, uma sagrada comunhão, realizando esplendor em toda linha do estado-de-ser, das pétalas de uma flor ao Éden, aos míticos Campos Elíseos. Consagração acontecendo espontaneamente, sem catequese. O vivente, desde cedo, sabendo livrar-se dos maus humores e tristezas, artista existencial, está apto a entrar, por si só, em comunhão com a Natureza, conhecendo o caminho da alegria divinal, criatividade frutuosa; como um colibri, comungando as estruturas ontológicas harmoniosas da sua natureza. O encontro profundo, atento e intencionado com o outro, fração interdependente de si mesmo, oferece a possibilidade de transmutar a tristeza em prazer, a irritação e pesadume, em leveza, alegria. Estados especiais e apicais, típicos da infância, se reencontram no convívio, contemplativo e atento, com a Natureza. Conetividades extáticas e profundas, geradoras do conhecimento de que existe um campo essencial, unitário, sustentando o pulsar das nossas vidas: somos mais do que vulgarmente divisamos, somos Natureza, ordem: movimento e evolução dentro de uma cibernética intuída e presumida, como paradigma de perfeição, um élan apto a se refletir e se transmutar em virtudes, serenidade. A ordem natural do estado-de-ser se apura em virtudes.

No âmbito de uma estrutura ritualística, de um culto adequado, à luz dessa filosofia eco-humanista, naturalista e panteísta, a contemplação, alargada por intermédio de disciplinas meditativas ou substâncias enteogênicas [elementos psicoativos e psicodélicos como o chá Ayahuasca, entre outros possíveis], propiciam o conhecimento e a apreensão da harmonia Universal: a revelação, o sentir, de uma ordem criativa. Nessa comunhão, desponta um surrealismo filosófico, em sintonia com o movimento artístico liderado por André Breton, aqui definido como surrealismo hiperconsciente, permitindo o conhecimento dos limites do estado-de-ser, o estabelecimento de relações cósmicas geradoras de virtudes.

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DO RELIGAR

És uma lanterna mágica, Ó céu! A lâmpada é o Sol; O mundo, a tela na qual Passam as nossas imagens. Rubaiyat 115 – Omar Khayyam13

1 - ESPECIFICANDO TERMOS Religio14: um estilo de comportamento, uma releitura das escrituras, um ato de piedade religando aos deuses? Definições diversas e semelhantes. Abstrações acrescidas de lampejos esotéricos, herméticos, implicando em intenso dualismo escolástico; construções intelectuais, nominalismos misteriosos, senão confusos, ou, referências a realidades impalpáveis, apenas acessíveis aos eleitos ou profetas? Definições surpreendentes e extraordinárias: satisfazer uma sede de deus ao ponto de religação não parece vulgar; Jesus Cristo é dito ter expresso um sentimento de abandono na hora da sua morte: [Mat: 27:46] “Cerca da hora nona, bradou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactani;

13 Rubaiyat – Omar Khayyam; edição bilíngue - versão Homero Icaza Sénchez & Manuel Bandeira; Ed. de Ouro; RJ;

1966. 14 A palavra religião [religion, religión, religione], em todas as línguas influenciadas pelo Latim, deriva do termo

religio, conceito que, antes do cristianismo, se referia a um estilo de comportamento marcado pela rigidez e precisão.

Cícero, em De natura Deorum, (45 a.C.) afirma que o termo se refere a relegere, reler, sendo característico das pessoas

religiosas reler as escrituras [enfatizando o lado repetitivo e intelectual do fenômeno religioso]. Mais tarde, Lactâncio

(século III e IV d.C.) rejeita essa interpretação afirmando o termo como religare: religião como um ato de devoção

religando os seres a Deus. No livro A Cidade de Deus Agostinho de Hipona (século IV d.C.) afirma que religio deriva

de religere, reeleger: reelegendo de novo a Deus através da religião. Macróbio (século V d.C.) considera que religio

deriva de relinquere, algo provindo dos antepassados, relíquia. Extrato, revisado e resumido, de uma definição

encontrada em [http://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3%A3o].

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isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. Santos são descritos submetendo-se a ascetismos extremos, para vislumbrar fugazes sinais, acenos da divindade. Tentando concretizar os universais, singularizando os termos em sentimentos reais, cotidianos, indaga-se: separado, desligado e desunido de que? Religar, unir e aderir, especificamente, a que? O conceito não se apresenta ao intelecto com clareza por ser equívoco; o termo não traz um sentido imediato e completo por referir-se a coisas incertas, considerando o mundo como um sistema de relações entre meios e fins que escapam à razão, teologismos: o prefixo re, em religare, implica reposição de algo desfeito; mas, um retorno, como girar uma circunferência em torno de um ponto central, não implica em efeito progressivo, evolutivo - sair de x para voltar a x, operando um re de repeteco é mero passatempo15. Não parece ser sensato, apesar do respeito aos estóicos, haver retorno. Enquanto estamos perseguindo projetos e fins, a vida parece caminhar em direção do porvir e vir a ser. Não querendo embaraçar o intelecto em termos dúbios, torna-se necessário, quiçá, descartar o conceito como parte de hermetismos teológicos, ou gnósicos, exigindo fé, sujeição passiva a uma estrutura dogmática, ou, enquadrá-lo em argumentos conclusivos. 2 – DESCOBRINDO UM RUMO O sentimento de separação, abandono exigindo religar, pertence à experiência imediata de uma multidão: como então ser a solução de um problema vulgar, extraordinário? É comum, no início da vida adulta, sofrer padecimentos existenciais, transtornos, sentimentos de desunião motivando terapias; haveria duas ordens de problema, uma vulgar, mundana, e outra fundamental, suprafísica? Uma indagaçao tipicamente medieval. Não poderia pertencer a solução desse complexo ao domínio dos fatos imediatos e objetivos, assim como os sentimentos de abandono e desligamento? Não poderia estar a solução centrada no âmbito das situações sociais e econômicas, e, não apenas nos labirintos da afetividade e subjetividade, nos destilados dos racionais, nas orlas e auréolas dos ideais? Num mundo onde a vasta maioria parece estar ajoelhada, sujeita a imposições normativas, buscando o etéreo, o idealismo tornou-se lugar comum: utópicos são aqueles que buscam olhar de frente, revelando e clareando as causações e cicrunstanciais dos eventos16. A humanidade contemporânea parece sonambúlica, vivendo um pesadelo, afastado do justo convívio com o que poderia ser uma comunidade verdadeira, projetada

15 Digna de nota, a literatura védica, cuja finalidade é reconhecer a essencialidade de Sri Krsna: estes escritos, propõem

uma interpretação dinâmica, avançada: o Senhor é entendido como situado em todos os universos, em formas diversas,

apenas para agradar os devotos; destruindo os princípios religiosos e estabelecendo o dharma: religiosidade. O Vedas

representa um deus de estética e beleza espantosa, irresistível, sendo seus passatempos como ser-humano os mais

extasiantes. 16 Trechos reformulados e sumarizados do livro – De habilis a sapiens: a anamnese de uma crise – Barbier, R. A. Ed. do

Autor – 1998.

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pela razão qualificada, onde reinasse a ética, o respeito, e prevalecesse as virtudes sociais fundamentais: mote do iluminismo, liberdade, igualdade e fraternidade17. Uma agitação orquestrada em escalas de valores quantitativos tornando relativa a importância de todas as coisas e da vida. Dissociada da Natureza, subjugado pela atividade rotuladora da razão, o indivíduo parece dançar ao som de partituras elaboradas em ritmos impulsivos e binários. Emoções oscilam do apego à rejeição, a predominância quantitativa faz do uso da força e da persuasão, o meio preferencial para se apossar dos objetos da atenção; os usos e costumes, as manifestações sociais e culturais, se caraterizam pela primazia dos atributos expansivos, invasivos e autoritários. É o gênio reinando nos partidos, seitas, organizações bancárias e comerciais: o reino da massificação, intolerância e coerção, das estruturas hierarquizadas e do pensamento linear, buscando lucro. Envolvido nessa teia de interação, o ser humano, fichado, identificado, é peça destinada a alimentar o esquema societário, superestratificado, devorador: testado e bitolado, o eleitor é recompensado em função da sua competitividade e capacidade de atender expectativas e desempenhos pré-estabelecidos. A vida ocorre num círculo vicioso no qual os instintos de procriação, alimentação e defesa, são pervertidos em normas competitivas; o estresse crônico, como o atrito numa máquina desregrada, esgota a natureza humana. Esse mal-estar existencial fornece um terreno propício ao surgimento e elaboração de paradigmas e crenças de minus valia: o orfismo impera, os mitos do pecado original, da queda e expulsão do paraíso, predominam no inconsciente coletivo, aniquilando a auto-estima essencial dos indivíduos. Por deslocamento e projeção, sentimentos de inferioridade se universalizam: a mãe Natureza é vista como traiçoeira, falsa, por existir nas suas entranhas, bem no centro do éden, uma serpente manhosa e falsa. A tradição teológica, teísta, responsabiliza a mulher pelo pecado original; a figura feminina é tida como a pedra angular do castelo das neuroses. Desorientado, atomizado, massificado por intermédio de uma pseudo-cultura sustentada por tiranos, burocratas e associados, difundida pela mídia: sem rumo, como uma ave migratória presa num viveiro de telas metálicas, fechado, iluminado artificialmente, o indivíduo comum sobrevive, adoece e expira, perplexo, sem nunca ter empreendido uma busca, uma desconstrução e reconstrução, guiado pelo bom senso. Mas, descobrindo um rumo, o ser humano terá que decidir: ficar no viveiro, ambivalente, contando histórias, ou religar, pegar rumo na rosa-dos-ventos; tomar uma atitude, ter a coragem de tomar vôo para espiritar ou saber: iniciar a viagem em busca da Terra sem

17 Liberdade: como criatividade máxima e fluidez, movimento implícito do estado-de-ser devidamente reconhecido e

aceito. Igualdade: porque a realidade existencial configura ser um encontro autopoiético essencialmente igual,

progressivamente consciente; a perspectiva metafísica cosmo-existencial configura um mistério unitário enraizado

numa igualdade essencial. Fraternidade: um comunitarismo dialógico, um fundamento participativo e civítico,

destinado a destronar o fenômeno societário dogmático, representativo e fundamentalmente corrupto; um ressurgimento

do bom senso filosófico, no qual a fraternidade seja a virtude social diretora, assentada no enquadramento das antigas

virtudes cardeais.

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Males18: 1: fantasiada além: enveredando pelos caminhos do asceticismo rigoroso, em busca de redenção e morte sacrifical, espiritar; ou, 2: imaginada aqui: evoluir no plano do horizonte imediato, saber. 3 – ENTUSIASMO EXISTENCIAL Neste psiquismo coletivo, ainda fortemente maniqueísta, haverá ponderações de um lado ou do outro, vislumbrando diversamente a natureza e destino do estado-de-ser: seja elucubrando teodicéias ou arquitetando utopias. Idealistas platônicos achariam evidente imaginar a vida como uma duplicata sem substância, uma passagem: que no além estivesse a vida real, o ouro dos alquimistas. Mais radicais, com menos argumentos e razões, os sectários, adeptos do teísmo, imaginam a alma como um éter imortal permeando o corpo material, uma nuvem esotérica, uma centelha quase apagada, soterrada nas cinzas, esperando o sopro da libertação. Imaginam-se desligados porque nascidos, professando: religar é o anseio da alma caída desejando voltar ao jardim original, aspirando à vida eterna, à divina perfeição em outros orbes, progressivamente, desvelando um espírito

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a comunidade dos homens convivendo simplesmente. Moradas sem ostentações desnecessárias; praças onde se comunicar, rir e cantar, negociar com moeda de responsabilidade coletiva, emitida na hora das trocas, justa, livre, abundante, lastrada no valor do que se pode de fato oferecer, pedir e consumir. Convívio com a Natureza, liderança de conselho - a autoridade livre de cada um florindo como uma toalha de flores posta na mesa da vida, tapete planetário. Desabará a pirâmide do poder bipartido, dominadores/dominados. Antes do final desmoronamento da sociedade de falsos moedeiros, irão se sentar os gandhis, todos os filósofos da mãe terra, despertando e religando os ofuscados, antenando o mundo na palavra da vida, na contemplação do real, removendo os véus, conectando o estado-de-ser à sua natureza imediata e sensível, ao cosmos do coração. Viveremos felizes na prática da arte das virtudes cardeais; confiando uns nos outros - o chumbo irá se transformar em ouro. 4 – COSMOVISÃO E UTOPIA A teoria dos mundos superpostos, estratificados20, assenta configurada numa alegoria antiga, ilustrando o estado de exilados no planeta em busca de salvação, mas, ainda, não conhecendo a sua sombria situação. Aquele, parecendo realidade, seria um reflexo ilusório de um mundo oculto aos olhos físicos, ao qual se voltaria através de um doloroso desapego. Numa interpretação significativa e sensata, a alegoria revela um estado-de-ser adernado nos fluxos e potenciais da evolução; um sujeito enredado, tutelado pelos modos e filtros educacionais de alguma civilização retrograda, sem ethos nem rumo, para, pouco a pouco, encontrar uma luz clara; finalmente, já acordado, lúcido, caminhar livre, iluminado, treinado na arte de pensar dos filósofos: aprendendo a viver na força do entendimento universal.

Se por um acaso - segue Platão na sua narrativa -, alguém resolvesse libertar um daqueles pobres diabos da sua pesarosa ignorância e o levasse para ver essas pessoas, uns prisioneiros, carregando para lá e para cá, sobre suas cabeças, estatuetas de homens, animais, vasos, bacias e outros vasilhames, por detrás do muro onde os demais estavam encadeados, havendo ainda uma escassa iluminação vindo do fundo do subterrâneo. Livro VII de A República.

O que parecia genuíno se revelaria revestido de mentiras e estratagemas enganosos, ilusórios. Passariam a entender os motivos reais dos acontecimentos, os impulsos profundos e determinismos causadores desses usos e costumes: o jogo das forças históricas e sociais, das contingências biológicas e naturais, das principais doutrinas da cultura. Salvar-se-ia o estado-de-ser dos antropomorfismos exaltados, do chauvinismo e

20 Interpretação platônica em harmonia original com o que há de típico nos seguidores do orfismo em geral, dos

facciosos do aristocratismo.

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facciosismo, das opacidades retóricas, dos simples preconceitos, da ignorância, superstições e dogmatismo.

Num primeiro momento, chegando do lado de fora, ele nada enxergaria, ofuscado pela extrema luminosidade exuberante de Hélio, o Sol, que tudo pode, que tudo provê e vê. Mas, depois, aclimatado, ele iria desvendando aos poucos, o Universo da ciência e o do conhecimento, podendo então vislumbrar e embevecer-se com o mundo das formas perfeitas.

Apesar de não poder abranger o absoluto com a razão, a magnificência da presença do mundo e nossa, o belo, se revelaria com plenitude e perfeição, adquirindo-se uma serenidade harmoniosa, perene, transpassando todos os humores relativos. Vislumbrar-se-ia um estado-de-ser atemporal, completo como uma mandala, firme nos seus procederes; algo, num tempo só, solar, radiante no topo das montanhas, e ingênuo, sombreado, distraído pelos reflexos, lá no fundo dos vales e dos apegos, brincando com os seixos da beira dos rios e dos mares.

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A ORIGEM É O PRESENTE

Porvir, existindo um além; Seguirá decorrente do criado: Inferno querendo o paraíso; Paraíso nada querendo além.

Régis Alain Barbier

1 - A VERDADE DOS JÔNICOS E DOS PERSAS

A palavra grega correspondente a alma é, de acordo com Aristóteles, psuche, o que, em latim, se traduz como anima ou animu: i.e., gênio, ânimo mais do que alma. Enquanto a tradição platônica, acentuadamente polarizada pelos teólogos, compreende alma como algo imaterial e imortal, separada e superior ao corpo, Aristóteles diverge de Platão, sacerdotes e teólogos: para ele a matéria, hylé, e a forma, morphe, determinam uma unidade hilemórfica21. É a influência da metafísica oriental, do orfismo, profundamente entranhado ao elitismo aristocrático, que chega ao apogeu em Platão e, com evidente

21 Hilemórfica, ou, hilomórfica: sendo o hilemorfismo a posição tipicamente aristotélica da unidade e indivisibilidade

das causas materiais e eficientes com as causas formais e finais - hilemorfismo - como um processo único, causal,

associando duas duplas causas [material e eficiente] com [formal e final] numa unidade indissociável.

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certeza, não a típica filosofia grega expressa pela tradição jônica22, racional, monística, naturalista, humanista com pendores individualizantes e democráticos. Platão abandonou a filosofia dos naturalistas e pôs-se à procura da verdadeira causa que julgou encontrar no mundo das ideias; distanciou-se da tradição filosófica, principalmente jônica, optando pelas verdades teológicas; excedeu o uso mais sóbrio da razão, exulou a sobriedade metafísica em favor do dogma. Para Platão, diferente de Aristóteles, o homem não é uma unidade substancial: a alma e o corpo encontram-se juntos provisoriamente, durante a vida incarnada e presente.

“A alma habitava junto com as ideias (no Hiperurânio). A certa altura, por uma obscura eventualidade se tornou pesada; cheia de esquecimento e perversidade, caiu sobre a terra. Caso a alma parte pura do corpo, então, tornará ao que lhe é semelhante: ao divino imortal; se parte contaminada e impura como quem esteve fascinada pelo corpo e suas paixões, será trazida para baixo para reencarnar: os violentos e truculentos em formas de asnos; os injustos, opressores e ladrões em forma de lobos ou gaviões” [ver Platão em Fédão].

Platão, criador e transmissor de uma filosofia espiritualista e teocrática, renovou o pensamento pitagórico, a que somou, na sua utopia política, modos típicos da velha aristocracia dórica-espartana, acrescida de uma influência oriunda do totalitarismo persiano: um esquema sociocrático, distante da perspectiva conceitual, comunitária e democrática, da polis. Naturalmente, os modos superestratificados da construção política platônica são consistentes com o seu idealismo metafísico, dualístico e elitista, onde o macrocosmo, tanto quanto o microcosmo, constam de uma casta superior destinada a legislar, e, de uma inferior devendo ser padronizada. O platonismo está assentado num dogma escorado em uma infinidade de argumentos falaciosos, em proporção à arquitetura fantástica do Mundo das Ideias; uma suma absolutista e totalitária, comparável com a de Aquino, expressando o facciosismo tirânico que dominava Atenas e não suportava Sócrates, condenado à morte por desafiar preconceitos e ideias insensatas, sem fundamentos. Indubitavelmente, clássica, a obra de Platão sobrevive pelos seus próprios méritos, originalidade, valor documental e literário, mas, igualmente, prestigiando esferas míticas e lendárias, narrativas de índole teocráticas, preponderou, canalizando e instrumentando ímpetos de dominância política ao longo dos séculos, servindo de estímulo e fermento aos movimentos hierarquistas23.

Surpreendentemente, a figura de Sócrates revela-se através de Platão. Extraordinário pela simplicidade e respeito aos limites do saber e da razão, Sócrates parece criar sabedoria e virtude, progredindo, até se dissolver em espanto e maravilhamento místico, confrontando

22 Sendo a tradição jônica originada pelos milésios e Heráclito de Éfeso, e, depois continuada por Epicuro e a típica

filosofia dos helenos, de cunho mais fenomênica e prudente - evitando com cuidado abusar dogmaticamente da razão –

e exemplificada em Sócrates e helenistas de mesma inspiração, como alguns estóicos, cínicos e céticos. 23 Outras obras, anteriores, pré-socráticas, e posteriores, não se beneficiaram deste destaque, perdendo-se por não

favorecerem a manutenção, exaltação e sustentação das ideologias políticas superestratificadoras e dominantes.

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o inacessível. Um homem reconhecendo a incognoscibilidade essencial, evidenciada numa busca aberta, na arte da maiêutica, enfatizando a necessidade da virtude, prudência, na realização do saber: por isso, merecendo o título do filósofo mais sábio de Atenas. Mas, ao longo dos escritos platônicos, Sócrates, de livro em livro, vai se transformando num ator dogmático, um fenômeno literário, proclamando o Mundo das Ideias do seu aluno. Um Sócrates parecendo transformar uma apreensão inicial intuitiva, contemplativa, humanista, realista e prudente [levando a um espanto inspirando um profundo respeito e reverência, como encontro frontal do estado-de-ser com o seu próprio mistério], num fenômeno antipodal, professando os apriorismos do platonismo, querendo reger a partir do mundo das ideias, até aos planos basilares de uma república padronizada; na dependência das tendências políticas e metafísica dos analistas e estudiosos: 1: um filósofo demonstrando que a realização da lucidez existencial, enquanto realidade vivida, abrolha do exercício de um ceticismo numinoso24 e extático, frutificando numa união mística destilada no exercício prudente da inteligência operada à luz da razão natural25: a prática da virtude como valia mais suprema, ou: 2: um profeta revelando o oculto, anunciando os desígnios divinais, formatando elitismos ideológicos irradiados do mundo esotérico das ideias.

2 - TRADIÇÕES PRIMORDIAIS

As tradições precursoras, antecedentes e circundando o processo civilizatório ocidental desaguando no império romanista, latino, e consequências, quando não radicalmente superestratificadas26, tendem a manifestar uma compreensão mais convivial; o divino está incluído na experiência do mundo. Não se entende a divindade como abstrata e alheia, fora de alcance, vislumbrada através de um discurso intermediado, instrumentado por enviados ou profetas. Caso imaginado, como hipótese, além dos limites da razão, o plano divino será considerado incognoscível, gerando perplexidade, espanto, inapto a suportar certezas formais. Não há, portanto, um hipotético campo divinal diretor regendo o mundo em filigranas, de um plano afiançado por escrituras, especialistas em hermenêutica, enviados e testemunhas; não há deuses externos ou em paralelo ao conjunto universal: o divino espraia, universalizado como Deus-Universo; a razão não exubera, permanecendo

24 Ver definição do termo numinoso no Apenso. 25 Luz da razão natural como inteligência unissonante, exercitada naturalmente, com equilíbrio e harmonia dos

sentimentos e dos pensamentos, sem os reducionismos e racionalismos dicotômicos elaborados no decurso da formação

histórico-cultural da universidade ocidental – ver definição completa em Apenso. 26 Superestratificação: situação social hierárquica e polarizada, típica dos estados nacionais; demonstrada entre grupos

sociais diferenciados quanto ao seu poder político, prestígio e acervo econômico; originada em procedimentos

históricos de invasão e dominação, i.e., de posições vantajosas resultando de conquistas e subjugações ancestrais,

transformadas em direitos adquiridos e hereditários; o termo é claramente definido em Rustow Alexander; Freedom and

domination; Princeton University Press; 1980.

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lúcida ao se confrontar com os seus limites. O que se pode conhecer, e supor, graças à observação e ao progresso científico, à luz da razão, pertence ao Cosmos; aquele que não se pode conhecer é declarado desconhecido, de modo provisional, ou absoluto: fora dos limites e abrangências da razão. Limites definidos por diversos filósofos, antigos e modernos, agudamente sinalizados por Leibniz perguntando “por que há seres afinal, em vez de simplesmente nada?”. Uma pergunta espantosa, como uma manobra médica, apontando incisivamente sintomas de profunda ignorância essencial, revelando, sem profetismos, a exuberância das nossas vaidades. Uma pergunta que reporta à memória do homem eleito como o mais sábio de Atenas pela sacerdotisa do templo de Apolo.

Nas tradições fundamentadas na

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A Natureza é um estado-de-ser plenamente revestido dos potenciais referentes ao conceito deus. A expressão espinosista “Deus é Natureza” é apotegmática da filosofia orientada por intermédio da perspectiva cosmo-existencial, resultando numa teologia panteísta. Mas o que profundamente significa? Trata-se do estabelecimento de uma identidade entre dois termos: Deus, Natureza; a divindade é idêntica à Natureza: uma unidade por igualdade entre termos, a realização de uma união revelando uma aporia. Quando é dito Deus é Natureza, não se está tornando o conceito deus menos potente, ou, destituído de algo essencial, mas, expressando o seguinte conjunto de ideias: a Natureza é tão inspiradora, potente, onipresente e grandiosa quanto o conjunto de sentimentos culturalmente evocados pelo conceito deus; a Natureza é fundamentalmente incognoscível, tanto quanto a constelação de sentimentos evocados pelo termo divino; cada indivíduo, independente do seu estatuto entre os homens, é parte desse mistério: um sentido profundo, expresso na prática da acolhida e respeito ao próximo, estado-de-ser inscrito no tecido do real: Natureza: não apenas como integrante co-específico, das nossas afiliações, dividindo o espaço planetário, mas, como ecossistema interdependente e unissonante; o conceito é extenso suficiente, relativizando e sanando o desassossego das opiniões dogmáticas, finalistas – tradicionais e históricas geradoras de infindos conflitos e magnas brutalidades. A unicidade emana a partir dessa identidade, não necessitando prover de uma fonte separada e transcendente: não há uma descida de amor e união se efetuando graciosamente a partir de planos ideais transcendentes e sobrenaturais; há um grande conjunto de realizações humanas, como axiomas científicos, oriundas de generalizações e observações empíricas; alegorias prístinas, expressas nas culturas, apontando para a unicidade; realizações trabalhadas, nutridas e sustentadas, a partir do que se experimenta e vive; intuições recordando a frase lapidar de Carl Sagan: “somos poeira das estrelas”, ou, evocando um símbolo antigo como o Tao: os complementares e poles se originam e justapõem num círculo uno e dinâmico, ou, ainda, esta imagem da cultura hinduísta, onde, a figura de Krishna, ao lado da sua consorte Radha, tocam uma flauta, símbolo da harmonia vital e universal. Deus é Natureza é afirmação cujas raízes originam a partir de uma busca empreendida com inclusão deliberada e necessária das vivências próprias aos estudos filosóficos de base, não apenas restrita aos estudos dos escribas, das hermenêuticas e esoterismos. Os fundamentos da unidade não jazem em hipóteses ontológicas, teorias, das opiniões bem ordenadas, mas emanam e se encontram na certeza imediata e real das nossas vidas, como acontecem neste momento: é na atualidade que a origem opera, não antes, a origem é o presente. Um originar apto a ser descrito como um agorar, ou, como teria dito o filósofo Benedito de Espinosa “esse naturar, naturando agora e sempre, é Deus, ou Natureza: dele fazemos parte integralmente como naturados naturando”29.

29 No seu discurso ético e teológico Baruch de Spinoza não deixa dúvidas: na Parte II de Ética; proposição VII: a ordem

e a conexão das ideias são o mesmo que a ordem e a conexão das coisas. No escólio primeiro dessa propositio, afirma:

“(...) consequenter quod substancia cogitans et substantia extensa una eademque est substantia (...)”, i.e., (...)

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A frase Deus é Natureza expressa que a Natureza, no sentido mais abrangente, é estado-de-ser plenamente revestido dos potenciais referentes ao conceito deus; Natureza compreendida como fenômeno absoluto e atuante, espontâneo, manifestando, na atualidade, a energia primordial. Esta identidade, por ser central, una, plenipotente, infinda e imanente, não suporta superação transcendente; é uma realidade suprema desvelando e investigando que não existe uma dicotomia entre um sujeito criador e uma criação, ou, entre um sujeito fixo, separado, observando um objeto. Esse conceito não dual, é o fundamento da perspectiva metafísica cosmo-existencial, do movimento filosófico essencialista, como aqui definido, e, da manifestação religiosa decorrente, o panteísmo; a ideia de uma consciência observadora separada do observado aponta para uma posição esquizóide, incongruente e dualística, em harmonia com o teísmo, e, em afinidade com o cientismo – igualmente, advogando a independência do sujeito observador, sustentando um individualismo egóico, desunificador, a competitividade da sociedade de consumo, o afastamento entre classes.

4 - DICOTOMIAS TRADICIONAIS

No caso do xamanismo, candomblé e demais rituais, práticas primordiais, apontando com algum grau de intuição, mas, imprecisamente, os valores depurados, precisos e clarificados, da filosofia essencialista, as manifestações de natureza mágico-religiosa operadas pelos xamãs ou figuras equivalentes, como pais-de-santo, atuam e teem origem no Universo do entendimento humano, no plano mítico e lendário como instância mais abstrata, não sendo definidas como oriundas de um plano radicalmente dicotômico, como no teísmo abraâmico: por excelência, a forma teológica do divino mediato. Ritos nativos eram bem estabelecidos antes do advento do grande processo colonizador teísta, acontecido em ondas, desde o tempo da conquista da Grécia pelos asiáticos, desde a conquista dos pagãos, até o fim do Império Romano, e, durante toda a Idade Média por intermédio do messianismo cristão e conquistas do além-mar, e, como exemplo atual, na conquista do Haiti pelos missionários pentecostais. A ritualística dos xamãs segue uma metodologia naturalista que pode ser ensinada, experimentada e testada, porque o plano ontológico não está, fundamentalmente, dissociado do plano natural: existe na visão dos

consequentemente, a substância pensante e a substância extensa são uma só e mesma substância (...). Spinoza, com um

brilhantismo espantoso para a época, apresenta a relação [consciência pensante] & [mundo sensível] como um único

fenômeno manifesto em dois atributos: 1) desmorona a crença num deus isolado e idealístico [denominando e

descrevendo esse fenômeno unitário, imediato, como divino: Deus], e, igualmente: 2) elevando o mundo sensível,

inferior e impuro aos olhos dos fiéis, a uma esfera fenomênica suscitando e desvelando panteísmo, na tradição dos pré-

socráticos [o que resulta num anátema e banimento da sinagoga, pronunciado em 27 de julho de 1656]. Nesses termos,

Spinoza fundamenta o pensamento fenomenológico contemporâneo, em níveis filosóficos, metafísicos e teológicos.

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nativos uma unicidade semelhante ao hilemorfismo aristotélico30. No mundo antigo e nativo, a oposição antitética natural/sobrenatural nem mesmo se configura de maneira secante; o processo existencial é entendido como composto de forças, ou astrais, que se intersectam no presente: o que não se compreende, sendo bom, tende a ser regido pelo astral superior, e, o que não se compreende, sendo mau, pelo inferior31. Não há uma fratura radical, o mundo é unitário em todas as suas configurações, encantos e mistérios. Modernamente, o mesmo debate poderia envolver um taoísta filosófico com um dualista radical adepto de alguma seita; para um taoísta essa dicotomia natural versus sobrenatural não faria nenhum sentido: o caminho, o Tao, é absoluto. O Tao é em si mesmo a totalidade do ímpeto e da manifestação existencial formada por antíteses, muitas delas abarcando fenômenos desconhecidos, mas, o Tao, como um todo, é único, sem ruptura nas suas profundezas, espiralando no sentindo evolutivo, e, em parte, objeto de observação e estudos práticos, de acordo com a atenção e vitalidade do estado-de-ser. Uma diferenciação claramente marcada e estabelecida lembrando a opinião do Doutor da Igreja: o ponto de vista aquiniano, citado em Introdução à Filosofia / B. Mondin – São Paulo, Paulus. 1980: págs. 97-98.

“Para S. Tomás de Aquino (...) até o conhecimento que conseguimos por meio da fé é insuficiente para nos tornar felizes: incomoda a nossa mente em vez de satisfazê-la. O único conhecimento em que S. Tomás deposita nossa felicidade está na visão beatífica de Deus, um conhecimento sobrenatural que poderemos obter apenas na vida futura”.

Os eixos da felicidade e do sucesso existencial dos xamãs, não teem o centro projetado ou investido no incorpóreo, no além morte, tampouco estão centrados num estado espiritual concebido como algo mineral, cristalino e intocável, imaginado imaterial, puro, por isso, imutável; os fenômenos tidos como mágicos atuam e se direcionam ao campo do real, do mundo e das formas. O sucesso depende das manipulações dessas forças que polarizam e dinamizam a realidade; o lugar adequado do estado-de-ser é estar evoluindo no mundo, de uma forma ou de outra. Inversamente ao que acontece no teísmo, para o nativo, o mundo tende a ser uma instância final, tão essencial como o céu ou paraíso: caminhando na floresta em direção ao Oeste, os guaranis buscavam a sua Terra sem Males. Um mundo de peso existencial profundo e fundamental, considerado absoluto, revelado por lendas com raízes míticas, vindos em direção ao plano humano, mas, frutificando no presente, na atualidade. Fenômeno adequadamente exemplificado na mitologia dos Incas sobre a origem dos filhos e filhas do sol:

“Há milhares de anos, nas montanhas majestosas das cordilheiras, homens viviam em grutas, selvagens como os pumas. O Sol, na sua diurna clareza, observando a humanidade

30 O hipotético princípio controlador é imaginado estar presente na natureza, sensível à engenhosidade dos humanos, e

não dicotômico, afastado numa esfera suprema, representada por uma elite enviada. 31 Na cosmovisão andina, quéchua e Inca, o conceito de astral superior se traduz como Hana Pacha, de astral inferior

como Uju Pacha, sendo o mundo da vivência cotidiana é, tradicionalmente, denominado Kay Pacha.

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vivendo neste estado, sem conhecimentos, e, incapaz de cultivar a terra, compadeceu-se enviando seus filhos Mama Occlo e Manco Capac. Chegaram a uma ilha hoje dita a Ilha do Sol - uma ilha do lago Titicaca - para ensinar as artes de uma vida civilizada e o reconhecimento da grandeza da luz solar. Carregavam um bastão de ouro a ser plantado no solo: no lugar onde o bastão penetrasse na terra, por inteiro, reconhecer-se-ia o centro da civilização sagrada do Sol. Após uma longa jornada e numerosas tentativas, foi no vale de Cuzco que o bastão encontrou uma terra receptiva. O irmão indo ao Norte e a irmã ao Sul, trouxeram o povo para a cidade ensinando a todos como bem viver em comunidade: os homens cultivando, irrigando e plantando, as mulheres semeando, colhendo, cozinhando, todos, cantando um hino ao sol - assim surgiu, iluminado e feliz, o império dos Incas”.

O enaltecimento da humanidade, da criação, do mundo, a conetividade pródiga entre os mundos, configura uma diferença extrema com a visão típica do teísmo de origem abraâmica, como se exemplifica no apogeu do cristianismo medieval pregado por São Bernardo: “Somos feridos desde nossa entrada no mundo, enquanto vivemos nele, até que saíamos dele; da planta dos pés ao alto de nossas cabeças, nada é são em nós”32. A ausência de teleologismos radicalmente dicotômicos e sobrenaturalistas é típica das sociedades tribais; a teleologia tribal tende a apontar o momento atual e presente, a esfera do real. Diferente das formas mais abstratas, metafísicas e dualistas de espiritismo, onde o estado atual de corporificação, in totum, é entendido como algo acidental e de natureza inferior, o estado final vislumbrado como o alcance da perfeição e reunião de um ser/espírito com um Deus essencialmente inconcebível; uma condição espiritual post-mortis, ou póstuma, carente de existencialidade sensível. Para os nativos da América e outros, o estado atual resulta de um encontro sensato, sensível, glorioso e fértil de dois princípios: Inti, pai sol, e Pachamama, mãe terra. Nas perspectivas espiritualistas herdeiras, e, em continuidade com a linha tradicional indígena, ou nativa, do divino imediato, não há ontologismo acentuado e mortificante. O conhecimento consiste numa compreensão direta e intuitiva do divino, um conceito incluindo positivamente, e, in natura, a humanidade. Um divino de caráter eco-humanista, uma entidade de certa forma gerada, cultivada, ou apreendida através da intenção e entendimento humano, mas assim mesmo um fenômeno manifestando a totalidade como um presente glorioso.

Como conceitos filosóficos, o idealismo e materialismo não conseguem discriminar com clareza e precisão a riqueza conceitual do panteísmo, decorrência religiosa da perspectiva cosmo-existencial, e, do essencialismo. No idealismo, o mundo material, objetivo, é imaginado compreensível a partir de sua verdade espiritual, ou subjetiva; no materialismo, a matéria e seu movimento, realidade física fundamental do Universo, é entendida capaz de explicar todos os fenômenos, naturais, socioculturais e psíquicos. Essa antinomia não explicita os conceitos metafísicos e suas decorrências teológico-religiosas trazidos pela perspectiva cosmo-existencial. A lacuna e insuficiência discriminadora pode ser ilustrada, em parte, evocando algumas doutrinas teológicas, monísticas, com efeito, panteísticas,

32 Os intelectuais na Idade Média/ Jacques Le Goff – Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

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mas, compreendendo a realidade, na sua totalidade, imaterial, ou espiritual, como no solipsismo, e, em outra tradição, na visão hindu dos Upanishad33. No vedismo a continuidade existencial do espírito, sua homogeneidade, são essenciais; a verdade é a não-dualidade [advaïta], e, a multiplicidade das coisas não passa de ilusão [mâya]. Um dos mais importantes teóricos da cultura hinduísta posterior, Shankara, em torno do Século VIII d.C, ensina um estrito monismo segundo o qual só existe um princípio originário, sendo na sua totalidade Brama e nas suas individualidades Atma. Assim sendo, um conceito teológico não-dualista, ou monístico, panteísta, incluindo a base existencial onde estamos mergulhados, não se confina, necessariamente, do lado mais concreto, da antítese materialismo versus idealismo: o idealismo do vedismo é de fato panteísta. Entender matéria como termo antitético à energia [energia como extensão do impulso divino, do sopro de Deus atuando na inércia do mundo material], dificilmente, poderá ser advogado como algo mais do que uma metáfora ilustrando, frontalmente, os preconcebimentos teístas. A matéria é complexa, tanto quanto a energia, sendo, de fato, uma forma de energia: a dualidade onda e corpúsculo, segundo Bohr, deve ser interpretada de forma complementar, descrições necessitando excluir-se e completar-se mutuamente. Segundo Heisenberg, os conhecimentos de grandezas peculiares possibilitando os logicismos físicos são igualmente complementares. Postular uma unidade essencial, além da ambiguidade existencial, evoca um mistério diretamente confrontável, senão compreensivo: um fenômeno clamando respeito e consideração, crepusculejando nos limites dos ajuizamentos, compelindo sentimentos de reverência e unicidade encontráveis lá onde razão e consciência se dissolvem, tantos nos humildes segredos do cotidiano quantos nos termos finais. A realização intelectual da equipolência pode servir de fulcro abrindo ao encanto místico e silêncio da unidade essencial, cuja sutileza não suporta retóricas teleológicas e dualísticas, visões mecanicistas, oposições drásticas e ideologias separatistas.

5 - NAS RAIAS DA CRIAÇÃO Pitágoras (c. 570 - 496 a.C.), nascido em Samos, uma ilha da Jônia, emigrado em Crotona, Calábria, fundador da Escola Itálica34, postula uma inteligência superior, o grande

33 Upanixade: texto filosófico escrito entre os sVIII a.C. e IV a.C. e anexado às escrituras hindus, como Vedanta. 34 Reinava na Pérsia, Cirus II (580-529 a.C.) aliado à hierarquia zoroástrica: seita órfica recém-fundada preceituando a

antítese ‘mal-bem’ como princípio absoluto, transcendental e determinador; anunciando a vitória final do bem, mas

condicionada à obediência, normas e prescrições reveladas. Cirus iniciou um grande movimento de conquista: através

da Lídia derrotada (em 546 a.C.) controlava a Jônia, colocando tiranos pró-persas na liderança das cidades. Uma

tentativa de revolta, iniciada pelos milésios, resultou em invasão formal. Embora considerado um ‘ditador

condescendente’, numa perspectiva incluindo a conquista posterior da Babilônia, a cidade de Mileto sofreu ferozes

represálias: incêndios, massacres, escravizações e deportações. Iniciou-se um lento expurgo almejando adequar usos e

costumes às normas da religião de estado: o começo histórico de um crônico combate às escolas de filosofia. Nesse

momento, a cultura grega sofre modificação de consciência mítico-ideológica, justificando-se a denominação “Escola

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arquiteto do Universo, de onde emana o Logos, refletido nos sábios, projetando e gerando o Cosmos através de operações numéricas. Ainda hoje, para muitos, as relações e processos regulares e previsíveis ocorrendo naturalmente e espontaneamente entre os corpos no espaço, e as partículas atômicas e subatômicas, são postuladas, ou ao menos supostas, como Leis, executadas por uma entidade oculta, ou, constituições independentes, sujeitos ativos e apartados: um reino neoplatônico, uma inteligência oculta e superior, antecedente: a divindade. Diversamente, a perspectiva cosmo-existencial, decorrente em religiosidade panteísta, não dogmatiza um espírito universal como sujeito separado e dissociado numa relação hierárquica, por um lado, e, do outro, um corpo universal objeto de cálculo do espírito: esta é a cosmovisão dicotômica sobre a qual tentam se assentar e justificar as sociedades esotéricas, teocráticas e outras estratificações. O processo criador universal é dialógico polar e complementar, um conjunto unitário de matéria/energia; certamente, essa Natureza-realidade procede de acordo com um modo, ou compasso, cuja dinâmica espontânea estimula insights geradores de conceitos científicos como os da termodinâmica e similares: descrevendo um modo atuante pertencente à substância ou essência de cada fragmento do sistema. Numa explicitação cognitiva, menos matematística35, maximamente abrangente, intuitiva, dita em termos poéticos e refletindo o mais terminativo insight metafísico [em vez de lógico-matemático], a dinâmica polar pode ser traduzida como expressando um determinismo cósmico ordenando “crie e sustente”. Nos limites extremos da razão, o estatuto cibernético, ou a metafísica existencial na qual nos encontramos, se apura e estrutura em três elementos fundamentais, imaginativamente idealizados num ideograma: uma linha divisória, como uma fronteira, interface, ou limite, entre dois lados: 1: o lado de cá; 2: o limite e; 3: o lado de lá. Algo, graficamente, simbolizável dessa forma: [.|.]. A interfase, aparentemente separa, mas, com efeito, desenha, cria e põe em existência, i.e., em movimento, por delimitação, em fluxo e comunicação, esses dois lados. Uma simbologia que se assemelha consideravelmente ao símbolo do Tao: uma fundação bipolar estará sempre presente na estrutura e dinâmica dos processos existenciais. Portanto a criação e sustentação da ordem evolutiva universal acontecem a partir de uma cibernética polar, formada por dois lados, regida e concebida através de uma interface: uma dinâmica trina, onde surge a existencialidade como um encontro, feito de união e oposição - um diálogo não admitindo sectarismos ontológicos ou fenômenos radicais. Essa relação descreve uma configuração cibernética intuída de comando essencial, ou, princípio metafísico primeiro, ou divino, podendo ser denominado de paradoxo existencial fundador e expresso pela ordem metafórica “criar e sustentar”, intuitivamente semelhante aos conceitos de Yang e de Yin. Uma percepção surrealista e hiperconsciente como das pitonisas do templo de Apolo: a percepção intuída de que a Natureza evolutiva

Jônica Antiga”, ou de Mileto, versus “as novas escolas pré-socráticas”: a Jônica Nova; Eleática e Itálica, ou

Pitagórica. 35 Segundo Gödel: não podemos demonstrar o logicismo final das nossas teorias - não podemos ser, matematicamente,

coerentes.

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ou divina [di-vina: vinda de dois] emite a ordem criar e sustentar. Um movimento essencial simbolizado pela serpente cósmica, o python36, símbolo de uma linha única, com língua bífida, onde o um é o dois, ou, nas culturas da América antiga, por Quetzalcoatl, a grande serpente emplumada dos Mayas, reunindo numa forma só, os entes rastejantes, de escamas, e os voadores. Se a polaridade é inerente ao sistema universal; manifestando-se em todas as categorias e fases da criação, não divide o sistema em dois campos irreconciliáveis, contraditórios e opostos, fechados, onde dominam dois princípios antagônicos e irredutíveis, maniqueístas, mas, fornece uma estrutura operacional, primordial ou ontogênica: os confins e limites através dos quais acontece o diálogo, ou dialética, da criação. Um encontro processológico, fenomenológico, acontecendo num movimento permanente de transformação conjugado no presente contínuo: um eterno ‘sendo’ onde nenhuma parte se reveste de maior importância essencial. Algo, para existir deve ser diferenciado e mutável, isto é, deve ser uma parte em movimento, existencialidade implicando um estado-de-ser dinâmico; o movimento é a essência do estado-de-ser. A estrutura universal pode ser considerada um movimento de partes em relações dialógicas. Os mesmos fenômenos básicos e polares, inscritos nessa lógica existencial, se repetem, como expansões e multiplicidades fractais, em todos os níveis do Universo: encontros e diálogos em busca de posições evolutivas e mutantes. Um encontro e diálogo contemplável nos movimentos macroscópicos aos microscópicos, isto é, desde os processos cósmicos [expansão / gravitação] chegando aos celulares [expansão / retração] e níveis moleculares e atômicos. Os padrões típicos de respostas celulares em relação aos estímulos [ação/repouso; expansão/retração; assimilação/saciedade] expressam, ou traduzem, essa mesma cibernética em termos fisiológicos: comportamentos básicos e polares são encontrados em todas as células de todos os órgãos e corpos, nas células neurais e nas psiques mais complexas, e, até mesmo, nas antinomias do raciocínio, nos dilemas dos sentimentos, nos embates das emoções. Realidade suprema é a Natureza como se pode observar à luz da unissonância da cognição: ação azimutal, atual, naturar mutante e criativo, sem demarcações alcançáveis nem suspensão. Vivencia-se um sucedimento interpolado, multi-escalar, tensionado entre dimensões micro e macroscópicas, regresso e progresso onde cada distinção é efêmera, finita e mutante, sendo o todo infinito, indistinto e sem forma. A abstração e imaginação poética, levadas a efeito sem romper em fantasias, honrando a razão criativa, a coerência fenomênica permeando o real, dissolvem a consciência em unidade insondável, onde, nesses extremos de unanimidade, imersos em variações e mudanças, confrontamos a plenitude existencial e perfeição. Apesar de todas as ciências, a Natureza natura o estado-de-ser afirmando uma inteireza imune a definições lógicas pretendendo objetivar relações essenciais: onde estão os marcos conetivos, os signos atômicos, referentes aos intervalos entre a motivação e a ação, entre o desejo e o sistema hormonal, molecular e tecidual?

36 Python, do gr. Púthón,ónos, nome de uma serpente, morta por Apolo usando flechas; Pitonisa, do lat. Pythoníssa,

adivinhadora: na Grécia antiga, sacerdotisa do deus Apolo; mulher que possuía o dom da profecia inspirado por Apolo.

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Como pensamos, sentimos e percebemos a qualidade dos tons, cores, sons e perfumes? Como extraímos sentimentos37 e virtudes dos instintos? Esse estado consciencial, em si, incognoscível em essência, não justifica uma hipotética originação radicalmente dualística; não há sensatez e discernimento efetivos, para que a humanidade, minutíssima poeira na imensidão zodiacal e galáctica, possa pressupor o ignoto, além da compreensão, como espírito sobrenatural! Os professores de sophia da Grécia antiga, os sofistas, mestres em ciência e sabedoria, não demoraram para descobrir que a razão não era suficiente para bem apreender o absoluto. Mas, as insuficiências da razão em cogitar o absoluto não deixam o indivíduo a mercê da fé cega, ou da mentira a serviço de interesses peculiares: o discurso embasado em premissas virtuosas se revela verdadeiro, não sendo veículo de mentiras. Pedaços continentais de dúvidas e tendenciosidades se volatilizam como gelo ao sol, nos enunciados claros e diretos de simples verdades fenomenológicas e processuais, oriundas do senso comum, mas, claramente, valendo por si no contexto em que se inscrevem. A incerteza determina a necessidade da virtude, prudência, monitoração constante dos efeitos das crenças e mitos definidores de identidade. Assim, com maior clareza, se determina, no âmbito das escolhas e da vontade, um firme respeito à regra de ouro: resolver problemas políticos implica reconhecer-se digno e tratar o próximo como a si mesmo. Cada indivíduo pensante é chamado a se erguer acima da nuvem escura e hipotética dos sistemas de crenças, revelar os paradigmas onde as fés vicejam, escolher o rumo mais sóbrio, sensato, para poder existir com virtude e responsabilidade, na trama insondável do Logos. Mais de vinte e cinco séculos se passaram depois das estrofes de Górgias38 e do alerta de Sócrates, a rigidez implícita nos sistemas de crenças teológicas e teístas, continua gerando o terror, trazendo um dogmatismo infernal, evaporando a graciosidade do éden em brancas nuvens. Deus, como conceito, se enraíza e justifica nos maiores compassos, certamente, incluindo premissas intestáveis, mas, necessariamente, respeitando o incognoscível, honrando o estado-de-ser; jamais contaminando a unissonância cognitiva, ciente da natureza radicalmente fenomênica do estado-de-ser, por

37 “Sentimentos: emoções acrescidas de ideias”; como afirmava Benedito de Espinosa. 38 Em torno de 427 a.C., Górgias, o sábio de Leontinos, estabelece limites para a razão simples, no tocante à sua aptidão

em confrontar o absoluto e paradoxal, com apenas três pequenos enunciados, afirmando: “nada existe; se o ser existisse,

não seria pensado; se fosse pensado, escaparia da linguagem”. Trata-se de um exame fortemente crítico a um dos

pilares da cultura: estava proferindo, séculos antes dos modernos, o desmoronamento do castelo das certezas e dos

finalismos, e isso, porque: 1) “Nada existe”: (de absoluto) havendo absoluto, não poderia ser dado como existindo, já

que para isso precisaria ser discriminado; sendo delimitável não seria absoluta; como alternativa, poderia estar suposto,

envolto em outra(s) estrutura(s), mas essas seriam tributárias das mesmas exigências – ao infinito. 2) “Se o ser existisse,

não seria pensado”: (ou conhecido) se existisse não poderia ser pensado pelas mesmas razões acima apontadas: a

impossibilidade de se discriminar o absoluto, torna impossível o estabelecimento de distinções positivas, aptas a gerar

idéias e conceitos válidos, substratos eficientes de cogitações. 3) “Se fosse pensado, escaparia da linguagem”: isso,

porque a linguagem é feita de palavras, signos revestidos de construções culturais, medianizes de significados

construídos e sustentados por cada indivíduo, ao longo de escalas finitas de tempo; por sua vez, o entendimento do

significado é peculiar e privado, tanto no polo emissor, quanto no receptor: o fenômeno linguístico é em si mesmo

singular, essencialmente, desprovido de dimensões absolutas.

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anseios hibrísticos de glória e grandeza. Nas mais altas cogitações, sabemos não saber: a Natureza revela ser, fundamentalmente, incognoscível, envolta nos mistérios e sentimentos evocados contemplando o conceito divinal. 6 – DA TRAMA UNIVERSAL A expressão Deus é Natureza não se refere apenas ao que se percebe admirando o céu, as paisagens, a flora e a fauna: para os essencialistas e panteístas, como para Heráclito de Éfeso, a Natureza é um princípio naturador em fluxo criativo, raiando trocas em equilíbrio dinâmico e polar, manifestando-se e refletindo-se em todas as escalas e dimensões: inclusive no âmago do estado-de-ser, uma manifestação de unicidade e coerência dinâmica entre partes interdependentes e mutantes. Perambulando na Natureza, nas ruas das cidades, estamos insinuados no contexto formador, em contato imediato, envolvidos numa teia cujos fios desaparecem no passado permanecendo nas sombras da memória, como filigranas subjacentes aos compassos do presente. Relações antigas, enlaçadas nas distâncias desse mundo, engendraram outras ligações, mantendo contínuo o fio da existência: caminhando pelas ruas da cidade e do mundo, como viageiros místicos, percorremos dimensões presenciais ornadas de reminiscências incertas e sem datas; experiências de vida e conhecimentos processuais, consonâncias antes compactuadas, intuições nascidas dos recordares e da historicidade plausível; amplas verdades fenomênicas e de consenso encontram as suas fundações em cada uma das paisagens onde, como Ser-Natureza, é possível sentir, perceber e constatar, nos olhos da imaginação sempre viva, a aspiração ancestral das raízes que sustentam os abrolhamentos do presente. No imo do essencialismo e da sua decorrência cultual panteísta, o termo agnosticismo, admitindo uma ordem de realidade incognoscível, demonstra rubricar adequadamente esse confronto corajoso do estado-de-ser com a sua realidade. Um agnosticismo que não significa haver dúvidas em relação à identidade primeiramente estabelecida na equação Deus é (=) à Natureza, mas, um modo agnóstico exprimindo, por definição, o reconhecimento da incognoscibilidade profunda do naturando. Cada indivíduo é parte integrante desse mistério, evocado por intermédio da união revelada à luz da razão sensível, e, demonstrada através da prática da virtude, admiração e respeito ao próximo: intuição suficiente para relativizar as diferenças, abrindo a esperança de uma via régia em busca de paz. A primeira exigência da filosofia, como terapia ou modo de vida, é aprender a se elevar ao nível do seu próprio discurso; ser fiel à palavra revelando a melhor razão, a visão mais universal. O valor final do conhecimento reside na possibilidade de gerar um movimento em busca de uma praxe: a congruência sendo a virtude mais intrínseca e interna da razão filosófica. A adjetivação universal no termo razão universal evoca a compreensão da interdependência de todas as coisas, a visão da trama e do fluxo, da sequência insondável dos antecedentes e dos subsequentes; nas nossas escalas, pelo bom uso, desuso, ou abuso da razão filosófica, somos também causas, timoneiros orientados ou

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desorientados, das nossas vidas, e, até um ponto em investigação, da vida planetária. O substantivo razão em conjunção com o termo universal demonstra que a racionalidade não tem razão sozinha, o respeito à inteligência por inteiro, que se complementa com o Universo das outras formas de conhecer, sentimento, intuição e experiência, é a semente justa e precípua do filosofar; o racionalismo não permite conhecer a essência onde estamos imersos. Se a congruência é a primeira, a segunda exigência da terapia filosófica é agir de acordo com a visão mais ampla, trama universal; agir dessa forma é, necessariamente, agir em função do tudo, do próximo, é superar o intelecto calculista, atrelado a desejos desnecessários e não naturais.

7 - COR DOCTRINALE DO DIVINO IMEDIATO

O discernimento primordial a ser considerado ao abordar a área de estudo se referindo à teologia e religiosidade, é o reconhecimento claro da perspectiva metafísica incorporada como valor pressuposto. Ou se denota uma compreensão embasada na perspectiva metafísica cosmo-existencial, implicando um conhecimento imediato do conceito de divino, levando a uma filosofia monista, essencialista, e formas de religiosidades panteístas; ou, do outro lado, uma visão ideologizada a partir do eixo de perspectiva metafísica transcendente-transcendental, kantiana, suporto da teoria dualista, levando a uma divulgação mediada e racionalista do conceito de divino, operada por intermédio das formas religiosas teístas, sustentáculo das igrejas e hierarquias eclesiais.

A filosofia, na sua fase pré-pérsica39 cuida de arquitetar sabedoria à luz da razão natural; na sua fase pérsica e pré-socrática, de consolidar e afirmar o saber naturalista desafiado. A questão, então problematizada, converge na primeira distinção mítica genésica vislumbrada nos confins e limites da razão mais abstrata, no ponto mais intenso e concentrado da meditação, quando revela-se o campo eidético, onde os conceitos não mais se sustentam, transmutando-se em imagens. Na configuração mitológica órfica, dualista, o princípio [arché] tende a ser excluso, tornando-se incompreensível, perde-se contato com a ciência profunda de si embasada em conhecimento imediato: uma distinção separa criador e criatura, gerando um ser hipotético, sem rumo imediato, angustioso, suscitando irrealismo sectário e idealismo dogmático. Na mitológica panteísta, a compreensão, extensa ao extremo, rende-se ao conhecimento eidético, fenomenológico, o princípio [arché] permanece ao alcance, em inserção, apreendido de imediato, contemplado e comungado nas relações e trocas, orientando o existente: a distinção justifica a criação sem separar, ou dicotomizar, suscitando atos criativos centrados e em harmonia com a Natureza, motivando um sentimento de inclusão e adequação. Ambos os experimentos existenciais, investem-se de formações míticas nas brotaduras mais extremas, refletindo

39 Antes da invasão da Jônia por Cirus II (580-529 a.C).

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um rito de passagem nas raias da compreensão, na fronteira do ignoto, onde a razão mais abstrata em busca do saber se dissolve. Concepções diversas, gestando assentamentos metafísicos divergentes, opostos, complementários, iniciando o surgimento de cosmovisões produtivas, e, por decorrência, ações férteis ou não, na dependência do seu valor de verdade.

Na perspectiva filosófica cosmo-existencial, orientando o movimento filosófico essencialista, por sua vez suportando uma teologia panteísta, o conceito de divino40 é incorporado, correlato à cognição que se tem do Universo; as leis da física não se percebem como inteligências separadas, vetores animados de vitalismo e agindo sobre a inércia da matéria através da energia; as leis são configurações abstratas, conceitualismos, nominalismos, descrevendo o modo conato de ser dos fenômenos à luz da subjetividade e das abstrações. Os universais e abstrações possuem carateres conceituais, assinalados como nomes, entidades linguísticas sem existência autônoma: a realidade das leis é fenomênica e conceitual. Nas formas religiosas decorrentes do essencialismo, o panteísmo, o conceito de deus como Universo, não permite construir e advogar uma duplicidade, uma divisão; não se imagina uma divindade oculta, acima, nas arquibancadas do Cosmos, de algum modo separável, essencialmente fora de alcance, agindo como uma lei ditada e dotada de força autonômica; não se pressupõe uma divindade se comunicando e se revelando, seletivamente, através de eleitos ou enviados, que sejam profetas, avatares ou outros. No panteísmo, dispensa-se qualquer seletividade elitista no significado e trânsito do conceito de deus; supera-se a forma antropocêntrica e monárquica do teísmo, forma teocrática. A metáfora “o mundo de Deus e dos seus enviados”, como se fossem diplomatas vindos de outras regiões, orbes, não se inscreve no conceito. O que é fora do alcance, além dos limites da razão e/ou da percepção, é, justamente, sem acréscimos extraordinários ou fantásticos, sobriamente declarado desconhecido: de modo provisório, ou então incognoscível, fora dos limites da percepção e razão humana. O que não se pode conhecer não pode suportar certezas formais nem convicções. Discordante, a compreensão teísta, interpõe um intervalo, um gap, uma dissociação radical entre o mundo sensível e uma suposta esfera ontológica determinadora, exigindo etiqueta, cerimoniais e protocolos, especialistas, ou iniciados, dotados de conhecimentos esotéricos para ser explanada, ou traduzida. A doutrina teleológica e metafísica do teísmo, uma dicotomia sofisticada, radicalmente cultuada, configura o sistema de crenças41 prevalecendo no Ocidente e áreas

40 Divino é virtude universal, fenomênica, portanto cósmica e mundana, preciosidade abrangendo a totalidade das

estruturas, de astrológicas às moleculares, até partículas subatômicas: divino é o sangue, o ar, a água, a luz, tudo. 41 Um sistema de crenças minimamente resumido como: um conceito de Deus entendido como personalidade espiritual,

causa do mundo, ultrapassando radicalmente a realidade sensível, mantendo com ela uma relação de soberania e de

distância em decorrência de sua perfeição e superioridade absolutas; acrescido de uma doutrina positiva referente à

imortalidade da alma e/ou espírito [com variações doutrinárias referentes aos fenômenos que se acreditam reger os

intervalos entre o estado dito encarnado da alma, ou espírito, e o seu estado original, supostamente imortal]; uma

finalidade, ou teleologia, aspirando a busca da perfeição, reunião final e póstuma com o plano divinal, por intermédio

de purificações, ascese e desapego.

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de influências, mas, basicamente, estranho ao indigenismo da América e inúmeras outras compreensões nativas da Europa antiga. A estranheza da doutrina teísta em relação às doutrinas panteístas nativas pode ser apreciada imaginando um selvagem, como um Inca ou Maia, um indígena como um Lacota, um gentio, ou pagão, como um filósofo letrado da tradição grega jônica, ou da cultura chinesa antiga, de volta aos nossos dias, conhecedor dos nossos conceitos e vocabulário, mas, conservando a sua natureza e identidade. Tal sujeito poderia afirmar, em parte ou totalmente:

- “Meu amigo de alma adventícia, acredito que sou essencialista e panteísta, pelos motivos expostos: 1: o Universo, de uma forma ou de outra, é um fenômeno existencial primário; 2: nego a imortalidade da alma: creio na efemeridade e criatividade dos fenômenos, inclusive humano, como rosas num jardim; 3: não dogmatizo essa ou aquela escritura; sinto-me empírico, cético e agnóstico; 4: raciocino até onde, e no que posso, respeitando e aceitando os limites da razão e da intuição; confio na capacidade do intelecto filosófico e sensível: além disso, permaneço em silêncio, em busca de eutimia: advogo ser sagrada a Natureza, no sentido de inspirar profundo respeito e admiração: Sol, Lua, Estrelas, Terra e todos os estados manifestos; 5: professando esse panteísmo, cultivo as virtudes cardeais dos antigos, negando a utilidade de alguma fé dissociada da razão e entendimento empírico; 6: o finalismo do fenômeno existencial é a glória possível do presente momento, Cosmos, estado-de-ser absoluto, autotélico; não compreendo o Universo, ou Natureza, como entidades a serviço do ser humano ou de ideais, teleologias; 7: não me sinto excluído de alguma instância metafísica; sinto-me em casa neste planeta, nestas florestas e campinas, tanto quanto um lagarto ou uma águia: quero me salvar dos meus medos e da minha rudeza, das minhas ilusões e patologias, se houver: quero me tornar mais suave, mais humano e ponderado; 8: como os grandes xamãs, nossos ancestrais, possuo um senso interior, forjado na magnificência do ato perene do existir, apto a diferenciar a coerência do real das construções fantásticas, das misticidades exuberando na descompreensão dos mitos; 9: após tantos séculos de experiência agregada, não me apego às minhas ideias e conclusões: permaneço aberto a mudanças, em concórdia com o crivo da razão filosófica; 10: confio, com prudência, na capacidade do ser humano em gerar virtudes e benevolências, naturalmente, por si mesmo, na experiência e nos atritos do convívio; 11: quando necessário, medito e contemplo, aspirando o que necessito da hiperconsciência; estudo filosofia, esperando encontrar conceitos aptos a auxiliarem a virtude do meu viver; 12: percebo a intuição como sendo uma conversa criativa do estado-de-ser com o seu próprio gênio; um fenômeno natural, humano; 13: considero admiráveis as escrituras dos filósofos, dos autores e poetas, as obras dos artistas, capazes de inspirar virtudes e coragem no ato de viver. Considero inspiratório o som do vento nas árvores, o borbulhar da água, a imponência das montanhas, das nuvens, do céu, da lua, das estrelas e do sol, o cantar dos pássaros, a singeleza das flores, o sorriso dos que se amam e das crianças".

O misticismo, como estado de contemplação espiritual, o beatífico, o que torna bem-aventurado, o estado extático e jubiloso de união com a divindade-Natureza é fruto de uma

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realização pessoal, liberta de conceitos alheios, ou excêntricos: é uma realização íntima exaltando a criatividade do estado-de-ser, uma experiência antonímica de ádvena, mas, nativa, indígena, um arrebate ou encanto natural, uma possibilidade inata do estado-de-ser, cuja abundância é proporcional à fluidez do indivíduo que, na infância, tende a se elevar em encantos: sentimentos despertando a intuição e compreensão da glória da Natureza, apresentando-se à percepção imediata, bem refletida à luz uníssona da cognição. O grande conjunto dos cantos e das poesias, obras da arte sagrada, embora fecundo, ainda não faz jus ao binômio Deus-Natureza cuja inefabilidade transcende o pontualmente manifesto. Contudo, um signo, metafórico e mítico, simples e singelo, como um meta-sistema induzindo contemplação, consegue evocar a essência: trata-se do magno símbolo da cruz grega42, inserido num círculo, estrutura minimalista e essencial das grandes alegorias míticas. No braço vertical, o ponto acima, o Norte, simboliza os brotos e ramos mais distais da árvore da criação, representando o reino dos pássaros, da águia ou do condor, a abertura e o vôo para a imensidão, a consciência ampliada, o júbilo e a inspiração, a sabedoria: é o par de asas do desapego em busca do mistério, o depois. O ponto abaixo simboliza o Sul, impulso universal, as raízes, o que vem antes de tudo; na imaginação geral, a serpente como um rabisco sinuoso e flexível, uma risca, um laço iniciando todas as figuras, ancorando as histórias e desenhos, rascunhando e refazendo, por mudar de pele, ser flexível e apresentar forma de microgameta. Confrontando a cruz, o ponto da esquerda, no braço horizontal, simboliza o sol, o Leste, o espanto intuitivo, o despertar; o início do dia e da jornada, a semente; o canto de cada um, a ação, o detalhe de cada momento; a precisão da visão clara e da matemática, a geométrica e gramática, a lógica: é ciência ecológica, heliotrópica. O ponto da direita, o Oeste, simboliza a Lua, a suavidade serena, a maturidade e os frutos; o fim do dia, o recolher; é o mundo da imaginação, da poesia e da arte, da entrega e do repouso, da dissolução e dos véus. O ponto central da cruz presenteia o estado-de-ser atual; uma flor aberta, uma rosa, com beleza e espinhos; é o lugar onde tudo está sendo expresso; é o infinito presente que se renova, o ponto vetorial dos braços da cruz, o centro do círculo regendo a vida. Uma alegoria abrangente destacando o ponto de cruzamento, o centro da memória, da imaginação e dos antagonismos; o momento presente, atual, ao mesmo tempo definido e mutante, paradoxal e efêmero do estado-de-ser humano: a origem é o fim. Outra metáfora, enfatiza a dinâmica existencial, expressando-a através de um ponto central, único e criativo, centrífugo e impenetrável como um centro magno de irradiação existencial, como um sol, em torno do qual se expande, raiando, o halo da manifestação, ao mesmo tempo polar e uno, como uma fita de Moëbius. Um lugar no qual o que se configura é, necessariamente, incompleto, parte de algo inteiro, só podendo existir do modo parcial, de certa forma ilusório, fazendo sentido profundo, a partir de um ponto cognitivo místico desprovido de fatualidade.

42 Cruz construída com quatro braços iguais, nessa alegoria, envolta por uma circunferência.

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RELIGIOSIDADE

O vinho de que se embriagam os deuses Não tem forma, Nem peso: Ele está nas fontes borbulhantes, Nas árvores em flor, No sorriso que se esbouça no canto de um olho sombrio... Saboreia-o livremente. Rabindranath Tagore (1861-1941)

1 - UNIFICAÇÃO, ÉTICA E CRIATIVIDADE A dimensão religiosa da experiência envolve três fatores básicos43, especulação, ética e consagração: 1: um lado especulativo, filosófico, satisfazendo as funções eminentemente racionais da psique, onde problemas básicos são investigados e discutidos: unidade e diversidade, determinismo e liberdade, bem e mal, tempo e eternidade, absolutismo e relativismo ético, vida e morte, apego e desapego, teísmo, ateísmo e panteísmo, entre outros temas clássicos; 2: ética como expressão ativa de princípios religiosos, observância de regras de conduta, cumprimento de deveres sociais; 3: consagração: o cultivo da experiência do sagrado, do encontro com a totalidade, “a experiência imediata e intuitiva de uma dimensão transpessoal, geradora de uma disposição virtuosa e de sentimentos harmoniosos”; ibidem. É inegável que a religião compartilha as duas primeiras facetas, especulação e ética, com outras áreas de dedicação [filosofia, educação, assistência social, medicina, ecologia e outras], mas, a busca do sagrado, culminando em experiência mística, carateriza a religiosidade. A não ser alguns sectários de igrejas com história e prestígio político, raros são os que irão discordar de que o sentimento religioso, verdadeiro e profundo, implica: 1: a busca do numinoso, 2: coroada com a realização mística, que 3: a experiência de unidade carateriza um estado ampliado de consciência. Caminhos 43 De acordo com Huston Smith – complementado de breves alterações – em: Do Drugs Have Religious Import? Huston

Smith, Ph.D. The Journal of Philosophy, Vol LXI, No. 18, Setember 17, 1964.

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primordiais e antigos de realizações são, tradicionalmente, cultuados por indígenas e xamãs, e, modernamente, movimentos sincréticos, que, em alguns casos, incluem o uso de plantas psicoativas como sacramentos eficazes em proporcionar experiências de união mística44. Milhares, adeptos e pesquisadores, inúmeras narrativas, atestam o valor espiritual dessas experiências. Esses movimentos religiosos, em linha com a perspectiva metafisica cosmo-existencial e as tradições imemoriais consagrando a experiência mística, divinizando a Natureza, como nas diversas matizes de panteísmo, retificam, de imediato, importantes divisões conceituais entre o sagrado e o mundo, a religião e a ciência, possibilitando, uma vez bem compreendidos, o surgimento decorrente de três tendências em direção à paz e unificação, ética e criatividade: unificação, pelo reconhecimento intuitivo e direto da unidade universal; ética, pela compreensão de que somos parte da Natureza, e, certamente, não o centro, finalidade e propósito da criação; criatividade, pela absoluta e imediata identificação, com o Universo criador. 2 - DA COSMOVISÃO INDÍGENA

A absorção e integração dos memes45 dos xamãs e indígenas pela humanidade moderna, aponta na direção da ressacralização da Natureza, de uma religiosidade eco-humanista como renova aliança do ser humano com o seu âmbito nativo. Essa orientação gentílica se manteve contínua, sem cisões, nas culturas, ditas pagãs, não convertidas aos dogmas das igrejas maniqueístas ou abraâmicas, por isso, nesta busca global de reintegração e equilíbrio, os autóctones representam o elo transmissor do ethos primordial. A maneira dita xamânica de enfocar as incógnitas e dificuldades da existencialidade resulta de uma tradição e sistema de crenças complexo e específico: acredita-se que o mundo aparente é controlado por forças paralelas e ocultas, benéficas, ou não, guiadas ou atuando por impulsos próprios. Estas forças seriam manipuláveis através de estados alterados de consciência: transe. Uma realidade implicando a necessidade de bruxos(as) ou xamãs, capazes de penetrar e agir neste mundo oculto. A peleja entre xamãs resulta em algum grau de notoriedade e respeito, em função das suas habilidades e relativo sucesso. Supostamente, todos, homens ou mulheres, poderiam se tornar xamãs mediante instrução e aquisição de talismãs ou encantamentos, obtidos em troca de benefícios, presentes ou aquisições. Instrumentados, os xamãs lançam os seus fluidos, influências e magias,

44 É o caso de muitos rituais religiosos primitivos e igrejas sincréticas da América do Sul, utilizando ayahuasca

(banisteriopis caapi e psycotria viridis) como a UDV, o Santo Daime, a Barquinha, a Sociedade Panteísta Ayahuasca, e

wachuma (Equinopse Pachanoi, o “Cactos de São Pedro”) no Peru, outro locados na América Central e México,

utilizando principalmente o peyote (Lophophora williamsii) como a igreja de Izatchilatlan – referida à tradição sioux,

especificamente Dacota, ou Lacota. 45 O “meme” é definido como um padrão de informação gravado na memória e capaz de ser copiado na memória de

outro indivíduo.

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evocando gênios de animais e plantas, encantamentos, humores e sopros dirigidos ao encontro dos seus alvos, de acordo com as suas intenções, para enfeitiçar, remediar, cativar ou proteger. Demonstrando elementos radicalmente diversos dos processos típicos do teísmo, a análise da cosmovisão xamânica46, da sua estrutura, revela categorias filosóficas caraterísticas: empirismo: faz parte das doutrinas xamânicas o cultivo de uma percepção e interação direta e experimental com o seu mundo, por intermédio de elementos naturais; universalismo: os aprendizes capacitados tornam-se xamãs, através da transmissão de conhecimentos, educação da percepção e treinos; realismo e paradoxalidade: o xamã não é um delegado de outros orbes, pretendendo ser puro, mas, uma pessoa comum, falha; holismo: no xamanismo, existe uma evidente aglutinação do sagrado com o natural, da subjetividade com a objetividade. Portanto, as culturas pagãs e indígenas descrevem uma teofania do cotidiano, cultivando ligações operantes com o mistério; esboça-se uma convergência intuitiva, em sintonia com a união que decorre da perspectiva metafísico cosmo-existencial. Embora entendido como esotérico, o campo das forças ocultas é redirecionado, de uma transcendência absoluta, para uma posição imanente: uma forma religiosa politeísta, transacional, manipulável por intermédio de uma tecnologia prática, acessível. O xamanismo carateriza uma religiosidade primeva e comunitária, contrastando fortemente com os idealismos historicamente subsequentes, sacerdotais e imperiais. No contágio da religiosidade dogmática da agremiação societária atual, fideísta e globalizada, com as pressuposições remanescentes das culturas indígenas, acontecendo em circunstâncias possibilitando trocas, ocorre, ocasionalmente, uma radical desdramatização e revitalização do messianismo; a figuração corriqueira e tribal do xamã se agiganta, transformada numa figura ampliada, enigmática, mas, mantendo-se próxima, em relação de compartilhamento com a comunidade, através dos rituais, poções e substâncias psicoativas. Neste processo, regularmente reproduzido, reaparecem, banalizados, os mensageiros do oculto, ou, videntes, aos milhares, em contato e relação com a hiperconsciência47, pessoal e transpessoal: ressurge, renovada e aprimorada, a busca da unicidade, através de práticas essencialmente eco-humanistas, naturalistas e pragmáticas, nas quais as visões ampliadas da realidade se integram ao acervo científico, filosófico, psicológico e médico da contemporaneidade. Sagrado e supremo volta a ser o Kósmos, a Natureza: uma intuição transcultural e primordial, consagrado na experiência mística, integrando as dicotomias e paradoxos numa totalidade unificada.

46 A cosmovisão xamânica sana o hábito dissociado e dualístico do teísmo que vem, há seculos, denegrindo a autoridade

natural e genuína do estado-de-ser, espiritando e deturpando a sabedoria em fé, crenças literárias excludentes,

propagadas por sacerdotes evocando profetas míticos, em sintonia com as suas tradições, e, uma coorte de personagens

lendários, tidos como possuidores de acesso privilegiado a conhecimentos sobrenaturais. 47 Hiperconsciência, como fenômeno cognitivo acontecendo em âmbitos e contextos com embasamento filosófico,

triangulando traços culturais mais racionais: o que no ocidente se reporta, efetivamente, à herança histórica da Jônia e

dos pré-socráticos.

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3 - A GRANDE TRIBO A elaboração da intenção adequada, da ética, da ecologia, a definição das virtudes – cardeais, socráticas, teológicas, repensadas e modernas – é obra de todas as etnicidades. O cultivo de um saber ampliado e de qualidade é fruto da humanidade indagadora: mitologia, filosofia e ciência, são todas artes nativas, necessárias à construção e desenvolvimento lúcido de um empirismo holístico e sinérgico. Um empirismo capaz de detectar as conexões biológicas, neurais, psicológicas, sociológicas do estado-de-ser, da experiência, reconhecendo a presença circundante do inefável, da impossibilidade de compreender o infinito; estamos suspensos no mistério da essencialidade consciente do estado e do ser. Um empirismo holístico sabendo cultivar a arte de viver na incerteza e sem dogmas - sunyata48: o reconhecimento da beleza, grandeza e criatividade da mutabilidade, é, de fato a cura radical da insegurança e do medo, da compulsão e do absolutismo. Da definição primordial: 1: “Sou xamã; trabalho com poderes sobrenaturais catalisados por estados de transe; invoco entidades para operar curas; uso plantas instrutoras, que permitam a entrada no mundo astral, volto com visões, instruções e conhecimentos para neutralizar emanações mefíticas e malignas causadoras de doenças, evocando forças e influxos favoráveis”, em busca de uma identidade contemporânea, repensada: afirma-se: 2: “Sou terapeuta e facilitador; estimulo processos criativos e holísticos em busca de cura; quando necessário e proveitoso, compartilho uma planta psicoativa, ampliando a sensibilidade e a criatividade, libertando a cognição dos seus condicionamentos e hábitos, permitindo acessar potenciais novos, criativos e enigmáticos da realidade, eventualmente, solucionar disfunções psicossomáticas”. 4 - ÂMBITOS POLARES E DIVERGENTES Cunham-se, neste ensaio, as expressões âmbito religioso apriorístico e âmbito religioso empírico para melhor diferenciar os movimentos religiosos teístas, correlatos da perspectiva metafísica transcendente-transcendental, dos movimentos em linha com a perspectiva metafísica cosmo-existencial e tradições consagrando a experiência mística, como nos diversos matizes do panteísmo. A expressão âmbito religioso apriorístico se relaciona à prática de rituais e uso de sacramentos inscritos numa cosmovisão teísta ou politeísta, em busca de contato com entidades imaginadas sobrenaturais. O termo âmbito religioso empírico reporta ao ressurgimento de rituais e sacramentos inscritos numa axiologia ensejando a apreensão de virtudes e valores éticos, removidos os teleologismos dogmáticos e elucubrações sobrenaturais, ou, ignorando estas extrapolações como indefiníveis - agnosticismo.

48 Śūnyatā (Sânscrito) é geralmente traduzido como vazio; a forma nominal do adjetivo "Shunya" significa "zero".

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O âmbito religioso apriorístico implica alguma forma de hierarquismo e dualismo sobrenaturalístico. Personagens excepcionais são reconhecidos como capazes de recorrer a entidades sobrenaturais, receber estas forças, ou revelar serem entidades espirituais, eventualmente, encarnadas. Esta mediunidade ocorre no intuito de realizar curas espirituais, em busca de saúde ou salvação. Neste âmbito, considera-se existir uma diferença essencial entre, de um lado, as figuras dos profetas, magos ou mestres, fundadores de cultos, e, do outro, os consulentes ou discípulos. Aos fundadores se creditam poderes extraordinários, às vezes, uma natureza ontológica especialíssima: como a peculiaridade de serem enviados, vindos de planos supremos, concebidos como paradisíacos, reinos ou astrais antecedentes e superiores à natureza material, em missão salvadora para guiar e socorrer os habitantes do plano inferior, trevas. Em diversas estruturas ritualísticas apriorísticas, sacramentos, símbolos ou poções, são considerados recursos capazes de induzir um estado de ligação entre os discípulos locados no astral inferior e as entidades iluminadas, do astral superior: esse efeito veicular aconteceria de acordo com o merecimento espiritual dos adeptos. Nessa estrutura, a orientação é ofertada de dois modos: orientação especial e orientação geral. A orientação especial é pessoal, oferecida, seja: por um mestre iniciado nos ritos, ou em contato com uma entidade-guia desencarnada, espiritual, estabelecendo a ligação; ou, por um líder, com aptidão de exortar os discípulos no sentido de galgar o merecimento necessário à religação. O que denominamos, aqui, de orientação geral, se estabelece no âmbito de uma estrutura ritualística, num esquema historicamente pré-definido por um mestre fundador; o direcionamento opera-se na forma de rogações e preces, de acordo com um modelo, ou uma forma geral predefinida. Em tudo caso, a orientação é plenamente ritualística, de embasamento teológico teísta, afirmando uma distinção apriorística, dogmática, entre um plano ontológico absoluto e a Natureza. O adepto compromete-se a aceitar uma distinção, lá, onde de fato, não se pode racionalmente distinguir, optando por uma escolha cognitiva fideísta, de acordo com a palavra ou orientação categórica das escrituras, ou dos mentores fundadores; aceitando um sistema de crenças, embasado em tradição e ideologia, num ato de rendição, confiança e fé. Trata-se de um espiritualismo no sentido pleno, um profundo embasamento idealista, fundamentado além da matéria-energia, sustentado pela vontade e pensamento divinal, considerado força ou energia suprema, inteligência independente, destinada a reabsorver a totalidade da criação à sua forma espiritual original. Nota-se um dualismo dinâmico, o espírito divino atravessando estados rigorosamente antitéticos, por razões inexplicáveis: as razões próprias e profundas da divindade. Nessa prática ritualista apriorística, advoga-se a existência de um sujeito espiritual imortal, encarnado, racional, consciente e sensível [espírito ou(e) alma], observando, contatando o mundo objetivo. Um profundo e drástico corte sujeito/objeto é, indiscutivelmente, típico do espiritualismo, mas, um fenômeno similar acontece no positivismo científico, embora de forma diversa; para o espiritualista o corte é ontológico, um espírito na matéria, para o positivista o corte é epistemológico ou metodológico: assuma-se a existência de um sujeito dotado de objetividade, sem advogar uma separação ontológica. Na prática religiosa apriorística, as

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abstrações míticas são elevadas ao estatuto de realidade: a Natureza é entendida como regida a partir de um plano sobrenatural necessário; preenche-se a separação entre os reinos materiais e espirituais pela ascese salvacionista, em busca do sobrenatural através dos rituais e sacramentos, da escuta idealística, imbuindo-se da ideia transcendente do sujeito, entendido como alma ou espírito, movido por objetivos codificados em mandamentos revelados; doutrinas dogmáticas predominam sobre as inferências sensoriais imediatos, tidas como incertas, ilusórias. Tudo que alude ao mundo subjetivo e à cognição é entendido como referente a um espírito criado, encarnado a partir um determinismo superior, enviado ao plano existencial/material em busca de religação com a esfera criadora: decorre que um instrumento extraordinário de orientação religiosa necessita ser regularmente utilizado e aplicado para manter uma boa orientação e contato com a ordem original assim concebida. Neste sistema fideísta, o estabelecimento, ou restabelecimento e manutenção, da ligação entre os encarnados, locados no astral inferior, e as entidades ou forças iluminadoras ligadas ao astral superior, torna-se um dever compartilhado por guias e discípulos: os mestres, comprometidos no dever de estabelecer e manter em atividade um âmbito religioso próprio e adequado a essa religação; os discípulos, comprometidos no dever de afirmar presença, colaborar e contribuir no sustento dessa consecução. O estímulo doutrinário, exortando a boa conduta, moral e social, adequada ao acúmulo do merecimento necessário a um contato positivo e feliz entre os planos, deve acontecer, com regularidade e constância, ao longo da vida inteira. A eficácia do ritual – o rito entendido como guardião simbólico da porta entre os planos - se realiza no estabelecimento da ligação mística e no acesso à escuta da doutrina em condições entendidas como ideais. A finalidade se concretiza pela prática constante: a fieldade é necessária ao acumulo e manutenção da graça essencial à salvação escatológica - destino final do espírito cuja missão é se reintegrar ao plano original, no além. Um âmbito religioso empirista não se fundamenta na crença de que possa haver conhecimento oriundo fora do âmbito da experiência humana. Refuta-se a existência de princípios esotéricos como ponto de partida de uma busca. Entende-se que todas as doutrinas foram ditadas por alguém. O âmbito religioso empirista implica alguma forma de monismo naturalista, uma ausência de hierarquismo essencial. Fundadores de movimentos éticos e orientadores da ação humana, podem ser reconhecidos como indivíduos possuidores de habilidades específicas, capazes de motivar e influenciar pessoas a refletir profundamente, a se pôr em relação de integridade e coerência com elas mesmas, no intuito de realizar estados de equilíbrio psicossomático, harmonia ou eutimia. Nas estruturas ritualísticas empíricas, os rituais, ou sacramentos, são considerados elementos facilitadores permitindo a instalação de um transe fenomenológico, de acordo com a intenção dos usuários e praticantes, estabelecendo um estado de consciência ampliado, permitindo uma forma de iluminação, galgando mais autonomia e maioridade nas suas opções existenciais, escolhas e necessidade de superação. Não se considera existir uma diferença essencial, entre, de um lado, os fundadores de cultos, e, do outro, os demais integrantes dos movimentos. Nessas estruturas a orientação pode ser dita ativa, mas não

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diretiva: os integrantes escolhem cumprir os rituais de abertura, andamento e fechamento, predispondo-se a uma busca de mais domínio ético; participam ou ingerem um chá psicoativo, sem compulsão, de acordo com a vontade: tanto em termo de frequência de uso quanto em relação à escolha da quantidade a ser ingerida. A orientação é adequadamente dita orientação ativa não diretiva já que cada participante é considerado capaz de se pôr em contato com o plano mais profundo do estado-de-ser, a união psicofísica do sujeito e do objeto; apto em sustentar um padrão de conduta ética, resultante de uma escolha e decisão inteligente. A orientação ativa não diretiva opera na forma de contemplação e meditação [estudos temáticos, diálogos coordenados ou reflexões espontâneas, atividade simbólica e ritualística], buscando um encontro profundo consigo mesmo, a Natureza e o outro. A orientação ativa não diretiva ocorre através de uma conjunção desses diversos fatores, de acordo com a vontade e acordo deliberado dos participantes. Na prática religiosa empirista, o embasamento filosófico predomina, negando-se uma distinção apriorística, dogmática, entre um plano ontológico absoluto e a Natureza. Não se trata de um materialismo ou algum desdobramento do positivismo; não se advoga a existência de um sujeito racional e sensível, independente e neutro, observando o mundo objetivo: o corte sujeito/objeto, típico do positivismo é relativizado, negociado, e, até abolido nas vivências unitárias, na incapacidade de se distinguir uma fronteira clara e precisa entre pensamento, sentimento, consciência, emoção e sensação somática. É, igualmente, abolido o corte epistemológico entre o dito intelecto-racional e intelecto-sensível: na prática religiosa empirista, nulificam-se as projeções idealísticas, não se almeja consolo tentando transubstanciar as esteticidades e abstrações míticas numa realidade suprema, outro mundo. Portanto, nesta prática, o Cosmos é absoluto, desfazem-se cortes e divisões epistemológicas três vezes: não existe uma distinção ontológica entre natural e espiritual; inexiste uma distinção radical entre o sujeito e objeto; tampouco uma distinção plena entre o intelecto racional e sensível. Trata-se de um processo existencial, onde o indivíduo não almeja vir a existir, num futuro indefinido, fora do plano concreto das transmutações planetárias e solares. Em geral, não há, na prática religiosa empirista, dificuldades ontológicas impedindo, sobremaneira, a instalação de um sentimento profundo de união, em seu estado-de-ser e com a Natureza: nega-se a possibilidade de conhecer a existência de um plano sobrenatural; todos reconhecem o que é ser humano por experiência imediata. Realisticamente, não se almeja existir fora do plano existencial onde se nasce e surge; tenta-se contribuir para fazer da existência, como já se manifesta, o que se imagina que deveria ser à luz de uma ética sensível e razoável, sem messianismo, nem obrigação, apenas por querer e poder, estudando a qualidade do estar consigo. O fator determinante é a inteligência de reconhecer que na situação existencial, incluindo a impermanência e fluidez de todas as coisas, a melhor opção, a mais sensata e sóbria, é, certamente, zelar enquanto a vida perdura, por convivências e relações sensatas, equilibradas e cordatas. Uma comunhão psicofísica, através de uma substância psicoativa, pode ser um meio efetivo para despertar dos devaneios, desanuviar, e conhecer um estado inabitual e

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surpreendente de percepção e consciência, construindo uma ampliação referencial e existencial, servindo de aporto experiencial, a partir de onde empreender exames renovados e enriquecidos, lúcidos, reavaliando: as próprias crenças, refletidas em imagens, símbolos e insights; os comportamentos, reações, processos, e, dificuldades de adaptação; critérios e valores efetivos, ética; atitudes e hábitos. Na prática empirista, a facete mística da experiência permite conhecer a ausência de cortes epistêmicos radicais, delimitações pragmáticas e socialmente consagradas: desvela-se a ligação unitária entre o sistema perceptivo e as visões, integrando a retina e a visão, a percepção e a imaginação; a ligação entre a experiência e a realidade, como ocorre na relativização do tempo [um momento parecendo durar uma eternidade, horas, minutos]; entre a Natureza e o sujeito: a atualização estética ensina a observar, de maneira nova e integrada, sinestésica; a inteligência ampliada, criativa e qualificada, conecta planos antes conceitualmente separados. As experiências permanecem como conhecimento adquirido, aprendizagens, modificando, genericamente, todas as relações, no sentido de ampliar os valores em termos mais inclusivos, perspectivas mais profundas, na direção de maior harmonia, integridade e tolerância. Esse aspeto cognitivo positivo, somado a um comprometimento definido, uma escolha livre e consciente com valores éticos, permite uma aceitação e reconhecimento sereno dos seus próprios talentos e limites, o surgimento de um estado-de-ser mais completo, assentado e satisfatório. Evoluindo, a experiência unitária, sapiente, se torna mais firme, mas, recursiva, como na Natureza o reaparecimento da lua cheia, dos solstícios e equinócios; revisita-se estados de consciência já atingidos, reencontra-se os conhecidos padrões visionários, a identidade simbólica da sensação de unidade: um sentido vivo e pujante da complementaridade das antíteses, uma consciência heraclitiana, de fluxo, somada a um sentido de perenidade, subjacente, semelhante ao estado-de-ser pleno, parmenidiano; uma experiência mítica cíclica, a revisitação de arquétipos irredutíveis. Uma das vivências que mais propende a retornar pode ser descrita como a visão de uma brilhante e estranha rosa-absoluta: o broto central abrindo, florando sem cessar, gerando a renovação da flor em busca do vida, e, as pétalas já nascidas, mais antigas, evoluindo do centro para periferia, declinando em torno da copa do ser floral, até finalmente murchar, dissolvidas, alimentando infindos e hipotéticos recomeços. Portanto, 1: na prática religiosa apriorística, a passagem radical vindo do dito astral inferior para o superior, exige uma mudança radical de estado, uma metamorfose, completando-se com a morte; realizando-se, eventualmente, o grande desapego ou desencarne terminal, a religação final com a fonte. Concebendo-se o sacramento, como um meio privilegiado de religação com o astral superior e original, radicalmente diverso nas suas operações por ser sobrenatural: imagina-se a experiência religiosa como um rito de repetição necessária, com frequência proporcional à sede de religação, necessidade de acesso e resoluto desapego deste mundo acidental, espiritar. Diversamente, 2: na prática religiosa empirista, o estado de união místico é a pedra filosofal, desvendando o estado-de-ser como é, a sua realidade profunda; bastando enxergar além das aparências superficiais, rompendo decididamente todos os cortes epistêmicos ilusórios através da experiência

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própria, feita de reflexão e percepção sentida e meditada, contemplação. Uma vez apreendido a superação eidética das dicotomias, instala-se uma habilidade espontânea, a arte de saber frequentar esses fenômenos unificantes, espontaneamente, governando melhor a vivência 5 - CONSIDERAÇÕES LIBERTADORAS Na prática religiosa empirista, a metáfora final, é que o ser humano já está vivendo no seu âmbito essencial, onde tudo é, de certa forma, milagre: todas as criaturas são prodígios existenciais, desde um inseto, de complexidade considerável, até um mamífero e ser humano. Igualmente extraordinário nas suas presencialidades e estado-de-ser, todos os entes são diversos e singulares, com potenciais e limites atinentes à sua própria especificidade, representação da diversidade. O potencial de apreciar a plenitude, a grandeza da unidade, parece ser, de alguma forma, satisfatório, para os indivíduos cientes da sua natureza, do estado-de-ser, através de inúmeros cultos e religiosidades. Enquanto o adepto das formas apriorísticas de religiosidades necessita recorrer às virtudes teológicas como obediência, fé, esperança, caridade, o adepto das formas empiristas necessita aprender a gerar outras e mais antigas virtudes: irradiar sentido, em vez de esperá-lo, ou, no mesmo compasso; fortalecer-se, adquirir confiança, saber buscar inspiração, criatividade e força: matérias-primas geradoras de sentidos, renovadas a cada dia, em busca de inspiração e hiperconsciência. Se infinitos são os talentos possíveis dos indivíduos, igualmente, seus limites peculiares: delimitações existenciais inatas não se modificam comungando sacramentos ou ingerindo substâncias psicoativas. Por isso, uma vez reconhecido e vivenciado, de alguma maneira, esse estado de unicidade básica e natural, com força e grandiosa imponência; tendo observado a fenomenologia da experiência por um tempo suficiente, variável, reconhecido e discernido os limites e talentos próprios, diferenciando o que pode ser transformado do estruturalmente estável; uma vez aprendido a recorrer, por si só, a um estado melhor humorado e mais criativo, buscando, em si, ânimo e alegria para melhor viver, o adepto da prática empirista tende a chegar a um ponto conclusivo, ou formativo: uma resolução na prática ritualística e sacramental, como instrumento de busca, em termo psicodinâmico, fecha-se uma gestalt. A conjunção dos três elementos básicos: um contexto libertário, criativo e ritualístico, como âmbito religioso; um estado-de-ser investigador sem preconceitos, nem apriorismos; uma prática meditativa acrescida da consagração de algum sacramento eficaz, como, eventualmente, a ingestão de uma substância psicoativa: parece resultar misticamente efetiva nas circunstâncias dadas. Faz parte da prática empirista assentar, eutímico e sereno, no ethos ou imo genitivo, genérico congregante e peculiar, do estado-de-ser. Apesar de aportes novos e conjunturais, referentes às elaborações criativas de momentos específicos, o rumo básico, a estrutura ética fundamental vigora, resultante de uma escolha e apreciação profunda, lúcida, reafirmada e burilada de momento a momento. Uma vez

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resolvido o grande confronto com a dúvida, o vazio e a aparente inelutabilidade existencial do estado-de-ser, a tensão entre o infinito/impossível e o finito/incompleto, surgem momentos sublimes e de paz: o reconhecimento confortável da necessidade eco-humanista de sustentar e criar um sentido de vida.

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AUTOTRANSCENDÊNCIA “Reserve o seu direito de pensar, mesmo pensando errado é melhor do que não pensar. Ensinar superstições como verdades é uma das coisas mais terríveis. Governar acorrentando a mente através do medo de punição em outro mundo é tão baixo quanto usar a força”. Hipátia de Alexandria, filha do filósofo Theon, bibliotecária (a. 370 d.C. morta em 415 d.C).

1 - DEFINIÇÃO

Sendo os fundamentos da nossa cultura, dualísticos, órficos, o termo transcendência é dúbio, possuindo dois significados, um laico e outro teológico-religioso: transcendência: 1: qualidade ou estado de transcendente; 2: o conjunto de atributos do Criador, que lhe ressalta a superioridade, em relação à criatura. Auto, significando por si próprio, de si mesmo: não poderá, em termos, haver autotranscendência sem que o motor impulsionando a transcendência esteja imanente no estado-de-ser. Caso a motivação transcendentalista do estado-de-ser fosse exógena, não poderia haver uma autotranscendência, mas, um fenômeno promovido por outro. Uma definição dúbia tende a condicionar a discussão a uma das acepções do termo. Não sendo a interpretação teísta do termo transcendência, definidora coerente do verbete autotranscendência, e, por impossibilidades contingentes, não podendo ser definido aquilo que transcende os limites da experiência possível, limitarei esse discurso ao bom senso, abrangendo a metade do conceito: de antemão, considerando irrazoável advogar o impossível, o sobrenatural, discursar sobre o que ultrapassa a capacidade de compreender e saber: assim sendo, define-se transcendente, como: 1: muito elevado; superior, sublime, excelso; 2: que transcende, do sujeito, para algo fora dele; 3: que se eleva além de um limite ou de um nível dado.

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2 – HIPÓTESE XIS Por definição, autotranscendência é um movimento na direção do excelso, uma elevação no sentido de mais qualidade, na realização prática de mais virtudes; depende, para acontecer, da aquisição de um nível mais abrangente de conhecimento, somado à aquisição virtuosa e pró-ativa de maior auto-estima e coragem. Trata-se de um movimento essencial em harmonia com os mecanismos gerais da pressão evolutiva, específico do ser humano, por integrar determinismos abertos a escolhas, experimentos e monitoramentos: uma expressividade da humanidade cuja dinâmica se manifesta em todos os contextos existenciais, social e filantrópico por decorrência e natureza. Numa definição minimalista, a transcendência é uma comunhão com a realidade, acontecendo em todas as escalas do estado-de-ser: 1: na relação do indivíduo com ele mesmo, nas suas ponderações meditativas em busca de mais virtudes [esfera privada]; 2: no encontro com o outro, na busca de união e tolerância [eu e tu]; 3: na vivência com os que compartilham a unidade do lar [nós]; 4: a inteireza do círculo familiar; 5: nas relações com correligionários e colegas; 6: com a sociedade mais ampla, a unidade nacional, e, finalmente, 7: nas relações com o ecossistema, a Natureza. A Autotranscendência, movimento ao encontro da alteridade, sucessão de gestos, comportamentos e trocas, fundamento vital próprio do estado-de-ser, atua do centro à periferia, pressupondo abertura, escuta, concórdia, co-participação, por isso, não suporta qualificações como “egolátrica ou narcisista”49, sendo uma busca de virtude e sabedoria, uma comunhão. A dinâmica autotranscendente realiza uma vida fecunda, significativa e sapiente, ajustada ao contexto; uma busca universal, fundamentada no impulso criador inerente, acontecendo no âmago da vida e da cultura, no íntimo das horas e no atomismo das minúcias, operando das estrelas mais distantes, núcleo galáctico, até ao sistema planetário, moléculas e átomos. Trata-se de um movimento transformando, inerente ao estado-de-ser, uma necessidade vital, implicando receptividade e comunhão, exigindo o acompanhamento da consciência: é por definição um fator modificador, fazendo sentido no âmbito do manifesto, do finito em expansão e renovação criativa. Enquadrar a complexidade do termo (auto)transcendência em itens, reduzir o fenômeno a uma trindade esquemática almejando estudar “aspetos egocêntricos, filantrópicos e teocêntricos”50, gera embaraços por operar, a priori, uma redução elementar da ação humana, desconsiderando a complexidade dos movimentos da Natureza, ignorando que a ação social é tributária dos incalculáveis intercâmbios individuais – praxeologia. Caso os aspetos teológicos, referidos nestes ajuizamentos, estejam evocando o teísmo [um theós criador, afastado, separado da criação], tal visão desintegra e reduze o fenômeno humano a um sistema automático, de volição acessória, governados por padroeiros: direção incidental. Ofuscado por ideologias absolutistas e separatistas, gestos, necessariamente, conviviais, resultantes de inúmeras empatias, aceitações e transformações, são entendidos

49 Como faz o Mondin em: Mondin, Battisa; Introdução à filosofia: problemas, autores, obras; p. 64-69 – São Paulo:

Paulus, 1980 50 Ibidem.

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como “egocêntrico”, sendo aspetos “filantrópicos” imaginados como decorrentes de políticas estatais coletivistas, implementadas por autoridades misteriosamente dotadas de vocação altruística; e, aspetos “teológicos” anunciados como coordenadas imprimindo atividade diretora a partir do plano divinal, inefável, dirigindo, verticalmente, um processo de outra forma destinado a desenhar grafites insensatos e rasteiros na horizontalidade das planícies do mundo! Aplicar esse sistema xis de coordenadas na Natureza51, fraciona a realidade, dicotomizando uma unidade integrada, complexa e participativa, em direcionamentos antagônicos imaginários e opositivos: de um lado o bem-estar do indivíduo como realidade humana viva e erótica, do outro uma realização teológica ascética, tributária de intervenções supervenientes; uma transcendência a ser plenamente galgada depois da vida e do rigor da purga, lá no além. Uma ideologia que, caso fosse uma descrição incontestável do real, resultaria num mecanismo deslocando no mundo das ideias e impossibilidades idealísticas, a realização desejada: implicando ser o mundo e a vida planetária um acidente infeliz e transitório, superável no além-mundo: o portal, uma necrópole. Será, tal visão, transformando o fenômeno evolutivo da transcendência num trânsito incidental, portadora de lucidez? Descrição necessária de todas as circunstâncias e momentos existenciais? Ou, um retrato facultativo de alvoradas fracassadas, de intentos existenciais e civilizatórios enleados e desnaturados por falta de harmonia e criatividade? Cabe aos que não idealizam desta maneira purgativa e autodestrutiva, fazer valer outras considerações metafísicas, entendimentos teológicos e mitos portadores de conetividades e retroalimentação mais arejadas e vitais.

3 - DINÂMICA EVOLUTIVA

O encontro com o que é superior, excelso, com o que transcende, do sujeito, para algo fora dele; o que se eleva além de um limite ou nível dado: pertencem ao leque das possibilidades existenciais, como experimentamos neste planeta e sistema solar, sem necessidade de imaginar outra revolução copernicana. Não há razões para duvidar que os simiiformes, antropóideos e hominídeos, a partir de onde originamos, cujos despojos foram encontrados, eram portadores da natureza primeva a partir da qual evoluímos até homo dito sapiens. A autotranscendência resulta da pressão evolutiva e gera evolução; é a expressão que mais condiz com a vida, a vitalidade, em todas as suas manifestações: pode ser testemunhada, nos processos formativos do ecossistema, das nebulosas aos seres humanos, mas, igualmente, nas linhas da história e historicidade, nos exames das proposições e reações, na eclosão de circunstâncias propícias resultantes da contribuição de inúmeros co-específicos. Uma descrição, sumária, dos movimentos da Natureza, é suficiente conceber o processo criador como um cometa fazendo um giro até ao planeta e retornando às alturas. O diálogo cósmico esboça um movimento minguante, como uma 51 As coordenadas da autotranscendência, horizontal e vertical, como uma marca em xis, um crucifixo torturante.

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descida, até a formação das células e moléculas, sementes da vida biológica, para, como na sequência de um solstício, evolucionar através de um movimento ascensional, heliotrópico: plantas em busca de luz, seres aquáticos, anfíbios, répteis, quadrúpedes e bípedes, a diversidade das formas onde se manifesta o progressivo desabrochar da consciência, esparge em prodigalidades. Não é na direção do hipotético que se dirige o estado-de-ser, mas, sim, da luz solar e das estrelas, um movimento ascendente, como um sopro, vindo da água, terra e ar, burilando as emoções, guiando instintos arcaicos e cognição, em sentimentos, razão analítica e conhecimentos, frutificando no amadurecimento dos lobos frontais, em razão qualificada, sabedoria e união, o âmbito original. O processo de transcendência dota a humanidade da capacidade de vislumbrar a operacionalidade da Natureza, a complexidade das relações das partes com o todo [interdependência, polarização, complementaridade, imprevisibilidade, efemeridade], mas não oferece a aptidão de constatar um finalismo terminativo: noção escapando das peneiras do raciocínio, fugindo ao enquadramento dos sentidos; é sensato entender que uma parte não possui a faculdade de abranger o contexto por inteiro, não podendo colocar a ação cósmica no compasso do ratio. Um dos mais sólidos princípios aristotélicos: - “É impossível que o mesmo atributo, ao mesmo tempo, pertença e não pertença ao mesmo sujeito sob o mesmo aspecto”, pode, justamente, ser evocado para reconhecer o transcendental ilogismo da unidade universal: o Universo é, ao mesmo tempo, compreensível e incompreensível, em todos os níveis, do macro ao microscópico, sendo os limites entre estas antinomias incertos e mutantes; o Universo não pode ser dito compreensível, tampouco, incompreensível, manifesta-se ao sujeito cogitativo, imediatamente ilimitado, espantoso! É na inteireza da Natureza, na vanguarda da evolução social, intercâmbios e interdependências, no jogo das instâncias polares em busca de posições existenciais tensionadas entre a manutenção das estruturas, suas recriações e renovações, que a autotranscendência natura no fluxo, entre o que já se revelou e o que ainda permanece oculto, na crista do devenir, em direção a manifestações mais criativas e complexas. A autotranscendência opera a intimidade dinâmica do Universo, podendo ser, alegoricamente, concebido como um evento criativo conduzido pelos cavalos de Apolo atrelados à mesma chave: um dos animais se manifestando como natureza perceptível, concreta, solar, suportando cogitações racionais, e, o outro, fugidio, rondando nos potenciais, permanecendo oculto, lunar, além das garras da razão. Unidos na mesma junta, os cavalos acompanham e lideram as forças evolutivas, desvelando todas as vias universais, do macro ao microscópico, numa aventura, tenuemente, revelada na psique, em todas as relações e escalas do ser: lá onde quanto mais se sabe, mais crescem as fronteiras do desconhecido. Não ultrapassar os limites do saber, aceitar a imensurabilidade dos fundamentos ontológicos do estado-de-ser, afirma a prudência típica dos filósofos da tradição grega até Sócrates, e de outros, como Lao-Tseu: um respeito significando anuir com a realidade, um encontro com a verdade que não sabemos, que somos mistério. Esse naturando, imanente e transcendente, não pode ser negado: em tudo, neste momento, brilha e sombreia a presença inevitável do estado-de-ser, foco central da expressividade,

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fonte da juventude, onde a atratividade do caos, atuante nos desajeitamentos, indisciplinas e desordens, transcende em ordenamentos se recriando em novas figuras e propostas. Um naturar indômito, ponto de origem de todos os estados, expansivo e multiplicador, emanando sem cessar, apoiado na substância matéria-energia; naturando de modo complexo, mas coerente, como o fluir de um rio. Uma criatividade que se conjuga no estado-de-ser, nas intuições e potenciais expressos nos estudos teóricos, nas abstrações criativas, nas perspectivas míticas, metafísicas, filosóficas, fontes inspiradoras da virtude e da arte, emanações de inteligência e estética, evocando harmonia e identidade universal: perspectivas grandiosas, sensoriais e abstratas, surgindo por inteiro da unidade monística e dinâmica da Natureza, trazendo, por acréscimo, um espanto místico eternamente raiano. 4 – COORDENADAS METAFÍSICAS A capacidade de se reconhecer como parte mutante, participante de um processo efêmero, acontecendo no jardim cósmico, sem limites ou finalismos definidos, como a rosa que hoje floriu no jardim, tende a evocar reações existenciais diversas, dialogando num eixo polarizado, tensionado entre: um critério comportamental de receptividade e entrega, aqui nomeado: 1: coordenada existencial do consentir, e, um critério prudente, de resguardo, denominado: 2: coordenada existencial do amparo. O primeiro critério implica uma atitude aberta à criatividade do naturar, e a segunda coordenada, uma postura de resguardo. Portanto, é no jogo interior dessas instâncias naturadoras e polares, em busca de posicionamentos existenciais tensionados entre a manutenção e conservação das estruturas, e, sua recriação ou renovação, que a autotranscendência acontece na crista do devenir, na direção a realizações mais judiciosas e sábias. Estas categorias, definindo um jogo de impulsos opostos e complementares, de um lado, investidas em direção à manutenção da ordem, e, do outro, ímpetos em busca de recriação, cessam de se confrontarem e se oporem no ato da autotranscendência, superando a inércia e o imobilismo dilemático em fluidez dinâmica. A categoria transformadora e recreativa das estruturas manifestas exige a resoluta autotranscendência dos imperativos específicos de conservação e permanência - esse sustentar da determinação universal esquematizada no binômio criar/sustentar. Nesta fase, expressando entusiasmo criativo, a transcendência exige a superação da estabilidade ou apego inercial por onde gravita a permanência. Na direção oposta, complementária, a manutenção de um ordenamento efetivo, suportando uma estabilidade encampada e produtiva, exige a demonstração resoluta de um zelo dedicado, persistente, suficiente para transcender e superar a tendência natural ao rompimento e dissolvência: dois ordenamentos, uma autotranscendência. Evidencia-se uma metafísica elaborando, ou, ecoando, na sua própria esfera e numa dimensão alegórica, as interações físicas, sujeitas a cálculos, acontecendo enquadradas nos campos de forças fundamentais - gravidade, eletromagnetismo, interações fortes e fracas - gerenciando, senão matematizando, as interações entre condutas essenciais, agregação, alianças, acordos e consensos, e a existencialidade sujeita ao fenômeno universal da transcendência.

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Fundamentando uma conduta definida, uma aliança, o indivíduo pode realizar a necessidade de uma dedicação zelosa, numa demonstração de força, em sintonia, com o aspecto sustentador do fenômeno universal: uma dedicação exigindo a transcendência das pulsões opostas e complementárias, ansiando por renovações e mudanças. O zelo e sustentação das estruturas requerem firme domínio e superação corajosa - autotranscendência - dos imperativos naturais de transformações e recriações. De acordo com as suas tendências, o indivíduo mais conservador poderá ressentir a inevitável mutabilidade e transformação com uma previsível inquietude. Em outros momentos, diversamente circunstanciado, poderá expressar-se um forte entusiasmo, demonstrando uma comunhão com os aspetos mais criativos e renovadores do fenômeno universal, uma tensão exigindo a superação e transcendência dos imperativos naturais de segurança, estabilidade e permanência. Na sombra deste processo criativo, determinismo igualmente universal, a necessidade de administração, zelo e manutenção poderá ser percebida como um dever fastidioso, desmotivador. Movimentos diversos, exigindo cooperações entre tendências opostas e complementárias, mas, igualmente, o exercício de uma idêntica e imperativa superação: em cada um, e, por cada um, a realização, justa e devida, do fenômeno da autotranscendência é demonstrada: seja operado em processos implicando a superação de critérios de valores correlatos a um possível tédio, instigando a rejeição das estruturações adquiridas, seja em operações exigindo a resolução dos receios relativos aos processos de mudança; ou, ambos os fenômenos, sucedendo em ritmos, intensidades e melodias variáveis: em todo caso, o cultivo da coragem é a mola universal da autotranscendência. Uma demonstração revelando, num clarão, que a vida junge a morte numa só parelha: nos momentos apicais da realidade, as oposições complementárias, o surgimento, em crescendo, e a dissolução, se apresentam num devenir espiralado, sem retorno. Uma tragédia onde, na plenitude das diversas circunstâncias, os dois vetores, entrega ou defesa, expensão e retração, enlaçados em infinitas arabescas, são igualmente eficientes, em eliciar sublimes e radicais escolhas transcendentais. O processo evolutivo selecionou, por intermédio da humanidade, acréscimos de consciência e razão permitindo o reconhecimento dos processos vitais do estado-de-ser, individualmente destinado a nascer e morrer, a dinâmica das formas no jardim cósmico. É flutuando nos vetores destes equacionamentos existenciais, que a humanidade navega em efemeridade, orbitando, como indivíduos, sociedades e civilizações, em alguma coordenada, nos espaços siderais do estado-de-ser, num arco retesado entre os polos transfiguráveis e transcendentes do criar e do sustentar. Nos rumos da coordenada existencial do consentir, sendo o naturar polar e complementar, incognoscível e imprevisível nas determinantes externas ao poder do estado-de-ser52, revela ser sensato, de acordo com a razão, habilitar-se melhor, progredir,

52 Estando em nosso poder: o âmbito estrito do dominio de si mesmo; onde focalizar a atenção e se concentrar, o que

dizer ou calar, como se conduzir e o que fazer.

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reavaliando condutas, sempre carentes de completudes, enfrentar mudanças e aceitá-las: aprender a assistir com serenidade ao desmoronar das realizações, i.e., praticar as virtudes, manter-se aberto, flexível, tolerante, temperado e prudente. Não estando mais privilegiado, a longo prazo, de que qualquer outra entidade evoluindo nesse sistema mutante, não podendo usufruir as realizações além de alguns momentos, conota-se estar em sintonia com a Natureza, progredir no sentido de se tornar mais justo, dedicar a ação ao vir-a-ser, dentro dos mesmos critérios justos e ponderados, incluindo o próximo, a alteridade, em todos os gestos e projetos. Do mesmo modo, nos rumos da coordenada existencial do amparo, apesar do fluxo irresistível da impermanência, da impossibilidade de se prever o andamento do naturando, é necessário zelar pelo estado-de-ser e cultura, no que teem de valioso e bom, de acordo com as possibilidades, implementar reavaliações frequentes das posturas e condutas, compreender, aceitar a necessidade dos reordenamentos na matemática da vida, receber com serenidade as circunstâncias cuja duração natural transcende os ciclos vitais, aceitar o possível desmoronar das projetos de mudanças, praticar as virtudes. Incapazes de modificar circunstâncias estruturais, tampouco sustentá-las além dos seus destinos, é sensato, de acordo com a Natureza, progredir, tornando-se mais ponderado, justo, dedicar a sua ação ao devenir. Nesse arco retesado entre os polos da criatividade renovadora e manutenção conservadora, imersos num sistema mutante, envolvidos em processos de transformação de escasso controle, sábio, é reconhecer o presente como único posto fixo e real: em equilíbrio, concentrado, fazer do momento o ápice da praxe existencial, agir em harmonia, de acordo com a razão lúcida forjadas pela Natureza, honrar a vida e a verdade, de acordo com a realidade. Aprimorar a justiça, prudência, coragem, temperança, por intermédio do exercício eficiente da razão: é ser sábio, verdadeiro, em harmonia, sintonia e correspondência com a natureza real. O reconhecimento desse processo evolutivo, afirma o ethos humano universal, e, tende a instalar uma ética levando a uma civítica53, um comunitarismo participativo, a uma economia de compartilhamento, co-participativa em todos os setores, fomentando fraternidade e liberdade. A resposta virtuosa frente à realidade fenomênica criar e sustentar, não é compulsiva ou obrigatória, é a resposta sensata e racional, sábia, por excelência, ampliando a consciência de si, vinda do reconhecimento simples do contexto imediato, em direção à contemplação da alteridade, do próximo, como totalidade, ecossistema, como unidade compartilhada: trata-se de uma resposta filosófica verdadeira, mediada pela razão qualificada; é a expressividade do Logos, a razão virtuosa, unissonante e universal dos antigos. Assim, junto com Sócrates, confirmamos a realidade e veracidade das virtudes cujo respeito profundo inspira bem-estar e confiança. 53 O termo político(a) é dúbio por significar: 1: “ciência do domínio estatal e da subjugação”, mas, igualmente: 2:

“‘ciência da cidade, da civilidade e da cortesia”: introduz-se o termo civítico(a) para diferenciar a habilidade no trato

das relações humanas, a dialogicidade, civilidade, cortesia e respeito, virtudes típicas das comunidades, da política,

como denominador referente à ciência do Estado, das ideologias e doutrinas, negócios e programas governamentais

imbuídos de proselitismos partidários - ver definição mais completa em Apenso.

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5 - A FLECHA DE EROS O fenômeno da transcendência evolve num dinamismo interpolado: uma busca de alívio estimula e motiva; inata, uma curiosidade encanta, atraindo. O estímulo é o movimento buscando minimizar alguma forma de desprazer e desconforto, na procura de realização, consolo, equilíbrio e ponderação, no sentido mais profundo e verdadeiro dos filósofos como Epicuro (341-270 a.C.) e seguidores. A atratividade é dupla: 1: por via da aspiração abstrata e indagadora da razão, ampliando correspondências e ligações fenomênicas, até ao apogeu, na reunião coordenada dos vetores do estado-de-ser, acontecendo na vanguarda da vida, no acúleo do devir, onde o conhecimento aflora em sapiência, e a sapiência transborda em virtudes; 2: na aptidão sensível e espontânea, repousada, de se encantar, fascinado pela beleza da Natureza, uma realização gerando êxtase e júbilo. À luz da razão qualificada e consciente, a verdade se revela em virtude que se confirma, suave e bela, no encanto e fascínio da Natureza, eminentemente transcendente. Olhai a grandeza quintessencial de uma floração, flor comum, tipo trepadeira, invasora e não cultivada, crescendo nas cercas, ou, apoiada em outras plantas54: um cálice suave, com cinco pétalas de cor azul, mas, no centro, trazendo brancura e um amarelo bem claro destacando-se do verde intenso da folhagem, brilhando como uma pedra preciosa. A flor chama o poeta para valores mais sutis e ocultos, safira, cristal e ouro, aponta na direção do astro rei, do prodígio, dos bons sentimentos e humores: um espantoso esplendor, presenteando uma estética cuja perfeição, na geometria das formas e harmonia das cores e tons, nas relações com a folhagem adjacente, induz um ânimo e coragem propendo na direção dessa mesma harmonia e perfeição, dinamizando a postura, inspirando: por contágio e mimetismo psíquico, a flor entusiasma o estado-de-ser inspirando harmonia, equilíbrio, justiça, ponderação, alegria e amor. Um fenômeno apoiado nas estruturas da flor e da psique: um elemento natural, singelo, entre tantos, sorridente à beira do caminho, configurando um encontro místico, uma comunhão, projetando esplendor em toda a linha do estado-de-ser, das pétalas azuis às profundezas do céu, ao sabor de uma vibrante e anacústica harmonia interior: uma comunhão selvagem, acontecendo sem catequese. O poeta conhece o caminho secreto da elevação, sabe se salvar comungando o vinho da vida nas estruturas florais da Natureza Mãe, apesar do possível veneno das sementes e espinhos, maus humores e tristezas, das maldades dos homens e da cultura: sagrado e divino é o talento natural dos poetas e crianças em persistir estupefatos, encantados. A presença inevitável de algum grau de ansiedade existencial, como uma febre clamando água para beber, induz à aspiração destes perfumes e cores de virtudes, orvalhos espargidos nas campinas, na espontaneidade dos encontros com a harmonia da Natureza. Encantos transmutando tristezas, carências, apegos e iras, em alegria e amor, tolerância, bondade, liberdade e contentamento. Nos agouros da alvorada e momentos luminosos,

54 A descrição de uma floração brilhando na cerca, um convolvulus tricolor.

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descobre-se, nas flores brilhantes, ao ritmo do cantar matutino dos pássaros, vozes conselheiras e misteriosas – talvez, os ditos da deusa Ayahuasca dos indígenas da América do Sul, contando segredos e encantos ao bom coração. A graça está dada, incluída no aqui e agora, na comparecência da realidade. A descoberta reveladora da existencialidade produz espanto e intensas sensações: um recém-nascido, o mar, a montanha ou a neve, encontros imediatos e ingênuos, revelando a verdade, unívoca e profunda, antes que os véus dos costumes e conceitos, das sofismarias e da retórica, revistam de cortinas a imponente comparecência do real. Eis a fonte, mais profunda e cristalina da verdade original, de que todos compactuam: o processo da transcendência é um só, acontece nas medidas da razão qualificada, arte de saber como se encantar, conhecer e saber com louvor e virtudes. Poemas e mitos, estruturas quintessenciais capazes de descrever o real, apontam o jorro da criatividade e impenetrável do naturar, Deus Natureza. Para que os mitos voltem a surtir os seus efeitos, é suficiente evocá-los, remover os cultismos da homogeneidade teológica e totalizadora, verniz de idealismo absoluto: libertá-los para uma convivência proveitosa no âmbito humano. Poderosa e eficiente é a filosofia quando liberta das premissas do orfismo; suficiente seria uma parte do saber dos antigos da cultura jônica. Uma sabedoria oferecendo o essencial para que se opere a auto-evolução transcendente em busca de realizar uma versão melhor, mais sábia, do estado-de-ser. Acordar, seguir os passos dos antigos, indígenas e pagãos; continuar a caminhada criativa do estado-de-ser humano, é o que necessita – eventualidade mais evidente, não se tivesse aniquilado as hipátias de Alexandria (Hipátia - a. 370 id. 415 ac) que, do solar das bibliotecas, igualmente destruídas, avisavam: “que mitos sejam ensinados como mitos, realidades como realidades”. 6 - O PANTEÃO DOS PAGÃOS Os antigos, cercavam-se de deuses e demiurgos poderosos, mas falíveis, aptos a atitudes eficientes, mas opcionais e relativas: deuses e deuses livres para acertar ou falhar, assim como a humanidade. Reencontra-se o gênio mítico, a hiperconsciência, em busca de transcender o mal-estar em bem-estar existencial, superar as ideologias massificantes e superestratificadoras, chamando e emulando os gênios de Demeter, a provedora, de Afrodite a dançarina; transcende-se o cientificismo evocando o gênio de Palas, deusa da sabedoria, a grande Instrutora; amparar-se a autotranscendência do estado-de-ser evocando e emulando o gênio de Hélio, o artista, e o apoio dos oráculos e das pitonisas visionárias. Será o gênio mítico-poético, uma inteligência capaz, resolvendo problemas, criando eventos significativos, relativos ao indivíduo e contexto social? Os deuses e deusas, semideuses e mortais: construção poética e mítica, genialidade cognitiva plena, evocando unicidade, luz e força universal: um panteão! A realização funcional desse panteão genial é possível: resulta de um trabalho, dedicação e aperfeiçoamento constante: oração prática, viva. É uma realização criativa do ser humano, disponível neste grau evolutivo: uma heteronímia criativa compondo um estado-de-ser cristalino, razão lúcida, a quem cabe o dever de viver na sua própria tutoria, na autoridade do seu entendimento.

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Da estrutura do panteão

Demeter, gênio da providência, arquétipo mítico e poético, transcende a ideologia dos desatentos e irresponsáveis, automotivo, mantém animado e firme, mas, também descontraído e tranquilo, concentrado. O gênio Provedor é fonte de motivação e vitalidade. É um centro de força e saúde, promovendo maior capacidade de realização - capacidade demonstrada pelos trabalhadores em geral. A linguagem preferencial do Provedor é feita por gestos, atitudes e posturas. A capacidade para o trabalho produtivo é a essência desse gênio; ser fecundo, frutificar em obras, fomentando a vida de todos os seres vivos. O provedor é também a mãe terra, o galo que canta pela manhã. É uma disposição matinal, ativa na alvorada; é a força motora, base dos dias e da vida, composta de uma sucessão de dias: alimenta os alicerces da ação, força e disciplina, constância e regularidade. O grau de confiança em si mesmo é proporcional à solidez dessa base, ao contato e comunhão com o Provedor. A deusa do amor, Afrodite, é o gênio para quem o amor é uma atividade criativa, escolhida, essencialmente orgástica. É a autotranscendência dos determinismos animais, aritméticos e amedrontados, edificando no estado-de-ser um palácio talâmico, nupcial, alquímico, onde surge um equilíbrio funcional entre os polos e as antinomias. A sensibilidade às expressões, tonalidades de voz, capacidade de ouvir, manifestar empatia, são caraterísticas dessa genialidade. Distinguir e discriminar sentimentos, entender os próprios desejos e anseios, observar e fazer distinções entre os humores, temperamentos, motivações e intenções, são atributos essenciais do gênio dançarino, alquimia evolutiva fundamental para o bem-estar do sistema social e planetário. Gerador de entusiasmo e união, dedicação, o gênio dançarino é diurno, acordado: propulsa a comunhão com a Natureza, a vida comunitária, companheirismo. Nesse gênio, brilha atenção e respeito, sintonia, arbitrando, convivendo, cooperando: solidariedade é amizade a cada momento.

A deusa da sabedoria, Palas, é instrutora racional, linguística e lógica, vetor magno da razão qualificada apta a transcender o cientificismo. É uma dedicação à compreensão da causalidade, à edificação de uma apreensão de conjunto. É o gênio rondando bibliotecas, lugares de debates e palestras; dias e noites, questionando e desafiando. Rotular as percepções, decompor, criar sequências complexas de correlações, são habilidades básicas da Instrutora. A linguagem preferencial é a palavra, a matemática, ponderar é a meta. É através da inteligência linguística, nos aspetos retóricos, explicativos e memorização, que a instrutora cria novos horizontes. A capacidade da deusa Instrutora é essencial para construir e progredir, fazer síntese e generalização, revelar e significar os aspetos positivos das experiências, abrindo portas para a aprendizagem continuada, aceitação e integração das contradições, transformando acontecimentos em motivos de reflexão. É mestre na arte de deixar problemas em aberto, questões sem respostas fechadas - abertura e espanto. A deusa Instrutora não é máquina computadorizada, desvela a harmonia da Natureza,

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7 - DOS ACRÉSCIMOS TEOLÓGICOS Nada podendo, racionalmente, definir sobre o absoluto, o existente pode supor, imaginar teleologias de acordo com as suas próprias tendências e opiniões (dóxa): neste exercício, qualquer produção poderá ser avaliada em função de três elementos: 1: a prudência dos enunciados, o grau de respeito aos limites do saber; 2: a coerência, sintonia e harmonia, de que se supõe com o que se pode saber e intuir; 3: a apreciação judiciosa dos enunciados, das suas decorrências lógicas e frutos históricos. Acrescentar um andar teológico-teísta, dualista, responde a um anseio, atendendo uma sede exuberante de pragmatismo: definir uma utilidade terminativa à ação cósmica, rompendo a sempiterna transcendência universal numa objetividade cristalizada. Dispensada a razão, por extrapolação grosseira e imprudente, os efeitos do dualismo metafísico são imprevisíveis, nocivos, na dependência dos contextos e atributos dos porta-vozes: moldes imperiais, inquisitivos, messiânicos, ou movimentos ascéticos, até mesmo, tolerantes, ecumênicos: na dependência das políticas e retóricas das agremiações no poder, da dialética e dos processos históricos. Outras formas de religiosidade, de natureza monista e humanista, operadas com sobriedade agnóstica, suportam mais naturalmente, por empatia simples, o fenômeno da autotranscendência. Para o naturalista, para quem Deus é Natureza, permanecer simplesmente sentado, a coluna reta e alinhada com a cabeça inclinada a 45 graus, as mãos unidas em círculo, pode ser uma manifestação reconhecedora da verdade, da retidão e realidade das virtudes, um exercício progredindo no sentido de uma vida mais virtuosa, um gesto afirmando não haver um xis, uma via horizontal, outra vertical, mas sim uma harmonia como um círculo espiralando na estratosfera. Mesmo seguindo uma rota incerta, repleta de altos e baixos, a natureza humana demonstra possuir os potenciais, saber se beneficiar dos recursos e vontade necessários ao advento de uma sociedade cosmo-sinérgica, eco-humanista, experimentável agora, neste planeta azul. Contudo, o caminho é sem garantias, trata-se de uma possibilidade se afirmando na voz ativa dos que praticam a arte da autodiretividade, vivendo na tutela prudente dos seus melhores entendimentos, depositando créditos na capacidade humana em demonstrar, de modo sustentado e unívoco, a realização dos seus potenciais – rosas floridas num jardim.

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DAS VIRTUDES TEOLOGAIS

A mais bela e profunda emoção que se pode experimentar é a sensação do místico. Este é o semeador da verdadeira ciência. Aquele a quem seja estranha tal sensação, aquele que não mais possa devanear e ser empolgado pelo encantamento, não passa, em verdade, de um morto. Albert Einstein (1879-1955).

1 - RES SENSITANS E SEMÉTICA Amor, liberdade e vontade, virtudes unanimemente celebradas como espirituais, não são entidades localizáveis no mundo dos objetos, em área dos estudos científicos, tampouco no mundo mítico das nomenclaturas fabulosas: tais virtudes testemunham sentimentos ainda pouco conhecidos; as descrições que as evocam são tão dúbias quanto a identificação dos organismos antes da classificação do naturalista Carolus Linnaeus (1707-1778). A confusão é semelhante àquela se diversas espécies, gêneros, famílias e subfamílias de uma ordem, na biotaxonomia, fossem tratados indistintamente e, de permeio, apresentassem, no mesmo patamar descritivo, figuras imaginárias revestidas de aspetos fantásticos: como ocorreria se uma fênix fosse considerada, como pertencente, efetivamente, a uma espécie de pássaro. Não há sentimentos metrificáveis, como no caso dos objetos físicos, ou imaginados, pertencentes ao Universo lendário dos unicórnios, sacis, cupidos, anjos e outras imagens. Indefiníveis em termos de moléculas, receptores neurais e formulações técnicas, inexplícitos como fluidos resultantes de manifestações divinais, os sentimentos são realidades existenciais discerníveis, como um cheiro do jasmim e de uma rosa, o sabor do mel ou da menta, fazendo um sentido imediato para os conhecedores. Por aproximações abalizadas, experiências comunicadas com atitudes e expressividades não verbais, transmitir sentimentos aponta a direção do seu entendimento, apenas até onde os conhecemos: saber o que vem a ser o amor exige conhecimento, iniciação. Sendo os humanos iguais na sua humanidade, e diversos nas suas singularidades, seu inatismo, [a singularidade do cognato, o conato]; diversos na amplitude e precisão do seu conhecimento [a singularidade do cógnito]; diversos nas normas e critérios pelas quais se regem, dirigem [a singularidade da cultura ou do culto], decorre que, apreciações e discursos referentes a sentimentos variam consideravelmente, referindo-se a descrições

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culturalmente disponíveis. Noções relativas a sentimentos, permeando a diversidade da experiência humana, abrangem amplos leques, ou escalas, que envolvem variações, não apenas conaturais, como as em que diferem o perfume da rosa e do jasmim, mas, igualmente, intrínsecas à perspectiva filosófico-metafísica intimamente aceita, ao sentido existencial, teleológico, individualmente acreditado, em contraste com os cultos e a cultura vigente. Perceber isso é entender o que é sentimento: uma res terceira emanando do mesmo centro místico originador da res extensa e da res cogitans: uma res sensitans. A maneira de ser, de se reconhecer e descrever, de se identificar e se situar no mundo e para o mundo, da intimidade e do ânimo mais reservado, do interior, até às perspectivas mais abstratas, doutrinas e crenças, modulam as expressividades complexas denominadas sentimentos: agregados de manifestações sensoriais, conceitos e significados metafísicos. Na experiência cotidiana, não prevalece um reconhecimento geral, universalmente compartilhado, em relação aos sentimentos, mas sim, várias escalas de entendimento fundamentadas na diversidade das pessoas, das suas faculdades, afiliações e identificações; conhecendo o fenômeno existencial como estado-de-ser in loco, originário da esfera atual e vivenciada da realidade, partindo da sua própria autoridade natural, os sentimentos poderão ser devidamente ressentidos, emanando sem ambiguidade. Se uma rosa pudesse ter consciência, teria consciência do seu perfume como emanado de si, não de outra, a não ser, mesmerizada para imaginar e pensar ser o seu, o cheiro do cravo, descendo das alturas, e não o seu real perfume de rosa. Em circunstâncias naturais, os sentimentos são secundariamente atribuídos de significados, de acordo com entendimentos compartilhados; os significados apostos poderão se modificar de acordo com o exercício do estado-de-ser e as aptidões decorrentes. À medida em que a compreensão de si mesmo e do mundo se enriquece no próprio ato sensível do existir, a escala e valência dos sentimentos propendem a se ampliar na mesma proporção e sintonia. É a presença atenta, criativa e comunicativa do estado-de-ser, revelando esse eu profundo apontado por Bergson, que permite a exultação palpável do sentir. Se o sentimento não se transmite por interação genética, nem se exemplifica como uma troca de memes, mesmo assim, se comunica diretamente, por uma via mais imediata: um sorriso, um olhar brejeiro, um gesto, num relance, podem, efetivamente, varar o fardo da tristeza. Trata-se de transmissões e reconhecimentos que não se referem a uma mutação genética, nem a uma educação ou comunicação memética55; a esfera comunicativa referente à res sensitens não conforma a gene ou meme: processa-se, com efeito, uma iniciação semética, uma transmissão de semes – equivalentes dos genes e memes que atinam aos aspetos extensos e 55 Os memes podem ser analisados como se fossem micro-organismos em busca de hospedeiros: a memória das pessoas.

A memética é uma teoria proposta por Richard Dawkins no ano de 1976, no livro O Gene Egoísta, mas que somente em

1997 foi revisitada por Susan Blackmore, em um artigo publicado na The Skeptic ( No 2, 43-49), com o nome “O Poder

do Meme”, seguido de outros artigos e um livro chamado “A Máquina Meme”, que conta com a introdução do próprio

Richard Dawkins. O “meme” é definido como um padrão de informação gravado na memória e capaz de ser copiado na

memória de outro indivíduo. “Memética” é a ciência empírica e teórica que estuda a replicação e evolução dos memes.

A memética, em relação à evolução das idéias e sistemas de crenças, pode ser entendida como o equivalente da genética

em relação à evolução das células e organismos. Ao nível biológico existe o “gene” e a nível cultural o “meme”.

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cogitans do estado-de-ser unitário. Se a evolução da genética exige mutação, a da memética exige educação, e, a evolução semética exige iniciação na transmissão dos semes como unidade sentimental: memes, semes e genes, reunidos, numa mensagem de vida plena.

2 – DAS VIRTUDES À LUZ DA RAZÃO NATURAL56 Sendo o arco essencial básico, uma unidade trina organizada – 1: estímulo-recepção; 2: integração-ciência; 3: resposta-ação - as escalas de sentimentos evoluem desde o âmbito dos atos simples e automáticos, com um mínimo de ciência refletida, na forma de sensações e conhecimentos proprioceptivos, para atitudes cada vez mais envoltas de perceptividade e cientificação, de si e do mundo: fenômenos abundantes de experiência cognitiva, no sentido mais amplo. Isto é, escalas de sentimentos evoluindo, do ponto de vista da sua cinesia, de impulsos e automatismos instintivos, ações e atitudes, implicando abertura de opções, acompanhando e acompanhadas de explicações e opiniões; discursos cada vez mais ricos e precisos, até às concepções filosóficas. Percebe-se que a vontade, a intenção ou querer, começa como simples desejos, vindos de elementos ainda mais prístinos, impulsos e instintos. Gradualmente, nesse lento processo, numa segunda instância na ordem evolutiva filogenética e ontogenética, surge a noção de liberdade, junto com o enriquecimento da atuação do estado-de-ser, a evolução de sua autonomia. Ciência existencial evoluindo vagarosamente, vinda das necessidades e obrigações biológicas, em busca de opções e possibilidades, até chegar nas escolhas e decisões profundamente meditadas; deliberações oriundas de visões e compreensões a partir de onde acompanhar o fluxo das necessidades causais, modulando as contingências: escolhas existenciais e contemplação do vivente ciente de si. Em terceira instância, na ampliação das relações e compartilhamentos, flui uma noção de reconhecimento dos valores sociais: aquele que parece bom e positivo, para si, e, para o próximo. A manifestação do respeito, fraternidade, amizade, bondade e amor, sentimentos se burilando e elevando: a partir das dependências, dos apegos e desejos, sementes iniciais, em busca de aconchego, mutualismo; na troca de benefícios, no reconhecimento de uma respeitosa interdependência, doação, graciosidades. Na confluência desta evolução, os sentimentos reforçam-se mutuamente, em sinergia estreita, interoriginando um sentir específico e genuíno do estado-de-ser plenamente humanizado. Sentimentos que poderão ser definidos, nas suas expressividades culminantes, como, ocasionalmente, extáticos, mas, assentados no encanto específico do ser humano ciente de si, nas imediações do acme dos seus potenciais, na floração da sua lucidez: fenômeno caraterológico realizando, com êxito, ampla liberdade, amorosidade, coroada e primeira. Partindo dos automatismos instintivos, das dependências, dos apegos condicionados e reativos, das obediências e imposições a sistemas normativos, até ao surgimento das escolhas deliberadas, das profundas tomadas de decisão, da formação de

56 Ver a nota da página 21.

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amizades sinceras, e, finalmente, a realização da liberdade plena e transcendente de um amor espontâneo e iluminado, assistimos a milhares de anos de evolução. Eras, para florir, necessitando serem repetidas e confirmadas em algumas décadas de vida: dos automatismos dos infantes, independência dos adolescentes, às deliberações ponderadas dos sábios, até á uma possível incorporação cultural da excelência eco-humanista como atuação espontânea.

Nas circunstâncias e contextos históricos vigentes, a humanidade aparenta ser um cado onde poderá operar um processo evoluindo na busca da intenção de liberdade e amor. De um lado da escala, como a base de uma pirâmide, exemplificam-se conjunturas e realizações não deliberadas: a atuação da causalidade moldando o estado-de-ser como um elemento reativo e automático, ou, como recurso condicionado a partir de esquemas ideológicos onde o indivíduo se amolda como objetos em mãos de poderes alheios. Do outro lado da escala, ilustrando extraordinário processo criativo, evolutivo, reina o máximo de intenção, liberdade e amor incondicional, fluindo autonomia, uma libertação e vivificação brotando da fonte soberana, do ato-de-ser. O estudo de indivíduos notáveis, autores de realizações generativas e positivamente transformadoras, agindo nos modelos comportamentais dos seus grupos sociais, aponta a existência desse potencial na humanidade. Para que essa criatividade existencialista chegue a integrar a realidade comportamental da espécie, é necessário uma radical mudança nos princípios educacionais, éticos, sociais, econômicos, políticos e religiosos. A excelência cultural, como apontada pelos sábios, necessita ser plenamente reconhecida, aceita e implementada: o surgimento de uma sabedoria dotada de força civítica, efetiva e ampla, é imprescindível. Enraizada num gênero civilizacional determinado pela visão teísta do estado-de-ser57, a sociedade contemporânea entrou numa fase de decadência e conflitos, permanecendo em crise, ofuscada, sem rumo claramente definidos. Nesse âmbito confuso, o indivíduo, poderá intentar exercitar a liberdade, expressar formas de respeito e amor, seja de acordo com os graus de excelência descritos nas doutrinas, ou em função da sanidade decorrente do conhecimento filosófico construído à luz da razão natural. O conceito vulgar de que a vontade tende a ser volúvel, mundana, com potencial para se tornar estável, filosófica e profunda, aponta na direção do processo evolutivo, apanágio da natureza humana58. Trata-se, para todos os efeitos, de uma construção mais elevada do caráter, conferindo firmeza, a partir de alguma grandeza visionária. A capacidade de duvidar, estabelecer métodos testá-los, meditar, contemplar e intuir, permite superar a carência e desorientação existencial, reencontrando valores reais e vitais, progredindo em busca de serenidade, domínio e excelência natural; uma realização onde a vontade se expressa desprendida, uma liberdade

57 Visão mediévica, ainda perdurando, mas, abalada pelo iluminismo e subsequente retorno da sabedoria como

historicamente esboçada e pontuada na cultura jônica. 58 O contraste entre o mundano e o celestial é, claramente metafórico, embora possa ser entendido como algo concreto

numa perspectiva teísta imaginando a atuação e domínio de uma superestrutura divina absoluta e exógena.

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com o seu critério, o vivente terá, igualmente, de modo decorrente, de anuir com a morte. Terá que viver com a ciência clara e distinta que nada permanece na esfera do seu poder, que tudo escoa e se desfaz como figuras desenhadas em areias na beira do infinito. Não poderá mais, seriamente, brigar e guerrear da forma impulsiva e instintiva, típica dos que não alcançam o conhecimento e a visão do apocalipse, do mundo como é. O iluminado, poderá se dedicar à manutenção do necessário à construção e amparo de um sentido escolhido, dentro dos limites do bom senso, no compasso e no fluxo dessa mesma visão, em acordo com métodos congruentes e alinhados com esse ânimo, aberto à transformação, à existência. É na aplicação dessa anuência ao processo existencial, na sua totalidade, nascer, viver e morrer, que surge o terreno fértil, propício à frutificação do amor. O arbítrio conferido pelo ato de escolher ser livre, influencia o fluxo dos fenômenos, eliminando as necessidades de lutas, sacrifícios pontuais, resultados dos apegos: a sanidade da vontade, governando a existência, permite a manifestação imediata da serenidade. Nessa ciência de si, não há espaços para revoltas, reações existenciais iradas e queixas fundamentais, e sim, para um bem-estar básico, decorrente dessa anuência existencial, querendo existir em circunstâncias universais - instala-se naturalmente a bondade. Propende a surgir a tolerância, o respeito à compreensão do outro, mesmo quando este permanece operando a partir de fideísmos e compromissos culturais exorbitantes, desenhados em projetos balizados em tradicionais e históricas perspectivas, tensionados na busca convicta de êxitos tidos como finais, absolutos e irrevogáveis. Surgem as virtudes evocando justiça, coragem, prudência, temperança, amizade e abertura: anuência plena ao que é outro. A ciência decorrente da visão do processo causal universal, sem limites alcançáveis, nem de um lado nem do outro, atemporal até onde possa ser vislumbrado, implica o reconhecimento sentido e qualificado da unidade de todas as coisas, da sua interdependência fenomênica. As virtudes expressas na atualidade dos fenômenos transcendem e se transformam em amor, resultado necessário da conjunção de um caráter virtuoso e da unicidade: não será o amor igual às virtudes somada à união? Anuir com o exercício das virtudes é a prática da unicidade; na sucessão dos dias, onde a visão se mantém como imagem em filigrana, a virtude essencial é escolher ser bom, aquiescer com a bondade, quando possível, expressar alegria, sempre, serenidade e amor. Anuir, cândido, com a existência simplesmente compreendida, sem ofuscações nebulosas e complexas, é o topo cristalino da escala da vontade, da liberdade e do amor. Um estado-de-ser determinando a sua intenção: trata-se do determinismo existencial prístino, perene, filosófico e atemporal do indivíduo acordado.

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EXPERIÊNCIA MÍSTICA

Há algo em nós que luta contra O tempo, Que sobe rio acima, Que braceja, Que quer abrir portas, Que deseja dissipar todas as névoas. A águia encontra o sol.

Diego Fuertes Álvarez

1 - DA SUA ESSÊNCIA E CARATERÍSTICAS

A marca da experiência mística é a vivência da unidade, a união mística, pressupondo a ruptura da dicotomia sujeito/objeto. Perceber que existe um ecossistema integrado, uma união entre um pássaro e o seu ambiente, é uma compreensão ecológica, enquanto, transpor os limites habituais do eu, sentir-se dissolvido no contexto maior, é uma experiência mística. Essa vivência de unidade resulta de uma resolução autotranscendental, em cadeia, das múltiplas polarizações da percepção e do entendimento. O pulso para que essa resolução se complete, transbordando o foco pontual da observação, deverá suscitar um processo criativo de harmonização, ou, uma conciliação estética, entre instâncias polares habitualmente opositivas, com repercussões funcionais, dinâmicas: sair de um lugar escuro para um claro, e, pelo deslumbramento, sentir-se, surpreso, espertar na infinita e comovente grandeza do dia cósmico; ver uma moeda girando e formando uma esfera brilhando à luz do sol, os dois lados da unidade, irradiando em expansão nas redes da imaginação, dimanando uma luz consciente, alegria na esfera universal. A capacidade de estabelecer analogias, conexões e associações, a imaginação e flexibilidade, i.e., inteligência e criatividade, são qualidades fecundas, terreno ideal para a ocorrência de insights e experiências místicas.

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“A Unidade, o uno, é a experiência central, o conceito central, de todas as formas de misticismo, embora isso possa ser enfatizado em maior ou menor grau, entendido de diversas maneiras, até mesmo não ser explicitamente mencionado. A unidade é percebida, ou diretamente apreendida. Quer dizer, a unidade pertence à experiência e não tão só à interpretação, na medida em que é possível fazer essa distinção”. Stace, W. T. em Mysticism and Philosophy60.

A unidade refere-se à experiência mais íntima do estado-de-ser, em todos os vetores. A criatividade em combinar e agregar elementos e princípios diversos revela uma capacidade metafórica e analógica, educada ou intata, determinante na congregação das disparidades em abraços unitivos, fecundos, evocando o amor e regozijo das congratulações familiares. Parentescos ontológicos estabelecem afinidades entre ordens extremas de grandeza, indivíduos e nações, semelhanças funcionais familiarizam a diversidade dos eventos e estruturas; desvelar os processos funcionais, a reatividade sequenciada e infinda dos elementos, desata os limites formais, imergindo o finito no infinito, dissolvendo o complexo num hilemorfismo transcendental. Neologismos, construções sintáticas, realizações linguísticas geram e introduzem novas aberturas conceituais, novos paradigmas fluidificadores; operações lógicas e funções matemáticas, generalizações probabilísticas, correspondências correlacionando fenômenos díspares de grandeza, encontrando propriedades estruturais similares, permitem o descobrimento de constâncias em processos diversos, valências e extensões universais. Uma criatividade totalizadora leva à unidade por refletir e dinamizar uma ecologia genética, memética e semética: um processo onde a inteligência está para a compreensão, assim como a Natureza para a evolução, a tecnologia para produção, e, a sabedoria para virtude. Mas, é, por definição, um oximoro, tentar definir a inefabilidade da experiência mística: sua envergadura, totalizante, transborda o enquadramento tradicional da razão, o contexto pedagógico redutor, lógico-matemático e gramático-linguístico, prevalecendo nos esquemas operativos da estrutura societária vigorando pela dominação.

“Qualquer escritor honesto, familiarizado com as experiências místicas, sabe que são totalmente irreconciliáveis com as regras ordinárias do pensamento, que quebram as leis da lógica”. Stace, W. T.; ibidem.

Apesar de reconhecer o não-conformismo fundamental da realização mística, Stace, apresenta intentos definidores e classificatórios baseados em interpretações contextualizadas de dados culturais, evocando modalidades quantificáveis, tipicidades, apelando para a autoridade e consenso; nestas definições, referências regulares, apreciadas, ou reconhecidas, como de maior força, autoridade e tradição, prevalecem, subjugando a avaliação incondicional e criativa da experiência, a apreciação simples fundamentada em resultados.

60 http://wudhi.com/mysticism/ws/index.htm

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“Podemos levantar o questionamento sobre se nossa exclusão das ‘visões e vozes’ da classe dos fenômenos místicos se deve a uma decisão arbitrária, ou se há boa razão para isso. A resposta é que boas razões podem ser dadas. O ponto principal é que as mais típicas, como também as mais importantes modalidades de experiências místicas, não são sensuais, considerando que ‘visões e vozes’ teem características sensuais; os místicos cristãos e os hindus estão em completo acordo neste ponto”. Stace, W. T.; ib.

Na opinião de Stace, a presença de imagens e vozes, visões, e por extensão, o surgimento de fenômenos sinestésicos onde cores se expandem e se organizam em formas, sons, ritmos e músicas, o sensual, formal, as qualidades estéticas fortes, parecem reduzir o valor místico da experiência, trazer dúvidas sobre a sua legitimidade, pureza ou profundidade, enquanto a austeridade, sobriedade, o minimalismo silencioso e despojado, parecem mais auspiciosos e adequados: observações sugerindo influências e pressuposições teísticas e monásticas, mais do que evidências resultantes de um universo mais amplo e independente de pesquisa. Em relação às modalidades indutoras das experiências, Stace oferece uma classificação estranhamente racional, polarizada em oposições, classificando-as como: a) extrovertidas, e, b) introvertidas - o que é surpreendente: no conceito definidor, a experiência mística pressupõe a ruptura da dicotomia sujeito/objeto.

“Experiências espontâneas normalmente são do tipo ‘extrovertidas’ embora não invariavelmente. As experiências adquiridas ou cultivadas são normalmente classificadas como ‘introvertidas’, porque há técnicas especiais para isso – técnicas que diferem ligeira e superficialmente nas diversas culturas. Até onde sei não há nenhuma técnica correspondente para as experiências ‘extrovertidas’”. Ibidem.

A realização de uma experiência cujo ponto essencial é a ruptura da dicotomia sujeito/objeto deve envolver a fusão dos elementos e funções integradoras da cognição, numa conjunção criativa61, tendente a desafiar quaisquer hipóteses classificadoras destacando disparidades e termos exclusivos: interno, externo, espontâneo e cultuados. A maneira mais frequente de desencadeamento da experiência mística, na apreciação de Stace, é classificada como extrovertida e espontânea, por não existirem técnicas de provocações, o que sublinha o universo restrito e seletivo embasando as suas elaborações. Técnicas contemplativas dedicadas à apreciação estética de horizontes largos, paisagens, céu noturno, flores, exercitando a plena atenção como atitude de base, a focalização intensa e concentrada nos influxos oriundos dos sentidos – a atenção concentrada admirando os influxos da visão, das sensações e audição -, expressividades cinestésicas, gestos estilizados, atividades implicando correr, nadar, dançar, tocar instrumentos, e, até a união sexual, outros, são cultiváveis e treináveis: todos, capazes de conduzir à união mística. Inúmeras técnicas, classificáveis como “extrovertidas e sensuais”, foram

61 Uma fusão ajuntando as percepções e integrações multiformes, racionais ou estéticas, ou, resultantes, como

produções intuitivas: uma realização eidética alicerçada em contemplação meditativa.

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elaboradas para desencadear estados de fluxo, ou fusão sujeito/objeto, com potenciais de aflorar, amplificados, em união mística. Como prática geral de provocação, ou indução, o equipamento cognoscitivo pode ser restringido e concentrado, ampliado e dilatado, em práxis, cujas contextuações ou circunstancialidades podem ser orientadas “internamente ou externamente”. Mais prudente seria evitar classificações dicotômicas excludentes, evocando estilos, caminhos, ou vias, de realização; neste caso, talvez, uma via mais introvertida, a dos meditadores reclusos e teístas, e, por outro, a via mais extrovertida dos contemplativos, artistas, naturalistas e panteístas. No estudo do autor mencionado, e de outros62, diversas caraterísticas se consubstanciaram como o fundamento fenomenológico da experiência mística, desconsiderando as tecnologias provocadoras e as doutrinas religiosas abrigando as induções: 1: unicidade: senso de unidade cósmica conquistado mediante uma autotranscendência positiva: embora o senso habitual de identidade se dissolva, a consciência e a memória permanecem; o indivíduo percebe que pertence a uma dimensão mais abrangente e vasta, conglomerando as emoções e transbordante às dicotomias habituais – tudo é um; 2: autotranscendência: o indivíduo percebe conexões existenciais transpassando os limites do passado, presente e futuro: além do espaço tridimensional ordinário, um reino de eternidade e infinitude profundamente sentido; 3: êxtase: um humor forte e positivo, incluindo as virtudes da alegria, da bem-aventurança, da paz e amor, num grau intenso; 4: consagração: um sentimento intuitivo, uma resposta palpitante de admiração e espanto diante da presença de uma a realidade inspiradora. Sensações e virtudes frequentes, como grandiosidade e sublimidade, evocam reverência e modéstia – os termos e esteticismos teológicos, catedráticos e pontificiais, das religiosidades tradicionais não descrevem, necessariamente, a vivência; 5: iluminação: referente aos aspetos noéticos da experiência; sentimentos de perspicácia intuitiva, vivacidade e inteligência, conferindo à experiência força e certeza, vislumbre de realidade absoluta, sabedoria universal. Esse conhecimento não é factual mas, um acréscimo, um salto quântico, em perspicácia metafísica, filosófica e psicológica, com resultantes terapêuticas; 6: paradoxalismo: relata às contradições lógicas transparecendo na análise das narrativas e experiências: o estado-de-ser parece experimentar a realidade essencial da identidade dos opostos; 7: inefabilidade: a experiência parece estar, em algum nível mais sutil, acima da possibilidade de expressão verbal, conhecível de imediato, mas, difícil, ou impossível, de ser descrita com adequação; 8: transitoriedade: o clímax esplendoroso, de intensidade variável, não perdura, tornando-se uma memória ativa e operante, experiência deixando vestígios fecundos, salutares e norteadores; 9: transformação: a experiência é potencialmente transformadora: mudanças positivas ocorrem cambiando critérios de valores, refletindo nas atitudes, comportamentos e relações, culminando numa vida mais integrada, englobando todos os aspetos da diversidade numa vivência única.

62 Pahnke, Walter N. - Drugs and Mysticism; The International Journal of Parapsychology, Vol. VIII, No. 2, Spring

1966, pp. 295-313.

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2 - DAS SUBSTÂNCIAS COMO OPÇÕES DE BUSCA

As plantas psicoativas, como remédio, num multiculturalismo impressivo, são reputadas capazes de auxiliar a formação de um senso ampliado de identidade, provendo estímulos necessários para a superação dos hábitos restringindo a consciência ao mundo dos desejos concretos, egóicos, e dos idealismos domingueiros, espirituais. O caminho dos vegetalistas, ou ayahuasqueiros, por ser mais inebriante e intenso, pode parecer de alguma maneira mais fácil, proporcionando um contato mais precoce e intenso com o numinoso. Tal contato pode inspirar compromisso e abrir caminhos, com força e criatividade, na superação de conteúdos incômodos. Possivelmente, com um investimento maior de tempo e esforço, experiências similares podem ser obtidas pelos que dominam a ciência da meditação; mas, para investigadores independentes das substanciosas ordens monacais, laicos, cuja busca deve ser integrada à necessidade de prover seu sustento, o uso dessa tecnologia milenar pode tornar o processo da realização mística exequivel: substâncias psicoativas não são pontes, ou atalhos, quando efetivas, são vias mais velozes. Esclarecer-se, requer a resolução de memórias e conflitos inconscientes; aqueles que aspiram a essa realização necessitam avaliar a sua disposição e coragem, decidir o compasso e a intensidade com a qual desejam se confrontar com essa psicodinâmica, purificação visionária, ou “purgação”, na linguagem dos adeptos desses vegetais, da Ayahuasca em particular. Como conhecimento imediato e introjetado, a experiência mística realiza a descrição científica da relação ecológica de todos os seres, revela no sensorium um campo unificado, numa experiência implicando desapego ou ruptura dos conceitos de ego. A percepção, culturalmente reduzida e condicionada, permite apenas aprender e acessar uma fração da realidade, revestida de projeções pessoais e pressuposições, distorcida. A propriedade central dos agentes psicoativos, ocasionalmente denominados enteógenos63 ou psico-integradores, permite a dissolução dos filtros cognitivos, amplificando a experiência. A Ayahuasca dilata a capacidade psicossomática de responder a gradações mais sutis de estímulos, integrando as faculdades sensoriais em processos sinestésicos. Essa amplificação, como uma lupa, permite uma (re)visitação intensiva e absorta dos conteúdos mentais - recordações, ideias, fantasias, emoções, medos e esperanças, sensações em geral. As aberturas cognitivas, éticas e estéticas, do indivíduo, além de influir na intensidade e no foco das percepções, permitem a ressignificação dos conteúdos observados; atitudes são reconsideradas, energias psíquicas são liberadas ao serem revistas – transformadas ou aceitas: eliminando conteúdos incômodos. Uma tecnologia alterando a composição bioquímica dos instrumentos e meios de processamento das informações, permitindo a inativação temporária dos filtros culturais e psicodinâmicos atuando nos bastidores da

63 De ‘en’: no interior de, em; com ‘te(o)’: referente a deus; e ‘gen’: que gera – enteogêno: gerando o divino em si.

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mente, determinando e hierarquizando as experiências quotidianas, poderá, certamente, levar a novas aprendizagens e crescimentos, libertação. A função de uma substância como a Ayahuasca é, com frequência, mal compreendida. Muitos imaginam que pelo fato de terem tido experiências significativas, de alguma forma, transformado, já obtiveram as respostas: várias camadas de condicionamentos separam a psique superficial do núcleo do estado-de-ser. A Ayahuasca e outras plantas instrutoras, na vigência de uma aptidão suficiente, podem levar à transposição destas barreiras, permitindo o acesso aos fundamentos, necessitando-se, contudo, persistência e comprometimento para mudar e remover hábitos renitentes. A repetição metrificada, cronológica, não é suficiente; a repetência da experiência poderá alterar um estado de lucidez em rotina; em âmbitos hierarquizados, irradiando conceptualizações e racionalismos dogmáticos, o efeito poderá ser ofuscador. Algumas vezes a experiência reorienta, outras, mostra possibilidades, aponta caminhos; a responsabilidade de implementar as transformações pertence ao indivíduo; a mudança requer esforço dedicado, pontual. Para os que buscam conhecimento, a caraterística mais importante é a participação honesta; a coragem em olhar o processo, a determinação em mudar valores e comportamentos em função do que se revela. O conteúdo e natureza das experiências induzidas por substâncias interagindo com o cérebro, revelam expressões da psique funcionando em modos e níveis inabituais, extraordinários. Para aqueles cuja intenção é promover transformações seletivas, a Ayahuasca, igualmente o Mescal, podem funcionar como catalisadores naturais, revelando e liberando intuições e conhecimentos oriundos das facetas mais recônditas do psiquismo, permitindo uma perscrutação mais atenta, permitindo a ordenação de uma sabedoria fundamental. O grande valor dessas substâncias, trazidas à nossa atenção pelas comunidades indígenas, é possuir o poder de dissolver os limites da psique, adentrando, como recursos, conteúdos considerados inconscientes, reprimidos ou esquecidos. Os psicoativos dessa natureza, utilizados adequadamente em circunstâncias propícias, possibilitam o reconhecimento das perspectivas metafísicas e configurações universais do psiquismo; caminhos alegóricos, visionados em direção a um céu, implicando escapar de um inferno, ou, orientando o estado-de-ser rumo ao presente, centro presencial, onde as polaridades se completam, e, com amor e bom humor seletivo, permitindo a ordenação de uma atualidade entusiástica, aventuresca e desafiante. Estruturas arquetípicas, narrativas míticas e lendárias do estado-de-ser revelam-se amplamente, em um leque mais abrangente de conhecimentos e recursos para melhor vivenciar e gerenciar a existencialidade à luz soberana da união mística. A experiência mística, em geral, promove opções terapêuticas, por dissolver a fragmentação e a compartimentagem da cognição, revelando mecanismos de defesa, possibilitando o esclarecimento dos sectarismos e pontos de vista intransigentes. Na medida em que o indivíduo consegue ver e rever experiências com criatividade, observando as suas memórias, assim como a presunção e cegueira da sua própria cultura e grupos de referência, necessita, além de tolerar a decepção e o sofrimento, superar sentimentos de desamparo. Aceitar ser responsável pela sua vida, fazendo jus a muita

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alegria e bem-estar profundo, sem nada pagar ou redimir, anuir com o estado-de-ser como se apresenta, reconhecendo os potenciais e responsabilidades implicados, requer coragem e determinação; o gerenciamento emocional produtivo dessas reavaliações, a reorganização psíquica positiva e elevada da existencialidade, implicam em um grau suficiente de equilíbrio e bom senso, promovendo atitudes judiciosas, sem precipitações. Em algumas culturas tribais64, o sistema de crenças e a tradição cultural vigente, determinam uma utilização pragmática da poção, uma tentativa de influenciar acontecimentos triviais, tanto para remediar quanto para enfeitiçar. Para definir a natureza da Ayahuasca, do ponto de vista da experiência, o termo psico-conetor parece judicioso sugerindo possibilidades de conexões entre experiências e conteúdos mentais dissociados, assim como elementos da experiência culturalmente dicotomizados, a antinomia sujeito-objeto, como exemplo. O termo enteogêno afirma e implica na capacidade de fazer surgir a vivência do divino; um sentimento numinoso é possível, não automaticamente gerado pelo uso do chá. Modernamente, usa-se o termo psico-integrador para definir o efeito geral da Ayahuasca e outros psicodélicos. Esse termo parece implicar que algum tipo de integração ou dialética resolutiva faz parte da experiência; a simples observação modifica os fatos. Contudo, a integração, embora sendo um potencial, não é um efeito garantido e categórico: conteúdos precisam ser integrados com esforço próprio, decisão, persistência e vontade de mudança. Tanto o efeito numinoso, quanto a integração dos elementos revelados, depende, em grande parte, da intenção e vontade do indivíduo assim como de um trabalho psíquico de acompanhamento. A florescência inspiradora do Mariri e da Chacrona65, flores de cinco pétalos, induz a esquematizar a fenomenológica da Ayahuasca com o uso de um pentagrama. Uma experiência pentagonal, onde cada um dos pétalos da flor mística representa uma das facetas da experiência: 1: experiência psicossomática [força e saúde]: caraterizada pelo surgimento na consciência de conteúdos pessoais, antes, inconscientes ou pré-conscientes. Uma psicodinâmica curativa onde abreações e catarses são possíveis e positivas, permitindo reviver experiências armazenadas na memória com resolução de conflitos. A catarse pode se precipitar a nível físico para fins de limpeza e desintoxicação. A profundidade deste processo e o seu benefício dependem do indivíduo, da intensidade da busca, da vontade e disposição em render o ego. A abreação implica em um processo regressivo à situação, fonte de um problema ou trauma. Este processo permite reviver experiências, ganhar compreensões, novas perspectivas, construir novos significados em busca de um fechamento ou resolução: liberação de sentimentos associando o indivíduo ao fenômeno. O processo resulta em reavaliação do estilo de vida, com forte tendência às mudanças positivas, renovação dos propósitos e missões de vida; 2. experiência iluminadora [luz e consciência]: faceta cognitiva, noética, da experiência, surgindo

64 Ver: Michael J. Harner. The Sound of Rushing Water - Natural History, July 1968 65 Nomes tradicionais das duas plantas integrando o feitio do chá Ayahuasca – Mariri: uma liana denominada

Banisteriopsis Caapi; Chacrona ou Rainha: uma rubiácea denominada Psychotria Viridis.

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conhecimentos caraterizados por intuições e pensamentos esclarecedores, efetivos e transformadores, embora de confusa descrição. Problemas são vistos de forma ampliada, interrelações entre diversos níveis e dimensões são melhores captadas; desponta uma visão e compreensão mais profunda, abrangente e sábia; 3: experiência estética [beleza e harmonia]: aspetos artísticos e criativos da experiência, arte maior; a coordenação e intensificação do sistema sensorial permitem o afloramento de sinestesias, a Natureza pulsa com beleza, brilho, poder e vida. Novas formas e harmonias se revelam; a música se faz ouvir com todo o seu esplendor, a imaginação regurgita de produções nunca vistas; 4: experiência afetiva [amor e compaixão]: uma intuitiva e palpitante resposta em presença da realidade, instala um profundo senso do sagrado com sentimentos de reverência e libertação, contendo elementos como júbilo, paz e amor, de grau e intensidade maiores, possibilitando à região torácica a sensação de uma flor desabrochando, emanando sensações agradáveis. Um intenso sentimento harmonizador, curativo e balsâmico, se instala, despertando simpatia pela terra, pela Natureza em geral, pelos seres, pelas pessoas; o amor acontece; 5: experiência mística (união e transcendência): a experiência mística proporcionada pela Ayahuasca pode ser detalhada em alguns aspetos essenciais como: a) unidade - uma vivência de união cósmica dissolvendo o senso do ‘eu’ - a consciência permanece, transmuta em outras formas ou vacila entre formas e vazio -, a memória perdura: o sujeito torna-se consciente da sua dimensão maior, sentindo-se integrado à totalidade, um só; b) transcendência - o tempo e o espaço, sujeito e objetos são vivenciados e percebidos além da tridimensionalidade, diluídos num conjunto infinitivo de força e de luz, beleza resplandecente; c) mistério - inefável, a experiência encontra-se além do poder das palavras, essencialmente indizível, podendo, contudo, ser sugerida, apontada pela arte. Os paradoxos lógicos parecem se reconciliar, indivíduos podem sentir-se finitos e infinitos, limitados e ilimitados ao mesmo tempo. A sabedoria do Tão, Nirvana, Buda, Glória, os enigmas da Trindade e segredos de Tupã, parecem se revelar: metáforas, vivências transcendentes, profundas e preciosas. Atravessando momentos iniciais de confusão e desordem, o caos precedente os novos ordenamentos, dadas as condições apropriadas, os agentes psicodélicos são efetivos na ampliação de vários aspetos do desempenho cognitivo: intelectual, artístico, ético ou emocional. Desde os primórdios da investigação das experiências extáticas, sentimentos triunfantes, radiantes de alegria e liberdade veem sendo descritos. Os relatórios pioneiros de Maslow demonstram como as ocorrências de experiências místicas, ou "oceânicas", são valorizadas como fundamentais na história de vida dos seus investigados. Maslow declara ser unânime, na apreciação dos participantes, o reconhecimento de efeitos secundários terapêuticos e profundos, removendo sintomas neuróticos, liberando maior criatividade, espontaneidade e expressividade, na produção de visão mais saudáveis, livres e triunfantes, impulsos em direção da excelência. Por ser a experiência um fenômeno psicossomático, a ampliação da consciência aumenta o cuidado como o corpo e funções: abandonar dependências como nicotina, álcool, a atenção com dietas mais naturais,

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práticas psicofísicas do tipo Ioga, Tai-Chi e outras; a busca de uma relação maior com a Natureza, são práticas comuns entre os usuários da Ayahuasca.

3 - DA INTEGRAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS

A desorganização, desintegração e desequilibro, fundamental do psiquismo civilizado, o afloramento de recatos e recordações, desafiam as defesas do ego e dificultam um alinhamento mais consciente, gerando ansiedade acompanhada de reações semelhantes às enfrentadas em situações inusitadas, de desfechos imprevisíveis, competições, esportes radicais ou testes; experiências geralmente proveitosas por serem esclarecedoras. Reações adversas não foram formalmente descritas com o uso da Ayahuasca, em parte, porque o chá não tem sido promovido como remédio e solução para crises emocionais ou patologias, sendo utilizado com critério e responsabilidade, em doses adequadas; a triagem e seleção dos candidatos possibilitam a realização de cerimônias tranquilas e seguras. A utilização de uma substância como a Ayahuasca é útil dentro de um contexto definido, objetivando a maioridade filosófica, em busca de mais sabedoria; circunstâncias adequadas somadas à correta intenção e dedicação do indivíduo, determinarão se a experiência será mística, evolutiva, ou não. O vislumbre de uma realidade mais holística, poderá mudar a vida da pessoa ao resolver integrar essa visão à sua realidade; não há conexão inerente entre uma experiência mística de unidade, e, a expressão ou manifestação da unidade no cotidiano, qualquer que seja a fonte ou origem da iluminação, as revelações e insights só terão efeitos práticos com a permissão e dedicação do indivíduo. A manutenção da experiência com toda a intensidade, não é possível por definição, a fase apical da experiência mística é transitória, como todos os clímaces, contudo, o efeito da experiência, de acordo com a sua intensidade, é indelével, sendo atuante, funcional, se levada em consideração em todos os níveis do estado-de-ser. Todos teem consciência que cair ao chão, chocar-se com objetos duros e cortantes, causará dores: uma experiência, ou uma simples recidiva, inscreve esse saber na fisiologia geral, permanentemente; a cronicidade da dor não é necessária, tampouco vivenciar a sensação de queda, para operar um direcionamento da dinâmica postural em concordância com este conhecimento. Nada impedirá, conhecendo esta realidade, se resolver continuar sendo temerário, imprudente, correr riscos ou sofrer contusões: opções comportamentais; aprender das experiências é livre, não obrigatório. A capacidade de implementar mudanças e coragem para seguir disciplinas, não são partes da experiência, precisam ser treinadas. Uma disciplina em busca de unidade implica em um trabalho de harmonização, a resolução de conflitos entre diversos aspetos da experiência e relações socioculturais. Não há dúvida que uma experiência mística é correlacionada à neurofisiologia, conecta a um caminho cognitivo, perceptivo, psíquico e neural. Uma vez percorrido este caminho, estabelecidas as conexões, a tendência natural será readentrar a experiência, pela mesma via, ou outras semelhantes. A experiência, reinduzida, tende a se tornar serena, o choque, a surpresa inicial não irá se configurar; com efeito, não se tratam de repetições, mas de reinduções, a realidade mística, em si, será sempre criativa, talvez

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não mais espantosa, no sentido de chocante. Com a prática, a experiência poderá ser enquadrada numa base fisiológica compatível com o cotidiano; é possível escutar uma música conversando, prestar atenção multifocal, sentir-se integrado ao todo, ao uno, continuando a operar os afazeres relativos à individualidade, é certamente admissível.

4 - O PRINCÍPIO DA INDIFERENÇA CAUSAL A experiência mística foi experimentada e comprovada por muitos, em diversas tradições culturais, suscitada pelos mais diversos instrumentos e tecnologias religiosas, como jejuns, asceticismos, longos períodos de orações, promessas, recitação de mantras, práticas de ioga, ingestão de substâncias, inúmeros outros procedimentos. Nesses processos, alguns sectários, adeptos radicais de tradições religiosas instituídas, igrejas politicamente integradas e comprometidas, tendem a confundir as suas próprias tendências culturais e dogmas religiosos com configurações universais, válidas, absolutas e superiores, criticando e desvalorizando realizações místicas obtidas por vias excepcionais, ou não predominantes. Como contributo à pacificação dos conflitos induzidos por dogmatismos, é proveitoso reproduzir um dos argumentos filosóficos de Stace, demonstrando a equipolência das experiências místicas, no âmbito de uma discussão sobre o valor das substâncias psicodélicas em geral – especificamente a mescalina – como instrumento de abertura espiritual.

“O ‘Princípio da Indiferença Causal’ é o seguinte: Se X tem uma alegada experiência mística denominada P1 e Y tem por sua vez uma alegada experiência mística denominada P2, e se as caraterísticas fenomenológicas de P1 se assemelham inteiramente às caraterísticas fenomenológicas de P2, até onde possa ser averiguado pelas descrições dadas por X e Y, então as duas experiências não podem ser consideradas diferentes ou de dois tipos – exemplo: não podemos dizer que uma delas é uma experiência mística ‘genuína’ e que a outra não o é – por surgirem a partir de diferentes condições causais. (...) Tal princípio é introduzido por, ocasionalmente, afirmar-se que experiências místicas podem ser induzidas por produtos químicos, como mescalina, LSD - ácido lisérgico -, etc. Por outro lado, os que alcançaram estados místicos resultantes de longos e árduos exercícios espirituais, como jejuns, orações, grandes esforços morais, possivelmente suportados durante muitos anos, são inclinados a negar que uma substância química seja capaz de induzir uma ‘experiência mística genuína’, ou olhar desconfiados para tal prática e reivindicação”. “Nosso princípio diz que se as descrições fenomenológicas das duas experiências são indistinguíveis; até onde possa ser averiguado, não se pode negar que, caso uma delas seja uma experiência mística genuína, a outra também terá que ser. Decorre que, apesar dos antecedentes modestos de uma delas, apesar do possível, e compreensível, aborrecimento de um asceta, santo ou herói espiritual, ao ser informado que um mundano e negligente vizinho, aparentemente nada fazendo para merecer semelhante conquista, atingiu a consciência mística tragando uma pílula”. Stace, W. T. em Mysticism and Philosophy. Páginas 29-30.

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“Outra aplicação de nosso princípio, surge com relação ao segundo dos três períodos famosos de iluminação mística na vida de Jakob Boehme. Essa segunda iluminação é descrita como tendo sido induzida na contemplação de um disco polido. Ora, olhar para uma simples superfície polida parece, da mesma forma anterior, um tanto modesto e pouco espiritual como condição causal de uma experiência mística; contudo, ninguém, eu imagino, negará o fato de que Jakob Boehme foi um ‘místico genuíno’” - ib; p. 30-31. “Os que pensam impossível que uma experiência com Mescalina possa ser mística e genuína, mesmo sendo indistinguível do ponto de vista fenomenológico, podem também ponderar o fato de que a contemplação de uma corrente de água fez Santo Inácio de Loyola atingir um estado manifesto de consciência mística onde ‘passou a compreender as coisas espirituais’” - ib; p. 70.

A equipolência demonstrada reporta ao núcleo da experiência, aos sentimentos de unidade, entusiasmo e criatividade, não às possíveis interpretações e decorrências que dependem de uma triangulação de fatores.

5 - TRIANGULAÇÃO

A hipótese denominada em inglês de set and setting foi inicialmente formulada por Timothy Leary, nos anos sessenta, no âmbito das pesquisas iniciais com agentes psicoativos, rapidamente aceita pelos demais pesquisadores da área. A teoria geral determina que o conteúdo de uma experiência com substância psicoativa – e por extensão de experiências místicas induzidas por intermédio de outros argumentos – resulta da interação de três fatores básicos. O primeiro, the set, aqui traduzido como sendo o fator pessoal, isto é aquele que o individuo traz consigo, os seus conteúdos [intenção, atitudes, personalidade, humor, etc.]; the setting, o fator ambiental, corresponde a todos os elementos externos capazes de influir a experiência [fatores interpessoais, social, ambiental]. A substância em si – por extensão, os meios e recursos utilizados para a indução da experiência – agem como gatilhos, ou catalisadores, a conectar e pôr em interação os fatores citados numa dinâmica específica, criativa e intensa. É evidentemente impossível definir qual destes fatores é o mais importante na determinação dos resultados sob o ponto de vista qualitativo, dos conteúdos, assim como é impossível dizer qual o lado mais fundamental de um triângulo isósceles. Contudo o âmbito, ou fator ambiental, é a vertente da experiência que pode ser programada, estudada, ensaiada e cuidadosamente preparada para um melhor proveito. O Fator Pessoal: tanto as substâncias psicoativas quanto as técnicas de concentração mental, meditação e contemplação, favorecem a conscientização de informações

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anteriormente ocultas, desencadeando uma enorme variedade de manifestações66. A psique torna-se objeto de observação e, por isso, sujeita à transformações. A fluidez e a qualidade dos deslocamentos dos ‘psiconautas’ nos labirintos da psique dependem, principalmente, do fator pessoal – valores, critérios, atitudes, aspirações, expectação, intenção e ética - assim como os registros da experiência de vida, mecanismos condicionantes em operação, recatos e defesas: fatores determinantes da liberdade de opção, qualidade, riqueza e legitimidade das interpretações: os desafios do indivíduo. Elementos que irão influenciar os movimentos, investimentos ou a fascinação da atenção, eventualmente, modulando o modo de lidar com a experiência mística O Fator Ambiental: corresponde aos fatores externos capazes de influenciar a experiência: o âmbito onde as substâncias são ingeridas, os templos; a atmosfera cultural, emocional, filosófica, metafísica e religiosa; o modo como o individuo é atendido e tipos de liderança enquadrando e disciplinando a experiência. Indivíduos se impressionam67 sob o efeito das substâncias ou práticas reveladoras da psique, estado decorrente da magnificação perceptual antes mencionada: esse efeito, acoplado ao aumento da perspicácia, capacidade metafórica, alimenta o imaginário, uma geração de psico-associações criativas. O tipo e qualidade do sistema de crenças, a cosmovisão pertinente ao âmbito no qual a experiência irá ocorrer, a dinâmica dos trabalhos, são fatores influentes em relação à harmonia e tranquilidade da experiência. Uma liderança não interventiva favorece o acesso e estudo dos conteúdos pessoais, o exame e integração dos caminhos e conceitos próprios. Rituais inspiradores, holísticos, ambientes naturais, atividades espontâneas e criativas, permitem a focalização da atenção para regiões psíquicas genuínas e interessantes. As substâncias, técnicas, ritos e fatores sacramentais: a eficiência e qualidade dos meios indutores e amplificadores, que sejam práticas de ioga, mantras, dietas, e/ou, a comunhão de vinhos psicodélicos, substâncias, lugares específicos, âmbitos naturais ou arquiteturas, os estados fisiológicos, influenciam fortemente o desencadeamento da experiencia mística. Em relação às substâncias, os fatores dependentes: plantas, lugar de origem, hora da colheita, preparo das poções, grau do apuro e tipo de água utilizada – ressaltando o pH e teor mineral da água - influenciam a qualidade do chá e os seus efeitos. A quantidade utilizada durante uma cerimônia é um fator decisivo: quantidades moderadas permitem uma observação melhor e um estudo detalhado da sua própria psicodinâmica; quantidades

66 Psicodélico: revelando e libertando conteúdos: ou efeito psicodélico: gr. psukhê (psique) + gr. dêlos (manifesto ou

visível) - manifestando a mente. 67 Essa impressionabilidade não significa que o ayahuasqueiro – ou usuário de outras substâncias – seja mais facilmente

suscetível às influências que o indivíduo comum ou os fieis das religiões de massas: o grau de credulidade, ingenuidade,

ou cepticismo, de um indivíduo reflete opções cognitivas, filosóficas, assim como traços de personalidade profundos e

estáveis, até mesmo inerentes, que não serão transbordados pela força e influência das técnicas meditativas ou

enteogênicas: são, justamente, estes conteúdos profundos, inclusive tendências básicas como credulidade ou cepticismo,

que determinam a maneira do significar da experiência.

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maiores são necessárias para experiências mais intensas, “viajar no astral” usando a linguagem dos usuários de algumas seitas. Portanto, os 1: conteúdos próprios, a intenção pessoal e a do grupo, junto com; 2: a configuração do ambiente, e, 3: os meios sacramentais e ritos utilizados: configuram um processo singular, uma gestalt, um estado funcional transpessoal e triangular: reconhecer o fenômeno, estar em sintonia cognitiva e harmonia no ponto vetorial dessa triangulação, é, certamente, central para o acontecimento de uma experiência coerente, eficaz e bem-sucedida.

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DA CRIATIVIDADE DOS MITOS Tu és Aton, Que vives eternamente. Criaste o céu longínquo, Para levantar-te dentro dele E poder tudo contemplar de cima. Hino a Aton de Akenaton (1370 a.c.)

1 - ESPIRITAR OU SABER Nas arraias metafísicas da razão, a constituição cósmica se apura numa trindade irredutível, extrema, onde um foco de lucidez delimita e polariza o real; fenômeno simbolizável no ideograma [.|.]. Esse raio de lucidez cria um fluxo de comunicação interpolado: a estruturação da ordem universal acontece congenitamente a este fenômeno: simultaneamente, uma cibernética polar, um processo ideativo e regente. Uma dinâmica trina, englobando o eu na ciência da existencialidade, num dueto de união e oposição. A grande questão existencial, radicalmente problematizada, converge na primeira distinção mítico-genésica intuída nestes confins de atualidade e lucidez, nos limites mais abstratos, intensos e concentrados da contemplação, onde, dissolvidos no campo eidético, os perceptos, conceitos e semes, não mais se sustentam, transmutando-se no grande ideograma terminativo [.|.], arquétipo primo e generativo. A configuração mitológica órfica, radicalizada em dualismo, elaborada em teologia teísta e teocrática, em sintonia lógica, histórica e decorrente, com a representação metafísica kantiana, transcendente-transcendental, configura o fundamento filosófico e histórico da

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apuração civilizacional dominante e vigente. Nessa estruturação civilizatória, o princípio (arché) deportado e excluso, torna-se incompreensível e inalcançável; o contato intuitivo com a fonte de conhecimento imediato permanece ofuscado, desvirtuado, por apego a uma racionalidade prosaica, calculista, alimentando a reatividade instintiva, egóica. A distinção logocêntrica68, segrega as criaturas, fragmentando o estado-de-ser unitário, num hipotético ser-sem-estado, ou, com estado sutil e final imaginado além, em reinados antitéticos aos da realidade existencial; o estado-de-ser se reduz, essencialmente, a uma figura espiritada, em busca de redenção, sem rumo imediato, angustiosa e carente: uma abstração imprópria ao saber filosófico, à realização ou ciência de si, suscitando irrealismo sectário e irracional, idealismo dogmático. Inversamente, na mitológica monista, poética, típica da perspectiva metafísica cosmo-existencial, fonte da filosofia essencialista e das decorrentes religiosidades panteístas, a compreensão, extensa ao extremo, rende-se ao saber eidético, fenomenológico, o princípio (arché) permanece em inserção criativa, apreendido de imediato, contemplado e comungado em todas as relações e trocas. O estado-de-ser original permanece lúcido e sensato, aberto à hiperconsciência: a distinção justifica a criação sem separar, ou dicotomizar, suscitando atos criativos centrados e em harmonia, motivando sentimentos de inclusão e adequação, exaltando a essencialidade do liame universal regido pelo astro rei. Após a gênese, o mito batismal, como um sortilégio, uma influição magnética genérica, é a força mais profunda e interna do verbo, apoiado no silêncio, ancorado no berço, moldando a trama e a extensão do sentido vital, como um mapa marítimo, um referencial estrelar, uma constelação no céu. As duas perspectivas metafísicas, dualismo e monismo, investem-se de formações míticas nas brotaduras mais extremas, refletindo um rito de passagem nas raias da compreensão, na fronteira do ignoto, onde a razão mais abstrata, dilatada em busca de saber, evapora, se dissolve. Estipulada, a narrativa mítica, retorna do negrume, como um marco iniciatório, que se inscreve na trama metafísica, configurando um mapa fundador; a fundação batismal determina como o homem comum intui, pensa e vivencia o estado-de-ser. O conhecimento possível resulta subsequente, determinado por essa forma mítica, vindo da cosmovisão fundadora, ecoando um valor supremo de verdade: 1: lúcido, advindo da luz diáfana da hiperconsciência surreal, ou, 2: escuro, inquietante, brotando das sombras da inconsciência irracional. Concepções diversas, gestando assentamentos metafísicos divergentes69, incitando cosmovisões produtivas, e, por decorrência, ações civilizatórias, férteis ou não, na dependência do seu valor de verdade, da aptidão existencial afirmada, ou

68 Termo típico de Jacques Derrida (1930-2004), que questiona a centralidade do Logos no pensamento ocidental, como

decorrente de uma consciência interiorizada, expressa através da dos canais lógicos e linguísticos, gramaticais, em

busca de investigação ontológica. 69 Num grau máximo de sapiência, uma complementaridade se esboça, coordenando o fenômeno da auto-

transcendência.

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nução do estado-de-ser: concepção imaculada, talante virtuoso; concepção pecaminosa, corruptela do estado-de-ser original. Um agregado de diferenciais, singulares, inatos, e uma mescla de fatores emocionais, culturais, históricos e geográficos, determinam a perspectiva metafísica e filosófica, a vertente mítica e paradigmática, que norteará a existencialidade; mas, a aplicação de um batismo, como um gravame averbando um orfismo drástico, aguçado em teologismos dogmáticos e dualísticos, configura um golpe metafísico intenso na forma existencial natural, como um talho de espada aplicado no estado-de-ser, apartando, de um lado, cabeça e ombro direito, e, do outro, o ombro esquerdo, coração e corpo. Separado, dicotomizado e rompido, o grande estado-de-ser unitário sangra, perde a original coerência, pureza e unidade metafísica existencial; o corte, aplicado no coração do estado-de-ser, condiciona um estado ontológico caduco e dúbio como areias movediças. A confiança natural, decorrente da consciência original, ciente da harmonia e atributos cósmicos do estado-de-ser, é rachada numa impressão metafísica degradante; ruptura confirmada no compartilhamento cultural e aceitação deste degredo, separação dramática, resultando em fragmentos: de um lado, um deus criador incognoscível representado por teóricos e teólogos apregoando possuir acesso privilegiado e hermético a uma verdade absoluta, do outro, o universo desprezado das sensações e aportes intuitivos das criaturas. Textos autoritários, sofísticos, gerando e sustentando hipotéticos vácuos teológicos, postulando definir a origem, função e metas da existência: elucubrações rompendo o círculo dialógico, civítico, espontâneo, lúcido e criativo, típico das comunidades, para fundamentar, nutrir ideologicamente, estados societários hierarquistas e nepotísticos, engendrando violência, repicando infindos desrespeitos e abusos. A ruptura metafísica-teológica do estado-de-ser primevo e original, ou o simples desconhecimento, difunde, em cascatas, divisões fragmentando a totalidade da estrutura cognitiva, fomentando a desintegração, fonte de todos os sectarismos eclesiásticos e seculares, inclusive o cientificismo, ou cientismo, elevando e introjetando a metodologia típica das ciências aplicadas à esfera existencial da busca filosófica, da consideração própria, rompendo o estatuo existencial naturalmente integrado, denegrindo e objetificando o ethos mais originalmente humano. Quando, por hábito, descaso, ou artificialmente inculcado nas deliberações existenciais envolvendo o estado-de-ser, implicando a presencialidade do sujeito, o paradigma científico excede, transmuta-se em insensatez, frente à impossibilidade teórica de incluir o sujeito observador como um dado objetivo das coordenadas: tal intento, profundamente inadequado, degrada o estado-de-ser original em recurso tecnológico a serviço dos ideólogos da sociocracia. Indiscutivelmente eficaz na manipulação tecnológica dos elementos, construção de artefatos, o método científico é inútil para meditar e contemplar a Natureza, num sentido abrangente, filosófico e metafísico, por desconsiderar e pôr entre parênteses, a natureza humana, fenômeno constrangendo universalmente a totalidade da experiência. Embora produtivo, o modelo científico, é, em si, fundamentado em axiomas improváveis como

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pressuposições implícitas, precipuamente, na hipótese e crença numa realidade radicalmente independente do psiquismo observador. A caraterística fundamental, o destaque ideológico do método científico, além do uso pleno dos logicismos e linguagem matemática, apregoa objetividade e neutralidade, apesar das dificuldades e limites em operar com plena e radical objetividade. Atos de fé promovendo uma ideologia societária, divulgada como um credo, assim tipificada: 1: o cientista é capaz de objetividade e neutralidade; 2: o modelo científico é suficiente para o conhecimento das leis da Natureza; 3: os eventos acontecem de acordo com as leis naturais, sem interferências da consciência; 4: a consciência, epifenômeno consequente, não é producente em relação às leis da evolução; 5: a Natureza é amoral e inconsciente. Ora, o que a metodologia científica extrapolada em cientismo como atitude filosófica, pode trazer na prática da arte, na vivência do amor, no cultivo da legalidade e da fraternidade? Em que a objetividade científica, como maneira de ser, pode contribuir na geração do entusiasmo, êxtase, paz interior e serenidade; na elaboração de cosmovisões onde o outro passa a ser reconhecido como idêntico, na compreensão de que não somos sujeitos separados; na transcendência dialética das diferenças na vida social, política e econômica, na elaboração de uma metafísica, de um novo mito, capaz de impressionar e mudar a humanidade, no surgimento de uma ética efetiva e prática, se por esse paradigma científico, a Natureza é dita amoral em primeiro lugar? Necessitamos encontrar uma nova exatidão, uma ciência eco-humanista. Mas, a visão mítica, junto com o credo cientificista, dominando a civilização vigente, desvaloriza a humanidade, parecendo funcionar como um anátema introvertendo o princípio aristotélico da verdade por correspondência: o ser humano age como se fosse um acidente danoso, um fracasso essencial, pelejando, sem sucesso, assentada, há milênios, em zona de conflitos, vivenciando mitos de desregrados e banidos, suportando hierarquias repressoras, castigadoras; impostura, violência generalizada, desonram e desrespeitam à vida. O marco batismal da perspectiva metafísica vigente, ainda invicto, enredado nas tramas da racionalidade moderna, segrega e desterra o sujeito em observador neutralizado em recurso tecnológico a serviço dos ideólogos e sociocratas, tiranos herdeiros dos teocratas. Inimaginável a intensidade de reprogramação necessária à transformação de um indivíduo imbuído dessa cosmovisão dicotômica, num ser humano ciente, de consciência iluminada e honrada, irradiando sentimentos de integridade e criatividade original: um estado-de-ser permitido vivenciar uma alegria natural, êxtase, expressando intuições significativas, compartilhando momentos, recursos e virtudes, a partir da serenidade do seu lar existencial. Um método filosófico transformador, encontra-se no reconhecimento e compreensão da distinção paradigmática entre 1: o essencialismo, resultando num panteísmo naturalista e humanista, e, 2: o dualismo, estrutura fundadora do teísmo supernaturalista e salvacionista: na visão cosmo-existencial, essencialista e panteísta, existir como estado-de-ser planetário revela ser uma experiência legítima, pródiga, essencialmente positiva, podendo ser extática. O panteísmo enfatiza a apreciação direta e positiva do ato de viver, uma abordagem esquematicamente expressa como: “viver aqui é bom; é o nosso lugar”; o além, quando

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cogitado, é um momento futuro da mesma experiência de vida; além-mundo e além-túmulo não fazem parte das cogitações do filósofo, que, neste ponto, se declara agnóstico. A vida, experiência essencialmente sensorial e dual, feita de dor e prazer, poderá, em diversas circunstâncias, ser considerada dolorosa, sem sentido, inútil, ou, magnífica, plena de significados, cada um escolherá o que enfatizar. Por ser realista, o meditador não generaliza afirmando ‘tudo é bom’ ou ‘nada presta’; a dor, quando surge, se enfrenta com os recursos terapêuticos da medicina, psicologia e filosofia, das ciências da natureza e humanas, no sentido de lutar e curar, ou, aceitar o que não pode ser mudado; manter o bom humor, a criatividade, a arte de encontrar e vislumbrar o belo, o bem e o bom que haverão de existir, em algum lugar do estado-de-ser. Parte significativa das dores suportadas pela humanidade é autoimposta, poderiam ser evitadas no cultivo das virtudes filosóficas, na ampliação da consciência em busca de estética, ética e civítica. O surgimento de uma mística panteísta – na qual a incomensurabilidade do conceito Kósmos passa a se tornar equivalente ao conceito Theós - permite criar a base de apoio natural a partir da qual fazer incidir o foco da investigação sobre o valor e a aptidão dos mitos fundantes, das narrativas sobrenaturais vigentes70, na configuração e saúde filosófica do estado-de-ser, na constituição de uma sociedade civítica e cultura ética, assim como abrir novas vias para meditar paradigmas alternativos aptos a gerar outros modelos, sistematizando a investigação. Os axiomas do modelo metafísico essencialista poderão ser assim definidos: 1: existe um nível de realidade interdependente em relação às nossas próprias mentes; 2: a Natureza é, numa certa amplitude e grau, ética e consciente, dirigida com inteligência; 3: os eventos acontecem de acordo com as leis naturais, com certo grau de interferência da consciência; 4: a consciência é fenômeno coaxial no sistema planetário; 5: a consciência tem efeitos estruturais em relação às leis regendo a evolução do ecossistema planetário; 6: os dois modelos: científico-geral, e científico-essencialista, são necessários para o conhecimento mais profundo, completo e operante das leis da Natureza. O modelo científico geral, extrapolado num cientismo enraizado em mitologia dualista, ademais de rejeitar e obstar a abordagem praxeológica, participativa, na investigação da ação humana, não reconhece plenamente o alcance da relação criadora enlaçando os objetos investigados com o observador investigador, i.e., não considera os limites da consciência e instrumentos cognitivos de busca71; o modelo metafísico essencialista se consagra ao estudo e reconhecimento dessas relações criativas no objetivo de desvendar a coordenada metafísica, as ponderações filosóficas e práticas mais eficientes em busca de uma realização civilizacional eco-humanista, harmoniosa. À consciência humana mais aprimorada, faz jus o sentimento e conhecimento, de que, com as plantas, animais, sistema planetário, o estado-de-ser peculiar, integra um fenômeno

70 Especificamente, o mito da queda ou da expulsão do paraíso. 71 O modelo científico entrou em crise com o surgimento de novos avanços no campo da física da Relatividade feitas

por Albert Einstein; da Mecânica quântica de Niels Bohr e da matemática por Gödel, todos, evidenciando fenômenos e

incognoscibilidades abalando a certeza, a objetividade, a neutralidade e a realidade dos resultados.

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2 – PRESENCIALIDADE E CIÊNCIA METAFÍSICA Não se define a contento o que é realidade, apenas fragmentos expressos por meio de negações; realidade é o que permanece: mas, o que permanece quando se negativam as ilusões, o que são ilusões? O infinito nos envolve insulando de um véu incognoscível o astro rei e a luz da razão. Poderia o real ser aquém de abissal? Como imaginar provável justificá-lo? Oh, giros infindos, vertiginosos, o que significam? Como perduram, iniciam, terminam, e para que? Desde a germinação das raízes, círculos de eventos operam transmutações em giros infinitos; há necessidade de transformação e periodicidade na Natureza, tudo perambula, como nos antigos jardins das academias, nas danças dos solstícios – hoje é primavera, amanhã inverno, findou mais um ano, de uma longa sucessão que recomeça, em lances impenetráveis. Quem terá o poder de evitar os giros da fortuna? A fama esmaece, dissolve-se em opróbrios, ou, interesseira, proveitosa, cresce em glórias, enaltecendo mais um tempo, concretizada em pedras chiques e placas de metal apostas nas lapelas, nas esquinas das ruas, praças, museus; para retornar ao silêncio, ao vácuo, ao reinado absoluto: o âmago da existência é o vazio. Esvazia-se a lembrança dos ancestrais, no tempo e no silêncio de onde surgiram; no palco, outros recém nascidos, igualmente, destinados a alimentar o porvir e o nada. Nas últimas curvas do destino, nos anos conclusivos, é duro, insano, querer viver por viver, encobrindo as dores, as rigidezes anunciando a proximidade do grande rigor, com distrações; amparar-se nas horas e minutos, como a figura do filme, que agarrada aos ponteiros do grande relógio de uma torre, debate-se, agitada e sem paz. Sensato, prudente, é aceitar o destino, anuir, semeando e ceifando azos, em partilhas justas, desditas e fortunas, honrando as sinas e a vida, não se retirando sem a ordem e ponderação necessária. Confrontar a natureza do incognoscível, do destino e da sorte, com gesto preciso, arte, poesia, amor, à luz da razão, expõe, claro, a coordenada equacionando o núcleo da realidade. As necessidades existenciais, o rigor da meditação, não permitem aos filósofos e pensadores alhearem-se em ilusões; dessa possibilidade de lucidez, mesmo na ausência de definições plenas e satisfatórias, decorre a intuição de que a realidade pode ser nucleada de modo adequado e justo, perfazendo um marco de concordância, como um mínimo denominador comum, a partir de onde explorar a relatividade dos pontos de vista. O núcleo possível de concórdia surge como um fenômeno, que se revela na arte da contemplação criativa, na confluência e correspondência das intuições com a atenção mais vigilante: 1: intuição: na sincronização dos sentidos: o que se experiencia, vê, escuta, ouve e prova agora; 2: atenção: a vontade, o exercício da razão qualificada, o dom de admirar e visionar com os talentos reunidos da cognição: unida, sincronizada, a intuição criativa e atenta, revela o centro presencial onde se configura a existência, atual e real. Na apreciação do fenômeno, revela-se a realidade, como existe na nossa escala e grandeza, em concordância, na intersubjetividade das nossas identidades, presente. Esta busca atenta de sincronização e concordância pode ser denominada de atitude de base. Pródigo, esse ponto intuitivo e atento de realidade, calibrado e encontrado por intermédio da atitude de base,

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poderá acolher todas as nuanças perceptivas e diversidades de gestos; a profundeza e riqueza das cores, a sutileza inebriante das sombras e jogos de luzes, os verdes, amarelos e azuis, a beleza dos tons e semitons, a magnificência das superfícies, as consonâncias e limites entre as formas, as sutilezas conceituais, mas, em todos os movimentos, exercitando a atenção, tocando a vida, aportando na realidade, no centro presencial: uma gestalt funcionando como mínimo denominador comum, que poderemos concordar em aceitar como medida, calibração, unidade de valor existencial. Esse centro presencial, atual e original, facultando as múltiplas experiências existenciais, poderá se refletir em diversas abstrações, germinar nas imaginações singulares, porém referentes a essa base nuclear, familiar como uma casa, fenomenológica e real. Os talentos do existente: a ação e a volição, a razão lógica, lúcida, a arte de apreciar o Belo, a capacidade de prever, a prática da empatia e respeito, e todas as possíveis conjunções; os recatos, expectativas, memórias e desejos: todas essas especificidades serão capazes de agregar infinitos potenciais, realidades únicas, relativas a interesses diversos, fascínios e circunstâncias. Vivências míticas, poéticas, parecem antipódicas a essa definição pontual do real, centro presencial; mas, estimulando abstraimentos e devaneios aniquilando as concretudes, reportam, por antítese radical exigindo compenso imediato, à natureza viva e transmutante do cotidiano, virtude transmutativa, fonte primeva, o ponto perpétuo e central, a origem evocadora de todos os sentidos, conceitos e símbolos do imaginário, num círculo existencial criativo, plasmando a existência, do real ao surreal. A força das memórias, associações, a qualidade dos mitos, a intensidade das buscas, escolhas e direções, determinam, em graus a serem conhecidos por experiência, a sanidade, o equilíbrio e a ética das realidades cursadas. Como ter fé em uma plêiade de velhos dogmas, sem pressentir, nesses ontologismos, uma amedrontada e primitiva especulação, recatando ignorância e instintos de preservação em defesa de esperanças descabidas, superlativas: apegos? Não será mais probo, sensato, honrar a filosofia, jamais cedendo sequer uma gota de razão sensível e atenção, de que mergulhar em poças de crenças, mareando ao sabor de desejos vãos e quiméricos? Havendo lugares, vozes ocultas no mistério, terão de se revelar, tornarem-se reais, palpáveis. Nessa eventualidade fantástica, o que era oculto irá configurar-se ao redor de novas distinções e limites, novas perguntas e sombras; e uma sombra equivale a outra. A inteligência e qualidade das direções visionárias, a sensibilidade dos mitos, aceitos por tradição ou inércia, heranças que se carregam, ou como escolhas confirmadas, determinam a lucidez das formações civilizatórias, a ética e a veracidade das realidades cursadas, constando-se os decursos resultantes: 1: lugares harmoniosos, lúcidos, bem-fazentes, de paz e serenidade72; ou então: 2: lugares opositivos, prejudiciais, violentos e carentes: nessas conexões e distinções, revelam-se o alinhamento e adequação das posturas, a

72 Potenciais claramente esboçados na antiguidade, a exemplo da Jônia, embora ceifados durantes as invasões pérsicas

polarizando as sutilezas da razão lúcida nos esquemas turvos e primitivos do maniqueísmo teocrático.

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perfeição dos gestos, a direção das visões e gestalts, a adequação do Budô73 – saber ou espiritar. Conota-se bem: o real, sintonizado pelo exercício da atenção, é fecundo de legitimidade e concordância, de presença evidente; na gravitação dessa atenção de base, a realidade reveste-se de modos próprios múltiplos, processos interativos, espontâneos, pouco monitorados e não direcionados - “o mundo é um só, cada cabeça é um mundo”. O filósofo sabe diferenciar o que é universal, do que é próprio, escolher uma postura, desenhar um projeto dignificante, em acordo com a retidão de intenção, em harmonia com a medida e conhecimento primeiro, original, do estado-de-ser, conotando uma anuência com o real, plena atenção, em si e na circunstância. A realidade plena é o que se manifesta e revela à consciência quando se reconhece, recebe e justamente aprecia, a natureza do estado-de-ser, dedicando o ponto de atenção, à junção harmônica dos talentos existenciais, em correspondência ao que é manifesto, atual e presente, consagrando a vivência à apreciação da união, originária e intata, vigente no imo do estado-de-ser; operando desta forma, introjeta-se a atitude de base, referente às relações entre os talentos do estado-de-ser e o manifesto: o âmbito íntimo regendo o estado-de-ser sintoniza, em harmonia e concórdia unissonante, o centro presencial – Eu Sou Natureza. 3 - PROCESSOLOGIA EXISTENCIAL O estado-de-ser ciente, o indivíduo atento, beneficia espaço-tempo, ethos, o lugar vivo onde devidamente iniciar a investigação do real, revelando ser fenômeno dado e construído, numa proporção e equilíbrio necessitando experiência, um grande círculo criador. No núcleo da realidade, o estado-de-ser, concentrado numa atitude atente e intuitiva, atitude de base, beneficia espaço/tempo onde impera o ponto de sincronização, aportando na presencialidade potenciais geradores de harmonia. A definição, ou discriminação, metafísica prima determina um centro de gravidade existencial, uma atitude de base, nuclear74, revelando a atratividade, a partir de onde o estado-de-ser poderá saber ou espiritar: 1: sabendo: beneficiando com virtude o centro presencial; 2: espiritando: estorvando a realidade existencial a favor de um hipotético além: castigos infernais ou cândidos edens. É possível observar, pensar, analisar a vida, filosofar, através dessa ciência metafísica; um saber fundamentado em axiomas úteis e sensatos, sujeitos a debates: saberes apoiados em apreciações pragmáticas, resultados acontecendo na experiencia vivencial, na observação histórica. A ciência metafísica prima como modo de adquisição de conhecimentos existenciais de profundidade filosófica; uma via na qual processos operantes e manifestações, vetores de mudanças, expressões surrealistas ou hiperconscientes, tradições e mitos, podem ser devidamente considerados, em vez de

73 Definição em 12 – Apenso.. 74 Seja centrada, atenta e intuitiva, de acordo com a perspectiva cosmo-existencial, decorrência religiosa panteísta, ou,

dissociada, rogativa e suplicante em concórdia com a perspectiva transcendente transcendental e decorrência religiosa

teísta.

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desprezados e desconsiderados. Esse modelo científico-metafísico, eco-humanista, pleno, antipódico dos reducionismos, incluindo a totalidade da cognição, origina um âmbito epistemológico onde a dualidade racionalismos versus empirismos se resolve: é na razão qualificada, dotada da capacidade de selecionar mitos atuantes, que se assentam os passos fundamentais a partir de onde dirigir um intento em busca de uma realização pessoal e social examinável. O fenômeno humano, capaz de gerar um buraco na camada de ozônio, adoecer a biosfera, é entendido cientificamente, como um fenômeno criador, ou co-criador, apto a se reger, governar e dirigir, em busca de uma expressão sempre mais virtuosa, de acordo com princípios definidos. O poder que antes pertencia a um deus ideal, infinito, afastado e distante, ajuizando o destino de uma humanidade primordial, posta no banco dos réus, numa tribuna regida por uma classe sacerdotal prepotente e corrupta, passa a ser o poder de uma humanidade natural, sábia, divinizada com toda a natureza mineral, vegetal e animal, uma humanidade real, centrada e presente, apta a se responsabilizar pelo seu próprio destino, a partir de uma autoimagem digna, um elevado amor-próprio, coroada da consciência dos seus limites e fragilidades, de um profundo respeito à sua ignorância essencial. A ciência metafísica, eco-humanista e essencialista, configura-se da seguinte forma: 1: o processo de realização existencial é decisivamente influído pela confirmação, escolha ou rejeição, das verdades míticas introjetadas; 2: o indivíduo apreende o Cosmos a partir destas fundações míticas, exercitando e organizando os dados racionais [ideais] e sensoriais [sensações e emoções] de acordo com as virtudes do mito acolhido; 3: o estado-de-ser alinhado em concordância à perspectiva cosmo-existencial, monista, evolve sem prejuízos acrescidos, as dubiedades dualísticas, embora num ritmo complexo, de acordo com a criatividade da ordem cósmica, ou do Logos dos antigos; 4: nesse processo de realização, conhecer a si mesmo é reconhecer a instalação de uma progressiva correspondência entre o mundo experimentado e a ideia, ou a mitologia, fundamental; 5: o exercitar desta conetividade entre os campos causais, os mitos, e o plano existencial, resulta num encontro místico, de união, agindo como um abraço conetivo a permitir um fluxo intenso entre as ideias e o real, parênteses existenciais do estado-de-ser; 6: a congruência, integridade e o bem-estar decorrente, estabilizam um processo onde a virtude panteísta e positiva do estado-de-ser reflete-se na vida familiar, social e natureza imediata, motivando uma ampliação sintética e harmonização da consciência; 7: o processo induz uma conetividade sutil entre o campo da causalidade [o espaço mito-volitivo a partir de onde se afirma e potencializa a identidade e a intenção] e o indivíduo, desvendando criatividade: um estado-de-ser integrado, uma vivência plena, espontaneamente feliz. Um movimento atuante e entusiástico, um processo de realização, uma filosofia fenomenológica e positiva, agindo e florescendo em serenidade interior e paz social, mantendo uma postura sóbria, de respeito e espanto: a postura equipolente dos céticos, em relação aos ontologismos.

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MENSAGEM ESSENCIAL

O belo é uma alegria para sempre, Cresce sempre o seu encanto, Nunca está aniquilado, Nos reservará sempre satisfação Refúgio tranquilo, transporte, restauração.

John Keats (1795-1821)

1 - DOM OU DOMÍNIO

Desde o início da filosofia, pensadores se confrontaram com os potenciais e limites da razão. Kant propõe uma observação epistemológica evidenciando o feitio estrutural do entendimento: o aparelho cognitivo molda e formata os dados do intelecto em estruturas temporais e espaciais; uma realidade plasmada, como um gel pastoso contido nas mãos em conchas da cognição modeladora; formas e durações relativas aos intentos psíquicos de reter o inexorável deslizamento do real em direção ao vácuo do esquecimento, aniquilação. Nas derradeiras razões existenciais, fundamentos e origens, avaliação do tempo, espaço e escalas de grandeza, a racionalidade confronta limitações e incertezas: uma tendência estrutural em afunilar estados embaraçosos, dilemáticos, onde revoltar-se contra o destino seria, igualmente, renegar-se. Na incapacidade em conetar proposições antípodas e associá-las em logicidade significativas, o raciocínio se confronta às antilogias: afunilando em regressos infinitos; enclausurando em circularidades, como uma fita de Möebius; fragmentando, ou, fugindo da náusea e claustrofobia cognitiva, elevando suposições a estatuto de certezas, cristalizando em proposições eficientes, mas, dogmáticas, estabelecendo regras consensuais, assumindo neutralidade científica; buscando alívio, asseverando introjeções irracionais, gostos, anseios e preferências, afinidades políticas e religiosas expressando ancestrais escolhas metafísicas.

A razão científica, lógico-matemática, é, em si, genuína e inteira nas suas aspirações, assim como, por extensão hipotética, pesquisadores e pesquisas: nas ciências aplicadas e especialidades, o sucesso, prático e teórico, exigindo resultados e geração de paradigmas eficientes, implica em uma disposição sustentada, motivação e dedicação plena às

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pesquisas e estudos; ciência, não se faz levianamente, como segunda intenção, atrelada a outros objetivos considerados primários. Mas, as formatações científicas, mesmo controladas e provisionais, generalizam, simplificam e restringem, evitando as inquietudes teóricas que circunstanciam as sínteses universais: burilada em gabaritos e uniformizações, a criatividade magna, vicejando no imo da complexidade, se reduz. O método científico, embora preciso, claro, encontra-se atrelado a uma estrutura produtiva, pragmática, ansiando lucros, satisfação de desejos: circunstâncias permitindo que as demandas de pesquisas e pré-projetos escapam do crivo virtuoso da razão mais sensata e prudente. Com tecnicidade, mas vacilante, como o trem das cordilheiras, a aventura científica segue uma direção dúbia e incerta, carente de saber. No ato de significar e simbolizar, os elementos do cogito, compostos [por definição filosófica] de coisas naturais e culturais, apreendidas e estruturadas nos acordos da perspectiva metafísica vigente, advogando pureza e neutralidade, reduzem a realidade em percepções levando a objetificações, cuja produtividade e eficiência condicionam os enquadramentos causais, cognitivos e generativos: circularidades pragmáticas e ideológicas. Apesar de uma presumida honestidade relativa às verdades científicas, o enquadramento político-social, necessariamente subvencionador, não está enraizado na lucidez inequívoca e sistemática da razão qualificada e da ética, mas, sim, em hábitos superestratificadores e filocráticos. Não prevalecem requerimentos e demandas de equilíbrio e sabedoria, como realização pública e privada, em nenhuma esfera, mas, proficiência, competitividade e produtividade: a atividade científica, genericamente, resulta alienada, à mercê de ordenamentos irrefletidos: ânimos ingênitos, agregados na afirmação de frações e grupos conglomerados em organizações políticas e econômicas, aspirando impulsivamente por supremacia, domínio biológico e territorial, originando o advento de renitentes prolongamentos cientificistas embrulhados em tecnicidades, logicismos produtivos e ideologias.

O intelecto, imerso em determinismos biológicos, como diamantes em cascalho, é refém de animálias ocultas sobre os vernizes da civilidade75. Enquanto as funções intelectuais são processadas pelas áreas recém-desenvolvidas do cérebro, a conduta afetiva, emocional, continua atuada através do sistema neural primitivo. O surgimento da autoconsciência e da capacidade de imaginar e analisar a si mesmo como um processo em andamento no espaço/tempo, trazem, na esfera da existencialidade dois grandes potenciais: 1: a capacidade de prever, planejar, garantindo à humanidade o domínio do ambiente planetário; 2: o dom de reconhecer o ethos mais condizente, a perspectiva metafísica mais lúcida, resultando em critério de valores e comportamentos mais sóbrios e harmoniosos.

75 Quem não conhece esses sussurros interiores a emitir opiniões coalhadas de caprichos, cobiças e ambições? Quem

não percebeu as comunicações paralelas e discretas, dos integrantes dos círculos mais internos de grupos ou frações,

olhares e cochichos reforçando diretrizes e estratégias ocultas, íntimas, subjacentes às claramente manifestas? Como diz

Hegel: "o que parece ser a ordem pública é um estado de hostilidade universal, no qual cada um trata de se apoderar do

que pode, impõe sua justiça sobre a singularidade dos outros [...] e afinal, constata que essa mesma singularidade acaba

por desaparecer sob as demais".

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Ainda apegada e inserida na animália, submersa, a racionalidade vem potencializando arcaicas estratégias evolutivas: necessidades de sustentações, nos primórdios, executadas por intermédio de instintividades elementárias e retroativas, naturalmente saciáveis, se deturpam em atrações irresistíveis pautadas nas progressões sem fim da razão calculista, gerando índoles manicurtas, infinitamente cobiçantes: a arte da racionalidade lógico-matemática, tecnológica e científica, não é capaz de modular as expressões emocionais, qualificar ou abrandar os instintos fundamentais, permanecendo dominantes, deturpados e deturpadores, com agenda oculta, atrás das ponderações, subterfúgios e fingimentos da dita ciência política, a racionalidade camaleontídea dos tiranos. Extermínio e extinção são os resultados da interesseira e insensata atividade predatória do ser humano, das imoderações da razão calculista domada por atavismos e encarcerada em tecnicismos teóricos e auto-referências. A busca de satisfação e lucros, somados ao culto da grandeza, autoritarismo controlador e burocracia, a ciência da centralização egóica, uniformizadora e globalizante, parecem encontrar seu apogeu neste momento histórico. Os ideais dos filósofos e sábios, iluministas, reformistas e libertários, injetados ao longo da história, não foram mais de que sementes lançadas em cascalho, por carência de razão devidamente qualificada: imperam o humanismo ateu, o kantismo [e neo-kantismo], os cientificismos e dogmatismos: uma quaternidade coordenadora, globalizando uma tirania sociocrata, acomodando os arcaísmos do orfismo, o culto a uma redenção salvatéria, à atualidade.

2 - RAZÃO QUALIFICADA

Será que, nesse mundo, feito de contrastes, polos e antinomias, os extremos haverão sempre de se confrontar? Desde os primórdios pré-socráticos, soluções foram apontadas: assumir a incompetência, permanecer modestamente perplexo, ataráxico, frente a esses estados dilemáticos e irredutíveis76, cultivar a equipolência levando à serenidade. Eutimia servindo de base e cadinho onde burilar a razão calculista em razão qualificada, a ordem da razão lúcida e natural, integrando a plenitude e totalidade da cognição. Razão qualificada com a apreciação estética, a intuição e a imaginação, idônea e suficiente para demonstrar a sensatez de algumas antigas proposições: 1: a luz da razão, naturalmente, evolve em sabedoria; 2: ser sábio é ser virtuoso; 3: o exercício da virtude resulta em felicidade; logo, 4: ser razoável é ser feliz. Proposições implicando a necessidade de se desvendar as relações entre razão, sabedoria, virtude e prazer verdadeiro77, ou felicidade. A

76 Nenhum objeto analisado escapa desses limites inerentes: inúmeros são os paradoxos científicos gerados pela

natureza antinômica da razão. Nos estudos do comportamento não se consegue diferenciar, claramente delimitar, o que

é inato, genético, do que é cultural, psíquico, abrindo-se um palco onde diversas correntes se confrontam desde o início

da modernidade; na biologia a teoria de geração espontânea é hoje impensável: no entanto, a teoria da origem universal

na singularidade do Big-Bang, obriga a aceitar que, na sua procedência radical, a vida ocorreu espontaneamente, no

contexto da formação planetária, sistema solar, das nebulosas periféricas e decorrentes do grande primórdio. 77 Razão, sabedoria, virtude e prazer: rsvp.

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razão qualificada não resulta, apenas, de um processo epistemológico crítico, mas, do afloramento, livre e desimpedido, do ethos unificador e central, naturalmente relativo ao estado-de-ser humano: um direcionamento ético. A razão deve ser bem-intencionada, lúcida e qualificada, senão, deverá se conformar em permanecer assombrada, envolta em ideologias espúrias, motivada por pulsões semiconscientes: duplamente alienada, em cientificismos e dogmatismos; enquadrada dentro de limites estruturais arcaicos, domada e coibida no exercício do seu dom central. Propósitos e indagações parecendo abranger dificuldades indeslindáveis, mas contornáveis, por intermédio da dedicação filosófica, iniciada na antiguidade, ininterrupta, uma linha sucessória.

No diálogo conhecido como Euthydemus, Sócrates inicia um exame a respeito de felicidade com o jovem Clínias, o filho de Axiochus, debate onde se cogita: 1: todos querem ser felizes, 2: para ser feliz parece necessário estar de posse de alguns bens [ditos externos] como amizade, educação, saúde, recursos materiais, além de 3: outra categoria de bens [ditos internos], virtudes, como coragem, temperança e justiça, logo considerados essenciais, aliados à prudência ou sabedoria; 4: denota-se que os bens externos só podem contribuir para a felicidade caso utilizados – sendo a simples posse destes bens insuficiente; 5: por sua vez, o uso, poderá se revelar benéfico ou maléfico: sendo a utilização maléfica pior que a não utilização: por ser o uso maléfico ruim, sendo o não-uso nem bom, nem ruim: em decorrência: 6: o ponto fundamental não é, tão só, a posse, mas, a utilização, adequada e benéfica dos bens: concluindo, 7: os bens materiais não podem ser considerados benéficos em si mesmos: a medida do seu valor, ou, ao invés, da sua nocividade, depende de estarem sujeitos, ou não, a uma utilização ciente e sábia: sujeitos a uma utilização imprudente, desorientada e ignara, tornam-se maléficos; 8: sujeitos a uma utilização prudente, sábia, orientada com virtude, poderão tornar-se benéficos; significando: 9: os bens externos não são nem bons nem maus, mas, a sabedoria é boa e a ignorância é ruim. Assim, arrazoa e afirma Sócrates, nos dizeres de Platão e numerosos filósofos subsequentes, como Zenão de Cício (340-264) e seus seguidores, como Cleanto (séc. III a.C.) e Crisipo (280-208), os romanos Epicteto (c.55-c.135) e Marco Aurélio (121-180), igualmente, Epicuro (341-270 a.C.) e seus seguidores, entre os quais se distingue Lucrécio, poeta latino (98-55 a.C.) e muitos outros, todos, de uma forma ou de outra, afirmando: para que os bens convencionais, os produtos primários e os frutos da razão e da ciência, que corroboram com a prosperidade material, o ordenamento e exercício do poder, realmente, beneficiam os seus usuários: necessitam ser usados com adequação, sobre a orientação sábia da razão qualificada e virtuosa: o bem soberano há de ser encontrado na prática da virtude.

O ser humano, confuso e desatento, parece incapaz de diferenciar um par de indagações fundamentais, relativas à existencialidade: 1: qual o sentido, sabedoria ou virtude, da vida; 2: qual a sua teleologia, propósito final ou utilidade? Ensaiando responder à segunda indagação, pretende-se encontrar uma resposta à primeira: indagações, erroneamente, compreendidas equivalentes. A primeira indagação, buscando um sentido existencial aflorando em plenitude e realização, encontra respostas satisfatórias no processo da busca

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filosófica, promovida à luz da razão natural, cognição plena, gerando serenidade e decorrente civilidade; o segundo inquérito exercita a inteligência, reduzida a raciocínio lógico-matemático, na trama labiríntica das infindas, sinuosas e enlaçadas relações causais. O uso qualificado da razão não depende de uma atuação radical, extrema e obsessiva da racionalidade, mas, do conhecimento dos seus limites78, acoplado a um uso ponderado e virtuoso; usada adequadamente, nas balizas da filosofia e bom senso, dentro de objetivos sensatos e realísticos, a razão, assim qualificada, afirma, com efeito, a serenidade do estado-de-ser. Um sucesso potencial, realizável por intermédio do adequado desfrute dos bens necessários e suficientes, beneficiados no exercício agregado da sapiência e virtude filosófica: lucidez universal, em semitons e sombreados, entre os ofuscamentos alvorecentes e as profundezas do negrume crepuscular, contexto inexorável, infinitamente enigmático, onde tudo transmuda, passa e vira pó. Êxito tendente a ser corroborado na eficiência contingente das abordagens filosóficas práticas e experimentais, acima mencionadas, entre outras, aspirando ao estabelecimento de um estado-de-ser sereno, à manutenção de um profundo sentimento de paz, núcleo essencial da civilidade; inversamente, pelo fracasso histórico pertinaz e inevitável dos racionalismos dualísticos, esvoaçando a psique em esperanças deferidas, hipotéticas realizações post-mortem: uma triste sujeição da autodiretividade e maioridade em credulidade, societarismos representativos, burocráticos e filocráticos, sustentados por intermédio de uma economia fiduciária, dirigida por tiranos, seus representantes, técnicos assalariados.

3 - ESTETICIDADE, LEGITIMIDADE e HISTORICIDADE

“A ignorância é ruim e a sabedoria, boa” por razões mais assertivas e claras de que as, genericamente, sugeridas no discurso platônico atribuído a Sócrates:

“O que faz que aquela coisa seja bela é somente a presença (parousia), nela, ou a comunhão (koinonia), com ela, deste belo em si, ou algum outro modo pelo qual este belo se une a ela: porque eu não insisto, de forma alguma, neste modo, digo apenas que todas as coisas belas são belas pelo belo”. Fédon, 49.

78 Não parece haver aulas de lógica indutiva, dedutiva, complexa, moderna, matemática, aptas a modificarem a

essencialidade e plenitude da cognição natural: os mestres da lógica são como atletas olímpicos especializados,

exceções, fenômenos racionais formando uma academia restrita, tanto quanto é excepcional o time dos atletas dos jogos

olímpicos, das candidatas a concursos de beleza. É absurdo esperar um abundante preparo físico, a expressão de

capacidades atléticas superiores, uma beleza física notória, canônica, como traço distintivo da humanidade em geral:

não há porque esperar uma prevalência de excelência lógico-matemática na população, tampouco, imaginar que esta

função específica e hipertrofiada da cognição possa, isoladamente ou especialmente, com destaque fundamental,

estruturar o fulcro construtivo central de uma existencialidade sábia e prudente. Quem imaginaria a força ou beleza

física como valores fundantes de uma sociedade sapiente? Enganam-se os que imaginam ser possível construir uma

comunidade sábia, endeusando a lógica formal acima das causas mais universais do sentir, da semética.

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Saber, manifesta virtude, saber é virtude, a verdade afirmada do belo e do bem. O belo, a verdade e o bem, revelam-se pilares da sabedoria, com lucidez e sobriedade, a partir da razão fenomênica surgida nas fronteiras do Ocidente: originalmente expressa na Jônia antiga, heraclitiana. Com sobriedade, o que faz uma coisa ser inspiradora de perspectivas filosóficas, bela em si, emanando virtudes, não pode ser afirmado como irradiações de um estado acabado e perfeito, existindo em separado, agregação superposta, ou em paralelo, com ou sem preexistência: agente diretor, impressor ou formativo, atuando sobre a coisa em por reflexo. A teoria dos dois mundos montados, uma esfera invisível, hipotética, portadora das essências, cobrindo o mundo visível das suas influências - como se fosse um cavaleiro dominando um cavalo, uma chuva molhando a terra – pode, certamente, estabelecer uma metáfora simpática aos domadores de homens e aos mandachuva, e, por isso, exaltada, mas, ineficaz na justificação das resultantes. Três conjugações parecem, mais imediatamente, com sobriedade, justificar a comparecência da virtude: esteticidade, legitimidade, historicidade. Realizando o belo, a esteticidade é a qualidade da razão que apreende a dinâmica universal, descrita, ou simbolizada, como um impulso expressando o determinismo criar e sustentar; determinismo universal, partindo de um processo termodinâmico e contínuo, envolvendo destruição e formação, operando em todos os níveis da criação, moldando e compassando a existencialidade, organizando o sistema nervoso e hormonal. Sentimentos extremos bipolares: espanto, acompanhado de reações de fuga e retraimento, ou, atração e expansão, estão em correspondente simetria com os movimentos orgânicos evoluídos em compassos, num contínuo processo transmutativo e interpolado. Por não haver, nessa dinâmica essencial, ativa entre nascimentos e mortes, um lado mais fundamental de que o outro: os indivíduos são fadados a ressentir, com intenso esteticismo - espanto, medo ou admiração -, todas as fases do processo, com acentuação nos momentos apicais: tanto as horas ritmando culminantes e intensas recriações, quanto as horas diligentes, zelando a manutenção mais planar das realizações. Sendo o enlevo estético uma forma mais amena do espanto perante a vida, demonstrará acompanhar as fases do processo criar/sustentar, em diversas nuanças, na dependência das categorias naturais onde ocorre: fascinado pela beleza de uma tempestade, a dramaticidade do fogo, ou, pela beleza de uma edificação, de um jardim, um vale verdejante e fértil. Existe uma apreciação universal, tanto dos eventos envolvendo transformações, metamorfoses, variações, mudanças [os momentos de transformação e recriação: vertente fenomênica criar], quanto uma apreciação dos eventos revelando organizações eficientes, estruturas planejadas, ordenamentos suaves, ordens matemáticas, arquitetônicas e musicais, movimentos uniformes em combinações harmoniosas [os momentos de zelo e manutenção do processo: vertente fenomênica sustentar]. Elementos, contrastantes, são intrínsecos à vida em si, essenciais como as batidas do coração: o belo, o bom e o bem são verdadeiros e reais, não necessitando existirem como essências, de alguma forma exógenas, vindas ou não de um além hipotético: existem, imediatamente patenteados nos processos da vida, virtudes testemunhadas no ato-de-ser. De outro modo, imaginando alguma forma pelo qual esse

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belo, exógeno, se uniria às coisas: seria tributário de um processo hierarquista, normativo, exorbitante, proposto e visionado por especialistas, críticos; uma beleza adjunta e reativa, discutível, pontilhada, acumulável por seleção e sujeita a fenecimento: ilhas de beleza cercadas de molduras horrendas, tais como favelas e misérias. O belo seria um luxo, um privilégio apresentado, organizado e negociado por elites, mostrado em passarelas, não mais uma virtude universal, manando intrínseca - visto, conhecido, ou não - de todos os poros do estado-de-ser. Realizando a verdade, a legitimidade se constitui na duração tangente aos determinismos, conetando e constrangendo o sucedimento contínuo das interações universais, do mais primordial, simples e homogêneo, ao mais atual, complexo e heterogêneo: um todo variegado, propulsado e resultante, da perenal e coerente dinâmica da matéria-energia, irradiando uma sempiterna unicidade substancial. Uma unicidade presente na totalidade do estado-de-ser, uma realidade cuja presença assoma o intelecto aguçado e coração intuitivo devidamente reunidos: a razão qualificada dos filósofos. O estado-de-ser como verdade evidente, para se ver e sentir: imediata, naturalmente ajustada, efetiva e consensual. De outro modo, imaginando alguma forma pelo qual a virtude se legitimaria, instalando-se nas coisas: assentaria buscando legitimidade normatizada em tribunas, especificidades diversas, deferindo justiças acidentais: dessa forma mitificada, é o poder de compra, as aderências ativas a círculos ideológicos que determinam a qualidade das sentenças: rígidas para os infratores periféricos ou novos-ricos ávidos, e, anistia para os baluartes tradicionais do sistema, a ideologia encarnada - privilégios. A historicidade, quando clarificada79, realiza o bem: igualmente, constituída de duração, tange à interdependência histórica, ao originário comum selando a união comunitária do estado-de-ser, reunindo, observadores e observados num emparelhamento fundamental patenteando reconhecimento, empatia, sintonia e identidade. É a identidade do ser, a ausência de limites transcendentes, o estado-de-ser como bem comum. De outro modo, imaginando alguma forma extrínseca pelo qual esse bem superior, se uniria às coisas: assentaria em herança históricas, remontando a tributos e concessões; nesse caso, a conquista será a medida intrínseca, original, do poder e do bem - elitismos. No decurso e uso espúrio do método científico das eiras produtivas para os arcanos da praxeologia80: a sabedoria, naturalmente frutificando em virtudes, de alguma forma, brilhando clara em todos os campos e comunidades nativas, nas beiras dos rios, dos mares, do alto das colinas, no interior das florestas, em todos os diapasões do estado-de-ser se reabsorve e dissolve: resultando em escassez e hierarquismos astutos e sovinas.

79 A condição de ser clarificada à luz da razão, revela que o determinismo evolutivo apresentado na dialética histórica

hegeliana desconsidera a liberdade e capacidade de escolha do estado-de-ser. 80 Desuso decorrente e em linha com a perspectiva metafísica separatista, transcendente-transcendental, âmbito

congênito aos dogmatismos, teísmo dualístico, idealidade kantiana e humanismo materialista e ateu, até ao cientificismo

napoleônico.

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Essas três conjugações, esteticidade, legitimidade e historicidade, imprimem uma perspectiva filosófica sábia e imanente, fonte inspiradora de virtude, harmonia e identidade. Como bem demonstrado pelos sofistas, uma realização virtuosa superando os limites da racionalidade, ou razão simples: portanto, ao alcance cognitivo do indivíduo capaz de intuição e sutileza de sentimentos: trata-se da razão profunda, espontânea, revestida de bom senso, desnaturada nos decursos redutores dos racionalismos dogmáticos e secantes, recuperável pela educação socrática, maiêutica, freiriana, aguçada pela meditação e contemplação. Uma perspetiva grandiosa, sensorial e abstrata, emanando da Natureza, aflorando em espanto místico profundo, evocado pela indagação: “porque isso existe assim?” – levando a visionar que o estupendo esplendor da Natureza é perfeito, não necessitando acréscimos ontológicos teoréticos, hipóteses idealísticas. O estado-de-ser é foco central de expressividade, ponto de origem universal, transmutante e atual, se expande, emanando coerência apoiada na substância matéria-energia, a partir de onde se multiplicam e transformam cada parte, numa espiral sempre acrescida de novidades: uma criação em andamento, apontando uma direção evolutiva, geradora de complexidade.

4 - A VIA

E, se existisse uma trajetória, de alguma forma descritível, pela qual se conseguisse conhecer a essência? Qual seria o caminho? Certamente, romper as dicotomias, agregando os fundamentos relativos em aspetos absolutos circundados de silencioso espanto. Na tradição filosófica, esses passos gigantescos foram trilhados por muitos: Lao-Tsé, Heráclito, Sócrates, Espinosa, Hegel e outros, construindo os caminhos conceituais do Tao, Logos, dialética, fenômenos pertencentes a este eu profundo de Bérgson. Lao-Tsé é justamente considerado o apresentador da dialética por ter fundado a sua doutrina na resolução da contradição apontada pelos místicos e filósofos, em relação ao símbolo como redutor conceitual do real, agente do aprisionamento da consciência no carrossel das antinomias: “o caminho, Tao, que pode ser descrito não é o verdadeiro caminho”. Heráclito interpretou a realidade como devir: à medida que nos tornamos diferentes, mantemos a nossa identidade; embora diferentes, continuamos sendo iguais; um estado de fluxo, constante devenir; a identidade como um envoltório criativo, num tempo único, separando e reunindo oposições, o ser e o não ser, simultaneamente. É atribuído a Heráclito a frase: “em nós, manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice; pois a mudança de um afirma o outro, com reciprocidade”: conceitos espantosamente similares às concepções Taoístas, reportando, igualmente, ao hegelianismo. Hegel percebeu a tendência da consciência em se encastelar, com medo do novo, numa compreensão seletiva, aquisitiva, reconhecida positiva e concreta; uma visão delimitada da realidade, refugiada, imune às surpresas, corporificada, onde, transcender a circularidade implica uma abertura para o novo; adentrar e assumir o

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renegado, o negativo; uma dissolução, sendo o movimento da consciência capaz de aproximar a morte, permanecendo nas vizinhanças. O atuante dialético, como um dançarino, é criativo, em movimento. Na Grécia Antiga, a palavra dialética expressava um modo específico de argumentar, que consistia em descobrir as contradições contidas no raciocínio, o outro lado, aspetos inelutáveis do vir-a-ser. Saber identificar a contradição que existe em tudo, cultivar o talento de transcendê-la, anulando e prevenindo o dogmatismo, como maneira de se manter vivo, criativo, liberando a consciência do castelo das antinomias. O método dialético busca captar o movimento vivo, gerador da vida, que gesta, engendra e soluciona os contraditórios. Toda a realidade está submetida ao encontro dos opostos, e, só se delineia compreensiva, como permanência e devir, em uma cadência unitiva, formada na ligação destas oposições. O caminho em busca dos fundamentos é igualmente apontado por Bérgson: “voltar à vida... quebrar, de todas as forças, o gelo do hábito, o raciocínio que, imediatamente, mapeia à realidade, enevoando a sua face nunca vista... reencontrar o mar aberto”81. Um esforço, no sentido de superar os caminhos cognitivos rotineiros, as praxes do cotidiano, os mecanismos da consciência, numa atitude ou postura alargada de conscientização, embasada num sentimento ou ímpeto de amor contemplativo, insight estético, emoção criativa, permitindo voltar à vida... reencontrar o mar aberto, livre. Trata-se de um caminho filosófico em direção ao absoluto criativo: uma via crúcis mística, de alguma forma, aberta em todas as culturas, rompendo os usos consuetudinários, sempre trilhada pelos sedentos de altura, liberdade e poesia: um caminho banido e repudiado pela razão universitária dos estados e federações, uma via paradoxal feita de realidades e palavras contraditórias, mas, sensatas, povoada de silêncio e reminiscências infantis. Uma estrada selvagem, sinalizável com mitos e lendas, mas, igualmente, ofuscada em estranhos esoterismos, uma via voltando sobre si, resolvendo combates inquietantes, beirando precipícios e tragédias, e, eventualmente, abrindo em mar aberto, ou campos floridos, fontes de água cristalina, oásis, ou rompendo o topo enevoado das montanhas.

Mas, romper dicotomias, agregando fundamentos relativos em aspetos absolutos, imersos no mistério, evocando, efetivamente, esse processo, realizando uma comunicação transcendente, não resulta ser comum, nem acontece no escopo restrito das transmissões usualmente estudadas no âmbito das res extensa et cogitans, genes e memes: uma res sensitans, fenômeno terciário, transmite os semes, iniciando o estado-de-ser na consciência da unicidade. Uma fenomenologia mística, enleando aspetos psicossomáticos libertadores, esclarecendo conteúdos profundos, gerando abreatividade e catarse: atualizando, sanando, exacerbando a inteligência, numa iluminada e intuitiva criatividade, arte existencial pulsante em sinestesias, evocando reverência, compaixão, júbilo e paz: sensações cósmicas benévolas resolvendo os paradoxos, revelando harmonia, num garbo

81 “Remonter à la vie... briser de toutes nos forces la glace de l'habitude et du raisonnement qui se prend immédiatement

sur la réalité et fait que nous ne la voyons jamais... retrouver la mer libre”. Notes sur la littérature et la critique; Contre

Sainte-Beuve, Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, 1971.

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régio, numa elação eleática consciente da sua excelência e maioridade, coroando o sempiterno estado-de-ser, rompendo a tridimensionalidade, num conjunto infinitivo de força e luz: a essa flor de sabedoria, ao seu perfume, não se chega por intermédio de uma mutação acidental, nem de educação lógico-matemática e linguística ecoando praxes e conceitos produtivos.

5 - A FISIOLOGIA DA INTENÇÃO

Nessa via em busca de saber, qual o método de chegada, o andamento? O processo decorre da intenção que se delineia, vertendo da perspectiva metafísica cosmo-existencial, resultante num movimento filosófico essencialista, numa religiosidade panteísta: o movimento configura uma orientação intencional, mas, igualmente, um método. O método é progredir na via, até à porta de entrada, abertura locada no topo da montanha do ser, ou tabernáculo quaternário das virtudes antigas, coroa florida da razão lúcida geradora de sabedoria, apontando felicidade e profunda eutimia: eis o compasso, orientando a busca. Progredir, implica em cultivar a consciência de estar buscando sabedoria, aberto às mudanças, intencionando instalar esse funcionamento excelente, permitir a realização e nascimento desse estado-de-ser luminoso; a realização depende da intenção e decisão. Criatividade, liberdade, paz e unidade, são virtudes construídas a cada dia: conscientizando-se de si próprio e do seu ambiente, reconhecendo-se como expressão da Natureza Universal, integrada ao seu contexto, ativa em realizar uma vida mais virtuosa e feliz. Uma decisão individual, sem interferência: “tu és a expressão adequada da Natureza cósmica, estado-de-ser em construção, existindo no seu âmbito genésico, original, destinado ao saber, no enquadramento da tua vivência, com simplicidade e sucesso, naturalmente” - ou não? Conhecendo a essência, o que oferecer? Uma visão da realidade mais ampla, holística, abrangente e ecológica, onde todas as criaturas e povos, todas a formas de vida sejam reconhecidas irmanadas, partes de um mesmo tecido, de um mesmo corpo e Universo. Oferecer experiência de vida, interações construtivas, relacionamentos justos e fraternais, conhecimento, sabedoria, virtude, alegria e bom humor.

Decidindo trilhar uma via em busca da ampliação do saber, a utilização de um sacramento, estabelecer uma postura meditativa, contemplativa, serão certamente necessários e decisivos. Estando no coração de uma cidade ou no meio de uma floresta, nas cordilheiras ou nos desertos, não diminui a eficiência da resposta: sim ou não; resposta dada no foro íntimo, centro da consciência, imo do estado-de-ser, decidindo a via, a orientação e direção: espiritar ou saber? A decisão é particular, individual: por omissão, repetindo a tradição, ou intuída de uma área mais criativa, do “eu profundo”, hiperconsciência, daimónion ou gênio82, eu solar, eldorado, que se manifesta, aqui agora, no dia-a-dia. Uma 82 Daimónion: a voz que ressoava na consciência do filósofo grego Sócrates, guiando suas ações, atribuída por este,

simbolicamente, ao bom ânimo, ou bom gênio inspirador – ver definição mais completa em 12 - Apenso.

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aspiração sincera trará atos magistrais83: a consequência de uma decisão positiva será a realização de um processo iniciático. O poder de criar e solucionar tornar-se-á um dom, uma realidade viva, transmutadora. A alegria de criar, enfrentar o desconhecido com confiança, se tornará a marca de uma humanidade mais equilibrada, fluida e solar, ainda, arquiteta do seu destino.

Elaborando algumas facetas do mundo dos xamãs e dos sacerdotes incas, resulta que duas perspetivas diferenciadas e polares determinam dois astrais, nesta estrutura binária, o posicionamento existencial do vivente resulta da intenção. Neste processo vivencial, a existência humana transcorre em três realidades paralelas, aqui ilustradas e denominadas com conceitos quéchuas, de acordo com a tradição andina, inca, mas de interpretação e imagéticas elaboradas à luz do panteísmo filosófico: Hanan Pacha84 é um mundo de luz e sentimentos sutis, é o sol brilhando no ânimo e no céu; Kay Pacha é a dimensão sensorial, tangível da existência, a realidade comum; Uju Pacha é um mundo de forças e emoções desgovernadas, caótico, infra-humano e escuro. Na dimensão manifesta, o plano cotidiano, Kay Pacha, o vivente está expostos às influências provindas destas duas esferas de influência, possuindo a faculdade de conduzir o seu destino; seja, em direção a Hanan Pacha mediante o exercício da coragem, força e atenção – das virtudes – ou, em direção oposta, Uju Pacha, por falta de discernimento, desatenção e apego; nestes decursos, portas psicofísicas, denominadas Punkus85, proporcionam acessos e trânsitos. Alguns lugares específicos, no topo das montanhas, nas matas e sertões, à beira dos mares e rios, ao pé das cachoeiras, nas florestas, nos campos em flores, em certos templos e jardins onde se cultivam sacramentos religiosos, apreciando pensamentos apropriados, músicas e poesias, o silêncio, podem funcionar como Punkus, ou portas para Hanan Pacha. Outros espaços e perspetivas, vielas e quebradas escuras, no entorno de áreas poluídas, lixeiras, barulhos, gente exaltada, confusões cognitivas, suspicácia persecutória, empecilhos, recatos e dubiezes, tendem a destravar as portas de Uju Pacha. Os distraídos, aproximando-se destes lugares, por ingenuidade, mau gosto, interesses grosseiros e desvirtudes, arriscam perder o dom sapiencial, a liberdade e saúde, numa decadência das pulsões. A consciência: 1: desses portais naturais e cognitivos; 2: compreensão da estrutura e fisiologia do estado-de-ser; 3: sapiência decorrente da eleição da perspectiva metafísica cosmo-existencial, filosofia essencialista e religiosidade panteísta como ordem suprema de saber; 4: a prática de uma atenção vigilante, e, 5: a manutenção de uma firme intenção: determinam acesso ao conhecimento. A evolução, surgimento, apogeu e morte das espécies e dos indivíduos, de fato acontece num movimento, ou processo criativo, permanente, equacionado entre princípios 83

Atos magistrais: expressão inversa da denominação psicanalítica “atos falhos”, estes determinados a partir de uma

subconsciência – ver definição e origem em Apenso. 84 Hanan Pacha é equivalente ao “astral superior” idealístico das religiosidades sincréticas; Uju Pacha é equivalente do

“astral inferior”, ou inferno. 85 Com efeito, fenômenos geradores de semes, memes e conjunturas.

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universais e polares. Esse fenômeno, estrutura ou ordem fundamental, é ilustrado por intermédio de uma metáfora, expressa como um duplo comando: criar ordem, sustentar. Em referência ao estado-de-ser humano, o duplo comando encontra-se expresso, com mais evidência, nos centros hipotalâmicos e sistema nervoso autônomo, o sistema adrenérgico-simpático e colinérgico-parasimpático, formando a base da fisiologia. A dinâmica e compasso dos pensamentos, emoções, sentimentos e desejos revelam determinismos modulados por estes centros. A vocação sustentar ordem é dominante, em relação ao processo de criação renovadora, por ser ativa, adrenérgica, ergotrópica. O processo de dissolução e criação exige receptividade e entrega. Se a realização do estado-de-ser desequilibra, apega ou focaliza, demasiadamente, na vertente mantenedora do comando, isto é, nos produtos, resultados, mais de que nos processos, a sustentação degenera numa manutenção conservadora. Nestas circunstâncias, o processo criativo em curso tende a se enrijecer ou gelificar por apego, estimulando ações egoísticas como: prender, tomar, impor e monopolizar. Quando equilibrada, esta gestalt [sustentar a ordem] serve de base para atitudes como: colher, armazenar, administrar, zelar e nutrir. A constante fluidez do movimento universal, o fluxo heraclitiano, determina que organizações mantidas e conservadas por apego são destinadas a serem quebradas, as criações superadas, dissolvidas. Se o processo realizador do estado-de-ser se desequilibra, por fascínio, na vertente criar do comando, a fecundidade se consome numa gestação desgovernada, destinada a uma rápida reabsorção. Quando equilibrado, o polo da criatividade serve de fonte para atitudes de abundância, como acompanhar, evidenciar o ritmo da Natureza, ofertar, criar, semear. Os dois atratores, as duas vertentes do comando universal, como duas mãos que ainda não se acordam, definem, na esfera humana, uma movimentação bifásica, duas linhas de ação dinâmicas e polares. As duas posturas revelam naturezas complementares, destinadas, esperançosamente, por intermédio de mais flexibilidade e criatividade, a evoluir, se coordenarem numa dança funcional, virtuosa e feliz. As duas tendências configuram, regem, são estimuladas e mantidas por qualidades cognitivas, sensoriais, cinestésicas e emocionais, caraterísticas e polares configurando mensagens, ideologias existenciais, capazes de estabelecer realidades radicalmente diversas: Hanan ou Uju Pacha, astral superior ou inferior. O estado-de-ser, in totum, pode ser descrito como um fenômeno operado a partir de uma unidade processual realizadora, encontrando/gerando realidades. Os processos são complexos, compósitos de três grandes segmentos antropomorficamente referidos como: cefálico, cárdio-torácico e pélvico; cada segmento pode ser subdividido, detalhado, em escalas. Segmento cefálico: centro de processamento memético: escalas da cognição: a: motivação e intenção; b: significados e valores; c: crenças, ideias e pensamentos, d: filosofias; e: paradigmas. Segmento cárdio-torácico: centro de processamento semético: escalas dos sentimentos: a: diastólicos: integração, união, aceitação, harmonia, ligação, concórdia, afinidade e outros; b: sistólicos: separação, solidão, oposição e semes afins; c: emoções ligadas à atividade diafragmática e aos ritmos respiratórios: angústia, medo;

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pânico; serenidade; calma; paciência e outros. Segmento pélvico: centro de processamento genético: escalas: a: dos desejos alimentares; b: dos impulsos reprodutivos. 6 - O DOM E AS MENSAGENS DA SEMÉTICA As emoções e sentimentos motivam e orientam as atitudes e ação; elas são o combustível das principais condutas, da intenção; sem os semes não haveria sentidos ou propósitos, entusiasmos, motivações ou desejos, não haveria ações. O sentimento é uma matéria-prima energética cuja finalidade é movimentar e informar; parece funcionar por intermédio de estímulos associativos, holomórficos, liberando padrões de respostas. A emoção precisa ser identificada e direcionada no sentido de garantir a preservação e evolução do estado-de-ser no seu contexto. Descuidos emocionais fazem partes da experiência, mais amiúdes nos anos formativos: quem não explodiu com alguém, um comprador ou vendedor, um colega de trabalho, o motorista de outro veículo, um familiar? Depois de alguma ponderação, o descaso pareceu impróprio, despropositado, resultando em desânimo e sensações vergonhosas. Circunstâncias opostas são igualmente lembradas: encontros, acontecimentos felizes, sentimentos entusiasmados, efusivos e extasiantes, motivando estados especiais de harmonia e encanto. Sobre o domínio semético do astral da desvirtude, Uju Pacha, o mundo parece estranho, agressivo, permeado de confrontos competitivos, sujeições ou desrespeito, normas evocando medos e receios; rondam sentimentos de inadequação e menoridade filosófica, deixando o estado-de-ser sujeito à vontade de outros, ambivalência, receio de ser tomado pela maldade; falta de propósito e sentido, solidão e pesadume, desespero. Imerso no dom semético positivo, astral virtuoso, Hanan Pacha: o mundo é receptivo, prazeroso, cooperativo e tranquilo; os caminhos são escolhidos, com autonomia e cooperação, aceitando as consequências; implementam-se mudanças e ações criativas, tomam-se iniciativas; expressando e construindo sentidos, elaborando maior autoestima e motivações; desenvolvendo identidade, referenciais, encontrando grupos de pessoas afins para dividir experiências; cresce a capacidade para encontrar pessoas com quem dividir e compartilhar aprendizagens: desenvolvendo-se uma comunidade criativa, transformando sonhos em realidade; dividindo sabedoria. O centro genético, ou centro de processamento instintivo, comunica-se através de sensações somáticas, gerando ações filogeneticamente dedicadas à proteção e salvaguarda do organismo; atos de objetivos curtos, metas e prazos orientados no sentido de garantir poder, atenderem às necessidades imediatas. Este centro, estimulando reações imediatas e padrões crônicos, basicamente irracionais, é menos flexível de que o centro memético - ganha-se em velocidade, reflexos e intensidade, mas, perde-se em precisão. Por ser mais antigo, o centro de processamento genético, dos instintos e fortes emoções, pouco

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considera a razão para gerar atitudes e ações. A conduta baseada no centro genético, neuro químico, emocional, tende a ser egoísta, promovendo funções positivas, garantindo a sobrevida do indivíduo, servindo à sua autopreservação; as condutas decorrentes são caraterísticas da infância e dos níveis subumanos da evolução. O centro instintivo defende e protege, trabalhando de uma maneira inconsciente, pré-programada e condicionada, enquanto os centros memético e semético operam de modos moduláveis, abertos à consciência evolutiva. O centro memético opera conexões lógicas entre coisas e efeitos, processando significados novos, atuais, integrando informações e conceitos, alinhando o que se compreende, imagina, sabe e fantasia, à perspectiva metafísica vigente, seja cosmo-existencial ou transcendente-transcendental: abrindo a cognição para uma criatividade harmoniosa e integrada, ou para uma espera fideísta e tenaz, correspondente a uma necessidade de salvação. A psique fragmentada nos dualismos decorrentes da perspectiva dominante, a massa dos servidores e fiéis, aguardam obedientes, supersticiosos, esperando receber glórias e honras em outras esferas e estados mais significativos de ser. O centro semético, orientado, num sentido eutímico, evolutivo, sábio e virtuoso, parece gerar ações indutoras de harmonia, conetividade, elevando a autoestima, criatividade e significância existencial. O bom funcionamento do centro semético, proporciona ações mais conscientes, capazes de integrar as necessidades psicossomáticas do estado-de-ser às atitudes espontâneas do gênio, daimon ou hiperconsciência. Postura harmoniosa e justa na intenção de instalar uma ordem equitativa, cooperativa, eliminando a competitividade opositora. Parece evidente que a regência dos semes, sua emissão, recepção e atuação, necessita de uma observação e monitorização específica, uma pedagogia diversa da utilizada para a transmissão e integração de memes, exigindo entrar em contato com os sentimentos, sentir profundamente e tomar consciência: como eu estou me sentindo de momento a momento? Ser empático, tomar consciência do outro, pondo-se em seu lugar, sem julgar. Tentar observar, qualificar, identificar o sentimento do outro, assim como o próprio, tentando imaginar possíveis motivos. Qual o grau de conforto, ou desconforto, em estar comigo, quieto, silencioso; sentir sem julgar. Num segundo momento, qualificar os sentimentos nas escalas do prazer e desprazer, igualmente, quantificar: preocupantes, agradáveis; graves, entusiásticos; emergenciais, jubilosos; identificar, não necessariamente descrever os sentimentos com precisão, que não é possível, mas, tomar conhecimento das sensações, aprender a diferenciá-las; elaborar uma denominação através de algum canal de semiose, verbal ou não verbal. Observar o movimento induzido pelo sentimento ou emoção, esclarecer: qual a sua função? Ponderar conexões e possíveis proveniências, próximas e distantes, fatos desencadeadores, possíveis resultantes e consequências. Investigar causas, circunstâncias, contextos, motivos supostos, através de perguntas, tais como: o que estou odiando, amando? O que está me ferindo, nutrindo? O que temo, aprecio? De que tenho medo, desejo? O que está me sendo tirado, acrescido? O que estou perdendo, ganhando? O que estou tentando defender, atacar? Guardar, dar, esconder,

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mostrar? O que está me invadindo, extrapolando dos meus limites, me desrespeitando, conquistando, irrompendo? As emoções negativas sinalizam um estado deficitário, carência de liberdade, escolhas e recursos, fortes determinismos. Inúmeros eixos de questionamentos, auxiliam a descortinar a complexidade motivacional dos sentimentos, mecanismos de encadeamento, transmissão e amplificação dos semes, sejam, negativos, dolorosos, ou positivos e prazeirosos. É fundamental observar os elementos capazes de modificar e modular os semes, os encadeamentos, como estão sendo recebidos, problemas ou soluções decorrentes, instalação de condutas, evolução dos processos, ações permitindo a elaboração de um conhecimento emocional e sentimental, superior, prevenindo ressentimentos e desarmando condicionamentos geradores de resultados medíocres. Estabelecer metas positivas, prever consequências, escolher um leque de semes, imaginá-los adentrando a constelação anímica, estruturando uma semética, um gênio semético, cada vez mais sábio e virtuoso. Perceber as transformações ao longo da vivência, monitorizar as experiências. O conhecimento do campo semético, a sua possível regência, exige dedicação e constância; as aptidões necessárias precisam ser adquiridas no decurso da ação. Cada seme traz uma informação apta a realizar uma mudança interna de natureza evolutiva, adaptativa, e, uma mudança externa, criativa e expressiva, em busca de ponderações e realizações mais suaves e perfeitas.

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CONJUGANDO O ESTADO-DE-SER

Refaz tuas forças, esgotadas por suspiros,

Redobra teus prazeres, deixa lá tuas argúcias,

Sobre o bem e o mal. Sai da gaiola,

Quebra os grilhões de areias;

Feitos por mesquinhos pensamentos,

Transformados em duras cordas

Para amarrar-te, para ser tua lei,

Quando cerravas os olhos para não ver.

Vamos! Desperta! Quero partir!

Esconde este crânio, ata teus temores.

Quem recusa servir seus desejos

Merece o fardo que leva.

O colar – George Herbert (1593-1633)

1 - O ADVENTO DO CONJUGADOR

Lucas 17: 20-21 - E, interrogado pelos fariseus sobre quando havia de vir o Reino de Deus, respondeu-lhes e disse: O Reino de Deus não vem com aparência exterior. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Ei-lo ali! Porque eis que o Reino de Deus está entre vós.

Atos dos Apóstolos 17: 27-28 - Para que buscassem ao Senhor, se, porventura, tateando, o pudessem achar, ainda que não está longe de cada um de nós; porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos [...].

Colossenses 3:11 - onde não há grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, servo ou livre; mas Cristo é tudo em todos.

Não há divindade senão em relação ao estado-de-ser humano. Divino é a virtude, ética e estética, arte existencial, intuída com talento, reconhecida e demonstrada em nós, na Natureza e no outro; não é, originalmente, o que os escribas, teóricos e teólogos, pensam e discursam a respeito das causas e da finalidade. Para desvendar, sem intermediação, os

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arquétipos e mitos das religiões, deverá ser afastada a ideia supositiva e separatista de um deus como pai soberano da criação, do amor e da virtude, mas, distante, castigador ou premiador, respondendo a rogos, oferendas e promessas mediadas por magos e sacerdotes. Para conhecer o peso e valor dos mitos é necessário negar as tribunas, classes e litígios filocráticos interpostos entre a razão e o saber; afirmar, com autoridade, frontalmente, uma realidade responsável e liberta. Havemos de nos reconhecer como somos, efetivamente, sem recuos metafóricos: extrusões selvagíneas, pseudópodes cósmicos naturando, conjugando no presente, em todos os tempos e hipóteses, o verbo criar; criaturas universais, realizações avançadas e de vanguarda da Natureza, acontecimentos criadores de cultura, jardinando o planeta. De uma existencialidade ciente, transcendendo a morte em vida à luz da razão natural, a vivência dignifica. Uma aceitação construída exercitando a razão até aos pináculos do saber e da virtude: reconhecendo a morte como mera transmutação de moléculas, elevando autoestima e conhecimento até a fonte da concepção divinal, e, no tabernáculo da intuição, gravar a pureza azul-turquesa da confiança. No juízo mais íntimo, reconhecer a vigência absoluta, unitária, do mistério criativo: eterno manancial de vida, essência indissolúvel; compensar a eventual grande solidão, louvando e brindando à mutabilidade aliviadora do estado-de-ser, ao cotidiano, arco-íris da existencialidade manifesta, cálice glorioso, presencialidade jorrando vida. Haveremos de realizar o éden, agora, na comunidade, na realidade; o elísio não acontece hipoteticamente, nas fantasias potencializando o apego e o medo numa catequese ptolemaica, projetando nas alturas uma suposta infinitude pessoal, egóica e sobrenatural, em busca de amor, glória e gozo transcendente, em outros orbes, por uma via dolorosa e sacrificatória. O éden é o lugar mítico da felicidade, uma realidade despontando, clara e sublime, no gênio, na estrutura semética dos que se apoderam dos mitos, balizando as suas consciências até aos arcanos da mais elevada autoestima e bom humor; no caminho desinflui-se o ego, o orgulho e o apego, o ouro se transmuta na alvorada e no crepúsculo, diamantes brilham como orvalho em gemas de flores, rubis, safiras, jades e esmeraldas. 2 - QUEDA, CRUZ E REDENÇÃO A progressiva eclosão fauniana do estado-de-ser como humanidade é extraordinária; as faculdades cognitivas, razão e autoconsciência, trazendo as capacidades de simbolizar, codificar e registrar processos intelectivos, configuram um fenômeno magno, transformando a vida selvagem, celebrando o advento de uma nova fase na evolução planetária: sociedades complexas rompendo a biosfera por intermédio da tecnologia - meios de comunicação, novos sistemas energéticos, veículos, maquinas e robôs. Nesse surgimento evolutivo da razão e autoconsciência, nesta transformação de destino incerto, reside a origem da crise existencial, metafísica, ética. Uma crise, como uma queda; deprimência que se reproduz entrando na idade da razão, deixando a inocência, desvendando a solidão, uma consciência tênue da finitude e da morte: temática fundamental, mas, escamoteada, parcamente confrontado, como a sexualidade. Em paralelo ao advento da razão, ao decaimento do espanto alegre e jubiloso, caraterístico da

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inocência prístina, em direção a uma consciência calculista e preocupada, ocorre, eventualmente, o surgimento de um angustiante sentimento de culpa. Antes do surgimento da autoconsciência, a culpabilidade não fazia parte do acervo semético do estado-de-ser. Não havia culpa ao processar e ser processado, ao consumir e ser consumido ao ritmo dos embates e compassos da satisfação e do cumprimento dos determinismos naturais ligados à necessidade de se reproduzir e sobreviver, cumprindo a pulsão/comando metafórico e metafísico: criar e sustentar. O fator desencadeador e gerador do seme86 transitivo pronominal sentir-se culpado passa pelo processo evolutivo, no devenir do estado-de-ser, elaborando a autoconsciência da finitude, com o advento decorrente de um receio exponencial da morte e profunda angústia existencial. O conhecimento da morte, percebida como condenação, é um fenômeno que se acompanha de um impulso reativo e extremo de sobrevivência, a qualquer preço; receio profundo, motivando orações, rogos, oferta de bens e de promessas, e, num passado recente, dedicando sangue e vidas aos abismos do desconhecido. Do alto das montanhas enevoadas, nas margens altas dos lagos profundos, lançavam-se vidas queridas, trocando vitalidade em favor próprio, pagando por mais saúde, barganhado com o destino, prometendo o sacrifício de mais vidas: as filhas mais belas revestidas de ouro, os guerreiros e as armas mais letais - impulsos fantásticos, irracionalidades sombreando a luz ofuscante e dureza da razão; tragédias alvorecendo sentimentos inquietantes, remorsos e culpas. Atribuída de consciência autorreflexiva pelas forças da evolução, a humanidade eleva-se a um estatuto de vidente capaz de imaginar tempo e espaço infinitos: deusa imanada no caldinho da criação. A consciência de pertencer a uma espécie de indivíduo morrendo e nascendo, vivendo em eixos polarizados, solstícios a solstícios, somados à problematização do egoísmo natural, faz surgir o arquétipo da crucificação, onde se pode vivenciar a sempiterna transmutação; sentindo e sofrendo os mistérios da evolução, ou, expiando e redimindo a vida numa espera idílica do além, espiritando angústias. O palco e advento do grande mito da redenção sacrificial, estreou, oficialmente, a pedido do Imperador Romano Constantino, no consenso de Nicéia, onde a agonia, a angústia existencial, se projetou na cruz, emblemática imagem cristã instrumentando a busca da absolvição: libertar-se, conhecer os segredos da trindade, da Natureza divina, do Filho e do Espírito Santo; chegar ao perdão, ao amor, à paz, ao enlace da união, ao começo e ao fim. Apesar de imposto, vulgarizado, enquadrado em doutrina, por intermédio de uma revolução cultural rigorosamente promovida, o orfismo, exemplificado pela religiosidade judaico-cristã, interpreta momentos intensos da trajetória evolutiva. As dramatizações existenciais, abraâmicas, antecedentes e subsequentes, operam uma teatralização dos mitos, alegorias e metáforas, inclusive mitraísticas, representando e repetindo uma tragicidade tétrica, onde, a consciência, como eu isolado, finito e mortal, denominada pecaminosa, desperta semes angustiantes. Um batismo iniciando a redenção da consciência, no símbolo purificador, a

86 Seme como expressões sensoriais de semiótica variável, comovente, apta a causar impressão em outros indivíduos, da

mesma espécie ou de espécies próximas, por contagio sensorial imediato e, tipicamente, extralinguístico.

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água; um sacramento ritualístico, igualmente um rito, deturpando uma crise cognitiva, um ajuste consciencial, numa purificação primitiva, física, lavagem purificadora, introvertendo nas profundezas do ânimo, uma tradição e um culto de inadequação existencial; a apologia do sacrifício, divulgando uma compreensão da vida como preâmbulo concreto e sofrido de uma idealização edênica. No batismo, mais de que um despertar de vitalidade e consciência, imponha-se a marca em xis de uma rendição, uma expiação simbólica, depois, sacrifical, operada em todas as direções do estado-de-ser; uma crucificação nos mistérios da existência, consagrando e aliando o terminante e presente medo de morrer, à ânsia de viver: acorrentando e cruzando dores naturais, e, ascéticas, estas, culturais e acrescidas, como um par de oferendas a imolar em prol a um júbilo hipotético, eternal e liberto de sofrimentos. Mas, a cruz, antes de denigrir em instrumento sacrificial, pretendendo reparar conflitos entre as tribos, nações, partidos, famílias e egos, é sinal fundamental, resultando da quaternidade das forças complementárias e opostas, das direções. Processando semes nessa cruz diamantina, transcendida como um sinal magno da existencialidade, esgotam-se desejos e apegos, até à morte simbólica do ego e o despertar do estado-de-ser lúcido. Mas, se dos céus nada desce, tampouco surge uma nova hierarquia; entre ofuscamentos residuais e a lucidez gloriosa, emergem sentimentos profundos de abandono e solidão; o sangue da dor universal esparge, vertendo para um novo coração, o Graal. Redimido na dor dos sucedimentos, sucessos, fracassos e enganos, surge um estado-de-ser ampliado: um filho, ou filha, da Natureza e do vazio. Na impossibilidade de se regredir, a não ser através de uma imposição catastrófica da Natureza, a solução do problema humano só irá se realizar num nível evolutivo e superior de consciência. Uma consciência renovada, informando, com clareza indubitável, que, juntos, com toda a Natureza, somos um só ser: consciência universal, cósmica, decorrente da perspectiva metafísica cosmo-existencial. Uma alegoria panteísta, poderosa e pertinaz, onde o retorno do cristo é visto como um processo de transformação manando do coração da humanidade, destronando a teocracia, dispersando o egoísmo e o dualismo, em busca da pureza e união. O ser humano, livre do medo de ser, viver e morrer, será capaz de se reconhecer como co-criador dos seus contextos; escolher a hipótese correta, verdadeiramente científica: a criação é um ato sublime compartilhado entre a Natureza criadora e a criatura, em busca de uma vida bela e consciente, heliotrópica, heróica; poderá construir os cenários floridos e desejados, não as barbaridades lideradas pelos que se acham representantes de raças superiores, capaz de dominar, subjugar e crucificar, nas arenas da vida, nas guerras, santas, ou não. A intenção é a instância de mais força e poder: intentar progredir no caminho honrado do respeito e da virtude, sem razões ou esperanças, além do cultivo da serenidade como objetivos final. Aceitar tudo como irremediavelmente impermanente, enxergar a realidade cíclica sem receio, saber não possuir maior importância intrínseca que os demais existentes, apesar das distinções: esta consciência é o início da virtude, historicamente e com efeito. Há suficientes maravilhas na realidade, como aparece ao

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espírito do artista, filósofo e cientista, à luz do bom senso, para justificar um profundo entusiasmo e sentimentos de reverência: confirmar esse momento humano como uma singela e espontânea expressão da beleza e grandeza universal é, por excelência, um ato de gratidão à Natureza, de louvor à criação. 3 - EQUINÓCIOS, SOLSTÍCIOS E VIRTUDES CARDEAIS Os eventos naturais, morte e nascimento, assim como os processos metafóricos e similares de transformações psíquicas, são, imemorialmente, ritualizados nos ciclos sazonais marcados na pontuação das direções cardeais. Para os taoístas, assim como para os sábios remanescentes da antiga Jônia, os pajés das culturas indígenas, inclusive das regiões andinas e amazônicas, os solstícios não são apenas ocorrências cósmico-telúricas; a reverência e atenção dedicada a esses fenômenos munem o estado-de-ser do conhecimento profundo do começo e do fim, seguidos por outros ciclos; introduzem na arte de calibrar os azimutes da consciência em horizontes alargados e pacientes. A periodicidade dos fenômenos reaviva a consciência em que os eventos naturais e as questões humanas alcançam ponto terminativo, eventualmente, um ponto de recomeço em outras ordens; ação e repouso são, ambos, aspetos necessários dos processos da vida: tudo nasce, germina, floresce e morre. O retorno ampliado da cosmovisão panteísta, decorrente da perspectiva metafísica cosmo-existencial, renasce, configurando uma religiosidade de vanguarda na pauta das eras, épocas e estações.

O solstício de verão marca o tempo em que a tendência universal, simbolicamente dita feminina, yin, ou in, nasce e recomeça a imperar, enquanto a energia solar, já no seu apogeu, recomeça a diminuir. Inversamente, o solstício de inverno representa o princípio masculino, yang, ou ka, no seu início, recomeçando uma nova ascensão de seis meses, sendo a tendência mãe no seu acme. Na consciência humana, o movimento da luz em crescendo pode ser entendido como manifestando clareza e razão, precisão e ação, entusiasmo e despertar; o repouso desta mesma luz pode, simbolicamente, ser compreendido como trazendo semitons, suavidade, regeneração e uma calma reparadora. Os dois movimentos são inspiradores e criativos, essenciais. O festejo do solstício de inverno visa louvar e fortalecer as tendências universais diurnas, solares, compensando a predominância noturna, lunar, no apogeu, enquanto as celebrações do solstício de verão estão voltadas para a louvação dos aspetos lunares, estimulando estas tendências na vazante. O solstício de verão marca um compasso criativo, de abundância, prazer e fertilidade; as noites são curtas, os dias longos, a Natureza, suportada pelo sol, em crescendo, está em seu máximo. A partir deste momento, até o solstício de inverno, a incidência da luz solar irá diminuir e a luz das estrelas passará a brilhar mais tempo nos céus noturnos, aprofundando, meditando e contemplando a visão e experiência até à próxima primavera. O sagrado masculino, força, é, apropriadamente, festejado no solstício

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de inverno; no hemisfério norte, por influência cultural, a cristandade também festeja, de certa forma, o nascimento do divino masculino no inverno: natal, solstício de dezembro. O cultivo atualizado dos antigos festivais é mais de que um gesto simbólico: proporciona uma maneira efetiva de lembrar e devidamente introjetar a ordem e harmonia natural das coisas, a consciência cósmica, percebida em termos de princípios polares e complementares, dia e noite, verão e inverno, vida e morte nas pautas da existencialidade. São eventos profundos e significativos, comemorando a vida, conectando o estado-de-ser à sua natureza regente; oportunidade de realçar a experiência, a consciência da realidade, afirmar o compromisso de amar e respeitar a vida, a Natureza. Se os rituais elaborados pela humanidade prístina, imaginando apoiar e sustentar as forças da Natureza e do Cosmos, pertencem à visão mágica e pré-científica dos antigos, o sentido profundo, mítico, dos festejos sazonais, continua sublime, atual, a oportunidade de usufruir destes momentos, ponderando as maneiras de pensar, sentir e reger a vivência: aprender a elevar a razão, exercitar a sapiência, recuperar o Norte real das virtudes cardeais, a grande cruz, bússola orientadora ainda embaçada nos mantos brumosos da eterna esperança.

Cultivar no imaginário a ideia de encontrar um éden amoroso e justo, só poderá brotar na existencialidade pela prática efetiva e sincera da paz e das virtudes: um conceito de veracidade inegável. Um ethos, uma quididade real, resultante da Natureza e cultura, como atitude e comportamento, realização específica, desfralda e se manifesta nas comunidades; os conceitos estéticos e de eticidade são práxis diretoras, de atuações necessárias e contínuas, executadas adequadamente por intermédio da estrutura cognitiva naturalmente operante na humanidade, gravada pelas forças da evolução. Uma marca vital como uma cruz virtuosa: o eixo vertical revelando a justiça e ponderação das atitudes e condutas; o eixo horizontal patenteando a coragem e temperança no exercício da vivência, no início e decurso das jornadas. Esse instrumento cognitivo seletivo, força edificadora de eticidade, possui valência histórica trina: 1: a cruz grega de braços iguais: o símbolo do ser humano autêntico, livre e bem-intencionado, querendo progredir aplicando uma inteligência qualificada, sensível, em busca de conhecimento, saber e virtude, nas encruzilhadas do destino; 2: o símbolo das quatro direções e estações dos indígenas e das tribos, o xis dos solstícios, inverno e verão, e dos equinócios, primavera e outono; e, 3: na confluência dos talentos e saberes, a quaternidade virtuosa dos antigos, marcada e cultuada no cruzeiro: no eixo vertical, ao Norte, a justiça, e, ao Sul, a prudência; no eixo horizontal, ao Leste, a coragem solar, e, ao Oeste, a temperança lunar. O centro desse abraço humanista e sapiente é o coração fraterno da amizade: a rosa dos bons sentimentos, da benevolência e da compaixão, desenhada num círculo, núcleo, de uma espiral evolutiva apontando para esse centro amigo: uma marca, signo de sabedoria, símbolo do estado-de-ser autêntico, filosófico.

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CONCLUINDO

“Uma vez, enquanto eu cavalgava num jardim, um pardal pousou em meu ombro; por um momento, senti-me mais eminente de que se estivesse ostentando quaisquer divisas ou insígnias que se pudesse merecer”. Tradução livre; ditos de Henry David Thoreau87.

1 - ACIMA DOS CONCEITOS

O dogmatismo e autoritarismo afastam-se do que realmente se possa desejar; não há virtude nas teses da violência; em tudo, são os meios que justificam os fins; não se encontra paz, prosperidade e iluminação iniciando guerras e suprimindo pessoas, destruindo e arrasando. Se a história pudesse ser estudada em laboratório, como se faz com experiências físico-químicas, com uma filtro, ou solvente, remover toda a malha dos contextos intolerantes, obscurantismo e ignorância, poderia se avaliar, com alguma exatidão, o balancete contábil da iniquidade histórica. Será possível encontrar alguém advogando a possibilidade de um balanço positivo a favor da iniquidade? Valorizando e justificando a guerra pelas tecnologias, ditas decorrentes, das intrigas belicosas, como se não pudesse haver tecnológica sem conflitos sanguinários?

Apenas a virtude da adequação existencial profunda – fundamento do reconhecimento certeiro do numinoso, de nume88 - poderá insuflar uma intenção e vontade pró-ativa. A capacidade de reconhecer-se legítimo, em todas as dimensões, históricas e míticas, pertencente a uma espécie circunstanciada na quididade original, em harmonia com a verdade e fluxo do dado-a-ser e do porvir: esse assentimento, reconhecimento positivo de si mesmo como ânimo e gênio natural, é a fonte única e ímpar de vitalidade e força – uma querência honrada, anuindo com a existência. Querer conviver com a comunidade, integrar-se, participar, cultivar esse gênio humano filosófico, revela uma vontade

87 “I once had a sparrow alight upon my shoulder for a moment, while I was hoeing in a village garden, and I felt that I

was more distinguished by that circumstance that I should have been by any epaulet I could have worn” 88 Nume: do lat. Numen: movimento de cabeça em assentimento.

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inteligente, determina um poder e uma aptidão positiva, de onde mana uma espontaneidade atuante em direção a essa práxis diretora, às virtudes, à vida, à amizade, à ética eco-humanista universal: uma práxis como uma mão amiga e aberta, orientada para acontecer em todas as escalas do estado-de-ser, devendo acontecer à luz da sabedoria, em graus sempre percorridos e revisados, num movimento permanente de atualização dos potenciais. Uma prática proporcional a essa comunhão empática e feliz do indivíduo e do conjunto, consciência unitária, confirmada num grau próprio de revelação, vivência mística, atribuída dos semes do espanto, temor reverente e êxtase; o advento de uma semética amadurecendo em serenidade e eutimia, expressando o reencontro com uma natureza prima; a confirmação de uma índole ingênua, criativa, dobrada de uma aspiração confiante e intuitiva: eis o élan indomável e sapiente do estado-de-ser, lúcido em avançar, superar as imperfeições em busca de outro presente mais ameno e amoroso, justo, fraterno, comunitário e liberto. Uma operação demonstrando estar em linha com a perspectiva metafísica cosmo-existencial, nos enlaces de uma cultura sapiente, assentada no ethos panteísta; ordem, benquerença e progresso aplicados na operação das virtudes num convívio amoroso, alegre, sem resistências hipotéticas, desafeições desnaturando e divergindo o que só se pode achar e realizar in situ, no imo atual do estado-de-ser, realizando uma forma universal e ecumênica de espiritualidade.

A história e a experiência demonstram que para quem intenta progredir, do ponto de vista filosófico, contribuir de uma certa forma para o amadurecimento da humanidade em geral, poderá ser importante libertar-se de um excesso de exigências e obrigações, evitar transformar-se num recurso devedor, procurar lugares mais tranquilos e amenos, no intuito de se manter mais saudável, encontrar o espaço-tempo necessário à melhor assimilação da filosofia disponível. Para isso é necessário optar por não se deixar tragar pelo consumismo e conformismo; eleger uma vida mais simples; preferir uma ordem mais espontânea e criativa do que as hierarquias hereditárias imperando nas agremiações sociocráticas; cultivar o prazer em compartilhar, saber refletir gratidão pelas dádivas da providência. Assim, talvez, um pouco do gênio feliz e natural do ser humano - quando bem nutrido e respeitado; ânimo demonstrado em alguns lugares como nas costas do mar Egeu, e antes, nas savanas e selvas do mundo inteiro -, poderá se firmar, vivo, numa multidão de indivíduos.

Substâncias psicoativas, tradicionalmente consagradas pela sua eficacidade, como Ayahuasca, Mescal e outras, podem servir como instrumento de autoconhecimento para alguns indivíduos. Sacramentos, cantos, dedicações ou posturas, práticas específicas como instrumentos de comunhão, são todos agentes psicoativos; mas, a bebida mística é, ademais, psicodélica, revela a mente: a filosofia, assimilada, até então, será demonstrada, tanto a revisada quanto a introjetada ao sabor da educação pregressa, o caráter básico, o sentimento essencial do indivíduo se amplificará, surgirá um ponto de auto-observação a partir do qual se iniciará um trabalho autógeno de escultura, uma reforma, um aprimoramento. Um psicoativo e psicodélico, não é necessário à vivência de uma

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experiência de união mística natural: vivenciam-se estados de unidade mística espontânea na infância, reencontrando essas vivências por intermédio de buscas, ritos e sacramentos diversos. A substância psicodélica, drasticamente efetiva na observação de si mesmo, pode ser eficaz à luz da filosofia praticada como na antiga fase pré-socrática e pré-pérsica, arquitetando sabedoria à luz da razão natural. A grande questão converge na primeira distinção mítico-genésica. Na mitologia órfica, teísta e dualista, a distinção separa criador e criatura: o princípio, arché, é excluso, incompreensível e inalcançável, deixando o ser sem rumo imediato, suscitando irrealismo sectário e irracional, idealismo dogmático e pavores. Na mitológica panteísta, a distinção justifica a criação sem separar, ou dicotomizar: o princípio é incluso, compartilhado nas relações e apreendido de imediato, deixando – quando profundamente meditado - o ser orientado; suscitando atos criativos, centrados e em harmonia com a Natureza.

O alvo é aderir a um processo no intuito de tornar-se uma pessoa com mais recursos e equilíbrio emocional, de riqueza semética: tornar-se mais razoável, justo, corajoso, tolerante, ponderado, prudente, confiante, amigo; sem apegos, pronto a mudar no confronto com ideias mais sensatas, de acordo com o crivo da intuição, razão, sentimento e perspectiva imediata; confiando no seu bom senso tantas vezes ampliado e na Natureza do estado-de-ser para se aproximar desses objetivos; estar aberto a aprender sempre mais. Não se advoga conhecer algo sobrenatural, além da possibilidade e dos limites da cognição humana e natural; o sentido de divino é uma combinação operante de conhecimentos, qualidades e sentimentos, presentes, em algum grau, em todas as pessoas. À luz da perspectiva metafísica cosmo-existencial, não há dogmas, apenas evidências, subjetivas e objetivas; não se cultua nenhum guru, mestre ou xamã além do líder e gênio que cada um pode encontrar em si mesmo. Não existe, interposto entre os limites dos sujeitos em comunicação, entre estes e os objetos, o mundo, o Cosmos, nenhuma entidade sobrenatural, oculta, pressuposta, ditando regras e normas; o fenômeno ético observado e conhecido com lucidez revela inteligência: o Logos. A comunicação é limpa, clara e natural; o consenso fundamental, a intenção comum, é buscar a expressão de virtudes para aproximar-se mais da criatividade, sabedoria e serenidade. Todos são recebidos como iguais no seio da cultura panteísta: unicidade, expressões sagradas do Universo, construindo uma sabedoria conjunta. Estar nesse caminho implica, de alguma forma, reconhecer e compreender os seguintes conceitos:

� O Universo é um fenômeno existencial primário, autotélico, sujeito absoluto;

� Os fenômenos são efêmeros, impermanentes, atributos de uma criatividade incessante;

� Um senso interior e adulto, forjado no ato da existencialidade, confere aptidão na diferenciação e funcionalidade da realidade, mitos e lendas;

� O crivo da razão se aperfeiçoa no estudo e cultivo da filosofia, nas obras dos artistas, poetas e prosadores, capazes de inspirar virtudes e coragem no ato de viver;

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� O empirismo, ceticismo e agnosticismo são as ferramentas magnas do saber e dever de respeitar os limites da razão; o saber provisional, prudente, aperfeiçoável, confere a capacidade de gerar virtudes e benevolência, naturalmente, por si mesmo, na experiência e nos atritos do convívio;

� A busca do silêncio contemplativo e da eutimia, no uso pleno e sensível da cognição, traz consigo respeito profundo, admiração pela Natureza e a todos os seres;

� O cultivo das virtudes cardeais dos antigos, o saber ativo e atuante, transcende a passividade, esperança e fé;

� A intuição é um fenômeno natural, uma conversa criativa do estado-de-ser com a sua essência mas sutil com o seu próprio gênio: filosofar, meditar e contemplar conecta à hiperconsciência, força mestre residindo no interior do estado-de-ser ciente;

� O estado-de-ser está na sua casa original neste sistema solar e planeta: não há redenção senão metaforicamente, dos medos, da ignorância, rudeza e ilusões: inspiradora é a beleza e a grandeza estética da Natureza em si.

� O sentido mais extático do fenômeno existencial reside na possível glória e criatividade do momento.

Progresso filosófico significa cultivar essas virtudes, reforçadas e elaboradas com cuidado e atenção em busca de intuição, conhecimento e sabedoria; um sentido de contexto e de perspectiva; um sentido de interconetividade e unidade dentro da diversidade, padrões dentro do conjunto; integração corpo e mente; uma profunda admiração perante a vida, um senso de mistério frente à complexidade; sentimentos de gratidão em relação à vida, postura corajosa e energética; desprendimento, aceitação do inevitável; o cultivo da gentileza, fraternidade e amizade.

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APENSO

Não haverá nenhuma estrela Para mostrar o lugar em que te encontras. Todas as estrelas estarão imóveis no céu... À procura do natal – Augusto Frederico Schmidt (1906-1955)

1 - DEFINIÇÕES E NEOLOGISMOS

Para apreciar a abordagem panteísta e suas sutilezas, importante é conhecer alguns termos e neologismos, diferenciando conceitos:

� Agnosticismo: doutrina considerando as especulações em torno dos primeiros princípios e causas do estado-de-ser como realidades incognoscíveis; admitindo que alguma ordem de realidade é incognoscível.

� Ato magistral, palavra magistral: em outro escrito, Est-ética; Ensaio Filosófico: louvando a beleza cultivando o belo; cap. O Daimónion; gênio inspirador, p. 77, publicado neste sítio, www.essencialismo.org: introduzo um novo conceito psicodinâmico, o inverso do conceito psicanalítico de palavra ou ato falho: a palavra magistral, ou o ato magistral resultando de um ato autorizado, intencional, acrescido de aspetos conceituais e cinestésicos hiperconscientes; a instância psicofísica geradora destes fenômenos é denominada com os termos ou expressividades: Daimónion ou Gênio; uma constelação cognitiva, motora, ideomotora, hiperconsciência conceitualizada tal como o Ego, Superego e Id – até hoje desconsiderada pela tradição psicanalítica em geral, freudiana em particular.

� Ceticismo: atitude ou doutrina segundo a qual o homem não pode chegar a qualquer conhecimento absoluto, indubitável, principalmente nos domínios das verdades de ordem geral: por que algo existe em vez de nada?

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� Civítico(a): O termo político(a) é dúbio por significar: 1: “ciência do domínio estatal e da subjugação”, mas, igualmente: 2: “‘ciência da cidade, da civilidade e da cortesia”: aspetos antitéticos reunidos no mesmo termo necessitam mais clara e precisa distinção: introduz-se o termo civítico(a) para diferenciar a habilidade no trato das relações humanas, a dialogicidade, civilidade, cortesia e respeito, virtudes típicas das comunidades: civítico como neologismo opositivo a político, o denominador referente à ciência do Estado societário, ideologias e doutrinas, negócios e programas governamentais imbuídos de proselitismos partidários, por extensão, envolvendo artifícios e espertezas interesseiras. Supomos haver dois tipos de tecnologia social: a política e a civítica. A civítica trata da arte de viver em sociedade à luz dos consensos e conselhos comunitários; a política estuda a fisiologia dos desacertos civíticos: formas deturpadas e antípodas de organização, onde, consensos tendem a degenerar em democratismo, lideranças em chefia autoritária, impositivas, senão ditatoriais. O eco-humanismo, num sentido central, manifesta, necessariamente, uma escala, uma arquitetura e tecnologia de dimensão civítica, onde modos compartilhados de viver, e os coloquiais de conhecer, acontecem no centro de um círculo comunitário; pareceres especializados permanecem periféricos atendendo e servindo ao sol central. Simbolicamente, o termo evoca a transformação de uma pirâmide de granito plantada num deserto numa infinidade de canteiros circulando jardins de flores e árvores frutíferas. Do ponto de vista ético, o termo implica na consciência que o dever é sentir, consentir, simpatizar, empatizar; operante a nível social, a arte da civítica igualmente implica na compreensão profunda que não somos o avesso crucificado de um divino deslocado do além; mas, que ‘divino’ é o outro, o próximo, a criatura viva, com a qual estamos compartilhando e construindo o momento, o presente.

� Daimónion: a voz, fonte cognitiva, que ressoava na consciência do filósofo grego Sócrates [e filósofos antigos], guiando suas ações, atribuída por este, simbolicamente, de bom ânimo, ou bom gênio inspirador. Do ponto de vista da análise estritamente filosófica e contemporânea, trata-se da resultante ativa de uma máxima congruidade: um meta-processo cognitivo, decorrente da ordem ética coligada e fundamentada no ethos embasando a perspectiva metafísica cosmo-existencial, por sua vez suportando a teologia panteísta e mitologia correspondente: i.e., a prática lúcida de um humanismo sábio e prudente, respeitador da Natureza; uma demonstração surreal da Beleza e do Belo, coligados à prática da virtude. Esse conceito, num sentido amplo, reporta-se a um nível de expressividade promovendo inclusão, no discurso, de diversos aspetos conhecidos e verdadeiros, captados no plano do conhecimento imediato, conotados, mas, habitualmente, não verbalizados, levando a supor uma perspicácia sutil, uma acuidade elevada, revelada, em cascata, em diversos níveis de atuação e entendimento: configurando do ponto de vista psicodinâmico o Daimónion, uma entidade psicanaliticamente significativa, ainda desprezada na arquitetura terapêutica vulgar.

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� Dogmatismo: irracionalismo conceitual como postura cognitiva; atribuindo aos dogmas, crenças não fundamentadas, o poder de revelar a verdade.

� Dualismo: do ponto de vista metafísico rigoroso: a aceitação da existência de fenômenos sobrenaturais, i.e., afirmando posicionamentos dogmáticos como descrições da realidade.

� Eco-humanismo: do ponto de vista histórico, uma ampliação contemporânea do humanismo, onde a humanidade é vista como criadora de valores éticos, definidos a partir do um ethos lúcido e exigências psicológicas, ecológicas, econômicas e sociais, integradas e condicionadoras da vida humana – não tendo a ética uma fonte normativa ou transcendental.

� Estado-de-ser: expressão cunhada no sentido de acentuar o conceito de que inexiste um ser separado de um estado, senão como hipótese, desafiando, desta forma, o conceito dualista matéria versus espírito; rompendo o idealismo numa fenomenologia radical, de cunho existencialista, superando alguns psicologismos típicos da fenomenologia na sua fase inaugural; esvaziando, em termo, os discursos pondo em oposição consciência e corporalidade.

� Ethos ou etos: embora, em antropologia e sociologia, o termo ethos seja empregado, ocasionalmente, com ênfases ontológicas: éthos, grafado com ‘é’, referindo a instituições, culturas e coletividade, sendo, êthos, grafado com ‘ê’, relacionando ao que é do indivíduo; a palavra etos ou ethos – aportuguesada, sem as acentuações sub-definidoras -, abraça um significado mais fenomênico, dinâmico, abrangendo o que é do indivíduo contextualizado, circunstanciado, em relação ao seu grupo e ao seu meio, demonstrando em si, traços existenciais e natureza específica, assim configurando o ethos. Portanto “êthos,ous”, vocábulo grego, significa ‘costume’, ‘uso’, ‘caraterística’; ‘morada’, ‘covil habitual’ [falando-se de animais]; ‘maneira de ser’, etc. será, filosoficamente, definindo como: ethos ou etos: vocábulo referindo ao modo de ser geral – à natureza predominante, refletida e caraterística - de indivíduos, em relação aos grupos e circunstâncias a que pertencem; ou, dos grupos abordados como entidades coletivas e específicas em relação ao meio: trata-se do que é caraterístico, predominante, num ente específico, ou grupo, do ponto de vista: da disposição interior, ou temperamento, da natureza emocional, afetiva e dos valores morais. Portanto, ethos: refere-se ao ânimo, ao conjunto de valores cognitivos, num sentido pleno: motivações, aspetos intelectivos, afetivos e estéticos, juízos relativos a si mesmo e ao mundo; os traços psicossociais e comportamentais correspondentes, em conjunto, faculdades, talentos, definidores de identidade, individual e relacionada, i.e., interpessoal e social, marcando os costumes e hábitos fundamentais, assim como as realizações ou manifestações próprias e culturais. Num sentido mais aprofundado, metafísico, ethos se refere à natureza central, fenomênica, do estado-de-ser contemplando a sua natureza: 1: estar sendo, naturar, 2: como humano, 3: no âmbito planetário, 4: manifestação cósmica lúcida e

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essencial, existencialidade pura: meditando, com máxima sobriedade e idoneidade, desprovido de pré-concepções, encontrando e afirmando o ânimo existencial mais singelo, adequado e fecundo, experiencial, correspondente a esse estado-de-ser: assim, encontrando, definindo, afirmando e realizando, o ethos genuíno do estado-de-ser [humano].

� Holismo: tendência, que se supõe ser própria do Universo, a sintetizar diversidades dinâmicas multicêntricas e unitárias, desvendando uma totalidade complexa e organizada. Teoria segundo a qual o estado-de-ser humano é um todo indivisível, inexplicável por intermédio dos seus distintos componentes, físico e psíquico, considerados separadamente. O ponto essencial é reconhecer que qualquer entidade definida exibe uma natureza dual: ela é uma unidade em si, sendo, igualmente, parte e expressividade de um totum maior, numa relação opositiva e complementária.

� Idealismo: doutrina que, em diversos sentidos, reduz o estado-de-ser a uma entidade de ordem subjetiva.

� Logos: inteligência natural e razão justa, ponderada, do estado-de-ser em todas as suas escalas: 1: do estado-de-ser humano, onde essa inteligência se formula, à luz da razão natural; 2: ao estado-de-ser cósmico, totalidade em si, e, igualmente, in situ na humanidade, o totum por ela conhecido, manifesto e refletido.

� Luz da razão natural: refere-se à inteligência unissonante, exercitada naturalmente, com equilíbrio e harmonia dos sentimentos, pensamentos, intuição e da imaginação, levando a uma consciência elevada, permitindo a entrada em operação de uma funcionalidade cognitiva de vanguarda. À luz da razão natural a cognição opera sem os reducionismos e racionalismos dicotômicos elaborados no decurso da formação histórico-cultural da universidade ocidental, que, influída pela mitologia teísta e perspectiva metafísica correspondente, transcendente-transcendental, desconsiderou as contribuições justas, exatas e fundadoras da intuição, da apreciação estética e imaginação, como elementos essenciais, imprescindíveis, na elaboração da aptidão moral e de valores especificamente humanos, embaciando a lucidez do saber filosófico virtuoso, e, ultimamente, levando o processo civilizatório à derrocada e queda. Em facetas mais específicas do mesmo desvio cognitivo profundo, gnosiológico: 1: o reducionismo cientificista desconsidera a praxeologia e o bom senso, levando a uma tecnologia degradante; 2: o reducionismo teísta descarta a imaginação sensata, levando a um bigotismo supersticioso; 3: o reducionismo monetarista descarta o valor autônomo e real da moeda levando a uma usurpação e um defraude crônico do mercado econômico; 4: o reducionismo educativo desconsidera as especificidades dos alunos, deturpando a dialética educadora numa (im)postura autoritária.

� Metafísica cosmo-existencial: no discurso filosófico, evoca-se: a) uma perspectiva metafísica transcendente, e, b) uma perspectiva metafísica transcendental, como

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duas perspectivas metafísicas diversas, as únicas possíveis: o que é duplamente falso: 1: a obra de Kant é cognitivamente incompleta, 2: a categorização já é intrinsecamente dicotômica e excludente, tecida do interior da formatação civilizatória dualista: oposições e antagonismos, quando denotados, sendo interdependentes, não formam duas perspectivas, mas um único eixo de perspectiva integrado: retificando os conceitos e precisando: o eixo de perspectiva transcendente/transcendental – representa uma perspectiva peculiar, especificamente teológica e teísta, não, essencialmente, filosófica. Não sendo a civilização ocidental a única possível, historicamente isolada, universal – embora globalizada por contágio e dominação - e, sendo diversas civilizações notificadas, ao longo da história, divergentes em relação a estes valores fundadores dualistas ditos “do Ocidente”: outro eixo de perspectiva é, intuitivamente, provável. Trata-se da perspectiva metafísica, aqui destacada e denominada eixo de perspectiva metafísica cosmo-existencial, abrangendo um arco de tensão incluindo desde a estrutura cognitiva do Homo sapiens até à estrutura cósmica e princípios operantes, configurando o arco filosófico por excelência, mais sóbrio e antigo, como um arco-celeste, ajuntando o macrocosmo ao microcosmo, integrando arché a physis, o singular e multíplice numa ordem unitária, evocando o Logos, eternamente gerador de Arete(s) ponderada e prudente, excelente.

� Misticismo: não como crença no sobrenatural, e sim, no sentido de realizar um estado essencial de união, a vivência direta do mistério, mediante a contemplação, meditação – ou, uso eventual de substâncias, ‘plantas de poder’. Um estado apto a ser descrito como extático, tremendo, espantoso ou fascinante - ou uma combinação paradoxal destas emoções e sentimentos.

� Naturalismo: do ponto de vista filosófico, doutrina segundo a qual todo o conjunto dos fenômenos resulta de coisas naturais; acontecendo dentro das leis e processos da Natureza sem a intervenção de nenhuma causa verticalmente transcendente, ou sobrenatural.

� Panteísmo: no panteísmo, a conceitualização sinalizada como “Deus”, “divino”, não se individualiza, não sendo imaginada dissociada, hierarquicamente acima, do Universo em si e pensado: o fenômeno conceitual não se concebe como apartados das circunstâncias a que se refere. Universo + Deus: configuram duas facetas da mesma concepção; como os lados de uma mesma moeda, tornando as metonímias “Deus é matéria/energia”; “Deus é Universo” configurações retóricas imediatamente evidentes. A Natureza, sacralizada desta forma, é a divindade do panteísta, fonte suprema de inspiração, ela é o seu templo. Chegar a uma cosmovisão panteísta implica com frequência em uma longa transcendência cultural; precipuamente por aqueles que receberam uma educação teísta, idealista e dualista. A concepção panteísta remete ao conhecimento filosófico mais preciso e sóbrio, as religiões se

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fundamentam em interpretações desviadas e imperfeitas desse conhecimento e realização intuitiva, profunda e perene.

� Numinoso, de nume: a qualificação cognitiva da realização mística; a inspiração poética acrescida de um reconhecimento, ou assentimento, referente a esse influxo. Segundo Rudolf Otto (1869-1927), autor do termo, teólogo e filósofo alemão, conhecido pela obra originalmente escrito em 1917, e, traduzida como “O Sagrado. Sobre o Irracional na Ideia do Divino e sua Relação com o Irracional. Lisboa: Edições 70”: numinoso, deriva de nume(n), como luminoso, vem de lume(n): referindo-se ao sentimento único vivido na experiência religiosa: a experiência do sagrado, em que se fundem aspetos descritos como fascinação, terror e aniquilamento. Otto89, querendo refletir a oposição: a) do racionalismo frente b) ao puro sentimento - “o sentimento é tudo, o nome é nada”, ou vice-versa -, acentua que o sagrado possui, em si, elementos morais e éticos, não sendo redutível a estes: para identificar o sagrado no seu aspeto não-racional, nem, exclusivamente, emocional, ele cunha a palavra numinoso, designando o que, na esfera religiosa, não pode ser entendido, porque inefável, sendo a experiência estética, um possível caminho para o diálogo, tanto quanto o racionalismo meditativo. Contudo, no decurso das suas explanações, sendo teólogo cristão, introduz tentativas de integrar o irracional ao racional, afastando-se da via filosófica estética [cuja inteligência, neste texto consagrado ao panteísmo, é, epistemologicamente, mapeada por intermédio de uma conceituação apontada como conhecimento imediato], para incluir, nas suas teorias, de forma imprecisa, senão confusa, elementos não fundamentados e preconceituosos, relativos ao seu credo. As conveniências relativas ao seu fideísmo transformam o seu discurso numa profissão de fé, na qual, o numinoso, inicialmente reconhecido inefável, e, consideravelmente, do domínio do sentimento e da apreciação imediata, mistura-se a aspetos teológicos dogmáticos, insensitivos e irracionais, deturpando os seus fundamentos, tornando o numinoso:

“(...) de difícil compreensão para o homem natural, que, não entendendo a questão moral e de expiação, o que é o pecado, apenas compreendendo o que é um erro moral, não conseguindo saber o que é, qual é o grau de problema existente no pecado (O sagrado; p.57-58 ). Este, ainda estando na experiência estética (...), não faz parte do universo religioso, e, portanto, não evoluiu como cristão, como sujeito religioso (...). Já no Cristianismo, o numinoso chega a um tal ponto de racionalização e evolução, que ele se estabelece como religião superior a todas as outras. O mistério da necessidade da expiação não encontra, em nenhuma religião, expressão tão completa como no cristianismo” (ib. p.59).

89 Comentado por: Evandro César Cantaria da Silva e Clademilson Fernandes Paulino da Silva, na Revista Theos - Faculdade Teológica Batista de Campinas; Primeira edição: 31 de dezembro de 2005 e encontrado no sítio internet: http://www.revistatheos.com.br/Artigos%20Anteriores/Resenha_01_01.pdf.

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Portanto, em última análise, para Otto, o numinoso é o dogma; mas, permanecendo neste ensaio, elaborado de acordo a experiência imediata do estado-de-ser, onde, numinoso define-se como:

Numinoso: um fenômeno experiencial, fundamentalmente estético, assentado numa predisposição inerente ao estado-de-ser dotado da faculdade hiperconsciente, típica da razão qualificada, advindo da pressão evolutiva, burilada pela busca filosófica orientada por intermédio da perspectiva metafísica cosmo-existencial, sendo as suas caraterísticas: 1: um fascínio que, ao amadurecer, satisfaz e brinda o ânimo de um sentimento (ou complexo de semes) definido como esfuziante serenidade; 2: sentimentos desaguando na experiência conotada como espanto místico, ou vivência da unidade transcendente e transcendental do estado-de-ser revelação cosmo-existencial; 3: resultando num conhecimento e saber relativamente expresso por meio da filosofia, poesia, arte e ética aplicada, embasado num ethos fundamental, caraterizado por um profundo respeito à Natureza cósmica; 4: revelando uma mensagem – memética, semética e genética – sublime, coroando e honrando a intuição das virtudes cardeais.

� Semética, seme: o sentimento não se transmite por interação genética, nem se exemplifica como uma troca de memes, comunica-se por uma via mais imediata: um sorriso, um olhar brejeiro, que, num relance, podem, efetivamente, varar o fardo da tristeza. Evidenciam-se transmissões e reconhecimentos que não se referem a uma mutação genética, nem a uma educação ou comunicação memética90: logo, a esfera comunicativa referente à res sensitens não conforma a gene ou meme: processa-se, com efeito, uma iniciação semética, uma transmissão de semes – equivalentes dos genes e memes que atinam aos aspetos extensos e cogitans do estado-de-ser unitário. Se a evolução da genética exige mutação, a da memética educação, a evolução semética exige iniciação. Iniciação transmitindo os semes como expressões de semiótica variável, comovente, apta a causar impressão em outros indivíduos da mesma espécie ou de espécies próximas, por contágio sensorial imediato e, tipicamente, extralinguístico: memes, semes e genes reunidos, configuram numa mensagem existencial integrada.

90 Os memes podem ser analisados como se fossem micro-organismos em busca de hospedeiros: a memória das pessoas.

A memética é uma teoria proposta por Richard Dawkins no ano de 1976, no livro O Gene Egoísta, mas somente em

1997 foi revisada por Susan Blackmore, em um artigo publicado na The Skeptic ( No 2, 43-49), com o nome “O Poder

do Meme”, seguido de outros artigos e de um livro chamado “A Máquina Meme”, que conta com a introdução do

próprio Richard Dawkins. O “meme” é definido como um padrão de informação gravado na memória e capaz de ser

copiado na memória de outro indivíduo. “Memética” é a ciência empírica e teórica que estuda a replicação e evolução

dos memes. A memética, em relação à evolução das ideias e sistemas de crenças, pode ser entendida como o

equivalente da genética em relação à evolução das células e organismos. Em nível biológico existe o “gene” e a nível

cultural o “meme”.

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� Teísmo: doutrina que admite a existência de um deus pessoal, causa externa e separada do mundo.

2 – VÍNCULOS IDEOLÓGICOS

Movimentos filosóficos e práticas diversas - pagãos, taoístas, doutrinas procedentes do hinduísmo, ioga e budismo, indigenismo, estoicismo e epicurismo, entre tantos - apresentam, em conjunto, elementos panteísticos, práticos e teóricos, fontes de inspiração na construção da ética panteísta.

� Budô: Ao longo das transformações sociais e históricas, o Bujutsu (artes marciais) evoluiu para o Budô (dô, como “o caminho”, no sentido taoísta da palavra); Budô, cujo objetivo é desenvolver a mente e o corpo por meio da prática de vários estilos da arte do movimento: entre elas Aikidô, Kendô, Judô, Sumô, Caratê, Shorinji Kenpô, etc. todas elas enfatizando a busca do gesto perfeito como expressividade e revelação plena do estado-de-ser – implicando uma integração dinâmica entre corpo, psique e contexto.

� Epicurismo: doutrina caraterizada, na física, pelo atomismo, e na moral, pela identificação do bem soberano com o bem-estar psicossomático encontrado na busca do conhecimento, sabedoria e prática das virtudes e da temperança.

� Estoicismo: doutrina monística caraterizada pela consideração do problema moral; em busca de um estado em que o estado-de-ser, pelo cultivo das virtudes e do poder da intenção, atinge, por esforço próprio, o ideal do sábio: a serenidade e a liberdade.

� Indigenismo místico ou sistema xamânico: a visão xamânica demonstra elementos consoantes com o panteísmo: cultivo de uma percepção e interação direta com o mistério [empirismo subjetivo]; Deísmo: todos podem se tornar xamãs através da educação da percepção; Holismo: evocando uma aglutinação do sagrado com o natural, do espiritual com o material.

� Ioga e o Budismo filosófico: pela meditação, prática de vida, adequação postural e esforço cognitivo, chega-se à compreensão plena da impermanência e consequências, ao domínio dos desejos e do apegos, à felicidade suprema.

� Taoísmo: ensinamento filosófico naturalista cuja noção fundamental se refere a um princípio unitário, universal harmonizador da polaridade essencial - Yin e Yang: o Tao, ou Caminho, o qual se reconhece intuitivamente por meio da meditação, da observação da Natureza e prática de uma vida simples.

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� Zen-budismo: dedicado à contemplação intuitiva suscitada pelo amor e respeito ao estado-de-ser, virtudes que se exercitam através do trabalho e da prática da simplicidade efetiva; levando à plenitude mediante aprendizagem e esforço próprios.

3 - REFERÊNCIAS INCOMPLETAS, MAS EXTENSIVAS

Ao longo de toda a história, antiga, mediévica, moderna e contemporânea, vários filósofos, pensadores, poetas e artistas, de delineamentos humanistas, naturalistas, libertários, transmitem e inspiram concepções e sentimentos panteísticos, com especificidade e intensidade variáveis. Citando e exemplificando sem sistematicidade, nem completude:

Os pré-socraticos a quem dedicamos um ensaio: Tales de Mileto (624-546 a.C.); Anaximandro (611-546 a.C.); Anaxímenes (588-534 a.C.); Xenófanes (560-478 a.C.); Heráclito (536-470 a.C.). Sócrates (c. 470-399 a. C.); Zenão de Chipre (séc. IV-III a.C.). Em outras terras, poetas, como Omar Khayyam (1048-1131); alguns pensadores e personalidades do medievo, além das suas afiliações, santidades e esoterismos: Johannes Scotus Erigena (810-877); S. Francisco de Assis (1182 -1226); Meister Eckhart (c. 1260 - c. 1328); Guilherme de Ockham (1300-1349). Autores e filósofos pré-modernos e modernos, como William Shakespeare (1564 – 1616); Michel E. de Montaigne (1533 -1592); Jean Jacques Rousseau (1712 – 1778); Giordano Bruno (1548-1600); alguns eruditos de Salamanca como Juan de Mariana (1536-1624) por desmistificar e contestar o direito divino dos reis; Baruch Spinoza (1632-1677); John Toland (1670-1722) que em: "Pantheisticon: Sive Formula Celebrandae Sodalitatis" é reconhecido como o autor que publicou, pela primeira vez, o termo panteísmo para definir o cultivo imediato do sagrado. Poetas como Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), John Keats (1795-1821); Jean Nicolas Arthur Rimbaud (1854 - 1891), e, vestindo os ideais em formas perceptíveis, alguns simbolistas como Paul-Marie Verlaine (1844 - 1896); outro, naturalistas, como Alfred Tennyson (1809-1893), John Burroughs (1837-1921); autores e novelistas transcendentalistas, como Ralph Waldo Emerson (1803 – 1882), Henry David Thoreau (1817-1862); quase todos os pensadores do período dito das luzes91.

91 O Iluminismo, movimento bastante heterogêneo e internamente polêmico do séc. XVIII que se caracterizava pela

confiança no progresso e na razão, pelo desafio à tradição e à autoridade e pelo incentivo à liberdade de pensamento;

então caracterizado pela centralidade da ciência e da racionalidade crítica no questionamento filosófico; o que implica

recusa a todas as formas de dogmatismo, esp. o das doutrinas políticas e religiosas tradicionais; Filosofia das Luzes,

Ilustração, Esclarecimento, Século das Luzes. A datação da definição da palavra “iluminismo” em português e nessa

acepção de 1836: Francisco Solano Constâncio: Novo diccionario critico e etymologico da lingua portugueza. Paris,

1836.

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Poetas e escritores - em conjunto, contemporâneos - como Fernando Pessoa (1888-1935); Vicente Ferreira da Silva, filósofo e pensador brasileiro (1916-1963); Rudyard Kipling (1865-1936), inúmeros artistas e criadores; Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900); o escritor Romain Rolland (1866-1944); outras personalidades como Albert Einstein (1879-1955), Eric Hoffer (1902-1983), Isaac Asimov (1920-1992), Carl Sagan (1934-1966); todos os artistas para quem vida e arte formam uma unidade inseparável: os músicos como Beethoven, Wagner, Tchaikovsky; os pintores impressionistas e expressionistas, como Matisse, Van Ghog e Gaugain; escultores reunindo o ideal ao real, como Rodin; místicos e surrealistas como Antonin Artaud (1896-1948), entre inúmeros outros. Psicanalistas, sociólogos, a totalidade do movimento filosófico contemporâneo fenomenológico, existencialista, estruturalista, desconstrucionista, contribui à ruptura desafiante e definitiva do gap idealístico. Wilhelm Reich (1897-1957); Gilles Deleuze (1925-1995) cujas principais influências filosóficas terão sido Spinoza, Nietzsche e Henri-Louis Bergson (1859-1941) que afirmava a esencialidade da apreensão imediata, ou intuição; Pierre-Félix Guattari (1930-1992); Edgar Morrin (1921); Michel Foucault, (1926-1984); Jacques Derrida (1930- 2004). Recentemente, Paul Harrison (n. 1945), escritor britânico escreveu: "Elements of pantheism" (1999), editando o sítio internet The World Pantheist Movement divulgando, com inúmeros colaboradores, uma forma científica, materialista e monista de panteísmo. Harold Wood (n. 1950) e Derham Giuliani são fundadores da sociedade convivial e virtual: Universal Pantheist Society. Diversos sítios internets se dedicam à divulgação do panteísmo: em português: www.panhuasca.org; www.panteismo.pt.vu; o sítio www.essencialismo.org. se dedica ao panteísmo, do ponto de vista filosófico, i.e., ao estudo da perspectiva metafísica cosmo-existencial.

Numa abordagem contemporânea derivada da tradição xamanista da linha ayahuasqueira: a Sociedade Panteísta Ayahuasca92 é pioneira em inscrever oficialmente o uso desse psicoativo num contexto panteísta. Além de ser um centro de divulgação do panteísmo, oferece cerimônias ayahuasqueiras objetivando examinar e conhecer os estados ampliados de consciência, em busca: 1: de progredir do ponto de vista ético e filosófico; e 2: gerar experiências místicas. A utilização de um chá psicoativo neste intuito se justifica por três razões, ou pressuposições, principais: 1: uma busca filosófica, ou espiritualista, resulta quando coroada com êxito, numa experiência mística de união; 2: definida como um estado eidético e ampliado de consciência; 3: o uso ritualístico de plantas psicoativas é reconhecido

92 Funcionando de maneira definida, mas informal, desde de 06 de janeiro de 2001; oficialmente fundada, registrada em

cartório, em 01 de setembro de 2002 com a denominação inicial Sociedade Espiritualista Inka, renomeada em

assembleis oficial como Sociedade Panteísta Ayahuasca no dia 24 de Maio de 2003.

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como coadjuvante em proporcionar progresso cognitivo pleno, iluminação: conhecimento de si, união mística.

4 – DA FUNDAÇÃO DE UMA SOCIEDADE PANTEÍSTA O estilo não diretivo, espontâneo, típico da abordagem panteísta, facilita o decurso dos diálogos e cerimônias. Na Sociedade Panteísta Ayahuasca93, como exemplo, os participantes reúnem-se em conselho, regularmente, uma vez ao mês, em média, sem compulsões ou obrigações, em datas não necessariamente fixas ou horários estritamente definidos - não há hora exata para filosofar –, de acordo com as possibilidades dos facilitadores e partilhantes, no intuito de meditar e trocar ideias pertinentes. As cerimônias, desta sociedade, e outras da mesma quididade, são dedicadas a indivíduos simpáticos à proposta panteísta. Na abordagem metafísica amadurecendo em religiosidade panteística, não é típico desejar fundar dependências, tipo representações ou filiais, e sim, motivar e incentivar indivíduos irmanados numa percepção eco-humanista similar, a instaurar, pôr em ação e administrar, independentemente e com total responsabilidade jurídica e administrativa, os seus próprios espaços e movimentos. Não há mestres – ou outros hierarquismos - nesses intentos, e sim, facilitadores do próprio tempo de vida; dentro de um dever ético exemplificado e estimulando escolha e liberdade em busca de maioridade. Tipicamente, as atividades acontecem em enquadramentos ritualísticos, permitindo a instalação de um estado de serenidade e bem-estar, facilitando a harmonização, consigo mesmo e a Natureza. É intuitivo, que, em possíveis organizações panteístas usuárias de substância psicoativa e psicodélica, como Ayahuasca, o uso do psicoativo não seja compulsório; na dependência dos movimentos, dos jogos polares e resoluções unitárias, como se apresentam, o participante poderá resolver não fazer uso da substância sem por isso deixar de participar dos encontros rituais. Nos eventos, os integrantes são instruídos sobre a concentração do chá, bebendo-o no limite do bom senso, iniciando com doses pequenas, se necessário, repetidas, graduando, sentindo os efeitos, até ao ponto em que achar adequado. Portanto, poderão coexistir, no mesmo ambiente e encontro, pessoas meditando à luz da razão natural, ou com a razão ampliada pelo uso da bebida psicoativa, participando e abordando temas escolhidos, ou, espontaneamente definidos. Em sociedades democráticas, como no caso da República Federativa do Brasil, o exercício de alguma forma de religiosidade, respeitando o direto normativo, não implica na necessidade de registro, ou de alguma forma positivamente autorizada; a livre prática de cultos religiosos é, tipicamente, garantida, de direito público. Contudo, desejando oficializar uma sociedade religiosa em território brasileiro, aspirando existencialidade

93 www.panhuasca.org

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societária, a adequação destas necessidades práticas à legislação fiscal implica nos seguintes trâmites: a) definição de estatuto: criar e descrever o estatuto da sociedade onde deverá ser definido o endereço da sede, que poderá ser o residencial, nome dos fundadores, e, uma descrição referente à missão da sociedade; referir-se, ao fato de que faz parte do ritual comungar alguma substância de uso autorizada e legal – como a Ayahuasca, no Brasil; b) fundar a sociedade: convocar formalmente, através de carta registrada, os membros fundadores da sociedade para a reunião extraordinária de fundação – o ato fundador - onde será lido e aprovado o estatuto, e, c) formular a ata de fundação; sendo necessário, no mínimo, três pessoas para o preenchimento dos cargos de presidente, vice-presidente, tesoureiro e secretário da sociedade – estes cargos poderão ser acumulativos. A ata de fundação deverá ser manuscrita em Livro de Ata [num modelo semelhante aos livros usados nas fundações de condomínios]: que poderá ser iniciada com os seguintes termos: "na data tal, convocados por carta, com os seguintes teores: - manuscrever a carta -, reuniram-se os fulanos e tais, para fundar a Sociedade xis; cuja missão e finalidade estão descritas no estatuto, que foi lido, aprovado e transcrito abaixo (...). O estatuto deverá ser manuscrito no livro de Ata. Descrever os cargos, presidente, vice, secretário e tesoureiro, solicitar a assinatura dos concernentes: estando, desta forma, formalmente criada a nova sociedade civil: um direito garantido pela constituição - o povo é soberano na criação desse tipo de sociedade. O d) registro oficial poderá ser solicitado: não havendo, na missão e finalidade da sociedade, nenhum impedimento ou desrespeito ao direito público e normativo, formalizada a sociedade nestes tremes, a administração governamental acatando o registro, que no território brasileiro, necessitam dos seguintes requisitos: 1: lavrar a ata no cartório de títulos e documentos: o estatuto já assinado e a carta de convocação devidamente assinados e rubricados pelos dirigentes e responsáveis; o Livro de Ata assinado e rubricada por todos os integrantes; 2: solicitar por escrito o registro da sociedade; a seguir, a documentação e registro, devidamente, lavrados em cartório, 3: solicitar ao organismo governamental pertinente, o estatuto de “entidade religiosa”; a cópia do estatuto da nova sociedade, anexada ao comprovante de registro em cartório, deverão ser enviados à Receita Federal, de acordo com as normas de conhecimento público – encontráveis na internet – e relativas à “criação de entidades jurídicas”; preencher então a solicitação referente ao número identificador da sociedade na categoria “entidade sem fins lucrativos de natureza religiosa” - tomar o cuidado para indicar o mesmo endereço, i.e., a sede da sociedade, como indicado no estatuto, em todos os documentos. No Brasil, a tramitação do processo leva alguns dias para se completar: o documento da Receita Federal, reconhecendo a nova sociedade e atribuindo a ela um número e certificado de CNPJ, será disponibilizado na Internet. Uma declaração de renda, mesmo não havendo lucro, deverá ser enviada anualmente. A atividade religiosa compreendendo, precipuamente: uma busca filosófica, orientadora; a estabilização e definição de uma ética; uma experiência mística, de união, como estado pleno de satisfação existencial, implica, igualmente, aspetos sociais, onde correligionários se reúnem, celebrando as suas afinidades e afiliações. Tais aspetos não irão se harmonizar

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e combinar, mantendo o ethos fundador no íntimo do estado-de-ser, em estruturas deturpando hábitos civíticos - a fonte mais profunda de onde aflora o saber - em empreendimentos politizados e sectários. Em decorrência, uma reabsorção das religiosidades para o interior dos lares, na intimidade de círculos dialógicos e participativos, jardins de saberes, e, paralelamente, o retorno das escolas de filosofia às praças públicas e áreas de debates, revelam ser movimentos complementários, necessários a um redirecionamento sensato do processo civilizatório. O ideal não seria que cada cidadão da nova comunidade fosse o líder e profeta da sua própria religiosidade?

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Régis Alain Barbier - dia 22 de setembro 2009 Aldeia, Grande Recife – Pernambuco.