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O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO DA FAVELA DE PARAISÓPOLIS (SP):
DESIGUALDADE OU ACESSO AO DIREITO HABITACIONAL?
Raquel Machado Werneck Mestranda – Serviço Social - PUC
Resumo
Este artigo busca analisar o projeto de urbanização da favela de Paraisópolis enquanto
instrumento de acesso ao direito à cidade. Visa compreender a Política Habitacional no contexto
neoliberal, considerando o processo de formação das cidades brasileiras e suas conformações
com as relações patriarcais e hierárquicas, nas quais são preservadas as relações de poder e
interesse das elites dominantes. Contudo, apesar dos avanços e conquistas dos movimentos
sociais, será refletido em que condições o processo de Urbanização de Paraisópolis, proporcionou
um espaço de participação aos moradores enquanto sujeitos protagonistas, considerando a
Política Habitacional uma estrutura historicamente verticalizada e rígida. Nesse sentido, será
ressaltado os laços de identidades estabelecidos pelos moradores no território, entendendo este
com significado vivo e resultante da ação dos sujeitos que nele vivem, destacando em que medida
as intervenções urbanísticas podem garantir melhorias às condições reais de vida dos moradores,
o direito à cidade e à cidadania.
Palavras chave: Política Habitacional; Paraisópolis; Direito à Cidade.
A Segregação Territorial e a Política Habitacional na Cidade de São Paulo
Para entender a questão habitacional no Brasil, deve-se destacar sua relação com o
período de colonização e do acesso à propriedade da terra. Até meados do século XIX o acesso a
terra era através da concessão pela Coroa – sesmarias, não tendo valor comercial. Para
MARICATO (2000), apesar da urbanização na sociedade brasileira ocorrer com maior intensidade
no século XX:
As raízes coloniais calcadas no patrimonialismo e nas relações de favor (mando coronelista) estão presentes nesse processo. A terra é um nó na sociedade brasileira... também nas cidades. A legislação é ineficaz quando contraria interesses de proprietários imobiliários ou quando o assunto são os direitos sociais. (MARICATO, 2000, p.150).
O processo de formação das cidades brasileiras é marcado, sobretudo pela herança
patrimonialista e a restrição do acesso a terra, sendo uma constante luta entre o capital e a classe
trabalhadora. O capital busca moldar o ambiente urbano às suas necessidades enquanto a classe
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trabalhadora quer da cidade o valor de uso, através de moradia e serviços públicos de qualidade.
Em 1850 com a promulgação da Lei de Terras, foram legitimadas, sem contestação, as
“cartas de sesmarias” de quem as detinham e o restante das terras que eram de concessão da
Coroa, somente poderia acessá-la através de leilão. A partir de então, para ter acesso a terra,
somente pagando por ela. Inicia-se, assim, a dificuldade de acesso a terra por parte dos
trabalhadores livres, ex-escravos e imigrantes, na medida em que esta Lei antecipou as grandes
transformações que vieram ocorrer no final do século XIX, com o início da industrialização,
garantindo as terras rurais e urbanas para os poderosos.
No final do século XIX a cidade de São Paulo se desenvolve substancialmente em
decorrência da prosperidade cafeeira, transferindo a matriz fundiária rural para a cidade, gerando
crescimento exacerbado no meio urbano e a demanda por habitação e infraestrutura. Os cortiços,
casas de aluguel e favelas tornaram-se a moradia de inúmeras famílias que não tinham condições
de comprar propriedades, formando uma diferenciação socioespacial, na medida em que
expulsavam a classe trabalhadora dos centros urbanos para a periferia, em condições insalubres,
violentos e com alta densidade. BONDUKI (1998) afirma que quase 90% da população
trabalhadora era inquilino, e até o momento não existia nenhum mecanismo de obtenção da casa
própria. Assim moravam, nas periferias urbanas, ex-escravos e imigrantes atuando nos empregos
terciários das atividades menos nobres que as cidades exigiam. Segundo BONDUKI (1998) a
população cresceu de 40.000 habitantes em 1886 para 580.000 em 1920, verificando um aumento
significativo na expansão urbana, bem como uma supervalorização da terra.
A ocupação de lotes clandestinos sem nenhuma infraestrutura se deu posteriormente a
desocupação das áreas centrais da cidade com a promulgação da Lei do Inquilinato em 1942, na
medida em que a classe trabalhadora foi expandindo para as periferias como “uma nova
alternativa de moradia popular é implementada pela dinâmica própria de produção da cidade e
não pelas propostas de regulação urbanística ou de política habitacional” (MARICATO, 2000,
p.151).
Ao longo da urbanização intensificou-se a desigualdade social e territorial levando a
expulsão da classe trabalhadora dos centros urbanos para as periferias, sendo excluída de toda e
qualquer infraestrutura urbana. Na medida em que a classe trabalhadora ocupa os espaços que
não interessam ao mercado e ao Estado, criam-se “muros” cada vez maiores entre a riqueza e o
pauperismo. Vale ressaltar que a moradia está diretamente relacionada ao processo de produção
e reprodução do capital, tornando-se mercadoria. Para MARICATO (2015, p. 23): “A cidade é um
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grande negócio e a renda imobiliária, seu motor central”.
A indefinição de uma política nacional de habitação que pudesse amenizar os percalços da
intensa urbanização, sempre foi um problema para o Brasil, desde as primeiras décadas do século
XX. O Brasil teve seu primeiro contato com a habitação social na época de Getúlio Vargas (1930-
1945), onde o Estado começa a intervir nas questões habitacionais e não deixa apenas para as
forças do mercado.
Como a habitação sempre representou um grande ônus e um problema dos mais graves a ser resolvido pela classe trabalhadora urbana, visto o aluguel da moradia consumir uma parcela considerável do salário, a formulação pelo Estado de um programa de produção de moradias e de uma política de proteção ao inquilinato tinha ampla aceitação pelas massas populares urbanas e mostrava um governo preocupado com as condições da vida da “população menos favorecida. (BONDUKI, 1998, p.717).
A trajetória da Política Habitacional em nosso país é marcada por um sistema centralizado,
com linhas de crédito sob seu controle, sem uma política definida que articulava as ações dos
Estados e Municípios, fazendo com que a questão habitacional fosse tratada, em todos os
projetos habitacionais, com pouca participação popular, a real produção social da moradia, não
criando nos moradores o sentimento de pertencer àquele espaço. Participação popular pressupõe
construções coletivas, fazendo-se necessária à integração dos moradores na solução dos
problemas de seu meio, ou seja, integrando-os como responsáveis pelo poder de decisão nos
processos de interesses coletivos. As ações devem desenvolver a capacidade de articulação e
organização de seus membros, buscando atender os interesses coletivos e visando a
sustentabilidade local.
Apenas em 2003, com a criação do Ministério das Cidades, verifica-se uma mudança no
quadro, propondo a promoção da participação e do controle social, seguido pela criação do
Conselho da Cidade, sendo esses um conjunto de conquistas resultado da mobilização dos
movimentos sociais e da sociedade em geral em relação à Política Urbana.
Ressalta-se que apesar da pouca ou quase nenhuma participação dos sujeitos nos
projetos habitacionais, verifica-se na nossa historia as intensas insatisfações sociais geradas pela
industrialização e pela urbanização que culminaram no Seminário Nacional de Habitação e
Reforma Urbana na busca da reflexão sobre os efeitos causados pelo crescimento das cidades.
Apesar do momento da ditadura militar vivido no Brasil, a extrema precariedade dos
assentamentos periféricos, gerou um consistente movimento de insatisfação da população
excluída, fazendo com que o movimento conseguisse sua primeira vitória em 1979 com a Lei
6.766, que regulamentava o parcelamento do solo e a criminalização do loteador irregular.
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Já na década de 80, no auge da democratização do país, organiza-se o Movimento
Nacional pela Reforma Urbana, articulado com outros movimentos de luta pela moradia, por
movimentos políticos promovidos pela Igreja Católica (como Comissão Pastoral da Terra e
Comunidades Eclisiais de Base), pelos Sindicatos, Universidades e pelo partido dos
Trabalhadores (PT).
Com a descentralização administrativa, após a Constituição de 88, buscou-se fortalecer o
papel dos municípios e foi apresentada uma proposta de reformulação da legislação e
encaminhada ao Congresso Constituinte em 1988, pelo Movimento Nacional pela Reforma
Urbana. Essa proposta resultou no capítulo da política Urbana artigos 182 e 183, que estabelecia
alguns instrumentos capazes de dar ao poder público de regular a produção e apropriação do
espaço urbano, introduzindo o conceito de “função social da propriedade urbana”. Ou seja, os
imóveis vazios situados na “cidade formal”, deverão dar uso para cumprir a função social da terra
por parte de seus proprietários. Porém, somente em 2011, com a aprovação da Lei 10.257,
através da conquista do Movimento de Reforma Urbana, que foi aprovado definitivamente o
Capítulo da Reforma Urbana - Estatuto da Cidade. O Estatuto trouxe avanços significativos, como
a gestão democrática da cidade, orçamento participativo, que até então nunca havia sido pensado
no Brasil, bem como instrumentos para a regularização fundiária, além da elaboração dos Planos
Diretores participativos, construídos de acordo com a realidade territorial e prioridades de
investimentos.
Em 2002 cria-se Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, Lei: 13.430
13/09/2002, que traz diretrizes para uma melhoria habitacional na cidade, bem como direito à
cidade, inclusão social, participação popular em processos de decisão, planejamento e gestão e
regularização fundiária.
Com objetivo de implementar políticas e programas que promovam o acesso à moradia
digna para a população de baixa renda, foi instituído, em 2005, o Sistema Nacional de Habitação
de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). O
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi criado também nesse período, visando
planejamento e execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética
do país, contribuindo para o seu desenvolvimento acelerado e sustentável, através dos Programas
de Urbanização de Favelas.
Os municípios apresentam-se como protagonistas, juntamente com a União e os Estados,
no desenvolvimento e na gestão urbana das cidades, buscando superar o desafio de assegurar
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moradia digna às famílias de seus territórios. Neste sentido, cabe aos municípios a elaboração
dos Planos Diretores que devem contemplar os instrumentos previstos no Estatuto das Cidades,
garantindo a urbanização das favelas por meio de políticas de gestão democrática e o direito à
moradia.
Hoje no Brasil, 36.6% da população urbana vivem em favelas, ou seja, 51,7 milhões de
pessoas. E ainda apresenta um intenso crescimento das cidades, mais de 190 milhões de
habitantes, 80% nas áreas urbanas, 40% nas áreas metropolitanas. Com isso, configura-se que
34,5 milhões de pessoas não são atendidas pelas redes de esgoto na cidade, sendo 80% do
esgoto coletado não são tratados, sendo despejados nos cursos de água1.
Segundo ROLNIK (2006) no início do século XXI, quase 60% da população urbana estão
vivendo em apenas 224 cidades, dos quais 94% pertenciam aglomerados urbanos e regiões
metropolitanas com mais de 1 milhão de habitantes. O que evidencia um processo centralizador e
excludente, gerando graves problemas nas periferias metropolitanas, prejudicando as condições
de vida de seus moradores. E com o crescimento cada vez maior das cidades, estima-se que em
2050 a taxa de urbanização no mundo chegará a 65%2.
Contudo, após os avanços conquistados pelos movimentos sociais que culminaram nos
artigos referentes à Política Urbana na Constituição Federal de 1988 e resultaram no Estatuto da
Cidade, trouxeram avanços significativos, como a gestão democrática da cidade, orçamento
participativo, bem como o reconhecimento da moradia como direito social. Os Planos de
Urbanização de Favelas também foram discutidos em 2005 com os Conselhos Gestores e
aprovados por eles e pela CAEHIS (Comissão de Análise de Empreendimentos de Habitação de
Interesse Social). A partir disso, inicia-se em 2006, o Programa de Urbanização de Favelas do
Complexo Paraisópolis, com objetivo de garantir a urbanização da favela por meio de políticas de
gestão democrática e o direito à moradia.
A realidade de Paraisópolis
A favela de Paraisópolis, surge precisamente nesse contexto de expansão das periferias.
Na década de 1950, inicia-se a ocupação da área por posseiros que a transformaram em
2 Dados fornecidos pelo artigo Impactos da Política Habitacional na vida dos moradores da cidade: experiência de
Osasco/SP 2 Dados fornecidos pelo artigo Impactos da Política Habitacional na vida dos moradores da cidade: experiência de
Osasco/SP
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pequenas chácaras e somente nos anos 80 intensificou-se o processo migratório. Entre as
diversas causas, a facilidade de emprego pelo crescimento acentuado dessa região,
principalmente com a demanda crescente de mão de obra para a construção civil. Todavia, a
população incapaz de pagar pelo valor da terra e com o aumento significativo do aluguel, inicia o
processo de autoconstrução nesse local desprovido de infraestrutura.
O Complexo Paraisópolis encontra-se localizada no bairro do Morumbi (Distrito da Vila
Andrade), onde estão os condomínios horizontais de alto luxo e segundo GOHN (2010) foi o
distrito que obteve maior crescimento na cidade de São Paulo entre 1999-2000 de 70%. Possui
vários lançamentos imobiliários de alto padrão trazendo sofisticação e serviços especializados
para a região. Destaca-se que o Distrito da Vila Andrade caracteriza-se por uma segregação
socioespacial ente as zonas centrais e periféricas, onde convivem simultaneamente loteamentos
de alto padrão e favelas que estão separados, às vezes, por uma rua ou apenas por um muro.
Fonte: Internet. Disponível em: http://www.tucavieira.com.br/#A-foto-da-favela-de-Paraisopolis. Acesso em 01/10/2016.
O Complexo Paraisópolis foi delimitado em um perímetro que engloba as três áreas:
Paraisópolis, Jardim Colombo e Porto Seguro. Conforme o mapa abaixo, destaca-se que devido a
extensão de Paraisópoplis este foi divido em cinco setores: Antonico, Brejo, Centro, Grotinho e
Grotão.
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Fonte: Secretaria Municipal da Habitação de São Paulo. Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/paraisopolis/ historia/index.php?p=4385. Acesso em 15/09/15
Paraisópolis é considerada a segunda maior favela da cidade de São Paulo, segundo o
Censo 2010 composta por 44.982 pessoas (Paraisópolis: 42.831, Jardim Colombo: 1.246 e Porto
Seguro: 905) e 14.410 imóveis (Paraisópolis: 13.803, Jardim Colombo: 360 e Porto Seguro: 247)3,
além de uma rede de instituições civis que atuam em projetos sociais na favela.
Conforme GOHN (2010), 80% da população local é de origem nordestina, sendo grande
parte foi trabalhar na indústria de construção civil e hoje parte deles são faxineiros e porteiros nos
Condomínios de luxo. Suas mulheres e filhas também trabalham como empregadas domésticas
no bairro do Morumbi.
Paraisópolis possui desde 1983 a União de Moradores de Paraisópolis e em 2001, criou-se
a Associação de Moradores de Paraisópolis, sendo suas principais reivindicações a urbanização
com garantia de moradia para todos, educação e qualificação para um emprego com carteira
3 Fonte: site do IBGE: http://www.censo2010.ibge.gov.br/agsn/. Ver :http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/paraisopolis/estatisticas/index.php?p=4407
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assinada. Além de ser sediada por diferentes grupos políticos, contando com o apoio de
personalidades, empresas, empresários e 41 entidades ou projetos sociais que atuam no local.
O Programa de Urbanização do Complexo de Favelas de Paraisópolis foi um dos primeiros
Programas de Urbanização executado no município de São Paulo após a aprovação do Estatuto
da Cidade. Foi criado o Conselho Gestor de Urbanização de Paraisópolis, com objetivo de
elaborar e acompanhar o Plano de obras.
O Programa de Urbanização de Favelas da Secretaria Municipal de Habitação de São
Paulo vem como solução para o problema habitacional da cidade, a precariedade, a insalubridade
das moradias e a falta de equipamentos públicos como escolas, creches e hospitais. Teve como
objetivo central a construção de unidades habitacionais, canalização de córregos e esgotos,
construção de vias de acesso, construção de equipamentos públicos, abertura de vielas e como
etapa final a posse efetiva dos terrenos ocupados. O projeto previu a transformação da favela em
“novo bairro”.
O projeto previu a eliminação das áreas de risco, a construção de escadarias de acesso as
avenidas, construção de unidades habitacionais provisórias (conhecidos como alojamentos) e
Unidades Habitacionais, melhorias no sistema viário, canalização de córrego, implantação de
redes de fornecimento de água e coletora de esgoto, abertura e pavimentação de vielas,
construção da Escola de Música, Parque Sanfona, Central de Triagem e Ecoponto, dentre outras
ações.
Foram previstas pelo Programa de Urbanização, a entrega de 1124 Unidades
Habitacionais da Prefeitura para o Complexo Paraisópolis, 55 boxe de comércios e ainda em
parceria com a CDHU mais 622 Unidades Habitacionais.
Inúmeras famílias foram removidas pelo Programa de Urbanização, porém ressalto as que
foram removidas da área do Grotão e que ficaram anos em auxílio aluguel, esperando a “tão
sonhada casa própria” e foram para as Unidades Habitacionais. Evidencio as famílias do Grotão
por ser a área de maior vulnerabilidade social em Paraisópolis.
O Grotão trata-se de uma área de encosta com a alta declividade, sendo difícil acesso e
com risco de desmoronamento a qualquer momento. A grande maioria das construções são
precárias e insalubres, feitas de madeira ou restos de materiais. Era composto por famílias
extremamente pobres que vinham de diversas favelas próximas ou da própria Paraisópolis,
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formando uma “subfavela” dentro da favela.
Grande parte dos moradores removidos do setor Grotão foi para Unidades Habitacionais,
sendo a maioria advindos de domicílios de madeira, em locais de alta declividade, localizados em
área insalubre e com esgoto à céu aberto. A oferta de moradia em Unidades Habitacionais pode
significar a melhoria das condições de vida dos moradores, que muitas das vezes é visto por eles
que morar na favela é sinônimo de barbárie, caos e sujeira. Adquirir a propriedade privada
significa ao mesmo tempo passar a ser feliz. A felicidade está relacionada ao fetichismo da
mercadoria, que no caso se apresenta como moradia, isto é, o valor da casa própria.
Direito ou Exclusão Territorial
Verifica-se o estereótipo de que favela é lugar de sujeira, de violência, de bandido, não
considerando a favela como um espaço formado pela história de vida das pessoas que nela
vivem, das relações de parentesco, de amizade, confiança, origem, as tensões das relações
sociais e as relações de vizinhanças. Como local de sobrevivência de muitas famílias, dentro de
seu contexto histórico, de sustentabilidade de vida, de resistência e de felicidade pessoal e
coletiva.
KEHL (2010) destaca que, a favela não pode ser vista só pela perspectiva de sua miséria
física, mas do ponto de vista da riqueza humana. Os planos e projetos de intervenção em favelas,
do tipo “rua-casa-lote” que não levam em consideração essa premissa, somente deslocam o
problema da precariedade de um lado para o outro, sem nunca conseguirem acertar na
sustentabilidade social das comunidades atingidas, baseada no tripé família-moradia-vizinhança.
Os Programas de Urbanização de Favelas atuam no território, sem ao menos conhecer as
realidades locais, tentando encontrar soluções locais pata contradições globais, na medida em
que considera a produção da moradia social centrada na figura das Unidades Habitacionais,
pensada como um modelo homogêneo, que ignora o perfil das famílias e aspectos culturais. E que
ainda levam em consideração mais os aspectos quantitativos, como por exemplo, número de
Unidades Habitacionais construídas, ignorando outros aspectos como acesso a infraestrutura
urbana, transporte público, comércio e serviços.
A partir da leitura do território, não simplesmente como um espaço vazio, mas enquanto um
lugar de ação dos sujeitos que o torna matéria viva (KOGA, 2011), propõe-se levantar ferramentas e
instrumentais de análise do movimento real de enfrentamento às desigualdades econômicas e
sociais. Ressalta-se a importância de se conhecer o território, as relações sociais, as relações de
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solidariedade, relações de poder e as reais condições de vida dos moradores. É no território que se
mostra as desigualdades de condições de vida de seus moradores, através da presença/ausência
de serviços públicos e a qualidade dos serviços ofertados (KOGA, 2011). Aspectos esses que
representam o direito à cidade e portanto à cidadania.
A organização das cidades brasileiras no contexto da sociedade capitalista gera fragilidade
nas possibilidades de organização da classe trabalhadora e desperta o sentimento cada vez mais
individualista, reforçando o apelo às relações interpessoais e as redes informais para solucionar
os problemas diários da população das favelas. A fim de melhorar o modelo Habitacional das
populações de baixa renda, bem como as leis relativas à questão habitacional, GOHN (2003)
aponta:
Os movimentos sociais dos anos 1970/80 contribuíram decisivamente, via demandas e pressões organizadas, para a conquista de vários direitos sociais novos que foram inscritos em leis na nova Constituição brasileira de 1988.(...) Eles criaram e desenvolveram, nos anos 90, redes com outros sujeitos sociais, assim como redes dentro do próprio movimento popular propriamente dito destacando os movimentos que atuam na questão da moradia. (GOHN, 2003, p.20-23).
O processo de reprodução e gestão das cidades tem ocorrido de forma desigual no nosso
país, acarretando perversas consequências no espaço urbano e nas condições de acesso ao
direito à moradia digna. A Questão Urbana está diretamente ligada à luta entre as classes sociais,
na busca de acesso ao direito a melhores condições de vida e moradia da classe trabalhadora.
Ainda, o direito à cidade e à cidadania, visa-se a universalização do acesso aos serviços e
equipamentos urbanos, a condição de vida digna e a participação dos habitantes da cidade na
construção de seus destinos, sendo estes protagonistas de sua história de vida. Contudo,
identifica-se que apesar dos avanços conquistados pelos movimentos sociais e pela classe
trabalhadora, a Política Habitacional está calcada em um modelo de planejamento excludente,
rígido e imposto pelo mercado e pelo capital.
Conforme Valladares (1978), a questão habitacional é tratada pelo Estado, desde as
primeiras favelas do Rio de Janeiro, como apenas um défict habitacional de moradia ou
incapacidade do mercado imobiliário (setores público ou privado) de produzir habitações
populares em ritmo capaz de atender uma demanda crescente, considerando somente o uso do
solo, sem levar em consideração as características de sua população e os fatores que a leva a
morar na favela.
A favela não é simplesmente resultante de uma crise habitacional no contexto de um processo de urbanização acelerado...A favela resulta sobretudo, da exploração da força de trabalho em uma sociedade estratificada, onde as desigualdades tendem a se perpetuar e o processo de acumulação do capital é cada vez maior.
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Resulta ainda de uma situação onde o uso do solo é cada vez mais determinado pelo seu valor, e onde o controle do espaço urbano é exercido pelas ou em nome das camadas dominantes.” (VALLADARES, 1978, p. 34)
As cidades, como também Paraisópolis, são os locais onde se processam as maiores
expressões da Questão Social, representado pelo modelo econômico capitalista que gera
desigualdades na apropriação da riqueza e do espaço urbano. Conforme a Carta Mundial pelo
direito à cidade: “O direito a cidade é um direito coletivo, isto é, direito a tudo que a cidade oferece
para a reprodução da vida de todos e todas que nela habita”. O que temos hoje é uma falta de
consciência de classe, ressaltando o sentimento individualista, onde para sobreviver é preciso
lutar e disputar o acesso a bens e serviços. O direito á cidade é um direito coletivo que conforme
HARVEY (2014, p.28): “... é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com
nossos mais profundos desejos... É um dos nossos direitos humanos mais preciosos, ainda que
um dos mais menosprezados...”.
Por condição de vida digna da classe trabalhadora, entende-se a participação ampla na
condução de seus destinos dentro da cidade e a universalidade ao acesso aos serviços e
equipamentos urbanos. É necessária a participação efetiva da população nesses processos, da
qualificação e informação para que não sejam reféns de políticas assistencialistas, mas sim de
direito à moradia.
Diante disso, é importante refletir sobre os diversos canais de participação e acesso a
garantia dos direitos estabelecidos pela lei, criados a partir da década de 80, e as reais condições
da classe trabalhadora de acessar à cidade e a moradia digna como direito de cidadania,
considerando a garantia da efetivação de direitos básicos do mundo do trabalho e da vida urbana.
O Estado democrático promete uma cidadania mais igualitária, mais justa e com maior dignidade,
porém convive-se hoje com um regime de privilégios e desigualdades legitimadas em relação à
distribuição de direitos sociais. Com a urbanização do século XX, HOLSTON (2013) afirma que
foram criados cidadãos marginalizados e de não cidadãos que contestam sua exclusão, ou seja,
gerando a chamada cidadania desordenada e desordenadora.
Constata-se, no entanto que a construção do acesso ao direito à cidade e à cidadania é
um longo caminho na realidade brasileira, ressaltando os progressos já conquistados, mas que
muito falta a percorrer. A superação de traços messiânicos, de favores e voltados a atender
benefícios pessoais, trará, conforme CARVALHO(2015, p. 15), “...uma cidadania plena, que
combine liberdade, participação e igualdade para todos”.
Referências
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