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OBESIDADE INFANTIL E FOME OCULTA – ASSOCIAÇÃO ENTRE ESCASSEZ E EXCESSO
Autor: Flávio Diniz Capanema
Pediatra, Mestre e Doutor pela Faculdade de Medicina da UFMG
Pós-doutor em Gastroenterologia e Nutrição pela
Assistance Publique Hopitaux de Paris (APHP), Sorbonne / França.
Outubro de 2017
2
SUMÁRIO
1. OBESIDADE INFANTIL: ASPECTOS GERAIS E RELEVÂNCIA CLÍNICA .................................................. 3
2. TRANSIÇÃO NUTRICIONAL, OBESIDADE E FOME OCULTA ............................................................... 6
3. FISIOPATOLOGIA .............................................................................................................................. 8
4. OBESIDADE E HIPOVITAMINOSE D ................................................................................................. 10
5. CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 10
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................................... 11
ANEXO ........................................................................................................................................... 13
3
1. OBESIDADE INFANTIL: ASPECTOS GERAIS E RELEVÂNCIA CLÍNICA
A obesidade, condição adversa à saúde humana, é definida como um distúrbio do metabolismo
energético que se caracteriza por acúmulo anormal ou excessivo de gordura no organismo,
decorrente da interação entre fatores genéticos, ambientais e comportamentais. O balanço
energético positivo, determinado pela ingestão aumentada de macronutrientes, gasto energético
reduzido e pela termogênese dos alimentos, resultará em ganho de peso corporal na forma de
gordura1. Partindo-se da estimativa de que o excesso de peso e a obesidade causam em todo o
mundo 3,4 milhões de mortes, com perda de 3,8% dos anos de vida ajustados por incapacidade2
dados recentes informam a dimensão global do problema: a proporção de adultos obesos
aumentou entre 1980 e 2013 de 28,8% para 36,9% em homens e de 29,8% para 38,0% em
mulheres. A prevalência de sobrepeso e obesidade também aumentou em crianças e adolescentes
em países em desenvolvimento, passando de 8,1% para 12,9% para meninos e de 8,4% para 13,4%
em meninas3.
No tocante à obesidade infantil, sua prevalência tem crescido tanto nos países desenvolvidos como
nos países em desenvolvimento, caracterizando-se como grave problema de saúde pública. A
Organização Mundial de Saúde (OMS) considera a obesidade infantil uma epidemia, sendo
reconhecido como um dos desafios mais sérios deste século, chamando a sua atenção pela sua
relevância clínica, epidemiológica e social, devendo ser uma prioridade global. Para 2014, a OMS
estimou em mais de 42 milhões o número de crianças abaixo de cinco anos com excesso de peso
no mundo, representando uma sobrecarga sobre os serviços de saúde atuais e futuros, dado o seu
caráter de cronicidade4. Estudo de tendência temporal americano acusou prevalência de excesso
de peso em 8,1% para lactentes e 16,9% para crianças de dois a 19 anos em 2011/12. No entanto,
na comparação com o período anterior (2003/04), não foram observadas mudanças significativas
nas prevalências desses grupos etários, demonstrando a importância da implantação de políticas
de vigilância voltadas para essas crianças5. No Brasil, dados do IBGE extraídos por meio da Pesquisa
Nacional de Saúde (PNS 2013) revelam que 56,9% dos brasileiros com 18 anos ou mais estão acima
do peso, representando o total de 82 milhões de pessoas6. Para a faixa etária pediátrica, estudos
nacionais demonstram prevalências de excesso de peso que variam de 10,8% a 33,8% em
diferentes regiões7.
Do ponto de vista etiológico, a obesidade é classificada nas formas exógena, marcada pelo
desequilíbrio entre aumento de ingestão de calorias e gasto energético reduzido, e a forma
endógena, associada a doenças genéticas e hormonais, sobretudo disfunções da tireoide,
pâncreas e suprarrenal. As causas exógenas de obesidade representam mais de 95% dos casos e
a adequada distinção entre essas duas causas se mostra fundamental, uma vez que a sua
abordagem difere substancialmente em função da forma etiológica presente, com foco na
correção do distúrbio de base8.
4
No organismo, o equilíbrio energético é controlado por meio de um sistema neuro-hormonal,
sendo a leptina e a insulina elementos essenciais nesse controle. Tanto a insulina quanto a leptina
são produzidas em proporção à massa adiposa presente. A leptina é produzida no tecido adiposo
branco e atua nos receptores expressos no hipotálamo para promover a sensação de saciedade e
regular o balanço energético. No entanto, em elevadas concentrações séricas, a leptina não
consegue exercer essa ação devido ao surgimento de resistência em seus receptores, que limita o
seu efeito anoréxico. Já a insulina é produzida pelas células beta do pâncreas e a sua concentração
sérica é proporcional à adiposidade. A insulina, a partir do seu efeito anabólico, aumenta a
captação de glicose e a queda da glicemia, provocando o aumento do apetite. A insulina tem
função essencial no SNC para estimular a saciedade, aumentar o gasto energético e regular a ação
da leptina8.
Fatores neuronais estão envolvidos no mecanismo de controle metabólico. O controle na ingestão
de nutrientes e a resposta ao estado de equilíbrio homeostático dependem de uma série de sinais
periféricos, os quais agem diretamente sobre o SNC, levando a respostas adaptativas apropriadas.
A ingestão alimentar e o gasto energético são regulados pela região hipotalâmica do cérebro. A
expressão do apetite também é quimicamente codificada no hipotálamo e por meio de grupos de
neuropeptídeos envolvidos nos processos orexígenos e anorexígenos. Os neurônios que expressam
esses neuropeptídeos interagem também com sinais periféricos, tais como leptina, insulina, grelina
e os glucocorticoides, agindo assim na regulação do controle alimentar e do gasto energético8.
Fatores intestinais também estão envolvidos na obesidade. A absorção ou a presença de
alimento no trato gastrintestinal contribuem para a modulação do apetite e para a regulação de
energia. A colecistocinina, um peptídeo intestinal, age na promoção da saciedade prandial. Isso
ocorre em função da liberação de colecistocinina liberada pelas células I do trato gastrintestinal
em resposta à existência de gorduras e proteínas no intestino. A colecistocinina, além de inibir a
ingestão alimentar, também induz a secreção pancreática e biliar e a contração vesicular. Admite-
se que o peptídeo Y seja expresso pelas células da mucosa intestinal a partir de uma regulação
neuronal, já que os seus níveis aumentam quase imediatamente após a ingestão de alimentos.
Os indivíduos obesos têm menos elevação dos níveis de peptídeo Y pós-prandial, principalmente
após refeições noturnas8.
Ao longo da vida existem determinados períodos críticos nos quais pode ocorrer aumento do
número de células adiposas – hiperplasia adipocitária. A fase intrauterina e os dois primeiros
anos de vida são os períodos de risco nos quais esse fenômeno se instala devido à programação
metabólica secundária aos estímulos dietéticos e hormonais ali presentes. Em relação à
obesidade, um dos períodos críticos para sua manifestação tem sido observado em crianças de
sete a nove anos de idade. Também na adolescência esse tipo de obesidade hiperplásica
adquirida na infância manifesta-se com frequência. Esse aumento do número de células
adiposas no organismo explica a dificuldade de perda de peso vivida por esses jovens e gera uma
tendência natural à obesidade futura8.
O aumento verificado nas taxas de obesidade indica a poderosa participação do ambiente no
programa genético – populações consideradas geneticamente estáveis vêm apresentando
crescimento na incidência de obesos. Também fatores como peso ao nascer, duração de
5
aleitamento natural, tipo de amamentação, início de introdução e tipo de alimentos
complementares oferecidos às crianças influenciam na programação metabólica relativa aos
adipócitos. Durante a gravidez, os hábitos nutricionais da mãe podem modificar a composição
corporal do feto em desenvolvimento. Condições intrauterinas adversas tais como diabetes e/ou a
obesidade materna relacionam-se a recém-nascidos grandes para a idade gestacional, sendo
importantes fatores de risco para o desenvolvimento futuro de obesidade, hipertensão arterial e
até mesmo diabetes7,8. Já crianças submetidas à restrição de crescimento intrauterino, pequenas
para a idade gestacional, apresentam alto risco de desenvolvimento da síndrome metabólica
originada ainda na fase fetal9.
Alguns fatores são determinantes para o estabelecimento da obesidade na infância: o desmame
precoce e a introdução de alimentos inadequados; utilização de fórmulas lácteas
inadequadamente preparadas; distúrbios do comportamento alimentar; e relação familiar
problemática7. Especificamente em relação aos prematuros, a introdução de alimentos
complementares deve respeitar a idade gestacional corrigida, idealmente para seis meses e nunca
antes dos quatro meses para o seu início, devido à imaturidade dos sistemas neurológico e
digestivo da criança10.
A obesidade infantil é um importante fator de risco para doenças crônico-degenerativas na idade
adulta, sendo importante a sua identificação precoce em crianças para a redução do risco de se
tornarem adultos obesos. Diversas doenças encontram-se associadas à obesidade, como
hipertensão arterial, dislipidemias, síndrome metabólica, problemas ortopédicos (osteoartrite,
desvio de coluna, pés planos), diabetes tipo II e alguns tipos de cânceres, com alta taxa de
mortalidade relacionada à obesidade. Sabe-se que quanto maior o tempo de exposição à
obesidade, maior a chance de ocorrência de complicações. A criança obesa também tem maior
risco para algumas doenças e distúrbios psicossociais, provocados pelo estigma da obesidade, que
são de grande relevância nessa fase de estruturação da personalidade. Elas frequentemente
exibem baixa autoestima, afetando o desempenho escolar e relacionamentos, levando a
consequências psicológicas de longo prazo7,8.
Por ser uma doença complexa e multifatorial, outros aspectos mostram-se importantes na gênese
da obesidade infantil, tais como estrato social e estrutura familiar na qual a criança se encontra
inserida. A dinâmica familiar encontra-se inteiramente relacionada ao processo de saúde e doença.
E o bom estabelecimento do vínculo afetivo entre os pais e a criança torna-se fundamental na
prevenção da obesidade. Uma família que funciona adequada ou inadequadamente pode
contribuir para o desenvolvimento de doenças e/ou prevenir seus efeitos. Outra situação muito
comum diz respeito àquelas mães que passam a maior parte do tempo fora de casa e adotam a
prática de ofertar aos filhos guloseimas visando compensar sua ausência prolongada. Cabe ao
pediatra estar atento a esse tipo de ligação afetiva e buscar interferir nessa dinâmica
desfavorável7,8.
Além disso, a adoção de hábitos alimentares seletivos por parte das crianças está diretamente
correlacionada com o desenvolvimento do excesso de peso. O aumento do consumo de
carboidratos da dieta (açúcar, farinhas, massas e refrigerantes) contribui para o aumento de peso.
Por fim, o grau de atividade física merece ser considerado, diante do tempo excessivo gasto com
6
jogos eletrônicos e computadores em detrimento de atividades esportivas, predispondo ao
sedentarismo. Estudos demonstram que a inatividade física na infância está diretamente
relacionada ao aumento da obesidade, numa associação diretamente proporcional entre o tempo
de exposição às telas e games e o excesso de peso dessas crianças11.
O diagnóstico de sobrepeso e obesidade em crianças varia de acordo com a idade (0-5 anos
incompletos, cinco a 10 anos incompletos e adolescentes), o índice antropométrico a ser utilizado
(peso/estatura, peso/idade, IMC/idade) e os valores de referência adotados (percentil ou escore Z),
conforme o Quadro 1.
Quadro 1. Classificação diagnóstica de sobrepeso e obesidade por idade e de acordo com o índice
antropométrico utilizado
VALORES DE
REFERÊNCIA
ÍNDICES ANTROPOMÉTRICOS
0 a 5 anos incompletos 5 a 10 anos incompletos 10 a 18 anos
incompletos
Peso/
estatura
IMC/
idade Peso/idade
IMC/
idade IMC/idade
>Percentil
85 e
<percenti
l
97
>Escore
z +1 e
<escore
z +2
Risco de
sobrepeso
Risco de
sobrepeso
Peso
adequado
para a
idade
Sobrepeso Sobrepeso
>Percentil
97 e
<percenti
l
99,9
>Escore
z +2 e
<escore
z +3
Sobrepeso Sobrepeso
Peso
elevado
para a
idade
Obesidade Obesidade
>Percentil
99,9
>Escore
z +3 Obesidade Obesidade
Peso
elevado
para a
idade
Obesidade
grave
Obesidade
grave
Fonte: Ministério da Saúde. 2011 (adaptado). Disponível em: <http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/orientacoes_coleta_analise_dados_ antropometricos.pdf>
2. TRANSIÇÃO NUTRICIONAL, OBESIDADE E FOME OCULTA
O fenômeno epidemiológico denominado “transição nutricional” caracteriza-se por uma inversão
nos padrões de distribuição das condições nutricionais na linha do tempo, mostrando-se
diretamente influenciado por diversos fatores econômicos e sociais, a partir das mudanças
verificadas na modernização e globalização presentes nos modos de vida dos diferentes povos12.
Partindo de uma condição de atraso em direção à modernidade, esse fenômeno nutricional
caracteriza-se por uma migração da condição prevalente de escassez (desnutrição proteico-
energética) para o excesso de calorias (obesidade), contribuindo, dessa forma, para o aumento das
doenças crônicas não transmissíveis em todo o mundo.
7
No Brasil, esse fenômeno tem sido observado nas últimas décadas, mesmo diante das diferenças
regionais apresentadas, e tem sido associado a fatores diversos como renda familiar, escolaridade
dos pais, peso ao nascer, estilo de vida e dietas inadequadas. Dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o excesso de peso foi encontrado com grande
frequência, a partir de cinco anos de idade, em todos os grupos de renda e em todas as regiões
brasileiras. Esse relatório notificou que uma em cada três crianças de cinco a nove anos estava
acima do peso recomendado pela OMS. O número de crianças acima do peso mais que dobrou
entre 1989 e 2009, passando de 15% para 34,8%. Analisando conjuntamente os dados de
obesidade e sobrepeso, apurou-se que 51,4% dos meninos e 43,8% das meninas apresentavam
algum grau de acometimento. O número de obesos aumentou mais de 300% nesse mesmo grupo
etário, indo de 4,1% em 1989 para 16,6% em 2008-2009. Entre as meninas, essa variação foi ainda
maior, de 11,9% para 32%13.
Gráfico 1. Evolução temporal de indicadores antropométricos na população brasileira de 5 a 9 anos
de idade, por sexo.
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Estudo Nacional da Despesa Familiar 1974-1975 e Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009; Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição 198913.
Outro ponto de destaque no tocante à condição de transição nutricional das crianças brasileiras é
que, ao mesmo tempo em que se assiste à redução contínua dos casos de desnutrição proteico-
energética e aumento nas taxas de obesidade no país, verifica-se, em paralelo, uma situação
paradoxal marcada pelo aumento de carências nutricionais por déficit de micronutrientes – a
chamada “fome oculta”.
A fome oculta é caracterizada por uma carência silenciosa, não manifesta, de um ou mais
micronutrientes no organismo. Segundo a OMS, trata-se do problema nutricional mais prevalente
8
em todo o mundo, envolvendo cerca de dois bilhões de pessoas14. Ela ocorre quando a qualidade
dos alimentos consumidos se apresenta deficiente em micronutrientes - vitaminas e minerais –
que atuam nas vias metabólicas e funções fisiológicas do organismo, requisitos estes necessários
ao pleno crescimento e desenvolvimento das crianças.
Essa deficiência marginal, uma vez instalada, irá depletar silenciosamente os estoques desses
micronutrientes, sem sinais e/ou sintomas aparentes, até o esgotamento das suas reservas, muitas
vezes trazendo consigo sequelas irreversíveis, no momento em que o estágio mais avançado da
deficiência é alcançado. Tais prejuízos estão diretamente relacionados à precocidade de instalação
e exposição prolongada à deficiência.
Embora a fome oculta possa ocorrer devido à deficiência de um único micronutriente específico, a
ocorrência de formas combinadas entre deficiências de vitaminas e/ou minerais mostra-se comum,
em razão da inadequação dietética presente na alimentação. Dessa forma, cabe salientar que
carências múltiplas podem estar mascaradas pela carência maior de um único micronutriente,
sobretudo em momentos de mais demanda verificados durante os períodos de mais crescimento
do organismo, como nos dois primeiros anos de vida e na adolescência.
Crianças obesas, em particular, merecem um olhar especial em relação à alta prevalência de fome
oculta, sendo consideradas um grupo de muita vulnerabilidade ao problema. A realidade
vivenciada pelos obesos, marcada pelo excesso de oferta calórica na dieta, frequentemente traz
consigo uma falsa imagem de uma criança bem nutrida, dificultando a sua abordagem precoce.
Seus pais e cuidadores associam o excesso de peso como sinal de saúde, não sendo capazes de
reconhecer a obesidade como um problema a ser enfrentado. E, ainda mais, informar-lhes a real
possibilidade de coexistência de uma forma de desnutrição ligada à carência de micronutrientes,
carência está sem sintomatologia aparente, mostra-se um grande desafio para o profissional de
saúde que assiste essas crianças.
Entre as microdeficiências relacionadas à obesidade infantil, duas delas merecem destaque: a
ferropenia e a deficiência de vitamina D, lembrando que não raramente elas poderão coexistir no
mesmo paciente, sobretudo nos lactentes.
3. FISIOPATOLOGIA
Embora o ferro seja o elemento mineral mais abundante no planeta, contraditoriamente a
ferropenia é considerada a carência nutricional de mais prevalência em todo o mundo. A
deficiência de ferro é marcada por um desequilíbrio entre ingestão e consumo do mineral, entre a
quantidade de ferro biologicamente disponível e sua necessidade orgânica. Essa deficiência surge a
partir do balanço negativo verificado entre a quantidade de ferro biodisponível na dieta e as
necessidades apresentadas pelo organismo ou quando as reservas de ferro do organismo são
insuficientes para a síntese normal de componentes que dependem desse mineral.
A instalação da deficiência de ferro ocorre em três estágios sucessivos. De início, há diminuição dos
níveis de ferro no organismo, pois o aporte advindo da dieta se mostra incapaz de suprir as
9
necessidades do elemento, com redução nos seus depósitos, observada a partir da queda na
ferritina sérica. A seguir, instala-se a segunda fase, ainda na forma oculta: a eritropoiese deficiente,
caracterizada por diminuição do ferro sérico, redução na saturação de transferrina e elevação da
protoporfirina eritrocitária. No terceiro estágio, mais tardio, ocorrem os sinais e sintomas
secundários à anemia ferropriva, devido à redução na síntese da hemoglobina, marcada pelas
hemácias do tipo microcíticas e hipocrômicas. O déficit de ferro também leva a alterações de pele
e mucosas, baixo peso para a idade, alterações gastrintestinais, redução do trabalho físico e
mental, perda do apetite, adinamia e diminuição da função imunitária. Do ponto de vista
neurológico, a deficiência de ferro pode causar alterações na função cerebral, repercutindo em
prejuízos no desenvolvimento psicológico e cognitivo15.
Nesse sentido, deve-se ressaltar a associação descrita entre a obesidade e a deficiência de ferro,
mesmo entre aquelas crianças com ingestão adequada desse mineral na dieta. A existência de um
estágio inflamatório crônico em crianças obesas, gerado a partir dos fatores inflamatórios
secretados pelos adipócitos, resulta em menos absorção de ferro por parte dos enterócitos. A
explicação está na ação da hepcidina, hormônio peptídico sintetizado no fígado e detectável no
sangue e na urina, regulador da concentração de ferro no organismo. Doenças inflamatórias
aumentam a hepcidina, diminuindo a absorção de ferro no intestino. Estudos em crianças
ressaltaram relação inversa entre o índice de massa corporal (IMC) e a quantidade de ferro
corporal, mesmo após tentativa de suplementação medicamentosa16.
Figura 1. Mecanismo de regulação celular do ferro pela hepcidina
Idealmente, a detecção precoce da ferropenia, principalmente nas fases iniciais da deficiência,
precedentes da sua forma sintomática – a anemia –, deve ser uma meta a ser perseguida pelo
pediatra. Sabe-se que o exame físico tem baixa sensibilidade para determinação da anemia,
alertando para a necessidade de propedêutica complementar para os grupos de risco, na tentativa
10
de se firmar um diagnóstico de deficiência de ferro ainda na sua fase oculta, gerando, assim,
melhor prognóstico para essas crianças17.
4. OBESIDADE E HIPOVITAMINOSE D
Outra forma de fome oculta que vem sendo atualmente detectada nas crianças portadoras de
obesidade é a deficiência de vitamina D. Sabe-se que a vitamina D é, na verdade, um pró-hormônio
responsável pela homeostase do cálcio e fósforo, agindo sobre o metabolismo ósseo e sendo
encontrado no organismo sob duas formas: a ergocalciferol (D2) e colicalciferol (D3). Após sofrer
processo de hidroxilação no fígado e rim ela se transforma na forma ativa: 1,25-OH-calciferol.
Receptores desse hormônio estão presentes em diferentes órgãos e tecidos do corpo; e várias
ações não relacionadas ao metabolismo mineral também vêm sendo a ele imputadas, denotando a
importância crescente atribuída à vitamina D. Sua deficiência está associada à diminuição da força
e da massa muscular, com prejuízo do equilíbrio, propensão a doenças cardiovasculares e diversos
tipos de câncer, além de asma, dermatite atópica, doença inflamatória intestinal, esquizofrenia,
depressão e artrite reumatoide18.
Sabe-se que sua síntese acontece na região cutânea por ação direta dos raios ultravioletas sobre a
pele e somente cerca de 10% das necessidades provêm de alimentos fontes da vitamina,
especialmente peixes marinhos. O leite materno possui baixas concentrações de vitamina D, sendo
indicada a sua suplementação profilática a partir da primeira semana de vida na dose de 400
UI/dia no primeiro ano e 600 UI/dia no segundo ano de vida18,19.
Apesar de a deficiência de vitamina D ser mais comum em crianças desnutridas e portadoras de
doenças crônicas renais ou hepáticas, alguns grupos especiais são considerados de risco para a
hipovitaminose D, incluindo as crianças portadoras de obesidade18. O mecanismo para essa
deficiência relaciona-se ao sequestro promovido pelas células gordurosas do tecido adiposo devido
à maior afinidade das mesmas pela vitamina D. Crianças obesas devem receber entre duas e três
vezes a dose recomendada para sua faixa etária para atender às suas necessidades básicas diárias
de vitamina D19.
5. CONCLUSÃO
A obesidade infantil tem importância crescente na prática do pediatra e, devido ao seu caráter
multifatorial, sua abordagem frequentemente exige atendimento em equipe multiprofissional
(nutrólogo, endocrinologista, ortopedista, geneticista) e interdisciplinar (nutricionista,
fonoaudiólogo, psicólogo, terapeuta ocupacional, educador físico). A tradição cultural de a criança
obesa estar associada a excesso de nutrientes e, portanto, estar bem-nutrida deve ser
desmitificada. A obesidade deve ser encarada como doença e fator de risco para deficiência de
micronutrientes – a fome oculta. Em especial, o profissional de saúde deve considerar a
superposição de deficiência de ferro e vitamina D em crianças obesas e buscar a identificação
11
precoce dessas carências, ainda na sua forma assintomática, pois o diagnóstico precoce e o
tratamento adequado têm forte impacto sobre a saúde física e mental, prevenindo danos muitas
vezes irreversíveis.
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13
ANEXO
Referências laboratoriais para deficiência de vitamina D e anemia ferropriva (AF) em crianças
Quadro 2. Critérios laboratoriais para definição de suficiência de vitamina D de acordo com
diferentes entidades
Diagnóstico*
Global Consensus on
Prevention and
Management of
Nutritional Rickets
(2016)
Endocrine
Society Clinical
Practice
Guideline (2011)
American Academy
of Pediatrics
(2008)
Suficiência > 20 30 – 100 21 – 100
Insuficiência 12 – 20 21 – 29 16 – 20
Deficiência < 12 < 20 < 15
* Níveis séricos de 25-OH-vitamina D (ng/mL)
Quadro 3. Diagnóstico laboratorial de AF
VCN. HCM Reduzidos
RDW Elevado
CHr/RetHe Reduzidos
% de hemácias hipocrômicas Elevada
Contagem de reticulócitos Reduzida em relação à anemia
Ferro sérico Reduzido
TIBC Elevado
Saturação de transferrina Reduzida
Ferritina sérica Reduzida
sTfR Elevado
sTfR/logFerritina Elevado
ZPP Elevado
VCM: volume corpuscular médio; HCM: hemoglobina corpuscular média; RDW: índice de anisocitose; CHr, RetHe: conteúdo de hemoglobina nos reticulócitos; TIBC: capacidade total de ligação do ferro à transferrina; sRfR: receptor solúvel de transferrina; ZPP: zincoprotoporfirina.