olhares figurados, figuras do olhar: fotografia e
TRANSCRIPT
JULIANA DE OLIVEIRA RODRIGUES
OLHARES FIGURADOS, FIGURAS DO OLHAR:FOTOGRAFIA E MOVIMENTO HIP HOP
Dissertação apresentada à banca examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência para obtenção parcial do título de
mestre em Comunicação e Semiótica – Signo e
Significação nas Mídias, sob orientação da Profa.
Doutora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.
SÃO PAULO
2006
2
Comissão Julgadora
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
3
Aos meus pais,
figuras de amor eterno
4
Agradecimentos:
À família, que justifica os passos e as conquistas nos anos de nossas vidas.
Aos companheiros amados, Berilo, Carlos Eduardo e Miguilim, pelo apoio e
compreensão de todos os dias.
Aos queridos amigos do Centro de Pesquisas Sociossemiótica pelos momentos de
reflexão e de confraternização.
À orientadora Ana Claudia Mei de Oliveira pela dedicação e confiança.
Ao CNPQ pelo apoio à realização desta pesquisa.
Aos fotógrafos do Movimento Hip Hop da cidade de São Carlos pela partilha do
olhar vivido.
5
"A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens.
Estão ali voluntariamente,
saberiam - se preciso - voar"
Carlos Drummond de Andrade, Retrato de família
6
RESUMO
O presente estudo toma por objeto as fotografias realizadas por integrantes
do Movimento Hip Hop, da cidade de São Carlos (SP), nas quais constroem um
olhar sobre si mesmo pelas experiências da vida em grupo. Centrada nos
procedimentos de figurativização e tematização, esta pesquisa preocupa-se com as
diversas figuras enredadas pelo conjunto fotográfico, que implicam em estratégias
discursivas capazes de tornar visível os diferentes modos de o grupo se mostrar no
mundo. Em decorrência disso, a problemática se apresenta em torno da
visibilidade do grupo, articulada em quatro cenas que, conforme hipótese de
pesquisa, constituem distintos auto-retratos. Estes fazem parte de um universo
subjetal (de figuras próximas à particularidade do grupo) e objetal (próximas às
imagens convencionalmente reiteradas pelo contexto Hip Hop), encadeando a
questão polêmica do parecer. O objetivo é analisar os mecanismos de enunciação
para compreender como os modos de mostrar discursivizam a dimensão
identitária do grupo, pelos contextos de vida presentificados no texto visual. Tal
estudo embasou-se na semiótica discursiva de linha francesa desenvolvida por
Algirdas Julien Greimas e seus colaboradores, para dar conta da organização do
texto fotográfico como uma totalidade de sentido e dar inteligibilidade aos
mecanismos de sua produção. Destacam-se, ainda, as orientações teóricas da
Sociossemiótica, propostos por Eric Landowski, as formulações de Jean-Marie Floch
sobre semiótica plástica e as reflexões sobre auto-retrato a partir de Lauer A. N.
dos Santos. Nessa correlação, enfatizam-se os regimes de sentido e de interação, em
consonância com os modos de mostrar, bem como as relações identitárias que
evidenciam a importância da imagem como objeto de comunicação e de interação
entre os sujeitos pelo ato de ver.
Palavras-chave: Semiótica discursiva, fotografia, Hip Hop, auto-retrato, regimes desentido e de interação e identidade.
7
ABSTRACT
This present study uses the photos taken by members of the Hip Hop
Movement, from the city of São Carlos (SP), which constitute a look upon themselves
through the experience of living in group. Focused in the procedures of
figurativization and thematization, this research is concerned with the several
figures interconnected by the collection of photos, which imply in discursive
strategies capable of making the different ways the group present itself to the world.
As a consequence, the problematic presents itself around the visibility of the
group, articulated in four scenes which, according to the hypothesis of the
research, constitute distinct self-portraits. These are part of a subject-oriented
universe (of figures known to the particularity of the group) and object-oriented
(closer to the images conventionally associated with the Hip Hop context), bringing
together the controversial matter of opinions. The objective is to analyze the
mechanisms of enunciation to understand how the methods of displaying
discourse about the identifying dimension of the group, through the life contexts
presented in the visual text. Such study was based on the discursive semiotic of the
French line developed by Algirdas Julien. Greimas and his collaborators, to
manage the organization of the photographic text as a wholeness of senses and
give intelligibility to its production. It's also noticeable the theoretical orientation of
the Sociosemiotic proposed by Eric Landowski, the formulations of Jean-Marie Floch
about the plastic semiotic and the reflexions about the self-portrait from Lauer
A.N. dos Santos. In this correlation, the regimes of sense and interaction, in
consonance with the regimes of displaying, as well as the identity relations which
bring up the importance of the image as an object for the communication and
interaction among the subjects by the act of seeing.
Key-words: Discursive semiotic, photography, Hip Hop, self-portrait, regimes of
senses and of interaction and identity.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
I - Na Arena, mostras da problemática do parecer............................................12
II - Ponto de vista semiótico: a fotografia na construção do sentido..............14
III - Duas histórias, dois olhares: o grupo Hip Hop e o pesquisador se
definem....................................................................................................................15
IV - O Método de pesquisa: o fazer fotográfico como olhar “de dentro”......18
V - Focalização da pesquisa..................................................................................22
CAPÍTULO I
O horizonte fotográfico e a imagem possível: orientações conceituais..........27
1.1. Auto-retrato: o sujeito e seu entorno............................................................31
1.2. Disposição geral: querer ser visto.................................................................33
1.3. Mostrar..............................................................................................................36
1.4. Ator e actante: sincretismo e olhar coletivo.................................................40
1.5. Caminhos e Atalhos: acordos possíveis na dimensão do mostrar-se......42
CAPÍTULO II
Do panorama ao tipo: as imagens organizam o caminho................................50
2.1. Cena 1 - Se fazer mostrar................................................................................52
A reunião.................................................................................................................52
Com a aproximação, vozes impressas................................................................55
Autoridade pela fé.................................................................................................61
Breakers: espetáculos de inversão do mundo.....................................................64
Grafismos de presença..........................................................................................70
Rapper: sujeito da contemplação..........................................................................77
9
O corpo monta o estilo..........................................................................................79
A pose de si (verso privado): a família como sociabilidade............................82
O simulacro do Hip Hop: o auto-retrato como convenção................................86
2.2. Cena 2 - O mostrar-se: a constituição do ser...............................................87
O toque na presença...............................................................................................87
Figura focal..............................................................................................................94
2.3. Cena 3 - Mostrar-se conforme si mesmo......................................................98
2.4. Cena 4 - Pose de si no verso público: rumo à sublimação.......................101
CAPÍTULO III
A instância identitária: entre o si e os outros....................................................106
3.1. Regimes de interação homologando regimes de sentido........................108
3.2. Regimes do mostrar, modos de retratar: O ser como efeito de
sentido....................................................................................................................111
3.2.1. Identidade individual assimilada e social excluída..............................114
3.2.2. Identidade individual ocultado e social admitida ...............................114
3.2.3. Identidade individual segregada e social assimilada...........................115
3.2.4. identidade individual admitida e social segregada..............................116
CAPÍTULO IV
Bricolagens do si: a fotografia na constituição identitária..............................123
4.1. Semiotização do olhar fotográfico...............................................................123
4.2. A escolha da pesquisa: polêmica e auto-reflexão.....................................127
4.3. Identidade visual, linguagem e axiologias................................................130
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................133
FOTOS................................................................................................................................138
11
IntroduçãoIntrodução
13
I - Na Arena, mostras da problemática do parecer
“(...) Mas a vocês nós pedimos:No que não é de estranhar
Descubram o que há de estranho!No que parece normal
Vejam o que há de anormal!No que parece explicado
Vejam quanto não se explica!E o que parece comum
Vejam como é de espantar! (...)”(Bertolt Brecht, A Exceção e a Regra.
In B. B. Obras Completas Vol. 4, 1990, p. 160.)
A peça A Exceção e a Regra conta a saga de um homem de negócios que
empreende uma viagem através do deserto para conseguir fechar uma concessão
de exploração de petróleo, na companhia de dois empregados que , durante todo
percurso, são submetidos a esforços sobre-humanos. Cercado pela desconfiança,
mata um deles por reflexo imaginando, equivocadamente, que seria por este
atacado, quando na verdade seria ajudado. A segunda parte da peça trata do
julgamento deste assassinato, cujo veredicto é a absolvição do homem baseado na
argumentação de “legítima defesa”, pois é mais aceitável a imagem do empregado
pobre ambicioso do que do patrão insano. Numa narrativa das relações de poder
em forma de cena épica, Bertolt Brecht, na voz de seus personagens, traz ao cenário
da justiça o questionamento da lógica “social” e dos mecanismos de sua
cristalização e manutenção. O dramaturgo dirige a crítica ao reinado absurdo da
ordem social vigente, solicitando, com isso, nosso julgamento diante das
14
implicações da regra que define a razão das coisas pela hierarquia social. O
“comum” e o “aceitável” reproduzem um modo de instituir a “verdade” ancorado
pelo aparelho de dominação, ou seja, privilegiando determinada formação
ideológica ou visão de mundo que o discurso permite conhecer. Este discurso,
porém, traz à cena um outro com qual polemiza, deixando entrever visões opostas
com interesses distintos. No embate entre pontos de vista, no contexto da
alteridade, pode-se vislumbrar as várias realidades em jogo, onde a regra se mostra
questionada.
De 1926 para cá o “comum” ainda responde pelo “normal”, e as imagens do
cotidiano ainda asseguram a convenção do sentido. As cenas da vida se
movimentam numa arena em que o ordinário é tratado como tal e as imagens
parecem repousar sobre essas reduções estáveis dos sentidos da vida. Diariamente,
os sujeitos são chamados a fabricar o mundo e a fazer julgamentos sobre a
construção dos fatos de modo que a realidade, ou o efeito de, produz-se à luz da
melhor oratória, como se vê em Bertolt Brecht, pelos recursos argumentativos de
retórica das configurações discursivas do poder. O julgamento, tal como uma
encenação onde se operam simulacros entre acusação, defesa e júri, mais do que
uma decisão é um acordo entre as partes, fazendo prevalecer a correlação do
discurso do mais preparado com a dimensão do senso comum que fundamentam,
em grande parte, as relações humanas.
Esse rápido olhar sobre as questões do parecer, pois é disso que decorre o
julgamento, aproxima, de início, a idéia acerca de nossa problemática sobre as
fotografias e a dimensão da verdade. Procuramos compreender, por meio das
figuras do cotidiano de uma cultura, como as esferas do ver e do mostrar entram em
relação no texto e como nestas o efeito de comum pode desencadear pensamentos,
valores, crenças, mundos outros que não os esperados no dia-a-dia da vivência
com as imagens. A atenção para o banal reescreve o discurso pela necessidade de
15
recuperar o sentido das coisas, a partir do estranhamento diante delas. Nessa
perspectiva, a exceção desprograma o “automatismo” da vida.
II - Ponto de vista semiótico: a fotografia na construção do sentido
Há muito tempo a fotografia é utilizada como recurso de produção de
conhecimento, que relaciona diretamente fotógrafo e sujeito fotografado em torno
da imagem, considerada como objeto da comunicação. Seja como “caderno de
anotações” na Antropologia1, como documento para História ou como objeto-texto
da cultura para a Semiótica, a fotografia marca um ponto de relação do olhar do
pesquisador e do pesquisado, permitindo aí constante “negociações” de um e de
outro, mediante a presença de diferentes concepções de mundo sobre o que é visto
e o que é mostrado.
A perspectiva semiótica, que ancora as bases desta pesquisa, não recoloca
pressupostos em torno de verdades (leis) intrínsecas (a priori) à imagem. A
fotografia, neste arcabouço, apresenta um universo de relações cuja importância
desloca a questão do estabelecimento da verdade acerca do objeto fotografado para
a construção do sentido, em que as axiologias estruturam os fazeres dos sujeitos,
que, por sua vez, se fazem construir pela semiotização em texto; a pesquisa se
inclina àquela da ciência experimental, entendendo o exercício do pesquisador
1 Reporto-me especificamente aos estudos da Antropológica visual, mais especificamente a partir de 1922,devido à publicação de The Argonauts of the Western Pacific, a grande obra de B. Malinowski, em queestabelece os cânones da moderna pesquisa de campo, buscando apreender "o ponto de vista nativo". Sobreisso, é importante também conferir trabalhos mais recentes no Brasil que fazem uso sistemático da fotografiaem suas pesquisas, como na dissertação de Mestrado O sapateiro ou o Retrato da Casa,de Fernando deTacca, defendida no Programa de Pós-Graduação em Multimeios/Unicamp, 1991.
16
apenas como mais um ponto de vista acerca das cenas e das realidades2.
As fotografias deste trabalho resultam do cruzamento de olhares
semioticamente construídos, no texto visual, a partir de um percurso gerativo de
sentido. A semiótica discursiva, a partir de A. J. Greimas e seus colaboradores, e
mais especificamente a sociossemiótica, fornecerá a base para apreender e
organizar o texto como uma totalidade de sentido e para dar inteligibilidade aos
mecanismos de sua produção. Demais contribuições advindas de outras áreas do
conhecimento, como antropologia visual, sociologia, comunicação, linguagem
fotográfica e cultura popular, serão chamadas quando pertinentes a este universo
de relações.
A empreitada de análise faz pensar no outro, instalado e instaurado na
construção fotográfica, como aquele com quem a pesquisa deverá dialogar. O
ponto de vista, por isso, deixa de ser uma escolha apenas metodológica e teórica,
para envolver todo o sujeito que fala (olha e analisa), com um olhar comprometido3
deste com o objeto de pesquisa, intersubjetivamente, enveredando-se pelos
caminhos da significação sobre o outro e sobre si mesmo como sujeito pesquisador.
III - Duas histórias, dois olhares: o grupo Hip Hop e o pesquisador se
definem.
Historicamente, o termo Hip-Hop foi estabelecido por volta de 1968, por
Afrika Bambaataa, inspirado na forma pela qual se transmitia a cultura dos guetos
2 Esta postura dialoga com as idéias desenvolvidas pelo autor Edgar Morin, na obra Ciência com Consciência(1999), sobretudo quando escreve que “a aspiração à complexidade tende para o conhecimentomultidimensional. Não se trata de dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas de respeitar assuas diversas dimensões” (p. 138).3 Cf. E. Landowski. “O olhar comprometido”. Trad. port. A. C. de Oliveira. In: Galáxia: revistatransdisciplinar de comunicação e semiótica, cultura. Programa Pós-graduação em Comunicação e Semióticada PUC/SP, São Paulo: EDUC, nº 2, 2001, p. 19-56
17
norte-americanos, justamente na forma de dançar mais popular da época, ou seja,
saltar (hop) movimentando os quadris (hip), nas festas ali realizadas.
Nesta época, proliferou-se uma grande discussão sobre direitos humanos e, nesta
ordem dos fatos, os marginalizados da sociedade de Nova Iorque se articularam
para fazer valer suas inquietações. Assim, surgiram grandes líderes negros, como
Martin Luther King e Malcom X, e grupos que lutavam pelos direitos humanos
como os Panteras Negras. Esse ambiente influenciou os primeiros praticantes do
Hip-Hop, principalmente artistas que faziam "Raps" compostos por uma base
musical dançante, acompanhado de rimas faladas. Além da dança, o Hip Hop se
apresenta por mais três outros elementos: o Grafite (arte plástica nos muros), o MC
(o Cantor ou Mestre de Cerimônias) e o Dj (disque jóquei ou “músico”), em que é
comum desenvolverem mensagens de alto teor político-social com denúncias e
reivindicações. Passadas algumas décadas, este é um traço geral encontrado hoje
no mundo e no Brasil, mas não único. Em cada lugar, o tempo e os costumes se
encarregaram de construir diferenças da qual é formada a cultura e seus
participantes, sobretudo por sua inserção no âmbito midiático.
Há cerca de oito anos atrás, mantendo duas atividades paralelas, como
bailarina e como estudante de graduação no curso de Imagem e Som, em São
Carlos, conheci o Hip Hop pelo estilo de dança – o Break. Teve início, então, o
interesse pela cultura Hip Hop, onde questões de identidade enoveladas às suas
atividades artísticas, performáticas sobretudo, me instigaram a conhecer um
discurso “local”, que tinha algo de próprio ao mesmo tempo em que se ancorava
numa fala “global” do Movimento.
Pouco tempo depois, longe da dança e trabalhando com fotografia, mas
ainda envolvida com a cultura Hip Hop, percebi um claro conflito entre a imagem,
18
que poderíamos chamar de “auto-referente”4 do Movimento, calcada numa
estratégia de reafirmação de valores do discurso fundador para garantir a coesão
do grupo, e a “imagem” veiculada pela mídia5, foco inclusive de grande crítica por
parte dos jovens do Movimento da cidade. Sobre isso, sabemos que a mídia
cumpre o seu papel nas oscilações do tempo e do espaço ajudando a construir
algumas facetas desse Movimento: ora associando ao Hip Hop a imagem da
marginalidade e da violência, vinculado-a à do preto, pobre e malandro, ou do
“mano”, assunto que, nos últimos anos, em muitos momentos, estampou as capas
de jornais e revistas, por exemplo6; ora promovendo a música, pelo viés da rentável
indústria fonográfica, impulsionada pelo estilo rap norte-americano; ora destacado
pela moda, a chamada Street Wear7, aproveitando inclusive a auto-definição do
Movimento enquanto estilo marcadamente jovem e despojado, para investir neste
setor e desenvolver “grifes” que o identifique enquanto tal; e ora, ainda,
enfatizando as iniciativas solidárias de “resgate” aos jovens marginalizados da
periferia, que participam de atividades culturais desenvolvidas pelo Movimento
tais como oficinas de rap, break, grafite e discotecagem, palestras sobre drogas e
criminalidade, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs),
preservação do meio ambiente, para citar algumas. Nesta última faceta, a mídia
também cumpre seu papel do politicamente correto, mostrando que, mesmo com a
ausência de políticas públicas, há formas alternativas de sociabilidade que se
levantam contra o caos social e dão bom exemplo, ou seja, só é malandro quem
4 Utilizaremos este termo para designar um conjunto de práticas relativo ao Hip Hop daquilo que o próprioMovimento realiza em função de si e para si mesmo, de forma a fazer crer na autonomia do seu discursofrente aos demais que a ele se referem.5 Cunhamos esse termo de maneira ampla, pensando na imprensa televisual, na imprensa escrita, na redewww, que juntas divulgam informações sobre o sujeito, de tempo em tempo, selecionando o perfil a serconstruído.6 Sobre o assunto ver: M. Herschmann. O Funk e o Hip-Hop Invadem a Cena. Rio de Janeiro, UFRJ, 2000.7 Referimo-nos ao estilo de vestimenta que envolve roupas largas, acessórios como bonés, correntes,medalhões, cintos, pulseiras e anéis, tênis esportivos, em torno do qual despontam “grifes” envolvendomarcas conhecidas como a Adidas, XXL, Tom Boy. Aqui, marca-se a estreita relação com o modo de vestirnacional como a indústria multinacional
19
quer. Ou seja, a mídia desempenha também um papel sancionador do Hip Hop, ao
euforizar o Movimento.
Vemos, então, surgir a relação paradoxal. Se, por um lado, o Movimento
critica a imagem fabricada pela mídia devido estigmatização direcionada aos hip
hoppers, por outro, se vale desse mesmo sistema para fazer ver seu discurso
enquanto ação cultural que se desdobra em várias áreas de interesse (educativo,
ambiental, social). Discurso, este, que reafirma seus valores e constrói outros, cuja
tônica é a imagem do Hip Hop enquanto “instrumento de transformação social”,
como afirma MV Bill8, atualmente um dos expoentes da cultura Hip Hop no Brasil,
ao lado do grupo rapper Racionais Mc’s e Facção Central, ambos da capital
paulistana. Por força da música, talvez a manifestação artística do Hip Hop que
melhor o defina em termos de uma imagem que se deseja ver reconhecida, as letras
enquadram o Movimento num cenário de inclusão/exclusão social e de preconceito
racial, e constroem o Hip Hop enquanto movimento de ação política, comprometido
com a voz da periferia. Nesta vertente, há um traço identitário que se coloca na
contramão do recorte dado pela mídia. No trânsito conflituoso entre as “imagens”
reproduzidas, segundo tal ou qual interesse, existe o Hip Hop que se constrói
também por um modo de sociabilidade, mais vinculada ao cotidiano, à realidade e
às contradições locais, construindo e alterando valores ao estar junto, ao reunir, na
vivência do espaço social.
Dado o panorama geral de inserção de nosso olhar no universo cultural Hip
Hop, constatamos, precariamente, estar diante de uma problemática de ponto de
vista. Em suma, envolvidos no Movimento, e ainda no posto de observação, vimos
8 Revista Caros Amigos, ano IX, Número 99, Junho de 2005. MV Bill, ou Mensageiro da Verdade Bill, érapper carioca, vive na Cidade de Deus, foi convidado pela ONU para ocupar o cargo de “embaixador paraassuntos que envolvem crianças em situações de guerra”, após escrever o livro Cabeça de porco, em parceiracom o seu empresário, Celso Athaíde, e com o ex-subsecretário de Segurança do Rio de Janeiro, LuizEduardo Soares, em que documenta a vida dos meninos do tráfico em todo o Brasil. Também é presidente da
20
um caminho potencialmente revelador, mas que não seria dado a nós construir.
IV - O Método de pesquisa: o fazer fotográfico como olhar “de dentro”
Surgiu, então, o ponto nodal, a mim como pesquisadora e fotógrafa: como a
fotografia, se incorporada pelos jovens do Hip Hop com um novo meio de
expressão entre as demais manifestações da cultura, apresentaria o Hip Hop em São
Carlos? Como os bailes blacks, os eventos de música Rap e Break, o Grafite dos
muros, as oficinas de dança e de Grafite, as reuniões do Movimento em salões na
cidade seriam fotografados por eles? Em síntese, interessamo-nos por conhecer a
fotografia e a “imagem” apresentada por eles mesmos, por um “olhar de dentro”.
Nesse sentido, já fazendo parte do programa de pós-graduação em
Comunicação e Semiótica, iniciamos a pesquisa de mestrado com a preocupação de
esclarecer os “termos do contrato” que definiu como objeto de pesquisa as
fotografias realizadas por integrantes do Movimento na cidade, definida, então,
com a primeira etapa da pesquisa, a da produção fotográfica. Já envolvida no
Movimento, como dito anteriormente, notamos ser o registro fotográfico e
videográfico prática corriqueira e, baseados nisso, propusemos aos grupos da
cidade que realizassem fotografias. Dissemos que este material seria objeto de
pesquisa de mestrado, que tinha como foco a atividade do Hip Hop naquela cidade.
Não houve direcionamento do assunto a ser fotografado, sendo o critério (o recorte
dos temas, por exemplo) totalmente definido pelos jovens envolvidos na pesquisa,
a quem chamamos fotógrafos do Hip Hop.
Vale ressaltar que colocamos à disposição dos grupos câmeras fotográficas
analógicas e filmes 35mm e de tempo em tempo recolhíamos os magazines para
Cufa, Central Única das Favelas, faz parte da Frente Brasileira de Hip Hop e do PPPomar, Partido Popularpara o Poder da Maioria (negra).
21
revelação. No processo, eles passaram a nos fornecer, voluntariamente, fotografias
digitais. As máquinas circularam entre os grupos de maneira a impossibilitar a
identificação do fotógrafo ou, se pudéssemos falar, da autoria. Essa questão é
considerada em nossa análise, fazendo-nos refletir sobre o simulacro do
enunciador e os desdobramentos no exame da enunciação.
A etapa de produção fotográfica é, pois, entendida como parte intrínseca ao
processo de análise uma vez que existe o pressuposto de que entre pesquisador e
fotógrafos há um olhar “acordado”, ou seja, um olhar anterior às fotografias que
determina de antemão quem vê (pesquisador) e quem é visto (grupo Hip Hop).
Porém, consideramos também um outro modo de compreender essa relação,
quando nós, para os fotógrafos, somos uma imagem construída, aquela da
academia que os destacará como sujeito a ser visto “com projeção”. Este método de
pesquisa estabelece um contrato entre ambos que o texto fotográfico irá
problematizar no decorrer da análise. Isto porque existe, digamos, uma imagem
pré-estabelecida que marca o lugar de fala do grupo, propriamente de um
integrante do Movimento Hip Hop. No entanto, a afirmação de “pertença” era mais
ou menos esperada, mas não é única e conclusiva como tentaremos mostrar com a
análise das fotografias.
A propósito das relações contratuais estabelecidas pela pesquisa temos os
seguintes papéis:
Destinador: pela proposição de pesquisa e “encomenda”
das fotografias aos grupos
Pesquisador
Enunciatário/destinatário: sujeito do ver em primeira
instância.
22
Destinatário: pela realização das fotografias
Grupos Hip Hop
Enunciador: ator da enunciação que se projeta em actante
do enunciado
Por fim, podemos depreender um último sujeito:
Movimento Hip Hop
Destinador dos grupos Hip Hop, pressupondo o discurso
“fundador” em relação ao contexto de realização das
fotografias
Entre outubro de 2004 e maio de 2005 contamos com pouco mais de 600
fotografias e, a partir delas, nos vimos diante de uma nova problemática
claramente estruturada: além das “imagens-referência”, ou estereótipos – dos
quais compartilhamos ao reconhecer nas fotografias o contexto sócio-cultural de
uma prática Hip Hop -, nos deparamos com construções fotográficas alheia ao
contrato, “imagens desconhecidas”, cuja constituição questionou nosso ponto de
partida sobre o referencial Hip Hop proposto num primeiro momento, instigando a
ver tantas outras figuras no objeto fotográfico. Com isso, delineamos também uma
aposta desta pesquisa.
As ditas imagens-referências, que representam o maior número do
exemplário fotográfico, constroem o Hip Hop e reafirmam o Movimento que tem,
ao menos na produção visual (sobretudo na construção corporal), um traço comum
até como uma estratégia discursiva para marcar visibilidade dos valores ali
apresentados, valores esses de cunho histórico, econômico e social, para manter a
23
coesão do grupo e diferenciá-lo dos demais movimentos juvenis. Estas imagens
negariam, como supomos, as diferenças regionais que imprimem “tons” próprios a
cada lugar onde se realiza, isto é, o próprio movimento de São Carlos.
Evidentemente que essa imagem mais ou menos esperada nas fotografias
são consideradas em sua força, até pelas recorrências temáticas circunscritas nas
imagens. Por essa razão, adotamos quase que por intuição, mas também por
conveniência, o termo retrato e, posteriormente, o adotamos por adequação
conceitual.
Após o primeiro período de análise do objeto, percebemos outras figuras,
mais próximas ao inesperado, ao instante, ao inusitado, e que parecem construir
outros retratos do grupo, chamando a atenção tanto para figuras do conteúdo
quanto para dimensão plástica articulada no texto fotográfico. Vimos abrirem-se
novas possibilidades análise que admitem, na elaboração conjunta entre
plasticidade e figuratividade, a construção estética própria presente no olhar
fotográfico do grupo. Algumas mais comprometidas com o sensível do que com o
inteligível, e outras, ainda, numa tensão harmoniosa de ambos.
O “novo” e o “desconhecido” dessas imagens nos conduzem a diferentes
caminhos de análise, colocando-nos outro ponto de partida baseado na descoberta,
na compreensão e na construção do sentido, longe, portanto, das deduções de que
nos cercamos no início do trabalho. Partimos de uma imagem-comum, mas
percebemos nos encaminhar para inúmeras outras, que fazem explodir a força
coesiva do discurso inicial. Nossa problemática, portanto, foi reformulada diante
desses olhares figurados, fazendo-nos perceber o quanto nossa proposta inicial
recaía sobre as imagens-referência, antes mesmo das fotografias serem realizadas.
Percebemos, na relação com as imagens, a importância do método adotado, como
processo essencial à compreensão e construção de conhecimento do universo
imagético e de seu papel na relação comunicativa em que se inscrevem os sujeitos.
24
Dessa maneira, desvela-se o diferencial de uma análise semiótica para outros
campos de conhecimento que tomam a fotografia, ou mais amplamente a imagem,
como objeto de estudo. Segundo a perspectiva semiótica e seu arcabouço teórico
metodológico o próprio objeto mostra os problemas a serem refletidos, pois exige a
proximidade e a disponibilidade do pesquisador para sua “escuta”. Isto é, o olhar
do semioticista requer a tarefa de enfrentar os sentidos dados a priori à análise do
objeto e se constrói à mesma medida que constrói o objeto como um todo de
sentido. Como veremos em nosso próprio percurso, a desconstrução às vezes é
mais significativa para o nosso processo reflexivo enquanto pesquisador, até para
problematizar nossas escolhas e conclusões.
A pesquisa proposta trata, portanto, da compreensão dos procedimentos de
figuratividade e tematização do Movimento Hip Hop como texto cultural vivido,
tomado a partir do ponto de vista fotográfico dos próprios participantes do
Movimento. Nesse sentido, o estudo preocupa-se com as diversas figuras
construídas pelo conjunto fotográfico, que enredam estratégias discursivas para a
constituição do universo identitário do grupo como Um Hip Hop dentre Outros. A
etapa de produção das fotografias identifica-se com a estratégia de pesquisa em
que julgamos o fotografar um importante processo de escolhas sobre o que mostrar
de si, onde o olhar deste Hip Hop marca diferentes modos de ser nos lugares em
que se faz presente.
V - Focalização da pesquisa
A problemática da dimensão figurativa e temática, estruturada nas imagens
fotográficas que apresentamos neste trabalho, relaciona a construção do sentido
com a análise dos modos de visibilidade e de existência desses sujeitos no mundo,
25
fazendo seu contexto significar no texto fotográfico. Temos em vista que, ao falar da
construção do sujeito pelas armações figurativas das imagens, estamos falando
também de um simulacro do grupo Hip Hop em questão e, portanto, de uma
configuração identitária que o conjunto fotográfico possibilita conhecer. Nessa
perspectiva as marcas da enunciação produzem efeitos de sentido de presença de Si
e do Outro.
Como ponto de partida – mediante a proposta apresentada aos participantes
do Movimento Hip Hop naquela cidade para que eles próprios se tornassem os
fotógrafos das atividades do Movimento – temos no centro da enunciação o ator
coletivo Hip Hop. O corpo fotográfico resultante levou ao seguinte questionamento:
quem é esse enunciador construído e pressuposto pela dimensão figurativa das
imagens? A partir do revestimento temático, qual mundo, ou mundos, eles
mostram? E, sobretudo, de que maneira essas figuras do olhar fazem significar sua
existência no mundo, onde assumem papéis e se constroem socialmente? Partindo
da concepção de que a figuratividade desencadeia níveis de profundidade de
“leitura”, tencionando os limites entre a iconização (efeito de referencialização) e
abstração (efeito de distanciamento, de poeticidade), apostamos que “a força do
registro e da evidência” da imagem não a condena ao meramente reconhecível,
mas desestrutura o caráter objetivo de tal empreitada para fazer ver.
Vemos a construção do simulacro do Hip Hop “montado” como o “grupo de
referência”, a partir do qual as várias figuras do olhar permitem conhecer os
olhares figurados e, assim, sua dimensão múltipla de ser e estar no mundo. Nesse
corpus reúnem-se fotografias: dos bailes; dos eventos realizados em espaços
públicos; dos encontros, chamados “batalhas”, de B-boys e Mc’s, que são eventos
de dança e de música; do Grafismo nos muros; do bairro; da casa; de Si. Para dar
conta dessa construção apresentamos um número significativo de imagens em que
veremos quais as escolhas recorrentes, localizando predominantemente as figuras
26
do conteúdo, embora algumas vezes se torne necessário atentar às figuras da
expressão, quando estas “saltarem aos nossos olhos”, para homologá-las ao plano
do conteúdo. A fim de traçar um caminho metodológico de construção da imagem
do Hip Hop em questão, dividimos as fotografias em 4 cenas segundo núcleos
figurativos e temáticos, que devem ser compreendidas num conjunto
interdependente para formar um único texto. Os títulos são apontamentos
temáticos em cada grupo de fotografias, num esforço de criar um corpo
homogêneo para produção do sentido, sem perder de vista os outros possíveis,
acreditando, um dia, poder conhecê-los9.
O caminho percorrido por nós, ele próprio construindo a narratividade do
discurso, revela-se como estratégia metodológica para fazer aparecer os
procedimentos usados na construção do sentido, tão necessária à implicação de
cada foto para integração em um todo, num rearranjo do ser continuamente.
Enfim, ao adentrar nesta pesquisa, questionamos nosso papel neste curso do olhar,
fazendo uma última aposta de que os regimes de visibilidade se interdefinem com
os caminhos da própria questão imagética.
9 A.J. GREIMAS. “Os atuantes, os atores e as figuras”, In ______Semiótica Narrativa e Textual. Trad. J. A.Durigam. São Paulo, EDUSP/Cultix, 1977, p. 179-195.
Capítulo ICapítulo I
30
O horizonte fotográfico e a imagem possível: orientações conceituais
Não é novidade a informação de que nós mesmos temos em nosso cotidiano
a necessidade de nos tornarmos presença diante dos olhos dos outros, vide redes
de comunicação virtuais que integram pessoas de todo mundo por perfis auto-
denominados, auto-referencializados. Por meio destes é possível se associar, ainda
como definição de uma identidade possível, a outras redes de comunidades que,
em geral, agregam algumas, digamos, “qualidades” ao sujeito pertencente a esse
universo de relações. Tudo isso recheado de muitas imagens, algumas
extremamente “pessoais”, outras nada condizentes com o mundo ao qual se
pertence, sequer ao mundo “real”. Estes, portanto, são os álbuns de fotografia, um
misto de memória e de homenagens a si a ao seu entorno: nostálgico, característico,
engraçado, arrumado, próprio ou inventado.
Se o ato de se fazer imagem indica um desejo de querer ser significante ao
outro - na presença dele, com ele, por ele ou apesar dele – então, realizar-se por
instantâneos fotográficos, caracteriza o contínuo ser do sujeito da imagem tal como
se propõe, num simples estar no mundo. A performance para mostrar-se é, de
imediato, o vínculo que nos conduz de um mero reconhecimento de imagens como
eventos documentados a uma forma significante do sujeito olhar para si, em estreita
relação com o outro. Esta percepção, interação e sensação, se constrói conforme sua
prática o faz ser. Ou seja, a produção das fotografias pelos próprios sujeitos da
imagem permite que apostemos na idéia de que é nas passagens da vida cotidiana,
se quiser nas situações do dia-a-dia, que a identidade se organiza tal como um
prisma, tal como um conjunto de ângulos possíveis, compondo uma montagem
imagética do sujeito. Assim iniciamos esta análise e um primeiro olhar é lançado
31
ao grande número de fotografias que, como acreditamos, fazem surgir facetas de
um sujeito empenhado na tarefa de se apresentar mediante uma particularidade.
Ao apresentarmos o panorama de fotografias, pela forma que as vemos
construir figurativamente momentos distintos de um olhar, tentaremos
desenvolver um método de análise que possa dar conta do corpus tão diversificado.
A partir de um princípio geral de organização das qualidades do objeto
fotográfico, centrado na dimensão figurativa e plástica e nos efeitos de sentidos daí
depreendidos, é possível entender determinadas maneiras do objeto evocar o
contexto de sua produção, o que envolve o exame da enunciação. Por essa razão,
tal análise coloca-se numa perspectiva de natureza sociossemiótica, cujos
princípios analíticos contextuais, das condições de realização das fotos a partir de
um ponto de vista social e/ou histórico, se inserem no centro do próprio visual.
Esta é uma questão cara ao nosso estudo uma vez que os fotógrafos
envolvidos na pesquisa são os próprios jovens participantes do Movimento Hip
Hop. De fato, como etapa fundamental à constituição da presente pesquisa, a
realização das fotografias se inscreve como estratégia metodológica que não pode
ser ignorada no processo de análise, pois estamos a refletir sobre um olhar do
outro sobre si mesmo, construindo-se fotograficamente. Isso significa a
pressuposição de um “eu” no enunciado, mais ou menos conhecido por nós em
termos de sua “real” existência, exatamente como a figura do enunciador que se
projeta ou não no texto visual. Esse fazer é assumido na análise ao considerarmos
que aquilo que se vê é uma parcela do desejo do ator querer ver-se ao mostrar-se
como um eu implicitamente instalado no tempo e no espaço do enunciado,
podendo ser recuperado por mecanismos enunciativos específicos.
Como conseqüência surgem maneiras distintas de construir um universo
comum que dá a ver tanto os sujeitos incluídos e participantes deste mundo,
quanto outros com quem estabelecem direta ou indiretamente a relação interativa
32
por meio de suas presenças como sujeitos na fotografia. Em primeira instância, é o
próprio olhar da pesquisadora que está implicado nesta construção como
propositora do fazer fotográfico, no papel de enunciatário, para quem os
fotógrafos mostram sua produção. Isto quer dizer que nós, como sujeito da
pesquisa, nos construímos na mediação do olhar, levando adiante, aos outros
enunciatários, um repertório visual capaz de mostrar os sujeitos e seu entorno.
Imersos neste processo de comunicação, feito de múltiplas implicações de
anterioridade, de concomitância e de posteridade, assumimos o duplo papel de
observador ou, dito de outro modo, assumimos papéis actancias distintos e
interdependentes: de enunciatária-destinatária, como dito anteriormente, e de
destinadora, mesmo considerando não haver qualquer orientação, no processo de
realização das imagens, quanto ao que, como e onde fotografar. De fato, sugerir
que os integrantes do Hip Hop se tornassem fotógrafos de sua prática em grupo é
colocar em seu horizonte a figura da pesquisadora para quem serão entregues as
imagens, no que já está declarado as modalizações pelo querer, dever, saber e
poder fazer, ou seja, de um percurso narrativo de aquisição de competência com o
propósito de executar a performance do fotografar. De outro lado, os fotógrafos
têm em nós, como enunciatária pressuposta, o sujeito do fazer interpretativo para
quem se mostram fotograficamente, a quem devem fazer crer no sentido produzido
pelo discurso. Assim ocorre mais uma vez o desdobramento de papéis, de
destinador-enunciador e de destinatário. Mais à frente retomaremos esse jogo de
manipulação.
A questão que nos pareceu bastante instigante foi como relacionar a riqueza
de manifestação do universo Hip Hop, que sabemos uma reflexão que não se insere
diretamente ao nosso campo de ação, ou não é a via principal de nosso estudo, com
as fotografias que o grupo nos apresenta. Interessa-nos, em princípio, investigar
que mundos somos colocados em relação a partir das figuras e temas construídos
33
pelo conjunto de fotografias, sobretudo porque neles há investimento de valores
que nos permitem compreender que universo identitário é colocado à nossa vista
para ser visto.
A abordagem da fotografia, como objeto cujo sentido é resultado de um
percurso gerativo de significação, há de relacionar o que é dito nos limites do
mundo “externo” à ela e o que, por outro lado, lhe vem por particularidades ou
peculiaridades. Isso significa estar atento aos imprevistos que ela pode nos fazer
enxergar, inclusive outras formas de manifestação do grupo que vêm romper a
referência do universo Hip Hop, em princípio pressuposto nas fotos. Tarefa difícil,
mas aí está o posicionamento semiótico da pesquisa a que nos propomos,
admitindo que muitas renúncias serão feitas, por pouco contribuírem para a
abordagem da produção do sentido das fotografias.
Numa postura tomada a priori seríamos tentados a afirmar que todo
encadeamento figurativo trata exclusivamente de temas relacionados à cultura Hip
Hop, por meio do break, do rap, do grafite, mostrados em grande parte nos eventos
públicos e nas reuniões dos grupos. Não à toa que a idéia de relação em semiótica
torna-se fundamental por trazer ao centro da questão a noção de dinamismo para a
definição do sujeito e não o contrário, pois senão estaríamos apenas, pela repetição,
lidando com o pré-determinado. Em outras palavras, se levássemos em
consideração apenas a relação pressuposta entre enunciador, grupo de fotógrafos
do Hip Hop, e enunciatário em primeira instância, ou próprio pesquisador, as
fotografias revelariam estereótipos e apenas isso, anulando suas particularidades
significantes.
Mas o que fazer com imagens, como veremos na análise, que acionam outra
via de conhecimento? Daí a necessidade, em alguns momentos, de alçar o nível da
manifestação das fotografias para buscar justamente o que o objeto tem a mostrar,
antes de determiná-lo ser e/ou significar algo para além ou aquém dele mesmo.
34
Para dar conta da análise das fotografias no nível de sua plasticidade, partimos
das abordagens da semiótica plástica elaboradas por Jean-Marie Floch10, tomando
como base seus estudos de semi-simbolismo, segundo os quais é possível explorar
a articulação de sentido em relação interdependente dos modos de organização da
dimensão plástica, do plano da expressão da fotografia, com o conteúdo nela
plasmado, operacionalizando um nível mais complexo da edificação discursiva.
Para embasar nosso estudo é fundamental o conceito de retrato que
lançaremos mão daqui em diante, uma vez que cada caracterização de um grupo
de fotografias nada mais é do que a configuração de um tipo retrato, mais
precisamente de um auto–retrato, produzido por um olhar “de dentro”, isto é, pelo
olhar fotográfico de integrantes do movimento Hip Hop. Esta informação,
decorrente da estratégia metodológica da pesquisa, encadeia o reconhecimento de
distintas estratégias adotadas por um enunciador pressuposto para se mostrar,
como apostamos, por um caráter mais reflexivo ou mais transitivo, conforme o
exame da enunciação poderá explicitar.
1. 1. Auto-retrato: o sujeito e seu entorno
Na tese de doutorado Regimes de visibilidade e construção de simulacros: auto-
retrato contemporâneo11, Lauer A. N. dos Santos realiza o estudo de trabalhos de
diversos artistas para compreender como o auto-retrato é construído nas obras de
arte, sobretudo em obras bidimensionais, analisando os diversos mecanismos
empregados pelos artistas para “se definir” identitariamente no trabalho. No
10 Exemplos de análise de imagens fotográficas ver: J-M Floch. Les formes de L’empreinte. Périgueux, PierreFanlac, 1986; e “Un Nu de Boubat”, In Petites mythologies de l’oeil et de l’esprit: por une sémiotiqueplastique. Paris-Amsterdan, Éditions Hadès-Benjamins, 1985, p 21-38.11 L. A. N. Santos. Regimes de visibilidade e construção de simulacros o auto-retrato contemporâneo. SãoPaulo, 2003. 251f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica). PUC/SP.
35
decorrer da análise o autor mostra as várias estratégias utilizadas na construção da
identidade visual dos artistas a fim de desvelar o sujeito instalado na obra como
produtor de si, e buscando compreender como determinados papéis sociais são
assumidos pelos sujeitos da enunciação no enunciado.
A construção do auto-retrato, em que o sujeito busca ver ou mostrar a si
mesmo na imagem, como afirma Santos, pode ser feita de maneira mais ou menos
explícita. A partir de um grande corpus que abrange o tema auto-retrato, o autor
seleciona algumas exposições e estabelece alguns critérios de análise baseado
prioritariamente na figuratividade, sobretudo de como está sendo colocado em
discurso o simulacro do enunciador pressuposto, ou seja, por semelhança de
representação que mantém com o artista implícito. Um outro critério diz respeito
ao título, que implica na questão contratual, e em alguns casos indicam sua
pertença ao gênero auto-retrato Assim como o título pode definir o tema de obras
como pertencentes ao auto-retrato, outras
“são consideradas como pertencentes a essa classe por fatores “externos”,
como por exemplo, o fato de estarem inseridas em exposições de auto-
retratos ou em virtude de algum depoimento do artista; há também obras
que apresentam marcas figurativas que, para definir o artista, mostram-
no com seus instrumentos, no ambiente ou em atividades ligadas ao
trabalho; ou ainda casos de artistas cujo conjunto da obra, por ser dotado
de forte componente auto-biográfico, é capaz de situar, mesmo em
trabalhos isolados, como relativos a uma problemática em torno do auto-
retrato”12.
12 Idem, p. 43.
36
Isto posto, parece-nos que as imagens de que trataremos, sobretudo as que
serão destacadas na análise, configuram o auto-retrato, por um lado, pela
apresentação de traços característicos dados ao re-conhecimento de marcas de um
enunciador pressuposto, pela situação visual implicada no fazer do sujeito, mais
precisamente inserida num contexto do “ritual” cultural do grupo que o realiza,
inscrevendo papéis temáticos que embasam esta compreensão; e por outro lado, as
fotografias mostram outras facetas do grupo por cenas do cotidiano. Na medida
em que percebemos se tratarem de modos diferentes de se fazer ver em seu
“ritual”, fazem-nos perceber, em contrapartida, a sua “rotina”. Voltamos, portanto,
a uma componente sócio-cultural que nos dá subsídio para crer que os fotógrafos
nos trazem cenas da vida em grupo, por formas de sociabilidade, percebendo
como a construção do auto-retrato abarca a reflexão do contexto do grupo pelos
modos de se construir para outro e para si. A análise da enunciação, pelos
procedimentos de debreagens (disjunção do ‘eu’ da enunciação no discurso) e
embreagens (retorno à instância da enunciação), mostrará como e quem é o “eu”
projetado e figurativizado no enunciado, podendo elucidar como o enunciador
pressuposto se faz conhecer deixando marcas de sujeito pertencente a determinado
grupo ou, ao contrário, a grupo nenhum.
1.2. Disposição geral: querer ser visto
Diante desse primeiro acesso às imagens, que nos remetem aparentemente a
uma maneira predominante do sujeito se mostrar, constatamos de imediato a
disposição do grupo em fazer seu auto-retrato, o que o insere num regime de
visibilidade cuja prática define o “querer ser visto” pela especificidade do ato
fotográfico. Não seria precipitado dizer que tal disposição é a questão central da
37
problemática da pesquisa quanto à construção de uma identidade visual do grupo,
da relação do texto e do contexto de sua produção, onde temos por preocupação
pontuar a importante etapa de produção fotográfica nesse processo, como já
exposto na introdução.
A problemática delineada, que nasceu da observação direta do fazer desse
grupo, enriqueceu e mesmo desmontou nossa expectativa quanto a uma imagem
pré-definida. Embasados pela sociossemiótica, vimos que não se trata de confirmar
o já dito como se elas fossem apenas um registro e sim compreender como o
enunciado, nas situações apresentadas, coloca em relação o “querer se mostrar” em
razão de um querer fazer-se (re) conhecer. Veremos, então, que há cenas em que
predominam gestos, elementos, sistemas visuais como uma estratégia de criar a
referência do está sendo mostrado com o movimento cultural do qual faz parte.
Em outras, percebe-se o desejo de mostrar a face, com um pouco mais de
proximidade, talvez para mostrar a singularidade do sujeito. Noutras ainda, o
grupo torna-se mais importante, para dar a idéia desse coletivo e dessa partilha
das idéias, do estar junto, enfim, para convocar uma forma de sociabilidade em
que o corpo é um todo, quase uma massa, reunida na semelhança do gesto, da
roupa, da expressão.
Mas é importante salientar que a disposição volitiva que orienta os sujeitos
no empenho de tornarem visíveis cerca-se de uma complexidade à medida que as
fotos apresentam traços não referentes ao pressuposto Hip Hop, com figuras e
temas variados, que reestruturam o caminho percorrido a cada foto.
Cria-se, por isso, um vínculo de proposição mútua: os fotógrafos, inseridos
no enunciado, organizam a cena de maneira a dar ao observador o melhor ângulo
possível de si e este, ocupando seu lugar na definição das cenas, assume seu posto
de sujeito comprometido. A partir do momento que um objeto visual, um auto-
retrato, é construído para apresentar determinado sujeito, na verdade prioriza-se o
38
olhar do enunciatário, que em nosso caso toma como representante, em primeiro
lugar, o próprio pesquisador.
Por isso, ao considerarmos a noção de regime de visibilidade pela
modalização do “querer ser visto” parece-nos adequado submeter nossa análise
apenas a esse termo, pela existência da proposição dita acima. Consideramos haver
sempre a disposição em se fazer ver, o que torna inadequado relacionar seus
termos contrários e contraditórios, conforme as projeções do quadrado semiótico13,
sobretudo porque ao pensarmos numa prática em que o mostrar a si mesmo
depende exclusivamente da produção de si, como é caso do auto-retrato, somos
levados a admitir que prevalece a idéia de exibição. Nesse sentido, a análise recai
sobre as estratégias figurativas utilizadas nessa produção para mostrar o sujeito
em seu fazer mais explícito ou mais oculto. Embora saibamos dos riscos de tal
reflexão, insistimos na constante “querer ser visto”, dada às condições da produção
das fotos, nos distintos modos de fotografar que se apresentam como um jogo
estratégico estabelecido pela enunciação.
Levaremos em conta o contrato prévio entre enunciador e enunciatário,
calcado num querer ser visto que é de conhecimento deste último. Esse saber entra
na avaliação do tipo de visibilidade entendendo que se tratam de variações de
figuratividade que revestem o sujeito auto-retratado e, por isso, resultam numa
espécie de reiteração do sujeito, seja pela imediata identificação de si mesmo, seja
pela completa indefinição. Por esse motivo, parece se instalar um jogo entre
funções “ser visto” (do sujeito do enunciado) e “fazer ver” (relativo ao sujeito da
enunciação), funções interdependentes, que acarretam na aceitação de que as
diferentes formas de figuratividade que revestem o sujeito auto-retratado nada
mais são do que expressão de um desejo “incondicional” de visibilidade, algo
13 A.J. Greimas; J. Courtes, Dicionário de Semiótica, Trad. A. D. Lima et alii, São Paulo, Editora Cultrix,1979, p.365.
39
como a conquista da imagem a qualquer custo. Nessa perspectiva, entre as fotos
enuncivas, aquelas caracterizadas por sujeitos em relação no interior do enunciado,
e as fotos enunciativas, que convocam a instância da enunciação, o princípio
motivador é o olhar do outro presentificado como figura central dessa construção.
Embora saibamos que a intenção não é considerada na análise semiótica, não
podemos deixar de lado o nosso pressuposto de pesquisa, ou seja, daquela
proposição mútua dos sujeitos colocados em relação pela metodologia.
A partir do estudo de Santos adotamos alguns critérios para a orientação
das análises, sobretudo quanto à identificação das estratégias de enunciação, por
serem capazes de proporcionar a compreensão das formas através das quais um
enunciador pressuposto coloca-se em discurso ao mesmo tempo que dá acesso a
uma problemática relativa ao contexto em que inserem tais fotografias. Assim,
como desenvolve Santos, daremos especial atenção às relações sintagmáticas que
essas imagens estabelecem entre si e seu contexto e às relações paradigmáticas que
estabelecem com o conjunto das fotos, com intuito de apontar para presença de
auto-retratos isolados ou para o conjunto de trabalhos em que a busca de uma
identidade é figurativizada de maneira mais explícita, através de manifestações
situadas em torno de uma busca de si mesmo, de cunho “autobiográfico” segundo
o autor. Isso tem importância à medida que percebemos que as fotos trazem outras
referências e temas além do grupo ao qual supostamente pertence.
1.3. Mostrar
Num primeiro nível de análise das imagens surgiu a necessidade de
esclarecer a especificidade dessa construção, que acreditamos articularem auto-
40
retratos, que por sua vez montam uma face múltipla da identidade do sujeito
instalado nas fotografias. Pela figuratividade podemos reconhecer as marcas da
enunciação de modo a confirmar tal empreitada, qual seja, do empenho do sujeito
de se fazer conhecer por figuras que se encenam no mundo. Podemos admitir que,
pela recorrência de temas circunscritos a essas figuras, o auto-retrato assume a
especificidade de seu entorno, o que tão logo pode apresentar alguns problemas.
Santos parte do viés mais elementar do auto-retrato, utilizando uma
definição elementar - como sub-termo do retrato pela noção geral de retrato de um
indivíduo feita por si mesma -, a partir do que examina as condições capazes de
configurar as situações para seu entendimento, relacionando-o precisamente ao
caráter social ou psicológico. Pelo caráter social, amparado por traços figurativos
ou temáticos, o trabalho do artista permite a identificação de uma figura
individualizada cujo ponto de partida aponta para seu reconhecimento como aquele
que se apresenta pelo “ofício”, como produtor instalado na obra. Entra nessa
identificação, por exemplo, não só a questão de semelhança do retrato com o artista
como também o título explícito do “feito por mim mesmo”. Pelo caráter
psicológico, termo que assume como não adequado, mecanismos figurativos
variados são responsáveis por mostrar o enunciador.
O auto-retrato, nesta reflexão, apresenta-se como uma manifestação a partir
da qual é possível inferir as propriedades interoceptivas e/ou exteroceptivas de um
determinado sujeito, no que ele define também por dimensão
psicológica/individual e profissional/social, respectivamente, cujos
desdobramentos correspondem a efeitos de sentido de maior ou menor
reflexividade, mas que nem por isso deixam de criar a figura auto-referente. Nisto
há uma variação quanto à dimensão profissional ou não-profissional, donde
decorrem simulacros tendo em vista o caráter mais social, exteroceptividade, ou
mais psicológico, interoceptividade.
41
Tal categorização primeira interessa-nos por apontar um caminho rumo à
discussão de simulacros construídos nas fotografias analisadas, em que o caráter
social de uma imagem instituída vale pela identificação do sujeito. Segundo o
autor:
“o auto-retrato de caráter social é associado a alguns sujeitos do
enunciado pela tematização de sua atividade profissional – relativa a um
fazer saber do sujeito narrativo – indicado figurativamente pela presença
de instrumentos e/ou ambiente de trabalho, inclusive vários deles são
vistos no ato de realização do auto-retrato (...) Tais simulacros pautados
num critério de semelhança com figuras do mundo natural, lançam mão,
nesses casos, de um princípio de concomitância temporal que enfatiza o
dizer verdadeiro dos autores representados metaforicamente como
enunciadores no enunciado, figurativizando o instante mesmo em que se
constroem aquelas obras.”14
Os simulacros do tipo profissional/social, portanto, apresentam um conjunto de
marcas, identificáveis no texto, que remetem à instância da enunciação, e que
evidenciam a enunciação enunciada, em dois casos: a) com um “eu” sujeito do
enunciado figurativizado por semelhança no instante da realização das imagens; b)
como um “ele”, tanto reflexivo (empenhado na construção de sua imagem) quanto
transitivo (remetendo à instância responsável por sua construção e ausente do
espaço figurativizado no enunciado)15.
Já numa segunda categoria Santos relaciona o não-profissional com o caráter
psicológico das obras, explicando que nestas imagens predominam a percepção do
14 Santos, Op.Cit. p.90.15 Cf. J. L. Fiorin. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e temp. São Paulo, EditoraÁtica, 1999, p.63.
42
artista de si mesmo mediante uma abordagem interoceptiva, sem que isso esteja
atrelado ao seu ofício: quer dizer que “carecem de um investimento figurativo
particular e constante, obrigando a uma ampla gama de traços que aponta para
inúmeros fazeres ou estados”16. Neste ponto vemos que parte das fotografias de
nosso estudo encontra um caminho possível de análise, porém com algumas
diferenças que não permitem que utilizemos o mesmo termo psicológico. Nestas o
sujeito se mostra empenhado na construção de si, porém sem o revestimento Hip
Hop, aproximando seu fazer de um papel individual em contradição ao papel
social. Preferimos, então, adotar o termo reflexividade como definição geral deste
tipo de construção fotográfica do sujeito.
A distinção feita por Santos sobre o caráter profissional e não-profissional do
auto-retrato, conclui que:
“se figurativamente o termo profissional corresponde a sujeitos (atores)
revestidos de marcas alusivas do ambiente de trabalho, à atividades que
desempenham, ou a presença e/ou evocação de certos instrumentos, para
não-profissional correspondem sujeitos sob revestimentos figurativos
diversos, que não coincidem com os anteriores e em cuja identificação
reside a promessa de definição de algumas características particulares
capazes de definir figurativamente o que abrange a denominação
psicológico”
(...) “a identificação desse sujeito no enunciado está na dependência da
articulação de um conjunto de fatores que envolvem a relação contratual
proposta no título e a plasticidade – sobretudo presente na gestualidade
das pinceladas e materialidade constitutiva das figuras -, que poderão ser
reveladas no exame da enunciação, capaz de apontar o caráter enuncivo
16 Santos, Op Cit. p.93.
43
ou enunciativo das obras, ou seja, a ausência ou presença de marcas de
enunciação, respectivamente”17.
Vejamos que o título comum às obras de arte também pode ser entendido como
elemento presente nas fotografias que trabalhamos, só que fazendo parte da
construção interna da imagem, com inscrições em bandeiras, em camisetas, em
muros. Evidentemente que se trata de uma construção sincrética, verbo-visual, que
deverá ser levada em conta. Contudo, torna-se crucial a maneira de arranjar tais
palavras na construção visual, na mediada em que o sentido aí articulado “dá
nome” ao sujeito, estabelecendo uma espécie de vínculo entre identidade e
ideologia, que está na ordem do social e não do psicológico.
A partir desta definição, o autor pontua paralelamente a idéia de construção
visual do artista por supor uma ação, ou no caso um fazer pressuposto por essa
manifestação, que pode abranger o auto-retrato. Com isso, o conceito de
identidade mostra-se na esteira de todo pensamento, compreendido como
“um atributo cujo reconhecimento, em determinadas manifestações, não
necessita, obrigatoriamente, estar circunscrito a um gênero, podendo
mesmo ser a garantia de certas regularidades que têm em vista a
ultrapassagem das regras estabelecidas por tal gênero a um conjunto mais
amplo de práticas identitárias”18.
A partir daqui podemos avançar na idéia de sujeito coletivo, pela
articulação de um auto-retrato resultante tanto do caráter social quanto da
pressuposição do sujeito produtor da imagem que, insistimos em lembrar, é
17 Idem, p.94.18 Ibidem, p.53.
44
composto por um número desconhecido de fotógrafos participantes deste
Movimento.
Esquematicamente encaminhamos os seguintes termos substituindo:
Profissional/social Não-profissional/individual
psicológico
Transitividade/exteroceptividade Reflexividade /interoceptividade
Função do fazer ver função do ser visto
Por:
Simulacro social/convencional Simulacro individual/não-
convencional (formado pelo dissenso)
Relação de maior transitividade com o
externo, com o outro
Relação de maior reflexividade com o
grupo, consigo
Função do se fazer mostrar Função do mostrar-se
1.4. Ator e actante: sincretismo e olhar coletivo
Enquanto no estudo de Santos predominam obras que mostram mais a
presença do indivíduo, que como ele demonstra figurativizados de diversas
formas, inclusive com a presença de terceiros que têm por função presentificar o
artista, nas fotografias, o “autor” não pode ser identificado, o que cria a ilusão de
anonimato e reforça a idéia de uma produção coletiva. A relevância dessa simples
45
constatação está no fato de que, analisado num plano geral, ao mesmo tempo que
não há um único olhar que determina o ponto de vista da construção visual, há,
paradoxalmente, a afirmação de um tipo de “pertença” deste ou daquele fotógrafo
a um universo de ação imbuído de práticas culturais e sociais mais ou menos
comuns a todos eles. Na fragmentação surge a quase justaposição do olhar. Têm-
se, dessa maneira, sujeitos do enunciado cujo caráter mais transitivo reitera um
modo de se ver e ser visto (por princípio, distintos atores com distintas funções
actanciais), tal como os outros semelhantes também se propõem. É interessante
notar que isso perpassa também o caráter mais reflexivo das fotos (onde um
mesmo ator assume distintos papéis actancias), pois o sujeito do enunciado que ora
é o fotografado, num outro momento é o próprio fotógrafo.
As imagens indicam o empenho de um sujeito em se fazer mostrar nem
tanto na singularidade, muito embora isso aconteça em alguns instantâneos, mas
na reunião com o outro como um corpo coletivo que somente pode significar a si
mesmo à medida que integra em seu olhar o olhar do outro, seja esse seu
semelhante, preferencialmente, ou não. Isto fica claro nas imagens em que
determinados códigos são empunhados pelas mãos e repetidos por diversos
jovens, o que pode resultar em dois efeitos de sentido: o de reconhecimento e o
desconhecimento para o enunciatário, que posteriormente pode vir a ser
compreendido. Decorrente disso, o de familiaridade e o de estranhamento.
Comparativamente podemos pensar nesse grande número de fotógrafos
como aqueles que trabalham numa revista ou jornal: o enunciador não é senão esse
corpo maior formado pelo editorial, pelo repórter, pelo fotógrafo, pelo consultor,
enfim, reunidos em torno de um propósito comum. Em nosso caso, esse propósito
central é comparável, pois em termos mais abstratos o que se está falando, em
última instancia, é da construção de imagem que possa reunir as qualidades do
sujeito, quem sabe sua identidade no que ela tem de peculiar.
46
Não ignorando o fato de essa ser uma tarefa um tanto complexa,
constatamos que é justamente por essa diversidade de olhar, dado pela
figuratividade que a dimensão plástica concretiza no enquadramento, na
iluminação, no cromatismo, que distintas maneiras de concretizar o enunciado
podem promover o efeito de unicidade quando consideradas em seu conjunto,
mesmo porque a aparente diferença pode ser fruto de estratégias variadas, a fim de
simular distintos efeitos de sentido que estarão, por sua vez, em estreita relação
com certos crivos de leitura. Por esse motivo, determinada fotografia pode
convocar outros contextos, totalmente diversos daquele relacionado à cultura Hip
Hop, mas não perder sua relação com o empreendimento na construção identitária.
Através da articulação entre pessoas, espaços e tempos do enunciado e da
enunciação, decorrente da análise dos vários revestimentos figurativos e temáticos,
será possível estabelecer uma tipologia das fotografias pelos modos de mostrar, e
de montar, a vista panorâmica do auto-retrato do grupo que encena a si mesmo
nas fotografias. Desta forma, elaboramos nosso objetivo de pesquisa.
Ao analisar os procedimentos enunciativos inscritos nas fotografias, para
reconhecer certos objetos, seus valores, e sua inserção em determinado contexto
cultural, consideramos possível o cruzamento dos diversos dispositivos
entendidos como potenciais para o acesso à significação das imagens. Este
cruzamento permite que entendamos as construções, e os simulacros, do sujeito da
enunciação como um sujeito que quer se mostrar em seu próprio fazer, envolvido
não só por sua corporeidade presente, como o actante do enunciado que estabelece
a relação com o outro, transitivamente, mas pela complexidade de seu estado
passional, sensível, que surge da relação consigo mesmo em “comunhão” com o
outro, reflexivamente. Mas antes de partirmos à análise é preciso uma nota sobre a
relação que se coloca entre o fazer do enunciador coletivo Hip Hop e seu
enunciatário primeiro, o pesquisador proponente.
47
1.5. Acordos possíveis na dimensão do mostrar-se
Se a narratividade trata das ações transformadoras do homem sobre o
mundo e sobre as coisas19, nas quais se inscrevem determinados valores para esse
mesmo homem, as histórias, então, evidenciam o sujeito que a cada instante é
sempre outro, marcado em seu percurso por continuidade e descontinuidade, por
mais que sua performance seja proferida pela ação de um manipulador, pelo
regime de junção. Conforme sabemos, a gramática narrativa permite visualizar a
dinâmica da diferença entre sujeitos do enunciado, as disposições das relações
sociais e as mudanças que podem se efetuar entre sujeitos por meio da interação
entre o um e o outro, discussões que serão alçadas no nível discursivo.
Mesmo que vejamos se configurar a estratégia de manipulação, que
julgamos predominar neste trabalho, devemos atentar para os desníveis – talvez
descaminhos – que esta prática deixa entrever, pois sabemos que a manipulação
depende de um “acordo” a ser estabelecido entre as partes, no que está
subentendido também a possibilidade da discordância. Não se trata de uma
simples negação dos valores propostos, pois isso findaria a relação que ora parecia
tão profícua aos agentes. O que intervém nesse desacordo, momentâneo talvez, é a
pertinência de um sujeito manipulado que torna a sua presença fator determinante
para a modalização do destinador, que se vê, assim, sensível ao olhar do outro.
Como uma outra face da moeda, este agir por vezes parece acenar para o
desmonte do projeto inicial do destinador-manipulador, mas que, na verdade,
torna-se, em seu interior, uma variação necessária no percurso do sujeito,
sobretudo porque, nas estratégias para fazer-crer, a doação de um saber resulta ao
19 D.L.P. BARROS. Teoria do Discurso: fundamentos semióticos. São Paulo, Atual, 1988, pág. 16.
48
mesmo tempo na aquisição de outro valor, implicando num certo aprendizado
mútuo entre lá e cá dos agentes envolvidos na comunicação. Quando o texto se
sublinha por expressão artística (afinal é também por essa roupagem que o Hip Hop
se apresenta), o destinatário é levado não apenas a um querer-saber ou querer-
conhecer, mas também a um querer-experimentar ou sentir o que as formas lhe
propõem, em ato. Mediante tal possibilidade, como mais uma aposta de nosso
trabalho, admitimos na seqüência das cenas a ação dos sujeitos se desdobrar
também sob o regime da união, tomando como base os estudos de Landowski20, e
que será discutido em momento oportuno.
Uma vez admitido que possam ocorrer os tais desacordos no percurso
proposto - ou seja, que a conjunção com um objeto de valor, que em nosso caso
prevê a construção de uma identidade visual, pretendido pelo sujeito Hip Hop -
não se desdobre exclusivamente pelo regime da junção, admitimos também a
presença de imagens fotográficas que se colocam em relação oposta à grande
maioria, e que impõe outros modos de olhar. Se na comunicação entre os sujeitos
há que se considerar suas aproximações e distâncias quanto ao vínculo que os
tornam operantes pela linguagem, é preciso admitir que o “impulso” estratégico se
organize tanto em torno das simplificações21 das imagens que os relacionam
quanto das complexidades. Afinal, semioticamente, se, por um lado, temos
fotografias cujo arranjo cria o efeito de sentido de familiaridade, por outro lado, é
preciso o contraponto para dizer em relação a que este familiar é tido como tal.
20 E. Landowski. “En deça ou au-delà des stratégies, la présence contagieusein”, In Passions sans nom. Essaisde socio-sémiotique III. Paris, Presses Universitaires de France, 2004, cap. VI. Neste capítulo o autorapresenta um panorama da disciplina desde 1960, abordando os diferentes regimes de sentido e de interação, asaber a semiótica dos discursos enunciados, a semiótica das situações e, por fim, a semiótica da experiênciasensível, a partir do que desenvolve a problemática do procedimento do contágio sob o regime da união.21 Aproximamos essa idéia ao termo estereótipo no sentido que R. Barthes propõe em sua aula inaugural dacadeira de semiologia literária do College de França, definido como “cúmulos de artifício” que a sociedadecria e depois consome de volta como “sentidos inatos: isto é, cúmulos de natureza”, e que caracteriza,segundo ele, uma moralidade geral. Ver: R. Barthes. Aula. Trad. Leila Perroni Moisés. São Paulo, Cultrix,1980, p.33.
49
Assim, aquilo que chamamos imagens simplificadas nada mais são do que também
os vários simulacros e que de certa forma acolhem como sendo um tipo de ver e
mostrar o si.
Cabe a nós, nesse momento, indicar um princípio geral de análise orientado
predominantemente pelo regime da junção e investigar como os recursos de
persuasão do sujeito Hip Hop conduz os olhares do seu par pressuposto numa
empreitada cujos caminhos apontam para o estabelecimento de um contrato
fiduciário visando, com isso, a adesão do destinatário para o seu mostrar que
pretende como verdadeiro.
Partimos da questão que a nós parece lógica, mas que precisa ser explicitada
para justificar o Programa Narrativo de Base que propomos estabelecer, programa
este tomado por orientação geral na análise do conjunto das imagens. Pressupondo
já o fazer manipulatório sobre o grupo de fotógrafos pelo querer e dever fotografar,
teríamos o sujeito de estado grupo Hip Hop de São Carlos inicialmente disjunto do
objeto de valor identidade própria - imagem de si (SUO). Essa função, tida como a
relação mínima de transformação desse sujeito em busca do valor inscrito no e pelo
texto fotográfico, prescreve o estabelecimento de um simulacro da ação desse
sujeito sobre as próprias aparências as quais está vinculado, de forma a estabelecer e
romper, sucessivamente, contratos entre destinador e destinatário, reunidos
sincreticamente por um único ator e envoltos pelos conflitos que daí decorrem.
De imediato, consideramos num plano geral duas relações:
a) a do Sujeito grupo de fotógrafos Hip Hop em relação ao olhar do outro;
b) destes em relação ao olhar de si mesmos, sabendo que um modo de se
mostrar intervém no outro, ou então, se combinam.
Como essa imagem é construída para ser vista e reconhecida pelo outro, o
plano geral da narrativa caracteriza a relação de transitividade entre dois sujeitos
50
distintos, pois o agir transformador sobre o olhar do outro é, antes, o agir sobre a
competência cognitiva dos outros, numa trajetória de doação, do destinador, de
um saber sobre si mesmo, ao destinatário. Para operacionalizar a transformação
num nível mais profundo, percebemos a necessidade de deslocamento de olhar, de
actantes sintáticos distintos, S1 # S2, onde:
PN= F [S1 HH São Carlos d (S2 leitores de imagens Ov imagem própria HH)]
Mas há, pela segunda relação do grupo, o Programa Narrativo de
apropriação do actante sintático Hip Hop da imagem de si, entendido como
produção de um olhar fotográfico mais próximo ao si, ou seja de maior
reflexividade:
PN= F identidade [S1 HH São Carlos d (S2 HH São Carlos Ov imagem própria HH)]
Dessa maneira, o sujeito do fazer Hip Hop, enunciador e destinatário, ao
construir reflexivamente (S1 = S2) sua própria imagem cria outro modo de mostrar
o grupo. Afinal, fica-nos a questão: esse encontro com imagem própria não seria
uma performance para si mesmo, de auto-definição ou de convencimento, que o
seu “eu” assume diante dos “outros”, propriamente nos limites de uma alteridade?
Se assim for, então precisamos considerar a relação inerente entre
enunciador/destinador (grupo Hip Hop) e enunciatário/destinatário (“leitores”),
pelo mostrar, e que define o ponto de vista:
a) Do sujeito grupo Hip Hop, como percurso de aquisição de
competência para a produção da visibilidade da imagem própria,
51
implícito nas fotografias que são a performance de poder e saber
fazer; nisto já está implícito o olhar do “leitor” e de si próprio, que
modaliza o fazer do grupo.
b) Dos “leitores”, como sujeito do fazer, cujo percurso é de (re)
conhecimento de uma imagem do grupo; nisto já está pressuposto a
competência do destinador-manipulador grupo Hip Hop e o contrato
entre as partes baseado na confiança ou crença no discurso
enunciado e no próprio destinador.
As cenas deverão problematizar o percurso geral de aquisição de
competência para a construção de uma identidade visual do sujeito Hip Hop, os
fotógrafos do Hip Hop, e do percurso do sujeito “leitores de imagens”, via
pesquisador, pressupostos um no outro.
Apesar de uma aparente ênfase da performance, cabe salientar que a
constituição dos objetos modais (querer/dever/saber/poder reconhecer a imagem)
se confunde com o próprio projeto de concretização do objeto de valor imagem
própria Hip Hop, ao mesmo tempo em que constrói o valor-identidade. Ao
pensarmos na concatenação entre objeto modal e objeto de valor, compreendemos
as etapas do esquema narrativo canônico na lógica da implicação, por um lado, e
da sobreposição, por outro, assegurando a idéia de que as dimensões cognitiva e
pragmática são coincidentes na problemática proposta. Nada novo nessa
constatação, percebemos que essa questão embasa os dois programas narrativos e,
mais, os torna um. Se a performance remete à transformação principal da
narrativa, podemos dizer que os sujeitos são transformados um pelo outro,
continuadamente, a cada cena, remanejando as ações, os olhares, enfim.
52
Nessa dimensão contratual, diferentes tipos de manipulação se combinam e
revelam os valores que definem o sentido das aparências sobre as quais nos
propomos discutir, acreditando, com isso, retomar a função primeira em que a
ação do sujeito Hip Hop recai sobre si mesmo, inscrevendo a produção de sua
imagem pelos mecanismos enunciativos que permitem entrever a gestão do
sentimento de identidade22, ou as paixões que sustentam a ocupação de um lugar que
almeja visível tal como o constrói. Por fim, coube a nós perguntar de que maneira a
metodologia de pesquisa, que contou com a etapa de produção fotográfica por
conta do grupo Hip Hop na cidade, procurou dar visibilidade a essa gestão, fazendo
ver sob o prisma deste Hip Hop “Um” sujeito que se vê mostrando-se por
fotografias?
Vejamos, então, como esses olhares constroem também nosso modo de vê-
los.
22 Termo emprestado de: E. Landowski. Presenças do Outro. Trad. M. Amazonas. São Paulo, Perspectiva,2002, p.92.
Capítulo IICapítulo II
55
Do panorama ao tipo: as imagens organizam o caminho.
Diante do largo exemplário, de cerca de 600 fotografias, encaminhamos
alguns critérios, conforme apontado no capítulo precedente, para organizar a
análise, na tentativa de elaborar um método de categorização do corpus da
pesquisa.
As cenas, como chamaremos cada grupo de imagens, dizem respeito a
configuração de um tipo de auto-retrato, agrupadas conforme a proximidade
figurativa e temática, sobretudo no que diz respeito aos papéis temáticos
construídos no percurso narrativo do sujeito e que poderão ser observados pela
discussão da sintaxe discursiva no decorrer da análise. Tais cenas são, portanto,
estruturadas a partir de maneiras como o grupo (se) mostra (n)o enunciado,
encadeando um papel actancial (enunciador/destinador) com um ou mais papéis
temáticos, vistos em estreita relação com a aspectualização actorial num primeiro
momento, mas também com a temporal e espacial. Cada tipo de auto-retrato é
constituído predominantemente por tal amarração temática, em razão do
investimento semântico que instalam figuras do conteúdo e que constituem
isotopias para articulação de sentido.
Visto que a figuratividade pode apresentar-se em níveis de profundidade,
tencionando os limites entre efeito de referencialização e de distanciamento,
principalmente na relação entre as fotos que analisaremos, apostamos que “a força
do registro e da evidência” da imagem não a condena ao que nela pode ser
meramente reconhecível. São suscetíveis, também pelo olhar do enunciatário, às
fraturas23, que desestruturam o caráter objetivo de tal empreitada para fazer ver. Por
isso, no percurso das cenas, consideraremos o arranjo da plasticidade e as figuras
23 A. J. Greimas. Da Imperfeição. Trad. A. C. Oliveira. São Paulo, Hacker, 2002.
56
da expressão quando estas “saltarem aos nossos olhos”, para homologá-las ao
plano do conteúdo.
De acordo com o proposto, as relações se estabelecem por meio da
figuratividade e tematização, a partir de um contexto implícito Hip Hop, de duas
formas:
1) profissional ou, construídas pela convenção, em que as fotografias têm
maior proximidade ao universo Hip Hop;
2) e não-profissional, construídas pela dissensão, em que outros mundos são
construídos.
Vale ressaltar que as cenas apresentam modos de mostrar, ou auto-retratos,
entendidos por auto-referencialização interna, conforme a disposição geral do querer
ser visto, da instância da enunciação. Apresentamos a seguir um primeiro conjunto
de fotografias24 que se mostra como dominante em todo o exemplário fotográfico.
24 As fotografias analisadas neste capítulo encontram-se após a bibliografia, cada qual identificada com umnúmero a que nos reportaremos ao longo do texto.
57
2.1. Cena 1
Se fazer mostrar
A Reunião
Tal como num salão de eventos, esta cena é comumente vista por ocasião de
uma apresentação musical. Ela traz a aglomeração de pessoas num local de
encontro, caracterizando nesse espaço tópico a reunião do grupo. Se determinado
espaço de uso assume traços de um acontecimento, por mais passageiro que seja, a
organização visual desse espaço-evento faz o grupo “se” imprimir na foto por um
modo de ser. Nas fotografias 1 e 2, o espaço “ocupado” se torna uma massa
humana uniforme, assim como o grupo se torna uniforme pelo espaço.
A tomada de ângulo por sobre as cabeças sugere o posicionamento estratégico
do fotógrafo numa tentativa de dar conta de toda a extensão e de todos os
elementos em profundidade e largura, propriamente nos limites do recorte. De um
certo afastamento dos actantes (1) a uma breve aproximação (2), existe um traço
comum relativo ao olhar desses fotógrafos que aponta justamente para uma cena
recorrente de sociabilização do grupo, visto sob um olhar panorâmico do sujeito
enunciador. Essa forma de enquadrar mostra-se como um recurso de valorização
58
da reunião, pois cria um espaço visualmente adensado por um corpo no coletivo,
no que prevalece a sensação de um grande acontecimento, nos moldes de um ritual
comum aos participantes. Nesta construção, o acessório boné tem por efeito
pontuar quase todo o plano do enquadramento, criando com isso um corpo jovem
unido pela reiteração do elemento que assinala as escolhas do que e de como se
mostrar em grupo. Também pelo uso desse elemento, como actante e ator do
enunciado, ele é responsável pela primeira “aparência” do sujeito e, na ordem da
aspectualização iterativa, cria o grupo como um corpo coletivo, ainda sem maior
definição.
Nas fotos há uma construção comum, reforçada pela noção de profundidade
dado o ângulo de tomada, que divide a imagem em duas partes, inferior e
superior, donde depreende-se a relação de iluminamento versus apagamento.
Nelas há, respectivamente, a definição, onde tudo é reconhecível, para a
indefinição. Ambas partilham de um colorido intenso, porém numa organização
distinta: a primeira é bem marcada por uma faixa verde, em primeiro plano, e
vermelho, mais ao centro, revelando todos os componentes; enquanto que a
segunda, arranja-se em multicolorido que vai se revestindo de uma névoa
esbranquiçada, responsável pelo ocultamento da imagem ao longe, tal como a
anterior, que ao contrário desta define-se pelo escurecimento no topo do quadro.
Com esse revestimento de luz podemos, por pressuposição, depreender
categorias de proximidade e distância que respondem de maneira mais acabada às
condições de visão, ou seja, em que o próximo corresponde à iluminação suficiente
para distinção da cor e dos corpos e o distante corresponde à deficiência de luz. Em
termos de organização da forma de olhar para o grupo, pode-se dizer que o
enunciador, formado pela relação das duas fotos, encarrega-se de mostrar que
nessa aparente diversidade, há um elo homogeneizante que os faz existir em
consonância, isto é, constrói um sujeito do enunciado como um grupo coeso.
59
O plano geral, como já indicado acima, reitera que a relação do espaço que vai
do próximo ao distante, constitui a reunião do grupo na ordem de uma amplitude
a perder de vista. A distância, sentido contrário do olhar dos sujeitos do enunciado
aonde a imagem é indefinida, tem por efeito voltar para o próprio fotógrafo a sua
participação no evento, que não é mostrar o motivo pelo qual o grupo se reúne,
mas apenas mostrar que se reúnem e em grande quantidade. Isso por si só torna-se
um valor. Vemos então que a partir dos procedimentos enunciativos, destacando a
espacialização, o enunciador, que em princípio se pretende “ausente” do texto, faz
com que o “espaço-lá” – que caracterizaria a cena num caso de debreagem
enunciva – se projete num “espaço-aqui” – caso de debreagem enunciativa de 1º
grau – como um narrador onisciente e onipresente, a partir da constatação de que
nada lhe escapa dos olhos. A forma de mostrar o que mostra, o “lá-alhures”, das
imagens analisadas individualmente, pela substituição “aqui-agora”, da relação de
ambas, evidencia o mecanismo de produção do discurso por meio da aparente
objetividade inicial que é recoberta pela constância do eu que articula o plano geral
nas duas imagens. A cena da reunião caracteriza, em princípio, um efeito de
referencialização sustentado tanto pelas escolhas do que mostrar, jovens reunidos
por força de um evento (como quem diz “eu fui”), quanto pela maneira de mostrar
(como simples registro em plano geral). Por outro lado, não seria muito afirmar,
como acreditamos, que tal recurso seja mais uma afirmação de presença nos
lugares e de proximidade junto ao enunciatário, do que puro efeito de
distanciamento.
As imagens postas lado a lado evidenciam o enunciador enquanto um sujeito
de “ocupação de espaço”, em lugares distintos: aquele que tudo vê e vê ao longe.
Grandioso por esses meios se monta como a própria figura de ostentação, cujo
papel social emparelha-se a uma maneira de pertencer ao Hip Hop, pelo viés do
evento ou, como dissemos, do ritual. Com isso, cria a imagem de um grande
60
grupo, fazendo crer que eles partilham de um objetivo, mostrando-se conforme seu
fazer em plena participação do evento. Cada indivíduo pode ser visto como parte
integrante de um corpo coletivo do Hip Hop, inclusive o fotógrafo. Este procura
colocar na imagem um número grandioso de semelhantes sem se preocupar em
elucidar os motivos desta reunião, baseando-se apenas na afirmação da existência
do grupo pelo qual pretende ser reconhecido pelo enunciatário.
Ao iniciar a análise pela cena da reunião julgamos pertinente desde já apontar
que esse tipo de construção baseado numa visão panorâmica, aparentemente mais
distanciada, da instância enunciativa, define o eixo de relação do se fazer mostrar.
Nessa posição do diagrama, a cena da reunião constrói-se em relação a um
pertencimento dos actantes do enunciado a um grupo sócio-cultural pressuposto, o
Hip Hop, no qual o fotógrafo tem a função de apresentar minimamente ao
enunciatário uma parcela do que ele reconhece de antemão a respeito do grupo.
Isso quer dizer que esse mostrar-se coloca-se numa relação de transitividade do si
com o outro, dado por maior ou menor grau de convenção tanto pelo modo de
mostrar quanto pelo o que é mostrado, figurativizado e tematizado.
O que estas fotos começam a desenhar, no horizonte de nosso caminho, é uma
imagem panorâmica do ator da história que se inicia, introduzindo valores como
coletividade e grandiosidade, envoltos de um papel temático que os aproxima da
militância do movimento, ou seja, do ativismo.
Com a aproximação, falas impressas
O caminho do olhar que propomos, divididos em pequenas cenas, pareceu-nos
apropriado à medida que torna possível ver como as imagens se aproximam em
termos de uma constituição temática, embora tão diversas quanto ao arranjo
61
interno. Por essa razão, este conjunto articula uma espécie de subtexto do anterior,
visto que se tratam de situações de encontro, podemos assim dizer, numa variação
bem demarcada. Nesta o grupo é reduzido, mas a presença da palavra acaba por
redimensioná-lo fazendo o visual se projetar pela força do verbal. Na
continuidade, a questão do pertencimento ao grupo no qual o sujeito do enunciado
está inserido torna-se mais evidente, conforme escrito na foto 4, e à ele se agregam
outros valores, tal como mostrado pelo fotógrafo no instante do registro. Pois se a
importância está no modo de construir determinado olhar, a relação do
papel/função desempenhado pelos fotógrafos da pesquisa é a de um olhar que
coloca em foco a circunstância que julga dizer algo sobre si e seu entorno, tal como
pequenas partes que constituem um grande painel.
A maior parte das fotografias apresenta, então, uma amostra do que fazem.
Para isso, os fotógrafos contam um pouco com a disponibilidade do enunciatário,
tanto quanto com seu conhecimento a respeito do que realizam. Teríamos assim
um contrato fundado nessa relação de crença a partir daquilo que é mostrado. Isso,
em certos momentos da análise, equivocadamente poderia ser lido como simples
constatação por deixarmo-nos levar pelas facilidades da imagem, quando, na
verdade, estamos evidenciando como o enunciador se utiliza justamente dessas
facilidades para construir, digamos, uma faceta de sua imagem.
Nesse conjunto de fotos ocorre a aproximação com o grupo ao apresentarem
não mais a visão geral, que mais parecia um esboço do sujeito, permitindo
enxergar melhor o rosto, a roupa, o cabelo, o gesto, o acessório, enfim, o modo e o
revestimento pelo qual o grupo se manifesta.
Ele, embora reduzido, reúne-se em ambiente fechado. Seu espaço muda
substancialmente: é o aqui, no meio do grupo. Da visão geral, na foto 3, o
enunciatário é transportado para o meio dos actantes, fazendo parte dele. Numa
seqüência de montagem clássica cinematográfica, o enquadramento permite a
62
continuidade da cena por mostrar o contra-campo das fotos 1 e 2, como se
naquelas já houvesse alguém a realizar o contra-olhar do palco. Olhando-as lado a
lado é possível admitir a presença de uma na outra, de palco e platéia. Se
considerarmos que este contra-olhar é resultado de um fazer daquele que olha,
veremos que esse deslocamento de cima do palco para baixo cria um efeito de
sentido de aproximação. Do corpo a corpo entre os jovens imediatamente
descobrimos o sujeito que mostra, o próprio fotógrafo incluído na platéia.
Ainda que não diretamente figurativizado na imagem o fotógrafo-
enunciador, que nos proporciona a visão, ganha também um “corpo”, e empresta
ao enunciatário um pouco de sua presença para ver, com mais “corporeidade”,
esse estar junto do grupo participando do evento. O braço na foto 4 produz esse
efeito.
Ocupando todo o centro do enquadramento e elevando-se na vertical, o braço
faz referência ao acontecimento lá no palco com o gestual da mão. Do encontro
entre verbal “Hip Hop”, estampado no tecido e destacado pela iluminação pink, e o
gestual da mão perde-se a noção de profundidade, mas ganha-se a de intensidade,
pelo sincretismo verbo-visual, do código gestual: na mão elevam-se o polegar, o
indicador e o dedo médio, como se assim se manifestasse o grito de guerra.
Vale notar que o código tem a função de aglutinar e identificar o grupo, pela
síntese gestual, o todo de um pensamento e talvez de uma forma de existência.
Certamente se entendem, assim como outros grupos que criam suas gírias para
afirmarem um traço de pertencimento, uma semelhança; basta saber que além de
se comunicarem entre si, o gesto comunica o grupo para quem quer que o veja, o
que faz crer ou pelo menos chama a atenção para o que mostram. Ao contrário de
um código de trânsito, mas ainda como código, esse gesto com as mãos não se
reduz à correlação direta entre palavra e efeito, apenas porque as palavras invocam
63
algo mais nessa relação com a imagem. Seria então uma espécie de senha, de
código de acesso ao grupo ou a uma área reservada da reunião?
O braço, portanto, reconstitui metonimicamente um corpo inteiro que se eleva
em presença actorial. Com ele, é possível escutar o que todos os outros dizem ao
sustentar também o que o sujeito no palco fala ao microfone, e repetido pela faixa
Hip Hop. A palavra cria um efeito de assinatura e mostra o actante-enunciador-
destinador debreado no enunciado e projetado sincreticamente como ator do
evento. Hip hop e corpo, então, se implicam, mutuamente, no dizer.
Na fotografia 3 a palavra é redimensionada pela encenação. O pano de fundo
mostra de forma direta e peculiar o teor da fala do sujeito que empunha o
microfone, localizado bem à frente da personagem demônio. Mais do que isso,
serve de ancoragem para voz como um recurso de transcrição para que a palavra
ouvida seja também escrita. O assunto é dinheiro. Muito dinheiro, como sugerido
pela cédula de dólar norte-americano, devido a sua dimensão que a faz ocupar um
terço do palco. Nela está escrito: “Dinheiro pá noi” e, logo abaixo, “aqui”. Quem
reclama por dinheiro? A partir da construção da frase tendemos a acreditar que a
fala pertence a alguém cujo grau de escolaridade é colocado em evidência por não
corresponder às normas ortográficas que define o “para” em lugar do “pá”, e o
“nós” em vez de “nói”. Essa construção sugere um modo coloquial, propriamente
uma gíria, da fala de alguns grupos, como sabemos dos chamados “manos”
geralmente associados aos jovens da periferia, diretamente relacionada a um
estereótipo de fala tornado público na mídia25.
O que nos interessa nesta foto é a existência de um discurso que se constrói
pela contravenção das regras. Aliás, a insistência do erro impresso e ampliado na
25 Sobre isso ver o Filme Cidade de Deus (2003), Como uma onda no ar (2000), Rap do pequeno príncipecontra as almas sebosas (2001), e o seriado Turma do gueto (2003).
64
faixa, e como se não bastasse fotografado, denuncia essa construção como
proposital utilizando o recurso da paródia, pois é assim que se mostra.
Se, por um lado, a publicização do modo de falar na mídia serve de
identificação rápida, por outro a utilização da estereotipia da fala é uma marca da
estratégia do enunciador fazer ver um discurso focado na promoção de si nos
eventos com tom politizador e diferente. Ou seja, no reverso do erro que a fala
sugere, o pensar crítico não é uma virtude que se compra nos melhores e mais
caros colégios da cidade. É moeda, sim, do jogo de forças sociais, onde vale a
paródia, até de si mesmo, se o que se deseja é fazer valer a reclamação. Ao focar a
nota gigante é possível ver que seu tamanho nada tem a ver com uma possível
leitura rápida da moeda para reiterar o poderio econômico do país aí
presentificado, porque ao apontar essa abordagem no visual, o verbal propõe,
colado à ela, uma leitura discordante, escancarando o conflito entre a liderança
econômica e o “desajuste social”. A falta de dinheiro, como desdobramento
pressuposto da reclamação, reitera o discurso da desigualdade, disforicamente,
porque marca as diferenças sócio-econômico-culturais entre os homens. Então o
objeto de valor, figurativizado pelo dinheiro, é da ordem ideológica26 em primeiro
lugar.
Nesta paródia, então, o uso proposital do estereótipo de fala cria, por
pressuposição, o contraste entre dois discursos distintos para evidenciar embates
sociais. Na correlação entre significante e significado, o modo de dizer do sujeito é
seu próprio ser ali no palco, e que não pode ser vista de maneira gratuita, mas
como efeito de sentido de voz crítica que se constrói frente os valores da boa
educação.
26 A.J. Greimas, J. Courtés, Semiótica: diccionario razonado de la teoria del lenguaje. Tomo II. Madrid,Condor, 1991, p.114. Verbete: figuratividade.
65
Tematicamente, ainda, aqui se remonta a figura do “mano”, cujo traço
diferencial se faz justamente na afirmação de uma identidade construída nem tanto
na ordem da exclusão, e sim da marginalização. Neste caso, a figura do mano
convoca também a do outsider, que juntas correlacionam centro e margem.
Lembrando que na foto 4 o “aqui” da fala foi ocupado pela assinatura Hip
Hop, poderíamos dizer que o grupo recuperado pela projeção de voz alinha-se a
uma fala corrente do Hip Hop, que discursa sobre a atuação política. Nesse sentido
esta imagem articula o simulacro Hip Hop por meio da figura da fala, ou seja, da
palavra que assume a função de legenda.
Quanto à plasticidade desta fotografia, a montagem da figura do Diabo marca
topológica e eideticamente a centralidade do discurso como fala crítica do sujeito
reclamante. O cromatismo, por sua vez, cria enfaticamente o tom de fala, por um
recurso contrastivo entre o que está concentrado na faixa rubra central da foto, por
gradações tonais do vermelho, e o que é colocado às margens inferior e superior.
Esta faixa avermelhada é, pois, a própria interiorização do anti-destinador, por
oposição, que tem por efeito fortalecer o discurso crítico do Hip Hop ao denegar
uma fala opressora, articulada pela figura de expressão. Desse modo, encadeiam-
se as categorias:
Discurso do Hip hop discurso da desigualdade
Centro versus bordas
Interior versus exterior
Asserção do hip hop negação da desigualdade
O pano de fundo, em razão da dimensão e da posição que o dinheiro ocupa
no enquadramento, delineia uma estratégia do sujeito manipulador para fazer ver
uma marca do grupo, por ação e voz ativa. Ou mais ainda, esta imagem pontua um
66
modo de se mostrar no percurso de aquisição de competência do sujeito Hip Hop,
ao mesmo tempo em que oferece ao enunciatário um primeiro olhar sobre a
imagem do destinador-enunciador engajado no estabelecimento da verdade de seu
discurso, construído pela cenarização e pela encenação dos actantes. Enfim, essa
fala impressa atualiza os termos de um contrato fiduciário, precisamente da
aceitação da imagem do grupo em questão com um simulacro do Hip Hop, em
relação ao papel temático do político.
A enunciação cria um jogo entre visual e verbal com intuito de fazer do verbal
a força propulsora do discurso, e do visual ecoar na síntese dos dois. Por este lado,
a palavra direta e enfática identifica-se com uma estratégica para que o
enunciatário convença-se das associações fáceis e aceite esse mostrar-se como
verdadeiro. Para isso, o enunciatário é cada vez mais inserido na imagem,
podendo até equiparar-se à instância que o organiza. O efeito que se deseja criar é,
portanto, de familiarização daquele que vê com o assunto do grupo.
As análises tratam de elucidar como eles se mostram conforme um simulacro
de ativista que centraliza em si a força do discurso, o que, muitas vezes, parece ser
apenas uma constatação daquela referência, como se esse mostrar estivesse de
acordo com uma evidência ou um único modo de se construir visualmente para o
enunciatário. Sem dúvida, já está reiterada a dimensão contratual deste fazer,
precisamente de um fazer-crer que essa é sua imagem.
Destas às próximas fotos, a cena se expande pela variação do tema,
continuando um modo de mostrar ancorado contextualmente, utilizando-se de
clichês se for preciso. Paira a idéia de que antes mesmo de se fazer mostrar, através
de terceiros, como o produtor da imagem, ele se vê conforme uma imagem à priori
pela qual tenta captar o enunciatário. Por isso muda o cenário, os actantes, o
enquadramento, mas continua a lembrar o enunciatário da pressuposição de
pesquisa, isto é, de que este é um grupo Hip Hop em virtude dos papéis temáticos.
67
Autoridade pela Fé
Os temas se formam devido ao ponto de vista projetado pelo atores do
enunciado, que nestas fotos são construídos pelo enaltecimento de figuras
alegóricas, no que poderíamos chamar de cerimônia de uma cena fotográfica.
Todos se posicionam diante do objeto emissor de flash e após o disparo está
construído um eu possível. O repertório corporal é todo acionado, e assim os
objetos são destacados porque no recorte certamente o ser é aquilo que mostra.
A cerimônia fotografia é um hábito cultural que desloca o sujeito em relação a
ele sempre que se sente convocado a mostrar tudo de si, o que ele realmente julga
ser digno de o referencializar para os outros e mesmo para si. Com base nisso, a
arrumação interna da fotografia é fundamental para que o observador conheça um
pouco mais sobre o grupo que se “monta” para ser fotografado, seja pela utilização
da faixa com o escrito “Simples Mortais”, seja pela centralidade do rosto do Che
Guevara estampado na camiseta.
A posição estratégica do rosto marca também a centralidade do corpo que o
veste, chamando atenção para o grupo que se dá a ver por meio da figura de
autoridade. Por esta centralidade todos os demais actantes do enunciado passam a
compartilhar da organização instaurada, complementando e reforçando a atenção
pontual do rosto. A figura que a camiseta mostra é a reprodução do rosto de Che
Guevara, fotografado por Alberto Corda por ocasião da revolução Cubana,
amplamente estampado em roupas em todo mundo até hoje. Como personagem
histórica, e qualificado como herói popular, correlaciona-se a ele a possibilidade da
transformação e, portanto, de uma esperança de igualdade e justiça, valores esses
reiterados através dos tempos. Topologicamente colocado ao centro, a dimensão
68
dessa figura reforça sua importância para o discurso do Hip Hop ali debreado, o
que faz deste rosto imagem simbólica do próprio grupo reunido por uma fé (de
fidúcia) em si mesmo como agente da transformação.
O mecanismo enunciativo, então, apóia-se na síntese significativa de uma
imagem, através de um “ele”, para construir a sua própria. Por esse recurso faz
convergir o discurso citado (Che) e o discurso citante (Hip Hop) para garantir a
coesão do grupo internamente à foto e diante do enunciatário. Essa auto-definição
a partir da figura de autoridade projeta para o enunciatário, afinal este é mirado
francamente, a garantia de que o que ele vê é um sujeito comprometido com seus
valores, capazes de atos heróicos para alcançar seus objetivos. A imagem do rosto
de Che Guevara estampada na camiseta é acompanhado do gestual da mão para
criar efeito de sentido de coesão Este, multiplicado pelos vários actantes da
imagem, faz com que o corpo se mostre pela mão e, assim, caracteriza também o
gestual como expressão de comunicação e de circulação comum ao grupo,
recuperando neste outro momento um código que o simboliza e que deve ser
mostrado em conjunto com o rosto. A força do gestual tanto quanto da
representação do rosto de Che Guevara, vale reforçar, traz para o grupo a
dimensão do ser que se mostra segundo alguns princípios, talvez como agente de
transformação ou de atuação. Nesse sentido, o mostrar de si para o outro já implica
no reconhecimento de si pelo que escolhe mostrar.
Na foto 6, lê-se: “Simples Mortais”. O verbal escrito mostrado pelos jovens
ocupa boa parte da imagem e se destaca pelos corpos que o circundam. A faixa
convoca, de imediato, o Hip Hop da camiseta do jovem à esquerda, onde o rosto
está praticamente apagado pela predominância das cores amarela e alaranjada que
saltam de seu corpo. Ao fundo vê-se duas cabines de telefone público que formam
“asas” amarelas nas costas do jovem, e a parede de um estabelecimento comercial
69
que tem revelado um pouco de seu interior no canto esquerdo. Eis o registro de
cena que traz em seu interior o título auto-explicativo.
Os jovens desempenham importante papel de sustentação das palavras que
formam o núcleo do grupo, tornando-as uma fala comum e um elo de ligação que
os denomina ao mesmo tempo. Eles, os simples mortais, são participantes do Hip
Hop. Em princípio, a soma das partes poderia sugerir a relação direta do sentido,
não supondo qualquer desacordo que venha se contrapor ao explicitado, fazendo
valer o puro efeito de iconização da fotografia. A relação das palavras com o corpo
circundante revela, na verdade, a lógica da contrariedade em que a significação
figurada está em oposição à significação própria (expressa), substituindo-a.
Por meio do sincretismo verbo-visual cria-se um subtexto do que está
mostrado, segundo a cooperação enunciador-actante. O fotógrafo aceita e ao
mesmo tempo determina um olhar dos actantes sobre si mesmo, dando destaque à
localização das palavras e das cabines telefônicas. Juntas elas subvertem o
significado primeiro da construção à mediada que as cabines sejam re-
semantizadas pela imagem de asas. Nesse sentido, é como se a natureza do sujeito
do enunciado também fosse reelaborada, não podendo mais ser reintegrada ao
comum. E na combinação entre ser alado e ser mortal, o olhar preparado do
fotógrafo seleciona elementos que permeiam o universo da comunicação: a
palavra, o gesto, o telefone, porém sobrevalorizado pela figura do anjo que está por
entre o Hip Hop. Visto desta forma, a figura instalada no enunciado é revestida de
uma autoridade, pois dá importância ao grupo.
Nas duas imagens a referência a uma figura de autoridade está atrelada a
uma forma de atestado ou de validade da coisa apoiada na autoridade do outro,
mas sobretudo a uma crença de que esta é a melhor maneira de mostrar-se, sob
esta figurativização. Ou seja, se fazer mostrar pela imagem do outro. Esta fé
encadeia o papel temático do crente, montado pela instância da enunciação através
70
do fotógrafo não figurativizado na imagem, por um “ele”, que define o recorte do
grupo pelo arranjo interno da cena, como uma grande estampa do Hip Hop.
Nestas duas fotos é preciso voltar o olhar para o corpo que começa a trilhar
modos diferentes de se apresentar nas cenas seguintes. Diferente do que deixamos
transparecer pelas descrições anteriores, ele não significa, para nós, um suporte
que a todo o momento reveste-se de valores e os carrega junto à pele. Ele é, antes, o
próprio significar dos valores fazendo-os dele nascer, em toda sua extensão, e em
cada parte, para completar-se pelo que é, presença do mundo de si culturalmente
instalado na imagem de si.
Sabemos que o grupo referido é volumoso (foto 1) e que há uma denominação
comum que os une no pensamento, tal como mostra a reunião em torno da frase.
Esta evoca toda a cadeia interpretativa no desvendamento do jogo de palavras27
“Simples Mortais”, que tem no jovem alado a figura que entrelaça o texto.
Constatamos, então, que ao recorrer ao símbolo da revolução e ao ser alado, para
autorização de seu discurso, o destinador “sugere” um fazer interpretativo que
clarifica a cadeia passional, nesta cena construída pela fé quase religiosa, para se
exaltar pelo discurso do outro. Trata-se de um recurso semântico que funda um
querer-ser por um se fazer mostrar pela crença Hip Hop, fé que, ao longo das
fotografias, evoca “estados de alma”. No cerne do percurso patêmico do sujeito - o
que o motiva - está o desejo pela visibilidade que, conforme D. Bertrand, autoriza
“um percurso de referencialização interna”28 e assegura a continuidade do
discurso.
Breakers: espetáculo de inversão do mundo
27 Poderíamos chamar também de figuras de linguagem, tropos, segundo a tradição retórica que define essetipo de construção como ironia que formula uma idéia contrária a que está expressa na linguagem. Ver R. O.Brandão, Figuras de Linguagem. São Paulo, Editora Ática, 1989, p. 21.
71
O que chamamos anteriormente de construção temática geral neste primeiro
momento da análise, nada mais é do que a o encadeamento de vários temas, que
vem pela formação figurativa e que diz respeito aos elementos do Hip Hop que,
conforme sabemos, são constituídos da dança, do grafite, do dj, do cantor e de um
quinto elemento: a consciência, designada por discurso político do Hip Hop. Até
agora vimos a construção de um tipo de auto-retrato que se relaciona mais com
este último elemento, segundo o que a reunião, a fala e a fé montam uma faceta do
“ritual” Hip Hop tal como uma atitude, pela maneira de encenar a presença
figurativizada do grupo no enunciado.
Vimos também que este mostrar-se identifica uma formação estratégica na
maneira de dizer do enunciador, porque se vale dessa pressuposição de que o
enunciatário é minimamente informado sobre o fazer do Hip Hop, e por isso arranja
um olhar centrado no reconhecimento de tais marcas, muito embora pareça estar
registrado pela objetividade da câmera fotográfica. Por isso, não perdemos de vista
que se fazer mostrar por um “ele” para um outro, baseado na relação de
transitividade, é conseqüência de um efeito do parecer conforme uma imagem do
Hip Hop, não sendo importante discussões quanto à legitimidade da imagem. A
preocupação novamente recai sobre os mecanismos de figurativização e
tematização a partir dos quais o sujeito manipulador pretende fazer crer no que
mostra. Parcialmente, a resposta está na utilização de figuras do Hip Hop, mostrado
como um painel ao enunciatário.
No início havíamos dito que cada cena constitui parte de um percurso do
sujeito Hip Hop, o que faz com que a narrativa forme uma rede complexa em que
uma pode ser colocada ao lado da outra ou estar subordinada a outra. Essa
28 D. Bertrand, “Os Discursos de uma Paixão” in Cruzeiro Semiótico. Associação Portuguesa de Semiótica, nº6, 1987, p. 31.
72
complexidade é instituída pela variação figurativa entre as cenas que determinam
que o sentido é iniciado em uma foto e recuperado em outra, muitas vezes não
apenas para reiterar sentido, mas para enriquecê-lo na continuidade. Assim, na
seqüência, a condução da cena é dada pelo actante, ou o que dá no mesmo, pelo
corpo desenhado, numa relação de um tipo de espacialidade construída por ele
para criar a espacialização discursivizada da enunciação.
As fotografias mostram que esse corpo é formado simultaneamente pela
“massa”, que configura a expressão de um coletivo, e pelo pontual, configurando o
singular, um impresso na constituição do outro. É preciso recuperar aqui a cena 1,
em que se estabeleceu a co-implicação de massa humana e espaço “ocupado”.
Verifica-se o enriquecimento semântico de um novo corpo que constrói, de
maneira mais intensa, uma articulação performática reforçada pelo fazer somático,
a partir de três tópicos distintos que convergem para uma mesma questão. Ou seja,
embora aparentemente distintas as imagens são criadas pela performance corporal
que faz do espaço desenhado pelo sujeito do enunciado um ato de fala que o faz
ser pela cultura Hip Hop:
1- o corpo como força centrípeta;
2 – o corpo emergente pela verticalidade do olhar;
3 – o corpo tensivo da diagonalidade;
Num primeiro momento o corpo que se coloca no centro da roda (foto 8)
parece ter a função primordial de reunir outros tantos em torno de si. Este corpo
singular, ao mostrar-se para os outros que o vêem, revela que a atração pelo corpo
é, no mínimo, o reconhecimento da ação realizada, constituindo-se ela mesma
como valor de referência. Isto porque tantas das performances criadas pelo
dançarino do movimento exploram o que comumente é tido por incomum ou
73
impossível. O corpo, portanto, ocupa o centro da imagem e da atenção. Nesse
sentido, a performance do corpo mostra-se como força centrípeta, num movimento
sugerido pelas pernas que se renova repetidamente, e para o qual tudo o mais ao
seu redor converge.
A forma criada pelo dançarino une esse grupo pela circularidade, fechando-o
em si e mantendo a isotopia da coesão. A circularidade sugere um movimento
giratório incessante cujo ponto de apoio é dado pela cabeça. A figura justifica-se,
então, pela especificidade de um corpo lançado ao desafio: de ponta cabeça,
equilibrando-se sobre ela com as pernas elevadas para o alto em V, que a partir do
efeito de movimento sugestionado pela velocidade de giro, transformam-se numa
hélice de helicóptero, rumo à superação da gravidade. Como numa roda de
capoeira, o círculo se torna o desenho do espetáculo, bastando que os sujeitos
estejam presentes para significar o espaço que ocupam e fazendo também o próprio
espaço significar o sujeito. E é por essa forma construída que a imagem representa o
corpo-pontual, no centro, como expressão do corpo coletivo, ao redor, sem o qual
seria impossível ter a coesão da figura “montada” como encenação de um
espetáculo.
A tomada superior da imagem é o ângulo de visão em que o fotógrafo se
colocou para dar conta do desenho descrito pelo corpo, do ponto que constrói uma
grande circunferência. Percebe-se que também ele procura estrategicamente a
melhor posição em relação à performance para proporcionar ao observador a
melhor visão possível do que está fotografando. O plano geral dá idéia da
dimensão do evento, tal como da importância do corpo que agrega os demais.
Ponto e circunferência são categorias distintas na construção, uma se fazendo
em função da outra. Apesar do destaque dado ao corpo central, ele somente
adquire sentido por fazer parte do grupo que atribui valor à sua exibição, ou
melhor, pelo reconhecimento/sanção do grupo que o envolve. Da mesma forma, a
74
razão de ser do grupo circular atraído pelo corpo pontual é torná-lo, o sujeito
individual, parte de si; e como expressão dessa união o grupo se duplica, no
reflexo do chão, em outros eles, diminuindo a distância entre o coletivo e o
indivíduo. A visualidade teria aqui o seu sentido realizado, o da arquitetura
plástica de um corpo dado ao reconhecimento público.
As duas próximas imagens reiteram o desafio da gravidade que compete ao
sujeito superação do espaço. Este, equilibrado por uma única mão (foto 8), se
suspende verticalmente no ar como se desejasse elevar-se à altura do chão. Quase
podemos vê-lo levitar, imaginando que um fio o suspende para mantê-lo ali. Já o
eixo colocado na diagonalidade (foto 9), transforma o corpo numa linha de força
que divide o espaço em dois triângulo simétricos, com forças desiguais. O peso do
triângulo superior se debruça sobre o outro e cria um estado de tensão, sugerindo
a queda a qualquer instante. Como uma manobra arriscada, mais uma vez o
desafio é indicado.
A questão do desafio é um tema recorrente no discurso Hip Hop e está
presente na dança, na música, no grafite, interligando-os pela isotopia do outsider,
na manutenção da idéia de que a maneira de fazer o que fazem é pelo menos uma
tentativa de impressionar ou causar estranhamento. Nesta cena, o desafio é
questão de visibilidade. Por isso, os demais actantes da imagem presenciam a
manobra, atentos. E neste momento o corpo se eterniza enquanto figura de
contemplação. Entre a contemplação e a figura nasce o espetáculo para ser visto.
Investigando esse fazer somático é possível perceber como se constituem as
condutas corporais e como a descrição figurativa desvela o acesso ao sujeito. Na
continuidade do percurso narrativo, este é mais um modo de formação do grupo
que contribui para atualização de valores modais do poder e do saber mostrar-se e
para a construção o objeto do conhecimento: da imagem de si.
75
O parâmetro de que nos cercamos no início da descrição das fotos foi baseado
na relação do corpo na construção do espaço, não perdendo de vista que este
mesmo é significado por ele. Através deste estilo, que desenha o circular (foto 7), o
linear (foto 8), o triangular (foto 9), realiza-se o movimento que sai do grupo em
direção ao indivíduo na correlação de um espaço de menor para maior tensão, já
associado ao componente desafio. Assim, o que aparenta ser uma demonstração de
virtuosismo corporal passa a ser uma marca de pertença ao tipo de dança, à
chamada break dance.
A não inteligibilidade do movimento dentro de determinados contextos
mostra a performance como uma prática discursiva pela maneira que faz o valor
do “feito” aliar-se à performance. Nesse sentido, o desempenho corporal associado
a uma certa qualidade de força física, soerguido pela inversão corporal, assegura
um poder do sujeito sobre si mesmo em que reside a capacidade de modelar o
espaço de toda forma, fazendo ele mesmo, o corpo, o traçado de linhas como quem
brinca no ar de figuras geométricas. Nesse fazer o tempo pára e a forma perpetua.
Vejamos, então: inverter-se é colocar-se de ponta cabeça, ou será o mundo que
é colocado de pernas para o ar? Seja lá qual for, o sentido de olhar que se adote, há
nesta figura invertida um descompasso ou uma recusa de uma única forma de
apresentação do mundo, dos seres, dos objetos. É, com efeito, um olhar enviesado
sobre convenções que ditam ao corpo a ordenação pela repetição do mesmo, uma
espécie de negação da conduta do corpo padronizado pela inserção de outra
maneira de fazer seu corpo construir a encenação, elaborando técnicas específicas e
manobras inusitadas para criar um ambiente próprio de comunicação. No entanto,
essas formas que o corpo adquire não deixam também de ser uma espécie de
coerção a um gênero de dança da cultura Hip Hop, é um traço de pertença.
Também assim pode ser visto o lugar performático deste corpo. Se pensarmos
em condições cênicas tradicionais, do palco como marcação de barreira física em
76
relação ao público que criam por si só o efeito de sentido de distanciamento e
ilusão, nas fotos um chão qualquer é o palco ideal para o performer, desde que
possa garantir à platéia boas condições de visão e, mais do que isso, de sensação
(de tensão, deslumbramento). Quanto mais os corpos se aproximarem do seu,
quanto mais inserção neste social para compartilhar o fazer corporal, mais a sua
individualidade marca o estilo sintonizado a este coletivo. Vejamos, então, que esta
totalidade é construída pelo estar junto pois, como dissemos acima, o corpo é
espaço-tempo vivido do sujeito, tal como numa roda de capoeira em que o lugar
do sentido é todo lugar possível.
O fotógrafo, envolvido na prática da dança, imprime seu próprio fazer
corporal para a realização da fotografia, empenhando-se na captura do instante
que atesta a importância da forma do dançarino, o que mostra seu conhecimento
na rotina de tal performance e dos valores aí investidos. Por certo, é conhecedor,
participante, curioso ou simpatizante, desse universo Hip Hop e contribui para a
construção do papel temático do dançarino como um corpo simulacrado do
breaker.
Esse conjunto de fotografias permite captar a marca do articulador das
imagens e remete à instância enunciativa, dada a importância de sua presença no
momento de formação das figuras, construídas assim para surpreender o
enunciatário. A enunciação evidencia um mecanismo de captura do olhar do outro
pela afirmação, de sua parte, da destreza de seu olhar e domínio do acontecimento.
Por meio do olhar do fotógrafo, existe a habilidade em ver e construir o que é
mostrado. A cena, então, convida o enunciatário a participar dessa armação feita
pelo enunciador (foto 8 e 9), a envolver-se, vendo e aplaudindo o sujeito que se
realiza dessa forma; é solicitado para fazer parte da roda, completando-a e ao
mesmo tempo construindo o espaço de espetáculo.
77
Enunciatário arrebatado, tarefa cumprida? Mas não seria esta a estratégia
posta, a da aproximação do enunciatário para o reconhecimento do sujeito
enquanto retrato do Hip Hop em ato?
Grafismos de presenças
Os grafismos que veremos a seguir fazem parte da prática da cultura Hip Hop,
podendo ser classificado como mais um componente temático responsável pela
montagem da imagem do grupo por um simulacro Hip Hop até aqui. No entanto,
as pinturas do grafite apresentam-se por dois modos distintos de figurativização:
um que revela a presença física do pintor no ato da criação e outro que traz a obra
em si, cada qual resultando em efeitos de sentidos diferentes. Por ora, iremos nos
ater ao segundo tipo, ficando o primeiro para um outro momento da análise por
estar classificado por um auto-retrato diverso (no eixo da contrariedade).
O traço
As imagens que compõem esta cena caracterizam duas pinturas do grafite
cujos procedimentos figurativos fazem pensar diferentemente a relação tempo e
espaço com o aparecer do ator.
A foto 10 pode ser vista como uma grande tela colocada à luz do dia, em céu
aberto. O espaço amplo, as grandes proporções, no ambiente público, a rua, o local
de passagem, reúnem as condições ideais para que o “desenho” seja visto a longa
distância. O muro, por isso, funciona como um grande suporte para a projeção do
grafismo, propondo a percepção diferenciada do ambiente rua, ou a relação
diferenciada de tempo e espaço urbano no contínuo da vida cotidiana. Vejamos,
78
então, sua estruturação formal e quais os recursos utilizados para construir o plano
da expressão do texto, para assim torná-lo visível e significante à medida que as
categorias constituídas dessa articulação forem homologadas ao plano do
conteúdo.
A imagem se divide em três partes: superior, referente ao céu; meio, ocupada
pelo muro e o grafite; e inferior, do asfalto. Parados diante da tela vemos, na
porção central, a pintura densa cuja técnica encadeia formas e cores num
rebuscamento de tramas que se assemelham a um conjunto de palavras
sobrepostas; isso explicaria a primeira impressão de estranhamento ou de
interesse: uma língua desconhecida, talvez, que somente o aprendizado a
desvendaria. Vale lembrar que a imagem no meio da rua e a figura da tela se
agigantam proporcionalmente ao tempo que o passante, enunciatário, permanece
diante dela. Ou melhor, a percepção do arranjo invoca um certo tempo de
permanência.
Isso leva a crer que a manifestação do sentido está em correlação ao público e
ao privado, construindo-se nessa mediação. À ela associam-se valores de um
universo privado de significação, ou mesmo de um sentido contingente, que
mostra uma pintura hermética mas existente no espaço público.
A ausência física de um actante no enunciado, o pintor figurativizado, faz da
pintura a própria apresentação de um alguém que deixou sua marca para ser vista.
Como desdobramento do público e do privado, presença e ausência29 também se
combinam para mostrar que o grafite traz colado a ele o corpo do pintor pelo fazer
que cada forma adquire no muro; o gesto do pintor se faz mostrar na imagem. Ele
é grande, ocupa todo o ambiente e, para não haver dúvida, deixa sua marca
29 Agradecemos à professora e orientadora Drª Ana Claudia de Oliveira, do curso de comunicação e Semióticada PUC-SP, pela contribuição nos estudos acerca da construção identitária em dado momento da disciplinaSemiótica Discursiva por ela ministrada. Ao tratar da questão da ausência instigou-nos a refletir sobre as
79
impressa na passagem. Dito de outro modo, a obra como resultado da ação do
pintor o mostra pela dimensão que ela adquire no meio da rua, fazendo pensar o
que foi necessário para realizá-la. Com isso, os quadros, um dentro do outro,
apontam para articulação de uma visibilidade pela presença singular do olhar
fotográfico, que determina o plano geral como melhor enquadramento da
dimensão da obra, no domínio da cena pública.
A relação da trama interna do muro com seu entorno funda a imagem, como
se um outro pintor, o fotógrafo, colocasse seu cavalete e sua tela ao ar livre para
criar sua obra e produzir, e re-produzir, o mundo impresso no muro e em seu
quadro. Pelo arranjo do plano da expressão, organizam-se o:
Cromático: O azul, que preenche o interno da figura e o vermelho que o
delimita e o destaca. Vistos no conjunto, valorizam a figura dando a impressão de
saltar da base, da tela, para se projetarem para o exterior dela. Nisto, cria-se a
relação entre dentro versus fora.
Topológico: O emaranhado da formas, dispostas topologicamente como
blocos na horizontal no centro da página, mais uma vez coloca esse olhar no ponto
de vista da centralidade, entre o céu e a terra (asfalto e verde do mato). Decorrem-
se as categorias centro versus margem.
Eidético: O entrelaçamento das figuras diversas e disformes dadas na região
central de cores e a relação com os retângulos que a englobam, da moldura, do
muro e da própria foto, formam o par interno e externo, colocando as figuras como
limites referenciais do ponto de vista.
Então, as categorias plásticas:
dentro versus fora
“coisas ocultas”, donde pudemos perceber que a ausência nunca é algo em si mesma a não ser em relação aoque não é, presença, e que ela se explica pelo par perfeito.
80
centro versus margem
interno versus externo,
homologam-se às categorias do privado e do público. Quando o privado se
emparelha à categoria centro este se torna o ponto de atenção de uma cena que se
constrói na passagem. Não por acaso as figuras se erguem em tamanha dimensão,
à moda de outdoor, cuja estratégia é agigantar-se e ocupar espaço ante outros
anúncios.
Esta imagem, por sua vez, joga com os modos de construir a visibilidade. Isto
porque na análise do plano da expressão, surge a trama interna do desenho, re-
emoldurada pelo enquadramento fotográfico, que o identifica com códigos
desenhados nos muros. Há neles um sistema linguageiro segundo o qual mais de
uma pessoa se comunica, fazendo aparecer o pintor coletivo que presentifica no
público a sua gramática, passo-a-passo na rua. Mais do que isso, nele marca a
visualidade e visibilidade de sua arte plástica, deixando aos outros passantes, em
princípio, as formas em si.
A questão da ausência do corpo que estamos construindo (e até certo ponto
perseguindo) se inverte, porque não fizemos nada além de afirmar sua presença,
apontando diretamente para a face do pintor, este envolto pelo papel temático do
grafiteiro Hip Hop. Como foi salientado, o tempo de permanência diante da
imagem chama a atenção para o tempo de realização da obra num muro de grande
dimensão na cena pública. Esse tempo de então, do espaço lá, pode ser vivenciado
com o de agora, em cada traço que o enunciatário refaz junto ao artista, na rua por
onde passa.
Por fim, seja numa relação mais próxima ou mais distante do enunciatário, o
fotógrafo-enunciador utiliza-se do mecanismo de “encapsulamento” de imagem,
81
do desenho dentro da foto, para projetar o elemento grafite de um interior para o
exterior do quadro. Se fazer mostrar, neste caso, é focar aquilo que o qualifica.
Já na foto 11 outro estilo de pintura é utilizado num pilar na vertical,
mostrado no primeiro plano, ao invés de um muro. No primeiro estilo analisado
predominam as qualidades plásticas enquanto, neste segundo, o traço é mais
figurativo. Nele lê-se as seguintes frases: “Rap é só para quem tem o dom e a
cultura das ruas. Incentivo você que saia da vida do crime e das drogas”. Ao lado,
o desenho de corpo sinuoso, em cores azul, onde está escrito “Zona Leste”, cáqui,
vermelho e branco, com um grande olho. A figura olha diretamente para o
enunciatário dirigindo-lhe as frases escritas ao lado, o que define, por assim dizer,
uma mensagem.
Dois elementos se reúnem para construir o texto: o rap, identificado pelo
verbal e o grafite, pelo visual. Em conjunto eles se completam e dão corpo e voz
para a figura no pilar, atribuindo movimentação ao Hip Hop. Apesar de não
adquirir formas humanas, a figura usa um mesmo sistema de linguagem ou os
mesmos recursos de uma linguagem mais compreensível, além de ser reforçada
pela fala direta e objetiva. De maneira mais explícita está criado o simulacro do
rapper e do grafiteiro, pois agora o enunciador traz o discurso do pensador que
aconselha e incentiva outros à mudança. Não seria a figura no pilar a caricatura do
homem que vê e sabe de tudo? Por intermédio de sujeito do saber, o rapper, a
figura adquire a função de porta-voz de uma crença ou de uma forma de pensar e
difundir idéias.
Passemos agora à análise do nível narrativo das frases, uma em decorrência
da outra, isso porque se percebe nesta construção um procedimento retórico,
baseado no recurso de elipse, que tem por função manter a pressuposição de uma
idéia que é retomada e já desenvolvida na outra, sendo esta uma relação causal que
dá seguimento ao discurso por economia de argumentação:
82
1) “rap” é um actante sintático, o objeto de valor pretendido por quem deseja o
poder da fala;
2) “é só para quem tem” prescreve as modalidades do poder e do saber fazer,
que subentende um percurso de aquisição de competência, deixando bem claro
(“só”) que são poucos os privilegiados;
3) “o dom e a cultura das ruas”: a competência deve ser adquirida nas ruas.
Resta pouco o que fazer, então, a não ser esperar que o destinatário receba uma
doação, um sinal do destinador, dizendo-lhe escolhido por conseqüência de um
ato que julgue digno de “premiação”, e que pode ser apreendido na próxima
sentença.
4) “Incentivo você que saia da vida do crime e das drogas”. O tu, de quem
prevalece a imagem negativa, deverá sofrer, por isso, a manipulação por
provocação para mudança de estado e deixar de ser criminoso e drogado, como
um percurso de aquisição de competência em busca do objeto valor rap. Por essa
parte vemos que não há nada de divino naquela graça que vem das ruas porque
este também é um lugar de provação, aonde se encontra o crime e as drogas e que
cada um realiza a sua vida à sua própria sorte. Paradoxalmente lá está o dom e a
cultura que imprime ao sujeito necessidade de um fazer pragmático para se livrar
de seus males. O lugar “rua”, portanto, é também anti-destinador do pretendente e
mesmo assim, ou por causa disto, o fazer persuasivo do destinador agora
conhecido, o rapper, leva o destinatário a querer e a dever fazer algo seja rimando
ou desenhando na cena pública, construída no visual pelo céu, luz e sombra dando
a dimensão do espaço do pintor do ambiente ao ar livre, e no verbal pela palavra
“ruas”. Nesta fala destacam-se vários subtemas comuns ao discurso Hip Hop tais
como a luta contra as drogas, contra o crime, a questão pedagógica e questão da
superação, e mesmo a arte, sob a forma do verso e da pintura.
83
Como o diálogo se estabelece face a face, percebemos que uma das estratégias
para confirmar o pacto de confiança é fazer conhecer o grau de comprometimento
do interlocutor com seu interlocutário (caracterizando debreagem interna em voz
direta), no que diz respeito ao seu papel didático nessa empreitada, convocando
um dado universo de identificação de um grupo suscetível diariamente às
desventuras da vida. Por isso há dois enunciatários possíveis: aquele para quem o
discurso influencia enquanto conselho sábio e aquele para quem o discurso parece
ser mensagem de um conhecedor da situação. Mas para ambos ele cria de si a
imagem do Mensageiro do Bem em oposição ao “o crime e as drogas”, estes
delegados do anti-sujeito vinculados ao Mal e, portanto, disfórico. O
aconselhamento quase catequizante deste sábio convoca o enunciatário a crer no
valor de sua pregação como verdadeiro, numa palavra, que rap é agente
transformador. Simultaneamente salta da figura um único e grande olho em quase
toda a cabeça para garantir pela menção imperativa, o discurso didático. Esse
olhar, vigilante, chega a repreender aqueles que se encontram na situação que
desaprova.
Pela articulação temática e figurativa está criado um ambiente social hostil no
qual o grupo se produz culturalmente, como alternativa aos sujeitos aí inseridos.
Na continuidade da cadeia isotópica essa questão recupera a figura do outsider
mostrado sincreticamente, no verbo-visual, pelo Rap e pelo grafite. Como dito
acima, estes elementos são textualmente recobertos um pelo outro (onde caberia
outra pesquisa para tratar da intertextualidade presente nas fotografias) e definem
a cena enunciativa em que a figura do olho, no papel de narrador e interlocutor, é
assumida pelo enunciador pressuposto, sem forma reconhecível, porém
compreensível, neste mundo que ele quer presentificar.
84
A demarcação geográfica do lugar, “zona leste”, dá ao sujeito uma localização
que estabelece o jogo entre centro e periferia, fazendo aparecer este último como
lugar da fronteira entre o bem e o mal, ou dito de outro modo, lugar de salvação
ou de perdição, conforme a orientação de cada um. Pode-se depreender que a
figura no pilar já foi sancionada e ocupa o centro da atenção, pois é doadora da
mensagem e da experiência da vitória. Reafirmando seus valores, ela se dirige ao
enunciatário buscando seu olhar, incluindo-o na escuta. O grande olho afirma que
entre os dois existe a relação do ver ou da comunicação que implica o olhar o outro.
O fotógrafo, com isso, ali se projeta no olhar atento e presente.
Pela foto o enunciador pretende fazer ver a figura como portadora de um
dom e de valores que advêm de um universo particular de comunicação
concretizado pelo rap, que é o elemento do discurso verbal do Hip Hop. Se
retomarmos o percurso passional do sujeito, este já sancionado positivamente, ser
vitorioso e exemplar de seu mundo de acordo com a figura do mensageiro, vemos
a prática de um Hip Hop dotado de um poder e um saber ajudar. Assim, sua função
é salvar seu próximo pregando um saber superior calcado no discurso e,
principalmente, na crença de seu destinador como verdadeiro salvador. A
propósito, o auxílio ao próximo é o subtexto da fé, na isotopia da transformação
pela salvação.
Parece-nos que este auto-retrato por um simulacro do Hip Hop, como o
mensageiro no pilar, implica em colocar em discurso o próprio discurso do Hip Hop,
como descrito acima. A figura da enunciação recorre a uma pregação de uma
verdade do discurso e se faz mostrar através de um sincretismo de papéis,
actancial e actorial.
Rapper: sujeito da contemplação
85
Tomemos as próximas imagens num encadeamento que permite circular
entre uma e outra mais ou menos livremente, com intuito de construir, pelos
elementos invariantes, a dominante temática da cena, tentando destacar o que pela
particularidade de cada um retoma-se o todo. Nelas, a figura humana utiliza um
microfone, próximo à boca, instrumento que acompanha o homem no palco para
se comunicar com a platéia.
Na primeira fotografia (12), o “falante” ocupa a porção esquerda da imagem
deixando, à direita, a platéia que o saúda. Colocado imediatamente atrás do cantor,
o fotógrafo enquadrou a cena dividindo-a em duas partes: a esquerda,
praticamente preenchida pelo cantor voltado, também para a esquerda, e a direita,
a maior parte da platéia, que olha em direção ao palco, onde está o fotógrafo.
Na foto 13 estar entre o público já é experiência familiar ao enunciatário. E
dizer isso é apontar um modo de proceder do enunciador para causar o
envolvimento do enunciatário e para transformá-lo num participante pressuposto
da cena fotográfica. O arranjo do enquadramento traça a relação entre o
enunciatário instalado no texto como um participante do evento e o cantor que
surge no meio dele. Em posição central na imagem, e colocado no plano superior
do quadro por sobre as cabeças do público, o cantor é destacado pela iluminação
que nele incide fortemente em tom avermelhado, formando uma aura ao seu redor.
A figura desse cantor, remete à cena anterior, à do mensageiro ou o simulacro
do rapper, também chamado MC (mestre de cerimônias) na cultura Hip Hop. Essa
figura que se ergue na vertical e que olha por sobre as cabeças cobertas pelos
bonés, é a presentifição de um poder e de um saber discursar mostrado em pleno
ato, ensinando o caminho para a salvação, revelando-se por sua paixão maior: fazer-
crer em si mesmo como o grande messias em presença e realizado.
86
Visto de outra maneira, o predomínio da questão técnica traça um caminho
de olhar que estabelece as bases do sujeito que ocupa, nas alturas, o vértice
principal da triangulação da imagem, completado pelas duas outras cabeças na
base inferior dela. Existe a construção de um modo de ver e de se fazer mostrar da
enunciação que denuncia sua marca pela organização espacial da imagem
conforme o enquadramento, sugerindo a centralidade frontal da figura em
ascendência, deslocada dos demais. Ou melhor, pelo recurso fotográfico de
enquadramento e, sobretudo, pelo efeito da saturação avermelhada – comum
quando a foto captada sob iluminação cênica - a figura falante torna-se o resultado
de arranjo visual, que substitui a figura do mensageiro ao papel do rapper detentor
do discurso.
O fotógrafo, posicionado no meio do público, divide a imagem em planos: o
superior, onde dispõe o cantor, e o inferior, onde ele mesmo está, criando nesse
enquandramento um caminho para se chegar ao sujeito no palco. Por esse
procedimento consegue transformar um show de música numa cena de
contemplação, pela ascensão do olhar de baixo para o alto, do público para o
sujeito do poder e do saber.
De uma maneira geral, principalmente por estas duas últimas cenas, a
montagem de um simulacro do Hip Hop acontece por meio de intertextualidade de
elementos da prática Hip Hop, ou seja, uma foto de um acontecimento incorpora
outros, fazendo com que os elementos que caracterizam esse movimento coexistam
e se complementem no interior de uma mesma foto. Com isso, cria-se um efeito de
sentido de abrangência, como se todos os fotógrafos concordassem nesse tipo de
construção que circunscreve o universo Hip Hop pelos elementos que o compõem:
break, grafite, mc e dj; decorrem daí os simulacros do dançarino breaker, do pintor
grafiteiro, do cantor e músico de rap, atrelados a papéis temáticos distintos. Por
esse modo, os fotógrafos vêem-se no grupo do qual fazem parte, mostrando-se
87
pelo papel social que desempenham, até a próxima cena, como imagem
convencionalizada na relação de pertencimento ao Hip Hop.
O corpo monta o estilo
No percurso das cenas pouco a pouco vemos instaurar-se a questão da
veridicção, de acordo com figuras que vêm sendo apresentadas, para construir o
discurso do sujeito Hip Hop sobre si mesmo. Imagens em meio a seu universo
cultural/artístico que invocam o seu ser como sujeito atuante, pensante,
questionador, comprometido com a voz da periferia, como mensageiro da
salvação, como poeta, que se realiza expressando no corpo as variações de sua
existência. A esses desempenhos outras competências se agregam e pressupõem a
imagem na ordem do parecer verdadeiro. Da mesma forma, o modo de se posicionar
dos sujeitos para a câmera, recupera a tradição de retrato que restitui a pose
segundo o desempenho simulado30, ou seja, de uma construção antecipada do
próprio sujeito a respeito de si mesmo ou de uma auto-avaliação perceptiva, por
instantânea que seja, da caracterização externa de uma pessoa que será vista pela
outra. Isso equivale dizer das condições de realização e montagem de sua aparência
como aquela que deseja ser conhecida e perpetuada para o futuro o que, via de
regra, vale o desejo de causar “boa” impressão dentro daquilo que se dispõe a
demonstrar.
A montagem da aparência, realizada por um modo de retratar mais
convencionalizado, reforça um determinado costume no mostrar-se por ordenar a
maneira de posar diante da câmera. Dele, do retratado, espera-se a mínima
correspondência consigo mesmo, justamente na relação do parecer ser quem
30 A.J. Greimas. “Os atuantes, os atores e as figuras” in ______Semiótica narrativa e textual. Trad. J. A.Durigam. São Paulo, EDUSP/Cultix, p.183.
88
presumem que seja. Tratam-se de atributos que fazem da pose um modo de ser. As
imagens desta cena, então, produzem um efeito de verossimilhança que advém do
modo constitutivo do gestual e da vestimenta e que criam uma referência do ser
Hip Hopper.
Parados diante do fotógrafo, lado a lado, os actantes formam um grupo
eclético na forma de vestir, porém com um ponto comum quanto ao ornamento.
São correntes, bonés, penteados que qualificam esse corpo maior dado à exibição,
na pose para a foto onde montam um estilo. Afinal, a maneira de mostrar-se não
condiz com a forma de querer ser visto? A roupa larga, na figura da criança com
blusão preto e branco (foto 15), mostra a roupa como traço comum ao adulto, ao
jovem e à criança, de maneira que não importa a adequação do tamanho à pessoa,
importa que a roupa o inclua no grupo. Esta inclusão refere-se ao geral, ao coletivo,
sem classificação ou seriação. Porém, parece haver algo mais na relação dessa
roupa da criança, quando partimos para a foto 14, somado ao gestual que se repete.
Diante da câmera elas se amontoam e exageram na pose e no gesto da mão como
se sustentassem um troféu que atesta o pertencimento ao grupo adulto. O universo
infantil aí presente, pelo colorido das roupas, pelo tom brincalhão do menino de
blusa preta, configura o caráter de continuidade e também de tradição do Hip Hop
no sentido de que desde pequeno os valores vão sendo incorporados e
reproduzidos.
As crianças têm como papel mostrar que a união do grupo é, por certo, sólida
porque é resultado do investimento do tempo, que amadurece as relações e
perpetua valores. Por essa razão as crianças são abraçadas pelos adultos assim
como quem acolhe a cria. Recorrendo ao dito popular: “tal pai, tal filho”.
Fotografados, os actantes se propõem ao olhar de um outro, o fotógrafo, e
fazem disso um acontecimento para ser visto por todo seu repertório de exposição.
A proximidade entre ambos existe pela relação do olhar direto, um fitando o outro
89
para construção da cena e do registro. Pois é isso que elas reforçam, a declaração
de sua presença num tempo e espaço documentado, em grupo, atualizado pelo
olhar do enunciatário. Diferente das duas primeiras fotos que trazem o sentido da
reunião pelo evento, estas últimas mostram que a reunião acontece porque
acontece o ato fotográfico.
Na última pose da cena (foto 16) o actante se coloca de costas para o fotógrafo
que enquadra e enfoca as palavras “Sou HIP HOP SIM!”, afirmadas
categoricamente. Elas parecem selar o pacto do sujeito com o grupo, sobretudo
pela exclamação que só faz aumentar a voz do interlocutor em seu percurso até
aqui. As letras maiúsculas e as serifas engrandecem e valorizam este corpo como
sujeito capaz de presentificar e recapitular todas as cenas. Destacadas pelo branco,
as palavras saltam das costas como brado vigoroso que, ao mesmo tempo em que
ganha o espaço, faz retornar para si mesmo a afirmação como ponto de
convergência das vozes reunidas.
O Hip Hop aí configurado se afirma como corpo coletivo no centro do mundo,
tal como as palavras cuidadosamente posicionadas no meio da imagem, frente e
verso, na cena pública. De frente para o enunciatário, o Hip Hop se enche de si para
se fazer mostrar integralmente, sem desvios, segundo uma convicção que responde
pelo excesso de ser o que é: o próprio Hip Hop, como “manda o figurino”. Essa
garantia é sustentada pelos procedimentos enunciativos que enlaçam a maneira de
fotografar, baseado no retrato posado e na iconicidade figurativa, para dar
veracidade a afirmação de pertença de um sujeito a um grupo sociocultural31.
31 Sobre estudos de retratos ver: E.Landowski, “Flagrantes delitos” in: Galáxia – Revista Transdiciplinar emComunicação. Semiótica e Cultura, nº 8, Trad. D. F. Cruz. São Paulo, EDUC, 2004. Landowski desenvolvereflexão muito rica ao nosso trabalho sobre tipos de retratos, sobretudo ao analisar a pose de figuras políticas.Nossa idéia de retrato posado aproxima-se ao conceito de retrato de função cosmética, desenvolvida peloautor, a partir da afirmação de que “aquilo com o que o sujeito ‘parece’ depende menos do ele ‘é’ que damaneira que ele é representado” (p. 41), isto é, que “empenha-se em fixar para a posteridade que seja ponto aponto conforme a uma norma sócio-estética de representação pré-definida” (p. 46”), evidentemente que naconjunção do seu olhar com os outros sobre si.
90
Vemos que uma imagem mais íntima ou individualizada é negada em função de
um parecer de ordem mais geral, social ou convencional, do sujeito.
Consideramos com esta foto o desfecho da cena pública onde os retratos se
constroem pela reiteração de traços socialmente convencionalizados, que o grupo
mostra ao construí-lo por si mesmo, por intermédio de diversos fotógrafos em
momentos distintos. Seria, então, esta uma das estratégias de ganhar a visibilidade,
fazendo o Si significar pelas referências do Hip Hop ou pelo simulacro de um Hip
Hop? Optamos por analisar todas essas 15 fotos para dar idéia dos temas e da
predominância de um fazer do destinador/enunciador que pretende persuadir o
enunciatário/destinatário a aceitar que as fotografias constroem, até aqui, a
identidade do grupo tal como um Hip Hop. Portanto, estão implícitas questões de
reconhecimento e de pertencimento, para definir o grupo conforme um papel
social, ancorado pelas temáticas “mais explicitas” das práticas culturais do
Movimento.
A pose de si (verso privado): a família como sociabilidade
Mas o retrato, o que é? Busto, silhueta, efígie, desenho, pintura,
representação, fotografia, nos diz o Aurélio32. Outro dicionário33 nos responde
melhor: Figura! Greimas, ao estabelecer a correlação entre os verbetes figura,
figuratividade, figurativo, figurativização, discorre sobre uma questão muito
pertinente ao nosso trabalho, ou seja, o sentido figurado, que apostaremos renomeá-
lo de olhares figurados. O autor explica que figurativo e não-figurativo, é apenas um
modo variável do figurativo, sendo o figural, o constante. Assim o sentido figurado é
também uma variação do figural, sobretudo se o homologarmos ao quadrado
32 Dicionário Aurélio: Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira [s.d.], p. 1231.
91
semiótico34, como ele mesmo propõe. Isso amplia a problemática acerca do auto-
retrato pois se todo retrato é constituição da predominância de valor e de tipo de
uma dimensão figurativa, então todas as cenas apresentadas durante o caminho
são apenas variações de uma mesma figura que se organizou mediante a
“negociação” do sentido próprio e do sentido figurado, colocando-se entre o
privado e o público.
Atualizando a questão: Como as figuras semânticas de um texto produzem
efeito de realidade? Primeiro, reconhecendo nas figuras, ainda segundo Greimas e
também como pudemos constatar, a aproximação do mundo natural (entendido
também como convencional) em relação a um contexto de fala, o que conduz a
credibilidade por questões temáticas enredadas por referencialização e iconização.
Neste trabalho, classificadas por figuras que se fazem mostrar. E segundo,
descobrindo na variação figurativa mais do que uma estratégia para fazer crer na
imagem apresentada para tornar visível o sujeito do discurso, existe a dimensão
sensível que fundamenta o grupo. Neste caso, o mostrar assume configuração
temática paralela, mas não alheia, ao universo Hip Hop.
As fotografias do bairro, da casa e de si, constituem-se como cenas do privado
e promovem, de imediato, um efeito de afastamento daquele universo fazendo
entrever outro tema da vida cotidiana.
O ambiente da casa apresentada nas fotografias (17, 18, 19, 20) não tem
acabamento nem por dentro nem por fora, as coisas são empilhadas, a fiação
elétrica está à mostra, e o lixo amontoado logo na porta de saída. Nelas, as pessoas
estão numa posição mais relaxada, mais à vontade, fazendo surgir o traço não visto
anteriormente da apresentação do lugar de vivência. Deste ponto de vista, o
retorno às fotografias anteriores é tido como necessário, pois a constituição do
33 A.J. Greimas e J. Courtés. Op. Cit.,. 1991, verbete figura, p. 112.34 Idem, p. 113.
92
grupo, a partir do privado, o relaciona a um outro tipo de reunião caracterizada
pelo traço sócio-econômico de seu lugar de fala. Em decorrência, depreende-se a
existência de laços de amizade ou de parentesco que fundamenta um sentimento de
grupo.
No lugar de apresentação do sujeito que vinha construindo a sua visibilidade
predominantemente no espaço público, é inserido este outro que relativiza a
reunião ao ausentá-la de elementos do universo Hip Hop. Seríamos tentados a dizer
que está configurado um novo lugar de apresentação do grupo, quando, na
verdade, trata-se apenas da continuidade da primeira reunião, em menor
proporção, dada na intimidade. Nela, o sentido articula o efeito de cotidianidade e
de espontaneidade, cujo resultado é a expansão da credibilidade, pelo efeito de
realidade, de um tipo de sociabilidade do grupo reunido por laços fraternos.
Admitindo, em princípio, que esta foto incorpore um fazer persuasivo do
enunciador sobre o enunciatário, inclusive por levá-lo para dentro da casa,
devemos considerar que algo mais lhe escapa do controle ao introduzir a mudança
no caráter do texto, provocando, por assim dizer, o efeito de subjetividade parcial e
diferenciado se comparado à primeira reunião. É como se ele dissesse: “veja você,
caro enunciatário, como e onde se constrói nossa imagem, essa é a nossa casa e é
aqui que a união se justifica”. Esse novo olhar revela uma faceta não esperada da
intimidade do grupo, da vida em família, que amplia a condição de visibilidade do
sujeito num percurso que vai dos grandes locais dos eventos musicais, das
performances e da via urbana, para os espaços reduzidos, no encontro dos amigos
reunidos num espaço de partilha do grupo, seja por relação de vizinhança, seja por
amizade ou por proximidade sócio-econômica, ou ainda por afinidades de idéias e
crenças.
Percebemos a adequação da instância enunciativa ao partilhar um valor
comum aos sujeitos da comunicação: a casa, que resulta na aproximação de ambos.
93
Afinal não seria essa também uma prova de confiança de ambos que concordam e
localizam cada qual o seu lugar de acolhida, das coisas e dos amigos, onde
poderiam viver a sua intimidade? Participar de um ambiente fraterno inscreve não
somente nesta, mas em todas as fotos anteriores, a aproximação de uma
particularidade do grupo. Contudo, a própria dimensão do privado é por si só um
efeito de privado. Isso talvez justificasse alguns momentos de aproximação
diferenciada em que não se trata apenas de se mostrar para o fotógrafo, que somos
nós pelos olhos dele, mas de senti-lo sinceramente porque afinal, ele ou nós, somos
mais um nesta construção.
Poderíamos ainda olhar de outro modo: a cena se desenrolar, antes, segundo
o regime da união para então combinar-se ao regime da junção. Pois, não seria essa
reunião mais reservada do grupo o contato em que cada um sente o seu semelhante
próximo o suficiente para reconhecer nele seu “parceiro” do cotidiano? Não seria
esse sentir junto à base de perpetuação do grupo pelo ajustamento recíproco de um
pelo outro na rotina do sujeito Hip Hop, que constrói em grupo sua intimidade
visível? Mesmo que essa reunião levante tal questionamento, a pose, como um
arranjo, inscreve o espaço do privado no interior da cena pública.
No entanto, é na intimidade, no interior da própria casa que o grupo se
define, antes mesmo de recorrer aos acessórios que revestem o corpo. O sentimento,
constituído como elo de ligação entre os sujeitos na cena privada do cotidiano,
determina a coesão do grupo na cena pública da reunião, do espetáculo e da
contemplação. Visto dessa forma, esta foto abre caminho para encadear a relação,
cena pública cena privada(espaço do privado)
objetividadesubjetividade
versus
94
que confere ao Hip Hop a visibilidade pela combinação das figuras construídas
entre a cena pública e a cena privada, uma no verso da outra, para constituir a
imagem própria. Na dinâmica criada pelas figuras fica claro que a trajetória de
construção de uma identidade, pois já podemos tratar do assunto, é tão variável
quanto as maneiras pelas quais se apresentam, reforçando nossa opção de
privilegiar as múltiplas configurações discursivas em torno do personagem
principal, tendo em mente, assim, que as “realidades” são móveis e que os sujeitos
podem tornar-se outros a qualquer instante.
O Simulacro do Hip Hop: o auto-retrato como convenção
De acordo com o proposto, pudemos notar que a esse primeiro conjunto de
fotografias remonta figuras da cultura Hip Hop, muitas vezes ancorados por
emblemas mais estereotipados, de fácil identificação contextual do lugar de fala,
do sujeito enunciador. Para isso, diversos são os recursos, como podemos destacar
por figuras e temas, de presentificação do grupo, em que se destaca a apresentação
de práticas em grupo. Nesse sentido, o envolvimento do corpo ou a presença física
em ato, ou seja, figurativizado na imagem, é fundamental para compor a cena e
significar a construção visual do grupo como um simulacro do Hip Hop. Da mesma
forma, quando o corpo não está presente, há clara referência à marca do sujeito que
utiliza outros mecanismos de relacionar a imagem a um parecer simulacrado do
Hip Hop, pelo papel temático principalmente. No primeiro caso, observamos que o
enunciador se faz mostrar em presença como actante da fotografia; no segundo, se
faz mostrar, mesmo ausente, pelo olhar seletivo do fotógrafo que revela seu olhar
comprometido na construção do simulacro.
95
2.2. Cena 2
O mostrar-se: a constituição do ser
Na cena anterior dissemos que as fotos que desenvolvem o tema do grafite
classificam-se por dois modos distintos de figurativização: um que revela a
presença física do pintor no ato da criação, figurativizando o enunciador que pelo
seu simulacro instalado no enunciado, e outro que traz a obra em si, o muro
grafitado, onde ausenta-se delegando a um terceiro a função de re-presentá-lo.
Cada modo correlaciona a maneira de fotografar pelo arranjo da pintura e, juntos,
apontam procedimentos distintos da instância da enunciação pressuposta. O modo
de olhar determina, portanto, o modo de mostrar.
O toque na presença
Dizer que as coisas têm sentido porque no caminho existem motivos que
embasam em algum nível esta significação é pertinente até quando ele mesmo, o
96
sentido, deixa um pouco suas “razões” de lado para envolver outras coisas não tão
inteligíveis, em princípio. Dito de outro modo, quando o sentido é vivenciado. Por
esse outro modo, surge a cena em que o pintor (foto 21), em ato, é reconstituído
metonimicamente pela extensão do braço que atravessa diagonalmente todo o
enquadramento. Na mão, ele possui um spray ainda em ação.
A imagem é construída basicamente de planos que se separam e se misturam
tanto pela composição da cor quanto pela especificidade do recurso fotográfico,
que achata a imagem e limita a noção de profundidade. Frente e fundo passam a
fazer parte de um mesmo plano de visão, afirmando a bi-dimensionalidade da
fotografia em oposição ao efeito de tridimensionalidade e realidade, por
correlação. As partes do corpo (perna, braço e cabeça), posicionadas na porção
esquerda do quadro que corresponde a um primeiro plano, permite depreender a
figura do pintor por inteiro. Aqui as formas são mais embaçadas devido à
proximidade do fotógrafo ao fotografado. À direita da imagem, a mão traça formas
não identificadas no plano de fundo, este mais definido em relação ao primeiro
tanto pela distância da objetiva ao ponto de foco quanto pela presença do preto no
desenho que o contorna e define seus limites. O azul, presente em ambos os planos
em tons diferenciados, é cor predominante que permite o fácil deslocamento do
olhar pela superfície da imagem. Ele aproxima e circunda o bege da pele, sem
invadi-lo. Entre um plano e outro, entre desfoque e definição, entre pintor e
desenho, o olhar não pára de se deslocar.
Tal construção mostra duas possibilidades na realização da fotografia: grande
proximidade do fotógrafo ao seu objeto, o pintor e sua obra, ligeiramente colocado
à esquerda dele; e/ou uso de teleobjetiva, devido ao desfoque do primeiro plano e
achatamento do segundo. Nessas situações a distância mínima para que a imagem
ficasse completamente nítida foi ignorada tal como exigida pela especificidade
técnica da objetiva utilizada. A proximidade e o desfoque, conseqüentemente,
97
poderiam ser interpretados como um procedimento enunciativo para causar o
efeito de proximidade entre os sujeitos da enunciação, este como estratégia para
envolver o enunciatário na criação, numa prática artística. Achamos inconsistente
essa possibilidade, pois não há nada a crer a não ser que de fato existe um pintor a
realizar sua obra. Preferimos primeiramente olhar de outro modo, sem invalidar a
proposição anterior pois voltaremos à ela.
Olharemos os sujeitos envolvidos por essa construção, e por ela colocados
face-a-face, como sujeitos que se unem e se ajustam pelo efeito de proximidade,
decorrente da deficiência ótica da objetiva, pelo fazer do fotógrafo. Nesse sentido,
está suprimido um espaço entre os sujeitos que passam a operar sua relação
comunicativa pelo visual, sem a mediação de um objeto de valor: o proponente do
olhar, via fotógrafo na posição em que se coloca, se une ao enunciatário para
realizar a obra junto ao pintor.
O pintor em ato faz voltar para o fotógrafo o próprio instante em que os dois
realizam suas práticas, pintura e fotografia, de modo que o observador se envolve
na imagem por um olhar que depende de todo corpo. O enquadramento enviesado
sugere uma leve torção da cabeça para encontrar o equilíbrio; sugere ajeitar-se em
relação ao pintor-actante, como se estivesse agachado, para facilitar na
visualização; e experimentar um pouco essa posição para realizar os traços no
muro. De repente esse instante, via fotográfico, é expandido numa ação do
observador que se descobre num fazer junto. O mostrar adquire um sentido de co-
presença de ambos, em que o sentido de tal encontro está justamente na
experiência do fazer, seja ela no nível de pura sensação do pintar, seja no fruir. Por
mais que todo um arranjo visual seja esteticamente pensado pelo fotógrafo seria
impossível para ele determinar, no instante da união, o sentido sentido. Ao olhar, o
co-produtor vai ao encontro do corpo.
98
Isso significa que dois regimes de sentido podem combinar-se e enriquecer-se
mutuamente. Podemos admitir a existência de uma estratégia manipulatória para
fazer ver o pintor no ato de sua criação, mas há um algo na imagem que a torna
mais do que um resultado da composição. Por ela, o sentido não se esgota, ao
contrário, se expande e ganha outras maneiras de existir conforme o sentir das
formas experimentadas, vivenciadas. Como se naquilo cada olhar despertasse um
pintor, pelo regime da união. Na relação entre dois actantes, entre dois sujeitos, a
aproximação é aquela que garante a preservação das identidades, sem
transformação, sem destinador. A significação advém pelo instante inesperado em
que ao olhar as formas o sujeito se vê sensível e tocado pelo fazer do outro,
retomando cada traço e movimento. Existe, assim, um tipo de concomitância
temporal e espacial que torna pintura/pintor e fotografia/fotógrafo–observador
instâncias co-presentes, unidos pelo instantâneo fotográfico que gerou o
ajustamento, tal como define Landowski35, o toque entre ambos. Essa proximidade
é da ordem da reflexividade do “eu” sensível presentificado no discurso, pela
figura do artista.
Paralelamente, atendo-se à análise do arranjo plástico, são prontamente
identificadas duas categorias do plano da expressão, o embaçado e o nítido, que
delimitam, numa ordem mais geral, duas regiões da imagem divididas pela
diagonal, formando dois triângulos retângulos: canto direito acima e canto
esquerdo abaixo. Cada uma delas é definida pela massa corpórea do pintor e pelo
desenho, respectivamente. Na predominância do tom azul claro e o bege da pele,
sobra a parede crua, de cimento, e o instrumento branco com pequenos detalhes
vermelhos que irão se encontrar com o tom parecido na camiseta do pintor.
35 Sobre os regimes de sentido ver: E. Landowski. Passions sans nom. Essais de socio-sémiotique III. Paris,Presses Universitaires de France, 2004 , cap. II e VI;
99
Pelas cores tem-se uma primeira categoria em termo complexo de contrastes36
dado predominantemente pelo azul, enquandrante, que por sua vez desdobra-se
em desfocado versus nítido, respectivamente a roupa e o desenho no muro; e o
bege, enquadrado, que compõe-se do claro da pele na perna do pintor e que vai
ligeiramente se focando em direção à mão, onde atinge o ponto de sombra.
Esquematicamente resultam as relações:
Bege = Braço, perna e mão d pele d enquadrada d central
claro versus sombra
Azul = Desenho, roupa d concreto, revestimento d enquadradante d periférico
nítido versus embaçado
Da pele humana nuançada pela luz que incide diferentemente sobre ela surge
a natureza, que parcialmente aparece revestida da cultura, pela bermuda e
camiseta e pelo grafismo. O braço desenha o gesto do pintor - e, tal como ele, nós
mesmos fazemos o gesto que abrange toda a imagem –, numa forma de “rubrica”
meio curva percorrida da direita à esquerda da trajetória diagonal, unindo e
separando as duas regiões pelo toque da arte que dá vida ao concreto, ao cinza dos
muros das cidades. Vida feita de cores e que anuncia um envolvimento mais
profundo do sujeito com a cidade que abriga o ato criador. Daí estabelecer-se, num
crescendo, algumas relações que cruzam, no limite, o sentido da arte em mostrar
que nas ocorrências da vida, nos mínimos elementos, no concreto morto da parede,
36 Para esta reflexão é importante ver: J-M Floch, Um Nu du Boubat, in ______ Petites Mythologies de l’Oeilet de l’Esprit: por une sémiotique plastique. Paris-Amsterdan, Hadès-Benjamins, 1985. Neste o autor elucidasobre as maneiras de abordar a semiótica dos contrastes plásticos pela forma fotográfica, do qual, inclusive,emprestamos as oposições de base modelado versus chapado para desenvolver nossa análise.
100
existe a presença da alma pelo toque humano. Por essa razão, o homem traz pelas
suas mãos a própria cultura.
A partir dessa constatação encadeiam-se, também, outras relações acerca das
duas regiões da imagem que propiciam, num crescendo, igualmente a formação de
uma figura mediadora:
Pintor
/pele/ /roupa/(perna, braço e mão) (bermuda e camiseta)
/não-roupa/ /não-pele/(spray) (desenho)
Muro
Daí depreendem-se outros valores que vemos unir-se à constituição do gesto
criador:
concretodureza
estável/ inerte
morte vidaversus
pelesuavidade
instável/ animado
Neste último conjunto a arte mostra-se como um pulsar contínuo e
descontínuo da experiência humana com o mundo, onde os sentidos emanam da
101
prática de sentir as coisas inertes como coisas pelas quais a vida se faz sentir,
sempre outra e renovada. O gesto artístico se constrói ali, na passagem entre o
notável e o ordinário, e “representa assim o resultado do processo de
figurativização de um tema onde é investida a organização abstrata do universo
coletivo, e constitui a figura de um objeto semanticamente definido como termo
complexo”37.
O resultado do recorte tão próximo revela a matéria de que é feita, nos
interstícios, nos detalhes, como imagens que sofrem tanta ampliação a ponto de
perderem sua identificação com o todo. Porém, o fotógrafo enquadra a mão no
flagrante da assinatura, em ato de produção. Ela conduz ao todo de que é feita, não
somente ao corpo, como dissemos, mas à situação sentida por quem se projeta e
experimenta um traço possível, num modo presencial. E se esse modo de vê-la
adquire sentido para nós é porque, nas palavras de Landowski
“já deixou de ser somente o que é (ou porque talvez nunca tenha se
reduzido a isso), pois para fazer sentido ao fazer imagem é preciso antes
de mais nada que, na extensão ou na duração, uma coisa se movimente,
no mínimo em relação à ela mesma”38.
Para concluir, dizemos que as cores, as linhas, o movimento, que conformam
o plano detalhe no grafite, junto a mão, funcionam como “operadores de sentido”
que “agem à maneira de modulações puras”, desencadeando outros tipos possíveis
de sentido, do estético ao estésico. A trama do grafismo solicita do corpo algo mais
do que um olhar cuidadoso e treinado, que apenas desvenda nela a existência de
37 J-M Floch, Op. Cit. pág 13.38 E. Landowski. “Modo de presença do visível”, In A. C. Oliveira (org). Semiótica Plástica. Trad. I. A. Silva.São Paulo, Hacker, 2004, p. 110.
102
um discurso pensado e elaborado para envolver o enunciatário por estratégia
persuasiva.
O ângulo de recorte da imagem exige um envolvimento do olhar e do corpo
sem o qual é impossível perceber como o sujeito que se constrói no seu fazer.
Estamos diante de um outro modo de ver a imagem que implica necessariamente
numa transformação não esperada do sujeito frente a outro igualmente suscetível
de transformação, o visível, num caso de contágio por impressão39. Se ela traz
presentificado, como acreditamos, o sujeito no ato de seu traço significante é
porque a mediação deixou de separá-lo entre o então e o agora. Nesse particular,
podemos falar de um sujeito corporificado pelo sentir o outro, caso que, de outro
ponto de vista, poderia ser tomado por embreagem ou por “efeito de identificação”
entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, tempo do enunciado e tempo
da enunciação, espaço do enunciado e espaço da enunciação”40. Diferente disto,
estamos falando de formas inacabadas num presente sempre presente, que exigem
do corpo (antes) uma certa disposição para sentir o outro sem esperar inclusive
que desse contato surja algum sentido. Visamos compreender como a dimensão do
sensível se mostra ao sentido para construí-lo, enfim, por causa ou apesar da
plasticidade e da figuratividade que não se ordenam em consonância com a
percepção sensível: uma se move em relação a outra imersas numa dimensão
contínua que faz ser o sentido. Por essa razão a descrição (precária) da imagem
tenta recuperar um momento do vivido estésico41, como uma mudança no ato de ver
a imagem, sem a pretensão de querer dar conta do todo de sua significação.
Arriscamos, então redimensioná-la por este sentido sentido, ainda que à maneira de
39 E. Landowski, op.cit., 2004, p 1840 J. L. FIORIN. As Astúcias da Enunciação: as categorias da pessoa, espaço e tempo. São Paulo, Ática,1999, p. 50.41 E. Landowski. “De L’Imperfection: O livro do qual se fala” in A. J. Greimas. Da Imperfeição. Pref e trad.A. C. Oliveira. São Paulo, Hacker Editores, 2002, p. 149.
103
um rascunho que se articula no âmbito da problemática geral da semiótica do
sensível, por procedimento de sensibilidade operado no contágio.
Figura Focal
O quadro geral das cenas desenvolve a hipótese da construção de uma
imagem do grupo, num percurso de interação do olhar entre o si que se mostra e o
outro que vê. Na foto 22 colocamo-nos diante de uma construção explícita do
sujeito que revela o instrumento de trabalho de que dispõe para aportar o modo de
construção de si. Nela, o discurso produz-se pela reintegração das cenas anteriores,
agora que seu produtor se faz mostrar pela encenação de si mesmo no texto
enunciado.
Na escuridão da imagem é possível ver traços de luzes coloridas, verde e
vermelha, e um brilho pontual na região inferior central, perto do qual muitos
braços se elevam. As poucas luzes fazem uma espécie de risco central dividindo a
foto em duas regiões, a superior, mais enegrecida, e a inferior, para onde elas
parecem apontar, ajudando a realçar o brilho prateado. Por essa organização o
objeto acaba se destacando, principalmente porque ali está localizado o ponto focal
da imagem. O brilho prateado, único corpo onde se dá a maior concentração e
reflexão de luz, transforma-se em máquina fotográfica do tipo digital doméstica42,
onde claramente podemos identificar o visor. Na composição o visor forma um
enquadramento interno àquele dado pelo recorte da fotografia e estabelece a
42 Em algumas fotos analisadas, inclusive nesta, notamos a especificidade técnica se imprimir à construção daimagem. Vemos a pixelização, o quadriculado da imagem em conseqüência da baixa resolução, comoevidência da natureza digital da fotografia, como dissemos caseira, cujas questões de qualidade de captaçãopouco interferem na importância do registro. Evidentemente que essas questões são relevantes na análise daconstituição plástica da fotografia, mas para o presente estudo nos atemos ao efeito de sentido que isso causa,do “feito por si mesmo”, com o instrumento disponível.
104
imersão do olhar a partir de outro, que insere cena dentro de cena, num jogo
metalinguísitico.
A máquina fotográfica eleva-se por meio de um tripé formado pelos três
braços convergentes. Interessante notar que os vários braços erguidos aos lados
sugerem que vários são os participantes na constituição do ator coletivo, cujos
desdobramentos resultam em diversas figuras do olhar e, então, em vários auto-
retratos que pudemos classificar cada qual por um tipo de mostrar. Nesse ponto, a
intensidade luminosa faz o objeto saltar à vista transformando-o, por isso, em ator
do enunciado.
A localização central da máquina fotográfica interdefine, pelo conjunto ao
redor, do evento privado na cena pública como o espaço utópico da performance
do grupo, na qual desempenha seu papel actancial condicionado ao percurso de
aquisição de competência, e que determina a construção da imagem de si para os
outros segundo seu próprio olhar (seu fazer). A máquina fotográfica reitera pela
figura do fotógrafo-actante, atualizado e realizado, a marca do fotógrafo-
enunciador, duplicando na imagem a centralidade da enunciação e conferindo a
referência de si mesmo. Pela escassez luminosa o olhar é conduzido ao centro da
imagem e ao atingir a máquina, ponto de maior efeito luminoso, seu produtor
ganha corpo.
Nesse momento de análise percebemos engendrarem-se os desdobramentos
de um programa narrativo do sujeito enunciador, em plena performance e
competência ao mesmo tempo, baseado numa construção visual que reitera o
programa principal pelo programa de uso, especialmente pautado pela maneira de
mostrar o “mecanismo de produção do olhar”. Portanto já temos um percurso até
aqui, pela sintaxe narrativa, de um actante coletivo, delegado do grupo de São
Carlos, cujo trajeto de visibilidade está bem colocado e implica necessariamente o
olhar do narratário-enunciatário, para que esse possa ver (no sentido de
105
compreender) a produção da cena como confirmação da presença de quem
“ilumina-se” para ser visto. Vemos que as condições criadas para dar a ver
(dispositivos de iluminação que enredam os de captação) garantem ser visto pela
maneira de se construir visualmente no interior da imagem, o que pressupõe o
desejo para tal. Quanto ao enunciatário, “sujeitos do ver”, há que se considerar
certa disponibilidade no olhar que o implica nessa relação como sujeito operador
do programa narrativo.
Conduzido pela máquina fotográfica o observador vê-se facilmente
“inserido” na montagem da cena, pela economia de recursos inclusive, que
promove a sensação de relação direta pelo actante que se faz mostrar. O destaque
dado ao objeto no centro da imagem cria o ponto de convergência do olhar,
repetindo na imagem o mecanismo de formação da visualidade da fotografia, ou
seja, da própria perspectiva. Tal arranjo, sobre-valoriza o “achado” como elo que
nos levará ao produtor implícito. A máquina fotográfica, na pele do fotógrafo,
cumpre o importante papel (adjuvante, segundo a gramática) para percepção do
sujeito do discurso lá no meio no povo a ser fotografado por nós. Com isso, os
olhares se fundem e o sujeito enunciador mostra em seu fazer o próprio
desempenho e afirmação da competência adquirida pelas modalidades do poder e
do saber fotografar, porque crê, quer e deve fazer-se ver como figura central da
encenação. Como conseqüência, a distância entre fotógrafo-enunciador e
fotografado se dilui pela implicação de ambos na imagem dentro da imagem,
revelada tal como aparência do “reflexo”, nos moldes de um auto-retrato.
Vemos emergir a dimensão passional desse sujeito por um desejo de
visibilidade, construída no centro do mundo, para que o outro possa conhecê-lo
por seu próprio fazer sobre si mesmo, a partir do conjunto de traços que o
caracterizam e que o definem como sujeito em si mesmo e, acima de tudo, sujeito
implicado pelo olhar do outro, este objeto modal se considerarmos que a
106
expectativa do reconhecimento pode muitas vezes antecipar um momento de auto
definição de si. O desenvolvimento desta cena, então, remonta o programa geral de
construção de um objeto valor que o conjunto de imagens instiga questionar.
Afinal, o que move esse querer-se tornar visível para si mesmo e para os outros, que
neste ponto desvela o próprio ato fotográfico no mecanismo da enunciação?
Paralelamente podemos identificar, no instante da realização da imagem, que
o fotografar junto é tanto conseqüência de uma modalização do sujeito quanto de
uma ação intersomática dos fazeres colocados em relação. Isto é, porque se trata de
uma experiência cotidiana, logo os corpos se sentem nessa experiência comum de
fotografar, de enquadrar através do visor e, por decorrência, de se tornarem todos
produtores da imagem. No ajustamento, ambos mantém-se autônomos porém
operantes na e pela presença do outro, em sincronia com seu parceiro. Dizemos,
então, que o sentido primeiro nasce desse sentir somático, co-presente, ainda que
encontre seus desdobramentos no fazer persuasivo e interpretativo dos actantes da
narrativa, até porque essa é a orientação geral conforme pressuposição da
pesquisa.
Junto ao pintor, esse fazer-se visível equivale ao ver-se a si mesmo como
sujeito do seu próprio olhar, numa relação de intimidade consigo mesmo, diferente
daquela em que a intimidade se dava em relação à reunião do grupo. Sem querer
fazer o outro crer que é ele mesmo, fotógrafo, que está presentificado, é ele que, na
interação com o outro, encontra-se como ator ao implicar-se na vivência dele
enquanto pura imagem. Sem a pose de outrora, sem a “armadura” vestimentar,
sem as vozes impressas, mostrar-se é ver a si mesmo e conhecer-se como um eu
individualizado, criando o efeito de sentido de ser, de transparência do mostrar
por si mesmo. Nesse sentido, esta foto coloca-se na transição, no ajustamento de
olhares que constituem o “eu” sensível pela figurativização da sua presença.
107
2.3. Cena 3
Mostrar-se conforme si mesmo
Pela fotografia 23 o cantor é construído por outra maneira de se ver,
fotograficamente, para a constituição do sentido. Olhando e apontando
diretamente para o fotógrafo ele determina a maneira pela qual quer ser visto,
mostrando-se por todo seu repertório corporal, pela mão em ação, com o
microfone elevado à boca. No entanto, a relação de um tempo presente que a
imagem dá a ver é a mesma que torna a proposição do cantor um reflexo do ato
imprevisto, pelo efeito de acaso. A mão destacada em vermelho reforça o efeito de
movimento súbito ao mesmo tempo que estabelece a contato eu-tu da enunciação.
Nesse arranjo, a mão atua como dêitico, conforme explica J. L. Fiorin, cuja
interpretação ocorre por “referência à situação enunciativa, pressuposta ou
explicitada no texto pelo narrador”43. Torna-se, por assim dizer, o centro de
referência da enunciação e serve de base para a constituição do espaço e do tempo
discursivos, que estabelecem o face-a-face deste tipo de mostrar diretamente com o
fotógrafo-enunciatário.
43 J. L. Fiorin.(1996). As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo, Ática,1996, p. 56.
108
Como conseqüência, a mão reveste-se de uma autoridade que funciona na
inversão da realização da foto, se mostrando por um olhar auto-refletido quando
chama para si a sua realização. Nessa perspectiva, o olhar de um somente se
constitui pelo do outro em sintonia, como partícipes na construção. É no instante
do cruzamento dos olhares que fotógrafo, nós, e cantor fazem-se, um para o outro,
pura imagem, capturados mutuamente nessa co-presença.
Na relação face a face, o eu-tu enreda o mostrar-se por um tempo único dess a
percepção partilhada - tendo pouco a dizer do universo Hip Hop - por uma situação
do instante fotográfico em que os actantes se mostram como um qualquer, ou seja,
um sujeito num mundo de imagem que por ela se realiza, comunicando-se (vendo)
e sentindo (percebendo) a si mesmo e ao outro. O que importa aqui é construção
de um “eu próprio” instalado na imagem, criando efeito de sentido do ser
particularizado, opondo-se ao parecer Hip Hop de antes. Este auto-retrato aproxima
o sujeito, e seu fazer, de um olhar subjetivo, revelando uma espécie de
individualização do fotografado e, por implicação, do fotógrafo, porque ambos se
relacionam, mesmo que por acaso, francamente.
Isso posto, não se tratam mais de sujeitos da enunciação que se projetam um
no outro por meio de fazeres distintos, sendo: um, empenhando-se na conquista do
olhar do outro por meio de seu fazer persuasivo, e outro, aderindo a um caminho
de ação, estabelecido a partir de um contrato que lhe promete render algum
“retorno” de ordem cognitiva ou pragmática por parte do primeiro, conforme o
regime da junção. Ao contrário, trata-se de um modo de mostrar-se junto com o
outro, na interação que faz surgir o sentido pela aproximação não planejada pelos
sujeitos, pelo acaso desse encontro, na captura mútua dos olhares. Algo os faz
agirem juntos.
Após a trajetória quase obstinada do enunciador para reunir provas e
argumentos que lhe dêem um pouco de si mesmo como um ser Hip Hop, mas
109
sobretudo um pouco que seja para o outro, na cena 1, vemos surgir uma relação
diferenciada entre os actantes da comunicação. O deslocamento do regime de
sentido faz sentir os gestos significantes, apreensíveis somente em ato, subvertendo
o sujeito, no mínimo, em relação a ele mesmo, liberto de seu posto de persuasão e
totalmente implicado na interação sujeito-sujeito. Mais do que em qualquer outra
passagem o sentido nasce pelas mãos de sujeitos autônomos e interdependes, “co-
enunciadores”44 e co-presentes.
Por essas breves considerações lançadas na cena, o enunciatário deixa uma
trajetória de re-conhecimento do enunciado para experimentar conhecer os sujeitos
em si por si mesmos, sem perder de vista o seu outro aproximado pelo sentido
sensível, pois como afirma Ana Claudia de Oliveira, “a sua cognição advém do
modo desse operar e esse é um dos caminhos para a sua interpretação”45.
44 E. Landowski, op. cit., 2004, p.02.45 A. C. Oliveira. “A estesia como condição do estético” In A. C. Oliveira e E.Landowski (eds.). DoInteligível ao Sensível: Em torno da obra de Algirdas Julien Greimas. São Paulo, 1995, p. 233.
110
2.4. Cena 4
Pose de si no verso público:
Rumo à sublimação
Se é dado comum que às vezes as pessoas são identificadas por uma marca
própria, não seria demais apontar esta imagem como marca de maior adequação
entre uma imagem construída pelo grupo e outra, pela qual se afirmam, do
próprio Hip Hop. Esta última fotografia (24) configura emblematicamente o Hip
Hop levado aos programas de televisão, às revistas, às capas de cds, ou seja,
totalmente constituído para se fazer mostrar por um papel mais próximo possível
do “ser” Hip Hop. Pelo emblema está garantida a continuidade ou a repetição de
um modo de mostrar o grupo, que se constrói pelo modelo.
111
Nela (foto 24) os jovens sustentam uma expressão séria e encaram o fotógrafo
com firmeza, olhando-o de cima. Em pé ou sentados se distribuem regularmente
no espaço numa disposição cujo afunilamento verticalizado da imagem gera a
sensação de corpo coeso e fechado em si mesmo. Quatro jovens negros, um deles
com seu rosto oculto pela falta de exposição luminosa, dispõem-se ao olhar do
outro prontos a assumir pelo grupo uma “postura” geral, que reúne pose e
indumentária num estilo de ser Hip Hop já visto anteriormente. Há nesta fotografia
a reafirmação do grupo pelo viés de uma cultura que tem modos de se organizar
no verbal, no visual, no corporal, para colocar-se na dimensão identitária do
discurso fundador, do destinador Hip Hop.
Visto que o estilo, ou propriamente o modo de vestir, admite entre outras
coisas determinada coerção do sujeito em relação ao padrão do grupo podemos
pensar que essa incorporação, uma vez instituída, também resulta numa
adequação do grupo ao novo para manter-se enquanto tal. Quer dizer que se esta é
uma imagem emblemática, desencadeada por um espelhamento a um ideal que se
pretende alcançar ou parecer, os sujeitos que constroem visualmente por ela
continuam a instituir o programa no mostrar-se conforme um padrão.
Inquestionavelmente os sujeitos se reproduzem como sujeitos do Hip Hop pela
imagem que os guia. Por isso, todos os elementos são montados para tal.
À direita do quadro, posiciona-se o sujeito de blusão de moletom amarelo
claro com capuz cobrindo a cabeça que mal permite ver sua face, calça larga,
alguns números a mais de sua medida. Outro sentado à esquerda, além do
bermudão e camiseta, usa o tênis de basquete46 e mostra o cumprimento Hip Hop
46 Sobre isso têm crescido no Brasil os chamados campeonatos de basquetes de rua em que o esporte sedesenrola ao som do rap, tocado e cantado ao vivo pelos dj’s e mc’s, respectivamente. Há nesses eventos umagrande concentração de jovens participantes da cultura Hip Hop que no decorrer das partidas, dançam, cantame fazem grafismos. Elegem o basquete tanto para a prática do esporte como também a reunião onde a culturaacontece. Ainda nos parece relevante perceber que o basquete nos EUA possui o mesmo status que o futebolno Brasil, porém, ao contrário daqui, é um esporte freqüentado pela elite (dado o preço dos ingressos e o
112
nas mãos. A mulher, pouco presente nas cenas, repete o traço masculino no
semblante e se confunde com os demais. Tal pose remonta a imagem do “mano”,
imagem da qual já falamos, amplamente divulgada por revistas e sites47
especializados na divulgação e organização do Movimento Hip Hop e que
estabelecem estreita relação com ao estilo vestimentar e postural do Hip Hopper
difundida por meio da fotografia. Trata-se da caracterização de um modo de se
apresentar comum, baseado num segmento de moda cujos modelos estão
alicerçados pelos ídolos, sobretudo do rap. Este auto-retrato traz à tona a questão
da visibilidade conforme o modelo, construindo uma imagem do grupo por
anulação e ali perpetuam.
Predomina, por fim, um imaginário sobre o grupo, concretizado pela pose e
que encontra respaldo num padrão de mostrar o outro que só tem razão de ser se
olhado de tal forma. No panorama geral das cenas esta pose produz um efeito de
sentido de autenticidade e de fidúcia em si mesmo pela postura auto-centrada,
cristalizada pela repetição de valores do destinador. Gesto (pelos actantes) e olhar
(pelo fotógrafo) estão automatizados na construção da imagem. A complexidade
deste retrato se apóia na maneira de tornar visível essa relação refratária, quer
dizer, de mostrar o sujeito anulando-o e objetivando-o pela mesmidade. O retrato
oposto, relembrando, é constituído da imagem chamada aleatória e que se
aproxima do sujeito pelo caráter individual da foto e pelo efeito de subjetividade,
como a do falante encontrado há pouco.
Na presente cena, a fotografia feita por um “olhar de dentro” resulta no
desejo de ser o Hip Hop cristalizado pelo arranjo fotográfico. No entanto, este lugar,
acesso aos espectadores, uma vez que lá o espaço do evento restringe-se a pequenos ginásios e aqui ostorcedores têm acesso a estádios monumentais). Mas, em comum com o futebol, o basquete torna-se a portade acesso ao pobre e negro ao mundo, que não lhes pertence, desta elite que consome e mantém o esporte,inclusive o mundo da cultura instituída, uma vez que muitos negros de baixo poder aquisitivo só detém odireito à universidade graças às bolsas de estudos cedidas a jogadores de basquete.
113
porque ideal, não é ocupado pelo grupo: lá os sujeitos seriam pura sublimação. Na
impossibilidade de realização do ideal, esta foto mostra o sujeito rumo a ele,
reafirmando-o. Por isso, depreende-se um sujeito cristalizado na fotografia, pelo
excesso de coesão da imagem, numa relação de transitividade da pose
padronizada do Hip Hop para outros, na esfera de sua maior publicização:
simulacro do simulacro.
47 Para citar alguns mais conhecidos: Real Hip Hop, Hip Hop Br, Inforum HH, Epidemia urbana, Viva Favela,Hip Hop Ativo, Bocada Forte, Posse digital.
115
Capítulo IIICapítulo III
117
A instância identitária: entre o si e os outros
As cenas mostram a construção de um grupo Hip Hop que, a partir das figuras
montadas, apresentam-se em práticas cotidianas. Nesse percurso, o conjunto
fotográfico na cena 1 é, sem dúvida, predominante, fazendo ver que existe um
exagero para manter a coesão desse tipo de retrato, ao passo que nas cenas 3 e 4
esse número se reduz a uma foto. No entanto, frente ao largo exemplário, essa
redução se torna importante na construção visual, uma vez dessa relação obtém-se
a oposição de base. Institui-se, assim, a partir das cenas 3 e 4, o auto-retrato de
descontinuidade do simulacro Hip Hop em relação ao auto-retrato de máxima
representação do simulacro Hip Hop, pela continuidade, respectivamente.
Nestas, surgem imagens de um grupo que podem ser entendidas como
universos textuais orientados por efeito de maior subjetividade e por efeito de
maior objetividade, a partir da disposição do querer ser visto, já anteriormente
exposto pelo termo mostrar-se, conforme os auto-retratos construídos. Passaremos,
aqui, a denominar por caráter subjetal os auto-retratos de maior subjetividade e
objetal os de maior objetividade, termos estes emprestados de Oliveira em seu
texto Semiótica e Moda: por um estudo da identidade48, em razão da importante
reflexão que apresenta sobre a interdefinição sujeito e prática cultural, no caso a
moda, e da relação desta com as implicações na formação da identidade.
Ao discorrer sobre as configurações identitárias do sujeito, na interação que
este mantém com a moda, Oliveira aponta para a possibilidade de o sujeito “ousar
ser um ser diferente de si, ou ousar se manter ele mesmo”, relacionando-se a
visibilidade do sujeito com seu modo de presença no mundo. Nessa relação, a
moda deixa de ser uma relação abstrata em si mesma, um conceito, para ser “de
48 A.C. de Oliveira . Semiótica e Moda: Por um estudo da identidade. CD-Rom I. Congresso Brasileiro deModa. Ribeirão Preto: Moura Lacerda, 14 e 15 de setembro de 2005.
118
modas”49, isto é, constrói-se em função dos “modos de ser e de existir que se
enovelam acompanhando os modos de vida”50. A moda, na visão da autora, se dá a
ver conforme a complexidade do sujeito frente a si mesmo e às circunstâncias
dinâmicas da vida. Nessa perspectiva, então, propõe um diagrama com quatro
disposições decorrentes dos tipos de se vestir, apresentando, de um lado, o vestir-
se para si, subjetalmente, e de outro, na relação de contradição, o vestir-se pela
roupa, objetalmente51. Inspirados nesta contradição de base propomos a orientação
inicial das relações do mostrar-se:
Mostrar-se em função do ser Mostrar-se em função do estar
Sujetal Objetal
Segundo a afirmativa de que as cenas combinam modos de produzir o
visível, estruturam-se dois caminhos paralelos e interdependentes encadeados por
caráter subjetal ou objetal: por um lado, do conhecimento do grupo pela construção
do si nas imagens, desencadeado por efeito de reflexividade; e, de outro, do
reconhecimento do grupo baseado na imagem do Hip Hop por parte do “outro”, o
que não pertence ao grupo, fundado na relação de transitividade – conforme as
indicações do primeiro capítulo. No primeiro caso, se mostra por auto-
referencialidade, instituindo o dissenso entre o olhar padronizado e o contingente
e, no segundo, o grupo se faz mostrar nas fotografias pela construção de papéis
sociais, por convenção (adequação ou consenso) de uma imagem. Disso decorrem
efeitos de personalização e de pertencimento, respectivamente, do grupo de
fotógrafos envolvidos na pesquisa e que, por sua vez, que se incluem ou não sua
49 Idem, p 5.50 Ibidem, p.551 As outras posições estruturam na relação de contrariedade o vestir com fins práticos e, por fim, na negaçãodeste, vestir-se com fins simbólicos, p. 7.
119
imagem no movimento Hip Hop. Poderíamos pensar que a estratégia enunciativa
identificada no processo de análise, pontualmente, está de acordo ou em desacordo
com o pressuposto geral e inicial de coesão do discurso, ou seja, mais ou menos
próximo do parecer do grupo ao simulacro do Hip Hop.
A partir dos procedimentos de debreagem e embreagem (actorial, espacial e
temporal), pudemos acompanhar como tais componentes do texto instalavam o
sujeito da enunciação nas diferentes cenas, resultando, portanto, em diferentes
efeitos de sentido. Em correspondência à gramática narrativa, que tem como
princípio geral o percurso narrativo do grupo na aquisição de competências para
construir a imagem de si, papéis actancias e papéis temáticos se combinam e
definem a constituição identitária dos sujeitos do olhar em relação ao destinador
pressuposto Hip Hop, implícito no texto. No nível mais concreto do discurso, essas
relações apontam para diferentes regimes de sentido a partir dos diferentes
regimes de interação entre os sujeitos.
3.1. Regimes de interação homologando regimes de sentido
Os estudos de Landowski, em particular nas publicações Do Inteligível ao
Sensível (1995) e Passions sans nom (2004), apresentam importantes
desenvolvimentos da teoria sociossemiótica que, cada vez mais, se inclinam à
investigação da dimensão sensível da significação. Concomitantemente, as
reflexões sobre interação ganharam na sua complexificação tipológica, regimes que
as reúnem pelos procedimentos de suas construções. A correlação entre os regimes
de interação e regimes de sentido foi o passo decisivo para Landowski enfechar
num modelo de análise do social à sua sociossemiótica. Nas últimas pesquisas
mostra o autor que as maneiras de olhar os objetos apresentam problemáticas mais
120
implicativas do sujeito do olhar, quando essas se enveredam pelas práticas
cotidianas incluindo as componentes estéticas e estésicas. Se de um lado vimos se
concretizar todo um arcabouço metodológico da gramática narrativa dos anos 60,
via regime de junção, por outro acompanhamos novas perspectivas de análise,
partindo de objetos textuais até chegar à semiótica das situações, na qual não se
considera a estruturação do sentido pelo percurso de busca de um objeto de valor,
mas pela própria relação dos sujeitos corporal, intersomática na interação. Assim,
além dos procedimentos de manipulação e programação, os estudos atuais do
fazer dos efeitos de sentidos consideram a construção da significação também
pelos procedimentos de ajustamento e do acidente. O diagrama a seguir sintetiza
sua reflexão:
DIAGRAMA I
1O contínuo:uma sucessão
monótona regida pelanecessidade.
Efeito de sentido:excesso de coesão:a dessemantização
(a rotina)
3O descontínuo: uma sucessão
caótica regida peloacaso.
Efeito de sentido:excesso dedispersão: oinsensato
(os acidentes)
4O não descontínuo:uma sucessão nãocaótica regida pelo
não aleatório, i.e., poruma ordem.
Efeito de sentido:A harmonia
2O não contínuo:uma sucessão não
monótona regida pelonão necessário, i.e.,pelas escolhas.
Efeito de sentido:
Modelo catastrofista.(Da Imperfeição, 1a. parte, e Semiótica das paixões)
121
O esquema proposto por Landowski52 distingue os quatro regimes,
pontuando suas principais diferenças, a partir das categorias: continuidade /
descontinuidade, inteligível / sensível, segurança / risco, respectivamente, situadas
de início nas dêixis negativa e positiva do quadrado semiótico, sabendo que essas
posições se definem em função do que o texto analisado constrói, cabendo às vezes
a mudança dessa orientação geral quando encadeada às outras relações
diagramáticas (diagrama III).
O regime de programação, marcado pela continuidade, tem no sujeito um
comportamento regular, sem surpresas, pela repetição do papel temático que de
antemão o define diante de uma narratividade reprisada e orientada pela
expectativa inteligível. Pela não transformação de identidade classificamos aqui o
auto-retrato sublimado, da cena 4.
Pelo regime de manipulação está previsto transformação do sujeito de estado,
em decorrência da conjunção ou disjunção com o objeto valor (S1#S2) e,
consequentemente de mudança identitária. A competência cognitiva pelas
modalizações de saber e poder orienta a construção de um papel temático inscrito
Duas formas de emergência dosentido
Modelo construtivista.(Da Imperfeição, 2a. parte)
122
na transformação. Esse regime como implicação do anterior corresponde, no
quadrado lógico, ao sub-contrário não descontínuo. Nessa posição, toda a cena 1
constrói o simulacro de um Hip Hop pelos papéis temáticos desenvolvimentos na
narratividade.
Ambos os regimes, localizados na deixes esquerda do quadrado, consideram
a relação entre três actantes, sujeitos 1 e 2, e o objeto que faz a mediação entre eles,
seja este tido como elemento propulsor da transformação, ou como elemento de
reafirmação.
Em oposição à programação, o regime do acidente é aquele em que se assume
o risco total dos acontecimentos sem regras e que são movidos pela aleatoriedade,
a incerteza e o caótico. O efeito de sentido se dá a partir do encontro do sujeito com
o objeto ou com outro sujeito, portanto entre dois actantes, o que significa a
prioridade da dimensão sensível do sentido. Em relação de descontinuidade, aqui
se instala a cena 3 de nossa análise.
O ajustamento acontece no encontro direto entre os sujeitos, no que se destaca
o componente somático promovido pelos efeitos de sentido da interação operados
pelos sentidos, e em especial, para nós, a visão, mas não só pois há um cinetismo,
uma proxêmica movendo o olhar. Um sente o sentir do outro e desse contato o
sentido se faz presente da e na relação entre ambos. A cena 2 ocupa essa posição no
esquema.
Esses dois últimos regimes se posicionam na dêixis direita do quadrado
semiótico e mostram a construção da identidade do grupo em busca de uma
personalização da imagem do sujeito (descontinuidade em relação ao pressuposto)
52 E. Landowski. Passions sans nom – essais de sócio-sémiotique III. Paris, Presses Universitaires de France, 2004.(Formes sémiotiques) p. 51. (Tradução nossa, apenas para o presente trabalho)
123
e não, como na relação oposta, de padronização (continuidade e afirmação do
pressuposto).
Utilizaremos esse modelo para correlacionar os regimes de interação com a
construção identitária do grupo, adequando as posições deste às disposições
construídas pelas cenas. Admitindo que tais regimes apresentam-se em estreita
relação com os modos de mostrar-se, cada qual correspondente a um auto-retrato,
vemos suas implicações quanto aos efeitos de identidade individual e social em
relação ao simulacro Hip Hop referente.
3.2. Regimes do mostrar, modos de retratar: O ser como efeito de
sentido
Feitas as considerações sobre regimes de sentido e de interação, esquematizam-
se os seguintes diagramas baseado em duas relações básicas do regime do mostrar-
se: a do ser rumo a uma imagem de subjetividade e a do ser rumo a uma imagem
de objetividade, que podem ser remontadas pelas quatro cenas correspondentes,
cada qual a um auto-retrato, conforme proposto no diagrama II, da próxima
página.
A tipologia dos auto-retratos apresenta modos dos sujeitos olharem para si
mesmos, ora mostrando-se para um outro externo ao grupo, ora mostrando-se
para si mesmo e para um outro interno ao grupo do qual faz parte. Vemos, então,
que a idéia de refração mantém-se em consonância com um retrato objetal, porque
prevalecem características e valores convencionalizados pelo grupo por uma
espécie de coerção do discurso fundador para parecer ser um Hip Hop, ou seja,
para estar conforme uma projeção idealizada da imagem do Movimento. Em
relação oposta, temos a revelação de um si que ancora valores de uma dimensão,
124
digamos, mais subjetal, próximo à idéia de individualização, em que o
conhecimento do sujeito retratado está em sintonia com um modo de ser alheio à
convenção ou pelo menos distante dos padrões construídos nas cenas 1 e
sublimados na cena 4. Assim, temos:
DIAGRAMA II
125
Conhecimento do que é - reconhecimento pelas imagens do que é
Objetalconsenso
Subjetaldissenso
ser por si conforme si mesmo ser conforme Hip Hop idealizadoimagem sublimada
Auto-proposição na imagemconstrução conjunta
ser conforme focalização do eu
conhecimento do eu sensível
na sua própria constituição
cena 2
Cena 3 posição vazia
Cen
a 4
Ser conforme papel social
reconhecimento de seu simulacro
pelo desempenho: dançando, cantando,
grafitando, pela vestimenta, pelo gestual
Mostrar-se em função do ser
Relação de transitividadeRelação de reflexividade
Fazer-se mostrar em função do estar/parecer
Imagem do instantâneo Imagem da montagem/arranjo
Maior presença do individual Maior presença do grupo
Revelação de si Refração de si
Pertencim
ento a um grupo social/cultural
Per
sona
lizaç
ão
Ser Estar
Se fazer MostrarMostrar-se
transparência de si Ocultamento de si
Cena 1
126
A relação entre os dois diagramas apresentados até aqui se combinam de
forma a problematizar a dimensão identitária do grupo. O primeiro diagrama, por
conta disso, se adequa ao segundo para reunir valores construídos por cada auto-
retrato, como veremos a seguir na apresentação de cada tipo.
3.2.1. Identidade individual assimilada e social excluída
Como conseqüência o retratar-se subjetalmente mostra o sujeito pelas
imagens do que é, criando o efeito de individualidade atrelado à construção de um
instante, em que ele se propõe na imagem como construção conjunta ao outro que
vê. Nesse eixo um tipo de retrato se aproxima da vivência dos sujeitos instalados
no texto fotográfico, como se esta forma de mostrar a face transgredisse todo o
arranjo do simulacro Hip Hop, para cair num acidente do fazer pelo qual advém o
sentido. Nessa perspectiva o sentido é construído pela relação incerta ou aleatória
que os sujeitos mantêm no olhar: a imagem pode mostrar qualquer coisa ou coisa
nenhuma, por si só um componente de risco, pois o operador de sentido está na
dimensão do sensível. Logo, o efeito de subjetividade é ancorado pelo ver-se a si
mesmo, a ponto de construir outros mundos possíveis que não aquele implícito do
grupo de integrantes do Hip Hop, nem sequer para o enunciatário de antes. A idéia
de revelação do ser pelo ato fotográfico torna os actantes da comunicação
autônomos e dessemelhantes, tão diversos quantos forem os olhares possíveis.
3.1.2. Identidade individual ocultada e social admitida
Contrariamente, para configurar o retrato Hip Hop pela construção de uma
prática relativa a tal contexto, o arranjo da cena se impõe à constituição do sentido
127
mais que a relação do instante em que ela se dá a ver. A questão temática torna-se
fundamental pela encenação do dançar, do reunir, do grafitar, do falar, como pode
ser visto em toda primeira parte da análise, elementos que tem por função ocultar
o sujeito ao mostrá-lo pelo papel social que desempenha em razão do papel
temático do breaker, do grafiteiro e do rapper. Neste caso, fazer-se ver como um Hip
Hop é se fazer mostrar por elementos que caracterizam objetos de valor, ora
associados às modalizações do saber, do poder, do dever e do querer mostrar-se,
guiados por um valor de visibilidade do grupo pelo simulacro Hip Hop. A
identificação desse sentido é coincidente à identificação das estratégias
manipulatórias para içar o reconhecimento do enunciatário, notado por um
crescente efeito de proximidade, de um olhar panorâmico para um olhar face-a-
face. Isso quer dizer que o regime de sentido está na ordem da junção, dado a
predominância da dimensão cognitiva desse fazer para sanção de imagem do
grupo tal qual um Hip Hop.
3.2.3. Identidade individual segregada e social assimilada
Já numa relação oposta ao olhar aleatório, o retratar-se objetalmente apresenta
um eixo de relação do sentido em que o sujeito está totalmente dado ao
reconhecimento extremado de um enunciatário que partilha de seus valores e de
seu lugar de fala. Muitas vezes pode-se entender este enunciatário como um
semelhante, tamanha simplificação do tipo de mostrar que a imagem constrói, por
exemplo via gestual e frases que sugerem rapidamente os significados para quem
partilha da cultura Hip Hop. Nesse caso, a figurativização atinge um alto nível de
reconhecimento de seu contexto que cria um efeito de padronização. Nesta posição
constrói o Hip Hop por idealização, dado pelo desejo que faz com que a imagem do
128
grupo aponte para a repetição da imagem modelo do Hip Hop, eternizado pela
pose. A imagem ideal é presentificada pela expectativa inteligível do olhar
fotográfico como quem mantém a imagem intocada de um ídolo. Este lugar é,
portanto, apenas indicado mas não ocupado, o que significa ser esta a posição em
que o objeto de valor é alcançado via programação do olhar. Apresenta, assim, a
relação de refração do sujeito (no sentido de desviar o sujeito de si mesmo
beirando sua inexistência subjetiva) para perpetuar a imagem pela sublimação.
3.2.4. Identidade individual admitida e social segregada
Em oposição à opacidade, que oculta o ser pelo revestimento da prática Hip
Hop, surge a relação de transparência em que o sujeito se dá a ver pela intimidade
que forma o grupo reunido, seja pela aproximação ao fazer do pintor ou do
próprio fotógrafo. Neste caso, a imagem deixa entrever o si com a presença do
outro, sem a intervenção de um objeto de valor, ao menos não como artifício
essencial à constituição sentido. Por fim, esse tipo de retrato pelo mostrar-se na
intimidade reúne fotografias pela relação de ajustamento entre os sujeitos: quem
olha é aquele que faz existir a imagem sentindo sua presença nela junto ao
fotógrafo. A figura focal, por exemplo, desenvolve esta posição e promove na
organização visual a dimensão visível da esfera do ser. Trata-se de um outro efeito
de proximidade que desvela a interação dos sujeitos co-presentes pela dimensão
sensível da visão, cujo desdobramento é dado pelo regime da união.
Tem-se, assim, de um lado, o eixo de subjetividade e particularidade, e de
outro, o da objetividade e convenção, cada qual desenvolvendo regimes de
interação e de sentido diversos e complementares. Isto porque os tipos de mostrar-
se configuram auto-retratos re-significados continuamente. Nossa preocupação
129
está em não reduzir o texto visual a um modelo estático de estruturação de sentido
referente aos universos semânticos que tentamos refletir até o momento. Por esse
motivo, encaminhamos as relações diagramáticas a partir de uma forma,
emprestada de Landowski, “arredondada, elipsoidal do diagrama, com curvas
suaves no lugar dos ângulos e onde as flechas que marcam as passagens entre os
lugares que se engancham umas nas outras sem rupturas (...)”53, para enfatizar a
idéia de que o indivíduo sofre “metamorfoses sucessivas mediante as quais passa
gradualmente a ser o que é”54. Isso responde à visibilidade vivida da prática do
grupo, que se constrói passando de uma posição à outra, fazendo esse sujeito ser
pelas imagens que se investem de imprevisibilidades latentes.
A partir dessas considerações, segue o diagrama:
DIAGRAMA III
53 E.Landowski. “Gosto se discute”, In Gosto da Gente, gosto das coisas, 1997, p. 140.54 Idem, p. 141.
130
Subjetal Objetal
regime de ajustamento
Se fazer mostrar em função do estar
Relação de transitividadeRelação de reflexividadeMostrar-se em função do ser
Imagem pelo instantâneo Imagem pelo arranjoMaior presença do individual Maior presença do grupo
Revelação de si Refração de si
Regim
e de junç ãoReg
ime
de
uniã
o
Ser Estar
Se fazer mostrar
Transparência de si Ocultamento de si
regime de acidente regime de programação
regime de manipulação
Mostrar-se
Pela combinação dos dois diagramas, vemos que o “olhar de dentro” do
Movimento marca a proximidade dos contrários, mostrando também a fragilidade
das formas estanques. É preciso vê-las num movimento contínuo, ora numa
posição ora noutra, ou em todos os lugares. Entendemos que a imagem sobre a
qual vimos refletindo até agora nos permite questionar o “reconhecível” das coisas
do mundo, o figurativo propriamente dito, pelo conjunto das relações que
estabelecem uma com as outras. Por isso o termo “marcas de referência” está
condicionado a esta construção e não se preocupa com os antecedentes da
fotografia, justamente porque esse mundo, ou mundos, que elas constroem fazem
131
questionar a evidência das coisas identificáveis sem negar, contudo, que delas
resulte situações da vida. Estamos sim diante de textos vivos que nos ajudam a
compreender que entre os seres e as coisas há toda uma possibilidade de relações
de sentido.
A figura focal (foto 21) contempla esse aspecto que queremos ressaltar, ou
mais, mostra que para construir a imagem para o outro que vê, podendo este outro
ser “eu mesmo”, é preciso partilhar das condições de visualidade propícias à
encenação, ou seja, colocar-se no ponto de vista para ser visto, para ver-se ou
apenas para estar lá. Assim, o ato corriqueiro do fotografar repetido na imagem
pela gestualidade do fotógrafo, sugere esta partilha na relação com o outro, de
modo que este tome para si a imagem, atualizando-a em seu próprio fazer. Unidos,
observador e fotógrafo vêem-se na mesma pele, realizando juntos a cena “à
maneira de um sincretismo”55. De “sujeitos do ver” o enunciatário transforma-se
em captador de imagens e “assume por sua própria conta o papel de sujeito
operador”56. Em decorrência disto, para se tornar imagem basta que o um
reconheça o outro enquanto tal, depreendidos dos atos partilhados, uma vez que os
regimes de visibilidade (e do mostrar) se confundem com a própria questão
imagética e identitária.
Pelos desdobramentos de retratos construídos pelas fotografias, emprestamos
a questão de Landowski: “Em que medida, de que modo, o sistema de estereótipos
identitários fixado pelo grupo de ‘referência’ (ou aquele que se considera enquanto
tal), deverá servir, também, de referência a eles, que esse ‘Um’ designa como seu
‘Outro’?” 57. Em nosso caso perguntamos ainda, e se este “Outro”, os fotógrafos do
Hip Hop, constroem a imagem de si predominantemente como o “Um”, o próprio
55 E. Landowski, A sociedade refletida: ensaios de Sociossemiótica. Trad. E. Brandão. São Paulo, Campinas,EDUC/Pontes, 1992, p. 89.56 Idem, p.90.
132
Hip Hop, ou seja, conforme a alteridade presente? É como se a identidade se
constituísse investido do outro, onde então se sobrepõe as relações de inclusão e de
exclusão do ser, grupo de fotógrafos ao do Hip Hop. Então, a referência é baseada
pelo “olhar de dentro”, isto é, os auto-retratos mostram a aproximação de si
mesmo à medida que se distanciam da imagem pressuposta do grupo de
referência Hip Hop. Pensando nesta questão propomos a combinação dos auto-
retratos com o modelo identitário58, apresentado por Landowski, da seguinte
forma:
DIAGRAMA IV
fotógrafos em relação a si mesmo fotógrafos em relação ao Hip Hop
efeito de imagem individual efeito de imagem social
Assimilaçãoidentidade por si
pela exclusão do Hip Hop
Exclusãoidentidade pelo outro idealizada
pela assimilação do Hip Hop
Admissãoidentidade de si
pela segregação do Hip Hop
Segregaçãoidentidade pelo outro convencionalizada
pela admissão do Hip Hop
57 E. Landowski. Presenças do Outro: ensaios de Sociossemiótica. Trad. M. A. L. Barros. São Paulo,Perspectiva, 2002, p. 33.58 Idem, p.15.
133
Isso coloca o grupo de fotógrafos numa relação do si para com seus outros e
numa relação consigo para com os seus. Em decorrência disso, mantém a relação
simultânea com dois tipos de enunciatários bem delimitados ao longo do caminho,
qual seja os Hip Hoppers (pois são estes que “decodificam” literalmente todos os
gestos, sinais, gírias, vestimentas) e os outros (onde se misturam simpatizantes,
leigos, curiosos da cultura Hip Hop).
Na base dessas relações, finalmente, são explorados dois universos semânticos
nas cenas do Hip Hop. De um lado o grupo mostra-se de si por si mesmo, e de
outro, o grupo mostra-se por um outro. Nessa perspectiva enovelam-se dois
universos identitários, ambos correlacionados no limite referencial do Hip Hop,
como foi analisado ao longo da dissertação, a saber:
ser si mesmo ser um outro
Hip Hop
Rumo à conclusão resta-nos voltar aos modos de ver no desvelamento de um
contrato polêmico, o que significa retomar as questões relativas aos
destinadores/enunciadores e destinatários/enunciatários envolvidos na relação
interativa, determinante à construção do olhar em primeira instância, dos
fotógrafos do Hip Hop e do próprio pesquisador.
Capítulo IVCapítulo IV
137
Bricolagens do si: a fotografia na constituição identitária
4.1. Semiotização do olhar fotográfico
A experiência com o universo de imagens muitas vezes revela maravilhas
mas também armadilhas constituintes de uma conformidade figurativa, com a qual
estaríamos “mal acostumados”, e que nos incita a ver o já visto nas reiterações do
mesmo. Neste momento de breve conclusão, já é possível afirmar que tal
experiência significa, antes de mais nada, a própria percepção e vivência do sujeito
no interior de um sistema visual que o constrói e que é construído por ele. O lugar
de um olhar já é, portanto, um modo de ser e de existir por visibilidade constituinte
desse sistema mais amplo.
Não seria muito dizer que a fotografia é o lugar da excelência do olhar,
recuperando a história que cerca as discussões, não sem conflitos, contradições e
incertezas, no tocante a uma ontologia da imagem fotográfica59. Diante da ilusão de
que o que se vê é prova do ocorrido, mediante sua natureza mecânica, tem-se, por
um lado, na fotografia uma função utilitária de mera constatação e ilustração dos
fatos, servindo de amostra da realidade aí reiterada. Por outro lado, contradizendo
a pura referencialização indicial fotoquímica, mas também como o ponto de vista
privilegiado, a fotografia agrega valores anteriores a sua constituição, servindo de
ponto de repouso de discursos diversos, como código60 ou metáfora, enfim, de
objeto de “veiculação” de informação, quase como um meio cuja função é dar
passagem. Isso basta para apontar nosso caminho, que parte da mesma crença do
59 A. Bazin, “Ontologia da imagem fotográfica” In O cinema: ensaios. Trad. E.A. Ribeiro. São Paulo,Brasiliense 1991.60 Para aprofundar nas discussões da fotografia enquanto signo indicial e enquanto código consultar: P.Dubois. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. M. Appenzeller. Campinas/SP, Papirus, 2003; J-M.Scaeffer. A imagem precária: sobre o dispositivo fotográfico. Trad. E. Bottmann e D.Bottmann. Campinas/SP, Papirus, 1996; V. Flusser. A filosofia da Caixa Preta. São Paulo, Hucitec, 1985.
138
“poder da imagem, porque afinal é disso que se está falando lá e cá; porém,
falamos do ponto de vista do sujeito da enunciação, o que já pressupõe o seu fazer
na realização fotográfica, nem antes nem depois da imagem, mas nela própria. A
existência de um objeto semiótico, no qual se define também a fotografia, faz
pensar nas instâncias que o fazem ser o que são. Fotógrafo, público e fotografado,
ou melhor, enunciador-destinador, enunciatário-destinatário, são criadores do
discurso ao mesmo tempo que resultam dele. Por isso, neste estudo, tornou-se
impossível aceitar a imagem fotográfica como meio de discurso ou como reflexo do
real, justamente porque é a realidade, ela mesma, apenas um efeito da imagem, é
um resultado de um fazer pelo olhar.
O olhar, como concluímos, é ação de fazer aparecer realidades diversas,
segundo o ponto de vista abordado61. Se a fotografia é uma construção, sempre em
processo, a fotografia de que trataremos a seguir produz em justa medida o que
podemos chamar de multiplicidade como fundamento da complexidade da
cultura62. Falamos da diferença essencial e da interação dos vários olhares que
constroem, em primeira instância, esta pesquisa como um lugar onde se posiciona
o discurso do conhecimento.
Os retratos construídos pelas cenas fotográficas criam, como vimos, um
sujeito em constante definição, mediante um regime de visibilidade que
desencadeia o mostrar-se como constituição intrínseca ao fazer do grupo.
Fotografar adquire a dimensão do fazer identitário por enredar caminhos de
linguagem em que o sujeito do olhar/olhado passa a ser o principal operador.
61 Ver: B. Kossoy. Realidades e Ficções na Trama fotográfica. São Paulo, Ateliê, 1994. Nesta reflexão oautor distingue dois momentos que precisam ser considerados para a construção do sentido da imagemfotográfica: A primeira realidade, corresponde ao momento de produção da fotografia, historicamente datada;e a segunda realidade, de acordo com a o momento de leitura da foto, sempre atualizada na relação comhistória da foto. Tal distinção acarreta em diferentes modos de compreensão da fotografia. Para a semiótica otexto fotográfico é uma construção cujo sentido é fruto da leitura do analista, capaz de recuperar o momentohistórico e as condições de produção pelas marcas deixadas no objeto fotográfico.
139
Nessa relação, como já subentendido, o enunciatário partilha e co-produz o retrato,
produzindo-se a si mesmo como sujeito a ser visto, em primeiro lugar, pelo grupo
de fotógrafos desta pesquisa. Conforme os termos de um contrato primeiro, por
meio da metodologia de pesquisa proposta, está em nosso olhar o fazer desejante
do grupo, a quem eles dedicam os retratos e a quem mais posso interessar.
Neste sentido a configuração de grupo é estabelecida em termos de uma
alteridade, na interação dois enunciatários distintos:
a) com os “outros”, de caráter mais transitivo, em que enunciatário (“de fora”
e os “de dentro”) mantém relação de reconhecimento do retrato do grupo via
coletivo social ao qual pertence, como um Hip Hop. Este outro é também o
simulacro de sujeito competente, que possui um saber sobre a cultura, articulado
por temas e figuras que encadeiam outros saberes projetados no âmbito da
interdiscursividade.63
b) com o “entre si”, de caráter mais reflexivo, em que o enunciatário é
construído na proximidade que mantém ao olhar o retrato, alheio ao mundo auto-
referenciado do primeiro caso, um outro qualquer colocado a conhecer o primeiro
em/por si mesmo. Neste caso, o enunciatário muda a cada fotografia no interior
das cenas.
Dado esses perfis dos enunciatários, não teríamos confirmado as equações
apontadas no primeiro capítulo, dos percursos de olhar de um e de outro?
Admitindo a afirmativa, não estaríamos então diante de uma questão contratual
polêmica, à medida que a verdade do discurso é parcialmente admitida enquanto
tal, ou seja, é mais um efeito de sentido no âmbito geral do discurso e não um
62 Nos sentido que propõe Í. Calvino. Seis propostas para um Novo Milênio. Trad. I. Barroso. São Paulo, Ciadas Letras, 1990.63 Referimos-nos à um possível desdobramento deste trabalho, que requer uma analise mais ampla destarelação visual do grupo de São Carlos com imagens que circulam na mídia impressa ou televisa, por exemplo,sabendo que o movimento Hip Hop é uma cultura presente em todo mundo, mas que possui formas de
140
efeito último e único dos retratos? Está claro que a verdade de que tratamos é
aquela que se refere ao discurso Hip Hop, lembrando que as fotografias são
produzidas neste contexto.
Se a relação de manipulação se dá pelos contratos propostos e assumidos,
pelos meios empregados pela persuasão e interpretação e pelos diferentes fazeres
pretendidos, onde os valores são estabelecidos e trocados, as cenas, por sua parte,
apresentam outra relação. O enunciatário encontra-se com o Hip Hop, mas também
com outras figuras do dia-a-dia (com o pintor, com a família), onde temas como
afetividade, por exemplo, são responsáveis por ampliar os temas circunscritos,
tipificados, à cultura Hip Hop. Isso por si só contraria a unidade visual enquanto
um discurso Hip Hop e assegura a pluralidade discursiva, que pode ser entendida
como conseqüência do fazer fotográfico, isto é, do modo como esta pesquisa se
realizou.
Os auto-retratos dão a ver os textos fotográficos como marcas da
contemporaneidade, em que os sujeitos continuamente são chamados a se
construir identitariamente em contextos diversos. Tal constatação é fruto da
produção do grupo que se vê e se mostra na ocupação de um espaço re-
semantizado, desenvolvendo uma atividade diferente da habitual, a fotografia,
integrada às atividades como um quinto elemento, se assim podemos dizer.
Nesse sentido, fotografia, como constituição linguageira, e como método
adotado na pesquisa, evidencia que a experiência visual é implícita à prática social
do sujeito que a produz. Entende-se porque às vezes tornar-se imagem para o
outro é vivenciar um estar no mundo, pelo parecer ser, em consonância ao ser, e
vice-versa, nas situações da vida que exigem performances a cada momento. Essa
presença-imagem é recriada a cada novo olhar através da linguagem e esta
organização (Zulu Nation, é uma delas) aparentemente em constante reformulação contratual, da questãoidentitária que relaciona os diferentes grupos e organizações.
141
presentifica as práticas vividas, continuamente figurativizada e tematizada entre a
experiência vivida das figuras do olhar e da sua existência “real”, que geram
estatuto de revelação, refração, opacidade ou transparência das faces dos sujeitos
no mundo.
Os percursos narrativos propostos inicialmente se encontram e afirmam que
as dimensões entre o mostrar e o ver interdefinem o grupo Hip Hop e seus
enunciatários sob a disponibilidade contínua de rever-se, um e outro, em
cumplicidade. As cenas são, pois, auto-retratos que evidenciam o rever-se pelas
mudanças de posições face a uma dada realidade, na imbricação do ato
comunicativo, revelando que o ser si mesmo não é apenas uma definição que se
constrói solitariamente. A comunhão pela imagem traduz o “risco” da mudança
das convicções inerente ao processo de comunicação, ao ato de ver e mostrar, jogo
este produzido pelos enunciados e aprofundado pelo exame da enunciação. Se
cada retrato parece isolar uma face do sujeito, é justamente pela não-conformidade
entre eles que advém a instância enunciativa em reuni-los, estrategicamente, como
atestado de competência da visibilidade pela produção da visualidade. Fazer um
retrato de si significa, neste trabalho, tornar a experiência fotográfica um domínio
do visual pelo qual o sujeito é integralmente solicitado como presença de si mesmo
e de seu entorno. Presença cognitiva e sensível e presença de axiologias.
O descontínuo torna-se, então, a condição contemporânea do ser tornado
múltiplo, na necessidade de ajustar-se às mudanças rápidas a que é submetido e
que, ao mesmo tempo, promove. Diante das cenas vemos ruir a idéia da “essência
permanente” que definiria em definitivo a personalidade e o campo cultural dos
indivíduos tal como foi formulado na modernidade. Ao contrário, as imagens
constroem um processo de identificação sucessiva do si, definido entre
possibilidades e limites de reestruturação na vivência com o outro, podendo
142
inclusive anular-se para estar entre os outros. Ou seja, a alteridade é condição
inerente à construção de linguagem, inerente ao fazer fotográfico.
4.2. A escolha da pesquisa: polêmica e auto-reflexão
O olhar do pesquisador, como um destinador para quem direta ou
indiretamente as fotografias são dedicadas, assume papel de modalização do olhar
do grupo que, de certa forma, devolve ao pesquisador um retrato pelo qual deseja
ser reconhecido, pois foi no contexto Hip Hop que passaram a ser assunto de
pesquisa. Como interesse primeiro, foi o comprometimento com o assunto, com a
prática sócio-cultural do Hip Hop, a direcionar a escolha da pesquisa. No entanto,
foi a experiência fotográfica tomada por um olhar “de dentro”, do próprio grupo,
responsável por enriquecer nossos modos de compreender os desdobramentos de
um movimento cultural como um modo de sociabilidade, cuja base não é tanto o
discurso fundador, mas o seu outro próximo ou aproximado. Ao enfocar o Hip Hop
como um objeto de pesquisa, parece pertinente afirmar que, da mesma forma,
nosso retrato é solicitado, como resultado da experiência proposta ao grupo. Para
ele, somos o simulacro do conhecimento, da academia vista a certa distância.
Talvez não seja por essa razão que a maioria das fotografias mostra o simulacro de
um discurso oficial, apresentado na cena 1 e sancionado na cena 4, dado a
importância reconhecida do movimento no âmbito social? Como uma aposta
inicial, vimos se confirmar um tipo de retrato previsto, com o qual estivemos
comprometidos desde a escolha da pesquisa, pois nosso lugar de fala se encontra
com os estudos de cultura popular, por meio de movimentos e grupos sociais que
fazem de sua prática um modo de diferenciação, portanto, de sobrevivência.
143
Como sabemos, o contrato fiduciário assenta na crença no valor colocado entre
enunciador e enunciatário, pressupõe a instalação (logicamente anterior) duma
espécie de conivência entre ambos. Jean-Marie Floch, na introdução de Les formes
de L’empreinte, localiza essa discussão em torno da imagem ao afirmar que:
“a imagem na qualidade de enunciado pressupõe uma instância de
enunciação que pode ser representado em ato de comunicação entre
enunciador e enunciatário. Tal comunicação supõe um saber do
enunciador sobre o saber do enunciatário, um saber sobre o que
considera ser a ‘realidade’ e sobre o que ele julga ser ‘fiel’ a esta
realidade”.64
A dimensão cognitiva, onde se situam estas diferentes realizações, coloca a
dimensão da “iconização” e traz desde o início a problemática da semelhança, de
um parecer Hip Hop, e do estabelecimento dum contrato “enunciativo”. Na
perspectiva de Greimas:
“Situado na dimensão cognitiva, o fazer persuasivo pode comportar uma
ou mais realizações que visam o estabelecimento dum contrato fiduciário
compreendendo, enquanto contrapartida, a adesão do interloculor.
Quando o objeto de fazer persuasivo é a veridicção, o dizer-verdadeiro
(ou falso, mentiroso, etc.) do enunciador, o contra-objeto, cuja obtenção é
escamoteada, consiste na “confiança”, no “crédito”, ou, muito
simplesmente, no “crer-verdadeiro”que o enunciatário atribui ao estatuto
do discurso enunciado. Trata-se então duma forma particular do contrato
fiduciário, que nós designamos como contrato enunciativo ou contrato de
64 J-M.Floch. Les formes de L’empreinte. Périguex, Pierre Fanlac. Tradução nossa, p. 30.
144
veridicção; incide sobre o discurso enunciado, enquanto objeto de saber
valorizado pelo ato da modalização”65.
Se o efeito de iconização está em consonância com as coisas do mundo
natural, nesta pesquisa equivale a dizer que são as imagens da cultura Hip Hop que
constroem a referencialização deste mundo natural. No entanto, concluir que as
fotografias do grupo Hip Hop constroem unicamente o auto-retrato do destinador
Hip Hop, é negar a aposta da pesquisa que entreviu, pelo método adotado, a
presença olhares figurados (que se mostram subjetalmente) e não apenas de
figuras do olhar (que se fazem mostrar objetalemnte).
As cenas, ao contrário, desestabilizam o dizer-verdadeiro do discurso
enunciado por não apresentam um único retrato do grupo, ou seja, de acordo com
expectativa e com proposição inicial da pesquisa descrita introdução, conforme a
fidúcia do enunciatário, onde em parte coloca-se o pesquisador. A polêmica
surgida não permite definir uma constituição identitária do sujeito a não ser pela
própria pluralidade.
Sua construção, no eixo de um contrato polêmico entre sujeitos, tem íntima
relação com o fenômeno da enunciação, pois é nela que se operam as
transformações responsáveis pelas mudanças de posição, tanto do enunciador
quanto do enunciatário convocado. Como o seu resultado é a quebra da
expectativa, o rompimento do contrato proposto pelo enunciador, o efeito de
sentido de pluralidade provoca a ruptura, de um retrato previsível, portanto dado
à aspectualidade durativa, pela concomitância de outros. A questão não se resolve.
Esta irrupção da duratividade, entendida pela construção programada do
65 A.J. Greimas. Maupassant – A Semiótica do texto: exercícios práticos. Trad. T.O.Michels e C. L. C. L.Gerlach. Florianópolis, Editora da UFSC, 1993, p.184.
145
simulacro Hip Hop, é marcada, na configuração da identidade do grupo, pela
incoatividade de retratos não previstos, se quiser, de novos simulacros.
Nesse jogo de retratos, não existe uma verdade que se sobreponha à outra. O
enunciador (os fotógrafos) constrói figuras e temas que amplificam seu papel na
comunicação com o enunciatário, talvez até por auto-reflexão no/pelo fazer
fotográfico.
4.3. Identidade visual, linguagem e axiologias
O encadeamento das imagens, acreditamos, apresentou uma rede de
pequenas “identificações” que resulta na unidade identitária dos vários modos de
se mostrar, visto acima, como uma disposição central para onde tudo é referido e
de onde tudo se expande. Por este largo exemplário, de fotos tão diferentes entre
si, pudemos perceber a transformação de estereótipos em imagens renovadas, que
subentendem as figuras numa necessidade de olhar retrospectivo do todo. Aliás, a
própria constituição dos auto-retratos como práticas identitárias estruturam um
corpo coletivo baseado nos modos de mostrar a si mesmos, sem perder de vista
que tal diversidade é essencial para definição do sujeito. Dessa maneira, a
organização narrativa constitui uma espécie de laboratório onde podem ser
experimentadas múltiplas formas de agir e ser do sujeito, o que implica já numa
série de conseqüências éticas.
Neste universo criado, nas variações do mesmo, o grupo fala do centro do
mundo ou, nas palavras de Landowski, é construído como próprio “grupo de
referência”, deixando entrever os outros “eus” dessa configuração identitária, nem
somente artístico, nem político e nem tampouco “mercadológico”66. Um corpo
66 Poderíamos dizer que estas são imagens que configuram discursos e estereótipos do Hip Hop, segundopontos de vista divergentes: recurso alternativo de sociabilidade de uma parcela da população jovem;
146
performático como um “Outro”, não tão distante ou diverso, que se constrói
estrategicamente no ponto de fuga, redimensionando ao seu redor um território
que se constrói também pelo seu olhar. O reconhecimento deste Hip Hop conduz ao
perímetro de sua ação, pois como vemos o centro se desloca com ele onde quer que
esteja.
Por mais que exclusão social e preconceito racial sejam a pedra de toque do
discurso corrente desse Movimento no âmbito nacional, por meio de
organizações67 que procuram promover a coesão dos ideais, nestas imagens há um
caminho sólido de negação da exclusão, a começar pelo domínio da linguagem
pela qual os sujeitos se produzem. No entanto, a não-exclusão, numa provável
admissão do sujeito ao grupo central econômica e socialmente dominante, também
não explica a dinâmica das imagens que persistem no ruído latente da não
conformidade. De outra maneira, manter-se de lado, segregado, por vezes cria o
efeito de sentido de resistência sobre o qual a postura política tende a se enfatizar.
Se considerarmos estes movimentos de ir e vir da relação centro-periferia, a meio
passo do patamar de valores desejados na constituição de identidade social pela
garantia dos direitos civis, a marcação da diferença finca o sujeito na centralidade
de todos os acontecimentos, por meio da prática diária da atividade cultural. De
fato, produzir-se socialmente segundo uma imagem de si, na diversidade de si
como outros possíveis, é no mínimo colocar-se de imediato em situação de
visibilidade a propósito de quaisquer correlações de linguagem. Vemos a
fotografia como mais uma expressão do universo Hip Hop, aliada aos fatos da vida
cotidiana para contrariar as sobredeterminações, para não dizer reduções, do
sujeito às estimativas sociais que justificam estereotipias infindáveis, não mudando
Movimento comprometido com a “voz” da periferia; ou, ainda, como produto da indústria da moda e damúsica.67 MH2O (Movimento Hip Hop organizado), Frente Brasileira de Hip Hop, CUFA (Central única das favelas)Zulu Nation, Nação Hip Hop Brasil, para citar alguns.
147
em nada a condição daquele que fala. A linguagem provoca, enfim, rupturas,
transformações, de valores e visões de mundo.
Pelos caminhos da fotografia, a pesquisa pôde apresentar a vida construída
do Hip Hop, em situações produzidas pelo próprio grupo ao mostrar-se por um
voluntarismo. No mais, para além das definições que essas imagens possam
carregar consigo, tentamos ver nossa parte na interação, ou quem sabe integração,
dos nossos modos de ser que certamente formam figuras de quem eles mantêm
alguma distância. Assim, não seria demais perguntar “o que de mim há em nós”.
148
BIBLIOGRAFIA
ABRAMO, Helena Wendel. “O estilo monta um espetáculo”. In: Cenas juvenis -
punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Scritta, 1994, p. 81-150.
ANDRADE, Elaine Nunes de (org.). Rap e educação, rap é educação. São Paulo:
Summus, 1999.
BARROS, Diana. Luz. Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.
BAZIN, André. O cinema: ensaios. Trad. E. A. Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BERGER, John e MOHR, Jean. Another way of telling. New York: Pantheon, 1982.
BERTRAND, Denis. Caminhos de Semiótica Literária. Tradução do Grupo CASA. São
Paulo: EDUSC, 2003.
______Os Discursos de uma Paixão. Cruzeiro Semiótico. Associação Portuguesa de
Semiótica, nº 6, 1987.
BRECHT, B. Teatro Completo. Trad. port R. Schwarz et al. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, Vol. 04, 1990.
BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Trad. Port. Oscar Araripe e Tessy Calado.
Petrópolis: Vozes, 1970.
CAETANO, Kati Eliana. “Fotografias Contemporâneas ou a Incompletude do
Simulacro”. In GHREBH: Revista Brasileira de Ciência da Comunicação, da cultura
e de teoria da mídia, outubro de 2005, nº7, consultado em
<<http://www.revista.cisc.org.br/ghrebh7/artigos/05caetano_port.html>> em 12 de
abril de 2006.
______. A aventura fotográfica partilhada, consultado em
<<http://www.unicap.br/gtpsmid/artigos/2005/Kati.pdf>> em 23 de junho de 2006.
149
CALVINO, Italo. “Visibilidade”. In ______ Seis Propostas para um Novo Milênio.
Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
CANCLINI, Nesor Garcia. Cultura y Comunicación: entre lo global y lo local. La Plata:
Periodismo y Comunicación, 1997.
CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto. Trad. C. S. Guedes et al. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, vol.3, 1987-92.
COLLIER, John. Visual Anthropology: Photography as a research method. Albuquerque:
University of New Mexico Press,1992.
DIÓGENES, Glória. Cartografias da cultura da violência: gangues, galeras e o movimento
hip-hop. São Paulo: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998.
DISCINI, Norma. A Comunicação nos Textos. São Paulo: Contexto, 2005.
DUBOIS, Phillipe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. M. Appenzeller
Campinas/SP: Papirus, 2003.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Trad. V. R. e P. Sussekind. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
FEATHERSTONE, Mike. (Org). Cultura global: nacionalismo, globalização e
modernidade. Trad. A. Brunetta. Petrópolis: Vozes, 1998.
FELDMAN-BIANCO, Bela e LEITE, Miriam L. Moreira. (Org.). Os Desafios da
Imagem: Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas/SP: Papirus, 1998.
FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. Olhar periférico: Informação, linguagem, percepção
ambiental. São Paulo: EDUSP, 1993.
FIORIN, José. Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias da pessoa, espaço e
tempo. São Paulo: Ática, 1999.
______. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto-Edusp, 1989.
FLOCH, Jean-Marie. Les formes de L’empreinte. Périgueux: Pierre Fanlac, 1986.
______. Un Nu de Boubat. In ______ Petites mythologies de l’oeil et de l’esprit: por une
150
sémiotique plastique. Paris-Amsterdan: Hadès-Benjamins, 1985.
______. Alguns conceitos fundamentais em Semiótica Geral. 1 ed. São Paulo: Ed. CPS,
2001.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo, Hucitec, 1985.
FREUND, Gisele. Fotografia e Sociedade. Lisboa: Vega, 1995.
GARCIA, Cláudia Regina. Estudo Semiótico das Lingeries na Construção dos Regimes
de Visibilidade da Mulher Brasileira. Conceituação do formante matérico, 2005.
Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) PUC-SP.
GHETHO, J. e PISKA. Hip Hop Sancarlense: Luta e Persistência. Documento histórico
construído como parte dos Projetos de atuação do Movimento Hip Hop em São
Carlos. São Carlos, janeiro de 2004.
GONÇALVES, Tânia Amaral Vilela. O Grito e A Poesia do Gueto: rappers e movimento
Hip-Hop no Rio de Janeiro. 1997. Dissertação. (Mestrado em Sociologia). Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro,1997.
GREIMAS, Algirdas Julien. Da Imperfeição. Trad. A. C. Oliveira. São Paulo: Hacker,
2002.
______. ”Semiótica Figurativa e Semiótica Plástica” In: Semiótica Plastica. A. C. De
Oliveira (org.). São Paulo: Hacker Editores, 2004, p.75-96.
______. e Courtés, J. Dicionário de Semiótica. Trad. port . A. D. Lima e all. São Paulo,
Cultrix, [s.d.]
GUASCO, Pedro Paulo Marques. Num país chamado Periferia: identidade e realidade
entre os rappers de São Paulo. 2001. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social).
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. T. T. da Silva e G. L.
Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
HERSCHMANN, Micael. O Funk e o Hip-Hop Invadem a Cena. Rio de Janeiro: UFRJ,
151
2000.
______. (org.) Abalando os anos 90: funk e hip-hop. Globalização, violência e estilo
cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1994.
LANDOWSKI, Eric. Presenças do Outro: Ensaios de sociossemiótica. Trad. port. M. A.
L. de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2002.
______. “O olhar comprometido”. Trad. port. A. C. de Oliveira. In: Galáxia: revista
transdisciplinar de comunicação e semiótica, cultura. Programa Pós-graduação em
Comunicação e Semiótica da PUC/SP, São Paulo: EDUC, nº 2, 2001, p. 19-56.
______. “Flagrantes delitos e retratos”. Trad. port. D. F. da Cruz Jr. In: Galáxia:
revista transdisciplinar de comunicação e semiótica, cultura. Programa Pós-graduação
em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, São Paulo: EDUC, nº 8, 2004, p.31 – 70.
______. “En deça ou au-delà des stratégies, la présence contagieusein”. In: Passions
sans nom. Essais de socio-sémiotique III. Paris: Presses Universitaires de France, 2004.
______. “Modos de presença do visível”. In: Ana Claudia de Oliveira (org)
Semiótica plástica. Trad. port. I. A. Silva. São Paulo: Hacker, 2004, p. 97-111.
______. A sociedade refletida: ensaios de Sociossemiótica. Trad. port. E. Brandão. São
Paulo: Campinas, EDUC/Pontes, 1992.
______; OLIVEIRA, Ana. Claudia de; DORRA, Raul (eds). Semiótica, Estesis,
Estética. São Paulo:Puebla EDUC-UAP, 1999.
______. “Gosto se discute”. In: Landowski, Eric.; Fiorin, José Luiz (eds.) O Gosto da
Gente, o Gosto das Coisas: abordagem semiótica. São Paulo: EDUC, 1997, p. 97 – 160.
MANGUEL, Albert. Lendo Imagens: uma historia de amor e ódio. Trad. R. Figueiredo
et al. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
MEAD, Margaret. “Visual anthropology in a discipline of words”. In: Hockings, P.
(org). Principles of visual anthropology. Paris: Mouton, 1975.
MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades
152
complexas. Petrópolis/ RJ: Vozes, 2001.
MORIN, Edgard. Para sair do século XX. Trad. V. A. Harvey. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1987.
______. Ciência com consciência. Trad. M. D. Alexandre e M. A. S. Doria. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
NEWHALL, Beaumont. The history of Photography. New York: Museum of Modern
Art, 1986.
PRADO, José Luis Aidar, DUNKER, Christian Ingo Lenz. (orgs.) Žižek Crítico. SãoPaulo: Hacker, 2005.
ROCHA, Janaina; DOMENICH, Mirella; CASSEANO, Patricia. Hip-hop: A periferia
grita. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
ROSA, Celso Martins. Cultura Rap: comunicação e linguagem das bordas. 227 f, 2005.
Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica da PUC/SP). São Paulo.
SAMAIN, Etienne. “Bronislaw Malinowski e a fotografia antropológica”. In:
Revista Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: PPGA, 1995.
______. (Org.). Do Fotográfico. São Paulo: Hucitec/CNPq, 1998.
SANTAELLA, Lucia. Comunicação e pesquisa. São Paulo: Hacker, 2002.
SANTOS, Lauer. Alves Nunes dos. Regimes de visibilidade e construção de simulacros o
auto-retrato contemporâneo, 251f, 2003. Tese (Doutorado em Comunicação e
Semiótica) PUC/SP, São Paulo.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo, razão e emoção. São Paulo:
Hucitec, 1997.
SCHAEFFER, Jean-Marie. A imagem precária: sobre o dispositivo fotográfico. Trad. E.
Bottmann e D. Bottmann. Campinas/SP: Papirus, 1996.
SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Trad. J. Paiva. Rio de Janeiro: Arbor, 1981.
THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Trad. port.
153
W. O. Brandão. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Lisboa: Presença, 1999.
XAVIER, Denise Prates O uso do espaço urbano pelo Movimento Hip Hop, 72f.
(Trabalho de conclusão de curso de Graduação em Geografia). Universidade
Estadual Paulista, Rio Claro, 2003.
FOTOS
FOTOGRAFIA 1
154
FOTOGRAFIA 2
FOTOGRAFIA 3
155
FOTOGRAFIA 4
FOTOGRAFIA 5
FOTOGRAFIA 6
156
FOTOGRAFIA 7
FOTOGRAFIA 8
157
FOTOGRAFIA 9
158
FOTOGRAFIA 10
FOTOGRAFIA 11
159
FOTOGRAFIA 12
160
FOTOGRAFIA 13
FOTOGRAFIA 14
FOTOGRAFIA 15
161
FOTOGRAFIA 16
162
FOTOGRAFIA 17
FOTOGRAFIA 18
163
FOTOGRAFIA 19
FOTOGRAFIA 20
164
FOTOGRAFIA 21
FOTOGRAFIA 22
165
FOTOGRAFIA 23
FOTOGRAFIA 24
166