páginas de um livro bom (experimentação)
DESCRIPTION
Versão de experimentação com as 20 primeiras páginas do livro.TRANSCRIPT
Apresentação
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Todo publicitário sabe que o primeiro Valisère a gente nunca es-
quece. Para o escritor, a sensação de lançar o primeiro livro tam-
bém é inestimável. Não escrevo apenas porque gosto de criar histó-
rias; o que me fascina é poder compartilhá-las com outras pessoas
e assim provocar-lhes o espírito.
Os textos que compõem esta coletânea foram escritos entre o
último ano do colégio e o último ano da faculdade. Assim como a
clássica propaganda do sutiã, estas páginas (não todas, mas a maio-
ria) falam de juventude. Entre Vidas por aí (2003) e O pintor (2008)
situa-se a minha, e admirador que sou do Clube da Esquina, lem-
brei que Flávio Venturini e Márcio Borges escreveram uma vez:
Nossa linda juventude, página de um livro bom / Canta que te quero cais e
calor, claro como o sol raiou.
Tomei emprestado aquele verso e da paráfrase fi z o título.
Espero que meus contos, poemas e crônicas soem como música
para seus ouvidos, e que você saia remoçado da última página.
Boa leitura.
Sumá
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10Sumá
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11Sumá
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Em uma dessas noites cariocas algo de insólito me aconteceu
durante um engarrafamento em Ipanema. No painel do carro
conferi a temperatura externa. Fazia calor. Comecei a observar
os veículos ao meu redor: todos de janelas fechadas... Não era
para menos. Escolhi um CD e aumentei o volume; a música
serviria de distração.
De repente, ouvi alguma coisa bater no meu vidro: “Fodeu.”
Não, não que eu andasse tenso ultimamente, mas confesso que a
primeira coisa que me ocorreu foi assalto. Entretanto, para meu
alívio e surpresa, no lugar de um calibre trinta e oito estava a
mão de uma mulher estendida da janela do carro ao lado. Ela
falava alguma coisa que eu não entendia. Baixei o vidro afi nal.
– Jorge! Sou eu, lembra?
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Levei alguns segundos encarando-a.
– Sim! Nanda! Da faculdade...
– Isso! Quanto tempo! E aí, como vai a vida?
Percebi que o homem no volante passou a nos observar sério.
– Bem, bem. Nossa, nunca mais nos falamos...
– Pois é... Como fomos nos deixar perder, hein?
Ela sorria. O cara não gostou do “como fomos nos deixar
perder...” Acho que eu sorria amarelo quando o ouvi resmungar
qualquer coisa.
– Ah! Manoel, este é o Jorge. Meu namorado na faculdade.
– Prazer! – Acenei cordial e com ligeira afetação.
Ele levantou a mão, mudo e protocolar.
– Acho que faz mais de vinte anos, não?
– Quase trinta... Seu filho aí atrás?
– Ah, sim – continuei hesitante: – Ele passou o fim de semana
com os avós. Agora voltamos para casa. E o casalzinho...
– É meu... Quer dizer, nosso: meu e do Manoel. São uns amores.
– Ela então me perguntava:
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– E sua mulher?... – quando o marido avançou o carro por al-
guns metros. – Peraí, Manoel! Não vê que estou conversando?
– Não posso parar o trânsito por sua causa.
– Por nossa causa, você quer dizer: minha e do Jorge.
E assim que emparelhei, ela continuou:
– Estão separados?
– Não! Ela viajou... a trabalho. Volta amanhã de manhã. Por
falar nisso, como anda sua vida profissional?
– Bem... digo, não como imaginávamos que iria ser, jovens, sentados
ali no banquinho do campus... Tudo parecia predestinado a dar certo!
Sorri. Lembrava-me daqueles dias com grande entusiasmo, e
ainda via nela aquela menina alegre da turma de publicidade. Ago-
ra trazia em si os traços do tempo: tornara-se uma mulher. Meu
Deus, quanto tempo!
– É melhor fechar o vidro, Fernanda, o ar-condicionado está
escapando – disse o marido incomodado.
– Só um minuto, querido. – E voltando-se para mim, tornou a
perguntar: – Mas como fomos nos deixar perder?
– É assim mesmo que as coisas acontecem. A minha mudança
para São Paulo... acho que foi nessa ocasião. – Em seguida me
inclinei ao máximo em sua direção, a fim de privar o outro do di-
álogo, e comentei em voz baixa: – Ainda guardo aquelas alianças
que trocamos. Lembranças... sabe como é...
Ela, porém, foi menos discreta:
– Jura? Nããão! Eu também, acredita? – Gesticulava com a es-
pontaneidade que sempre a marcou, e falava alto, como se a pos-
sibilidade de o outro escutá-la não a preocupasse, talvez porque
Manoel, de fato, já não a ouvisse mais. – Aquela nossa troca de
alianças significou muito pra mim!
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Na hora, pensei em arrancar, nervoso. Mas não podia: carros à
frente, atrás, de todos os lados; o marido demonstrava impaciência.
Aumentei o volume do som.
– Gosta de Billy Paul? – perguntei dissimulado.
– Adoro, aumenta um pouquinho mais. Your Song é a minha favorita.
Aumentei. Comecei a fazer umas castanhetas, ela se animou e pas-
sou a me acompanhar com movimentos do corpo, braços e cabeça.
– Como lembra a faculdade, Jorge.
– Também acho! – concordei.
– Gosto daquela parte em que ele diz If !
– Sei! If ! If I was a sculptor…
– Isso! If. “Se...”
– “Se... E se...” And if...
Eu começava a diminuir o ritmo do batuque com os dedos no
volante à medida que concentrava os olhos no “se”. Arrisquei, afinal:
– Ah, se nós...
– Pare de dançar que nem uma louca!
A voz de Manoel, enfim, soou imperiosa e me calou. Os mo-
vimentos animados cessaram-se por completo. Abaixei o volume
e perguntei:
– Que vocês estão ouvindo?
– Nada. Está na hora da Voz do Brasil – ela me respondeu,
esmorecida.
Pensei em dizer: “Ora, ponha um CD”, mas achei que seria
inconveniente...
– Verdade – comentei, olhando o relógio. E acrescentei cauteloso:
– Um pouco de notícia não faz mal a ninguém.
Ela remexia a bolsa.
– Por falar nisto, me dê notícias. Este é meu telefone.
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Estendeu um pedaço de papel pela janela o qual lhe tomei
da mão, satisfeito.
Enfiei-o no bolso da camisa e ao erguer mais uma vez a cabeça,
notei que ao meu lado já se encontrava outro carro. A fila avança-
ra, o trânsito fluía. Ainda consegui avistar pela última vez o veículo
do casal. Manoel se mantinha visivelmente caladão, Nanda talvez
olhasse pelo espelho retrovisor.
Logo dobrei à direita. Creio que eles seguiram em frente. Até
onde? Não sei. Olhei para trás, meu filho brincava em silêncio com
um de seus bonecos de plástico.
– Tô com saudade da mamãe – falou, de repente.
– Eu também, filhão. Não se preocupe, ela chega amanhã. Va-
mos enchê-la de beijos...
Ele sorriu.
Retirei o papel do bolso e fitei-o com carinho: “Nanda” e o
número logo abaixo.
O braço apoiado na janela e o pedacinho de papel entre o indi-
cador e o médio.
– Droga! Esqueci de fechar esta porcaria.
Agora fechava, tarde demais. Tentava lembrar os números... Es-
forço inútil. Soquei com raiva o volante.
O braço na janela aberta , um sopro de vento
fortu
ito
e m
a i s
nada
en t re
o ind i cador e o m é d i o . L á s e f o
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ela noite a
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– O único vento que bateu a noite inteira! Droga...
Um capricho da natureza. Só restava resignar-me em pen-
samento: “Esquece... um dia desses a gente volta a se encon-
trar por aí.”
– Vou dar muitos beijos na mamãe, papai – disse meu menino,
abrindo um lindo sorriso.
– Sim... – Fitei-o pelo espelho. – Vamos beijá-la muito e dizer
que estávamos morrendo de saudade: você... e eu.
O braço na janela aberta , um sopro de vento
fortu
ito
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nada
en t re
o ind i cador e o m é d i o . L á s e f o
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lefo
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or
a.
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Veja, Maria... Olha
as flores crescendo
ali. Sabe que é isso, sabe?
É sinal de bons tempos. Sinal de
sorte e muito amor. Olha aquele bro-
to ali, veja! Ali! Amarelo como o sol, como o
ouro... E aquele outro... ali, ó. É vermelho ou la-
ranja? Acho que é vermelho! Bonita, não? As flores... Tá
me escutando, Maria? Essas flores são as crianças da casa,
não acha? Nota como o jardim tá mais bonito hoje? São as
crianças... E vou te dizer, hein... Este céu, azul do jeito que tá,
sem uma nuvem... Vá, encontra uma nuvem no céu! Quero ver
você encontrar uma única nuvem! Eu só vejo pipa e pássaros
voando... Como é mesmo o nome daquele ali? Aquele ali pou-
sado no galho da mangueira... Ali, Maria! Ê, velha, tá cega ou
o quê? Ali, ó... Muito bonito, não? Mas que é isso? Que baru-
lho é esse? Eta vento brabo! Olha lá, afugentou o passarinho...
Que vento! As flores se sacodem todas, vê?... Ali, que bonitas!
E esse barulho é trovão? Olha que tô ouvindo uns petelecos no
telhado. Fecha a janela que o vento já levou a cortina! Mulher,
veja os petelecos... Parece tudo aqueles grãos... Parece grão de
feijão, sabe?, tudo caindo nas telhas... Ê, som bom! Já sinto o
cheiro da terra molhada... E olha a pipa do menino lá... Muito
bem feita, não acha? Com as cores da bandeira! Maria, tem as
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cores da bandeira! E não
é que com o céu azul forma
direitinho a bandeira? Olha, ver-
de e amarelo em papel crepom, não
é? É crepom, sim... Então, moleque inte-
ligente esse aí. Fez pipa verde e amarela para
empenar nesse céu azulzinho. Lindo, muito lindo... E
ainda que tivesse uma nuvem no céu, ainda assim, mulher,
seriam as cores da bandeira. Gosto muito desse jardim flori-
do. E desse céu azul... Podemos ir à praia qualquer dia, que
acha? Hoje não, tô com frio. Você, não? Não diz nada, velha!
Tô aqui falando, falando e você nada diz... Para de chorar,
criatura. Não chora, não, que este jardim só quer o seu sor-
riso, nunca as lágrimas... Não chora! Ei, fala o que você quer
falar. Sei até o que vai dizer... sei, sim, duvida? Vai dizer que
queria enxergar, né? Não chora, Maria. Um dia você ainda
vai enxergar... – A senhora sorriu, comovida. – Ande, vamos lá pra
dentro, me ajude a me levantar desta cadeira, dê cá sua mão,
por favor. Vamos entrar que estes feijões estão encharcando
meus pés! Mas assim é bom porque cai na terra e daqui a uma
semana nascem os brotos... Gosto muito de feijão, você sabe,
me dê a mão direita, prefiro. Vamos. Eta! Ouviu esse barulho?
É outro trovão? Meu Deus, não deixa chover, não! Senão es-
traga a brincadeira do menino.
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