olhares figurados, figuras do olhar: fotografia e

162
JULIANA DE OLIVEIRA RODRIGUES OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E MOVIMENTO HIP HOP Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência para obtenção parcial do título de mestre em Comunicação e Semiótica – Signo e Significação nas Mídias, sob orientação da Profa. Doutora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira. SÃO PAULO 2006

Upload: others

Post on 03-Jul-2022

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

JULIANA DE OLIVEIRA RODRIGUES

OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR:FOTOGRAFIA E MOVIMENTO HIP HOP

Dissertação apresentada à banca examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência para obtenção parcial do título de

mestre em Comunicação e Semiótica – Signo e

Significação nas Mídias, sob orientação da Profa.

Doutora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

SÃO PAULO

2006

Page 2: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

2

Comissão Julgadora

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

Page 3: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

3

Aos meus pais,

figuras de amor eterno

Page 4: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

4

Agradecimentos:

À família, que justifica os passos e as conquistas nos anos de nossas vidas.

Aos companheiros amados, Berilo, Carlos Eduardo e Miguilim, pelo apoio e

compreensão de todos os dias.

Aos queridos amigos do Centro de Pesquisas Sociossemiótica pelos momentos de

reflexão e de confraternização.

À orientadora Ana Claudia Mei de Oliveira pela dedicação e confiança.

Ao CNPQ pelo apoio à realização desta pesquisa.

Aos fotógrafos do Movimento Hip Hop da cidade de São Carlos pela partilha do

olhar vivido.

Page 5: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

5

"A moldura deste retrato

em vão prende suas personagens.

Estão ali voluntariamente,

saberiam - se preciso - voar"

Carlos Drummond de Andrade, Retrato de família

Page 6: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

6

RESUMO

O presente estudo toma por objeto as fotografias realizadas por integrantes

do Movimento Hip Hop, da cidade de São Carlos (SP), nas quais constroem um

olhar sobre si mesmo pelas experiências da vida em grupo. Centrada nos

procedimentos de figurativização e tematização, esta pesquisa preocupa-se com as

diversas figuras enredadas pelo conjunto fotográfico, que implicam em estratégias

discursivas capazes de tornar visível os diferentes modos de o grupo se mostrar no

mundo. Em decorrência disso, a problemática se apresenta em torno da

visibilidade do grupo, articulada em quatro cenas que, conforme hipótese de

pesquisa, constituem distintos auto-retratos. Estes fazem parte de um universo

subjetal (de figuras próximas à particularidade do grupo) e objetal (próximas às

imagens convencionalmente reiteradas pelo contexto Hip Hop), encadeando a

questão polêmica do parecer. O objetivo é analisar os mecanismos de enunciação

para compreender como os modos de mostrar discursivizam a dimensão

identitária do grupo, pelos contextos de vida presentificados no texto visual. Tal

estudo embasou-se na semiótica discursiva de linha francesa desenvolvida por

Algirdas Julien Greimas e seus colaboradores, para dar conta da organização do

texto fotográfico como uma totalidade de sentido e dar inteligibilidade aos

mecanismos de sua produção. Destacam-se, ainda, as orientações teóricas da

Sociossemiótica, propostos por Eric Landowski, as formulações de Jean-Marie Floch

sobre semiótica plástica e as reflexões sobre auto-retrato a partir de Lauer A. N.

dos Santos. Nessa correlação, enfatizam-se os regimes de sentido e de interação, em

consonância com os modos de mostrar, bem como as relações identitárias que

evidenciam a importância da imagem como objeto de comunicação e de interação

entre os sujeitos pelo ato de ver.

Palavras-chave: Semiótica discursiva, fotografia, Hip Hop, auto-retrato, regimes desentido e de interação e identidade.

Page 7: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

7

ABSTRACT

This present study uses the photos taken by members of the Hip Hop

Movement, from the city of São Carlos (SP), which constitute a look upon themselves

through the experience of living in group. Focused in the procedures of

figurativization and thematization, this research is concerned with the several

figures interconnected by the collection of photos, which imply in discursive

strategies capable of making the different ways the group present itself to the world.

As a consequence, the problematic presents itself around the visibility of the

group, articulated in four scenes which, according to the hypothesis of the

research, constitute distinct self-portraits. These are part of a subject-oriented

universe (of figures known to the particularity of the group) and object-oriented

(closer to the images conventionally associated with the Hip Hop context), bringing

together the controversial matter of opinions. The objective is to analyze the

mechanisms of enunciation to understand how the methods of displaying

discourse about the identifying dimension of the group, through the life contexts

presented in the visual text. Such study was based on the discursive semiotic of the

French line developed by Algirdas Julien. Greimas and his collaborators, to

manage the organization of the photographic text as a wholeness of senses and

give intelligibility to its production. It's also noticeable the theoretical orientation of

the Sociosemiotic proposed by Eric Landowski, the formulations of Jean-Marie Floch

about the plastic semiotic and the reflexions about the self-portrait from Lauer

A.N. dos Santos. In this correlation, the regimes of sense and interaction, in

consonance with the regimes of displaying, as well as the identity relations which

bring up the importance of the image as an object for the communication and

interaction among the subjects by the act of seeing.

Key-words: Discursive semiotic, photography, Hip Hop, self-portrait, regimes of

senses and of interaction and identity.

Page 8: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

I - Na Arena, mostras da problemática do parecer............................................12

II - Ponto de vista semiótico: a fotografia na construção do sentido..............14

III - Duas histórias, dois olhares: o grupo Hip Hop e o pesquisador se

definem....................................................................................................................15

IV - O Método de pesquisa: o fazer fotográfico como olhar “de dentro”......18

V - Focalização da pesquisa..................................................................................22

CAPÍTULO I

O horizonte fotográfico e a imagem possível: orientações conceituais..........27

1.1. Auto-retrato: o sujeito e seu entorno............................................................31

1.2. Disposição geral: querer ser visto.................................................................33

1.3. Mostrar..............................................................................................................36

1.4. Ator e actante: sincretismo e olhar coletivo.................................................40

1.5. Caminhos e Atalhos: acordos possíveis na dimensão do mostrar-se......42

CAPÍTULO II

Do panorama ao tipo: as imagens organizam o caminho................................50

2.1. Cena 1 - Se fazer mostrar................................................................................52

A reunião.................................................................................................................52

Com a aproximação, vozes impressas................................................................55

Autoridade pela fé.................................................................................................61

Breakers: espetáculos de inversão do mundo.....................................................64

Grafismos de presença..........................................................................................70

Rapper: sujeito da contemplação..........................................................................77

Page 9: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

9

O corpo monta o estilo..........................................................................................79

A pose de si (verso privado): a família como sociabilidade............................82

O simulacro do Hip Hop: o auto-retrato como convenção................................86

2.2. Cena 2 - O mostrar-se: a constituição do ser...............................................87

O toque na presença...............................................................................................87

Figura focal..............................................................................................................94

2.3. Cena 3 - Mostrar-se conforme si mesmo......................................................98

2.4. Cena 4 - Pose de si no verso público: rumo à sublimação.......................101

CAPÍTULO III

A instância identitária: entre o si e os outros....................................................106

3.1. Regimes de interação homologando regimes de sentido........................108

3.2. Regimes do mostrar, modos de retratar: O ser como efeito de

sentido....................................................................................................................111

3.2.1. Identidade individual assimilada e social excluída..............................114

3.2.2. Identidade individual ocultado e social admitida ...............................114

3.2.3. Identidade individual segregada e social assimilada...........................115

3.2.4. identidade individual admitida e social segregada..............................116

CAPÍTULO IV

Bricolagens do si: a fotografia na constituição identitária..............................123

4.1. Semiotização do olhar fotográfico...............................................................123

4.2. A escolha da pesquisa: polêmica e auto-reflexão.....................................127

4.3. Identidade visual, linguagem e axiologias................................................130

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................133

FOTOS................................................................................................................................138

Page 10: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

11

IntroduçãoIntrodução

Page 11: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E
Page 12: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

13

I - Na Arena, mostras da problemática do parecer

“(...) Mas a vocês nós pedimos:No que não é de estranhar

Descubram o que há de estranho!No que parece normal

Vejam o que há de anormal!No que parece explicado

Vejam quanto não se explica!E o que parece comum

Vejam como é de espantar! (...)”(Bertolt Brecht, A Exceção e a Regra.

In B. B. Obras Completas Vol. 4, 1990, p. 160.)

A peça A Exceção e a Regra conta a saga de um homem de negócios que

empreende uma viagem através do deserto para conseguir fechar uma concessão

de exploração de petróleo, na companhia de dois empregados que , durante todo

percurso, são submetidos a esforços sobre-humanos. Cercado pela desconfiança,

mata um deles por reflexo imaginando, equivocadamente, que seria por este

atacado, quando na verdade seria ajudado. A segunda parte da peça trata do

julgamento deste assassinato, cujo veredicto é a absolvição do homem baseado na

argumentação de “legítima defesa”, pois é mais aceitável a imagem do empregado

pobre ambicioso do que do patrão insano. Numa narrativa das relações de poder

em forma de cena épica, Bertolt Brecht, na voz de seus personagens, traz ao cenário

da justiça o questionamento da lógica “social” e dos mecanismos de sua

cristalização e manutenção. O dramaturgo dirige a crítica ao reinado absurdo da

ordem social vigente, solicitando, com isso, nosso julgamento diante das

Page 13: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

14

implicações da regra que define a razão das coisas pela hierarquia social. O

“comum” e o “aceitável” reproduzem um modo de instituir a “verdade” ancorado

pelo aparelho de dominação, ou seja, privilegiando determinada formação

ideológica ou visão de mundo que o discurso permite conhecer. Este discurso,

porém, traz à cena um outro com qual polemiza, deixando entrever visões opostas

com interesses distintos. No embate entre pontos de vista, no contexto da

alteridade, pode-se vislumbrar as várias realidades em jogo, onde a regra se mostra

questionada.

De 1926 para cá o “comum” ainda responde pelo “normal”, e as imagens do

cotidiano ainda asseguram a convenção do sentido. As cenas da vida se

movimentam numa arena em que o ordinário é tratado como tal e as imagens

parecem repousar sobre essas reduções estáveis dos sentidos da vida. Diariamente,

os sujeitos são chamados a fabricar o mundo e a fazer julgamentos sobre a

construção dos fatos de modo que a realidade, ou o efeito de, produz-se à luz da

melhor oratória, como se vê em Bertolt Brecht, pelos recursos argumentativos de

retórica das configurações discursivas do poder. O julgamento, tal como uma

encenação onde se operam simulacros entre acusação, defesa e júri, mais do que

uma decisão é um acordo entre as partes, fazendo prevalecer a correlação do

discurso do mais preparado com a dimensão do senso comum que fundamentam,

em grande parte, as relações humanas.

Esse rápido olhar sobre as questões do parecer, pois é disso que decorre o

julgamento, aproxima, de início, a idéia acerca de nossa problemática sobre as

fotografias e a dimensão da verdade. Procuramos compreender, por meio das

figuras do cotidiano de uma cultura, como as esferas do ver e do mostrar entram em

relação no texto e como nestas o efeito de comum pode desencadear pensamentos,

valores, crenças, mundos outros que não os esperados no dia-a-dia da vivência

com as imagens. A atenção para o banal reescreve o discurso pela necessidade de

Page 14: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

15

recuperar o sentido das coisas, a partir do estranhamento diante delas. Nessa

perspectiva, a exceção desprograma o “automatismo” da vida.

II - Ponto de vista semiótico: a fotografia na construção do sentido

Há muito tempo a fotografia é utilizada como recurso de produção de

conhecimento, que relaciona diretamente fotógrafo e sujeito fotografado em torno

da imagem, considerada como objeto da comunicação. Seja como “caderno de

anotações” na Antropologia1, como documento para História ou como objeto-texto

da cultura para a Semiótica, a fotografia marca um ponto de relação do olhar do

pesquisador e do pesquisado, permitindo aí constante “negociações” de um e de

outro, mediante a presença de diferentes concepções de mundo sobre o que é visto

e o que é mostrado.

A perspectiva semiótica, que ancora as bases desta pesquisa, não recoloca

pressupostos em torno de verdades (leis) intrínsecas (a priori) à imagem. A

fotografia, neste arcabouço, apresenta um universo de relações cuja importância

desloca a questão do estabelecimento da verdade acerca do objeto fotografado para

a construção do sentido, em que as axiologias estruturam os fazeres dos sujeitos,

que, por sua vez, se fazem construir pela semiotização em texto; a pesquisa se

inclina àquela da ciência experimental, entendendo o exercício do pesquisador

1 Reporto-me especificamente aos estudos da Antropológica visual, mais especificamente a partir de 1922,devido à publicação de The Argonauts of the Western Pacific, a grande obra de B. Malinowski, em queestabelece os cânones da moderna pesquisa de campo, buscando apreender "o ponto de vista nativo". Sobreisso, é importante também conferir trabalhos mais recentes no Brasil que fazem uso sistemático da fotografiaem suas pesquisas, como na dissertação de Mestrado O sapateiro ou o Retrato da Casa,de Fernando deTacca, defendida no Programa de Pós-Graduação em Multimeios/Unicamp, 1991.

Page 15: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

16

apenas como mais um ponto de vista acerca das cenas e das realidades2.

As fotografias deste trabalho resultam do cruzamento de olhares

semioticamente construídos, no texto visual, a partir de um percurso gerativo de

sentido. A semiótica discursiva, a partir de A. J. Greimas e seus colaboradores, e

mais especificamente a sociossemiótica, fornecerá a base para apreender e

organizar o texto como uma totalidade de sentido e para dar inteligibilidade aos

mecanismos de sua produção. Demais contribuições advindas de outras áreas do

conhecimento, como antropologia visual, sociologia, comunicação, linguagem

fotográfica e cultura popular, serão chamadas quando pertinentes a este universo

de relações.

A empreitada de análise faz pensar no outro, instalado e instaurado na

construção fotográfica, como aquele com quem a pesquisa deverá dialogar. O

ponto de vista, por isso, deixa de ser uma escolha apenas metodológica e teórica,

para envolver todo o sujeito que fala (olha e analisa), com um olhar comprometido3

deste com o objeto de pesquisa, intersubjetivamente, enveredando-se pelos

caminhos da significação sobre o outro e sobre si mesmo como sujeito pesquisador.

III - Duas histórias, dois olhares: o grupo Hip Hop e o pesquisador se

definem.

Historicamente, o termo Hip-Hop foi estabelecido por volta de 1968, por

Afrika Bambaataa, inspirado na forma pela qual se transmitia a cultura dos guetos

2 Esta postura dialoga com as idéias desenvolvidas pelo autor Edgar Morin, na obra Ciência com Consciência(1999), sobretudo quando escreve que “a aspiração à complexidade tende para o conhecimentomultidimensional. Não se trata de dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas de respeitar assuas diversas dimensões” (p. 138).3 Cf. E. Landowski. “O olhar comprometido”. Trad. port. A. C. de Oliveira. In: Galáxia: revistatransdisciplinar de comunicação e semiótica, cultura. Programa Pós-graduação em Comunicação e Semióticada PUC/SP, São Paulo: EDUC, nº 2, 2001, p. 19-56

Page 16: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

17

norte-americanos, justamente na forma de dançar mais popular da época, ou seja,

saltar (hop) movimentando os quadris (hip), nas festas ali realizadas.

Nesta época, proliferou-se uma grande discussão sobre direitos humanos e, nesta

ordem dos fatos, os marginalizados da sociedade de Nova Iorque se articularam

para fazer valer suas inquietações. Assim, surgiram grandes líderes negros, como

Martin Luther King e Malcom X, e grupos que lutavam pelos direitos humanos

como os Panteras Negras. Esse ambiente influenciou os primeiros praticantes do

Hip-Hop, principalmente artistas que faziam "Raps" compostos por uma base

musical dançante, acompanhado de rimas faladas. Além da dança, o Hip Hop se

apresenta por mais três outros elementos: o Grafite (arte plástica nos muros), o MC

(o Cantor ou Mestre de Cerimônias) e o Dj (disque jóquei ou “músico”), em que é

comum desenvolverem mensagens de alto teor político-social com denúncias e

reivindicações. Passadas algumas décadas, este é um traço geral encontrado hoje

no mundo e no Brasil, mas não único. Em cada lugar, o tempo e os costumes se

encarregaram de construir diferenças da qual é formada a cultura e seus

participantes, sobretudo por sua inserção no âmbito midiático.

Há cerca de oito anos atrás, mantendo duas atividades paralelas, como

bailarina e como estudante de graduação no curso de Imagem e Som, em São

Carlos, conheci o Hip Hop pelo estilo de dança – o Break. Teve início, então, o

interesse pela cultura Hip Hop, onde questões de identidade enoveladas às suas

atividades artísticas, performáticas sobretudo, me instigaram a conhecer um

discurso “local”, que tinha algo de próprio ao mesmo tempo em que se ancorava

numa fala “global” do Movimento.

Pouco tempo depois, longe da dança e trabalhando com fotografia, mas

ainda envolvida com a cultura Hip Hop, percebi um claro conflito entre a imagem,

Page 17: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

18

que poderíamos chamar de “auto-referente”4 do Movimento, calcada numa

estratégia de reafirmação de valores do discurso fundador para garantir a coesão

do grupo, e a “imagem” veiculada pela mídia5, foco inclusive de grande crítica por

parte dos jovens do Movimento da cidade. Sobre isso, sabemos que a mídia

cumpre o seu papel nas oscilações do tempo e do espaço ajudando a construir

algumas facetas desse Movimento: ora associando ao Hip Hop a imagem da

marginalidade e da violência, vinculado-a à do preto, pobre e malandro, ou do

“mano”, assunto que, nos últimos anos, em muitos momentos, estampou as capas

de jornais e revistas, por exemplo6; ora promovendo a música, pelo viés da rentável

indústria fonográfica, impulsionada pelo estilo rap norte-americano; ora destacado

pela moda, a chamada Street Wear7, aproveitando inclusive a auto-definição do

Movimento enquanto estilo marcadamente jovem e despojado, para investir neste

setor e desenvolver “grifes” que o identifique enquanto tal; e ora, ainda,

enfatizando as iniciativas solidárias de “resgate” aos jovens marginalizados da

periferia, que participam de atividades culturais desenvolvidas pelo Movimento

tais como oficinas de rap, break, grafite e discotecagem, palestras sobre drogas e

criminalidade, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs),

preservação do meio ambiente, para citar algumas. Nesta última faceta, a mídia

também cumpre seu papel do politicamente correto, mostrando que, mesmo com a

ausência de políticas públicas, há formas alternativas de sociabilidade que se

levantam contra o caos social e dão bom exemplo, ou seja, só é malandro quem

4 Utilizaremos este termo para designar um conjunto de práticas relativo ao Hip Hop daquilo que o próprioMovimento realiza em função de si e para si mesmo, de forma a fazer crer na autonomia do seu discursofrente aos demais que a ele se referem.5 Cunhamos esse termo de maneira ampla, pensando na imprensa televisual, na imprensa escrita, na redewww, que juntas divulgam informações sobre o sujeito, de tempo em tempo, selecionando o perfil a serconstruído.6 Sobre o assunto ver: M. Herschmann. O Funk e o Hip-Hop Invadem a Cena. Rio de Janeiro, UFRJ, 2000.7 Referimo-nos ao estilo de vestimenta que envolve roupas largas, acessórios como bonés, correntes,medalhões, cintos, pulseiras e anéis, tênis esportivos, em torno do qual despontam “grifes” envolvendomarcas conhecidas como a Adidas, XXL, Tom Boy. Aqui, marca-se a estreita relação com o modo de vestirnacional como a indústria multinacional

Page 18: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

19

quer. Ou seja, a mídia desempenha também um papel sancionador do Hip Hop, ao

euforizar o Movimento.

Vemos, então, surgir a relação paradoxal. Se, por um lado, o Movimento

critica a imagem fabricada pela mídia devido estigmatização direcionada aos hip

hoppers, por outro, se vale desse mesmo sistema para fazer ver seu discurso

enquanto ação cultural que se desdobra em várias áreas de interesse (educativo,

ambiental, social). Discurso, este, que reafirma seus valores e constrói outros, cuja

tônica é a imagem do Hip Hop enquanto “instrumento de transformação social”,

como afirma MV Bill8, atualmente um dos expoentes da cultura Hip Hop no Brasil,

ao lado do grupo rapper Racionais Mc’s e Facção Central, ambos da capital

paulistana. Por força da música, talvez a manifestação artística do Hip Hop que

melhor o defina em termos de uma imagem que se deseja ver reconhecida, as letras

enquadram o Movimento num cenário de inclusão/exclusão social e de preconceito

racial, e constroem o Hip Hop enquanto movimento de ação política, comprometido

com a voz da periferia. Nesta vertente, há um traço identitário que se coloca na

contramão do recorte dado pela mídia. No trânsito conflituoso entre as “imagens”

reproduzidas, segundo tal ou qual interesse, existe o Hip Hop que se constrói

também por um modo de sociabilidade, mais vinculada ao cotidiano, à realidade e

às contradições locais, construindo e alterando valores ao estar junto, ao reunir, na

vivência do espaço social.

Dado o panorama geral de inserção de nosso olhar no universo cultural Hip

Hop, constatamos, precariamente, estar diante de uma problemática de ponto de

vista. Em suma, envolvidos no Movimento, e ainda no posto de observação, vimos

8 Revista Caros Amigos, ano IX, Número 99, Junho de 2005. MV Bill, ou Mensageiro da Verdade Bill, érapper carioca, vive na Cidade de Deus, foi convidado pela ONU para ocupar o cargo de “embaixador paraassuntos que envolvem crianças em situações de guerra”, após escrever o livro Cabeça de porco, em parceiracom o seu empresário, Celso Athaíde, e com o ex-subsecretário de Segurança do Rio de Janeiro, LuizEduardo Soares, em que documenta a vida dos meninos do tráfico em todo o Brasil. Também é presidente da

Page 19: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

20

um caminho potencialmente revelador, mas que não seria dado a nós construir.

IV - O Método de pesquisa: o fazer fotográfico como olhar “de dentro”

Surgiu, então, o ponto nodal, a mim como pesquisadora e fotógrafa: como a

fotografia, se incorporada pelos jovens do Hip Hop com um novo meio de

expressão entre as demais manifestações da cultura, apresentaria o Hip Hop em São

Carlos? Como os bailes blacks, os eventos de música Rap e Break, o Grafite dos

muros, as oficinas de dança e de Grafite, as reuniões do Movimento em salões na

cidade seriam fotografados por eles? Em síntese, interessamo-nos por conhecer a

fotografia e a “imagem” apresentada por eles mesmos, por um “olhar de dentro”.

Nesse sentido, já fazendo parte do programa de pós-graduação em

Comunicação e Semiótica, iniciamos a pesquisa de mestrado com a preocupação de

esclarecer os “termos do contrato” que definiu como objeto de pesquisa as

fotografias realizadas por integrantes do Movimento na cidade, definida, então,

com a primeira etapa da pesquisa, a da produção fotográfica. Já envolvida no

Movimento, como dito anteriormente, notamos ser o registro fotográfico e

videográfico prática corriqueira e, baseados nisso, propusemos aos grupos da

cidade que realizassem fotografias. Dissemos que este material seria objeto de

pesquisa de mestrado, que tinha como foco a atividade do Hip Hop naquela cidade.

Não houve direcionamento do assunto a ser fotografado, sendo o critério (o recorte

dos temas, por exemplo) totalmente definido pelos jovens envolvidos na pesquisa,

a quem chamamos fotógrafos do Hip Hop.

Vale ressaltar que colocamos à disposição dos grupos câmeras fotográficas

analógicas e filmes 35mm e de tempo em tempo recolhíamos os magazines para

Cufa, Central Única das Favelas, faz parte da Frente Brasileira de Hip Hop e do PPPomar, Partido Popularpara o Poder da Maioria (negra).

Page 20: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

21

revelação. No processo, eles passaram a nos fornecer, voluntariamente, fotografias

digitais. As máquinas circularam entre os grupos de maneira a impossibilitar a

identificação do fotógrafo ou, se pudéssemos falar, da autoria. Essa questão é

considerada em nossa análise, fazendo-nos refletir sobre o simulacro do

enunciador e os desdobramentos no exame da enunciação.

A etapa de produção fotográfica é, pois, entendida como parte intrínseca ao

processo de análise uma vez que existe o pressuposto de que entre pesquisador e

fotógrafos há um olhar “acordado”, ou seja, um olhar anterior às fotografias que

determina de antemão quem vê (pesquisador) e quem é visto (grupo Hip Hop).

Porém, consideramos também um outro modo de compreender essa relação,

quando nós, para os fotógrafos, somos uma imagem construída, aquela da

academia que os destacará como sujeito a ser visto “com projeção”. Este método de

pesquisa estabelece um contrato entre ambos que o texto fotográfico irá

problematizar no decorrer da análise. Isto porque existe, digamos, uma imagem

pré-estabelecida que marca o lugar de fala do grupo, propriamente de um

integrante do Movimento Hip Hop. No entanto, a afirmação de “pertença” era mais

ou menos esperada, mas não é única e conclusiva como tentaremos mostrar com a

análise das fotografias.

A propósito das relações contratuais estabelecidas pela pesquisa temos os

seguintes papéis:

Destinador: pela proposição de pesquisa e “encomenda”

das fotografias aos grupos

Pesquisador

Enunciatário/destinatário: sujeito do ver em primeira

instância.

Page 21: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

22

Destinatário: pela realização das fotografias

Grupos Hip Hop

Enunciador: ator da enunciação que se projeta em actante

do enunciado

Por fim, podemos depreender um último sujeito:

Movimento Hip Hop

Destinador dos grupos Hip Hop, pressupondo o discurso

“fundador” em relação ao contexto de realização das

fotografias

Entre outubro de 2004 e maio de 2005 contamos com pouco mais de 600

fotografias e, a partir delas, nos vimos diante de uma nova problemática

claramente estruturada: além das “imagens-referência”, ou estereótipos – dos

quais compartilhamos ao reconhecer nas fotografias o contexto sócio-cultural de

uma prática Hip Hop -, nos deparamos com construções fotográficas alheia ao

contrato, “imagens desconhecidas”, cuja constituição questionou nosso ponto de

partida sobre o referencial Hip Hop proposto num primeiro momento, instigando a

ver tantas outras figuras no objeto fotográfico. Com isso, delineamos também uma

aposta desta pesquisa.

As ditas imagens-referências, que representam o maior número do

exemplário fotográfico, constroem o Hip Hop e reafirmam o Movimento que tem,

ao menos na produção visual (sobretudo na construção corporal), um traço comum

até como uma estratégia discursiva para marcar visibilidade dos valores ali

apresentados, valores esses de cunho histórico, econômico e social, para manter a

Page 22: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

23

coesão do grupo e diferenciá-lo dos demais movimentos juvenis. Estas imagens

negariam, como supomos, as diferenças regionais que imprimem “tons” próprios a

cada lugar onde se realiza, isto é, o próprio movimento de São Carlos.

Evidentemente que essa imagem mais ou menos esperada nas fotografias

são consideradas em sua força, até pelas recorrências temáticas circunscritas nas

imagens. Por essa razão, adotamos quase que por intuição, mas também por

conveniência, o termo retrato e, posteriormente, o adotamos por adequação

conceitual.

Após o primeiro período de análise do objeto, percebemos outras figuras,

mais próximas ao inesperado, ao instante, ao inusitado, e que parecem construir

outros retratos do grupo, chamando a atenção tanto para figuras do conteúdo

quanto para dimensão plástica articulada no texto fotográfico. Vimos abrirem-se

novas possibilidades análise que admitem, na elaboração conjunta entre

plasticidade e figuratividade, a construção estética própria presente no olhar

fotográfico do grupo. Algumas mais comprometidas com o sensível do que com o

inteligível, e outras, ainda, numa tensão harmoniosa de ambos.

O “novo” e o “desconhecido” dessas imagens nos conduzem a diferentes

caminhos de análise, colocando-nos outro ponto de partida baseado na descoberta,

na compreensão e na construção do sentido, longe, portanto, das deduções de que

nos cercamos no início do trabalho. Partimos de uma imagem-comum, mas

percebemos nos encaminhar para inúmeras outras, que fazem explodir a força

coesiva do discurso inicial. Nossa problemática, portanto, foi reformulada diante

desses olhares figurados, fazendo-nos perceber o quanto nossa proposta inicial

recaía sobre as imagens-referência, antes mesmo das fotografias serem realizadas.

Percebemos, na relação com as imagens, a importância do método adotado, como

processo essencial à compreensão e construção de conhecimento do universo

imagético e de seu papel na relação comunicativa em que se inscrevem os sujeitos.

Page 23: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

24

Dessa maneira, desvela-se o diferencial de uma análise semiótica para outros

campos de conhecimento que tomam a fotografia, ou mais amplamente a imagem,

como objeto de estudo. Segundo a perspectiva semiótica e seu arcabouço teórico

metodológico o próprio objeto mostra os problemas a serem refletidos, pois exige a

proximidade e a disponibilidade do pesquisador para sua “escuta”. Isto é, o olhar

do semioticista requer a tarefa de enfrentar os sentidos dados a priori à análise do

objeto e se constrói à mesma medida que constrói o objeto como um todo de

sentido. Como veremos em nosso próprio percurso, a desconstrução às vezes é

mais significativa para o nosso processo reflexivo enquanto pesquisador, até para

problematizar nossas escolhas e conclusões.

A pesquisa proposta trata, portanto, da compreensão dos procedimentos de

figuratividade e tematização do Movimento Hip Hop como texto cultural vivido,

tomado a partir do ponto de vista fotográfico dos próprios participantes do

Movimento. Nesse sentido, o estudo preocupa-se com as diversas figuras

construídas pelo conjunto fotográfico, que enredam estratégias discursivas para a

constituição do universo identitário do grupo como Um Hip Hop dentre Outros. A

etapa de produção das fotografias identifica-se com a estratégia de pesquisa em

que julgamos o fotografar um importante processo de escolhas sobre o que mostrar

de si, onde o olhar deste Hip Hop marca diferentes modos de ser nos lugares em

que se faz presente.

V - Focalização da pesquisa

A problemática da dimensão figurativa e temática, estruturada nas imagens

fotográficas que apresentamos neste trabalho, relaciona a construção do sentido

com a análise dos modos de visibilidade e de existência desses sujeitos no mundo,

Page 24: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

25

fazendo seu contexto significar no texto fotográfico. Temos em vista que, ao falar da

construção do sujeito pelas armações figurativas das imagens, estamos falando

também de um simulacro do grupo Hip Hop em questão e, portanto, de uma

configuração identitária que o conjunto fotográfico possibilita conhecer. Nessa

perspectiva as marcas da enunciação produzem efeitos de sentido de presença de Si

e do Outro.

Como ponto de partida – mediante a proposta apresentada aos participantes

do Movimento Hip Hop naquela cidade para que eles próprios se tornassem os

fotógrafos das atividades do Movimento – temos no centro da enunciação o ator

coletivo Hip Hop. O corpo fotográfico resultante levou ao seguinte questionamento:

quem é esse enunciador construído e pressuposto pela dimensão figurativa das

imagens? A partir do revestimento temático, qual mundo, ou mundos, eles

mostram? E, sobretudo, de que maneira essas figuras do olhar fazem significar sua

existência no mundo, onde assumem papéis e se constroem socialmente? Partindo

da concepção de que a figuratividade desencadeia níveis de profundidade de

“leitura”, tencionando os limites entre a iconização (efeito de referencialização) e

abstração (efeito de distanciamento, de poeticidade), apostamos que “a força do

registro e da evidência” da imagem não a condena ao meramente reconhecível,

mas desestrutura o caráter objetivo de tal empreitada para fazer ver.

Vemos a construção do simulacro do Hip Hop “montado” como o “grupo de

referência”, a partir do qual as várias figuras do olhar permitem conhecer os

olhares figurados e, assim, sua dimensão múltipla de ser e estar no mundo. Nesse

corpus reúnem-se fotografias: dos bailes; dos eventos realizados em espaços

públicos; dos encontros, chamados “batalhas”, de B-boys e Mc’s, que são eventos

de dança e de música; do Grafismo nos muros; do bairro; da casa; de Si. Para dar

conta dessa construção apresentamos um número significativo de imagens em que

veremos quais as escolhas recorrentes, localizando predominantemente as figuras

Page 25: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

26

do conteúdo, embora algumas vezes se torne necessário atentar às figuras da

expressão, quando estas “saltarem aos nossos olhos”, para homologá-las ao plano

do conteúdo. A fim de traçar um caminho metodológico de construção da imagem

do Hip Hop em questão, dividimos as fotografias em 4 cenas segundo núcleos

figurativos e temáticos, que devem ser compreendidas num conjunto

interdependente para formar um único texto. Os títulos são apontamentos

temáticos em cada grupo de fotografias, num esforço de criar um corpo

homogêneo para produção do sentido, sem perder de vista os outros possíveis,

acreditando, um dia, poder conhecê-los9.

O caminho percorrido por nós, ele próprio construindo a narratividade do

discurso, revela-se como estratégia metodológica para fazer aparecer os

procedimentos usados na construção do sentido, tão necessária à implicação de

cada foto para integração em um todo, num rearranjo do ser continuamente.

Enfim, ao adentrar nesta pesquisa, questionamos nosso papel neste curso do olhar,

fazendo uma última aposta de que os regimes de visibilidade se interdefinem com

os caminhos da própria questão imagética.

9 A.J. GREIMAS. “Os atuantes, os atores e as figuras”, In ______Semiótica Narrativa e Textual. Trad. J. A.Durigam. São Paulo, EDUSP/Cultix, 1977, p. 179-195.

Page 26: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

Capítulo ICapítulo I

Page 27: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E
Page 28: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

30

O horizonte fotográfico e a imagem possível: orientações conceituais

Não é novidade a informação de que nós mesmos temos em nosso cotidiano

a necessidade de nos tornarmos presença diante dos olhos dos outros, vide redes

de comunicação virtuais que integram pessoas de todo mundo por perfis auto-

denominados, auto-referencializados. Por meio destes é possível se associar, ainda

como definição de uma identidade possível, a outras redes de comunidades que,

em geral, agregam algumas, digamos, “qualidades” ao sujeito pertencente a esse

universo de relações. Tudo isso recheado de muitas imagens, algumas

extremamente “pessoais”, outras nada condizentes com o mundo ao qual se

pertence, sequer ao mundo “real”. Estes, portanto, são os álbuns de fotografia, um

misto de memória e de homenagens a si a ao seu entorno: nostálgico, característico,

engraçado, arrumado, próprio ou inventado.

Se o ato de se fazer imagem indica um desejo de querer ser significante ao

outro - na presença dele, com ele, por ele ou apesar dele – então, realizar-se por

instantâneos fotográficos, caracteriza o contínuo ser do sujeito da imagem tal como

se propõe, num simples estar no mundo. A performance para mostrar-se é, de

imediato, o vínculo que nos conduz de um mero reconhecimento de imagens como

eventos documentados a uma forma significante do sujeito olhar para si, em estreita

relação com o outro. Esta percepção, interação e sensação, se constrói conforme sua

prática o faz ser. Ou seja, a produção das fotografias pelos próprios sujeitos da

imagem permite que apostemos na idéia de que é nas passagens da vida cotidiana,

se quiser nas situações do dia-a-dia, que a identidade se organiza tal como um

prisma, tal como um conjunto de ângulos possíveis, compondo uma montagem

imagética do sujeito. Assim iniciamos esta análise e um primeiro olhar é lançado

Page 29: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

31

ao grande número de fotografias que, como acreditamos, fazem surgir facetas de

um sujeito empenhado na tarefa de se apresentar mediante uma particularidade.

Ao apresentarmos o panorama de fotografias, pela forma que as vemos

construir figurativamente momentos distintos de um olhar, tentaremos

desenvolver um método de análise que possa dar conta do corpus tão diversificado.

A partir de um princípio geral de organização das qualidades do objeto

fotográfico, centrado na dimensão figurativa e plástica e nos efeitos de sentidos daí

depreendidos, é possível entender determinadas maneiras do objeto evocar o

contexto de sua produção, o que envolve o exame da enunciação. Por essa razão,

tal análise coloca-se numa perspectiva de natureza sociossemiótica, cujos

princípios analíticos contextuais, das condições de realização das fotos a partir de

um ponto de vista social e/ou histórico, se inserem no centro do próprio visual.

Esta é uma questão cara ao nosso estudo uma vez que os fotógrafos

envolvidos na pesquisa são os próprios jovens participantes do Movimento Hip

Hop. De fato, como etapa fundamental à constituição da presente pesquisa, a

realização das fotografias se inscreve como estratégia metodológica que não pode

ser ignorada no processo de análise, pois estamos a refletir sobre um olhar do

outro sobre si mesmo, construindo-se fotograficamente. Isso significa a

pressuposição de um “eu” no enunciado, mais ou menos conhecido por nós em

termos de sua “real” existência, exatamente como a figura do enunciador que se

projeta ou não no texto visual. Esse fazer é assumido na análise ao considerarmos

que aquilo que se vê é uma parcela do desejo do ator querer ver-se ao mostrar-se

como um eu implicitamente instalado no tempo e no espaço do enunciado,

podendo ser recuperado por mecanismos enunciativos específicos.

Como conseqüência surgem maneiras distintas de construir um universo

comum que dá a ver tanto os sujeitos incluídos e participantes deste mundo,

quanto outros com quem estabelecem direta ou indiretamente a relação interativa

Page 30: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

32

por meio de suas presenças como sujeitos na fotografia. Em primeira instância, é o

próprio olhar da pesquisadora que está implicado nesta construção como

propositora do fazer fotográfico, no papel de enunciatário, para quem os

fotógrafos mostram sua produção. Isto quer dizer que nós, como sujeito da

pesquisa, nos construímos na mediação do olhar, levando adiante, aos outros

enunciatários, um repertório visual capaz de mostrar os sujeitos e seu entorno.

Imersos neste processo de comunicação, feito de múltiplas implicações de

anterioridade, de concomitância e de posteridade, assumimos o duplo papel de

observador ou, dito de outro modo, assumimos papéis actancias distintos e

interdependentes: de enunciatária-destinatária, como dito anteriormente, e de

destinadora, mesmo considerando não haver qualquer orientação, no processo de

realização das imagens, quanto ao que, como e onde fotografar. De fato, sugerir

que os integrantes do Hip Hop se tornassem fotógrafos de sua prática em grupo é

colocar em seu horizonte a figura da pesquisadora para quem serão entregues as

imagens, no que já está declarado as modalizações pelo querer, dever, saber e

poder fazer, ou seja, de um percurso narrativo de aquisição de competência com o

propósito de executar a performance do fotografar. De outro lado, os fotógrafos

têm em nós, como enunciatária pressuposta, o sujeito do fazer interpretativo para

quem se mostram fotograficamente, a quem devem fazer crer no sentido produzido

pelo discurso. Assim ocorre mais uma vez o desdobramento de papéis, de

destinador-enunciador e de destinatário. Mais à frente retomaremos esse jogo de

manipulação.

A questão que nos pareceu bastante instigante foi como relacionar a riqueza

de manifestação do universo Hip Hop, que sabemos uma reflexão que não se insere

diretamente ao nosso campo de ação, ou não é a via principal de nosso estudo, com

as fotografias que o grupo nos apresenta. Interessa-nos, em princípio, investigar

que mundos somos colocados em relação a partir das figuras e temas construídos

Page 31: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

33

pelo conjunto de fotografias, sobretudo porque neles há investimento de valores

que nos permitem compreender que universo identitário é colocado à nossa vista

para ser visto.

A abordagem da fotografia, como objeto cujo sentido é resultado de um

percurso gerativo de significação, há de relacionar o que é dito nos limites do

mundo “externo” à ela e o que, por outro lado, lhe vem por particularidades ou

peculiaridades. Isso significa estar atento aos imprevistos que ela pode nos fazer

enxergar, inclusive outras formas de manifestação do grupo que vêm romper a

referência do universo Hip Hop, em princípio pressuposto nas fotos. Tarefa difícil,

mas aí está o posicionamento semiótico da pesquisa a que nos propomos,

admitindo que muitas renúncias serão feitas, por pouco contribuírem para a

abordagem da produção do sentido das fotografias.

Numa postura tomada a priori seríamos tentados a afirmar que todo

encadeamento figurativo trata exclusivamente de temas relacionados à cultura Hip

Hop, por meio do break, do rap, do grafite, mostrados em grande parte nos eventos

públicos e nas reuniões dos grupos. Não à toa que a idéia de relação em semiótica

torna-se fundamental por trazer ao centro da questão a noção de dinamismo para a

definição do sujeito e não o contrário, pois senão estaríamos apenas, pela repetição,

lidando com o pré-determinado. Em outras palavras, se levássemos em

consideração apenas a relação pressuposta entre enunciador, grupo de fotógrafos

do Hip Hop, e enunciatário em primeira instância, ou próprio pesquisador, as

fotografias revelariam estereótipos e apenas isso, anulando suas particularidades

significantes.

Mas o que fazer com imagens, como veremos na análise, que acionam outra

via de conhecimento? Daí a necessidade, em alguns momentos, de alçar o nível da

manifestação das fotografias para buscar justamente o que o objeto tem a mostrar,

antes de determiná-lo ser e/ou significar algo para além ou aquém dele mesmo.

Page 32: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

34

Para dar conta da análise das fotografias no nível de sua plasticidade, partimos

das abordagens da semiótica plástica elaboradas por Jean-Marie Floch10, tomando

como base seus estudos de semi-simbolismo, segundo os quais é possível explorar

a articulação de sentido em relação interdependente dos modos de organização da

dimensão plástica, do plano da expressão da fotografia, com o conteúdo nela

plasmado, operacionalizando um nível mais complexo da edificação discursiva.

Para embasar nosso estudo é fundamental o conceito de retrato que

lançaremos mão daqui em diante, uma vez que cada caracterização de um grupo

de fotografias nada mais é do que a configuração de um tipo retrato, mais

precisamente de um auto–retrato, produzido por um olhar “de dentro”, isto é, pelo

olhar fotográfico de integrantes do movimento Hip Hop. Esta informação,

decorrente da estratégia metodológica da pesquisa, encadeia o reconhecimento de

distintas estratégias adotadas por um enunciador pressuposto para se mostrar,

como apostamos, por um caráter mais reflexivo ou mais transitivo, conforme o

exame da enunciação poderá explicitar.

1. 1. Auto-retrato: o sujeito e seu entorno

Na tese de doutorado Regimes de visibilidade e construção de simulacros: auto-

retrato contemporâneo11, Lauer A. N. dos Santos realiza o estudo de trabalhos de

diversos artistas para compreender como o auto-retrato é construído nas obras de

arte, sobretudo em obras bidimensionais, analisando os diversos mecanismos

empregados pelos artistas para “se definir” identitariamente no trabalho. No

10 Exemplos de análise de imagens fotográficas ver: J-M Floch. Les formes de L’empreinte. Périgueux, PierreFanlac, 1986; e “Un Nu de Boubat”, In Petites mythologies de l’oeil et de l’esprit: por une sémiotiqueplastique. Paris-Amsterdan, Éditions Hadès-Benjamins, 1985, p 21-38.11 L. A. N. Santos. Regimes de visibilidade e construção de simulacros o auto-retrato contemporâneo. SãoPaulo, 2003. 251f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). PUC/SP.

Page 33: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

35

decorrer da análise o autor mostra as várias estratégias utilizadas na construção da

identidade visual dos artistas a fim de desvelar o sujeito instalado na obra como

produtor de si, e buscando compreender como determinados papéis sociais são

assumidos pelos sujeitos da enunciação no enunciado.

A construção do auto-retrato, em que o sujeito busca ver ou mostrar a si

mesmo na imagem, como afirma Santos, pode ser feita de maneira mais ou menos

explícita. A partir de um grande corpus que abrange o tema auto-retrato, o autor

seleciona algumas exposições e estabelece alguns critérios de análise baseado

prioritariamente na figuratividade, sobretudo de como está sendo colocado em

discurso o simulacro do enunciador pressuposto, ou seja, por semelhança de

representação que mantém com o artista implícito. Um outro critério diz respeito

ao título, que implica na questão contratual, e em alguns casos indicam sua

pertença ao gênero auto-retrato Assim como o título pode definir o tema de obras

como pertencentes ao auto-retrato, outras

“são consideradas como pertencentes a essa classe por fatores “externos”,

como por exemplo, o fato de estarem inseridas em exposições de auto-

retratos ou em virtude de algum depoimento do artista; há também obras

que apresentam marcas figurativas que, para definir o artista, mostram-

no com seus instrumentos, no ambiente ou em atividades ligadas ao

trabalho; ou ainda casos de artistas cujo conjunto da obra, por ser dotado

de forte componente auto-biográfico, é capaz de situar, mesmo em

trabalhos isolados, como relativos a uma problemática em torno do auto-

retrato”12.

12 Idem, p. 43.

Page 34: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

36

Isto posto, parece-nos que as imagens de que trataremos, sobretudo as que

serão destacadas na análise, configuram o auto-retrato, por um lado, pela

apresentação de traços característicos dados ao re-conhecimento de marcas de um

enunciador pressuposto, pela situação visual implicada no fazer do sujeito, mais

precisamente inserida num contexto do “ritual” cultural do grupo que o realiza,

inscrevendo papéis temáticos que embasam esta compreensão; e por outro lado, as

fotografias mostram outras facetas do grupo por cenas do cotidiano. Na medida

em que percebemos se tratarem de modos diferentes de se fazer ver em seu

“ritual”, fazem-nos perceber, em contrapartida, a sua “rotina”. Voltamos, portanto,

a uma componente sócio-cultural que nos dá subsídio para crer que os fotógrafos

nos trazem cenas da vida em grupo, por formas de sociabilidade, percebendo

como a construção do auto-retrato abarca a reflexão do contexto do grupo pelos

modos de se construir para outro e para si. A análise da enunciação, pelos

procedimentos de debreagens (disjunção do ‘eu’ da enunciação no discurso) e

embreagens (retorno à instância da enunciação), mostrará como e quem é o “eu”

projetado e figurativizado no enunciado, podendo elucidar como o enunciador

pressuposto se faz conhecer deixando marcas de sujeito pertencente a determinado

grupo ou, ao contrário, a grupo nenhum.

1.2. Disposição geral: querer ser visto

Diante desse primeiro acesso às imagens, que nos remetem aparentemente a

uma maneira predominante do sujeito se mostrar, constatamos de imediato a

disposição do grupo em fazer seu auto-retrato, o que o insere num regime de

visibilidade cuja prática define o “querer ser visto” pela especificidade do ato

fotográfico. Não seria precipitado dizer que tal disposição é a questão central da

Page 35: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

37

problemática da pesquisa quanto à construção de uma identidade visual do grupo,

da relação do texto e do contexto de sua produção, onde temos por preocupação

pontuar a importante etapa de produção fotográfica nesse processo, como já

exposto na introdução.

A problemática delineada, que nasceu da observação direta do fazer desse

grupo, enriqueceu e mesmo desmontou nossa expectativa quanto a uma imagem

pré-definida. Embasados pela sociossemiótica, vimos que não se trata de confirmar

o já dito como se elas fossem apenas um registro e sim compreender como o

enunciado, nas situações apresentadas, coloca em relação o “querer se mostrar” em

razão de um querer fazer-se (re) conhecer. Veremos, então, que há cenas em que

predominam gestos, elementos, sistemas visuais como uma estratégia de criar a

referência do está sendo mostrado com o movimento cultural do qual faz parte.

Em outras, percebe-se o desejo de mostrar a face, com um pouco mais de

proximidade, talvez para mostrar a singularidade do sujeito. Noutras ainda, o

grupo torna-se mais importante, para dar a idéia desse coletivo e dessa partilha

das idéias, do estar junto, enfim, para convocar uma forma de sociabilidade em

que o corpo é um todo, quase uma massa, reunida na semelhança do gesto, da

roupa, da expressão.

Mas é importante salientar que a disposição volitiva que orienta os sujeitos

no empenho de tornarem visíveis cerca-se de uma complexidade à medida que as

fotos apresentam traços não referentes ao pressuposto Hip Hop, com figuras e

temas variados, que reestruturam o caminho percorrido a cada foto.

Cria-se, por isso, um vínculo de proposição mútua: os fotógrafos, inseridos

no enunciado, organizam a cena de maneira a dar ao observador o melhor ângulo

possível de si e este, ocupando seu lugar na definição das cenas, assume seu posto

de sujeito comprometido. A partir do momento que um objeto visual, um auto-

retrato, é construído para apresentar determinado sujeito, na verdade prioriza-se o

Page 36: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

38

olhar do enunciatário, que em nosso caso toma como representante, em primeiro

lugar, o próprio pesquisador.

Por isso, ao considerarmos a noção de regime de visibilidade pela

modalização do “querer ser visto” parece-nos adequado submeter nossa análise

apenas a esse termo, pela existência da proposição dita acima. Consideramos haver

sempre a disposição em se fazer ver, o que torna inadequado relacionar seus

termos contrários e contraditórios, conforme as projeções do quadrado semiótico13,

sobretudo porque ao pensarmos numa prática em que o mostrar a si mesmo

depende exclusivamente da produção de si, como é caso do auto-retrato, somos

levados a admitir que prevalece a idéia de exibição. Nesse sentido, a análise recai

sobre as estratégias figurativas utilizadas nessa produção para mostrar o sujeito

em seu fazer mais explícito ou mais oculto. Embora saibamos dos riscos de tal

reflexão, insistimos na constante “querer ser visto”, dada às condições da produção

das fotos, nos distintos modos de fotografar que se apresentam como um jogo

estratégico estabelecido pela enunciação.

Levaremos em conta o contrato prévio entre enunciador e enunciatário,

calcado num querer ser visto que é de conhecimento deste último. Esse saber entra

na avaliação do tipo de visibilidade entendendo que se tratam de variações de

figuratividade que revestem o sujeito auto-retratado e, por isso, resultam numa

espécie de reiteração do sujeito, seja pela imediata identificação de si mesmo, seja

pela completa indefinição. Por esse motivo, parece se instalar um jogo entre

funções “ser visto” (do sujeito do enunciado) e “fazer ver” (relativo ao sujeito da

enunciação), funções interdependentes, que acarretam na aceitação de que as

diferentes formas de figuratividade que revestem o sujeito auto-retratado nada

mais são do que expressão de um desejo “incondicional” de visibilidade, algo

13 A.J. Greimas; J. Courtes, Dicionário de Semiótica, Trad. A. D. Lima et alii, São Paulo, Editora Cultrix,1979, p.365.

Page 37: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

39

como a conquista da imagem a qualquer custo. Nessa perspectiva, entre as fotos

enuncivas, aquelas caracterizadas por sujeitos em relação no interior do enunciado,

e as fotos enunciativas, que convocam a instância da enunciação, o princípio

motivador é o olhar do outro presentificado como figura central dessa construção.

Embora saibamos que a intenção não é considerada na análise semiótica, não

podemos deixar de lado o nosso pressuposto de pesquisa, ou seja, daquela

proposição mútua dos sujeitos colocados em relação pela metodologia.

A partir do estudo de Santos adotamos alguns critérios para a orientação

das análises, sobretudo quanto à identificação das estratégias de enunciação, por

serem capazes de proporcionar a compreensão das formas através das quais um

enunciador pressuposto coloca-se em discurso ao mesmo tempo que dá acesso a

uma problemática relativa ao contexto em que inserem tais fotografias. Assim,

como desenvolve Santos, daremos especial atenção às relações sintagmáticas que

essas imagens estabelecem entre si e seu contexto e às relações paradigmáticas que

estabelecem com o conjunto das fotos, com intuito de apontar para presença de

auto-retratos isolados ou para o conjunto de trabalhos em que a busca de uma

identidade é figurativizada de maneira mais explícita, através de manifestações

situadas em torno de uma busca de si mesmo, de cunho “autobiográfico” segundo

o autor. Isso tem importância à medida que percebemos que as fotos trazem outras

referências e temas além do grupo ao qual supostamente pertence.

1.3. Mostrar

Num primeiro nível de análise das imagens surgiu a necessidade de

esclarecer a especificidade dessa construção, que acreditamos articularem auto-

Page 38: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

40

retratos, que por sua vez montam uma face múltipla da identidade do sujeito

instalado nas fotografias. Pela figuratividade podemos reconhecer as marcas da

enunciação de modo a confirmar tal empreitada, qual seja, do empenho do sujeito

de se fazer conhecer por figuras que se encenam no mundo. Podemos admitir que,

pela recorrência de temas circunscritos a essas figuras, o auto-retrato assume a

especificidade de seu entorno, o que tão logo pode apresentar alguns problemas.

Santos parte do viés mais elementar do auto-retrato, utilizando uma

definição elementar - como sub-termo do retrato pela noção geral de retrato de um

indivíduo feita por si mesma -, a partir do que examina as condições capazes de

configurar as situações para seu entendimento, relacionando-o precisamente ao

caráter social ou psicológico. Pelo caráter social, amparado por traços figurativos

ou temáticos, o trabalho do artista permite a identificação de uma figura

individualizada cujo ponto de partida aponta para seu reconhecimento como aquele

que se apresenta pelo “ofício”, como produtor instalado na obra. Entra nessa

identificação, por exemplo, não só a questão de semelhança do retrato com o artista

como também o título explícito do “feito por mim mesmo”. Pelo caráter

psicológico, termo que assume como não adequado, mecanismos figurativos

variados são responsáveis por mostrar o enunciador.

O auto-retrato, nesta reflexão, apresenta-se como uma manifestação a partir

da qual é possível inferir as propriedades interoceptivas e/ou exteroceptivas de um

determinado sujeito, no que ele define também por dimensão

psicológica/individual e profissional/social, respectivamente, cujos

desdobramentos correspondem a efeitos de sentido de maior ou menor

reflexividade, mas que nem por isso deixam de criar a figura auto-referente. Nisto

há uma variação quanto à dimensão profissional ou não-profissional, donde

decorrem simulacros tendo em vista o caráter mais social, exteroceptividade, ou

mais psicológico, interoceptividade.

Page 39: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

41

Tal categorização primeira interessa-nos por apontar um caminho rumo à

discussão de simulacros construídos nas fotografias analisadas, em que o caráter

social de uma imagem instituída vale pela identificação do sujeito. Segundo o

autor:

“o auto-retrato de caráter social é associado a alguns sujeitos do

enunciado pela tematização de sua atividade profissional – relativa a um

fazer saber do sujeito narrativo – indicado figurativamente pela presença

de instrumentos e/ou ambiente de trabalho, inclusive vários deles são

vistos no ato de realização do auto-retrato (...) Tais simulacros pautados

num critério de semelhança com figuras do mundo natural, lançam mão,

nesses casos, de um princípio de concomitância temporal que enfatiza o

dizer verdadeiro dos autores representados metaforicamente como

enunciadores no enunciado, figurativizando o instante mesmo em que se

constroem aquelas obras.”14

Os simulacros do tipo profissional/social, portanto, apresentam um conjunto de

marcas, identificáveis no texto, que remetem à instância da enunciação, e que

evidenciam a enunciação enunciada, em dois casos: a) com um “eu” sujeito do

enunciado figurativizado por semelhança no instante da realização das imagens; b)

como um “ele”, tanto reflexivo (empenhado na construção de sua imagem) quanto

transitivo (remetendo à instância responsável por sua construção e ausente do

espaço figurativizado no enunciado)15.

Já numa segunda categoria Santos relaciona o não-profissional com o caráter

psicológico das obras, explicando que nestas imagens predominam a percepção do

14 Santos, Op.Cit. p.90.15 Cf. J. L. Fiorin. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e temp. São Paulo, EditoraÁtica, 1999, p.63.

Page 40: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

42

artista de si mesmo mediante uma abordagem interoceptiva, sem que isso esteja

atrelado ao seu ofício: quer dizer que “carecem de um investimento figurativo

particular e constante, obrigando a uma ampla gama de traços que aponta para

inúmeros fazeres ou estados”16. Neste ponto vemos que parte das fotografias de

nosso estudo encontra um caminho possível de análise, porém com algumas

diferenças que não permitem que utilizemos o mesmo termo psicológico. Nestas o

sujeito se mostra empenhado na construção de si, porém sem o revestimento Hip

Hop, aproximando seu fazer de um papel individual em contradição ao papel

social. Preferimos, então, adotar o termo reflexividade como definição geral deste

tipo de construção fotográfica do sujeito.

A distinção feita por Santos sobre o caráter profissional e não-profissional do

auto-retrato, conclui que:

“se figurativamente o termo profissional corresponde a sujeitos (atores)

revestidos de marcas alusivas do ambiente de trabalho, à atividades que

desempenham, ou a presença e/ou evocação de certos instrumentos, para

não-profissional correspondem sujeitos sob revestimentos figurativos

diversos, que não coincidem com os anteriores e em cuja identificação

reside a promessa de definição de algumas características particulares

capazes de definir figurativamente o que abrange a denominação

psicológico”

(...) “a identificação desse sujeito no enunciado está na dependência da

articulação de um conjunto de fatores que envolvem a relação contratual

proposta no título e a plasticidade – sobretudo presente na gestualidade

das pinceladas e materialidade constitutiva das figuras -, que poderão ser

reveladas no exame da enunciação, capaz de apontar o caráter enuncivo

16 Santos, Op Cit. p.93.

Page 41: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

43

ou enunciativo das obras, ou seja, a ausência ou presença de marcas de

enunciação, respectivamente”17.

Vejamos que o título comum às obras de arte também pode ser entendido como

elemento presente nas fotografias que trabalhamos, só que fazendo parte da

construção interna da imagem, com inscrições em bandeiras, em camisetas, em

muros. Evidentemente que se trata de uma construção sincrética, verbo-visual, que

deverá ser levada em conta. Contudo, torna-se crucial a maneira de arranjar tais

palavras na construção visual, na mediada em que o sentido aí articulado “dá

nome” ao sujeito, estabelecendo uma espécie de vínculo entre identidade e

ideologia, que está na ordem do social e não do psicológico.

A partir desta definição, o autor pontua paralelamente a idéia de construção

visual do artista por supor uma ação, ou no caso um fazer pressuposto por essa

manifestação, que pode abranger o auto-retrato. Com isso, o conceito de

identidade mostra-se na esteira de todo pensamento, compreendido como

“um atributo cujo reconhecimento, em determinadas manifestações, não

necessita, obrigatoriamente, estar circunscrito a um gênero, podendo

mesmo ser a garantia de certas regularidades que têm em vista a

ultrapassagem das regras estabelecidas por tal gênero a um conjunto mais

amplo de práticas identitárias”18.

A partir daqui podemos avançar na idéia de sujeito coletivo, pela

articulação de um auto-retrato resultante tanto do caráter social quanto da

pressuposição do sujeito produtor da imagem que, insistimos em lembrar, é

17 Idem, p.94.18 Ibidem, p.53.

Page 42: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

44

composto por um número desconhecido de fotógrafos participantes deste

Movimento.

Esquematicamente encaminhamos os seguintes termos substituindo:

Profissional/social Não-profissional/individual

psicológico

Transitividade/exteroceptividade Reflexividade /interoceptividade

Função do fazer ver função do ser visto

Por:

Simulacro social/convencional Simulacro individual/não-

convencional (formado pelo dissenso)

Relação de maior transitividade com o

externo, com o outro

Relação de maior reflexividade com o

grupo, consigo

Função do se fazer mostrar Função do mostrar-se

1.4. Ator e actante: sincretismo e olhar coletivo

Enquanto no estudo de Santos predominam obras que mostram mais a

presença do indivíduo, que como ele demonstra figurativizados de diversas

formas, inclusive com a presença de terceiros que têm por função presentificar o

artista, nas fotografias, o “autor” não pode ser identificado, o que cria a ilusão de

anonimato e reforça a idéia de uma produção coletiva. A relevância dessa simples

Page 43: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

45

constatação está no fato de que, analisado num plano geral, ao mesmo tempo que

não há um único olhar que determina o ponto de vista da construção visual, há,

paradoxalmente, a afirmação de um tipo de “pertença” deste ou daquele fotógrafo

a um universo de ação imbuído de práticas culturais e sociais mais ou menos

comuns a todos eles. Na fragmentação surge a quase justaposição do olhar. Têm-

se, dessa maneira, sujeitos do enunciado cujo caráter mais transitivo reitera um

modo de se ver e ser visto (por princípio, distintos atores com distintas funções

actanciais), tal como os outros semelhantes também se propõem. É interessante

notar que isso perpassa também o caráter mais reflexivo das fotos (onde um

mesmo ator assume distintos papéis actancias), pois o sujeito do enunciado que ora

é o fotografado, num outro momento é o próprio fotógrafo.

As imagens indicam o empenho de um sujeito em se fazer mostrar nem

tanto na singularidade, muito embora isso aconteça em alguns instantâneos, mas

na reunião com o outro como um corpo coletivo que somente pode significar a si

mesmo à medida que integra em seu olhar o olhar do outro, seja esse seu

semelhante, preferencialmente, ou não. Isto fica claro nas imagens em que

determinados códigos são empunhados pelas mãos e repetidos por diversos

jovens, o que pode resultar em dois efeitos de sentido: o de reconhecimento e o

desconhecimento para o enunciatário, que posteriormente pode vir a ser

compreendido. Decorrente disso, o de familiaridade e o de estranhamento.

Comparativamente podemos pensar nesse grande número de fotógrafos

como aqueles que trabalham numa revista ou jornal: o enunciador não é senão esse

corpo maior formado pelo editorial, pelo repórter, pelo fotógrafo, pelo consultor,

enfim, reunidos em torno de um propósito comum. Em nosso caso, esse propósito

central é comparável, pois em termos mais abstratos o que se está falando, em

última instancia, é da construção de imagem que possa reunir as qualidades do

sujeito, quem sabe sua identidade no que ela tem de peculiar.

Page 44: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

46

Não ignorando o fato de essa ser uma tarefa um tanto complexa,

constatamos que é justamente por essa diversidade de olhar, dado pela

figuratividade que a dimensão plástica concretiza no enquadramento, na

iluminação, no cromatismo, que distintas maneiras de concretizar o enunciado

podem promover o efeito de unicidade quando consideradas em seu conjunto,

mesmo porque a aparente diferença pode ser fruto de estratégias variadas, a fim de

simular distintos efeitos de sentido que estarão, por sua vez, em estreita relação

com certos crivos de leitura. Por esse motivo, determinada fotografia pode

convocar outros contextos, totalmente diversos daquele relacionado à cultura Hip

Hop, mas não perder sua relação com o empreendimento na construção identitária.

Através da articulação entre pessoas, espaços e tempos do enunciado e da

enunciação, decorrente da análise dos vários revestimentos figurativos e temáticos,

será possível estabelecer uma tipologia das fotografias pelos modos de mostrar, e

de montar, a vista panorâmica do auto-retrato do grupo que encena a si mesmo

nas fotografias. Desta forma, elaboramos nosso objetivo de pesquisa.

Ao analisar os procedimentos enunciativos inscritos nas fotografias, para

reconhecer certos objetos, seus valores, e sua inserção em determinado contexto

cultural, consideramos possível o cruzamento dos diversos dispositivos

entendidos como potenciais para o acesso à significação das imagens. Este

cruzamento permite que entendamos as construções, e os simulacros, do sujeito da

enunciação como um sujeito que quer se mostrar em seu próprio fazer, envolvido

não só por sua corporeidade presente, como o actante do enunciado que estabelece

a relação com o outro, transitivamente, mas pela complexidade de seu estado

passional, sensível, que surge da relação consigo mesmo em “comunhão” com o

outro, reflexivamente. Mas antes de partirmos à análise é preciso uma nota sobre a

relação que se coloca entre o fazer do enunciador coletivo Hip Hop e seu

enunciatário primeiro, o pesquisador proponente.

Page 45: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

47

1.5. Acordos possíveis na dimensão do mostrar-se

Se a narratividade trata das ações transformadoras do homem sobre o

mundo e sobre as coisas19, nas quais se inscrevem determinados valores para esse

mesmo homem, as histórias, então, evidenciam o sujeito que a cada instante é

sempre outro, marcado em seu percurso por continuidade e descontinuidade, por

mais que sua performance seja proferida pela ação de um manipulador, pelo

regime de junção. Conforme sabemos, a gramática narrativa permite visualizar a

dinâmica da diferença entre sujeitos do enunciado, as disposições das relações

sociais e as mudanças que podem se efetuar entre sujeitos por meio da interação

entre o um e o outro, discussões que serão alçadas no nível discursivo.

Mesmo que vejamos se configurar a estratégia de manipulação, que

julgamos predominar neste trabalho, devemos atentar para os desníveis – talvez

descaminhos – que esta prática deixa entrever, pois sabemos que a manipulação

depende de um “acordo” a ser estabelecido entre as partes, no que está

subentendido também a possibilidade da discordância. Não se trata de uma

simples negação dos valores propostos, pois isso findaria a relação que ora parecia

tão profícua aos agentes. O que intervém nesse desacordo, momentâneo talvez, é a

pertinência de um sujeito manipulado que torna a sua presença fator determinante

para a modalização do destinador, que se vê, assim, sensível ao olhar do outro.

Como uma outra face da moeda, este agir por vezes parece acenar para o

desmonte do projeto inicial do destinador-manipulador, mas que, na verdade,

torna-se, em seu interior, uma variação necessária no percurso do sujeito,

sobretudo porque, nas estratégias para fazer-crer, a doação de um saber resulta ao

19 D.L.P. BARROS. Teoria do Discurso: fundamentos semióticos. São Paulo, Atual, 1988, pág. 16.

Page 46: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

48

mesmo tempo na aquisição de outro valor, implicando num certo aprendizado

mútuo entre lá e cá dos agentes envolvidos na comunicação. Quando o texto se

sublinha por expressão artística (afinal é também por essa roupagem que o Hip Hop

se apresenta), o destinatário é levado não apenas a um querer-saber ou querer-

conhecer, mas também a um querer-experimentar ou sentir o que as formas lhe

propõem, em ato. Mediante tal possibilidade, como mais uma aposta de nosso

trabalho, admitimos na seqüência das cenas a ação dos sujeitos se desdobrar

também sob o regime da união, tomando como base os estudos de Landowski20, e

que será discutido em momento oportuno.

Uma vez admitido que possam ocorrer os tais desacordos no percurso

proposto - ou seja, que a conjunção com um objeto de valor, que em nosso caso

prevê a construção de uma identidade visual, pretendido pelo sujeito Hip Hop -

não se desdobre exclusivamente pelo regime da junção, admitimos também a

presença de imagens fotográficas que se colocam em relação oposta à grande

maioria, e que impõe outros modos de olhar. Se na comunicação entre os sujeitos

há que se considerar suas aproximações e distâncias quanto ao vínculo que os

tornam operantes pela linguagem, é preciso admitir que o “impulso” estratégico se

organize tanto em torno das simplificações21 das imagens que os relacionam

quanto das complexidades. Afinal, semioticamente, se, por um lado, temos

fotografias cujo arranjo cria o efeito de sentido de familiaridade, por outro lado, é

preciso o contraponto para dizer em relação a que este familiar é tido como tal.

20 E. Landowski. “En deça ou au-delà des stratégies, la présence contagieusein”, In Passions sans nom. Essaisde socio-sémiotique III. Paris, Presses Universitaires de France, 2004, cap. VI. Neste capítulo o autorapresenta um panorama da disciplina desde 1960, abordando os diferentes regimes de sentido e de interação, asaber a semiótica dos discursos enunciados, a semiótica das situações e, por fim, a semiótica da experiênciasensível, a partir do que desenvolve a problemática do procedimento do contágio sob o regime da união.21 Aproximamos essa idéia ao termo estereótipo no sentido que R. Barthes propõe em sua aula inaugural dacadeira de semiologia literária do College de França, definido como “cúmulos de artifício” que a sociedadecria e depois consome de volta como “sentidos inatos: isto é, cúmulos de natureza”, e que caracteriza,segundo ele, uma moralidade geral. Ver: R. Barthes. Aula. Trad. Leila Perroni Moisés. São Paulo, Cultrix,1980, p.33.

Page 47: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

49

Assim, aquilo que chamamos imagens simplificadas nada mais são do que também

os vários simulacros e que de certa forma acolhem como sendo um tipo de ver e

mostrar o si.

Cabe a nós, nesse momento, indicar um princípio geral de análise orientado

predominantemente pelo regime da junção e investigar como os recursos de

persuasão do sujeito Hip Hop conduz os olhares do seu par pressuposto numa

empreitada cujos caminhos apontam para o estabelecimento de um contrato

fiduciário visando, com isso, a adesão do destinatário para o seu mostrar que

pretende como verdadeiro.

Partimos da questão que a nós parece lógica, mas que precisa ser explicitada

para justificar o Programa Narrativo de Base que propomos estabelecer, programa

este tomado por orientação geral na análise do conjunto das imagens. Pressupondo

já o fazer manipulatório sobre o grupo de fotógrafos pelo querer e dever fotografar,

teríamos o sujeito de estado grupo Hip Hop de São Carlos inicialmente disjunto do

objeto de valor identidade própria - imagem de si (SUO). Essa função, tida como a

relação mínima de transformação desse sujeito em busca do valor inscrito no e pelo

texto fotográfico, prescreve o estabelecimento de um simulacro da ação desse

sujeito sobre as próprias aparências as quais está vinculado, de forma a estabelecer e

romper, sucessivamente, contratos entre destinador e destinatário, reunidos

sincreticamente por um único ator e envoltos pelos conflitos que daí decorrem.

De imediato, consideramos num plano geral duas relações:

a) a do Sujeito grupo de fotógrafos Hip Hop em relação ao olhar do outro;

b) destes em relação ao olhar de si mesmos, sabendo que um modo de se

mostrar intervém no outro, ou então, se combinam.

Como essa imagem é construída para ser vista e reconhecida pelo outro, o

plano geral da narrativa caracteriza a relação de transitividade entre dois sujeitos

Page 48: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

50

distintos, pois o agir transformador sobre o olhar do outro é, antes, o agir sobre a

competência cognitiva dos outros, numa trajetória de doação, do destinador, de

um saber sobre si mesmo, ao destinatário. Para operacionalizar a transformação

num nível mais profundo, percebemos a necessidade de deslocamento de olhar, de

actantes sintáticos distintos, S1 # S2, onde:

PN= F [S1 HH São Carlos d (S2 leitores de imagens Ov imagem própria HH)]

Mas há, pela segunda relação do grupo, o Programa Narrativo de

apropriação do actante sintático Hip Hop da imagem de si, entendido como

produção de um olhar fotográfico mais próximo ao si, ou seja de maior

reflexividade:

PN= F identidade [S1 HH São Carlos d (S2 HH São Carlos Ov imagem própria HH)]

Dessa maneira, o sujeito do fazer Hip Hop, enunciador e destinatário, ao

construir reflexivamente (S1 = S2) sua própria imagem cria outro modo de mostrar

o grupo. Afinal, fica-nos a questão: esse encontro com imagem própria não seria

uma performance para si mesmo, de auto-definição ou de convencimento, que o

seu “eu” assume diante dos “outros”, propriamente nos limites de uma alteridade?

Se assim for, então precisamos considerar a relação inerente entre

enunciador/destinador (grupo Hip Hop) e enunciatário/destinatário (“leitores”),

pelo mostrar, e que define o ponto de vista:

a) Do sujeito grupo Hip Hop, como percurso de aquisição de

competência para a produção da visibilidade da imagem própria,

Page 49: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

51

implícito nas fotografias que são a performance de poder e saber

fazer; nisto já está implícito o olhar do “leitor” e de si próprio, que

modaliza o fazer do grupo.

b) Dos “leitores”, como sujeito do fazer, cujo percurso é de (re)

conhecimento de uma imagem do grupo; nisto já está pressuposto a

competência do destinador-manipulador grupo Hip Hop e o contrato

entre as partes baseado na confiança ou crença no discurso

enunciado e no próprio destinador.

As cenas deverão problematizar o percurso geral de aquisição de

competência para a construção de uma identidade visual do sujeito Hip Hop, os

fotógrafos do Hip Hop, e do percurso do sujeito “leitores de imagens”, via

pesquisador, pressupostos um no outro.

Apesar de uma aparente ênfase da performance, cabe salientar que a

constituição dos objetos modais (querer/dever/saber/poder reconhecer a imagem)

se confunde com o próprio projeto de concretização do objeto de valor imagem

própria Hip Hop, ao mesmo tempo em que constrói o valor-identidade. Ao

pensarmos na concatenação entre objeto modal e objeto de valor, compreendemos

as etapas do esquema narrativo canônico na lógica da implicação, por um lado, e

da sobreposição, por outro, assegurando a idéia de que as dimensões cognitiva e

pragmática são coincidentes na problemática proposta. Nada novo nessa

constatação, percebemos que essa questão embasa os dois programas narrativos e,

mais, os torna um. Se a performance remete à transformação principal da

narrativa, podemos dizer que os sujeitos são transformados um pelo outro,

continuadamente, a cada cena, remanejando as ações, os olhares, enfim.

Page 50: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

52

Nessa dimensão contratual, diferentes tipos de manipulação se combinam e

revelam os valores que definem o sentido das aparências sobre as quais nos

propomos discutir, acreditando, com isso, retomar a função primeira em que a

ação do sujeito Hip Hop recai sobre si mesmo, inscrevendo a produção de sua

imagem pelos mecanismos enunciativos que permitem entrever a gestão do

sentimento de identidade22, ou as paixões que sustentam a ocupação de um lugar que

almeja visível tal como o constrói. Por fim, coube a nós perguntar de que maneira a

metodologia de pesquisa, que contou com a etapa de produção fotográfica por

conta do grupo Hip Hop na cidade, procurou dar visibilidade a essa gestão, fazendo

ver sob o prisma deste Hip Hop “Um” sujeito que se vê mostrando-se por

fotografias?

Vejamos, então, como esses olhares constroem também nosso modo de vê-

los.

22 Termo emprestado de: E. Landowski. Presenças do Outro. Trad. M. Amazonas. São Paulo, Perspectiva,2002, p.92.

Page 51: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

Capítulo IICapítulo II

Page 52: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E
Page 53: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

55

Do panorama ao tipo: as imagens organizam o caminho.

Diante do largo exemplário, de cerca de 600 fotografias, encaminhamos

alguns critérios, conforme apontado no capítulo precedente, para organizar a

análise, na tentativa de elaborar um método de categorização do corpus da

pesquisa.

As cenas, como chamaremos cada grupo de imagens, dizem respeito a

configuração de um tipo de auto-retrato, agrupadas conforme a proximidade

figurativa e temática, sobretudo no que diz respeito aos papéis temáticos

construídos no percurso narrativo do sujeito e que poderão ser observados pela

discussão da sintaxe discursiva no decorrer da análise. Tais cenas são, portanto,

estruturadas a partir de maneiras como o grupo (se) mostra (n)o enunciado,

encadeando um papel actancial (enunciador/destinador) com um ou mais papéis

temáticos, vistos em estreita relação com a aspectualização actorial num primeiro

momento, mas também com a temporal e espacial. Cada tipo de auto-retrato é

constituído predominantemente por tal amarração temática, em razão do

investimento semântico que instalam figuras do conteúdo e que constituem

isotopias para articulação de sentido.

Visto que a figuratividade pode apresentar-se em níveis de profundidade,

tencionando os limites entre efeito de referencialização e de distanciamento,

principalmente na relação entre as fotos que analisaremos, apostamos que “a força

do registro e da evidência” da imagem não a condena ao que nela pode ser

meramente reconhecível. São suscetíveis, também pelo olhar do enunciatário, às

fraturas23, que desestruturam o caráter objetivo de tal empreitada para fazer ver. Por

isso, no percurso das cenas, consideraremos o arranjo da plasticidade e as figuras

23 A. J. Greimas. Da Imperfeição. Trad. A. C. Oliveira. São Paulo, Hacker, 2002.

Page 54: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

56

da expressão quando estas “saltarem aos nossos olhos”, para homologá-las ao

plano do conteúdo.

De acordo com o proposto, as relações se estabelecem por meio da

figuratividade e tematização, a partir de um contexto implícito Hip Hop, de duas

formas:

1) profissional ou, construídas pela convenção, em que as fotografias têm

maior proximidade ao universo Hip Hop;

2) e não-profissional, construídas pela dissensão, em que outros mundos são

construídos.

Vale ressaltar que as cenas apresentam modos de mostrar, ou auto-retratos,

entendidos por auto-referencialização interna, conforme a disposição geral do querer

ser visto, da instância da enunciação. Apresentamos a seguir um primeiro conjunto

de fotografias24 que se mostra como dominante em todo o exemplário fotográfico.

24 As fotografias analisadas neste capítulo encontram-se após a bibliografia, cada qual identificada com umnúmero a que nos reportaremos ao longo do texto.

Page 55: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

57

2.1. Cena 1

Se fazer mostrar

A Reunião

Tal como num salão de eventos, esta cena é comumente vista por ocasião de

uma apresentação musical. Ela traz a aglomeração de pessoas num local de

encontro, caracterizando nesse espaço tópico a reunião do grupo. Se determinado

espaço de uso assume traços de um acontecimento, por mais passageiro que seja, a

organização visual desse espaço-evento faz o grupo “se” imprimir na foto por um

modo de ser. Nas fotografias 1 e 2, o espaço “ocupado” se torna uma massa

humana uniforme, assim como o grupo se torna uniforme pelo espaço.

A tomada de ângulo por sobre as cabeças sugere o posicionamento estratégico

do fotógrafo numa tentativa de dar conta de toda a extensão e de todos os

elementos em profundidade e largura, propriamente nos limites do recorte. De um

certo afastamento dos actantes (1) a uma breve aproximação (2), existe um traço

comum relativo ao olhar desses fotógrafos que aponta justamente para uma cena

recorrente de sociabilização do grupo, visto sob um olhar panorâmico do sujeito

enunciador. Essa forma de enquadrar mostra-se como um recurso de valorização

Page 56: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

58

da reunião, pois cria um espaço visualmente adensado por um corpo no coletivo,

no que prevalece a sensação de um grande acontecimento, nos moldes de um ritual

comum aos participantes. Nesta construção, o acessório boné tem por efeito

pontuar quase todo o plano do enquadramento, criando com isso um corpo jovem

unido pela reiteração do elemento que assinala as escolhas do que e de como se

mostrar em grupo. Também pelo uso desse elemento, como actante e ator do

enunciado, ele é responsável pela primeira “aparência” do sujeito e, na ordem da

aspectualização iterativa, cria o grupo como um corpo coletivo, ainda sem maior

definição.

Nas fotos há uma construção comum, reforçada pela noção de profundidade

dado o ângulo de tomada, que divide a imagem em duas partes, inferior e

superior, donde depreende-se a relação de iluminamento versus apagamento.

Nelas há, respectivamente, a definição, onde tudo é reconhecível, para a

indefinição. Ambas partilham de um colorido intenso, porém numa organização

distinta: a primeira é bem marcada por uma faixa verde, em primeiro plano, e

vermelho, mais ao centro, revelando todos os componentes; enquanto que a

segunda, arranja-se em multicolorido que vai se revestindo de uma névoa

esbranquiçada, responsável pelo ocultamento da imagem ao longe, tal como a

anterior, que ao contrário desta define-se pelo escurecimento no topo do quadro.

Com esse revestimento de luz podemos, por pressuposição, depreender

categorias de proximidade e distância que respondem de maneira mais acabada às

condições de visão, ou seja, em que o próximo corresponde à iluminação suficiente

para distinção da cor e dos corpos e o distante corresponde à deficiência de luz. Em

termos de organização da forma de olhar para o grupo, pode-se dizer que o

enunciador, formado pela relação das duas fotos, encarrega-se de mostrar que

nessa aparente diversidade, há um elo homogeneizante que os faz existir em

consonância, isto é, constrói um sujeito do enunciado como um grupo coeso.

Page 57: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

59

O plano geral, como já indicado acima, reitera que a relação do espaço que vai

do próximo ao distante, constitui a reunião do grupo na ordem de uma amplitude

a perder de vista. A distância, sentido contrário do olhar dos sujeitos do enunciado

aonde a imagem é indefinida, tem por efeito voltar para o próprio fotógrafo a sua

participação no evento, que não é mostrar o motivo pelo qual o grupo se reúne,

mas apenas mostrar que se reúnem e em grande quantidade. Isso por si só torna-se

um valor. Vemos então que a partir dos procedimentos enunciativos, destacando a

espacialização, o enunciador, que em princípio se pretende “ausente” do texto, faz

com que o “espaço-lá” – que caracterizaria a cena num caso de debreagem

enunciva – se projete num “espaço-aqui” – caso de debreagem enunciativa de 1º

grau – como um narrador onisciente e onipresente, a partir da constatação de que

nada lhe escapa dos olhos. A forma de mostrar o que mostra, o “lá-alhures”, das

imagens analisadas individualmente, pela substituição “aqui-agora”, da relação de

ambas, evidencia o mecanismo de produção do discurso por meio da aparente

objetividade inicial que é recoberta pela constância do eu que articula o plano geral

nas duas imagens. A cena da reunião caracteriza, em princípio, um efeito de

referencialização sustentado tanto pelas escolhas do que mostrar, jovens reunidos

por força de um evento (como quem diz “eu fui”), quanto pela maneira de mostrar

(como simples registro em plano geral). Por outro lado, não seria muito afirmar,

como acreditamos, que tal recurso seja mais uma afirmação de presença nos

lugares e de proximidade junto ao enunciatário, do que puro efeito de

distanciamento.

As imagens postas lado a lado evidenciam o enunciador enquanto um sujeito

de “ocupação de espaço”, em lugares distintos: aquele que tudo vê e vê ao longe.

Grandioso por esses meios se monta como a própria figura de ostentação, cujo

papel social emparelha-se a uma maneira de pertencer ao Hip Hop, pelo viés do

evento ou, como dissemos, do ritual. Com isso, cria a imagem de um grande

Page 58: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

60

grupo, fazendo crer que eles partilham de um objetivo, mostrando-se conforme seu

fazer em plena participação do evento. Cada indivíduo pode ser visto como parte

integrante de um corpo coletivo do Hip Hop, inclusive o fotógrafo. Este procura

colocar na imagem um número grandioso de semelhantes sem se preocupar em

elucidar os motivos desta reunião, baseando-se apenas na afirmação da existência

do grupo pelo qual pretende ser reconhecido pelo enunciatário.

Ao iniciar a análise pela cena da reunião julgamos pertinente desde já apontar

que esse tipo de construção baseado numa visão panorâmica, aparentemente mais

distanciada, da instância enunciativa, define o eixo de relação do se fazer mostrar.

Nessa posição do diagrama, a cena da reunião constrói-se em relação a um

pertencimento dos actantes do enunciado a um grupo sócio-cultural pressuposto, o

Hip Hop, no qual o fotógrafo tem a função de apresentar minimamente ao

enunciatário uma parcela do que ele reconhece de antemão a respeito do grupo.

Isso quer dizer que esse mostrar-se coloca-se numa relação de transitividade do si

com o outro, dado por maior ou menor grau de convenção tanto pelo modo de

mostrar quanto pelo o que é mostrado, figurativizado e tematizado.

O que estas fotos começam a desenhar, no horizonte de nosso caminho, é uma

imagem panorâmica do ator da história que se inicia, introduzindo valores como

coletividade e grandiosidade, envoltos de um papel temático que os aproxima da

militância do movimento, ou seja, do ativismo.

Com a aproximação, falas impressas

O caminho do olhar que propomos, divididos em pequenas cenas, pareceu-nos

apropriado à medida que torna possível ver como as imagens se aproximam em

termos de uma constituição temática, embora tão diversas quanto ao arranjo

Page 59: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

61

interno. Por essa razão, este conjunto articula uma espécie de subtexto do anterior,

visto que se tratam de situações de encontro, podemos assim dizer, numa variação

bem demarcada. Nesta o grupo é reduzido, mas a presença da palavra acaba por

redimensioná-lo fazendo o visual se projetar pela força do verbal. Na

continuidade, a questão do pertencimento ao grupo no qual o sujeito do enunciado

está inserido torna-se mais evidente, conforme escrito na foto 4, e à ele se agregam

outros valores, tal como mostrado pelo fotógrafo no instante do registro. Pois se a

importância está no modo de construir determinado olhar, a relação do

papel/função desempenhado pelos fotógrafos da pesquisa é a de um olhar que

coloca em foco a circunstância que julga dizer algo sobre si e seu entorno, tal como

pequenas partes que constituem um grande painel.

A maior parte das fotografias apresenta, então, uma amostra do que fazem.

Para isso, os fotógrafos contam um pouco com a disponibilidade do enunciatário,

tanto quanto com seu conhecimento a respeito do que realizam. Teríamos assim

um contrato fundado nessa relação de crença a partir daquilo que é mostrado. Isso,

em certos momentos da análise, equivocadamente poderia ser lido como simples

constatação por deixarmo-nos levar pelas facilidades da imagem, quando, na

verdade, estamos evidenciando como o enunciador se utiliza justamente dessas

facilidades para construir, digamos, uma faceta de sua imagem.

Nesse conjunto de fotos ocorre a aproximação com o grupo ao apresentarem

não mais a visão geral, que mais parecia um esboço do sujeito, permitindo

enxergar melhor o rosto, a roupa, o cabelo, o gesto, o acessório, enfim, o modo e o

revestimento pelo qual o grupo se manifesta.

Ele, embora reduzido, reúne-se em ambiente fechado. Seu espaço muda

substancialmente: é o aqui, no meio do grupo. Da visão geral, na foto 3, o

enunciatário é transportado para o meio dos actantes, fazendo parte dele. Numa

seqüência de montagem clássica cinematográfica, o enquadramento permite a

Page 60: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

62

continuidade da cena por mostrar o contra-campo das fotos 1 e 2, como se

naquelas já houvesse alguém a realizar o contra-olhar do palco. Olhando-as lado a

lado é possível admitir a presença de uma na outra, de palco e platéia. Se

considerarmos que este contra-olhar é resultado de um fazer daquele que olha,

veremos que esse deslocamento de cima do palco para baixo cria um efeito de

sentido de aproximação. Do corpo a corpo entre os jovens imediatamente

descobrimos o sujeito que mostra, o próprio fotógrafo incluído na platéia.

Ainda que não diretamente figurativizado na imagem o fotógrafo-

enunciador, que nos proporciona a visão, ganha também um “corpo”, e empresta

ao enunciatário um pouco de sua presença para ver, com mais “corporeidade”,

esse estar junto do grupo participando do evento. O braço na foto 4 produz esse

efeito.

Ocupando todo o centro do enquadramento e elevando-se na vertical, o braço

faz referência ao acontecimento lá no palco com o gestual da mão. Do encontro

entre verbal “Hip Hop”, estampado no tecido e destacado pela iluminação pink, e o

gestual da mão perde-se a noção de profundidade, mas ganha-se a de intensidade,

pelo sincretismo verbo-visual, do código gestual: na mão elevam-se o polegar, o

indicador e o dedo médio, como se assim se manifestasse o grito de guerra.

Vale notar que o código tem a função de aglutinar e identificar o grupo, pela

síntese gestual, o todo de um pensamento e talvez de uma forma de existência.

Certamente se entendem, assim como outros grupos que criam suas gírias para

afirmarem um traço de pertencimento, uma semelhança; basta saber que além de

se comunicarem entre si, o gesto comunica o grupo para quem quer que o veja, o

que faz crer ou pelo menos chama a atenção para o que mostram. Ao contrário de

um código de trânsito, mas ainda como código, esse gesto com as mãos não se

reduz à correlação direta entre palavra e efeito, apenas porque as palavras invocam

Page 61: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

63

algo mais nessa relação com a imagem. Seria então uma espécie de senha, de

código de acesso ao grupo ou a uma área reservada da reunião?

O braço, portanto, reconstitui metonimicamente um corpo inteiro que se eleva

em presença actorial. Com ele, é possível escutar o que todos os outros dizem ao

sustentar também o que o sujeito no palco fala ao microfone, e repetido pela faixa

Hip Hop. A palavra cria um efeito de assinatura e mostra o actante-enunciador-

destinador debreado no enunciado e projetado sincreticamente como ator do

evento. Hip hop e corpo, então, se implicam, mutuamente, no dizer.

Na fotografia 3 a palavra é redimensionada pela encenação. O pano de fundo

mostra de forma direta e peculiar o teor da fala do sujeito que empunha o

microfone, localizado bem à frente da personagem demônio. Mais do que isso,

serve de ancoragem para voz como um recurso de transcrição para que a palavra

ouvida seja também escrita. O assunto é dinheiro. Muito dinheiro, como sugerido

pela cédula de dólar norte-americano, devido a sua dimensão que a faz ocupar um

terço do palco. Nela está escrito: “Dinheiro pá noi” e, logo abaixo, “aqui”. Quem

reclama por dinheiro? A partir da construção da frase tendemos a acreditar que a

fala pertence a alguém cujo grau de escolaridade é colocado em evidência por não

corresponder às normas ortográficas que define o “para” em lugar do “pá”, e o

“nós” em vez de “nói”. Essa construção sugere um modo coloquial, propriamente

uma gíria, da fala de alguns grupos, como sabemos dos chamados “manos”

geralmente associados aos jovens da periferia, diretamente relacionada a um

estereótipo de fala tornado público na mídia25.

O que nos interessa nesta foto é a existência de um discurso que se constrói

pela contravenção das regras. Aliás, a insistência do erro impresso e ampliado na

25 Sobre isso ver o Filme Cidade de Deus (2003), Como uma onda no ar (2000), Rap do pequeno príncipecontra as almas sebosas (2001), e o seriado Turma do gueto (2003).

Page 62: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

64

faixa, e como se não bastasse fotografado, denuncia essa construção como

proposital utilizando o recurso da paródia, pois é assim que se mostra.

Se, por um lado, a publicização do modo de falar na mídia serve de

identificação rápida, por outro a utilização da estereotipia da fala é uma marca da

estratégia do enunciador fazer ver um discurso focado na promoção de si nos

eventos com tom politizador e diferente. Ou seja, no reverso do erro que a fala

sugere, o pensar crítico não é uma virtude que se compra nos melhores e mais

caros colégios da cidade. É moeda, sim, do jogo de forças sociais, onde vale a

paródia, até de si mesmo, se o que se deseja é fazer valer a reclamação. Ao focar a

nota gigante é possível ver que seu tamanho nada tem a ver com uma possível

leitura rápida da moeda para reiterar o poderio econômico do país aí

presentificado, porque ao apontar essa abordagem no visual, o verbal propõe,

colado à ela, uma leitura discordante, escancarando o conflito entre a liderança

econômica e o “desajuste social”. A falta de dinheiro, como desdobramento

pressuposto da reclamação, reitera o discurso da desigualdade, disforicamente,

porque marca as diferenças sócio-econômico-culturais entre os homens. Então o

objeto de valor, figurativizado pelo dinheiro, é da ordem ideológica26 em primeiro

lugar.

Nesta paródia, então, o uso proposital do estereótipo de fala cria, por

pressuposição, o contraste entre dois discursos distintos para evidenciar embates

sociais. Na correlação entre significante e significado, o modo de dizer do sujeito é

seu próprio ser ali no palco, e que não pode ser vista de maneira gratuita, mas

como efeito de sentido de voz crítica que se constrói frente os valores da boa

educação.

26 A.J. Greimas, J. Courtés, Semiótica: diccionario razonado de la teoria del lenguaje. Tomo II. Madrid,Condor, 1991, p.114. Verbete: figuratividade.

Page 63: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

65

Tematicamente, ainda, aqui se remonta a figura do “mano”, cujo traço

diferencial se faz justamente na afirmação de uma identidade construída nem tanto

na ordem da exclusão, e sim da marginalização. Neste caso, a figura do mano

convoca também a do outsider, que juntas correlacionam centro e margem.

Lembrando que na foto 4 o “aqui” da fala foi ocupado pela assinatura Hip

Hop, poderíamos dizer que o grupo recuperado pela projeção de voz alinha-se a

uma fala corrente do Hip Hop, que discursa sobre a atuação política. Nesse sentido

esta imagem articula o simulacro Hip Hop por meio da figura da fala, ou seja, da

palavra que assume a função de legenda.

Quanto à plasticidade desta fotografia, a montagem da figura do Diabo marca

topológica e eideticamente a centralidade do discurso como fala crítica do sujeito

reclamante. O cromatismo, por sua vez, cria enfaticamente o tom de fala, por um

recurso contrastivo entre o que está concentrado na faixa rubra central da foto, por

gradações tonais do vermelho, e o que é colocado às margens inferior e superior.

Esta faixa avermelhada é, pois, a própria interiorização do anti-destinador, por

oposição, que tem por efeito fortalecer o discurso crítico do Hip Hop ao denegar

uma fala opressora, articulada pela figura de expressão. Desse modo, encadeiam-

se as categorias:

Discurso do Hip hop discurso da desigualdade

Centro versus bordas

Interior versus exterior

Asserção do hip hop negação da desigualdade

O pano de fundo, em razão da dimensão e da posição que o dinheiro ocupa

no enquadramento, delineia uma estratégia do sujeito manipulador para fazer ver

uma marca do grupo, por ação e voz ativa. Ou mais ainda, esta imagem pontua um

Page 64: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

66

modo de se mostrar no percurso de aquisição de competência do sujeito Hip Hop,

ao mesmo tempo em que oferece ao enunciatário um primeiro olhar sobre a

imagem do destinador-enunciador engajado no estabelecimento da verdade de seu

discurso, construído pela cenarização e pela encenação dos actantes. Enfim, essa

fala impressa atualiza os termos de um contrato fiduciário, precisamente da

aceitação da imagem do grupo em questão com um simulacro do Hip Hop, em

relação ao papel temático do político.

A enunciação cria um jogo entre visual e verbal com intuito de fazer do verbal

a força propulsora do discurso, e do visual ecoar na síntese dos dois. Por este lado,

a palavra direta e enfática identifica-se com uma estratégica para que o

enunciatário convença-se das associações fáceis e aceite esse mostrar-se como

verdadeiro. Para isso, o enunciatário é cada vez mais inserido na imagem,

podendo até equiparar-se à instância que o organiza. O efeito que se deseja criar é,

portanto, de familiarização daquele que vê com o assunto do grupo.

As análises tratam de elucidar como eles se mostram conforme um simulacro

de ativista que centraliza em si a força do discurso, o que, muitas vezes, parece ser

apenas uma constatação daquela referência, como se esse mostrar estivesse de

acordo com uma evidência ou um único modo de se construir visualmente para o

enunciatário. Sem dúvida, já está reiterada a dimensão contratual deste fazer,

precisamente de um fazer-crer que essa é sua imagem.

Destas às próximas fotos, a cena se expande pela variação do tema,

continuando um modo de mostrar ancorado contextualmente, utilizando-se de

clichês se for preciso. Paira a idéia de que antes mesmo de se fazer mostrar, através

de terceiros, como o produtor da imagem, ele se vê conforme uma imagem à priori

pela qual tenta captar o enunciatário. Por isso muda o cenário, os actantes, o

enquadramento, mas continua a lembrar o enunciatário da pressuposição de

pesquisa, isto é, de que este é um grupo Hip Hop em virtude dos papéis temáticos.

Page 65: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

67

Autoridade pela Fé

Os temas se formam devido ao ponto de vista projetado pelo atores do

enunciado, que nestas fotos são construídos pelo enaltecimento de figuras

alegóricas, no que poderíamos chamar de cerimônia de uma cena fotográfica.

Todos se posicionam diante do objeto emissor de flash e após o disparo está

construído um eu possível. O repertório corporal é todo acionado, e assim os

objetos são destacados porque no recorte certamente o ser é aquilo que mostra.

A cerimônia fotografia é um hábito cultural que desloca o sujeito em relação a

ele sempre que se sente convocado a mostrar tudo de si, o que ele realmente julga

ser digno de o referencializar para os outros e mesmo para si. Com base nisso, a

arrumação interna da fotografia é fundamental para que o observador conheça um

pouco mais sobre o grupo que se “monta” para ser fotografado, seja pela utilização

da faixa com o escrito “Simples Mortais”, seja pela centralidade do rosto do Che

Guevara estampado na camiseta.

A posição estratégica do rosto marca também a centralidade do corpo que o

veste, chamando atenção para o grupo que se dá a ver por meio da figura de

autoridade. Por esta centralidade todos os demais actantes do enunciado passam a

compartilhar da organização instaurada, complementando e reforçando a atenção

pontual do rosto. A figura que a camiseta mostra é a reprodução do rosto de Che

Guevara, fotografado por Alberto Corda por ocasião da revolução Cubana,

amplamente estampado em roupas em todo mundo até hoje. Como personagem

histórica, e qualificado como herói popular, correlaciona-se a ele a possibilidade da

transformação e, portanto, de uma esperança de igualdade e justiça, valores esses

reiterados através dos tempos. Topologicamente colocado ao centro, a dimensão

Page 66: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

68

dessa figura reforça sua importância para o discurso do Hip Hop ali debreado, o

que faz deste rosto imagem simbólica do próprio grupo reunido por uma fé (de

fidúcia) em si mesmo como agente da transformação.

O mecanismo enunciativo, então, apóia-se na síntese significativa de uma

imagem, através de um “ele”, para construir a sua própria. Por esse recurso faz

convergir o discurso citado (Che) e o discurso citante (Hip Hop) para garantir a

coesão do grupo internamente à foto e diante do enunciatário. Essa auto-definição

a partir da figura de autoridade projeta para o enunciatário, afinal este é mirado

francamente, a garantia de que o que ele vê é um sujeito comprometido com seus

valores, capazes de atos heróicos para alcançar seus objetivos. A imagem do rosto

de Che Guevara estampada na camiseta é acompanhado do gestual da mão para

criar efeito de sentido de coesão Este, multiplicado pelos vários actantes da

imagem, faz com que o corpo se mostre pela mão e, assim, caracteriza também o

gestual como expressão de comunicação e de circulação comum ao grupo,

recuperando neste outro momento um código que o simboliza e que deve ser

mostrado em conjunto com o rosto. A força do gestual tanto quanto da

representação do rosto de Che Guevara, vale reforçar, traz para o grupo a

dimensão do ser que se mostra segundo alguns princípios, talvez como agente de

transformação ou de atuação. Nesse sentido, o mostrar de si para o outro já implica

no reconhecimento de si pelo que escolhe mostrar.

Na foto 6, lê-se: “Simples Mortais”. O verbal escrito mostrado pelos jovens

ocupa boa parte da imagem e se destaca pelos corpos que o circundam. A faixa

convoca, de imediato, o Hip Hop da camiseta do jovem à esquerda, onde o rosto

está praticamente apagado pela predominância das cores amarela e alaranjada que

saltam de seu corpo. Ao fundo vê-se duas cabines de telefone público que formam

“asas” amarelas nas costas do jovem, e a parede de um estabelecimento comercial

Page 67: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

69

que tem revelado um pouco de seu interior no canto esquerdo. Eis o registro de

cena que traz em seu interior o título auto-explicativo.

Os jovens desempenham importante papel de sustentação das palavras que

formam o núcleo do grupo, tornando-as uma fala comum e um elo de ligação que

os denomina ao mesmo tempo. Eles, os simples mortais, são participantes do Hip

Hop. Em princípio, a soma das partes poderia sugerir a relação direta do sentido,

não supondo qualquer desacordo que venha se contrapor ao explicitado, fazendo

valer o puro efeito de iconização da fotografia. A relação das palavras com o corpo

circundante revela, na verdade, a lógica da contrariedade em que a significação

figurada está em oposição à significação própria (expressa), substituindo-a.

Por meio do sincretismo verbo-visual cria-se um subtexto do que está

mostrado, segundo a cooperação enunciador-actante. O fotógrafo aceita e ao

mesmo tempo determina um olhar dos actantes sobre si mesmo, dando destaque à

localização das palavras e das cabines telefônicas. Juntas elas subvertem o

significado primeiro da construção à mediada que as cabines sejam re-

semantizadas pela imagem de asas. Nesse sentido, é como se a natureza do sujeito

do enunciado também fosse reelaborada, não podendo mais ser reintegrada ao

comum. E na combinação entre ser alado e ser mortal, o olhar preparado do

fotógrafo seleciona elementos que permeiam o universo da comunicação: a

palavra, o gesto, o telefone, porém sobrevalorizado pela figura do anjo que está por

entre o Hip Hop. Visto desta forma, a figura instalada no enunciado é revestida de

uma autoridade, pois dá importância ao grupo.

Nas duas imagens a referência a uma figura de autoridade está atrelada a

uma forma de atestado ou de validade da coisa apoiada na autoridade do outro,

mas sobretudo a uma crença de que esta é a melhor maneira de mostrar-se, sob

esta figurativização. Ou seja, se fazer mostrar pela imagem do outro. Esta fé

encadeia o papel temático do crente, montado pela instância da enunciação através

Page 68: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

70

do fotógrafo não figurativizado na imagem, por um “ele”, que define o recorte do

grupo pelo arranjo interno da cena, como uma grande estampa do Hip Hop.

Nestas duas fotos é preciso voltar o olhar para o corpo que começa a trilhar

modos diferentes de se apresentar nas cenas seguintes. Diferente do que deixamos

transparecer pelas descrições anteriores, ele não significa, para nós, um suporte

que a todo o momento reveste-se de valores e os carrega junto à pele. Ele é, antes, o

próprio significar dos valores fazendo-os dele nascer, em toda sua extensão, e em

cada parte, para completar-se pelo que é, presença do mundo de si culturalmente

instalado na imagem de si.

Sabemos que o grupo referido é volumoso (foto 1) e que há uma denominação

comum que os une no pensamento, tal como mostra a reunião em torno da frase.

Esta evoca toda a cadeia interpretativa no desvendamento do jogo de palavras27

“Simples Mortais”, que tem no jovem alado a figura que entrelaça o texto.

Constatamos, então, que ao recorrer ao símbolo da revolução e ao ser alado, para

autorização de seu discurso, o destinador “sugere” um fazer interpretativo que

clarifica a cadeia passional, nesta cena construída pela fé quase religiosa, para se

exaltar pelo discurso do outro. Trata-se de um recurso semântico que funda um

querer-ser por um se fazer mostrar pela crença Hip Hop, fé que, ao longo das

fotografias, evoca “estados de alma”. No cerne do percurso patêmico do sujeito - o

que o motiva - está o desejo pela visibilidade que, conforme D. Bertrand, autoriza

“um percurso de referencialização interna”28 e assegura a continuidade do

discurso.

Breakers: espetáculo de inversão do mundo

27 Poderíamos chamar também de figuras de linguagem, tropos, segundo a tradição retórica que define essetipo de construção como ironia que formula uma idéia contrária a que está expressa na linguagem. Ver R. O.Brandão, Figuras de Linguagem. São Paulo, Editora Ática, 1989, p. 21.

Page 69: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

71

O que chamamos anteriormente de construção temática geral neste primeiro

momento da análise, nada mais é do que a o encadeamento de vários temas, que

vem pela formação figurativa e que diz respeito aos elementos do Hip Hop que,

conforme sabemos, são constituídos da dança, do grafite, do dj, do cantor e de um

quinto elemento: a consciência, designada por discurso político do Hip Hop. Até

agora vimos a construção de um tipo de auto-retrato que se relaciona mais com

este último elemento, segundo o que a reunião, a fala e a fé montam uma faceta do

“ritual” Hip Hop tal como uma atitude, pela maneira de encenar a presença

figurativizada do grupo no enunciado.

Vimos também que este mostrar-se identifica uma formação estratégica na

maneira de dizer do enunciador, porque se vale dessa pressuposição de que o

enunciatário é minimamente informado sobre o fazer do Hip Hop, e por isso arranja

um olhar centrado no reconhecimento de tais marcas, muito embora pareça estar

registrado pela objetividade da câmera fotográfica. Por isso, não perdemos de vista

que se fazer mostrar por um “ele” para um outro, baseado na relação de

transitividade, é conseqüência de um efeito do parecer conforme uma imagem do

Hip Hop, não sendo importante discussões quanto à legitimidade da imagem. A

preocupação novamente recai sobre os mecanismos de figurativização e

tematização a partir dos quais o sujeito manipulador pretende fazer crer no que

mostra. Parcialmente, a resposta está na utilização de figuras do Hip Hop, mostrado

como um painel ao enunciatário.

No início havíamos dito que cada cena constitui parte de um percurso do

sujeito Hip Hop, o que faz com que a narrativa forme uma rede complexa em que

uma pode ser colocada ao lado da outra ou estar subordinada a outra. Essa

28 D. Bertrand, “Os Discursos de uma Paixão” in Cruzeiro Semiótico. Associação Portuguesa de Semiótica, nº6, 1987, p. 31.

Page 70: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

72

complexidade é instituída pela variação figurativa entre as cenas que determinam

que o sentido é iniciado em uma foto e recuperado em outra, muitas vezes não

apenas para reiterar sentido, mas para enriquecê-lo na continuidade. Assim, na

seqüência, a condução da cena é dada pelo actante, ou o que dá no mesmo, pelo

corpo desenhado, numa relação de um tipo de espacialidade construída por ele

para criar a espacialização discursivizada da enunciação.

As fotografias mostram que esse corpo é formado simultaneamente pela

“massa”, que configura a expressão de um coletivo, e pelo pontual, configurando o

singular, um impresso na constituição do outro. É preciso recuperar aqui a cena 1,

em que se estabeleceu a co-implicação de massa humana e espaço “ocupado”.

Verifica-se o enriquecimento semântico de um novo corpo que constrói, de

maneira mais intensa, uma articulação performática reforçada pelo fazer somático,

a partir de três tópicos distintos que convergem para uma mesma questão. Ou seja,

embora aparentemente distintas as imagens são criadas pela performance corporal

que faz do espaço desenhado pelo sujeito do enunciado um ato de fala que o faz

ser pela cultura Hip Hop:

1- o corpo como força centrípeta;

2 – o corpo emergente pela verticalidade do olhar;

3 – o corpo tensivo da diagonalidade;

Num primeiro momento o corpo que se coloca no centro da roda (foto 8)

parece ter a função primordial de reunir outros tantos em torno de si. Este corpo

singular, ao mostrar-se para os outros que o vêem, revela que a atração pelo corpo

é, no mínimo, o reconhecimento da ação realizada, constituindo-se ela mesma

como valor de referência. Isto porque tantas das performances criadas pelo

dançarino do movimento exploram o que comumente é tido por incomum ou

Page 71: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

73

impossível. O corpo, portanto, ocupa o centro da imagem e da atenção. Nesse

sentido, a performance do corpo mostra-se como força centrípeta, num movimento

sugerido pelas pernas que se renova repetidamente, e para o qual tudo o mais ao

seu redor converge.

A forma criada pelo dançarino une esse grupo pela circularidade, fechando-o

em si e mantendo a isotopia da coesão. A circularidade sugere um movimento

giratório incessante cujo ponto de apoio é dado pela cabeça. A figura justifica-se,

então, pela especificidade de um corpo lançado ao desafio: de ponta cabeça,

equilibrando-se sobre ela com as pernas elevadas para o alto em V, que a partir do

efeito de movimento sugestionado pela velocidade de giro, transformam-se numa

hélice de helicóptero, rumo à superação da gravidade. Como numa roda de

capoeira, o círculo se torna o desenho do espetáculo, bastando que os sujeitos

estejam presentes para significar o espaço que ocupam e fazendo também o próprio

espaço significar o sujeito. E é por essa forma construída que a imagem representa o

corpo-pontual, no centro, como expressão do corpo coletivo, ao redor, sem o qual

seria impossível ter a coesão da figura “montada” como encenação de um

espetáculo.

A tomada superior da imagem é o ângulo de visão em que o fotógrafo se

colocou para dar conta do desenho descrito pelo corpo, do ponto que constrói uma

grande circunferência. Percebe-se que também ele procura estrategicamente a

melhor posição em relação à performance para proporcionar ao observador a

melhor visão possível do que está fotografando. O plano geral dá idéia da

dimensão do evento, tal como da importância do corpo que agrega os demais.

Ponto e circunferência são categorias distintas na construção, uma se fazendo

em função da outra. Apesar do destaque dado ao corpo central, ele somente

adquire sentido por fazer parte do grupo que atribui valor à sua exibição, ou

melhor, pelo reconhecimento/sanção do grupo que o envolve. Da mesma forma, a

Page 72: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

74

razão de ser do grupo circular atraído pelo corpo pontual é torná-lo, o sujeito

individual, parte de si; e como expressão dessa união o grupo se duplica, no

reflexo do chão, em outros eles, diminuindo a distância entre o coletivo e o

indivíduo. A visualidade teria aqui o seu sentido realizado, o da arquitetura

plástica de um corpo dado ao reconhecimento público.

As duas próximas imagens reiteram o desafio da gravidade que compete ao

sujeito superação do espaço. Este, equilibrado por uma única mão (foto 8), se

suspende verticalmente no ar como se desejasse elevar-se à altura do chão. Quase

podemos vê-lo levitar, imaginando que um fio o suspende para mantê-lo ali. Já o

eixo colocado na diagonalidade (foto 9), transforma o corpo numa linha de força

que divide o espaço em dois triângulo simétricos, com forças desiguais. O peso do

triângulo superior se debruça sobre o outro e cria um estado de tensão, sugerindo

a queda a qualquer instante. Como uma manobra arriscada, mais uma vez o

desafio é indicado.

A questão do desafio é um tema recorrente no discurso Hip Hop e está

presente na dança, na música, no grafite, interligando-os pela isotopia do outsider,

na manutenção da idéia de que a maneira de fazer o que fazem é pelo menos uma

tentativa de impressionar ou causar estranhamento. Nesta cena, o desafio é

questão de visibilidade. Por isso, os demais actantes da imagem presenciam a

manobra, atentos. E neste momento o corpo se eterniza enquanto figura de

contemplação. Entre a contemplação e a figura nasce o espetáculo para ser visto.

Investigando esse fazer somático é possível perceber como se constituem as

condutas corporais e como a descrição figurativa desvela o acesso ao sujeito. Na

continuidade do percurso narrativo, este é mais um modo de formação do grupo

que contribui para atualização de valores modais do poder e do saber mostrar-se e

para a construção o objeto do conhecimento: da imagem de si.

Page 73: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

75

O parâmetro de que nos cercamos no início da descrição das fotos foi baseado

na relação do corpo na construção do espaço, não perdendo de vista que este

mesmo é significado por ele. Através deste estilo, que desenha o circular (foto 7), o

linear (foto 8), o triangular (foto 9), realiza-se o movimento que sai do grupo em

direção ao indivíduo na correlação de um espaço de menor para maior tensão, já

associado ao componente desafio. Assim, o que aparenta ser uma demonstração de

virtuosismo corporal passa a ser uma marca de pertença ao tipo de dança, à

chamada break dance.

A não inteligibilidade do movimento dentro de determinados contextos

mostra a performance como uma prática discursiva pela maneira que faz o valor

do “feito” aliar-se à performance. Nesse sentido, o desempenho corporal associado

a uma certa qualidade de força física, soerguido pela inversão corporal, assegura

um poder do sujeito sobre si mesmo em que reside a capacidade de modelar o

espaço de toda forma, fazendo ele mesmo, o corpo, o traçado de linhas como quem

brinca no ar de figuras geométricas. Nesse fazer o tempo pára e a forma perpetua.

Vejamos, então: inverter-se é colocar-se de ponta cabeça, ou será o mundo que

é colocado de pernas para o ar? Seja lá qual for, o sentido de olhar que se adote, há

nesta figura invertida um descompasso ou uma recusa de uma única forma de

apresentação do mundo, dos seres, dos objetos. É, com efeito, um olhar enviesado

sobre convenções que ditam ao corpo a ordenação pela repetição do mesmo, uma

espécie de negação da conduta do corpo padronizado pela inserção de outra

maneira de fazer seu corpo construir a encenação, elaborando técnicas específicas e

manobras inusitadas para criar um ambiente próprio de comunicação. No entanto,

essas formas que o corpo adquire não deixam também de ser uma espécie de

coerção a um gênero de dança da cultura Hip Hop, é um traço de pertença.

Também assim pode ser visto o lugar performático deste corpo. Se pensarmos

em condições cênicas tradicionais, do palco como marcação de barreira física em

Page 74: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

76

relação ao público que criam por si só o efeito de sentido de distanciamento e

ilusão, nas fotos um chão qualquer é o palco ideal para o performer, desde que

possa garantir à platéia boas condições de visão e, mais do que isso, de sensação

(de tensão, deslumbramento). Quanto mais os corpos se aproximarem do seu,

quanto mais inserção neste social para compartilhar o fazer corporal, mais a sua

individualidade marca o estilo sintonizado a este coletivo. Vejamos, então, que esta

totalidade é construída pelo estar junto pois, como dissemos acima, o corpo é

espaço-tempo vivido do sujeito, tal como numa roda de capoeira em que o lugar

do sentido é todo lugar possível.

O fotógrafo, envolvido na prática da dança, imprime seu próprio fazer

corporal para a realização da fotografia, empenhando-se na captura do instante

que atesta a importância da forma do dançarino, o que mostra seu conhecimento

na rotina de tal performance e dos valores aí investidos. Por certo, é conhecedor,

participante, curioso ou simpatizante, desse universo Hip Hop e contribui para a

construção do papel temático do dançarino como um corpo simulacrado do

breaker.

Esse conjunto de fotografias permite captar a marca do articulador das

imagens e remete à instância enunciativa, dada a importância de sua presença no

momento de formação das figuras, construídas assim para surpreender o

enunciatário. A enunciação evidencia um mecanismo de captura do olhar do outro

pela afirmação, de sua parte, da destreza de seu olhar e domínio do acontecimento.

Por meio do olhar do fotógrafo, existe a habilidade em ver e construir o que é

mostrado. A cena, então, convida o enunciatário a participar dessa armação feita

pelo enunciador (foto 8 e 9), a envolver-se, vendo e aplaudindo o sujeito que se

realiza dessa forma; é solicitado para fazer parte da roda, completando-a e ao

mesmo tempo construindo o espaço de espetáculo.

Page 75: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

77

Enunciatário arrebatado, tarefa cumprida? Mas não seria esta a estratégia

posta, a da aproximação do enunciatário para o reconhecimento do sujeito

enquanto retrato do Hip Hop em ato?

Grafismos de presenças

Os grafismos que veremos a seguir fazem parte da prática da cultura Hip Hop,

podendo ser classificado como mais um componente temático responsável pela

montagem da imagem do grupo por um simulacro Hip Hop até aqui. No entanto,

as pinturas do grafite apresentam-se por dois modos distintos de figurativização:

um que revela a presença física do pintor no ato da criação e outro que traz a obra

em si, cada qual resultando em efeitos de sentidos diferentes. Por ora, iremos nos

ater ao segundo tipo, ficando o primeiro para um outro momento da análise por

estar classificado por um auto-retrato diverso (no eixo da contrariedade).

O traço

As imagens que compõem esta cena caracterizam duas pinturas do grafite

cujos procedimentos figurativos fazem pensar diferentemente a relação tempo e

espaço com o aparecer do ator.

A foto 10 pode ser vista como uma grande tela colocada à luz do dia, em céu

aberto. O espaço amplo, as grandes proporções, no ambiente público, a rua, o local

de passagem, reúnem as condições ideais para que o “desenho” seja visto a longa

distância. O muro, por isso, funciona como um grande suporte para a projeção do

grafismo, propondo a percepção diferenciada do ambiente rua, ou a relação

diferenciada de tempo e espaço urbano no contínuo da vida cotidiana. Vejamos,

Page 76: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

78

então, sua estruturação formal e quais os recursos utilizados para construir o plano

da expressão do texto, para assim torná-lo visível e significante à medida que as

categorias constituídas dessa articulação forem homologadas ao plano do

conteúdo.

A imagem se divide em três partes: superior, referente ao céu; meio, ocupada

pelo muro e o grafite; e inferior, do asfalto. Parados diante da tela vemos, na

porção central, a pintura densa cuja técnica encadeia formas e cores num

rebuscamento de tramas que se assemelham a um conjunto de palavras

sobrepostas; isso explicaria a primeira impressão de estranhamento ou de

interesse: uma língua desconhecida, talvez, que somente o aprendizado a

desvendaria. Vale lembrar que a imagem no meio da rua e a figura da tela se

agigantam proporcionalmente ao tempo que o passante, enunciatário, permanece

diante dela. Ou melhor, a percepção do arranjo invoca um certo tempo de

permanência.

Isso leva a crer que a manifestação do sentido está em correlação ao público e

ao privado, construindo-se nessa mediação. À ela associam-se valores de um

universo privado de significação, ou mesmo de um sentido contingente, que

mostra uma pintura hermética mas existente no espaço público.

A ausência física de um actante no enunciado, o pintor figurativizado, faz da

pintura a própria apresentação de um alguém que deixou sua marca para ser vista.

Como desdobramento do público e do privado, presença e ausência29 também se

combinam para mostrar que o grafite traz colado a ele o corpo do pintor pelo fazer

que cada forma adquire no muro; o gesto do pintor se faz mostrar na imagem. Ele

é grande, ocupa todo o ambiente e, para não haver dúvida, deixa sua marca

29 Agradecemos à professora e orientadora Drª Ana Claudia de Oliveira, do curso de comunicação e Semióticada PUC-SP, pela contribuição nos estudos acerca da construção identitária em dado momento da disciplinaSemiótica Discursiva por ela ministrada. Ao tratar da questão da ausência instigou-nos a refletir sobre as

Page 77: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

79

impressa na passagem. Dito de outro modo, a obra como resultado da ação do

pintor o mostra pela dimensão que ela adquire no meio da rua, fazendo pensar o

que foi necessário para realizá-la. Com isso, os quadros, um dentro do outro,

apontam para articulação de uma visibilidade pela presença singular do olhar

fotográfico, que determina o plano geral como melhor enquadramento da

dimensão da obra, no domínio da cena pública.

A relação da trama interna do muro com seu entorno funda a imagem, como

se um outro pintor, o fotógrafo, colocasse seu cavalete e sua tela ao ar livre para

criar sua obra e produzir, e re-produzir, o mundo impresso no muro e em seu

quadro. Pelo arranjo do plano da expressão, organizam-se o:

Cromático: O azul, que preenche o interno da figura e o vermelho que o

delimita e o destaca. Vistos no conjunto, valorizam a figura dando a impressão de

saltar da base, da tela, para se projetarem para o exterior dela. Nisto, cria-se a

relação entre dentro versus fora.

Topológico: O emaranhado da formas, dispostas topologicamente como

blocos na horizontal no centro da página, mais uma vez coloca esse olhar no ponto

de vista da centralidade, entre o céu e a terra (asfalto e verde do mato). Decorrem-

se as categorias centro versus margem.

Eidético: O entrelaçamento das figuras diversas e disformes dadas na região

central de cores e a relação com os retângulos que a englobam, da moldura, do

muro e da própria foto, formam o par interno e externo, colocando as figuras como

limites referenciais do ponto de vista.

Então, as categorias plásticas:

dentro versus fora

“coisas ocultas”, donde pudemos perceber que a ausência nunca é algo em si mesma a não ser em relação aoque não é, presença, e que ela se explica pelo par perfeito.

Page 78: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

80

centro versus margem

interno versus externo,

homologam-se às categorias do privado e do público. Quando o privado se

emparelha à categoria centro este se torna o ponto de atenção de uma cena que se

constrói na passagem. Não por acaso as figuras se erguem em tamanha dimensão,

à moda de outdoor, cuja estratégia é agigantar-se e ocupar espaço ante outros

anúncios.

Esta imagem, por sua vez, joga com os modos de construir a visibilidade. Isto

porque na análise do plano da expressão, surge a trama interna do desenho, re-

emoldurada pelo enquadramento fotográfico, que o identifica com códigos

desenhados nos muros. Há neles um sistema linguageiro segundo o qual mais de

uma pessoa se comunica, fazendo aparecer o pintor coletivo que presentifica no

público a sua gramática, passo-a-passo na rua. Mais do que isso, nele marca a

visualidade e visibilidade de sua arte plástica, deixando aos outros passantes, em

princípio, as formas em si.

A questão da ausência do corpo que estamos construindo (e até certo ponto

perseguindo) se inverte, porque não fizemos nada além de afirmar sua presença,

apontando diretamente para a face do pintor, este envolto pelo papel temático do

grafiteiro Hip Hop. Como foi salientado, o tempo de permanência diante da

imagem chama a atenção para o tempo de realização da obra num muro de grande

dimensão na cena pública. Esse tempo de então, do espaço lá, pode ser vivenciado

com o de agora, em cada traço que o enunciatário refaz junto ao artista, na rua por

onde passa.

Por fim, seja numa relação mais próxima ou mais distante do enunciatário, o

fotógrafo-enunciador utiliza-se do mecanismo de “encapsulamento” de imagem,

Page 79: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

81

do desenho dentro da foto, para projetar o elemento grafite de um interior para o

exterior do quadro. Se fazer mostrar, neste caso, é focar aquilo que o qualifica.

Já na foto 11 outro estilo de pintura é utilizado num pilar na vertical,

mostrado no primeiro plano, ao invés de um muro. No primeiro estilo analisado

predominam as qualidades plásticas enquanto, neste segundo, o traço é mais

figurativo. Nele lê-se as seguintes frases: “Rap é só para quem tem o dom e a

cultura das ruas. Incentivo você que saia da vida do crime e das drogas”. Ao lado,

o desenho de corpo sinuoso, em cores azul, onde está escrito “Zona Leste”, cáqui,

vermelho e branco, com um grande olho. A figura olha diretamente para o

enunciatário dirigindo-lhe as frases escritas ao lado, o que define, por assim dizer,

uma mensagem.

Dois elementos se reúnem para construir o texto: o rap, identificado pelo

verbal e o grafite, pelo visual. Em conjunto eles se completam e dão corpo e voz

para a figura no pilar, atribuindo movimentação ao Hip Hop. Apesar de não

adquirir formas humanas, a figura usa um mesmo sistema de linguagem ou os

mesmos recursos de uma linguagem mais compreensível, além de ser reforçada

pela fala direta e objetiva. De maneira mais explícita está criado o simulacro do

rapper e do grafiteiro, pois agora o enunciador traz o discurso do pensador que

aconselha e incentiva outros à mudança. Não seria a figura no pilar a caricatura do

homem que vê e sabe de tudo? Por intermédio de sujeito do saber, o rapper, a

figura adquire a função de porta-voz de uma crença ou de uma forma de pensar e

difundir idéias.

Passemos agora à análise do nível narrativo das frases, uma em decorrência

da outra, isso porque se percebe nesta construção um procedimento retórico,

baseado no recurso de elipse, que tem por função manter a pressuposição de uma

idéia que é retomada e já desenvolvida na outra, sendo esta uma relação causal que

dá seguimento ao discurso por economia de argumentação:

Page 80: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

82

1) “rap” é um actante sintático, o objeto de valor pretendido por quem deseja o

poder da fala;

2) “é só para quem tem” prescreve as modalidades do poder e do saber fazer,

que subentende um percurso de aquisição de competência, deixando bem claro

(“só”) que são poucos os privilegiados;

3) “o dom e a cultura das ruas”: a competência deve ser adquirida nas ruas.

Resta pouco o que fazer, então, a não ser esperar que o destinatário receba uma

doação, um sinal do destinador, dizendo-lhe escolhido por conseqüência de um

ato que julgue digno de “premiação”, e que pode ser apreendido na próxima

sentença.

4) “Incentivo você que saia da vida do crime e das drogas”. O tu, de quem

prevalece a imagem negativa, deverá sofrer, por isso, a manipulação por

provocação para mudança de estado e deixar de ser criminoso e drogado, como

um percurso de aquisição de competência em busca do objeto valor rap. Por essa

parte vemos que não há nada de divino naquela graça que vem das ruas porque

este também é um lugar de provação, aonde se encontra o crime e as drogas e que

cada um realiza a sua vida à sua própria sorte. Paradoxalmente lá está o dom e a

cultura que imprime ao sujeito necessidade de um fazer pragmático para se livrar

de seus males. O lugar “rua”, portanto, é também anti-destinador do pretendente e

mesmo assim, ou por causa disto, o fazer persuasivo do destinador agora

conhecido, o rapper, leva o destinatário a querer e a dever fazer algo seja rimando

ou desenhando na cena pública, construída no visual pelo céu, luz e sombra dando

a dimensão do espaço do pintor do ambiente ao ar livre, e no verbal pela palavra

“ruas”. Nesta fala destacam-se vários subtemas comuns ao discurso Hip Hop tais

como a luta contra as drogas, contra o crime, a questão pedagógica e questão da

superação, e mesmo a arte, sob a forma do verso e da pintura.

Page 81: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

83

Como o diálogo se estabelece face a face, percebemos que uma das estratégias

para confirmar o pacto de confiança é fazer conhecer o grau de comprometimento

do interlocutor com seu interlocutário (caracterizando debreagem interna em voz

direta), no que diz respeito ao seu papel didático nessa empreitada, convocando

um dado universo de identificação de um grupo suscetível diariamente às

desventuras da vida. Por isso há dois enunciatários possíveis: aquele para quem o

discurso influencia enquanto conselho sábio e aquele para quem o discurso parece

ser mensagem de um conhecedor da situação. Mas para ambos ele cria de si a

imagem do Mensageiro do Bem em oposição ao “o crime e as drogas”, estes

delegados do anti-sujeito vinculados ao Mal e, portanto, disfórico. O

aconselhamento quase catequizante deste sábio convoca o enunciatário a crer no

valor de sua pregação como verdadeiro, numa palavra, que rap é agente

transformador. Simultaneamente salta da figura um único e grande olho em quase

toda a cabeça para garantir pela menção imperativa, o discurso didático. Esse

olhar, vigilante, chega a repreender aqueles que se encontram na situação que

desaprova.

Pela articulação temática e figurativa está criado um ambiente social hostil no

qual o grupo se produz culturalmente, como alternativa aos sujeitos aí inseridos.

Na continuidade da cadeia isotópica essa questão recupera a figura do outsider

mostrado sincreticamente, no verbo-visual, pelo Rap e pelo grafite. Como dito

acima, estes elementos são textualmente recobertos um pelo outro (onde caberia

outra pesquisa para tratar da intertextualidade presente nas fotografias) e definem

a cena enunciativa em que a figura do olho, no papel de narrador e interlocutor, é

assumida pelo enunciador pressuposto, sem forma reconhecível, porém

compreensível, neste mundo que ele quer presentificar.

Page 82: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

84

A demarcação geográfica do lugar, “zona leste”, dá ao sujeito uma localização

que estabelece o jogo entre centro e periferia, fazendo aparecer este último como

lugar da fronteira entre o bem e o mal, ou dito de outro modo, lugar de salvação

ou de perdição, conforme a orientação de cada um. Pode-se depreender que a

figura no pilar já foi sancionada e ocupa o centro da atenção, pois é doadora da

mensagem e da experiência da vitória. Reafirmando seus valores, ela se dirige ao

enunciatário buscando seu olhar, incluindo-o na escuta. O grande olho afirma que

entre os dois existe a relação do ver ou da comunicação que implica o olhar o outro.

O fotógrafo, com isso, ali se projeta no olhar atento e presente.

Pela foto o enunciador pretende fazer ver a figura como portadora de um

dom e de valores que advêm de um universo particular de comunicação

concretizado pelo rap, que é o elemento do discurso verbal do Hip Hop. Se

retomarmos o percurso passional do sujeito, este já sancionado positivamente, ser

vitorioso e exemplar de seu mundo de acordo com a figura do mensageiro, vemos

a prática de um Hip Hop dotado de um poder e um saber ajudar. Assim, sua função

é salvar seu próximo pregando um saber superior calcado no discurso e,

principalmente, na crença de seu destinador como verdadeiro salvador. A

propósito, o auxílio ao próximo é o subtexto da fé, na isotopia da transformação

pela salvação.

Parece-nos que este auto-retrato por um simulacro do Hip Hop, como o

mensageiro no pilar, implica em colocar em discurso o próprio discurso do Hip Hop,

como descrito acima. A figura da enunciação recorre a uma pregação de uma

verdade do discurso e se faz mostrar através de um sincretismo de papéis,

actancial e actorial.

Rapper: sujeito da contemplação

Page 83: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

85

Tomemos as próximas imagens num encadeamento que permite circular

entre uma e outra mais ou menos livremente, com intuito de construir, pelos

elementos invariantes, a dominante temática da cena, tentando destacar o que pela

particularidade de cada um retoma-se o todo. Nelas, a figura humana utiliza um

microfone, próximo à boca, instrumento que acompanha o homem no palco para

se comunicar com a platéia.

Na primeira fotografia (12), o “falante” ocupa a porção esquerda da imagem

deixando, à direita, a platéia que o saúda. Colocado imediatamente atrás do cantor,

o fotógrafo enquadrou a cena dividindo-a em duas partes: a esquerda,

praticamente preenchida pelo cantor voltado, também para a esquerda, e a direita,

a maior parte da platéia, que olha em direção ao palco, onde está o fotógrafo.

Na foto 13 estar entre o público já é experiência familiar ao enunciatário. E

dizer isso é apontar um modo de proceder do enunciador para causar o

envolvimento do enunciatário e para transformá-lo num participante pressuposto

da cena fotográfica. O arranjo do enquadramento traça a relação entre o

enunciatário instalado no texto como um participante do evento e o cantor que

surge no meio dele. Em posição central na imagem, e colocado no plano superior

do quadro por sobre as cabeças do público, o cantor é destacado pela iluminação

que nele incide fortemente em tom avermelhado, formando uma aura ao seu redor.

A figura desse cantor, remete à cena anterior, à do mensageiro ou o simulacro

do rapper, também chamado MC (mestre de cerimônias) na cultura Hip Hop. Essa

figura que se ergue na vertical e que olha por sobre as cabeças cobertas pelos

bonés, é a presentifição de um poder e de um saber discursar mostrado em pleno

ato, ensinando o caminho para a salvação, revelando-se por sua paixão maior: fazer-

crer em si mesmo como o grande messias em presença e realizado.

Page 84: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

86

Visto de outra maneira, o predomínio da questão técnica traça um caminho

de olhar que estabelece as bases do sujeito que ocupa, nas alturas, o vértice

principal da triangulação da imagem, completado pelas duas outras cabeças na

base inferior dela. Existe a construção de um modo de ver e de se fazer mostrar da

enunciação que denuncia sua marca pela organização espacial da imagem

conforme o enquadramento, sugerindo a centralidade frontal da figura em

ascendência, deslocada dos demais. Ou melhor, pelo recurso fotográfico de

enquadramento e, sobretudo, pelo efeito da saturação avermelhada – comum

quando a foto captada sob iluminação cênica - a figura falante torna-se o resultado

de arranjo visual, que substitui a figura do mensageiro ao papel do rapper detentor

do discurso.

O fotógrafo, posicionado no meio do público, divide a imagem em planos: o

superior, onde dispõe o cantor, e o inferior, onde ele mesmo está, criando nesse

enquandramento um caminho para se chegar ao sujeito no palco. Por esse

procedimento consegue transformar um show de música numa cena de

contemplação, pela ascensão do olhar de baixo para o alto, do público para o

sujeito do poder e do saber.

De uma maneira geral, principalmente por estas duas últimas cenas, a

montagem de um simulacro do Hip Hop acontece por meio de intertextualidade de

elementos da prática Hip Hop, ou seja, uma foto de um acontecimento incorpora

outros, fazendo com que os elementos que caracterizam esse movimento coexistam

e se complementem no interior de uma mesma foto. Com isso, cria-se um efeito de

sentido de abrangência, como se todos os fotógrafos concordassem nesse tipo de

construção que circunscreve o universo Hip Hop pelos elementos que o compõem:

break, grafite, mc e dj; decorrem daí os simulacros do dançarino breaker, do pintor

grafiteiro, do cantor e músico de rap, atrelados a papéis temáticos distintos. Por

esse modo, os fotógrafos vêem-se no grupo do qual fazem parte, mostrando-se

Page 85: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

87

pelo papel social que desempenham, até a próxima cena, como imagem

convencionalizada na relação de pertencimento ao Hip Hop.

O corpo monta o estilo

No percurso das cenas pouco a pouco vemos instaurar-se a questão da

veridicção, de acordo com figuras que vêm sendo apresentadas, para construir o

discurso do sujeito Hip Hop sobre si mesmo. Imagens em meio a seu universo

cultural/artístico que invocam o seu ser como sujeito atuante, pensante,

questionador, comprometido com a voz da periferia, como mensageiro da

salvação, como poeta, que se realiza expressando no corpo as variações de sua

existência. A esses desempenhos outras competências se agregam e pressupõem a

imagem na ordem do parecer verdadeiro. Da mesma forma, o modo de se posicionar

dos sujeitos para a câmera, recupera a tradição de retrato que restitui a pose

segundo o desempenho simulado30, ou seja, de uma construção antecipada do

próprio sujeito a respeito de si mesmo ou de uma auto-avaliação perceptiva, por

instantânea que seja, da caracterização externa de uma pessoa que será vista pela

outra. Isso equivale dizer das condições de realização e montagem de sua aparência

como aquela que deseja ser conhecida e perpetuada para o futuro o que, via de

regra, vale o desejo de causar “boa” impressão dentro daquilo que se dispõe a

demonstrar.

A montagem da aparência, realizada por um modo de retratar mais

convencionalizado, reforça um determinado costume no mostrar-se por ordenar a

maneira de posar diante da câmera. Dele, do retratado, espera-se a mínima

correspondência consigo mesmo, justamente na relação do parecer ser quem

30 A.J. Greimas. “Os atuantes, os atores e as figuras” in ______Semiótica narrativa e textual. Trad. J. A.Durigam. São Paulo, EDUSP/Cultix, p.183.

Page 86: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

88

presumem que seja. Tratam-se de atributos que fazem da pose um modo de ser. As

imagens desta cena, então, produzem um efeito de verossimilhança que advém do

modo constitutivo do gestual e da vestimenta e que criam uma referência do ser

Hip Hopper.

Parados diante do fotógrafo, lado a lado, os actantes formam um grupo

eclético na forma de vestir, porém com um ponto comum quanto ao ornamento.

São correntes, bonés, penteados que qualificam esse corpo maior dado à exibição,

na pose para a foto onde montam um estilo. Afinal, a maneira de mostrar-se não

condiz com a forma de querer ser visto? A roupa larga, na figura da criança com

blusão preto e branco (foto 15), mostra a roupa como traço comum ao adulto, ao

jovem e à criança, de maneira que não importa a adequação do tamanho à pessoa,

importa que a roupa o inclua no grupo. Esta inclusão refere-se ao geral, ao coletivo,

sem classificação ou seriação. Porém, parece haver algo mais na relação dessa

roupa da criança, quando partimos para a foto 14, somado ao gestual que se repete.

Diante da câmera elas se amontoam e exageram na pose e no gesto da mão como

se sustentassem um troféu que atesta o pertencimento ao grupo adulto. O universo

infantil aí presente, pelo colorido das roupas, pelo tom brincalhão do menino de

blusa preta, configura o caráter de continuidade e também de tradição do Hip Hop

no sentido de que desde pequeno os valores vão sendo incorporados e

reproduzidos.

As crianças têm como papel mostrar que a união do grupo é, por certo, sólida

porque é resultado do investimento do tempo, que amadurece as relações e

perpetua valores. Por essa razão as crianças são abraçadas pelos adultos assim

como quem acolhe a cria. Recorrendo ao dito popular: “tal pai, tal filho”.

Fotografados, os actantes se propõem ao olhar de um outro, o fotógrafo, e

fazem disso um acontecimento para ser visto por todo seu repertório de exposição.

A proximidade entre ambos existe pela relação do olhar direto, um fitando o outro

Page 87: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

89

para construção da cena e do registro. Pois é isso que elas reforçam, a declaração

de sua presença num tempo e espaço documentado, em grupo, atualizado pelo

olhar do enunciatário. Diferente das duas primeiras fotos que trazem o sentido da

reunião pelo evento, estas últimas mostram que a reunião acontece porque

acontece o ato fotográfico.

Na última pose da cena (foto 16) o actante se coloca de costas para o fotógrafo

que enquadra e enfoca as palavras “Sou HIP HOP SIM!”, afirmadas

categoricamente. Elas parecem selar o pacto do sujeito com o grupo, sobretudo

pela exclamação que só faz aumentar a voz do interlocutor em seu percurso até

aqui. As letras maiúsculas e as serifas engrandecem e valorizam este corpo como

sujeito capaz de presentificar e recapitular todas as cenas. Destacadas pelo branco,

as palavras saltam das costas como brado vigoroso que, ao mesmo tempo em que

ganha o espaço, faz retornar para si mesmo a afirmação como ponto de

convergência das vozes reunidas.

O Hip Hop aí configurado se afirma como corpo coletivo no centro do mundo,

tal como as palavras cuidadosamente posicionadas no meio da imagem, frente e

verso, na cena pública. De frente para o enunciatário, o Hip Hop se enche de si para

se fazer mostrar integralmente, sem desvios, segundo uma convicção que responde

pelo excesso de ser o que é: o próprio Hip Hop, como “manda o figurino”. Essa

garantia é sustentada pelos procedimentos enunciativos que enlaçam a maneira de

fotografar, baseado no retrato posado e na iconicidade figurativa, para dar

veracidade a afirmação de pertença de um sujeito a um grupo sociocultural31.

31 Sobre estudos de retratos ver: E.Landowski, “Flagrantes delitos” in: Galáxia – Revista Transdiciplinar emComunicação. Semiótica e Cultura, nº 8, Trad. D. F. Cruz. São Paulo, EDUC, 2004. Landowski desenvolvereflexão muito rica ao nosso trabalho sobre tipos de retratos, sobretudo ao analisar a pose de figuras políticas.Nossa idéia de retrato posado aproxima-se ao conceito de retrato de função cosmética, desenvolvida peloautor, a partir da afirmação de que “aquilo com o que o sujeito ‘parece’ depende menos do ele ‘é’ que damaneira que ele é representado” (p. 41), isto é, que “empenha-se em fixar para a posteridade que seja ponto aponto conforme a uma norma sócio-estética de representação pré-definida” (p. 46”), evidentemente que naconjunção do seu olhar com os outros sobre si.

Page 88: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

90

Vemos que uma imagem mais íntima ou individualizada é negada em função de

um parecer de ordem mais geral, social ou convencional, do sujeito.

Consideramos com esta foto o desfecho da cena pública onde os retratos se

constroem pela reiteração de traços socialmente convencionalizados, que o grupo

mostra ao construí-lo por si mesmo, por intermédio de diversos fotógrafos em

momentos distintos. Seria, então, esta uma das estratégias de ganhar a visibilidade,

fazendo o Si significar pelas referências do Hip Hop ou pelo simulacro de um Hip

Hop? Optamos por analisar todas essas 15 fotos para dar idéia dos temas e da

predominância de um fazer do destinador/enunciador que pretende persuadir o

enunciatário/destinatário a aceitar que as fotografias constroem, até aqui, a

identidade do grupo tal como um Hip Hop. Portanto, estão implícitas questões de

reconhecimento e de pertencimento, para definir o grupo conforme um papel

social, ancorado pelas temáticas “mais explicitas” das práticas culturais do

Movimento.

A pose de si (verso privado): a família como sociabilidade

Mas o retrato, o que é? Busto, silhueta, efígie, desenho, pintura,

representação, fotografia, nos diz o Aurélio32. Outro dicionário33 nos responde

melhor: Figura! Greimas, ao estabelecer a correlação entre os verbetes figura,

figuratividade, figurativo, figurativização, discorre sobre uma questão muito

pertinente ao nosso trabalho, ou seja, o sentido figurado, que apostaremos renomeá-

lo de olhares figurados. O autor explica que figurativo e não-figurativo, é apenas um

modo variável do figurativo, sendo o figural, o constante. Assim o sentido figurado é

também uma variação do figural, sobretudo se o homologarmos ao quadrado

32 Dicionário Aurélio: Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira [s.d.], p. 1231.

Page 89: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

91

semiótico34, como ele mesmo propõe. Isso amplia a problemática acerca do auto-

retrato pois se todo retrato é constituição da predominância de valor e de tipo de

uma dimensão figurativa, então todas as cenas apresentadas durante o caminho

são apenas variações de uma mesma figura que se organizou mediante a

“negociação” do sentido próprio e do sentido figurado, colocando-se entre o

privado e o público.

Atualizando a questão: Como as figuras semânticas de um texto produzem

efeito de realidade? Primeiro, reconhecendo nas figuras, ainda segundo Greimas e

também como pudemos constatar, a aproximação do mundo natural (entendido

também como convencional) em relação a um contexto de fala, o que conduz a

credibilidade por questões temáticas enredadas por referencialização e iconização.

Neste trabalho, classificadas por figuras que se fazem mostrar. E segundo,

descobrindo na variação figurativa mais do que uma estratégia para fazer crer na

imagem apresentada para tornar visível o sujeito do discurso, existe a dimensão

sensível que fundamenta o grupo. Neste caso, o mostrar assume configuração

temática paralela, mas não alheia, ao universo Hip Hop.

As fotografias do bairro, da casa e de si, constituem-se como cenas do privado

e promovem, de imediato, um efeito de afastamento daquele universo fazendo

entrever outro tema da vida cotidiana.

O ambiente da casa apresentada nas fotografias (17, 18, 19, 20) não tem

acabamento nem por dentro nem por fora, as coisas são empilhadas, a fiação

elétrica está à mostra, e o lixo amontoado logo na porta de saída. Nelas, as pessoas

estão numa posição mais relaxada, mais à vontade, fazendo surgir o traço não visto

anteriormente da apresentação do lugar de vivência. Deste ponto de vista, o

retorno às fotografias anteriores é tido como necessário, pois a constituição do

33 A.J. Greimas e J. Courtés. Op. Cit.,. 1991, verbete figura, p. 112.34 Idem, p. 113.

Page 90: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

92

grupo, a partir do privado, o relaciona a um outro tipo de reunião caracterizada

pelo traço sócio-econômico de seu lugar de fala. Em decorrência, depreende-se a

existência de laços de amizade ou de parentesco que fundamenta um sentimento de

grupo.

No lugar de apresentação do sujeito que vinha construindo a sua visibilidade

predominantemente no espaço público, é inserido este outro que relativiza a

reunião ao ausentá-la de elementos do universo Hip Hop. Seríamos tentados a dizer

que está configurado um novo lugar de apresentação do grupo, quando, na

verdade, trata-se apenas da continuidade da primeira reunião, em menor

proporção, dada na intimidade. Nela, o sentido articula o efeito de cotidianidade e

de espontaneidade, cujo resultado é a expansão da credibilidade, pelo efeito de

realidade, de um tipo de sociabilidade do grupo reunido por laços fraternos.

Admitindo, em princípio, que esta foto incorpore um fazer persuasivo do

enunciador sobre o enunciatário, inclusive por levá-lo para dentro da casa,

devemos considerar que algo mais lhe escapa do controle ao introduzir a mudança

no caráter do texto, provocando, por assim dizer, o efeito de subjetividade parcial e

diferenciado se comparado à primeira reunião. É como se ele dissesse: “veja você,

caro enunciatário, como e onde se constrói nossa imagem, essa é a nossa casa e é

aqui que a união se justifica”. Esse novo olhar revela uma faceta não esperada da

intimidade do grupo, da vida em família, que amplia a condição de visibilidade do

sujeito num percurso que vai dos grandes locais dos eventos musicais, das

performances e da via urbana, para os espaços reduzidos, no encontro dos amigos

reunidos num espaço de partilha do grupo, seja por relação de vizinhança, seja por

amizade ou por proximidade sócio-econômica, ou ainda por afinidades de idéias e

crenças.

Percebemos a adequação da instância enunciativa ao partilhar um valor

comum aos sujeitos da comunicação: a casa, que resulta na aproximação de ambos.

Page 91: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

93

Afinal não seria essa também uma prova de confiança de ambos que concordam e

localizam cada qual o seu lugar de acolhida, das coisas e dos amigos, onde

poderiam viver a sua intimidade? Participar de um ambiente fraterno inscreve não

somente nesta, mas em todas as fotos anteriores, a aproximação de uma

particularidade do grupo. Contudo, a própria dimensão do privado é por si só um

efeito de privado. Isso talvez justificasse alguns momentos de aproximação

diferenciada em que não se trata apenas de se mostrar para o fotógrafo, que somos

nós pelos olhos dele, mas de senti-lo sinceramente porque afinal, ele ou nós, somos

mais um nesta construção.

Poderíamos ainda olhar de outro modo: a cena se desenrolar, antes, segundo

o regime da união para então combinar-se ao regime da junção. Pois, não seria essa

reunião mais reservada do grupo o contato em que cada um sente o seu semelhante

próximo o suficiente para reconhecer nele seu “parceiro” do cotidiano? Não seria

esse sentir junto à base de perpetuação do grupo pelo ajustamento recíproco de um

pelo outro na rotina do sujeito Hip Hop, que constrói em grupo sua intimidade

visível? Mesmo que essa reunião levante tal questionamento, a pose, como um

arranjo, inscreve o espaço do privado no interior da cena pública.

No entanto, é na intimidade, no interior da própria casa que o grupo se

define, antes mesmo de recorrer aos acessórios que revestem o corpo. O sentimento,

constituído como elo de ligação entre os sujeitos na cena privada do cotidiano,

determina a coesão do grupo na cena pública da reunião, do espetáculo e da

contemplação. Visto dessa forma, esta foto abre caminho para encadear a relação,

cena pública cena privada(espaço do privado)

objetividadesubjetividade

versus

Page 92: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

94

que confere ao Hip Hop a visibilidade pela combinação das figuras construídas

entre a cena pública e a cena privada, uma no verso da outra, para constituir a

imagem própria. Na dinâmica criada pelas figuras fica claro que a trajetória de

construção de uma identidade, pois já podemos tratar do assunto, é tão variável

quanto as maneiras pelas quais se apresentam, reforçando nossa opção de

privilegiar as múltiplas configurações discursivas em torno do personagem

principal, tendo em mente, assim, que as “realidades” são móveis e que os sujeitos

podem tornar-se outros a qualquer instante.

O Simulacro do Hip Hop: o auto-retrato como convenção

De acordo com o proposto, pudemos notar que a esse primeiro conjunto de

fotografias remonta figuras da cultura Hip Hop, muitas vezes ancorados por

emblemas mais estereotipados, de fácil identificação contextual do lugar de fala,

do sujeito enunciador. Para isso, diversos são os recursos, como podemos destacar

por figuras e temas, de presentificação do grupo, em que se destaca a apresentação

de práticas em grupo. Nesse sentido, o envolvimento do corpo ou a presença física

em ato, ou seja, figurativizado na imagem, é fundamental para compor a cena e

significar a construção visual do grupo como um simulacro do Hip Hop. Da mesma

forma, quando o corpo não está presente, há clara referência à marca do sujeito que

utiliza outros mecanismos de relacionar a imagem a um parecer simulacrado do

Hip Hop, pelo papel temático principalmente. No primeiro caso, observamos que o

enunciador se faz mostrar em presença como actante da fotografia; no segundo, se

faz mostrar, mesmo ausente, pelo olhar seletivo do fotógrafo que revela seu olhar

comprometido na construção do simulacro.

Page 93: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

95

2.2. Cena 2

O mostrar-se: a constituição do ser

Na cena anterior dissemos que as fotos que desenvolvem o tema do grafite

classificam-se por dois modos distintos de figurativização: um que revela a

presença física do pintor no ato da criação, figurativizando o enunciador que pelo

seu simulacro instalado no enunciado, e outro que traz a obra em si, o muro

grafitado, onde ausenta-se delegando a um terceiro a função de re-presentá-lo.

Cada modo correlaciona a maneira de fotografar pelo arranjo da pintura e, juntos,

apontam procedimentos distintos da instância da enunciação pressuposta. O modo

de olhar determina, portanto, o modo de mostrar.

O toque na presença

Dizer que as coisas têm sentido porque no caminho existem motivos que

embasam em algum nível esta significação é pertinente até quando ele mesmo, o

Page 94: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

96

sentido, deixa um pouco suas “razões” de lado para envolver outras coisas não tão

inteligíveis, em princípio. Dito de outro modo, quando o sentido é vivenciado. Por

esse outro modo, surge a cena em que o pintor (foto 21), em ato, é reconstituído

metonimicamente pela extensão do braço que atravessa diagonalmente todo o

enquadramento. Na mão, ele possui um spray ainda em ação.

A imagem é construída basicamente de planos que se separam e se misturam

tanto pela composição da cor quanto pela especificidade do recurso fotográfico,

que achata a imagem e limita a noção de profundidade. Frente e fundo passam a

fazer parte de um mesmo plano de visão, afirmando a bi-dimensionalidade da

fotografia em oposição ao efeito de tridimensionalidade e realidade, por

correlação. As partes do corpo (perna, braço e cabeça), posicionadas na porção

esquerda do quadro que corresponde a um primeiro plano, permite depreender a

figura do pintor por inteiro. Aqui as formas são mais embaçadas devido à

proximidade do fotógrafo ao fotografado. À direita da imagem, a mão traça formas

não identificadas no plano de fundo, este mais definido em relação ao primeiro

tanto pela distância da objetiva ao ponto de foco quanto pela presença do preto no

desenho que o contorna e define seus limites. O azul, presente em ambos os planos

em tons diferenciados, é cor predominante que permite o fácil deslocamento do

olhar pela superfície da imagem. Ele aproxima e circunda o bege da pele, sem

invadi-lo. Entre um plano e outro, entre desfoque e definição, entre pintor e

desenho, o olhar não pára de se deslocar.

Tal construção mostra duas possibilidades na realização da fotografia: grande

proximidade do fotógrafo ao seu objeto, o pintor e sua obra, ligeiramente colocado

à esquerda dele; e/ou uso de teleobjetiva, devido ao desfoque do primeiro plano e

achatamento do segundo. Nessas situações a distância mínima para que a imagem

ficasse completamente nítida foi ignorada tal como exigida pela especificidade

técnica da objetiva utilizada. A proximidade e o desfoque, conseqüentemente,

Page 95: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

97

poderiam ser interpretados como um procedimento enunciativo para causar o

efeito de proximidade entre os sujeitos da enunciação, este como estratégia para

envolver o enunciatário na criação, numa prática artística. Achamos inconsistente

essa possibilidade, pois não há nada a crer a não ser que de fato existe um pintor a

realizar sua obra. Preferimos primeiramente olhar de outro modo, sem invalidar a

proposição anterior pois voltaremos à ela.

Olharemos os sujeitos envolvidos por essa construção, e por ela colocados

face-a-face, como sujeitos que se unem e se ajustam pelo efeito de proximidade,

decorrente da deficiência ótica da objetiva, pelo fazer do fotógrafo. Nesse sentido,

está suprimido um espaço entre os sujeitos que passam a operar sua relação

comunicativa pelo visual, sem a mediação de um objeto de valor: o proponente do

olhar, via fotógrafo na posição em que se coloca, se une ao enunciatário para

realizar a obra junto ao pintor.

O pintor em ato faz voltar para o fotógrafo o próprio instante em que os dois

realizam suas práticas, pintura e fotografia, de modo que o observador se envolve

na imagem por um olhar que depende de todo corpo. O enquadramento enviesado

sugere uma leve torção da cabeça para encontrar o equilíbrio; sugere ajeitar-se em

relação ao pintor-actante, como se estivesse agachado, para facilitar na

visualização; e experimentar um pouco essa posição para realizar os traços no

muro. De repente esse instante, via fotográfico, é expandido numa ação do

observador que se descobre num fazer junto. O mostrar adquire um sentido de co-

presença de ambos, em que o sentido de tal encontro está justamente na

experiência do fazer, seja ela no nível de pura sensação do pintar, seja no fruir. Por

mais que todo um arranjo visual seja esteticamente pensado pelo fotógrafo seria

impossível para ele determinar, no instante da união, o sentido sentido. Ao olhar, o

co-produtor vai ao encontro do corpo.

Page 96: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

98

Isso significa que dois regimes de sentido podem combinar-se e enriquecer-se

mutuamente. Podemos admitir a existência de uma estratégia manipulatória para

fazer ver o pintor no ato de sua criação, mas há um algo na imagem que a torna

mais do que um resultado da composição. Por ela, o sentido não se esgota, ao

contrário, se expande e ganha outras maneiras de existir conforme o sentir das

formas experimentadas, vivenciadas. Como se naquilo cada olhar despertasse um

pintor, pelo regime da união. Na relação entre dois actantes, entre dois sujeitos, a

aproximação é aquela que garante a preservação das identidades, sem

transformação, sem destinador. A significação advém pelo instante inesperado em

que ao olhar as formas o sujeito se vê sensível e tocado pelo fazer do outro,

retomando cada traço e movimento. Existe, assim, um tipo de concomitância

temporal e espacial que torna pintura/pintor e fotografia/fotógrafo–observador

instâncias co-presentes, unidos pelo instantâneo fotográfico que gerou o

ajustamento, tal como define Landowski35, o toque entre ambos. Essa proximidade

é da ordem da reflexividade do “eu” sensível presentificado no discurso, pela

figura do artista.

Paralelamente, atendo-se à análise do arranjo plástico, são prontamente

identificadas duas categorias do plano da expressão, o embaçado e o nítido, que

delimitam, numa ordem mais geral, duas regiões da imagem divididas pela

diagonal, formando dois triângulos retângulos: canto direito acima e canto

esquerdo abaixo. Cada uma delas é definida pela massa corpórea do pintor e pelo

desenho, respectivamente. Na predominância do tom azul claro e o bege da pele,

sobra a parede crua, de cimento, e o instrumento branco com pequenos detalhes

vermelhos que irão se encontrar com o tom parecido na camiseta do pintor.

35 Sobre os regimes de sentido ver: E. Landowski. Passions sans nom. Essais de socio-sémiotique III. Paris,Presses Universitaires de France, 2004 , cap. II e VI;

Page 97: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

99

Pelas cores tem-se uma primeira categoria em termo complexo de contrastes36

dado predominantemente pelo azul, enquandrante, que por sua vez desdobra-se

em desfocado versus nítido, respectivamente a roupa e o desenho no muro; e o

bege, enquadrado, que compõe-se do claro da pele na perna do pintor e que vai

ligeiramente se focando em direção à mão, onde atinge o ponto de sombra.

Esquematicamente resultam as relações:

Bege = Braço, perna e mão d pele d enquadrada d central

claro versus sombra

Azul = Desenho, roupa d concreto, revestimento d enquadradante d periférico

nítido versus embaçado

Da pele humana nuançada pela luz que incide diferentemente sobre ela surge

a natureza, que parcialmente aparece revestida da cultura, pela bermuda e

camiseta e pelo grafismo. O braço desenha o gesto do pintor - e, tal como ele, nós

mesmos fazemos o gesto que abrange toda a imagem –, numa forma de “rubrica”

meio curva percorrida da direita à esquerda da trajetória diagonal, unindo e

separando as duas regiões pelo toque da arte que dá vida ao concreto, ao cinza dos

muros das cidades. Vida feita de cores e que anuncia um envolvimento mais

profundo do sujeito com a cidade que abriga o ato criador. Daí estabelecer-se, num

crescendo, algumas relações que cruzam, no limite, o sentido da arte em mostrar

que nas ocorrências da vida, nos mínimos elementos, no concreto morto da parede,

36 Para esta reflexão é importante ver: J-M Floch, Um Nu du Boubat, in ______ Petites Mythologies de l’Oeilet de l’Esprit: por une sémiotique plastique. Paris-Amsterdan, Hadès-Benjamins, 1985. Neste o autor elucidasobre as maneiras de abordar a semiótica dos contrastes plásticos pela forma fotográfica, do qual, inclusive,emprestamos as oposições de base modelado versus chapado para desenvolver nossa análise.

Page 98: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

100

existe a presença da alma pelo toque humano. Por essa razão, o homem traz pelas

suas mãos a própria cultura.

A partir dessa constatação encadeiam-se, também, outras relações acerca das

duas regiões da imagem que propiciam, num crescendo, igualmente a formação de

uma figura mediadora:

Pintor

/pele/ /roupa/(perna, braço e mão) (bermuda e camiseta)

/não-roupa/ /não-pele/(spray) (desenho)

Muro

Daí depreendem-se outros valores que vemos unir-se à constituição do gesto

criador:

concretodureza

estável/ inerte

morte vidaversus

pelesuavidade

instável/ animado

Neste último conjunto a arte mostra-se como um pulsar contínuo e

descontínuo da experiência humana com o mundo, onde os sentidos emanam da

Page 99: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

101

prática de sentir as coisas inertes como coisas pelas quais a vida se faz sentir,

sempre outra e renovada. O gesto artístico se constrói ali, na passagem entre o

notável e o ordinário, e “representa assim o resultado do processo de

figurativização de um tema onde é investida a organização abstrata do universo

coletivo, e constitui a figura de um objeto semanticamente definido como termo

complexo”37.

O resultado do recorte tão próximo revela a matéria de que é feita, nos

interstícios, nos detalhes, como imagens que sofrem tanta ampliação a ponto de

perderem sua identificação com o todo. Porém, o fotógrafo enquadra a mão no

flagrante da assinatura, em ato de produção. Ela conduz ao todo de que é feita, não

somente ao corpo, como dissemos, mas à situação sentida por quem se projeta e

experimenta um traço possível, num modo presencial. E se esse modo de vê-la

adquire sentido para nós é porque, nas palavras de Landowski

“já deixou de ser somente o que é (ou porque talvez nunca tenha se

reduzido a isso), pois para fazer sentido ao fazer imagem é preciso antes

de mais nada que, na extensão ou na duração, uma coisa se movimente,

no mínimo em relação à ela mesma”38.

Para concluir, dizemos que as cores, as linhas, o movimento, que conformam

o plano detalhe no grafite, junto a mão, funcionam como “operadores de sentido”

que “agem à maneira de modulações puras”, desencadeando outros tipos possíveis

de sentido, do estético ao estésico. A trama do grafismo solicita do corpo algo mais

do que um olhar cuidadoso e treinado, que apenas desvenda nela a existência de

37 J-M Floch, Op. Cit. pág 13.38 E. Landowski. “Modo de presença do visível”, In A. C. Oliveira (org). Semiótica Plástica. Trad. I. A. Silva.São Paulo, Hacker, 2004, p. 110.

Page 100: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

102

um discurso pensado e elaborado para envolver o enunciatário por estratégia

persuasiva.

O ângulo de recorte da imagem exige um envolvimento do olhar e do corpo

sem o qual é impossível perceber como o sujeito que se constrói no seu fazer.

Estamos diante de um outro modo de ver a imagem que implica necessariamente

numa transformação não esperada do sujeito frente a outro igualmente suscetível

de transformação, o visível, num caso de contágio por impressão39. Se ela traz

presentificado, como acreditamos, o sujeito no ato de seu traço significante é

porque a mediação deixou de separá-lo entre o então e o agora. Nesse particular,

podemos falar de um sujeito corporificado pelo sentir o outro, caso que, de outro

ponto de vista, poderia ser tomado por embreagem ou por “efeito de identificação”

entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, tempo do enunciado e tempo

da enunciação, espaço do enunciado e espaço da enunciação”40. Diferente disto,

estamos falando de formas inacabadas num presente sempre presente, que exigem

do corpo (antes) uma certa disposição para sentir o outro sem esperar inclusive

que desse contato surja algum sentido. Visamos compreender como a dimensão do

sensível se mostra ao sentido para construí-lo, enfim, por causa ou apesar da

plasticidade e da figuratividade que não se ordenam em consonância com a

percepção sensível: uma se move em relação a outra imersas numa dimensão

contínua que faz ser o sentido. Por essa razão a descrição (precária) da imagem

tenta recuperar um momento do vivido estésico41, como uma mudança no ato de ver

a imagem, sem a pretensão de querer dar conta do todo de sua significação.

Arriscamos, então redimensioná-la por este sentido sentido, ainda que à maneira de

39 E. Landowski, op.cit., 2004, p 1840 J. L. FIORIN. As Astúcias da Enunciação: as categorias da pessoa, espaço e tempo. São Paulo, Ática,1999, p. 50.41 E. Landowski. “De L’Imperfection: O livro do qual se fala” in A. J. Greimas. Da Imperfeição. Pref e trad.A. C. Oliveira. São Paulo, Hacker Editores, 2002, p. 149.

Page 101: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

103

um rascunho que se articula no âmbito da problemática geral da semiótica do

sensível, por procedimento de sensibilidade operado no contágio.

Figura Focal

O quadro geral das cenas desenvolve a hipótese da construção de uma

imagem do grupo, num percurso de interação do olhar entre o si que se mostra e o

outro que vê. Na foto 22 colocamo-nos diante de uma construção explícita do

sujeito que revela o instrumento de trabalho de que dispõe para aportar o modo de

construção de si. Nela, o discurso produz-se pela reintegração das cenas anteriores,

agora que seu produtor se faz mostrar pela encenação de si mesmo no texto

enunciado.

Na escuridão da imagem é possível ver traços de luzes coloridas, verde e

vermelha, e um brilho pontual na região inferior central, perto do qual muitos

braços se elevam. As poucas luzes fazem uma espécie de risco central dividindo a

foto em duas regiões, a superior, mais enegrecida, e a inferior, para onde elas

parecem apontar, ajudando a realçar o brilho prateado. Por essa organização o

objeto acaba se destacando, principalmente porque ali está localizado o ponto focal

da imagem. O brilho prateado, único corpo onde se dá a maior concentração e

reflexão de luz, transforma-se em máquina fotográfica do tipo digital doméstica42,

onde claramente podemos identificar o visor. Na composição o visor forma um

enquadramento interno àquele dado pelo recorte da fotografia e estabelece a

42 Em algumas fotos analisadas, inclusive nesta, notamos a especificidade técnica se imprimir à construção daimagem. Vemos a pixelização, o quadriculado da imagem em conseqüência da baixa resolução, comoevidência da natureza digital da fotografia, como dissemos caseira, cujas questões de qualidade de captaçãopouco interferem na importância do registro. Evidentemente que essas questões são relevantes na análise daconstituição plástica da fotografia, mas para o presente estudo nos atemos ao efeito de sentido que isso causa,do “feito por si mesmo”, com o instrumento disponível.

Page 102: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

104

imersão do olhar a partir de outro, que insere cena dentro de cena, num jogo

metalinguísitico.

A máquina fotográfica eleva-se por meio de um tripé formado pelos três

braços convergentes. Interessante notar que os vários braços erguidos aos lados

sugerem que vários são os participantes na constituição do ator coletivo, cujos

desdobramentos resultam em diversas figuras do olhar e, então, em vários auto-

retratos que pudemos classificar cada qual por um tipo de mostrar. Nesse ponto, a

intensidade luminosa faz o objeto saltar à vista transformando-o, por isso, em ator

do enunciado.

A localização central da máquina fotográfica interdefine, pelo conjunto ao

redor, do evento privado na cena pública como o espaço utópico da performance

do grupo, na qual desempenha seu papel actancial condicionado ao percurso de

aquisição de competência, e que determina a construção da imagem de si para os

outros segundo seu próprio olhar (seu fazer). A máquina fotográfica reitera pela

figura do fotógrafo-actante, atualizado e realizado, a marca do fotógrafo-

enunciador, duplicando na imagem a centralidade da enunciação e conferindo a

referência de si mesmo. Pela escassez luminosa o olhar é conduzido ao centro da

imagem e ao atingir a máquina, ponto de maior efeito luminoso, seu produtor

ganha corpo.

Nesse momento de análise percebemos engendrarem-se os desdobramentos

de um programa narrativo do sujeito enunciador, em plena performance e

competência ao mesmo tempo, baseado numa construção visual que reitera o

programa principal pelo programa de uso, especialmente pautado pela maneira de

mostrar o “mecanismo de produção do olhar”. Portanto já temos um percurso até

aqui, pela sintaxe narrativa, de um actante coletivo, delegado do grupo de São

Carlos, cujo trajeto de visibilidade está bem colocado e implica necessariamente o

olhar do narratário-enunciatário, para que esse possa ver (no sentido de

Page 103: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

105

compreender) a produção da cena como confirmação da presença de quem

“ilumina-se” para ser visto. Vemos que as condições criadas para dar a ver

(dispositivos de iluminação que enredam os de captação) garantem ser visto pela

maneira de se construir visualmente no interior da imagem, o que pressupõe o

desejo para tal. Quanto ao enunciatário, “sujeitos do ver”, há que se considerar

certa disponibilidade no olhar que o implica nessa relação como sujeito operador

do programa narrativo.

Conduzido pela máquina fotográfica o observador vê-se facilmente

“inserido” na montagem da cena, pela economia de recursos inclusive, que

promove a sensação de relação direta pelo actante que se faz mostrar. O destaque

dado ao objeto no centro da imagem cria o ponto de convergência do olhar,

repetindo na imagem o mecanismo de formação da visualidade da fotografia, ou

seja, da própria perspectiva. Tal arranjo, sobre-valoriza o “achado” como elo que

nos levará ao produtor implícito. A máquina fotográfica, na pele do fotógrafo,

cumpre o importante papel (adjuvante, segundo a gramática) para percepção do

sujeito do discurso lá no meio no povo a ser fotografado por nós. Com isso, os

olhares se fundem e o sujeito enunciador mostra em seu fazer o próprio

desempenho e afirmação da competência adquirida pelas modalidades do poder e

do saber fotografar, porque crê, quer e deve fazer-se ver como figura central da

encenação. Como conseqüência, a distância entre fotógrafo-enunciador e

fotografado se dilui pela implicação de ambos na imagem dentro da imagem,

revelada tal como aparência do “reflexo”, nos moldes de um auto-retrato.

Vemos emergir a dimensão passional desse sujeito por um desejo de

visibilidade, construída no centro do mundo, para que o outro possa conhecê-lo

por seu próprio fazer sobre si mesmo, a partir do conjunto de traços que o

caracterizam e que o definem como sujeito em si mesmo e, acima de tudo, sujeito

implicado pelo olhar do outro, este objeto modal se considerarmos que a

Page 104: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

106

expectativa do reconhecimento pode muitas vezes antecipar um momento de auto

definição de si. O desenvolvimento desta cena, então, remonta o programa geral de

construção de um objeto valor que o conjunto de imagens instiga questionar.

Afinal, o que move esse querer-se tornar visível para si mesmo e para os outros, que

neste ponto desvela o próprio ato fotográfico no mecanismo da enunciação?

Paralelamente podemos identificar, no instante da realização da imagem, que

o fotografar junto é tanto conseqüência de uma modalização do sujeito quanto de

uma ação intersomática dos fazeres colocados em relação. Isto é, porque se trata de

uma experiência cotidiana, logo os corpos se sentem nessa experiência comum de

fotografar, de enquadrar através do visor e, por decorrência, de se tornarem todos

produtores da imagem. No ajustamento, ambos mantém-se autônomos porém

operantes na e pela presença do outro, em sincronia com seu parceiro. Dizemos,

então, que o sentido primeiro nasce desse sentir somático, co-presente, ainda que

encontre seus desdobramentos no fazer persuasivo e interpretativo dos actantes da

narrativa, até porque essa é a orientação geral conforme pressuposição da

pesquisa.

Junto ao pintor, esse fazer-se visível equivale ao ver-se a si mesmo como

sujeito do seu próprio olhar, numa relação de intimidade consigo mesmo, diferente

daquela em que a intimidade se dava em relação à reunião do grupo. Sem querer

fazer o outro crer que é ele mesmo, fotógrafo, que está presentificado, é ele que, na

interação com o outro, encontra-se como ator ao implicar-se na vivência dele

enquanto pura imagem. Sem a pose de outrora, sem a “armadura” vestimentar,

sem as vozes impressas, mostrar-se é ver a si mesmo e conhecer-se como um eu

individualizado, criando o efeito de sentido de ser, de transparência do mostrar

por si mesmo. Nesse sentido, esta foto coloca-se na transição, no ajustamento de

olhares que constituem o “eu” sensível pela figurativização da sua presença.

Page 105: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

107

2.3. Cena 3

Mostrar-se conforme si mesmo

Pela fotografia 23 o cantor é construído por outra maneira de se ver,

fotograficamente, para a constituição do sentido. Olhando e apontando

diretamente para o fotógrafo ele determina a maneira pela qual quer ser visto,

mostrando-se por todo seu repertório corporal, pela mão em ação, com o

microfone elevado à boca. No entanto, a relação de um tempo presente que a

imagem dá a ver é a mesma que torna a proposição do cantor um reflexo do ato

imprevisto, pelo efeito de acaso. A mão destacada em vermelho reforça o efeito de

movimento súbito ao mesmo tempo que estabelece a contato eu-tu da enunciação.

Nesse arranjo, a mão atua como dêitico, conforme explica J. L. Fiorin, cuja

interpretação ocorre por “referência à situação enunciativa, pressuposta ou

explicitada no texto pelo narrador”43. Torna-se, por assim dizer, o centro de

referência da enunciação e serve de base para a constituição do espaço e do tempo

discursivos, que estabelecem o face-a-face deste tipo de mostrar diretamente com o

fotógrafo-enunciatário.

43 J. L. Fiorin.(1996). As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo, Ática,1996, p. 56.

Page 106: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

108

Como conseqüência, a mão reveste-se de uma autoridade que funciona na

inversão da realização da foto, se mostrando por um olhar auto-refletido quando

chama para si a sua realização. Nessa perspectiva, o olhar de um somente se

constitui pelo do outro em sintonia, como partícipes na construção. É no instante

do cruzamento dos olhares que fotógrafo, nós, e cantor fazem-se, um para o outro,

pura imagem, capturados mutuamente nessa co-presença.

Na relação face a face, o eu-tu enreda o mostrar-se por um tempo único dess a

percepção partilhada - tendo pouco a dizer do universo Hip Hop - por uma situação

do instante fotográfico em que os actantes se mostram como um qualquer, ou seja,

um sujeito num mundo de imagem que por ela se realiza, comunicando-se (vendo)

e sentindo (percebendo) a si mesmo e ao outro. O que importa aqui é construção

de um “eu próprio” instalado na imagem, criando efeito de sentido do ser

particularizado, opondo-se ao parecer Hip Hop de antes. Este auto-retrato aproxima

o sujeito, e seu fazer, de um olhar subjetivo, revelando uma espécie de

individualização do fotografado e, por implicação, do fotógrafo, porque ambos se

relacionam, mesmo que por acaso, francamente.

Isso posto, não se tratam mais de sujeitos da enunciação que se projetam um

no outro por meio de fazeres distintos, sendo: um, empenhando-se na conquista do

olhar do outro por meio de seu fazer persuasivo, e outro, aderindo a um caminho

de ação, estabelecido a partir de um contrato que lhe promete render algum

“retorno” de ordem cognitiva ou pragmática por parte do primeiro, conforme o

regime da junção. Ao contrário, trata-se de um modo de mostrar-se junto com o

outro, na interação que faz surgir o sentido pela aproximação não planejada pelos

sujeitos, pelo acaso desse encontro, na captura mútua dos olhares. Algo os faz

agirem juntos.

Após a trajetória quase obstinada do enunciador para reunir provas e

argumentos que lhe dêem um pouco de si mesmo como um ser Hip Hop, mas

Page 107: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

109

sobretudo um pouco que seja para o outro, na cena 1, vemos surgir uma relação

diferenciada entre os actantes da comunicação. O deslocamento do regime de

sentido faz sentir os gestos significantes, apreensíveis somente em ato, subvertendo

o sujeito, no mínimo, em relação a ele mesmo, liberto de seu posto de persuasão e

totalmente implicado na interação sujeito-sujeito. Mais do que em qualquer outra

passagem o sentido nasce pelas mãos de sujeitos autônomos e interdependes, “co-

enunciadores”44 e co-presentes.

Por essas breves considerações lançadas na cena, o enunciatário deixa uma

trajetória de re-conhecimento do enunciado para experimentar conhecer os sujeitos

em si por si mesmos, sem perder de vista o seu outro aproximado pelo sentido

sensível, pois como afirma Ana Claudia de Oliveira, “a sua cognição advém do

modo desse operar e esse é um dos caminhos para a sua interpretação”45.

44 E. Landowski, op. cit., 2004, p.02.45 A. C. Oliveira. “A estesia como condição do estético” In A. C. Oliveira e E.Landowski (eds.). DoInteligível ao Sensível: Em torno da obra de Algirdas Julien Greimas. São Paulo, 1995, p. 233.

Page 108: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

110

2.4. Cena 4

Pose de si no verso público:

Rumo à sublimação

Se é dado comum que às vezes as pessoas são identificadas por uma marca

própria, não seria demais apontar esta imagem como marca de maior adequação

entre uma imagem construída pelo grupo e outra, pela qual se afirmam, do

próprio Hip Hop. Esta última fotografia (24) configura emblematicamente o Hip

Hop levado aos programas de televisão, às revistas, às capas de cds, ou seja,

totalmente constituído para se fazer mostrar por um papel mais próximo possível

do “ser” Hip Hop. Pelo emblema está garantida a continuidade ou a repetição de

um modo de mostrar o grupo, que se constrói pelo modelo.

Page 109: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

111

Nela (foto 24) os jovens sustentam uma expressão séria e encaram o fotógrafo

com firmeza, olhando-o de cima. Em pé ou sentados se distribuem regularmente

no espaço numa disposição cujo afunilamento verticalizado da imagem gera a

sensação de corpo coeso e fechado em si mesmo. Quatro jovens negros, um deles

com seu rosto oculto pela falta de exposição luminosa, dispõem-se ao olhar do

outro prontos a assumir pelo grupo uma “postura” geral, que reúne pose e

indumentária num estilo de ser Hip Hop já visto anteriormente. Há nesta fotografia

a reafirmação do grupo pelo viés de uma cultura que tem modos de se organizar

no verbal, no visual, no corporal, para colocar-se na dimensão identitária do

discurso fundador, do destinador Hip Hop.

Visto que o estilo, ou propriamente o modo de vestir, admite entre outras

coisas determinada coerção do sujeito em relação ao padrão do grupo podemos

pensar que essa incorporação, uma vez instituída, também resulta numa

adequação do grupo ao novo para manter-se enquanto tal. Quer dizer que se esta é

uma imagem emblemática, desencadeada por um espelhamento a um ideal que se

pretende alcançar ou parecer, os sujeitos que constroem visualmente por ela

continuam a instituir o programa no mostrar-se conforme um padrão.

Inquestionavelmente os sujeitos se reproduzem como sujeitos do Hip Hop pela

imagem que os guia. Por isso, todos os elementos são montados para tal.

À direita do quadro, posiciona-se o sujeito de blusão de moletom amarelo

claro com capuz cobrindo a cabeça que mal permite ver sua face, calça larga,

alguns números a mais de sua medida. Outro sentado à esquerda, além do

bermudão e camiseta, usa o tênis de basquete46 e mostra o cumprimento Hip Hop

46 Sobre isso têm crescido no Brasil os chamados campeonatos de basquetes de rua em que o esporte sedesenrola ao som do rap, tocado e cantado ao vivo pelos dj’s e mc’s, respectivamente. Há nesses eventos umagrande concentração de jovens participantes da cultura Hip Hop que no decorrer das partidas, dançam, cantame fazem grafismos. Elegem o basquete tanto para a prática do esporte como também a reunião onde a culturaacontece. Ainda nos parece relevante perceber que o basquete nos EUA possui o mesmo status que o futebolno Brasil, porém, ao contrário daqui, é um esporte freqüentado pela elite (dado o preço dos ingressos e o

Page 110: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

112

nas mãos. A mulher, pouco presente nas cenas, repete o traço masculino no

semblante e se confunde com os demais. Tal pose remonta a imagem do “mano”,

imagem da qual já falamos, amplamente divulgada por revistas e sites47

especializados na divulgação e organização do Movimento Hip Hop e que

estabelecem estreita relação com ao estilo vestimentar e postural do Hip Hopper

difundida por meio da fotografia. Trata-se da caracterização de um modo de se

apresentar comum, baseado num segmento de moda cujos modelos estão

alicerçados pelos ídolos, sobretudo do rap. Este auto-retrato traz à tona a questão

da visibilidade conforme o modelo, construindo uma imagem do grupo por

anulação e ali perpetuam.

Predomina, por fim, um imaginário sobre o grupo, concretizado pela pose e

que encontra respaldo num padrão de mostrar o outro que só tem razão de ser se

olhado de tal forma. No panorama geral das cenas esta pose produz um efeito de

sentido de autenticidade e de fidúcia em si mesmo pela postura auto-centrada,

cristalizada pela repetição de valores do destinador. Gesto (pelos actantes) e olhar

(pelo fotógrafo) estão automatizados na construção da imagem. A complexidade

deste retrato se apóia na maneira de tornar visível essa relação refratária, quer

dizer, de mostrar o sujeito anulando-o e objetivando-o pela mesmidade. O retrato

oposto, relembrando, é constituído da imagem chamada aleatória e que se

aproxima do sujeito pelo caráter individual da foto e pelo efeito de subjetividade,

como a do falante encontrado há pouco.

Na presente cena, a fotografia feita por um “olhar de dentro” resulta no

desejo de ser o Hip Hop cristalizado pelo arranjo fotográfico. No entanto, este lugar,

acesso aos espectadores, uma vez que lá o espaço do evento restringe-se a pequenos ginásios e aqui ostorcedores têm acesso a estádios monumentais). Mas, em comum com o futebol, o basquete torna-se a portade acesso ao pobre e negro ao mundo, que não lhes pertence, desta elite que consome e mantém o esporte,inclusive o mundo da cultura instituída, uma vez que muitos negros de baixo poder aquisitivo só detém odireito à universidade graças às bolsas de estudos cedidas a jogadores de basquete.

Page 111: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

113

porque ideal, não é ocupado pelo grupo: lá os sujeitos seriam pura sublimação. Na

impossibilidade de realização do ideal, esta foto mostra o sujeito rumo a ele,

reafirmando-o. Por isso, depreende-se um sujeito cristalizado na fotografia, pelo

excesso de coesão da imagem, numa relação de transitividade da pose

padronizada do Hip Hop para outros, na esfera de sua maior publicização:

simulacro do simulacro.

47 Para citar alguns mais conhecidos: Real Hip Hop, Hip Hop Br, Inforum HH, Epidemia urbana, Viva Favela,Hip Hop Ativo, Bocada Forte, Posse digital.

Page 112: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

115

Capítulo IIICapítulo III

Page 113: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E
Page 114: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

117

A instância identitária: entre o si e os outros

As cenas mostram a construção de um grupo Hip Hop que, a partir das figuras

montadas, apresentam-se em práticas cotidianas. Nesse percurso, o conjunto

fotográfico na cena 1 é, sem dúvida, predominante, fazendo ver que existe um

exagero para manter a coesão desse tipo de retrato, ao passo que nas cenas 3 e 4

esse número se reduz a uma foto. No entanto, frente ao largo exemplário, essa

redução se torna importante na construção visual, uma vez dessa relação obtém-se

a oposição de base. Institui-se, assim, a partir das cenas 3 e 4, o auto-retrato de

descontinuidade do simulacro Hip Hop em relação ao auto-retrato de máxima

representação do simulacro Hip Hop, pela continuidade, respectivamente.

Nestas, surgem imagens de um grupo que podem ser entendidas como

universos textuais orientados por efeito de maior subjetividade e por efeito de

maior objetividade, a partir da disposição do querer ser visto, já anteriormente

exposto pelo termo mostrar-se, conforme os auto-retratos construídos. Passaremos,

aqui, a denominar por caráter subjetal os auto-retratos de maior subjetividade e

objetal os de maior objetividade, termos estes emprestados de Oliveira em seu

texto Semiótica e Moda: por um estudo da identidade48, em razão da importante

reflexão que apresenta sobre a interdefinição sujeito e prática cultural, no caso a

moda, e da relação desta com as implicações na formação da identidade.

Ao discorrer sobre as configurações identitárias do sujeito, na interação que

este mantém com a moda, Oliveira aponta para a possibilidade de o sujeito “ousar

ser um ser diferente de si, ou ousar se manter ele mesmo”, relacionando-se a

visibilidade do sujeito com seu modo de presença no mundo. Nessa relação, a

moda deixa de ser uma relação abstrata em si mesma, um conceito, para ser “de

48 A.C. de Oliveira . Semiótica e Moda: Por um estudo da identidade. CD-Rom I. Congresso Brasileiro deModa. Ribeirão Preto: Moura Lacerda, 14 e 15 de setembro de 2005.

Page 115: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

118

modas”49, isto é, constrói-se em função dos “modos de ser e de existir que se

enovelam acompanhando os modos de vida”50. A moda, na visão da autora, se dá a

ver conforme a complexidade do sujeito frente a si mesmo e às circunstâncias

dinâmicas da vida. Nessa perspectiva, então, propõe um diagrama com quatro

disposições decorrentes dos tipos de se vestir, apresentando, de um lado, o vestir-

se para si, subjetalmente, e de outro, na relação de contradição, o vestir-se pela

roupa, objetalmente51. Inspirados nesta contradição de base propomos a orientação

inicial das relações do mostrar-se:

Mostrar-se em função do ser Mostrar-se em função do estar

Sujetal Objetal

Segundo a afirmativa de que as cenas combinam modos de produzir o

visível, estruturam-se dois caminhos paralelos e interdependentes encadeados por

caráter subjetal ou objetal: por um lado, do conhecimento do grupo pela construção

do si nas imagens, desencadeado por efeito de reflexividade; e, de outro, do

reconhecimento do grupo baseado na imagem do Hip Hop por parte do “outro”, o

que não pertence ao grupo, fundado na relação de transitividade – conforme as

indicações do primeiro capítulo. No primeiro caso, se mostra por auto-

referencialidade, instituindo o dissenso entre o olhar padronizado e o contingente

e, no segundo, o grupo se faz mostrar nas fotografias pela construção de papéis

sociais, por convenção (adequação ou consenso) de uma imagem. Disso decorrem

efeitos de personalização e de pertencimento, respectivamente, do grupo de

fotógrafos envolvidos na pesquisa e que, por sua vez, que se incluem ou não sua

49 Idem, p 5.50 Ibidem, p.551 As outras posições estruturam na relação de contrariedade o vestir com fins práticos e, por fim, na negaçãodeste, vestir-se com fins simbólicos, p. 7.

Page 116: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

119

imagem no movimento Hip Hop. Poderíamos pensar que a estratégia enunciativa

identificada no processo de análise, pontualmente, está de acordo ou em desacordo

com o pressuposto geral e inicial de coesão do discurso, ou seja, mais ou menos

próximo do parecer do grupo ao simulacro do Hip Hop.

A partir dos procedimentos de debreagem e embreagem (actorial, espacial e

temporal), pudemos acompanhar como tais componentes do texto instalavam o

sujeito da enunciação nas diferentes cenas, resultando, portanto, em diferentes

efeitos de sentido. Em correspondência à gramática narrativa, que tem como

princípio geral o percurso narrativo do grupo na aquisição de competências para

construir a imagem de si, papéis actancias e papéis temáticos se combinam e

definem a constituição identitária dos sujeitos do olhar em relação ao destinador

pressuposto Hip Hop, implícito no texto. No nível mais concreto do discurso, essas

relações apontam para diferentes regimes de sentido a partir dos diferentes

regimes de interação entre os sujeitos.

3.1. Regimes de interação homologando regimes de sentido

Os estudos de Landowski, em particular nas publicações Do Inteligível ao

Sensível (1995) e Passions sans nom (2004), apresentam importantes

desenvolvimentos da teoria sociossemiótica que, cada vez mais, se inclinam à

investigação da dimensão sensível da significação. Concomitantemente, as

reflexões sobre interação ganharam na sua complexificação tipológica, regimes que

as reúnem pelos procedimentos de suas construções. A correlação entre os regimes

de interação e regimes de sentido foi o passo decisivo para Landowski enfechar

num modelo de análise do social à sua sociossemiótica. Nas últimas pesquisas

mostra o autor que as maneiras de olhar os objetos apresentam problemáticas mais

Page 117: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

120

implicativas do sujeito do olhar, quando essas se enveredam pelas práticas

cotidianas incluindo as componentes estéticas e estésicas. Se de um lado vimos se

concretizar todo um arcabouço metodológico da gramática narrativa dos anos 60,

via regime de junção, por outro acompanhamos novas perspectivas de análise,

partindo de objetos textuais até chegar à semiótica das situações, na qual não se

considera a estruturação do sentido pelo percurso de busca de um objeto de valor,

mas pela própria relação dos sujeitos corporal, intersomática na interação. Assim,

além dos procedimentos de manipulação e programação, os estudos atuais do

fazer dos efeitos de sentidos consideram a construção da significação também

pelos procedimentos de ajustamento e do acidente. O diagrama a seguir sintetiza

sua reflexão:

DIAGRAMA I

1O contínuo:uma sucessão

monótona regida pelanecessidade.

Efeito de sentido:excesso de coesão:a dessemantização

(a rotina)

3O descontínuo: uma sucessão

caótica regida peloacaso.

Efeito de sentido:excesso dedispersão: oinsensato

(os acidentes)

4O não descontínuo:uma sucessão nãocaótica regida pelo

não aleatório, i.e., poruma ordem.

Efeito de sentido:A harmonia

2O não contínuo:uma sucessão não

monótona regida pelonão necessário, i.e.,pelas escolhas.

Efeito de sentido:

Modelo catastrofista.(Da Imperfeição, 1a. parte, e Semiótica das paixões)

Page 118: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

121

O esquema proposto por Landowski52 distingue os quatro regimes,

pontuando suas principais diferenças, a partir das categorias: continuidade /

descontinuidade, inteligível / sensível, segurança / risco, respectivamente, situadas

de início nas dêixis negativa e positiva do quadrado semiótico, sabendo que essas

posições se definem em função do que o texto analisado constrói, cabendo às vezes

a mudança dessa orientação geral quando encadeada às outras relações

diagramáticas (diagrama III).

O regime de programação, marcado pela continuidade, tem no sujeito um

comportamento regular, sem surpresas, pela repetição do papel temático que de

antemão o define diante de uma narratividade reprisada e orientada pela

expectativa inteligível. Pela não transformação de identidade classificamos aqui o

auto-retrato sublimado, da cena 4.

Pelo regime de manipulação está previsto transformação do sujeito de estado,

em decorrência da conjunção ou disjunção com o objeto valor (S1#S2) e,

consequentemente de mudança identitária. A competência cognitiva pelas

modalizações de saber e poder orienta a construção de um papel temático inscrito

Duas formas de emergência dosentido

Modelo construtivista.(Da Imperfeição, 2a. parte)

Page 119: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

122

na transformação. Esse regime como implicação do anterior corresponde, no

quadrado lógico, ao sub-contrário não descontínuo. Nessa posição, toda a cena 1

constrói o simulacro de um Hip Hop pelos papéis temáticos desenvolvimentos na

narratividade.

Ambos os regimes, localizados na deixes esquerda do quadrado, consideram

a relação entre três actantes, sujeitos 1 e 2, e o objeto que faz a mediação entre eles,

seja este tido como elemento propulsor da transformação, ou como elemento de

reafirmação.

Em oposição à programação, o regime do acidente é aquele em que se assume

o risco total dos acontecimentos sem regras e que são movidos pela aleatoriedade,

a incerteza e o caótico. O efeito de sentido se dá a partir do encontro do sujeito com

o objeto ou com outro sujeito, portanto entre dois actantes, o que significa a

prioridade da dimensão sensível do sentido. Em relação de descontinuidade, aqui

se instala a cena 3 de nossa análise.

O ajustamento acontece no encontro direto entre os sujeitos, no que se destaca

o componente somático promovido pelos efeitos de sentido da interação operados

pelos sentidos, e em especial, para nós, a visão, mas não só pois há um cinetismo,

uma proxêmica movendo o olhar. Um sente o sentir do outro e desse contato o

sentido se faz presente da e na relação entre ambos. A cena 2 ocupa essa posição no

esquema.

Esses dois últimos regimes se posicionam na dêixis direita do quadrado

semiótico e mostram a construção da identidade do grupo em busca de uma

personalização da imagem do sujeito (descontinuidade em relação ao pressuposto)

52 E. Landowski. Passions sans nom – essais de sócio-sémiotique III. Paris, Presses Universitaires de France, 2004.(Formes sémiotiques) p. 51. (Tradução nossa, apenas para o presente trabalho)

Page 120: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

123

e não, como na relação oposta, de padronização (continuidade e afirmação do

pressuposto).

Utilizaremos esse modelo para correlacionar os regimes de interação com a

construção identitária do grupo, adequando as posições deste às disposições

construídas pelas cenas. Admitindo que tais regimes apresentam-se em estreita

relação com os modos de mostrar-se, cada qual correspondente a um auto-retrato,

vemos suas implicações quanto aos efeitos de identidade individual e social em

relação ao simulacro Hip Hop referente.

3.2. Regimes do mostrar, modos de retratar: O ser como efeito de

sentido

Feitas as considerações sobre regimes de sentido e de interação, esquematizam-

se os seguintes diagramas baseado em duas relações básicas do regime do mostrar-

se: a do ser rumo a uma imagem de subjetividade e a do ser rumo a uma imagem

de objetividade, que podem ser remontadas pelas quatro cenas correspondentes,

cada qual a um auto-retrato, conforme proposto no diagrama II, da próxima

página.

A tipologia dos auto-retratos apresenta modos dos sujeitos olharem para si

mesmos, ora mostrando-se para um outro externo ao grupo, ora mostrando-se

para si mesmo e para um outro interno ao grupo do qual faz parte. Vemos, então,

que a idéia de refração mantém-se em consonância com um retrato objetal, porque

prevalecem características e valores convencionalizados pelo grupo por uma

espécie de coerção do discurso fundador para parecer ser um Hip Hop, ou seja,

para estar conforme uma projeção idealizada da imagem do Movimento. Em

relação oposta, temos a revelação de um si que ancora valores de uma dimensão,

Page 121: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

124

digamos, mais subjetal, próximo à idéia de individualização, em que o

conhecimento do sujeito retratado está em sintonia com um modo de ser alheio à

convenção ou pelo menos distante dos padrões construídos nas cenas 1 e

sublimados na cena 4. Assim, temos:

DIAGRAMA II

Page 122: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

125

Conhecimento do que é - reconhecimento pelas imagens do que é

Objetalconsenso

Subjetaldissenso

ser por si conforme si mesmo ser conforme Hip Hop idealizadoimagem sublimada

Auto-proposição na imagemconstrução conjunta

ser conforme focalização do eu

conhecimento do eu sensível

na sua própria constituição

cena 2

Cena 3 posição vazia

Cen

a 4

Ser conforme papel social

reconhecimento de seu simulacro

pelo desempenho: dançando, cantando,

grafitando, pela vestimenta, pelo gestual

Mostrar-se em função do ser

Relação de transitividadeRelação de reflexividade

Fazer-se mostrar em função do estar/parecer

Imagem do instantâneo Imagem da montagem/arranjo

Maior presença do individual Maior presença do grupo

Revelação de si Refração de si

Pertencim

ento a um grupo social/cultural

Per

sona

lizaç

ão

Ser Estar

Se fazer MostrarMostrar-se

transparência de si Ocultamento de si

Cena 1

Page 123: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

126

A relação entre os dois diagramas apresentados até aqui se combinam de

forma a problematizar a dimensão identitária do grupo. O primeiro diagrama, por

conta disso, se adequa ao segundo para reunir valores construídos por cada auto-

retrato, como veremos a seguir na apresentação de cada tipo.

3.2.1. Identidade individual assimilada e social excluída

Como conseqüência o retratar-se subjetalmente mostra o sujeito pelas

imagens do que é, criando o efeito de individualidade atrelado à construção de um

instante, em que ele se propõe na imagem como construção conjunta ao outro que

vê. Nesse eixo um tipo de retrato se aproxima da vivência dos sujeitos instalados

no texto fotográfico, como se esta forma de mostrar a face transgredisse todo o

arranjo do simulacro Hip Hop, para cair num acidente do fazer pelo qual advém o

sentido. Nessa perspectiva o sentido é construído pela relação incerta ou aleatória

que os sujeitos mantêm no olhar: a imagem pode mostrar qualquer coisa ou coisa

nenhuma, por si só um componente de risco, pois o operador de sentido está na

dimensão do sensível. Logo, o efeito de subjetividade é ancorado pelo ver-se a si

mesmo, a ponto de construir outros mundos possíveis que não aquele implícito do

grupo de integrantes do Hip Hop, nem sequer para o enunciatário de antes. A idéia

de revelação do ser pelo ato fotográfico torna os actantes da comunicação

autônomos e dessemelhantes, tão diversos quantos forem os olhares possíveis.

3.1.2. Identidade individual ocultada e social admitida

Contrariamente, para configurar o retrato Hip Hop pela construção de uma

prática relativa a tal contexto, o arranjo da cena se impõe à constituição do sentido

Page 124: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

127

mais que a relação do instante em que ela se dá a ver. A questão temática torna-se

fundamental pela encenação do dançar, do reunir, do grafitar, do falar, como pode

ser visto em toda primeira parte da análise, elementos que tem por função ocultar

o sujeito ao mostrá-lo pelo papel social que desempenha em razão do papel

temático do breaker, do grafiteiro e do rapper. Neste caso, fazer-se ver como um Hip

Hop é se fazer mostrar por elementos que caracterizam objetos de valor, ora

associados às modalizações do saber, do poder, do dever e do querer mostrar-se,

guiados por um valor de visibilidade do grupo pelo simulacro Hip Hop. A

identificação desse sentido é coincidente à identificação das estratégias

manipulatórias para içar o reconhecimento do enunciatário, notado por um

crescente efeito de proximidade, de um olhar panorâmico para um olhar face-a-

face. Isso quer dizer que o regime de sentido está na ordem da junção, dado a

predominância da dimensão cognitiva desse fazer para sanção de imagem do

grupo tal qual um Hip Hop.

3.2.3. Identidade individual segregada e social assimilada

Já numa relação oposta ao olhar aleatório, o retratar-se objetalmente apresenta

um eixo de relação do sentido em que o sujeito está totalmente dado ao

reconhecimento extremado de um enunciatário que partilha de seus valores e de

seu lugar de fala. Muitas vezes pode-se entender este enunciatário como um

semelhante, tamanha simplificação do tipo de mostrar que a imagem constrói, por

exemplo via gestual e frases que sugerem rapidamente os significados para quem

partilha da cultura Hip Hop. Nesse caso, a figurativização atinge um alto nível de

reconhecimento de seu contexto que cria um efeito de padronização. Nesta posição

constrói o Hip Hop por idealização, dado pelo desejo que faz com que a imagem do

Page 125: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

128

grupo aponte para a repetição da imagem modelo do Hip Hop, eternizado pela

pose. A imagem ideal é presentificada pela expectativa inteligível do olhar

fotográfico como quem mantém a imagem intocada de um ídolo. Este lugar é,

portanto, apenas indicado mas não ocupado, o que significa ser esta a posição em

que o objeto de valor é alcançado via programação do olhar. Apresenta, assim, a

relação de refração do sujeito (no sentido de desviar o sujeito de si mesmo

beirando sua inexistência subjetiva) para perpetuar a imagem pela sublimação.

3.2.4. Identidade individual admitida e social segregada

Em oposição à opacidade, que oculta o ser pelo revestimento da prática Hip

Hop, surge a relação de transparência em que o sujeito se dá a ver pela intimidade

que forma o grupo reunido, seja pela aproximação ao fazer do pintor ou do

próprio fotógrafo. Neste caso, a imagem deixa entrever o si com a presença do

outro, sem a intervenção de um objeto de valor, ao menos não como artifício

essencial à constituição sentido. Por fim, esse tipo de retrato pelo mostrar-se na

intimidade reúne fotografias pela relação de ajustamento entre os sujeitos: quem

olha é aquele que faz existir a imagem sentindo sua presença nela junto ao

fotógrafo. A figura focal, por exemplo, desenvolve esta posição e promove na

organização visual a dimensão visível da esfera do ser. Trata-se de um outro efeito

de proximidade que desvela a interação dos sujeitos co-presentes pela dimensão

sensível da visão, cujo desdobramento é dado pelo regime da união.

Tem-se, assim, de um lado, o eixo de subjetividade e particularidade, e de

outro, o da objetividade e convenção, cada qual desenvolvendo regimes de

interação e de sentido diversos e complementares. Isto porque os tipos de mostrar-

se configuram auto-retratos re-significados continuamente. Nossa preocupação

Page 126: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

129

está em não reduzir o texto visual a um modelo estático de estruturação de sentido

referente aos universos semânticos que tentamos refletir até o momento. Por esse

motivo, encaminhamos as relações diagramáticas a partir de uma forma,

emprestada de Landowski, “arredondada, elipsoidal do diagrama, com curvas

suaves no lugar dos ângulos e onde as flechas que marcam as passagens entre os

lugares que se engancham umas nas outras sem rupturas (...)”53, para enfatizar a

idéia de que o indivíduo sofre “metamorfoses sucessivas mediante as quais passa

gradualmente a ser o que é”54. Isso responde à visibilidade vivida da prática do

grupo, que se constrói passando de uma posição à outra, fazendo esse sujeito ser

pelas imagens que se investem de imprevisibilidades latentes.

A partir dessas considerações, segue o diagrama:

DIAGRAMA III

53 E.Landowski. “Gosto se discute”, In Gosto da Gente, gosto das coisas, 1997, p. 140.54 Idem, p. 141.

Page 127: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

130

Subjetal Objetal

regime de ajustamento

Se fazer mostrar em função do estar

Relação de transitividadeRelação de reflexividadeMostrar-se em função do ser

Imagem pelo instantâneo Imagem pelo arranjoMaior presença do individual Maior presença do grupo

Revelação de si Refração de si

Regim

e de junç ãoReg

ime

de

uniã

o

Ser Estar

Se fazer mostrar

Transparência de si Ocultamento de si

regime de acidente regime de programação

regime de manipulação

Mostrar-se

Pela combinação dos dois diagramas, vemos que o “olhar de dentro” do

Movimento marca a proximidade dos contrários, mostrando também a fragilidade

das formas estanques. É preciso vê-las num movimento contínuo, ora numa

posição ora noutra, ou em todos os lugares. Entendemos que a imagem sobre a

qual vimos refletindo até agora nos permite questionar o “reconhecível” das coisas

do mundo, o figurativo propriamente dito, pelo conjunto das relações que

estabelecem uma com as outras. Por isso o termo “marcas de referência” está

condicionado a esta construção e não se preocupa com os antecedentes da

fotografia, justamente porque esse mundo, ou mundos, que elas constroem fazem

Page 128: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

131

questionar a evidência das coisas identificáveis sem negar, contudo, que delas

resulte situações da vida. Estamos sim diante de textos vivos que nos ajudam a

compreender que entre os seres e as coisas há toda uma possibilidade de relações

de sentido.

A figura focal (foto 21) contempla esse aspecto que queremos ressaltar, ou

mais, mostra que para construir a imagem para o outro que vê, podendo este outro

ser “eu mesmo”, é preciso partilhar das condições de visualidade propícias à

encenação, ou seja, colocar-se no ponto de vista para ser visto, para ver-se ou

apenas para estar lá. Assim, o ato corriqueiro do fotografar repetido na imagem

pela gestualidade do fotógrafo, sugere esta partilha na relação com o outro, de

modo que este tome para si a imagem, atualizando-a em seu próprio fazer. Unidos,

observador e fotógrafo vêem-se na mesma pele, realizando juntos a cena “à

maneira de um sincretismo”55. De “sujeitos do ver” o enunciatário transforma-se

em captador de imagens e “assume por sua própria conta o papel de sujeito

operador”56. Em decorrência disto, para se tornar imagem basta que o um

reconheça o outro enquanto tal, depreendidos dos atos partilhados, uma vez que os

regimes de visibilidade (e do mostrar) se confundem com a própria questão

imagética e identitária.

Pelos desdobramentos de retratos construídos pelas fotografias, emprestamos

a questão de Landowski: “Em que medida, de que modo, o sistema de estereótipos

identitários fixado pelo grupo de ‘referência’ (ou aquele que se considera enquanto

tal), deverá servir, também, de referência a eles, que esse ‘Um’ designa como seu

‘Outro’?” 57. Em nosso caso perguntamos ainda, e se este “Outro”, os fotógrafos do

Hip Hop, constroem a imagem de si predominantemente como o “Um”, o próprio

55 E. Landowski, A sociedade refletida: ensaios de Sociossemiótica. Trad. E. Brandão. São Paulo, Campinas,EDUC/Pontes, 1992, p. 89.56 Idem, p.90.

Page 129: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

132

Hip Hop, ou seja, conforme a alteridade presente? É como se a identidade se

constituísse investido do outro, onde então se sobrepõe as relações de inclusão e de

exclusão do ser, grupo de fotógrafos ao do Hip Hop. Então, a referência é baseada

pelo “olhar de dentro”, isto é, os auto-retratos mostram a aproximação de si

mesmo à medida que se distanciam da imagem pressuposta do grupo de

referência Hip Hop. Pensando nesta questão propomos a combinação dos auto-

retratos com o modelo identitário58, apresentado por Landowski, da seguinte

forma:

DIAGRAMA IV

fotógrafos em relação a si mesmo fotógrafos em relação ao Hip Hop

efeito de imagem individual efeito de imagem social

Assimilaçãoidentidade por si

pela exclusão do Hip Hop

Exclusãoidentidade pelo outro idealizada

pela assimilação do Hip Hop

Admissãoidentidade de si

pela segregação do Hip Hop

Segregaçãoidentidade pelo outro convencionalizada

pela admissão do Hip Hop

57 E. Landowski. Presenças do Outro: ensaios de Sociossemiótica. Trad. M. A. L. Barros. São Paulo,Perspectiva, 2002, p. 33.58 Idem, p.15.

Page 130: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

133

Isso coloca o grupo de fotógrafos numa relação do si para com seus outros e

numa relação consigo para com os seus. Em decorrência disso, mantém a relação

simultânea com dois tipos de enunciatários bem delimitados ao longo do caminho,

qual seja os Hip Hoppers (pois são estes que “decodificam” literalmente todos os

gestos, sinais, gírias, vestimentas) e os outros (onde se misturam simpatizantes,

leigos, curiosos da cultura Hip Hop).

Na base dessas relações, finalmente, são explorados dois universos semânticos

nas cenas do Hip Hop. De um lado o grupo mostra-se de si por si mesmo, e de

outro, o grupo mostra-se por um outro. Nessa perspectiva enovelam-se dois

universos identitários, ambos correlacionados no limite referencial do Hip Hop,

como foi analisado ao longo da dissertação, a saber:

ser si mesmo ser um outro

Hip Hop

Rumo à conclusão resta-nos voltar aos modos de ver no desvelamento de um

contrato polêmico, o que significa retomar as questões relativas aos

destinadores/enunciadores e destinatários/enunciatários envolvidos na relação

interativa, determinante à construção do olhar em primeira instância, dos

fotógrafos do Hip Hop e do próprio pesquisador.

Page 131: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

Capítulo IVCapítulo IV

Page 132: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E
Page 133: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

137

Bricolagens do si: a fotografia na constituição identitária

4.1. Semiotização do olhar fotográfico

A experiência com o universo de imagens muitas vezes revela maravilhas

mas também armadilhas constituintes de uma conformidade figurativa, com a qual

estaríamos “mal acostumados”, e que nos incita a ver o já visto nas reiterações do

mesmo. Neste momento de breve conclusão, já é possível afirmar que tal

experiência significa, antes de mais nada, a própria percepção e vivência do sujeito

no interior de um sistema visual que o constrói e que é construído por ele. O lugar

de um olhar já é, portanto, um modo de ser e de existir por visibilidade constituinte

desse sistema mais amplo.

Não seria muito dizer que a fotografia é o lugar da excelência do olhar,

recuperando a história que cerca as discussões, não sem conflitos, contradições e

incertezas, no tocante a uma ontologia da imagem fotográfica59. Diante da ilusão de

que o que se vê é prova do ocorrido, mediante sua natureza mecânica, tem-se, por

um lado, na fotografia uma função utilitária de mera constatação e ilustração dos

fatos, servindo de amostra da realidade aí reiterada. Por outro lado, contradizendo

a pura referencialização indicial fotoquímica, mas também como o ponto de vista

privilegiado, a fotografia agrega valores anteriores a sua constituição, servindo de

ponto de repouso de discursos diversos, como código60 ou metáfora, enfim, de

objeto de “veiculação” de informação, quase como um meio cuja função é dar

passagem. Isso basta para apontar nosso caminho, que parte da mesma crença do

59 A. Bazin, “Ontologia da imagem fotográfica” In O cinema: ensaios. Trad. E.A. Ribeiro. São Paulo,Brasiliense 1991.60 Para aprofundar nas discussões da fotografia enquanto signo indicial e enquanto código consultar: P.Dubois. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. M. Appenzeller. Campinas/SP, Papirus, 2003; J-M.Scaeffer. A imagem precária: sobre o dispositivo fotográfico. Trad. E. Bottmann e D.Bottmann. Campinas/SP, Papirus, 1996; V. Flusser. A filosofia da Caixa Preta. São Paulo, Hucitec, 1985.

Page 134: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

138

“poder da imagem, porque afinal é disso que se está falando lá e cá; porém,

falamos do ponto de vista do sujeito da enunciação, o que já pressupõe o seu fazer

na realização fotográfica, nem antes nem depois da imagem, mas nela própria. A

existência de um objeto semiótico, no qual se define também a fotografia, faz

pensar nas instâncias que o fazem ser o que são. Fotógrafo, público e fotografado,

ou melhor, enunciador-destinador, enunciatário-destinatário, são criadores do

discurso ao mesmo tempo que resultam dele. Por isso, neste estudo, tornou-se

impossível aceitar a imagem fotográfica como meio de discurso ou como reflexo do

real, justamente porque é a realidade, ela mesma, apenas um efeito da imagem, é

um resultado de um fazer pelo olhar.

O olhar, como concluímos, é ação de fazer aparecer realidades diversas,

segundo o ponto de vista abordado61. Se a fotografia é uma construção, sempre em

processo, a fotografia de que trataremos a seguir produz em justa medida o que

podemos chamar de multiplicidade como fundamento da complexidade da

cultura62. Falamos da diferença essencial e da interação dos vários olhares que

constroem, em primeira instância, esta pesquisa como um lugar onde se posiciona

o discurso do conhecimento.

Os retratos construídos pelas cenas fotográficas criam, como vimos, um

sujeito em constante definição, mediante um regime de visibilidade que

desencadeia o mostrar-se como constituição intrínseca ao fazer do grupo.

Fotografar adquire a dimensão do fazer identitário por enredar caminhos de

linguagem em que o sujeito do olhar/olhado passa a ser o principal operador.

61 Ver: B. Kossoy. Realidades e Ficções na Trama fotográfica. São Paulo, Ateliê, 1994. Nesta reflexão oautor distingue dois momentos que precisam ser considerados para a construção do sentido da imagemfotográfica: A primeira realidade, corresponde ao momento de produção da fotografia, historicamente datada;e a segunda realidade, de acordo com a o momento de leitura da foto, sempre atualizada na relação comhistória da foto. Tal distinção acarreta em diferentes modos de compreensão da fotografia. Para a semiótica otexto fotográfico é uma construção cujo sentido é fruto da leitura do analista, capaz de recuperar o momentohistórico e as condições de produção pelas marcas deixadas no objeto fotográfico.

Page 135: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

139

Nessa relação, como já subentendido, o enunciatário partilha e co-produz o retrato,

produzindo-se a si mesmo como sujeito a ser visto, em primeiro lugar, pelo grupo

de fotógrafos desta pesquisa. Conforme os termos de um contrato primeiro, por

meio da metodologia de pesquisa proposta, está em nosso olhar o fazer desejante

do grupo, a quem eles dedicam os retratos e a quem mais posso interessar.

Neste sentido a configuração de grupo é estabelecida em termos de uma

alteridade, na interação dois enunciatários distintos:

a) com os “outros”, de caráter mais transitivo, em que enunciatário (“de fora”

e os “de dentro”) mantém relação de reconhecimento do retrato do grupo via

coletivo social ao qual pertence, como um Hip Hop. Este outro é também o

simulacro de sujeito competente, que possui um saber sobre a cultura, articulado

por temas e figuras que encadeiam outros saberes projetados no âmbito da

interdiscursividade.63

b) com o “entre si”, de caráter mais reflexivo, em que o enunciatário é

construído na proximidade que mantém ao olhar o retrato, alheio ao mundo auto-

referenciado do primeiro caso, um outro qualquer colocado a conhecer o primeiro

em/por si mesmo. Neste caso, o enunciatário muda a cada fotografia no interior

das cenas.

Dado esses perfis dos enunciatários, não teríamos confirmado as equações

apontadas no primeiro capítulo, dos percursos de olhar de um e de outro?

Admitindo a afirmativa, não estaríamos então diante de uma questão contratual

polêmica, à medida que a verdade do discurso é parcialmente admitida enquanto

tal, ou seja, é mais um efeito de sentido no âmbito geral do discurso e não um

62 Nos sentido que propõe Í. Calvino. Seis propostas para um Novo Milênio. Trad. I. Barroso. São Paulo, Ciadas Letras, 1990.63 Referimos-nos à um possível desdobramento deste trabalho, que requer uma analise mais ampla destarelação visual do grupo de São Carlos com imagens que circulam na mídia impressa ou televisa, por exemplo,sabendo que o movimento Hip Hop é uma cultura presente em todo mundo, mas que possui formas de

Page 136: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

140

efeito último e único dos retratos? Está claro que a verdade de que tratamos é

aquela que se refere ao discurso Hip Hop, lembrando que as fotografias são

produzidas neste contexto.

Se a relação de manipulação se dá pelos contratos propostos e assumidos,

pelos meios empregados pela persuasão e interpretação e pelos diferentes fazeres

pretendidos, onde os valores são estabelecidos e trocados, as cenas, por sua parte,

apresentam outra relação. O enunciatário encontra-se com o Hip Hop, mas também

com outras figuras do dia-a-dia (com o pintor, com a família), onde temas como

afetividade, por exemplo, são responsáveis por ampliar os temas circunscritos,

tipificados, à cultura Hip Hop. Isso por si só contraria a unidade visual enquanto

um discurso Hip Hop e assegura a pluralidade discursiva, que pode ser entendida

como conseqüência do fazer fotográfico, isto é, do modo como esta pesquisa se

realizou.

Os auto-retratos dão a ver os textos fotográficos como marcas da

contemporaneidade, em que os sujeitos continuamente são chamados a se

construir identitariamente em contextos diversos. Tal constatação é fruto da

produção do grupo que se vê e se mostra na ocupação de um espaço re-

semantizado, desenvolvendo uma atividade diferente da habitual, a fotografia,

integrada às atividades como um quinto elemento, se assim podemos dizer.

Nesse sentido, fotografia, como constituição linguageira, e como método

adotado na pesquisa, evidencia que a experiência visual é implícita à prática social

do sujeito que a produz. Entende-se porque às vezes tornar-se imagem para o

outro é vivenciar um estar no mundo, pelo parecer ser, em consonância ao ser, e

vice-versa, nas situações da vida que exigem performances a cada momento. Essa

presença-imagem é recriada a cada novo olhar através da linguagem e esta

organização (Zulu Nation, é uma delas) aparentemente em constante reformulação contratual, da questãoidentitária que relaciona os diferentes grupos e organizações.

Page 137: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

141

presentifica as práticas vividas, continuamente figurativizada e tematizada entre a

experiência vivida das figuras do olhar e da sua existência “real”, que geram

estatuto de revelação, refração, opacidade ou transparência das faces dos sujeitos

no mundo.

Os percursos narrativos propostos inicialmente se encontram e afirmam que

as dimensões entre o mostrar e o ver interdefinem o grupo Hip Hop e seus

enunciatários sob a disponibilidade contínua de rever-se, um e outro, em

cumplicidade. As cenas são, pois, auto-retratos que evidenciam o rever-se pelas

mudanças de posições face a uma dada realidade, na imbricação do ato

comunicativo, revelando que o ser si mesmo não é apenas uma definição que se

constrói solitariamente. A comunhão pela imagem traduz o “risco” da mudança

das convicções inerente ao processo de comunicação, ao ato de ver e mostrar, jogo

este produzido pelos enunciados e aprofundado pelo exame da enunciação. Se

cada retrato parece isolar uma face do sujeito, é justamente pela não-conformidade

entre eles que advém a instância enunciativa em reuni-los, estrategicamente, como

atestado de competência da visibilidade pela produção da visualidade. Fazer um

retrato de si significa, neste trabalho, tornar a experiência fotográfica um domínio

do visual pelo qual o sujeito é integralmente solicitado como presença de si mesmo

e de seu entorno. Presença cognitiva e sensível e presença de axiologias.

O descontínuo torna-se, então, a condição contemporânea do ser tornado

múltiplo, na necessidade de ajustar-se às mudanças rápidas a que é submetido e

que, ao mesmo tempo, promove. Diante das cenas vemos ruir a idéia da “essência

permanente” que definiria em definitivo a personalidade e o campo cultural dos

indivíduos tal como foi formulado na modernidade. Ao contrário, as imagens

constroem um processo de identificação sucessiva do si, definido entre

possibilidades e limites de reestruturação na vivência com o outro, podendo

Page 138: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

142

inclusive anular-se para estar entre os outros. Ou seja, a alteridade é condição

inerente à construção de linguagem, inerente ao fazer fotográfico.

4.2. A escolha da pesquisa: polêmica e auto-reflexão

O olhar do pesquisador, como um destinador para quem direta ou

indiretamente as fotografias são dedicadas, assume papel de modalização do olhar

do grupo que, de certa forma, devolve ao pesquisador um retrato pelo qual deseja

ser reconhecido, pois foi no contexto Hip Hop que passaram a ser assunto de

pesquisa. Como interesse primeiro, foi o comprometimento com o assunto, com a

prática sócio-cultural do Hip Hop, a direcionar a escolha da pesquisa. No entanto,

foi a experiência fotográfica tomada por um olhar “de dentro”, do próprio grupo,

responsável por enriquecer nossos modos de compreender os desdobramentos de

um movimento cultural como um modo de sociabilidade, cuja base não é tanto o

discurso fundador, mas o seu outro próximo ou aproximado. Ao enfocar o Hip Hop

como um objeto de pesquisa, parece pertinente afirmar que, da mesma forma,

nosso retrato é solicitado, como resultado da experiência proposta ao grupo. Para

ele, somos o simulacro do conhecimento, da academia vista a certa distância.

Talvez não seja por essa razão que a maioria das fotografias mostra o simulacro de

um discurso oficial, apresentado na cena 1 e sancionado na cena 4, dado a

importância reconhecida do movimento no âmbito social? Como uma aposta

inicial, vimos se confirmar um tipo de retrato previsto, com o qual estivemos

comprometidos desde a escolha da pesquisa, pois nosso lugar de fala se encontra

com os estudos de cultura popular, por meio de movimentos e grupos sociais que

fazem de sua prática um modo de diferenciação, portanto, de sobrevivência.

Page 139: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

143

Como sabemos, o contrato fiduciário assenta na crença no valor colocado entre

enunciador e enunciatário, pressupõe a instalação (logicamente anterior) duma

espécie de conivência entre ambos. Jean-Marie Floch, na introdução de Les formes

de L’empreinte, localiza essa discussão em torno da imagem ao afirmar que:

“a imagem na qualidade de enunciado pressupõe uma instância de

enunciação que pode ser representado em ato de comunicação entre

enunciador e enunciatário. Tal comunicação supõe um saber do

enunciador sobre o saber do enunciatário, um saber sobre o que

considera ser a ‘realidade’ e sobre o que ele julga ser ‘fiel’ a esta

realidade”.64

A dimensão cognitiva, onde se situam estas diferentes realizações, coloca a

dimensão da “iconização” e traz desde o início a problemática da semelhança, de

um parecer Hip Hop, e do estabelecimento dum contrato “enunciativo”. Na

perspectiva de Greimas:

“Situado na dimensão cognitiva, o fazer persuasivo pode comportar uma

ou mais realizações que visam o estabelecimento dum contrato fiduciário

compreendendo, enquanto contrapartida, a adesão do interloculor.

Quando o objeto de fazer persuasivo é a veridicção, o dizer-verdadeiro

(ou falso, mentiroso, etc.) do enunciador, o contra-objeto, cuja obtenção é

escamoteada, consiste na “confiança”, no “crédito”, ou, muito

simplesmente, no “crer-verdadeiro”que o enunciatário atribui ao estatuto

do discurso enunciado. Trata-se então duma forma particular do contrato

fiduciário, que nós designamos como contrato enunciativo ou contrato de

64 J-M.Floch. Les formes de L’empreinte. Périguex, Pierre Fanlac. Tradução nossa, p. 30.

Page 140: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

144

veridicção; incide sobre o discurso enunciado, enquanto objeto de saber

valorizado pelo ato da modalização”65.

Se o efeito de iconização está em consonância com as coisas do mundo

natural, nesta pesquisa equivale a dizer que são as imagens da cultura Hip Hop que

constroem a referencialização deste mundo natural. No entanto, concluir que as

fotografias do grupo Hip Hop constroem unicamente o auto-retrato do destinador

Hip Hop, é negar a aposta da pesquisa que entreviu, pelo método adotado, a

presença olhares figurados (que se mostram subjetalmente) e não apenas de

figuras do olhar (que se fazem mostrar objetalemnte).

As cenas, ao contrário, desestabilizam o dizer-verdadeiro do discurso

enunciado por não apresentam um único retrato do grupo, ou seja, de acordo com

expectativa e com proposição inicial da pesquisa descrita introdução, conforme a

fidúcia do enunciatário, onde em parte coloca-se o pesquisador. A polêmica

surgida não permite definir uma constituição identitária do sujeito a não ser pela

própria pluralidade.

Sua construção, no eixo de um contrato polêmico entre sujeitos, tem íntima

relação com o fenômeno da enunciação, pois é nela que se operam as

transformações responsáveis pelas mudanças de posição, tanto do enunciador

quanto do enunciatário convocado. Como o seu resultado é a quebra da

expectativa, o rompimento do contrato proposto pelo enunciador, o efeito de

sentido de pluralidade provoca a ruptura, de um retrato previsível, portanto dado

à aspectualidade durativa, pela concomitância de outros. A questão não se resolve.

Esta irrupção da duratividade, entendida pela construção programada do

65 A.J. Greimas. Maupassant – A Semiótica do texto: exercícios práticos. Trad. T.O.Michels e C. L. C. L.Gerlach. Florianópolis, Editora da UFSC, 1993, p.184.

Page 141: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

145

simulacro Hip Hop, é marcada, na configuração da identidade do grupo, pela

incoatividade de retratos não previstos, se quiser, de novos simulacros.

Nesse jogo de retratos, não existe uma verdade que se sobreponha à outra. O

enunciador (os fotógrafos) constrói figuras e temas que amplificam seu papel na

comunicação com o enunciatário, talvez até por auto-reflexão no/pelo fazer

fotográfico.

4.3. Identidade visual, linguagem e axiologias

O encadeamento das imagens, acreditamos, apresentou uma rede de

pequenas “identificações” que resulta na unidade identitária dos vários modos de

se mostrar, visto acima, como uma disposição central para onde tudo é referido e

de onde tudo se expande. Por este largo exemplário, de fotos tão diferentes entre

si, pudemos perceber a transformação de estereótipos em imagens renovadas, que

subentendem as figuras numa necessidade de olhar retrospectivo do todo. Aliás, a

própria constituição dos auto-retratos como práticas identitárias estruturam um

corpo coletivo baseado nos modos de mostrar a si mesmos, sem perder de vista

que tal diversidade é essencial para definição do sujeito. Dessa maneira, a

organização narrativa constitui uma espécie de laboratório onde podem ser

experimentadas múltiplas formas de agir e ser do sujeito, o que implica já numa

série de conseqüências éticas.

Neste universo criado, nas variações do mesmo, o grupo fala do centro do

mundo ou, nas palavras de Landowski, é construído como próprio “grupo de

referência”, deixando entrever os outros “eus” dessa configuração identitária, nem

somente artístico, nem político e nem tampouco “mercadológico”66. Um corpo

66 Poderíamos dizer que estas são imagens que configuram discursos e estereótipos do Hip Hop, segundopontos de vista divergentes: recurso alternativo de sociabilidade de uma parcela da população jovem;

Page 142: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

146

performático como um “Outro”, não tão distante ou diverso, que se constrói

estrategicamente no ponto de fuga, redimensionando ao seu redor um território

que se constrói também pelo seu olhar. O reconhecimento deste Hip Hop conduz ao

perímetro de sua ação, pois como vemos o centro se desloca com ele onde quer que

esteja.

Por mais que exclusão social e preconceito racial sejam a pedra de toque do

discurso corrente desse Movimento no âmbito nacional, por meio de

organizações67 que procuram promover a coesão dos ideais, nestas imagens há um

caminho sólido de negação da exclusão, a começar pelo domínio da linguagem

pela qual os sujeitos se produzem. No entanto, a não-exclusão, numa provável

admissão do sujeito ao grupo central econômica e socialmente dominante, também

não explica a dinâmica das imagens que persistem no ruído latente da não

conformidade. De outra maneira, manter-se de lado, segregado, por vezes cria o

efeito de sentido de resistência sobre o qual a postura política tende a se enfatizar.

Se considerarmos estes movimentos de ir e vir da relação centro-periferia, a meio

passo do patamar de valores desejados na constituição de identidade social pela

garantia dos direitos civis, a marcação da diferença finca o sujeito na centralidade

de todos os acontecimentos, por meio da prática diária da atividade cultural. De

fato, produzir-se socialmente segundo uma imagem de si, na diversidade de si

como outros possíveis, é no mínimo colocar-se de imediato em situação de

visibilidade a propósito de quaisquer correlações de linguagem. Vemos a

fotografia como mais uma expressão do universo Hip Hop, aliada aos fatos da vida

cotidiana para contrariar as sobredeterminações, para não dizer reduções, do

sujeito às estimativas sociais que justificam estereotipias infindáveis, não mudando

Movimento comprometido com a “voz” da periferia; ou, ainda, como produto da indústria da moda e damúsica.67 MH2O (Movimento Hip Hop organizado), Frente Brasileira de Hip Hop, CUFA (Central única das favelas)Zulu Nation, Nação Hip Hop Brasil, para citar alguns.

Page 143: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

147

em nada a condição daquele que fala. A linguagem provoca, enfim, rupturas,

transformações, de valores e visões de mundo.

Pelos caminhos da fotografia, a pesquisa pôde apresentar a vida construída

do Hip Hop, em situações produzidas pelo próprio grupo ao mostrar-se por um

voluntarismo. No mais, para além das definições que essas imagens possam

carregar consigo, tentamos ver nossa parte na interação, ou quem sabe integração,

dos nossos modos de ser que certamente formam figuras de quem eles mantêm

alguma distância. Assim, não seria demais perguntar “o que de mim há em nós”.

Page 144: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

148

BIBLIOGRAFIA

ABRAMO, Helena Wendel. “O estilo monta um espetáculo”. In: Cenas juvenis -

punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Scritta, 1994, p. 81-150.

ANDRADE, Elaine Nunes de (org.). Rap e educação, rap é educação. São Paulo:

Summus, 1999.

BARROS, Diana. Luz. Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.

BAZIN, André. O cinema: ensaios. Trad. E. A. Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1991.

BERGER, John e MOHR, Jean. Another way of telling. New York: Pantheon, 1982.

BERTRAND, Denis. Caminhos de Semiótica Literária. Tradução do Grupo CASA. São

Paulo: EDUSC, 2003.

______Os Discursos de uma Paixão. Cruzeiro Semiótico. Associação Portuguesa de

Semiótica, nº 6, 1987.

BRECHT, B. Teatro Completo. Trad. port R. Schwarz et al. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, Vol. 04, 1990.

BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Trad. Port. Oscar Araripe e Tessy Calado.

Petrópolis: Vozes, 1970.

CAETANO, Kati Eliana. “Fotografias Contemporâneas ou a Incompletude do

Simulacro”. In GHREBH: Revista Brasileira de Ciência da Comunicação, da cultura

e de teoria da mídia, outubro de 2005, nº7, consultado em

<<http://www.revista.cisc.org.br/ghrebh7/artigos/05caetano_port.html>> em 12 de

abril de 2006.

______. A aventura fotográfica partilhada, consultado em

<<http://www.unicap.br/gtpsmid/artigos/2005/Kati.pdf>> em 23 de junho de 2006.

Page 145: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

149

CALVINO, Italo. “Visibilidade”. In ______ Seis Propostas para um Novo Milênio.

Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

CANCLINI, Nesor Garcia. Cultura y Comunicación: entre lo global y lo local. La Plata:

Periodismo y Comunicación, 1997.

CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto. Trad. C. S. Guedes et al. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, vol.3, 1987-92.

COLLIER, John. Visual Anthropology: Photography as a research method. Albuquerque:

University of New Mexico Press,1992.

DIÓGENES, Glória. Cartografias da cultura da violência: gangues, galeras e o movimento

hip-hop. São Paulo: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998.

DISCINI, Norma. A Comunicação nos Textos. São Paulo: Contexto, 2005.

DUBOIS, Phillipe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. M. Appenzeller

Campinas/SP: Papirus, 2003.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das

relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Trad. V. R. e P. Sussekind. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

FEATHERSTONE, Mike. (Org). Cultura global: nacionalismo, globalização e

modernidade. Trad. A. Brunetta. Petrópolis: Vozes, 1998.

FELDMAN-BIANCO, Bela e LEITE, Miriam L. Moreira. (Org.). Os Desafios da

Imagem: Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas/SP: Papirus, 1998.

FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. Olhar periférico: Informação, linguagem, percepção

ambiental. São Paulo: EDUSP, 1993.

FIORIN, José. Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias da pessoa, espaço e

tempo. São Paulo: Ática, 1999.

______. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto-Edusp, 1989.

FLOCH, Jean-Marie. Les formes de L’empreinte. Périgueux: Pierre Fanlac, 1986.

______. Un Nu de Boubat. In ______ Petites mythologies de l’oeil et de l’esprit: por une

Page 146: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

150

sémiotique plastique. Paris-Amsterdan: Hadès-Benjamins, 1985.

______. Alguns conceitos fundamentais em Semiótica Geral. 1 ed. São Paulo: Ed. CPS,

2001.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo, Hucitec, 1985.

FREUND, Gisele. Fotografia e Sociedade. Lisboa: Vega, 1995.

GARCIA, Cláudia Regina. Estudo Semiótico das Lingeries na Construção dos Regimes

de Visibilidade da Mulher Brasileira. Conceituação do formante matérico, 2005.

Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) PUC-SP.

GHETHO, J. e PISKA. Hip Hop Sancarlense: Luta e Persistência. Documento histórico

construído como parte dos Projetos de atuação do Movimento Hip Hop em São

Carlos. São Carlos, janeiro de 2004.

GONÇALVES, Tânia Amaral Vilela. O Grito e A Poesia do Gueto: rappers e movimento

Hip-Hop no Rio de Janeiro. 1997. Dissertação. (Mestrado em Sociologia). Instituto de

Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro,1997.

GREIMAS, Algirdas Julien. Da Imperfeição. Trad. A. C. Oliveira. São Paulo: Hacker,

2002.

______. ”Semiótica Figurativa e Semiótica Plástica” In: Semiótica Plastica. A. C. De

Oliveira (org.). São Paulo: Hacker Editores, 2004, p.75-96.

______. e Courtés, J. Dicionário de Semiótica. Trad. port . A. D. Lima e all. São Paulo,

Cultrix, [s.d.]

GUASCO, Pedro Paulo Marques. Num país chamado Periferia: identidade e realidade

entre os rappers de São Paulo. 2001. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social).

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. T. T. da Silva e G. L.

Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

HERSCHMANN, Micael. O Funk e o Hip-Hop Invadem a Cena. Rio de Janeiro: UFRJ,

Page 147: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

151

2000.

______. (org.) Abalando os anos 90: funk e hip-hop. Globalização, violência e estilo

cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1994.

LANDOWSKI, Eric. Presenças do Outro: Ensaios de sociossemiótica. Trad. port. M. A.

L. de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2002.

______. “O olhar comprometido”. Trad. port. A. C. de Oliveira. In: Galáxia: revista

transdisciplinar de comunicação e semiótica, cultura. Programa Pós-graduação em

Comunicação e Semiótica da PUC/SP, São Paulo: EDUC, nº 2, 2001, p. 19-56.

______. “Flagrantes delitos e retratos”. Trad. port. D. F. da Cruz Jr. In: Galáxia:

revista transdisciplinar de comunicação e semiótica, cultura. Programa Pós-graduação

em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, São Paulo: EDUC, nº 8, 2004, p.31 – 70.

______. “En deça ou au-delà des stratégies, la présence contagieusein”. In: Passions

sans nom. Essais de socio-sémiotique III. Paris: Presses Universitaires de France, 2004.

______. “Modos de presença do visível”. In: Ana Claudia de Oliveira (org)

Semiótica plástica. Trad. port. I. A. Silva. São Paulo: Hacker, 2004, p. 97-111.

______. A sociedade refletida: ensaios de Sociossemiótica. Trad. port. E. Brandão. São

Paulo: Campinas, EDUC/Pontes, 1992.

______; OLIVEIRA, Ana. Claudia de; DORRA, Raul (eds). Semiótica, Estesis,

Estética. São Paulo:Puebla EDUC-UAP, 1999.

______. “Gosto se discute”. In: Landowski, Eric.; Fiorin, José Luiz (eds.) O Gosto da

Gente, o Gosto das Coisas: abordagem semiótica. São Paulo: EDUC, 1997, p. 97 – 160.

MANGUEL, Albert. Lendo Imagens: uma historia de amor e ódio. Trad. R. Figueiredo

et al. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

MEAD, Margaret. “Visual anthropology in a discipline of words”. In: Hockings, P.

(org). Principles of visual anthropology. Paris: Mouton, 1975.

MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades

Page 148: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

152

complexas. Petrópolis/ RJ: Vozes, 2001.

MORIN, Edgard. Para sair do século XX. Trad. V. A. Harvey. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1987.

______. Ciência com consciência. Trad. M. D. Alexandre e M. A. S. Doria. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

NEWHALL, Beaumont. The history of Photography. New York: Museum of Modern

Art, 1986.

PRADO, José Luis Aidar, DUNKER, Christian Ingo Lenz. (orgs.) Žižek Crítico. SãoPaulo: Hacker, 2005.

ROCHA, Janaina; DOMENICH, Mirella; CASSEANO, Patricia. Hip-hop: A periferia

grita. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.

ROSA, Celso Martins. Cultura Rap: comunicação e linguagem das bordas. 227 f, 2005.

Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica da PUC/SP). São Paulo.

SAMAIN, Etienne. “Bronislaw Malinowski e a fotografia antropológica”. In:

Revista Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: PPGA, 1995.

______. (Org.). Do Fotográfico. São Paulo: Hucitec/CNPq, 1998.

SANTAELLA, Lucia. Comunicação e pesquisa. São Paulo: Hacker, 2002.

SANTOS, Lauer. Alves Nunes dos. Regimes de visibilidade e construção de simulacros o

auto-retrato contemporâneo, 251f, 2003. Tese (Doutorado em Comunicação e

Semiótica) PUC/SP, São Paulo.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo, razão e emoção. São Paulo:

Hucitec, 1997.

SCHAEFFER, Jean-Marie. A imagem precária: sobre o dispositivo fotográfico. Trad. E.

Bottmann e D. Bottmann. Campinas/SP: Papirus, 1996.

SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Trad. J. Paiva. Rio de Janeiro: Arbor, 1981.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Trad. port.

Page 149: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

153

W. O. Brandão. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Lisboa: Presença, 1999.

XAVIER, Denise Prates O uso do espaço urbano pelo Movimento Hip Hop, 72f.

(Trabalho de conclusão de curso de Graduação em Geografia). Universidade

Estadual Paulista, Rio Claro, 2003.

FOTOS

FOTOGRAFIA 1

Page 150: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

154

FOTOGRAFIA 2

FOTOGRAFIA 3

Page 151: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

155

FOTOGRAFIA 4

FOTOGRAFIA 5

FOTOGRAFIA 6

Page 152: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

156

FOTOGRAFIA 7

FOTOGRAFIA 8

Page 153: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

157

FOTOGRAFIA 9

Page 154: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

158

FOTOGRAFIA 10

FOTOGRAFIA 11

Page 155: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

159

FOTOGRAFIA 12

Page 156: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

160

FOTOGRAFIA 13

FOTOGRAFIA 14

FOTOGRAFIA 15

Page 157: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

161

FOTOGRAFIA 16

Page 158: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

162

FOTOGRAFIA 17

FOTOGRAFIA 18

Page 159: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

163

FOTOGRAFIA 19

FOTOGRAFIA 20

Page 160: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

164

FOTOGRAFIA 21

FOTOGRAFIA 22

Page 161: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

165

FOTOGRAFIA 23

FOTOGRAFIA 24

Page 162: OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR: FOTOGRAFIA E

166