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Os artifícios de uma consciência histórica A narrativa fotográfica na cobertura dos protestos de junho de 2013 e agosto de 2015 nos sites das revistas Carta Capital e Época Resumo: No presente artigo buscaremos construir análises de duas coberturas jornalísticas fotográficas presentes nos sites das revistas Carta Capital e Época sobre os protestos do dia 20 de junho de 2013 e 16 de agosto de 2015, respectivamente, que transcorreram nas principais e maiores cidades brasileiras. O intuito do esforço apresentado aqui é interpretar as imagens apresentadas como relatos das manifestações em seus desdobramentos mais importantes ou relevantes e assim articular o conceito de artifício, em sua duplicidade de duplicidades, como construção e como subterfúgio, com o círculo mimético proposto por Paul Ricœur, de compreensão, mediação e repetição, e a ideia de consciência histórica, com a finalidade de reconstruir as narrativas propostas por essas publicações e assim buscar, no mesmo círculo mimético, melhor compreender, mediar e repetir/reconstruir essas narrativas. ABSTRACT: In this article we will endeavour to construct two analysis of two journalistic photographic coverages, presented by the websites of two magazines, Carta Capital and Época, about the protests that took place at the largest and main Brazilian cities during June 20th 2013 and August 16th 2015. The main objective presented here is to interpret the images made available by said websites as reports of the most important or relevant events that took place during the protests and thus search for ways to articulate the concept of artifice, in its duplicity of duplicities, as construction and subterfuge, with the mimetic circle proposed by Paul Ricœur, of comprehension, mediation and repetition, and the idea of historical consciousness, with the ultimate purpose of reconstructing said narratives proposed by these two publications and, at the same time, following Ricœur

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Os artifícios de uma consciência históricaA narrativa fotográfica na cobertura dos protestos de junho de 2013 e agosto de

2015 nos sites das revistas Carta Capital e Época

Resumo:No presente artigo buscaremos construir análises de duas coberturas jornalísticas fotográ-

ficas presentes nos sites das revistas Carta Capital e Época sobre os protestos do dia 20 de junho de 2013 e 16 de agosto de 2015, respectivamente, que transcorreram nas principais e maiores cidades brasileiras. O intuito do esforço apresentado aqui é interpretar as imagens apresentadas como relatos das manifestações em seus desdobramentos mais importantes ou relevantes e assim articular o conceito de artifício, em sua duplicidade de duplicidades, como construção e como subterfúgio, com o círculo mimético proposto por Paul Ricœur, de compreensão, mediação e repetição, e a ideia de consciência histórica, com a finalidade de reconstruir as narrativas pro-postas por essas publicações e assim buscar, no mesmo círculo mimético, melhor compreender, mediar e repetir/reconstruir essas narrativas.

ABSTRACT:In this article we will endeavour to construct two analysis of two journalistic photographic

coverages, presented by the websites of two magazines, Carta Capital and Época, about the protests that took place at the largest and main Brazilian cities during June 20th 2013 and August 16th 2015. The main objective presented here is to interpret the images made available by said websites as reports of the most important or relevant events that took place during the protests and thus search for ways to articulate the concept of artifice, in its duplicity of duplicities, as con-struction and subterfuge, with the mimetic circle proposed by Paul Ricœur, of comprehension, mediation and repetition, and the idea of historical consciousness, with the ultimate purpose of reconstructing said narratives proposed by these two publications and, at the same time, follow-ing Ricœur mimetic circle, better understand, mediate and repete/reconstruct these narratives.

Introdução

Ao iniciarmos uma investigação com a baliza da categoria do artifício temos de con-

frontar diretamente sua duplicidade. O termo, em sua miríade de aplicações analíticas, nos faz re-

tornar ao seu duplo sentido: construção ou subterfúgio. Ao mesmo tempo em que se refere ao ar-

tificial, como aquilo feito em oposição à natureza pelo homem, indica também falsidade,

truque, enganação. Aponta para a arte, presente no seu prefixo, mas também é índice, em si

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mesmo, de uma duplicidade. Uma entre um aparato, disposição e dispositivação dos meios natu-

rais para que produzam algo humano, e uma ilusão, um jogo de mão, uma manualidade mágica

ou ilusionista, no sentido tácito de prestidigitação.

Assim, aqui buscaremos coadunar essa espécie de duplicidade de duplicidades dessa cat-

egoria analítica num esforço de compreender algumas nas manifestações populares que transcor-

reram no Brasil desde, pelo menos, junho de 2013, no sentido de apontar para como essa catego-

ria transparece e se faz usar no modo com que a discursividade desses protestos, caminhadas, in-

quietações e agitações acaba intermediada pelas mídias.

O foco são dois momentos oportunos: os protestos no dia 20 de junho de 2013 e os

protestos organizados no dia 16 de agosto de 2015 com a finalidade de criticar os escândalos de

corrupção no governo Dilma Roussef, apelidados de “Faça Parte da Mudança”, pela comunidade

virtual na página Facebook chamada “Movimento Brasil Livre”1. O objeto em questão são os

recortes, com aportes especificamente fotográficos, de 3 veículos de comunicação massivos mas

que mantém presença ativa na internet: a revista Carta Capital2 e o jornal global de origem es-

panhola El País3, em sua versão em português.

Uma das guisas analíticas à qual nos ligamos nesse esforço é encarar as coberturas jor-

nalísticas numa concepção narrativista, que, portanto, encara “as narrativas” como “totalidades al-

tamente organizadas, que exigem um ato específico de compreensão, da natureza do juízo”

(Ricœur, 2010, p.257). Ou seja, aportamos nossa análise numa percepção de historicidade en-

quanto construída pelos meios de comunicação de massa e sua cobertura dos fatos que transcor-

reram e que tem como atores e agentes indivíduos e organizações mas que, de uma forma ou

outra, narrativiza a História. Para abarcar tal estratégia precisamos necessariamente coligar cada

um dos eventos a seus contextos históricos e entre si ao mesmo tempo em que articulamos uma

ideia ou conceito de consciência histórica, em sua própria articulação de um saber e de um estar-

aí manifesto na agência/atuação dos indivíduos e na historicização, como dito, narrativa, efetu-

ada pelos meios. Em certo sentido, portanto, o que pretendemos é um tipo de juízo reflexivo de

segunda ordem; um juízo sobre os juízos já operados na cobertura jornalísticas, novamente, en-

1 https://www.facebook.com/mblivre?fref=photo 2 A cobertura dos protestos encontra-se no seguinte endereço: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/as-manifes-tacoes-pelo-brasil-em-20-de-junho-4066.html 3 A cobertura em tempo real e galeria de fotos pode ser encontrada no seguinte endereço: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/16/politica/1439728675_375038.html

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quanto narrativização da história. Sempre, vale lembrar, com o foco na questão em questão: o

artifício.

Precisamos buscar, previamente à qualquer análise ou discussão dos objetos em mãos,

uma definição de compreensão, um conceito de consciência histórica e sua possível (ou

passível) articulação com essa duplicidade de duplicidade que é o conceito ou noção de artifí-

cio.

Vemos de antemão que as noções de mímesis, trabalhadas especificamente por Paul

Ricœur no primeiro volume de sua trilogia “Tempo e Narrativa” (2010), “A Intriga e a Narrativa

Histórica”, podem nos ser extremamente úteis como coadunar esses três vértices. Sendo a com-

preensão “nunca […] uma intuição direta e sim uma reconstrução” (p.161), preferimos seu sen-

tido amplo, derivado por este autor de outro, Louis Mink (1968), de “ato de ‘apreender conjunta-

mente em um único ato mental coisas”, ou acontecimentos, ou fatos, ou características, etc, “que

não são experimentadas juntas ou nem podem sê-lo, porque estão separadas no tempo, no es-

paço ou de um ponto de vista lógico’" (p.263).

É logicamente impossível tentar nesse formato tentar reconstruir todo o arco das ex-

periências mediadas pelos canais selecionados aqui de mídia ou pelos sujeitos/agentes retratados

nessas matérias e protagonistas dessas movimentações sociais. Entretanto, precisamos de uma

hermenêutica que se valha de, como colocado anteriormente, possa comportar a interpretação e

compreensão (1) de que “por maior que seja a força da inovação […] a composição da intriga

está enraizada numa pré-compreensão do mundo da ação: de suas estruturas inteligíveis, de seus

recursos simbólicos e de seu caráter temporal” (Ricœur, 2010, p.96. Isso é o que Ricœur

nomeará “Mímesis I”. E, pensamos, articula-se direta e automaticamente com o segundo ponto de

nossa articulação: a consciência histórica. Afinal, essa pré-compreensão é exatamente a mani-

festação de um saber dado pelo estar-no-mundo de cada sujeito e que se revela e amplia no pro-

jeto de vida e cotidiano de cada um deles. A Mímesis I, portanto, refere-se não apenas ao pro-

cesso mimético (de imitar ou continuar o que já é/já está/já foi feito) mas igualmente ao pro-

cesso reflexivo inescapável de cada sujeito em interpretar a passagem do tempo, as transfor-

mações inexoráveis que afetam a ele mesmo e seu entorno (Rüsen, 2010). Os conceitos de

mímesis e (2) consciência histórica se intrincam: como aponta Cerri (2001, p.101), aqui está

sempre pressuposto "o indivíduo existindo em grupo, tomando-se em referência aos demais, de

modo que a percepção e a significação do tempo só pode ser coletiva”.

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Porém, entre a ação dos agentes, que é o objeto dentro dos objetos que pretendemos

analisar aqui, e essa pressuposição se encontra uma posição de intermediação, que Ricœur

(2010, p.112) designará de Mímesis II. Aqui “A palavra ficção fica então disponível para desig-

nar a configuração da narrativa cujo paradigma é a construção da intriga”. Esse segundo tipo de

mimese faz a mediação entre os acontecimentos específicos (aqui poderíamos apontar para os

protestos, a manifestação coletiva nas ruas agenciadas por indivíduos e perpetradas por coletivi-

dades múltiplas e plurais) e o que o autor chama de “uma história tomada como um todo” (aqui,

na esteira de pensar a consciência histórica como percepção e reflexão acerca das transfor-

mações que os sujeitos vivenciam, poderíamos fazer a baliza geral de ‘história do Brasil’ ou

‘história recente do Brasil’). Como aponta Nick Couldry em texto muito recente publicado no

Brasil (2015, p.64): "Para Ricœur, a narrativa é, desde o início, ligada à possibilidade de inter-

ação humana e à dimensão pública” - em outras palavras, exatamente o que o autor baliza nessas

duas formas miméticas: a I, que imita o mundo, e essa II ou segunda, que intermedeia nossa ação

através de uma condensação de nossas próprias histórias. Couldry, Ibid., vai além e interpela o

trabalho seminal de Charles Taylor, Sources of the Self, de 1989, para citar este em que “determi-

namos o que somos pelo que nos tornamos, pela história de como chegamos lá” (Taylor, 1989,

p.48). Em outras palavras, naquela asserção da história como um todo, que apenas a reflexão so-

bre si mesmo, e, admitamos, como quer inferir Ricœur, com uma pitada de ficcionalização, de

construção de intrigas não necessariamente reais no sentido de “fato social total”, pegando em-

prestada a expressão de Marcel Mauss. Essa Mímesis II é intermediária porque é, em si mesma,

a afirmação de que a narratividade da vida (seja pelo próprio sujeito/agente, seja pelas mídias, in-

stituições, organizações, governos, etc.) não é dada, mas depende exatamente dos “atos de con-

figuração” que a permitem ser.

Em um sentido bastante claro, retornamos novamente à problemática da consciência

histórica. Três autores devem ser mencionados como balizas para a discussão desse termo, con-

ceito ou categoria analítica (como veremos no desenrolar aqui apresentado): Agnes Heller, Hans-

Georg Gadamer e Jörn Rüsen. “Atos de configuração”, não podemos deixar de notar, parecem

ecoar o conceito de Heller (1970) de “regimes de historicidade”, ao mesmo tempo em que a narra-

tiva (seja de si, do outro ou do mundo) quando pensada na chave “como um todo” fazem referên-

cia à atribuição de Rüsen a uma condição humana (em contrapartida a arguição de Gadamer,

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que parece acreditar que a consciência histórica, ainda que descrita quase que nos mesmos ter-

mos de Rüsen, se trata de um fenômeno essencialmente moderno) de perene reflexividade em re-

lação a si mesmo, ao “estar-com-outros”, nos termos de Ricœur, e ao “estar-no-mundo”, para in-

terpelar aqui as conjecturas sobre temporalidade e espacialidade colocadas por Martin Heidegger

em “Ser e Tempo”. A Mímesis II de Ricœur opera extraindo “uma configuração de uma

sucessão” (Ricœur, 2010).

A Mímesis III é o retorno final “em seu sentido pleno” da narrativa enquanto “restituída

ao tempo do agir e do padecer” (Ricœur, 2010, p.123). Ela é o final do percurso de repetição, e

reorganização (ou reconfiguração): ela aqui, talvez, nos interesse mais do que as outras no sen-

tido de balizar os meios de comunicação massivos e pós-massivos como arautos de uma reapre-

sentação de narrativas vividas exatamente daqueles dois primeiros componentes (as Mímesis I e

II) e tomam o lugar de entre-ouvinte ou entre-espectador: operam como veículos de agregação e

re-apresentação de narrativas vividas realmente enquanto experiências de reflexão, ação e arreg-

imentação histórica pelos sujeitos que retratam como agentes ou sujeitos de determinadas notí-

cias (essas definidas enquanto acontecimentos relevantes e do interesse - sempre, claro, imagi-

nado - geral da população local, regional ou global).

“Se não há experiência humana que não seja mediatizada por sistemas simbólicos e, entre eles, por narrativas, parece inútil dizer, como fizemos, que a ação está em busca da narrativa. Como, com efeito, poderíamos falar que uma vida humana é uma história em estado nascente se não temos acesso aos dramas temporais da existência fora das histórias contadas a seu respeito por outros ou por nós mesmos?” (Ricœur, 2010, P.127).

Essa terceira forma da Mímesis completa o círculo mimético que Ricœur quer desenhar:

ela novamente estabelece o que é, o que pode ser, e só se completa nos ouvidos de quem passiva-

mente recebe, administra ou interioriza uma história, uma narrativa. Ela torna-se novamente

aquele objeto estático da Mímesis I: oferece-se como aquilo que está-no-mundo, que pode muito

bem ser o limite espaço-temporal desse mundo, e ao mesmo tempo oferece-se à reprodução e

oferece-se, no espectro que aqui precisamos definir para as análises que apresentaremos e para

sustentar nossos argumentos, como forma reificada de consciência/conscientização histórica.

Aqui podemos desenhar com mais acuidade a articulação que pretendemos e trazer à

baila a problemática do artifício. Precisávamos anteriormente que almejamos articular (1) a com-

preensão enquanto conceito analítico e hermenêutico e (2) a consciência histórica como

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partícipe do círculo mimético proposto por Ricœur. Nos cabe agora, portanto, encarar frontal-

mente (3) o artifício. Esse termo contém, como já apontamos uma duplicidade: ele aponta para o

fazer humano e, nesse apontar, nessa indicação, também refere-se à ilusão. O artificial é, num

mesmo movimento, aquilo que o homem faz para separar-se da natureza, do selvagem enquanto

indomado ou não-ainda-formado enquanto mundo humano e também uma ilusão. É uma (1)

compreensão de que a natureza pode ser rearranjada para servir e imitar o homem e ao mesmo

tempo (2) uma repetição daquilo nessa natureza enquanto pura, intocada ou indomada, no que

ela já serve ao homem. O artifício é a efetividade da ação do homem e sua separação da na-

tureza, mas é também, como dito uma ilusão; uma ilusão de controle, uma ilusão de destino,

uma ilusão de previsibilidade.

Não se sabe, a priori, que forma artificial as paixões tomarão. A sociedade não é um dado natural, uma expressão da essência do homem. Nem mesmo o seu destino está inscrito, previamente, nos movimento dos artifícios humanos, tal como uma lei da história. Não se sabe, previamente, se será esta ou aquela forma que tomará a sociedade, se esta se organizará em um Estado ou não. O Estado não é uma forma necessária em si mesma, é apenas mais uma ficção, mais um artifício, e como tal merece suspeita e investigação. A forma não é dada anteriormente, mas sim a força, as paixões, pois como já se sabe são elas anteriores às ideias. O Estado é uma ideia, cuja impressão correspondente, isto é, seu meio de experiência, merece ser investigada (Müller, 2012, p.66).

Na passagem acima de Guilherme Müller, que faz alusão a teoria do conhecimento de

David Hume, “o Estado” é o figurante, o exemplo intercambiante - que aqui nos parece apropri-

ado vis-à-vis os objetos a que nos propomos analisar - que simultaneamente demonstra o artifício

e elimina a falsa dicotomia entre ideias e materialidade que ainda sobrevive nos recantos das du-

plicidades desse conceito (Taylor, 2004, p.31). Sendo ele compreendido aqui como (1) com-

preensão e (2) repetição (naquele círculo mimético de Ricœur), o (3) artifício pode ser encarado

como sendo um projeto de futuro e uma melancolia constante pelo passado - aí uma nova duplici-

dade! Ele está eternamente, ao colocar a planta-baixa ou os primeiros tijolos, restituindo o pas-

sado, presentificando-o, mas é um “passado presente”, como os três tipos de presentes agostini-

anos aos quais Ricœur faz alusão na introdução do primeiro volume de “Tempo e Narrativa”

(p.36), incompleto, quebrado e quebradiço e que ele precisa (re)apresentar no modo de uma con-

stante reconstrução - concomitante à construção dos futuros possíveis que ele desenha. O artifí-

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cio artificializa o passado na forma de uma nostalgia melancólica que se aproxima constante-

mente de uma “nostalgia do presente” (Jameson, 1991, 279).

O artifício é portanto princípio não apenas de artificialização do mundo exterior, mas

opera exatamente nesse eixo da (2) repetição ao, como as antigas fitas cassete ou VHS, repro-

duzir sempre uma cópia desgastada. Até mesmo individualmente! “Ao organizar o arquivo de si

próprio o sujeito confisca o seu próprio estoque de experiência como propriedade e com isso

volta a torná-lo algo inteiramente alheio ao sujeito” (Adorno, 2008, p.162). A História, não ape-

nas as histórias ou narrativas de si (Cavarero, 2001), é um construto: um processo seletivo que

jamais toma os fatos como um todo. Afinal, “nada do que passou está salvo da maldição do pre-

sente empírico mediante a passagem à mera ideia” (Adorno, 2008, P.163).

É aí que o artifício se (re)configura como uma nostalgia, como uma melancolia, como

“uma infelicidade que não sabe seu nome” (Jameson, 1991, p.280); quando ele precisamente se

articula com o que Gadamer (2003, p.17) define como uma “plena consciência da historicidade

de todo o presente e da relatividade de toda a opinião”. A problemática que surge, portanto, é ex-

atamente a que procuraremos nas subsequente análises descritivas fazer visível: “a possibilidade

de que num limite extremo”, ou para usar o termo de Karl Jaspers (1967); numa “situação-limite”,

“o sentido que as pessoas tem de si mesmas e de seu momento histórico talvez em última análise

não tenha nada a ver com sua realidade” (Jameson, 1991, 281). O artifício está exatamente na

tentativa de configuração ou reconfiguração, nomeadamente nomológica ou adscritiva, de deter-

minadas épocas enquanto compreensão delas e enquanto manifestação dessa compreensão

através do que escolhemos denominar consciência histórica. A possibilidade, com vistas ao artifí-

cio humano, é radical, e coloca que

“[…] conceitos de períodos [históricos] não correspondem a nenhuma realidade, e sejam eles formulados em termos de lógicas geracionais, ou pelos nomes dos monar-cas [ou para os exemplos aqui em mãos, por tipos de governos], ou de acordo com al-guma outra categoria ou sistema tipológico ou classificatório, a realidade coletiva de inúmeras vidas englobadas por tais termos é não-pensável (ou não-totalizável, para usar uma expressão corrente) e nunca podem ser descritos, caracterizados, rotulados ou conceptualizados” (Jameson, 1991, p.282).

Essa passagem de Fredric Jameson faz, em nossa opinião, alusão ou pode ser diretamente

relacionado com a passagem anterior de Müller, que fazia alusão à David Hume. E, ambas, se

relacionam diretamente com uma questão paradigmática da epistemologia contemporânea, se

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não essencialmente moderna (em seu aspecto de crítica, problematização e dialetização da her-

ança Iluminista) à que Rüsen igualmente faz menção: para pensar a maneira como a história

passa de “h" para “H" devemos mérito a um tipo específico de racionalidade e devemos nos per-

guntar, então, “Que é a forma racional do trato interpretativo do homem consigo mesmo e com

seu mundo e esta se distingue das demais?” (2001, p.151). (1) Compreensão e (2) replicação/re-

produção encontram no (3) artifício a pergunta essencialmente epistemológica, portanto, sobre

como se constrói o conhecimento histórico; sobre o quão artificial é a narrativa histórica, tanto

de mundo, nação ou até mesmo pessoal, e se encontra, completando o círculo (inclusive o

mesmo círculo mimético) novamente no seio das indagações que trazemos à baila aqui através

da interpelação da coadunação entre tempo e narrativa orientadas pela fenomenologia de Paul

Ricœur.

Tendo exposto a problemática à qual buscamos nos ligar, reconstruir e articular, pas-

samos para as análises, como dito anteriormente, de três momentos específicos. Duas coberturas

jornalísticas, de caráter especificamente fotográfico, de veículos diferentes, com presença mar-

cante na Internet ao mesmo tempo em que se identificam ainda como mídias massivas (tendo pre-

sença de publicação física). O critério de seleção foi exatamente a presença de galerias de ima-

gens, compostas por contribuições profissionais (repórteres fotográficos freelancers ou contrata-

dos pelos veículos) e amadoras (enviados por leitores desses veículos e/ou sujeitos-agentes pre-

sentes no momento das manifestações em questão). Não é nosso objetivo aqui fazer qualquer

tipo de afirmação ou crítica propriamente estética dessas imagens, nem mesmo qualquer julga-

mento propriamente político sobre a parcialidade ou imparcialidade dessas coberturas. Nosso ob-

jetivo é captar através da reconstrução de uma narrativa temporal (outro critério foi a cobertura

em tempo real das manifestações - que quer dizer constantes updates nos acontecimentos con-

forme eles se desenrolavam) por esses veículos das manifestações em seus aspectos gerais (bus-

cando, ainda que sabidamente inutilmente, uma certa totalização dessas manifestações) e seus

sujeitos-agentes. Sempre sob a guisa de que “as relações, os artifícios, as invenções, não são ob-

jetos nem produtos do conhecimento, mas de práticas complexas que envolvem princípios lógi-

cos e passionais” (Müller, 2012, p.100).

Partiremos de uma averiguação e descrição das imagens e das contextualizações mais

gerais de cada um dos ciclos de protestos, que culminaram nas datas selecionadas, e, nas notas

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conclusivas, então se constituirão análises mais esquematizadas e as relações entre essas

averiguações e as características levantadas delas.

Parte I: 20 de junho de 2013

O chamado às ruas do dia 20 de junho de 2013 foi o ápice ou momento axial de inqui-

etações que se arrastaram desde os últimos dias de maio. O tema central das manifestações era

uma intangível insatisfação com o estado das coisas, acelerada pelo que ficou conhecido como

os movimentos (usamos aqui o termo de maneira solta, visto que de nenhuma forma essa chave

de identificação, utilizadas por muitos grupos díspares em muitas cidades tinha necessariamente

as características de um movimento social per se) que ficou conhecido como “Não é só 20 cen-

tavos”, que fazia referência aos aumentos das tarifas de transporte público e que começaram na

capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Não podiam ser percebidas (como muitos trabalhos,

como os de Tasso Gasparini de Souza, Fábio Gouveia, Lia Scarton Carreira, 2014, e Raquel Re-

cuero, 2014 demonstram de maneira bastante gráfica) necessariamente polarizações. A insatis-

fação em relação ao governo atual, por exemplo, no nível federal, de Dilma Roussef, do Partido

dos Trabalhadores (PT), ao final de seu primeiro mandato, ou, como foi o caso de Porto Alegre,

no nível municipal, da administração do prefeito José Fortunati, do Partido Democrático dos

Trabalhadores (PDT), ao meio de seu segundo, não estava abertamente caracterizado como uma

recusa a esse governo ou apoio a um pólo dissidente ou opositor específico e o apoio às ações,

geralmente contextualizadas dentro de uma espécie de “era do PT”, que englobava conjuntamente

ao mandato de Roussef também os dois mandatos anteriores de Luiz Inácio Lula da Silva, ou na

mucipalidade de Porto Alegre, como “Era Fortunati/Melo”, que englobaria, então, a adminis-

tração de José Fogaça, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), com o qual

Fortunati estava coligado e de quem era vice-prefeito até que Fogaça abdicasse em favor de con-

correr ao governo do Estado do Rio Grande do Sul, não eram caracterizados por um apoio cego

nem mesmo por um detração total desses governos (fazendo a ressalva de em Porto Alegre essa

possível dualidade era muito mais discutível).

A impressão, especialmente sobre as coberturas jornalísticas, por mais parciais (certos

veículos caracterizavam os agentes e participantes dos protestos como violentos, por exemplo) ou

que mais alegassem sua imparcialidade e comprometimento com a velha verdade jornalística (o

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caso em questão e mais visível sendo o da atuação do coletivo de jornalismo independente Mídia

Ninja), era de que as caminhadas, as idas às ruas, das maiores capitais do país a partir, principal-

mente, do dia 13 de junho daquele ano e culminando4, certamente, nas imensas manifestações co-

ordenadas nacionalmente no dia 20, eram um levante contra uma História de corrupção que mar-

cava caracteristicamente o país.

Entretanto, e especialmente no sentido de visibilidade da mídia, os protestos e as manifes-

tações esfriaram rapidamente conforme os governos federal, estaduais e municipais aos quais se

dirigiam os gritos de “não é só 20 centavos”, que viriam a caracterizar profundamente o movi-

mento, faziam acordos de congelamento dos preços das passagens de transportes públicos e em-

presas prestadoras de serviços a esses órgãos administrativos prometiam renovações de frotas de

ônibus, aumento de rotas e horários, etc. Inclusive, ao final de 2013, em novembro, já eram

visíveis problematizações acadêmicas, como a de André Singer, compondo o Dossiê: Mobiliza-

ções5, protestos e revoluções da edição 97 da publicação Novos Estudos do Centro Brasileiro de

Análise e Planejamento (CEBRAP), intitulado “Classes e Ideologias Cruzadas”, nas quais a im-

portância ou relevância dos protestos era claramente diminuída ou, trazendo essas problematiza-

ções para a vizinhança das problemáticas que trazemos à baila, historicizada como algo “ex-

pressão" ao mesmo tempo de uma “classe média tradicional inconformada com diferentes aspec-

tos da realidade nacional” (ou seja: com a decadência material dos serviços que deveriam ser de

prestação e responsabilidade das administrações locais, estaduais e federais) e, ao mesmo tempo,

também “um reflexo daquilo que denomina ‘novo proletariado’" (a nova força trabalhista

brasileira, caracterizada por jovens ou jovens-adultos que “padecem de baixa remuneração, alta

rotatividade e más condições de trabalho” além, é claro, de compartilharem com a velha classe

média as mesmas reivindicações sobre serviços e deveres do Estado) (Singer, 2013, p. 23).

Nossa hipótese aqui é menos configurar historicamente ou contextualizar sociopolitica-

mente essas manifestações do que articulá-as no ciclo de três pontos (compreensão, replicação,

artifício) que apresentamos previamente. Apresentamos aqui esse pequeno excurso com a finali-

dade apenas de contemplar uma primeira leitura, contextualizada, mas em termos bastante gerais.

4 Segundo matéria do Site UOL, pouco mais de um milhão de pessoas teriam ido às ruas das principais capitais brasileiras no dia 20 de junho de 2013 (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/20/em-dia-de-maior-mobilizacao-protestos-levam-centenas-de-milhares-as-ruas-no-brasil.htm). Os números, entretanto, variam e nossa fonte selecionada para analisar os protestos, a revista Carta Capital, aponta cerca de 100 mil manifestantes em São Paulo e pouco mais de 300 mil no Rio de Janeiro. 5 Disponível online em: http://novosestudos.uol.com.br/v1/issues/view/159 (acesso em agosto/2015).

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Nosso objeto, especificamente, é a cobertura da revista Carta Capital6 das manifestações em di-

versas cidades brasileiras na data em questão (as cidades mais cidades são a capital brasileira,

Brasília, suas maiores cidades, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre).

A cobertura da revista aconteceu em tempo real, o que, aqui quer dizer que a postagem

online era reeditada ou, melhor, complementada a cada novo desenrolar dos fatos (tomando aqui

ambos os termos, desenrolar e fatos, de maneira igualmente solta, sem buscar necessariamente

problematizá-los na forma da teoria jornalística; em outras palavras, tomamos esses termos pelo

seu face value), começando às 17hs daquele dia e e concluindo pouco após às 22hs. Nosso foco

será, como dito, as galerias de fotos disponibilizadas conjuntamente com o acompanhamento dos

acontecimentos7. Selecionaremos quatro fotos de cada matéria.

As quatro fotos selecionados (que denominaremos imagem 1, 2, 3, e 4, respectivamente)

estão disponíveis na galeria de imagens da matéria citada acima. Desenvolveremos essas

análises da seguinte maneira: primeiramente apresentaremos as cinco imagens selecionadas,

destacando aspectos relevantes de cada uma e, num segundo momento, analisando eles (ex-

ercendo exatamente a mesma coadunação que pretendemos ao elaborar esse círculo tríplice entre

compreensão - averiguar a foto, repetição - destacar nela o que parece mais relevante na con-

strução da imagem apresentada pelo veículo e, por fim, o artifício - relacionando entre todas as

formas de artifício propriamente empregadas nesses, chamaremos, recortes fotográficos).

6 Disponível online em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/as-manifestacoes-pelo-brasil-em-20-de-junho-4066.html (acesso em agosto/2015).7 As fotos selecionadas, porque, claro, é impossível aqui propor uma análise de todas as fotos disponibilizadas pelos sites em cada evento recortado, constarão dos anexos do artigo.

Page 12: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

Na imagem 18, vemos a polícias dispersando manifestantes em Brasília, DF, com o uso de

spray de pimenta. De um lado temos o policial militar, devidamente fardado com equipamentos

usualmente designados como ‘polícia de choque’. Do outro, manifestantes cobrindo seus rostos

com camisetas e panos (uma das características que é importante ressaltar é que essas manifes-

tações também ficaram conhecidas como “Revolta do Vinagre”9 pelo uso de vinagre por parte

dos manifestantes para deter ou sanar os efeitos dos sprays de pimenta e gás lacrimogêneo). A

dicotomia da construção da imagem é especialmente interessante por (re)apresentar exatamente

a dicotomia que o discurso das matérias em diversos veículos de comunicação: manifestantes

8 Também disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/as-manifestacoes-pelo-brasil-em-20-de-junho-4066.html/brasilia-1.jpg-4730.html/@@images/7b2e88f6-86dd-41ca-afad-fc7986ae9f2f.jpeg (acesso em agosto/2015).9 Muitos sites e matérias se referem, especialmente internacionalmente, às manifestações no mês de julho como “Revolta da Vinagre”, como o site Global Voices (http://pt.globalvoicesonline.org/2013/06/15/brasil-revolta-do-vina-gre-marca-o-pais/) ou o do Jornal Estado de São Paulo (http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,com-au-mento-da-busca-no-google-revolta-do-vinagre-vira-termo-no-wikipedia,156600e), onde inclusive é ressaltado que o termo teria virado entrada na enciclopédia livre Wikipédia (https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Revolta_do_vinagre&redirect=no), onde atualmente o termo redireciona o usuário para o artigo intitulado “Protestos no Brasil em 2013”.

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Page 13: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

versus polícia, povo revoltado versus violência de um Estado policial. Já percebemos de an-

temão que essa construção é, em si mesma, um artifício: uma espécie de prestidigitação que

despersonaliza o policial, enquanto índice do Estado, e que demarca especialmente os manifes-

tantes usando roupas brancas e, bem na frente do policial, completamente de preto, usando a ban-

deira nacional brasileira como uma capa, um manifestante porta um cartaz branco com o dizer

PAZ em letras garrafais. À margem da ação do policial e da aparente reação dos manifestantes,

um grupo de pessoas está abraçada ou enrolada também em bandeiras do Brasil.

A segunda imagem (imagem 210) mostra pacificamente as manifestações em Bélem, capi-

tal do Estado do Pará. “Cerca de 15 mil pessoas”, menciona a legenda da foto, teriam ido às ruas

na cidade. Como a imagem apresenta: predominantemente vestidas de branco, com cartazes tam-

bém predominantemente brancos que dizem coisas “A corrupção é a maldição dessa nação” e

portando bandeiras do Brasil e bandeiras brancas. Tirada por trás, e provavelmente de algum tipo

10 Também disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/as-manifestacoes-pelo-brasil-em-20-de-junho-4066.html/belem.jpg-3249.html/@@images/ef701b86-c5e4-4d92-a0f7-738fd19ca8d2.jpeg (acesso em agosto/2015).

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Page 14: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

de elevação, a foto denota, diferentemente da anterior, uma manifestação pacífica, sem polariza-

ções e, especialmente, sem a presença de policiais ou qualquer força repressora do Estado.

A terceira imagem (imagem 311) se trata de um still da cobertura do canal de TV a cabo da

Globo, G1. A imagem mostra o repórter Pedro Vedova ferido no rosto (na parte superior da testa)

por um tiro de borracha que teria recebido da Polícia Militar durante as manifestações na cidade

do Rio de Janeiro. Além da violência gráfica da imagem (o ferimento está aberto e o rosto de

Vedova está coberto de sangue), é importante ressaltar que o repórter está também vestido com

uma camiseta branca (que deixa o sangue que escorreu por seu rosto ainda mais marcado) e ele

está, em volta do pescoço, com uma máscara de gás (provavelmente no intuito de evitar os

efeitos do gás lacrimogêneo e outras gases liberados tanto pela Polícia e seu batalhão de choque

- como indica a matéria que acompanha as imagens - quanto pelos manifestantes ao queimarem

latões de lixo, bandeiras do Brasil e outros artefatos e objetos). A imagem também interpela

ocorrências de violência e repressão de repórteres, independentes e ligados a grandes veículos de

11 Também disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/as-manifestacoes-pelo-brasil-em-20-de-junho-4066.html/pedro-vedova/@@images/1adbe717-61d1-40f9-a3e5-ab169a8ec099.jpeg (acesso em agosto/2015).

IMAGEM 3IMAGEM 4IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 3IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4IMAGEM 4

Page 15: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

comunicação no Brasil, ocorridos especialmente uma semana antes, no dia 13 de junho em São

Paulo. Logo após jornais como A Folha de São Paulo interpelarem e justificarem os poderes

públicos em sua repressão violenta aos manifestantes munidos “ideologias pseudorevolu-

cionárias”, um “grupelho” focado numa bandeira irrealista. 12No mesmo dia, outro grande veículo

jornalístico da capital paulista chamava os participantes e aqueles que atenderam ao chamado do

Movimento Passe Livre (MPL) de “baderneiros e vândalos” e justificava a repressão policial. En-

tretanto

“Entre as centenas de feridos pela Polícia Militar paulista no dia 13 estão repórteres

dos veículos estão repórteres dos veículos cujos editoriais haviam convocado a re-

pressão policial. Fotógrafos da Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e agências

de notícias são atingidos por balas de borracha, e um jornalista da revista Carta Capi-

tal está entre os detidos nas diversas prisões arbitrárias por posso de vinagre”

(REYS, 2011 apud BORBA, FELIZI e REYS, 2014, p.34-35).

Na imagem 413 retornamos à Belém, no Pára. A imagem mostra os manifestantes, dessa

vez nem polarizados em relação ao Estado, nem em destaque: eles dominam a fachada da

prefeitura da cidade, colando nas paredes bonecos e cartazes e dois manifestantes pendurados nas

janelas gradeadas do prédio, ambos trajados em preto e usando a famigerada máscara de Guy

Fawkes. Ao lado deles, em outra janela, uma bandeira branca diz “Não é Turquia, não é Grécia,

é o Brasil saindo da inércia #vemprarua” (fazendo referência a hashtag utilizada na rede social

de microblogs Twitter para organizar e conscientizar a população sobre o decorrer dos eventos).

Conjuntamente, outros cartazes dizem “#semviolência” e “Juntos!”.

Parte II - 16 de agosto de 2015

12 Do editorial “Retomar a Paulista”, publicado na manhã no dia 13 de junho de 2013, na Folha de São Paulo e disponível para assinantes do veículo no endereço: https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CB4QFjAAahUKEwjHjLOhn8rHAhXJEJAKHZYlDvM&url=http%3A%2F%2Fwww1.folha.uol.com.br%2Fopiniao%2F2013%2F06%2F1294185-editorial-retomar-a-paulista.shtml&ei=HYbfVYeKE8mhwASWy7iYDw&usg=AFQjCNHwO2HTxkyISPc4rBIzHzB6_yN5lw&sig2=FYmMTjQ1zp_yc4Uk6JrILQ (acesso em agosto/2015) e compartilhado no blog “Perca Tempo”, no mesmo dia, e disponível no endereço: http://avaranda.blogspot.com.br/2013/06/retomar-paulista-editorial-folha-de-sp.html (acesso em agosto/2015).13 Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/as-manifestacoes-pelo-brasil-em-20-de-junho-4066.html/belem-1.jpg-7721.html/@@images/d64d6905-17f5-42a5-9662-e6cf3e093e92.jpeg (acesso em agosto/2015)

Page 16: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

De forma semelhante aos protestos de junho de 2015, as manifestações que ocorreram em

diversas das maiores cidades do Brasil no dia 16 de agosto de 2015 também foram o ápice de in-

quietações que vinham se desenvolvendo ao longo de meses, começando, essencialmente, no dia

15 de março do mesmo ano. O gatilho desses protestos, que aconteceram também no dia 12 de

abril, foram, também, a continuação dos escândalos políticos e de corrupção - especialmente en-

volvendo financiamento de campanhas através de desvios de recurso da Petróleo Brasileiro S.A.

ou Petrobrás, principal companhia estatal extratora e de refino de petróleo no país.

Porém, de forma bastante diferente dos protestos de 2013, esses pareciam marcados ex-

atamente pela polarização política. As imagens (que denominaremos 5, 6, 7 e 8) selecionados,

antecipamos, denotam diferenças fundamentais em relação ao grupo apresentado no recorte da

galeria de imagens da revista Carta Capital.

A cobertura da revista Época na Internet também aconteceu em tempo real, atualizando a

matéria a cada novo acontecimento. Também diferentemente daquelas manifestações em 2013,

fica difícil estabelecer os resultados ou necessariamente consequências dos atos públicos, visto

serem extremamente recentes. Nada disso, entretanto, é precisamente o que nos interessa. Esta-

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Page 17: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

mos aqui buscando matizar as artifícios utilizados e que ocasionaram tais manifestações e que se

tornam e se tornaram visíveis através das coberturas jornalísticas dessas manifestações. Talvez,

devemos ressaltar, seria mais conciso analisar a cobertura de ambos os protestos pelo mesmo

veículo, site ou grupo produtor/veiculador de notícias. Porém, pensamos, uma comparação entre

dois veículos com posicionamentos diferentes pode trazer à tona nuances mais interessantes, em

se tratando de recortes tão específicos quanto coberturas e divulgação de imagens.

Já na primeira imagem (imagem 514) podemos perceber o aparecimento dessas nuances,

que trataremos em maior profundidade na seção a seguir, denominada Notas Conclusivas. A im-

agem mostra apenas algumas centenas de pessoas em marcha pela região central de Brasília, DF.

Predominantemente o que vemos são pessoas vestidas de verde e amarelo, algumas distinta-

mente, pode-se ver, usando a camiseta da seleção brasileira de futebol. Algumas delas portam

uma imensa faixa escrita em verde, amarelo e preto com o dizer “IMPEACHMENT" em letras

garrafais. Os outros cartazes mais visíveis dizem “FORA DILMA” e “Por que te calas?”. A im-

14 Também disponível em: http://s2.glbimg.com/1nKf-6i3DSTutsdeHIQLSASAlJQ=/560x350/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2015/08/16/arjdeawdoiuloxqrp7cv3htdigraljdfihvowk6gn1x3.jpg (acesso em agosto/2015).

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Page 18: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

agem, ainda que simples, já denota uma falta de pluralidade nas manifestações: o que, em outras

palavras, também é a revelação de uma certa coesão e organização mais procedural e mais em

torno de objetivos ou critérios específicos.

A segunda imagem (imagem 615) constrói uma interessante relação com a primeira im-

agem selecionada no recorte da Revista Carta Capital: nela, o hoje senador Aloysio Nunes, do

Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), político carreirista em atividade desde 1983,

quando foi eleito deputado estadual pelo Estado de São Paulo, e que já ocupou cargos como

Vice-Governador daquele Estado, Deputado Federal representante também do Estado de São

Paulo e Ministro da Justiça na administração do então presidente Fernando Henrique Cardoso,

também do PSDB, aparece ao lado de manifestantes pacificamente tirando uma selfie (foto tirada

de si mesmo, geralmente utilizando-se de um telefone celular com câmera digital). Atrás dele

uma mulher porta um cartaz, em verde, amarelo e preto, com os dizeres “FORA DILMA”. O con-

traste, antecipamos e aprofundaremos nas notas conclusivas, é a completa falta de aparelho re-

pressor do Estado; inclusive, o contrário. Os protestos parecem serem compostos e, presumimos,

legitimados e organizados por meio de membros do governo. A presença é do aparelho admin-

istrador do Estado (em outras fotos, inclusive em outros veículos, é importante notar, veem-se

manifestantes acompanhados de policiais da Polícia Militar e até mesmo de choque sorridente-

mente posando para fotos ou acompanhando, até mesmo em trajes oficiais, a marcha das mani-

festações).

Na imagem seguinte de nosso recorte (imagem 716) vemos um imenso boneco inflável, de

12 metros de altura, comprado pelo Movimento Brasil17, de Maceió, no Estado de Alagoas, que

satiriza o ex-presidente Luiz Inácio da Silva, do PT. O boneco, armado na Explanada dos Min-

istérios, é uma caricatura do ex-presidente em trajes tipicamente associados à presidiários

(listrado em banco e preto) e no peito a numeração 13-171 (13 fazendo referência à legenda de

votação para o Partido dos Trabalhadores e 171 fazendo referência ao artigo 171 do Código Pe-

nal brasileiro, que lê-se: “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, in-

15 Também disponível em: http://s2.glbimg.com/3HOPvQ95oAW6GtgC2pSw_iCjld8=/560x350/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2015/08/16/avxcscnbbn44pvirkhyblbxh5mjtmof4pm7xen2ifs6c.jpg (acesso em agosto/2015).16 Também disponível em: http://s2.glbimg.com/XfdHM9YAkTLhzhiw6XVJuSCqj-c=/560x350/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2015/08/16/avgk2wpd-n4ynfl-wrm07iabompvcqa7lcpv4lqpvr8c.jpg (acesso em agosto/2015).17 A própria revista Época oferece o link para a matéria de Ricardo Della Coletta sobre o grupo Movimento Brasil e sobre a encomenda e utilização do boneco inflável - http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/08/grupo-gasta-r-12-mil-para-fazer-boneco-gigante-de-lula-preso.html (acesso em agosto/2015).

Page 19: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

duzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício18, ardil, ou qualquer outro meio fraudu-

lento”19). A foto apresenta o boneco cercado por o que pensamos ser algumas centenas de pes-

soas, a maioria usando também as cores verde e amarelo, e ao lado um balão preto com os diz-

eres “OPERAÇÃO LAVA-JATO”20, fazendo alusão à investida da Polícia Federal e do Min-

istério Público Federal contra o desvio de verbas públicas e lavagem de dinheiro orquestrados

por diversos membros do governo, nos níveis Executivo e Legislativo, assim como empresários e

entidades de fomento de indústria e comércio.

18 Grifo nosso.19 O artigo e parágrafos subsequentes do Código Penal podem ser acessado em: http://www.jusbrasil.com.br/topi-cos/10617301/artigo-171-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-dezembro-de-1940 (acesso em agosto/2015).20 Operação da Polícia Federal que teve início em março de 2014 para prender e investigar possíveis envolvidos, incluindo membros do legislativo e executivo, em lavagem de dinheiro (através de redes de lavanderias e lavagens de carro, por isso o apelido) desviado de órgãos e iniciativas do Governo Federal e de diversos Governos Estaduais. A operação é considerada pelo Ministério Público Federal como “a maior investigação sobre corrupção política na História do País” (http://lavajato.mpf.mp.br/index.html) e envolve membros de diversos partidos, empresários e enti-dades de fomento de indústria e comércio.

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Page 20: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

A imagem final desse recorte (imagem 821) temos a contra-manifestação de manifestantes

ligados à CUT (Central Única dos Trabalhadores) e frente ao Instituto Lula, na capital paulista. A

imagem, bem diferente das anteriores, parece feita de dentro da manifestação. Ao invés de car-

tazes, vemos mãos levantadas e os manifestantes aparentemente entoando palavras de ordem, to-

dos devidamente vestidos em vermelho (as cores do PT e, não coincidentemente também da

CUT e que fazem alusão às origens de ambos os movimentos dentro do movimento interna-

cional caracteristicamente marxista e/ou comunista em sua ideologia). Contextualizada às outras

imagens recortadas para esse segundo eixo analítico, essa imagem contrasta com as do primeiro

eixo: denota uma polarização, se não entre aparelho opressor do Estado e manifestantes, pelo

menos de polarização política: ela parece dizer “não, esses protestos não são apenas contra algo,

21 Também disponível em: http://s2.glbimg.com/DLpXo5GsWGtIiSZBK4qQrs5mIe4=/560x430/e.glbimg.com/og/ed/f/original/2015/08/16/akiqxsohko0_wkodjxpii0nujliprqttgupmjgeen6zu.jpg (acesso em agosto/2015).

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Page 21: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

mas também a favor de algo” (no caso específico, em defesa da administração do PT que com-

pletará ao final do mandato de Dilma Roussef 16 anos no Poder Executivo do país). A manifes-

tação teve presença do Presidente da CUT, Vagner Freitas, e, segundo outros veículos “teve uma

cobertura fraca”22, até mesmo pelos ditos principais meios de comunicação do Brasil (tanto im-

pressos, quanto televisivos e com presença forte na Internet). No diálogo entre veículos, ainda

que não seja nosso objeto aqui, mas, pensamos, ser importante contextualização, é aparente que

houve uma crítica generalizada em relação a parcialidade de diversos meios (pensamos que in-

clusive da própria revista Carta Capital em sua versão online) ao cobrir principalmente as mani-

festações abertamente anti-Dilma e anti-PT e prover pouquíssimas informações (em matéria fo-

tográfica, apenas essa imagem encontra-se na cobertura em tempo real do site) sobre a polariza-

ção que, aparentemente poderia ser encarada como bastante equilibrada23.

Não nos alongaremos mais aqui e partiremos, na parte final desse esforço, para as Notas

Conclusivas que buscarão uma hermenêutica dessas imagens enquanto apresentação de uma

cobertura jornalística, como dito, sem necessariamente problematizar questões jornalísticas, mas

sim problematizando o círculo que propomos entre (1) compreensão, (2) replicação e (3) artifí-

cio.

Notas Conclusivas

"Usando a interatividade, os indivíduos modernos se tornaram mestres do artifício”Stephen J. Cowley e Frédéric Vallée-Tourangeau, 2013

As oito imagens selecionadas aqui são, claro, recortes de matérias muito maiores,

coberturas em tempo real com diversas contextualizações e re-contextualizações oriundas

das atualizações efetuadas pelos repórteres e pelas redações das revistas selecionadas. O

que nos propomos aqui é nos descolarmos dessa tentativa (que poderíamos dizer neces-

sariamente jornalística) de totalização dos eventos (até devido ao círculo (1), (2) e (3)

22 Blog de opinião de Felipe Moura Brasil no site da revista Veja, de 17 de agosto de 2015 - http://veja.abril.-com.br/blog/felipe-moura-brasil/2015/08/17/cobertura-frouxa-da-globo-no-16-de-agosto-fez-ate-presidente-da-cut-parecer-tolerante/ (acesso em agosto/2015).23 O site da Revista Época enumera, em 17 de agosto, 1,5 mil pessoas nas manifestações em São Paulo retratadas na imagem 8 acima, enquanto que algumas cidades brasileiras tiveram menos de uma centena de manifestantes anti-Dilma/anti-PT. A matéria pode ser acessada em: http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Acao/noticia/2015/08/manifestacoes-de-16-de-agosto-de-2015.html (acesso em agosto/2015).

Page 22: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

que propomos como chave de leitura). Buscamos o exercício da compreensão das ima-

gens em suas (re)apresentações de acontecimentos e, ao mesmo tempo, enquanto recortes

dessas realidades, desses, como dizíamos antes e com o mesmo uso, fatos.

Falta-nos, portanto, encarar frontalmente que a apresentação do objeto deve for-

malmente se articular com (2) a consciência histórica como partícipe do círculo mimético

de Ricœur (composto pela percepção pelo processo mimético do que é - possível, exis-

tente, factível, etc. - e por sua concomitante reflexão, pela mediação dessa replicação,

orientada frente a um mundo histórico tomado como um todo e, finalmente, a restituição

da narrativa iniciada pela percepção e pela cópia ou replicação ao seu tempo própria de

agência e pensamento) e, por fim, com (3) o artifício, em sua duplicidade de duplici-

dades, enquanto objeto, noção, conceito e vivência. O que procuramos, então é basica-

mente compreender que “Interpelando o artifício humano, pensar é co-constituído pelo

discurso, movimento e gesto. As pessoas distribuem controle enquanto eles ligam rotinas,

fazem julgamentos instantâneos e coordenam enquanto agem” (Cowley e Vallée-

Tourangeau, 2013, p.256).

No conjunto de imagens (1, 2, 3 e 4) apresentados no primeiro eixo, representando

os protestos do dia 20 de junho de 2013, o que mais chama a atenção são:

1. A indumentária dos manifestantes;

2. A polarização entre manifestação popular legítima e ilegítima;

3. A polarização entre qualquer dessas formas de manifestação e os agentes e in-

stituições opressoras do Estado;

4. A dualidade entre “não violência” e a violência de manifestantes (ainda que

aparentemente apenas contra patrimônios públicos) e desses agentes e insti-

tuições de opressão estatal;

Page 23: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

5. E, finalmente, a necessidade de ligação entre as manifestações, especialmente

em seus aspectos discursivos (cartazes, indumentária, alegorias, máscaras, etc.)

com um movimento de caráter global.

Já no conjunto de imagens ligados ao segundo eixo (imagens 5, 6, 7 e 8), represen-

tando os protestos do dia 16 de agosto de 2015, o que fica mais evidente é:

1. A participação dos agentes anteriormente vistos como opressores do Estado

(incluindo aí membros do governo, em especial do Legislativo) de forma pacífica

e que poderia ser inclusive caracterizada como protetora das manifestações;

2. Uma maior coerência entre os aspectos discursivos (como dito, cartazes, indu-

mentária, alegorias, máscaras, etc.) utilizados pelos manifestantes;

3. Polarização entre forças políticas legitimadas (em grande parte, oposições ide-

ológico-partidárias) manifestas nos aspectos discursivos já citados assim como na

indumentária (quase não se veem pessoas vestindo branco, preto ou vermelho -

cores que eram presentes nos protestos de junho de 2013);

4. Dualidade na motivação dos protestos, sendo vistos, inclusive pelas matérias

que acompanham as fotos, como protestos fundamentalmente com objetivos difer-

entes e auto-excludentes (como é o caso da manifestação da CUT, na imagem 8);

5. E, finalmente, a preocupação ou, em outras palavras, potencial dessas manifes-

tações em procurarem re-legitimar forças que poderiam ser consideradas opresso-

ras e uma visão necessariamente contrária a dos protestos de junho de 2013 (lá,

pedia-se por um futuro, aqui o pedido ressoa - e isso fica claro nas matérias que

acompanham as fotos - por um retorno).

O que vemos é uma distensão: como aponta Steven Dillon em seu estudo sobre ar-

tifícios arte e artifício no cinema contemporâneo norte-americano (2006, p.8): “Existe re-

alidade fotográfica, imersão sensual e emocional, mas também existe um conhecimento

Page 24: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

concorrente de que a realidade é um artifício, uma alucinação construída”. Nas fotos

podemos ver a interpelação do artifício exatamente em sua duplicidade: ele é artificium,

obra de arte, técnica, manuseio e, ao mesmo tempo, praesto digitus, o truque, o jogo de

mão rápida que está pronto e sempre apontando, ainda que não para onde deveríamos ol-

har. Especialmente nos primeiros exemplos podemos ver, desde os cartazes, até a atuação

nas ruas (de policiais e manifestantes) que há uma tecnicização latente. Por trás de tudo,

os eventos foram concatenados, tanto nos meses de junho de 2013 quanto de agosto de

2015, através de redes sociais online e do uso da telefonia móvel celular. Nas fotos é pos-

sível identificar sujeitos/agentes portando e utilizando seus dispositivos móveis para cap-

tar as ações aos seu redor ou para se comunicar com outros (e isso em ambos os recortes).

O artifex ou artífice das manifestações, no sentido de seu construtor, é um coletivo de hu-

manos, orientados por certos centros organizadores ou disseminadores de notícias (que

vão desde os veículos de comunicação de massa legitimados e estabelecidos, com atu-

ação on e offline, como apenas grupos de pessoas ou coletivos independentes, como fica

visível nas demonstrações, já citadas, de Recuero e Malini).

Porém, esse artífice também é o manipulador. Não apenas no sentido corrente,

mas exatamente no que referimos ao de prestidigitação; é o construto simbólico-

imagético-discursivo capaz de ao mesmo tempo em que aponta, também distrai. Na im-

agem 7 podemos ver isso de forma bastante gritante: o ex-presidente Luiz Inácio da Silva

caricaturado ao lado de um balão fazendo menção (e apoio!) a uma das mais profundas

investidas da Polícia Federal e do Ministério Público para perseguir políticos e em-

presários corruptos - uma investigação que 1) não poupa nenhum partido, tendo já indi-

ciado dezenas de membros do Partido dos Trabalhadores e 2) busca exatamente através

dessa atitude uma espécie de isenção partidária e ideológica, que jamais combinaria

com a exposição pública ou apologia feita por qualquer um dos dois balões.

Cabe à cobertura jornalística (em específico à fotográfica) e aos meios de comuni-

cação também essa função prestidigitadora. O ciclo (1), (2) e (3) se realiza no recorte

das (possíveis) milhares de imagens registradas dos eventos, na escolha feita pelo veículo

Page 25: Os Artificios de Uma Consciencia Historica

- como um todo (aí sim, total) operativo: do fotógrafo na cena do acontecimento, ao

repórter que pode ou não acompanhá-lo (ou ser ele mesmo), ao editor, etc.

E nesse papel, vê-se que o artifício criado nas coberturas é de (I) relacionar os

acontecimentos no âmbito nacional com eventos extraordinários no campo das atuações

e vivências mundiais; que poderíamos chamar de um artifício global e (II) posicionar a

crítica e/ou narrativa desses eventos numa posição completamente brasileira, desconec-

tada de eventos (ordinários ou extraordinários) no âmbito mundial; que poderíamos, em

contrapartida, denominar artifício local. Não há conjugação; o chamado glocal (Triv-

inho, 2013) não é articulado, impedindo que na narrativa imagética jornalística fiquem

claras a (1) compreensão de uma demanda, em certos termos, anti-imperialista e anti-cap-

italista (advinda dos eventos mediados por computador que ocasionaram levantes, mani-

festações e derrubadas de governo no que ficou conhecido como “Primavera Árabe”, mas

que também aconteceu em países como a Croácia, nos anos recentes). A narrativa, por

isso, tranforma a (2) replicação em cacofonia: as imagens que mostram junho de 2013

dão a entender que, mesmo que o estopim fossem os preços das passagens, elas eram de

alguma forma necessariamente ligadas a um movimento global. Por fim, o círculo é com-

pleto dando a entender que todas as parcelas da população podem e devem aderir a mani-

festação nos moldes cacofônicos desenhados pelas de junho de 2013, pelas da “Primavera

Árabe” ou outras semelhantes desde que, claro, adiram aos artifícios que os posicionem

contrária ou concordantemente.

Em junho, camisas pretas e brancas. Em agosto, verdes e amarelas. Em junho, re-

criminação das ações policiais. Em agosto, policiais e militares participando das manifes-

tações pacificamente. Não há conjugação nas narrativas: os eventos são mostrados em

separados, eles mesmos artificialmente reconstruídos em narratividades que não per-

mitem encontro ideológico ou sequer meramente intencional. O artifício conecta junho de

2013 às exigências democráticas dos países árabes sob regimes autoritários, artificializa

a consciência histórica das manifestações; planifica as exigências e demandas da popu-

lação envolvida. Em agosto, ainda que os cartazes peçam por uma “limpeza da democra-

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cia brasileira”, não é feita a mesma conexão. Há, em total aversão aquilo, uma incoerên-

cia narrativa que separa esses eventos de quaisquer outros.

O mais artificial de tudo é que ambas as coberturas, em especial as analisadas aqui,

de cunho fotográfico e narrativo, não artificializam apenas a historicidade dos movimen-

tos (deconectando-os de demandas nacionais e internacionais que fazem parte da história

recente do país), mas as dão em forma de uma narrativa acaba. Não.

"Os artifícios são, na condição de tarefa, aquilo que está incessantemente por fazer e sendo feito. Enquanto produtos são eles objetos de uma investigação, de um inquérito. Talvez se possa, nessa perspectiva, entender Hume como um percursor daquilo que em Nietzsche e mais tarde em Foucault será chamado de método genealógico. Os mundos, por mais sérios, verdadeiros, universais e necessários que possam parecer, não passam de ficções. São também, em razão disso, aquilo que é necessário desconfiar" (Müller, 2012, p.100).

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