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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6Cadernos PDE
OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
OS CONTOS DE FADAS NA FORMAÇÃO DO LEITOR: UM DIÁLOGO ENTRE LITERATURA E CINEMA
Elizete de Fátima Santos1
Wilma dos Santos Coqueiro2
RESUMO: Este artigo aborda os resultados e discussões da prática pedagógica sobre leitura de
contos de fadas, por meio do método recepcional, o qual é baseado na estética da recepção. O
trabalho teve como objetivo contribuir para uma compreensão crítica do gênero literário Conto de
Fadas e sua evolução social, por meio do estímulo à leitura e à recepção do gênero em sala de aula.
Ao estabelecermos comparações em relação aos valores ideológicos e estéticos do conto de fadas
clássico (conto dos Irmãos Grimm) e o contemporâneo (filme de Rupert Sanders), buscamos refletir
sobre a evolução dos valores sociais, ideológicos e morais na representação da figura feminina no
conto clássico “Branca de Neve” (século XIX) e no filme Branca de Neve e o Caçador (século XXI),
por meio de atividades de releitura e reescrita. Pudemos observar em algumas aulas, especialmente
nas iniciais, que os alunos sentiram dificuldades para refletir sobre questões relacionadas à
interpretação do gênero textual, como o contexto de produção e circulação do gênero e de reflexão
linguística. Porém, no decorrer dos trabalhos, houve melhoria na aprendizagem e observamos uma
ampliação dos conhecimentos dos alunos, os quais tornaram-se mais críticos e ativos no processo de
leitura, capazes de dialogar com o texto, fazerem inferências e comparações, pautando-se na
integração da linguagem verbal com a visual.
PALAVRAS – CHAVE: Leitura; Contos de Fadas; Representação feminina; Diálogo
com o cinema; Método Recepcional.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Em nossa prática pedagógica na Escola Estadual Rui Barbosa, na cidade de
Mamborê, Paraná, constatamos, no contexto escolar, que havia uma efetiva
necessidade de um trabalho com gêneros textuais, que propiciasse a melhoria na
qualidade da leitura dos alunos e na formação de bons leitores. Para que isto se
efetivasse, percebemos a necessidade de uma mudança de paradigma que
contemplasse a leitura enquanto ato significativo, pois a verdadeira leitura consiste
em atribuir significado ao que se lê.
1 Professora de Língua Portuguesa e Língua Inglesa da Escola Estadual Rui Barbosa – Ensino
Fundamental, Mamborê, Paraná. Especialista em Literatura Brasileira. Integrante do Programa de Desenvolvimento Educacional, turma 2013. 2 Professora Doutora em Letras/ área de concentração em Estudos Literários, pela Universidade
Estadual de Maringá. Professora do curso de Letras da UNESPAR /Campus de Campo Mourão – PR.
Sendo o ato de ler um dos caminhos para se apropriar dos conhecimentos
produzidos pela humanidade, deve ser encarado como algo imprescindível ao
desenvolvimento, não só individual como também social. E se não bastasse esse
caráter prático da leitura, há ainda o que pode ser considerado o mais importante,
isto é, o papel que tem o próprio ato de ler no desenvolvimento do intelecto da
pessoa.
Definimos, então, que é preciso uma perspectiva interativa para a leitura,
pautada nas experiências prévias do leitor sobre o lido, que envolverão sua
compreensão semântica da palavra, abarcando significação, decodificação e
estruturas textuais, considerando-se que o ato de ler consiste na interação entre o
leitor e o texto, porém a interação dependerá de um leitor ativo. O ato de ler só se
efetivará quando houver um encontro entre leitor e texto. Para que isto ocorra temos
que levar em consideração as experiências de leituras anteriores, visto que a
familiaridade com o texto e o reconhecimento do universo discursivo facilitarão as
relações leitoras maiores.
Os escritos da professora e pesquisadora da área, Regina Zilberman,
propõem uma perspectiva de leitura como ferramenta para favorecer a
argumentação e a escrita de textos. Isto porque a leitura proporciona o contato com
outras informações e pontos de vista, outras maneiras de se fazer compreender o
mundo e a si mesmo. Para a autora, a estimulação da leitura pelos professores de
literatura “intervém em todos os setores intelectuais que dependem para sua
difusão, do livro, repercutindo especialmente na manifestação escrita e oral do
estudante, isto é, na organização formal de seu raciocínio e manifestação”. (1986, p.
7).
Podemos, assim, inferir que o texto literário é um meio bastante eficaz para o
trabalho com a leitura na escola, pois o mesmo conduz à exploração de novas ideias
sustentadas pelo outro, gera novos conhecimentos, possibilitando a leitura como
mediação para se compreender o mundo em um momento dialógico, em que as
concepções do leitor entram em contato com outras informações, pontos de vista,
representações, outras maneiras de se fazer no mundo.
Assim, consideramos necessária, para a promoção e estímulo da leitura, a
valorização da obra literária. Para isso, é fundamental que possamos demonstrar
aos alunos que é através do livro e da leitura que se forma o senso crítico, e que a
leitura do livro é o veículo mais apropriado para levar o ser humano a desenvolver
suas atividades cognitivas e criadoras.
Entre os diversos gêneros textuais que compõem a esfera literária, o conto de
fadas é um gênero que exerce função no desenvolvimento da criança e do
adolescente, levando– os a conhecerem o mundo e a se conhecerem. Também
colaboram no despertar do imaginário, conduzindo os leitores, muitas vezes, a uma
identificação com as personagens ou as situações apresentadas. Por isso, optamos
pelo trabalho com contos de fadas, pois consideramos que os mesmos são capazes
de promover entre os educandos um contato prazeroso com a leitura literária, por
possuírem uma função emotiva e formativa, além de estimular a criatividade, a
curiosidade e a capacidade de observação dos alunos, possibilitando um processo
de ensino-aprendizagem eficaz e dinâmico em sala de aula.
Este gênero literário colabora para o desenvolvimento da proficiência na
leitura, pois, por já fazer parte das experiências vivenciadas pelas crianças por meio
da escuta destes contos em casa, com familiares ou na Educação Infantil, possibilita
um envolvimento maior com o enredo e personagens da história. Com a leitura dos
contos de fadas, podemos observar a relação entre dois textos, ou mais, que
tenham discursos parecidos e/ ou próximos, denominado dialogismo (BAKHTIN,
1986, p. 321).
De acordo com Bordini e Aguiar, “as possibilidades de diálogo com a obra
dependem (...) do grau de identificação ou de distanciamento do leitor em relação a
ela, no que tange às convenções sociais e culturais a que está vinculado e à
consciência que delas possui” (1993, p.84). Portanto, é preciso valorizar o papel do
leitor, pois a concretização do prazer estético da leitura ocorre na interação do leitor
com o autor, estando entre eles o texto.
Neste sentido, as Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa do Estado do
Paraná (2008) baseiam sua proposta do trabalho com a leitura literária na Estética
da Recepção, postulada por Hans Robert Jauss, estudioso alemão, pois a mesma
amplia as probabilidades de condições para a formação de bons leitores. De acordo
com esta concepção, o texto está sempre aberto a várias interpretações pelo leitor.
Não existe apenas uma interpretação, pois o leitor interage e dialoga com o texto.
Assim, a Estética da Recepção propõe a liberdade do leitor na sua relação com o
texto, dando preferência à sua interpretação.
Na perspectiva da Estética da Recepção, “a obra é um cruzamento de
apreensões que se fizeram e se fazem dela nos vários contextos históricos em que
ocorreu e no que agora é estudada” (BORDINI e AGUIAR, 1993, p.81). Leva-se,
portanto, em consideração a historicidade da obra literária, e sua leitura não deve
limitar-se apenas à dimensão estética, mas também à dimensão social em que a
obra e o leitor estão inseridos.
Esta concepção de leitura considera a atividade do leitor essencial para o
diálogo com o texto, sendo que não somente o texto tem sua importância, mas
também a relação de diálogo que se estabelece. Desse modo, o leitor tem um papel
ativo no processo literário, e a leitura é o resultado da interação entre texto e leitor.
Para Jauss (1994), a obra literária é condicionada pela relação dialógica entre
literatura e leitor. Jauss divide em sete teses sua Teoria da Recepção, sendo que
“As quatro primeiras têm caráter de premissas, oferecendo as linhas mestras da
metodologia explicitada nas três últimas” (ZILBERMANN, 2009, p. 33).
O método recepcional, elaborado pelas professoras Bordini e Aguiar (1993),
com base nos postulados teóricos da Estética da Recepção de Jauss, com o qual
pretendemos trabalhar nesta proposta, é composto de cinco etapas: (1)
determinação do horizonte de expectativa; (2) atendimento ao horizonte de
expectativa; (3) ruptura do horizonte de expectativa; (4) questionamento do horizonte
de expectativa e (5) ampliação do horizonte de expectativa. Este método tem como
objetivo principal a valorização do leitor como parte do processo de produção da
obra literária, ou seja, por uma relação significativa entre autor, obra e leitor. É uma
proposta voltada para efetivação com os alunos de leituras compreensivas e críticas,
sendo o aluno–leitor sujeito da interpretação, tendo a possibilidade de transformar
seus horizontes de expectativas por meio de questionamentos e reflexões acerca da
construção de sentidos elaborada a partir do texto.
Acreditamos que as crianças, adolescentes e, mesmo os adultos, ao
interagirem com o conto de fadas, estabelecem uma relação dialógica, levando-os a
fazerem indagações, atribuírem sentidos ao texto e fazerem uma atualização textual.
Esta relação do texto com o leitor torna a obra viva e aceita, atendendo ao horizonte
de expectativas ou provocando o rompimento do mesmo. Os contos de fadas, com
os quais trabalhamos, são textos capazes de surpreender e provocar o leitor,
permitindo sempre novas leituras, atendendo ao horizonte de expectativas e
conduzindo a uma ampliação dos conhecimentos intelectuais e a uma melhor
compreensão de si mesmo e do mundo.
No que concerne ao filme Branca de Neve e o Caçador, que também
utilizamos no desenvolvimento da proposta, consideramos que, com isso, pudemos
perceber a evolução dos valores ideológicos e sociais, ao confrontarmos a mesma
história escrita em um conto clássico do século XIX e relida pelo cinema
contemporâneo. Por meio do diálogo entre os textos, procuramos que os alunos
refletissem e analisassem o percurso da mulher na sociedade, considerando, para
isto, a representação da personagem Branca de Neve no conto dos Irmãos Grimm
(1812-1822) e no filme de Rupert Sanders (2012).
2. A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E O ENSINO DE LITERATURA
Consideramos que o trabalho com a leitura de contos de fadas, por meio da
Estética da Recepção como metodologia de ensino, pôde contribuir para uma leitura
crítica dos alunos, pois o método recepcional de ensino “enfatiza a compreensão
entre o familiar e o novo, entre o próximo e o distante no tempo e espaço.”
(BORDINI & AGUIAR, 1993, p. 86). A leitura, no bojo desta concepção, parte do
horizonte de expectativa do aluno em relação aos seus interesses literários e leva-o
a questionar e refletir sobre este horizonte e, dessa forma, ampliá-lo ou mudá-lo. É
isso o que enfatiza Zappone quando afirma que:
As teorias orientadas para o aspecto recepcional valorizam a figura do leitor, fazendo da leitura ou dos mecanismos ou atividades que ela pressupõe uma forma de desvendamento do texto literário e de compreensão da literatura e de sua história. (2009, p.155).
A perspectiva teórica que utilizamos no processo da prática de leitura de
contos de fadas está ancorada nas teorias do círculo de Bakhtin e em Jauss, pois
ambos concebem a língua como discurso em uma relação dialógica. Segundo as
Diretrizes Curriculares Estaduais (2008), toda enunciação envolve a presença de
pelo menos duas vozes, a voz do eu e do outro, sendo que para o pesquisador não
existe discurso individual, no sentido de que todo discurso se constrói no processo
de interação e em função de outro. E é no espaço discursivo criado na relação entre
o eu e o outro que os sujeitos se constituem socialmente (BAKHTIN, 1988, apud
PARANÁ, 2008, p. 29).
Bakhtin e Jauss trouxeram contribuições significativas para o estudo da língua
e da literatura, uma vez que ambos desenvolveram em seus estudos o processo de
dialogização. Bakhtin enfatiza o diálogo com a tradição e Jauss, com o leitor. Na
perspectiva da Estética da Recepção, “a obra é um cruzamento de apreensões que
se fizeram e se fazem dela nos vários contextos históricos em que ela ocorreu e no
que agora é estudada” (BORDINI e AGUIAR, 1993, p.81).
O papel do leitor é essencial, pois depende dele a avaliação da obra, e o ato
de ler só será significativo se houver uma interação entre ambos e o texto ganhar
sentido real diante do leitor, o qual dá vida ao mesmo.
A atitude receptiva se inicia com uma aproximação entre texto e leitor, em que toda a historicidade de ambos vem à tona. As possibilidades de diálogo com a obra dependem, então, do grau de identificação ou de distanciamento do leitor em relação a ela, no que tange às convenções sociais e culturais a que está vinculado e à consciência que delas possui (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 84).
Com base nessa perspectiva teórica, a Secretaria de Educação do Estado do
Paraná (SEED) lançou em 2008 as DCEs que traz em seus pressupostos a
valorização da escola como espaço social, responsável pela apropriação crítica e
histórica do conhecimento, compreendendo as relações sociais e transformando a
realidade.
Nesse documento aponta-se o trabalho centrado nos Gêneros Textuais, os
quais concebem a língua como discurso, realizados nas diferentes práticas sociais.
Nesse contexto teórico, a língua é tida como forma de ação social e histórica,
traduzindo a realidade. Além disso, os gêneros nos proporcionam uma visão da
língua em uso e não desfocada da sua real função. Eles são de número infinito e
circulam em esferas sociais específicas.
3. CONTOS DE FADAS CLÁSSICOS E CONTEMPORÂNEOS: UM DIÁLOGO
ENTRE LITERATURA E CINEMA
O gênero textual Conto de Fadas, com narrativas fantásticas envolvem o
leitor, em seu enredo e instiga a mente, como também provoca, inquieta e
questiona. Isso se deve ao fato de o leitor saber que não se trata de uma situação
real, porém os conflitos humanos estão presentes e podem conduzi-lo a se inserir na
história e a se identificar com algum personagem, vivenciando, por meio da
imaginação, as mesmas situações, resolvendo conflitos e apresentando soluções
para os problemas.
O conto de fadas com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se dentro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida etc.) e têm como eixo gerador uma problemática existencial. Ou melhor, têm como núcleo problemático à realização essencial do herói ou da heroína, realização que, via de regra, está visceralmente ligada à união homem/mulher (COELHO, 1987, p. 13).
Podemos perceber nos contos de fadas valores que faziam parte do contexto
em que foram criados, porém as narrativas também tratam de questões
consideradas universais como os conflitos familiares, as relações de poder, os
valores morais e éticos, misturando realidade e fantasia. Também apresentam
personagens que demonstram bondade ou maldade, e possibilitam a reflexão e o
despertar do senso crítico. Nesse sentido, Bettelheim ressalta a importância desse
gênero textual ao afirmar que,
O prazer que experimentamos quando nos permitimos ser suscetíveis a um conto de fadas, o encantamento que sentimos não vêm do significado psicológico de um conto (embora isto contribua para tal), mas das suas qualidades literárias – o próprio conto como uma obra de arte. O conto de fadas não poderia ter seu impacto psicológico sobre a criança se não fosse primeiro e antes de tudo uma obra de arte. (BETTELHEIM, 2002, p. 12).
Assim como ocorre com muitas obras da literatura clássica, os contos de
fadas também recebem muitas versões e releituras, sendo produzidas das formas
mais diversas, isto é, recontando as histórias de forma a manter o mesmo enredo ou
mudando-o. No entanto, de uma forma ou de outra, há sempre um diálogo entre os
textos. Dessa forma, nas novas produções escritas ou cinematográficas, temos a
presença de intertextos, a fim de estabelecer relações com outros textos anteriores.
Para Carvalhal, o texto absorve significados dos outros textos com os quais
dialoga, podendo ocorrer em três linguagens: a do escritor, a do destinatário e a do
contexto cultural. Segundo a autora, a noção de intertextualidade ocupa, na
atualidade dos estudos sobre literatura, uma posição central, passando “a significar
um procedimento indispensável à investigação das relações entre os diversos
textos. Tornou-se a chave para a leitura e um modo de problematizá-la”
(CARVALHAL, 2003, p. 74).
Nessa perspectiva teórico-metodológica, muitos clássicos da Literatura Infantil
foram transpostos para a linguagem cinematográfica. Em alguns deles, as versões
tradicionais foram mudadas, misturando personagens de várias histórias, retomando
histórias para contar outras, desorganizando o enredo ou desconstruindo
personagens. Já em outras, foram conservados o mesmo enredo, contudo
atualizando-o com uma linguagem mais condizente com a atualidade e mantendo o
diálogo com o conto clássico. De acordo com Bakhtin,
É evidente que o diálogo constitui um caso particularmente evidente e ostensivo de contextos diversamente orientados. Pode-se, no entanto, dizer que toda enunciação efetiva seja qual for a sua forma, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de um desacordo com alguma coisa. Os contextos são e estão simplesmente justapostos, como se fossem indiferentes uns aos outros; encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto. (2010, p.107).
O diálogo entre as narrativas estabelece uma intertextualidade que podemos
observar nas novas versões que são apresentadas, as quais visam às condições de
recepção do leitor ou do expectador atual, pois remetem a questões sócio-culturais
nas quais este leitor/expectador está inserido.
Nos contos populares tradicionais, as fadas representavam a força que o mundo patriarcal negava ás mulheres, uma vez que apontavam para uma possibilidade de reverter à situação de desequilíbrio e conquistar a felicidade. Poder recusado e desejos recalcados limitavam a mulher ao mundo privado do lar e da família. De que maneira a literatura infantil pós-moderna dialoga com essas representações sociais, já que a sociedade vem exigindo novas funções para a mulher, que está ingressando cada vez mais no mercado de trabalho? Estaria o mundo contemporâneo exigindo um novo perfil de mulher? (PONDÉ, 2000, p.33).
Neste novo olhar para os contos de fadas, podemos observar o levantamento
de questões relacionadas às personagens femininas, pois enquanto nos contos
clássicos elas aparecem inferiorizadas e submissas, tendo no casamento a única
oportunidade de serem felizes (para sempre), em muitas novas versões, revelam-se
como mulheres ativas, que lutam por seus direitos, e procuram resolver seus
problemas, enfim um perfil diferente das fadas e das donzelas tradicionais.
É o que ocorre no filme Branca de Neve e o Caçador, de Rupert Sanders, que
ao dialogar com o conto Branca de Neve, dos Irmaõs Grimm, traz como protagonista
uma jovem corajosa, independente da figura masculina, que busca sua
emancipação política, social e econômica. Também é ela – e não o príncipe, como
na versão original – que lidera um exército, vestida com a armadura de guerreira,
enfrenta e vence a rainha má em uma árdua batalha ao final do filme, afirmando-se
como uma heroína capaz de fazer escolhas e ser sujeito de sua história.
Com base nesses estudos, os quais nos mostram a dinâmica do processo
educativo com a leitura e que exige constantes atualizações, questionamentos e
ajustes, entre outras considerações, buscamos atender as orientações dos
documentos oficiais de educação voltados para o desenvolvimento de uma prática
pedagógica ligada às concepções de mundo, de homem e de conhecimento,
considerando a função social, educacional e crítica da Língua no processo
educacional.
4. DA TEORIA A PRÁXIS: OS CONTOS DE FADAS EM SALA DE AULA
A implementação pedagógica foi desenvolvida em uma turma do 6º ano na
Escola Estadual Rui Barbosa Ensino Fundamental, no município de Mamborê,
Paraná. Diante das proposições do projeto, passamos à abordagem dos dados
obtidos e dos princípios teóricos e metodológicos orientadores da prática
pedagógica.
Esclarecemos que, nas observações desta implementação pedagógica, não
tivemos como finalidade a generalização dos hábitos de leitura dos alunos, mas de
apresentar a necessidade de rever as formas como são trabalhadas nas salas de
aula, pois na maioria das vezes não contribuem para a formação de leitores/autores
críticos e criativos. E se acreditamos na dimensão social e transformadora da escrita
e leitura, como ferramentas de inclusão social e de desenvolvimento cultural, é
preciso criar condições para que, por meio da reflexão sobre o funcionamento da
língua nos textos, o aluno seja capaz de desenvolver sua capacidade comunicativa
de forma que aprenda a interagir em diferentes situações.
No início do projeto, elaboramos o questionário para ser respondido por 32
alunos. O questionário tratou de um levantamento para a determinação do horizonte
de expectativas dos alunos sobre o gênero conto de fadas. A partir dos
questionários, elaboramos análises sobre as respostas dadas a partir de palavras ou
sentenças que se destacaram nas falas dos alunos.
Na questão sobre quais os contos de fadas que conheciam, a maioria dos
alunos respondeu que conhecia alguns contos de fadas clássicos, os outros
confundiram contos de fadas com desenhos animados que são exibidos atualmente
nos meios de comunicação. Observamos que isto se deve ao fato de considerarem
que havendo heróis ou heroínas é um conto de fadas. Isto também significa que os
contos de fadas não estão sendo trabalhados periodicamente com os alunos, ou
mesmo em casa os familiares estão deixando de contar histórias para os filhos.
Escutar histórias contribui para que a criança seja um bom ouvinte e um bom leitor.
Coelho (2003), afirma que os contos abrem espaços para que as crianças deixem
fluir o imaginário e despertem a curiosidade, que logo é respondida no decorrer dos
contos.
Analisando as respostas sobre quais elementos estariam presentes nos
contos de fadas podemos concluir que a maioria dos alunos (75%) conhecia os
elementos presentes em um conto de fadas; porém, mesmo tendo sido dados
exemplos destes elementos, dois alunos ainda não souberam responder.
Consideramos, diante deste resultado, a importância de se trabalhar com o gênero
conto de fadas para que os alunos pudessem reconhecê-lo em suas leituras, na
oralidade e em outras circunstâncias de seu contexto social.
A identificação do espaço estava de certa forma, bastante coerente pelas
respostas dos alunos. Eles identificaram onde as histórias ocorrem na maioria dos
contos de fadas.
Com relação ao tempo, há uma lógica na grande maioria das respostas. Em
algumas delas, houve a utilização da expressão “Há muito tempo” e observamos
nisto uma analogia com o “Era uma vez”, expressão tradicional com a qual se
iniciam grande parte dos contos de fadas e podemos dizer que são atemporais. A
afirmação de que “A rainha má ficou velha” está em consonância com o que
podemos observar na história de “Branca de Neve”, na qual os anos passam e a
madrasta vai envelhecendo e perdendo a beleza.
A grande maioria dos alunos compreendeu que há heróis, heroínas, vilões e
vilãs nos contos de fadas. Alguns demonstraram desconhecimento sobre esta
questão. Consideramos que isto possa ter ocorrido devido ao desconhecimento do
significado das palavras.
Com relação à questão sobre como a maioria dos contos de fadas clássicos
terminam, a maioria demonstrou que conhecia, pois responderam: “Felizes para
sempre”. Um aluno ressaltou que “as histórias acabam todas iguais”, o que também
é bastante recorrente nesse gênero. Apenas um aluno respondeu que as histórias
acabam diferentes.
Na análise das respostas dos alunos, observamos que poucos não souberam
responder sobre os poderes dos objetos mágicos. A maioria compreendia a função
dos mesmos. Apesar das respostas terem sido diferentes, os significados são
bastante semelhantes. Enfatizamos, então, que nos contos de fadas sempre existe
um problema que precisa ser resolvido e o herói ou a heroína sofre até receber a
ajuda de um personagem ou elemento mágico para alcançar a solução do conflito
inicial (COELHO, 1987).
Prosseguindo com a implementação pedagógica na escola, explicamos aos
alunos que iríamos desenvolver um trabalho com o gênero textual Contos de Fadas.
Visando o atendimento do horizonte de expectativas, apresentamos os contos
“Cinderela” e “Branca de Neve”, dos Irmãos Grimm, os quais se caracterizam,
apesar da linguagem clássica, por serem textos próximos ao conhecimento de
mundo e das experiências de leitura dos alunos. Iniciamos a aula levando os alunos
em uma sala maior onde se sentaram em semicírculo. Apresentamos os contos
“Cinderela” e “Branca de Neve” dos Irmãos Grimm, fazendo a leitura dramatizada.
Após a leitura, um dos alunos que inicialmente, na avaliação diagnóstica,
demonstrou não conhecer contos de fadas, disse: “Professora, eu pensava que
todos os contos tinham a fada madrinha, mas estes contos são bem diferentes, eu
gostei”. Acreditamos que, na verdade, o aluno conhecia contos de fadas, porém, não
havia gostado daqueles que leu ou ouviu.
Quando terminamos a leitura passamos a perguntar se alguém conhecia as
versões apresentada dos Irmãos Grimm. Em relação ao conto “Cinderela”, nenhum
aluno conhecia e todos demonstraram terem gostado da versão apresentada.
Quanto ao conto “Branca de Neve”, apenas uma aluna comentou conhecer uma
versão semelhante, não igual. Após a leitura e comentários, passamos para as
atividades escritas. Proporcionamos uma ampla discussão do conteúdo e percepção
do enredo, do conflito, além da análise das personagens femininas, enfatizando
suas características físicas e psicológicas, além de questões relacionadas a
interpretação do gênero textual, como o contexto de produção e circulação do
gênero e de reflexão linguística.
Quase todos os alunos conseguiram realizar as atividades propostas, exceto
aqueles que apresentaram dificuldades na leitura e que não leram fluentemente. Os
alunos com dificuldades realizaram as atividades com a ajuda da professora e dos
colegas.
Após a leitura e interpretação das narrativas citadas anteriormente,
abordamos, brevemente, a estrutura do conto, seus elementos essenciais e também
uma síntese sobre a vida dos Irmãos Grimm. Ainda no segundo momento,
passamos para os trabalhos em grupos. Fomos até a sala de leitura onde há várias
mesas grandes para desenvolver as atividades. Dividimos os alunos em pequenos
grupos para analisarem as características físicas e psicológicas das personagens
principais dos contos. Todos os grupos realizaram as atividades, confeccionaram os
cartazes, ilustraram e apresentaram para a turma.
Com estas atividades pudemos comprovar a afirmação de Bettelheim de que:
Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma, e favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece significado em tantos níveis diferentes, e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à multidão e diversidade de contribuições que esses contos dão à vida da criança. (BETTELHEIM, 2007, p. 20).
Para promover uma ruptura no horizonte de expectativas dos alunos,
buscando uma reflexão sobre a evolução do papel social da figura feminina na
história, exibimos o filme contemporâneo Branca de Neve e o Caçador. Para o
desenvolvimento dessa atividade, levamos os alunos em outra sala para assistirem
ao filme no data show. Fizemos uma sessão de cinema com direito a pipocas. Os
alunos estavam ansiosos para assistirem ao filme e quando viram que havia pipoca
ficaram todos animados. O filme chamou muito a atenção dos alunos, principalmente
dos meninos que gostam de ação. Ao término do filme, passamos para o
questionamento oral. Todos os alunos participaram fazendo comentários, perguntas
e sanando dúvidas, mesmos aqueles mais tímidos. E aqui cabe uma consideração
encontrada em leituras anteriores (SILVA, 2005) de que os jovens da atualidade
exigem outras opções de leitura e que os clássicos devem ser apresentados
utilizando-se de outras formas e recursos como, filme, teatro, dramatização e
histórias em quadrinhos.
A etapa seguinte foi o momento do questionamento do horizonte de
expectativas, na qual fizemos a comparação entre as fases anteriores da leitura do
conto Branca de Neve e da sessão do filme Branca de Neve e o Caçador. Nesta
atividade, percebemos que houve algumas dificuldades e, então, fizemos juntos a
primeira atividade. Em seguida, os alunos conseguiram preencher o quadro
comparativo, mas sempre com nossa ajuda. Segundo o relato da turma, a
dificuldade em realizar as atividades deveu-se ao fato de que nunca haviam feito
algo parecido.
A partir das atividades desenvolvidas, observamos que houve um
aprofundamento no conhecimento dos alunos sobre os contos de fadas lidos e o
filme previamente trabalhado. Propomos, então, para a ampliação do horizonte de
expectativas, uma leitura de narrativas menos conhecidas dos Irmãos Grimm: “As
Doze Princesas Bailarinas” e “Jorinda e Jorindel”. Os alunos estavam ansiosos para
conhecerem as histórias, pois nunca haviam ouvido falar sobre as mesmas. Ouviram
as narrativas com interesse, participaram dos questionamentos oralmente, e
realizaram as atividades escritas, relacionadas aos contos lidos, com grande
receptividade, tanto para confrontar suas interpretações como para trocar
informações com os colegas.
Após a leitura, comentários e atividades escritas passaram para a etapa final
que seria a produção de texto. Primeiramente, relembramos aos alunos os pontos
principais da narrativa com exposição de cartazes na sala e tirando as dúvidas dos
que precisavam. Os alunos colocaram as ideias principais, depois foram ordenando-
as. Após lerem os textos, fizemos a reestruturação textual e, em seguida, passaram
a limpo e ilustraram as mesmas.
Observamos durante a implementação que alguns alunos possuem
dificuldades na leitura, leem devagar, quase soletrando. Na escrita, a maioria
apresenta dificuldades, pois troca muito as letras. Acreditamos que os textos, o filme
e as atividades propostas, que foram selecionadas cuidadosamente, contribuíram
significativamente no processo ensino/aprendizagem de leitura.
Também é importante registrar a participação dos integrantes do GTR (Grupo
de Trabalho em Rede) que analisaram e discutiram as atividades propostas na
produção didático-pedagógica. Doze professores da rede estadual apresentaram
sugestões sobre as atividades, via ambiente virtual. Demonstraram conhecimento
sobre o assunto, fizeram apontamentos relevantes e enriqueceram o tema proposto,
abrindo possibilidades de melhorar a prática pedagógica. Houve empenho,
compromisso e responsabilidade nas atividades propostas pela maioria dos
cursistas. De modo geral, os professores valorizaram e perceberam a importância do
Grupo de Trabalho em Rede (GTR) para a formação continuada, considerando-se
como ponto essencial a interação entre professores e tutores, pois a mesma
possibilita a troca de conhecimento e de experiências realizadas pelos participantes
em sala de aula.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos, no decorrer da implementação do projeto de intervenção na
escola, desenvolver uma prática pedagógica visando contribuir para uma
compreensão crítica do gênero literário Conto de fadas e sua evolução social.
Utilizamos o Método Recepcional o qual está baseado na Estética da Recepção e
consideramos que conseguimos a promoção de uma prática de leitura prazerosa em
sala de aula. Além disso, possibilitamos a ampliação de conhecimentos para tornar
possível a formação de alunos críticos, ativos no processo de leitura, capazes de
dialogar com o texto, fazer inferências e comparações, pautando-se na integração
da linguagem verbal com a visual.
A utilização do método recepcional no trabalho pedagógico com contos de
fadas – gênero textual que se constitui em um tipo de literatura que desperta a
atenção das crianças de todas as idades e, inclusive, de adultos, – concorreu para
que as leituras fossem significativas e contribuíssem no processo contínuo de
formação do leitor/escritor.
Constatamos, enfim, que o trabalho pedagógico de leitura de contos de fadas,
com enfoque na Estética da Recepção, estabeleceu um diálogo entre obra e leitor. E
quando os alunos realizaram as leituras, puderam estabelecer vínculos entre seus
colegas por meio do compartilhamento do conto.
Diante dos resultados satisfatórios pretendemos dar continuidade a esta
temática em projetos futuros, pois acreditamos que a literatura infantil pode contribuir
para a formação de crianças e adolescentes leitores e construtores de suas próprias
histórias.
6. REFERÊNCIAS
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