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Draft; please do not quote. Submitted to the IV Principia Symposium, 2005.
S. S. Chibeni, 2004.
Locke e o estatuto epistemológico das leis científicas(Locke on the epistemological status of scientific laws)
Silvio Seno Chibeni
Departamento de Filosofia – Unicamp – Brasilweb: http://www.unicamp.br/~chibeni
e-mail: [email protected]
Resumo
Neste artigo examino como, ao longo do estudo do estatuto epistemológico das leis científicas, Locke transcendeu o
estreito empirismo de idéias com que inicia sua teoria epistemológica. Identifico duas etapas importantes nesse
processo. Primeiro, constatando o bloqueio do conhecimento a priori, pela via das idéias, das verdades universais
sobre substâncias, Locke introduziu a noção de “conhecimento sensitivo” de proposições particulares de coexistência
em substâncias, sugerindo o recurso a probabilidades para o tratamento de suas generalizações. Depois,
reconhecendo que nem todas as proposições relevantes da ciência se enquadram nesse caso, examinou de forma
breve, porém bastante apropriada, a via das hipóteses, chegando por aí bem próximo ao holismo epistemológico
defendido por Quine.
Extended abstract
This article seeks to defend Locke against Quine’s charge, made in his famous “two dogmas” paper, that Locke’s
theory of knowledge is badly flawed not only for assuming the dogmas, but also for adopting an “intolerably
restrictive” version of one of them, the dogma of reductionism. According to Quine, Locke maintained that the
empirical reduction of propositions should proceed on a “term-by-term” (or idea-by-idea) basis. Quine deems such a
reduction “impossible”, of course, and claims that later empiricists have managed to do without it. Quine recounts
the historical process of evolution of empiricism, whereby the vehicle of meaning and empirical contents was first
displaced from the term to the proposition, and then from the proposition to whole scientific theories, or even to the
whole of science. It is shown here that in his analysis of the epistemological status of scientific laws Locke went far
beyond the narrow idea-empiricism with which he began his epistemological theory in the Essay. This was done in
three stages. First, in order to escape idealism, he introduced the notion of “sensitive knowledge of particular
Existence ... of finite beings without us”, which, whatever its exact nature, certainly does not reduce to the
“perception of the Agreement or Disagreement of two Ideas” – Locke’s initial definition of knowledge, compatible
with Quine’s interpretation. Secondly, after showing in great detail that we can have virtually no a priori knowledge
– that is, knowledge resulting from the perception of the agreement or disagreement of ideas – of universal,
instructive truths about substances, Locke extended the notion of “sensitive knowledge” to cover particular
propositions of “coexistence” in substances. Locke proposes, then, that when such propositions are generalized they
must be downgraded to the epistemic category of “probability”. This case covers the important class of scientific
propositions now called phenomenological laws. Finally, acknowledging the essential presence of hypothetical, non-
phenomenological laws in science, Locke sought to analyse their epistemic credentials. In an original, if brief,
analysis of the subject, Locke anticipated much of the contemporary views on the role and nature of scientific
hypotheses, including, remarkably, a mild version of the epistemological holism championed by Quine.
1. Introdução
O segundo dos dois “dogmas do empirismo” apontados por Quine em seu famoso artigo de 1951
é o reducionismo, definido por ele nos seguintes termos: “a crença de que cada proposição com
significado é equivalente a alguma construção lógica a partir de termos que se referem à
experiência imediata” (Quine 1980, p. 20; ver p. 38). Quine procurou indicar que esse, bem como
o outro dogma – a distinção analítico-sintético –, ocupa posição central nas diversas doutrinas
empiristas modernas e contemporâneas, de Locke aos positivistas lógicos. Propõe-se a mostrar
que os dois dogmas são, na verdade, equivalentes e inaceitáveis. Não irei aqui adentrar essas
teses centrais de Quine. Meu objetivo será o de explorar uma crítica específica feita en passant
por Quine a Locke e Hume: a de que suas teorias epistemológicas incorreriam em duplo erro: não
apenas assumiriam os dois dogmas, mas também adotariam uma versão “intoleravelmente
restritiva” do reducionismo (p. 38). Examinarei em particular esta última afirmação, limitando-
me ao caso de Locke.
Segundo Quine, a versão Lockeana do reducionismo sustenta que a redução empírica das
proposições deve se dar termo-a-termo (ou, para ser mais fiel à abordagem original de Locke,
idéia-a-idéia). Assim, diz Quine, “Locke e Hume mantinham que toda idéia deve originar
diretamente da experiência sensorial, ou ser composta de idéias dela originadas” (1980, p. 38).
Quine considera esse empirismo termo-a-termo “impossível” (p. 42), indicando duas etapas na
sua superação histórica, dentro da vertente empirista.
2
Primeiro, teria havido uma “importante reorientação na semântica” (p. 39), protagonizada
por Bentham, Frege e Russell, pela qual o veículo primário do significado deslocou-se dos termos
para as proposições. São estas agora que devem ser traduzíveis, uma a uma, em proposições
empíricas, a fim de que recebam significado, e se evidencie seu conteúdo cognitivo. Quine aponta
o Aufbau de Carnap como a tentativa suprema de implementação dessa forma de empirismo.
Prossegue, ressaltando que razões diversas – parcialmente reconhecidas pelo próprio Carnap –
levaram a um ulterior abrandamento da proposta: ao invés da aparentemente inalcançável
tradução, passou-se a exigir apenas a confirmação empírica. Mas mesmo assim o dogma
sobreviveu “na suposição de que cada proposição, tomada isoladamente de suas companheiras,
admite, afinal, confirmação ou desconfirmação” (p. 41).
Porém não é este ajuste que, para Quine, constitui a segunda grande etapa da superação do
empirismo Lockeano, mas sim o abandono completo do dogma, e sua substituição pela semântica
e epistemologia holistas, hoje tão freqüentemente associadas ao nome de Quine. 1
Irei agora argumentar de forma preliminar que essa avaliação quineana da epistemologia
empirista não é inteiramente correta, no que se refere a Locke.
2. Locke e o empirismo de idéias
Como se sabe, Locke abre o Essay com uma argumentação cerrada contra a doutrina do
conhecimento inato, que ocupa todo o livro I. No livro II, Locke defende que todas as nossas
idéias, i.e., “o que quer que constitua o objeto do entendimento quando um homem pensa” (I i 8),
provêm, em última instância, da experiência, em suas modalidades de sensação e reflexão. Sendo
1 Quine defendeu ainda que a epistemologia deve ser naturalizada., i.e., reduzida a um ramo das ciências naturais
(ver p. ex. “Epistemologia naturalizada”, 1969). Parece claro que tanto no caso do holismo semântico-
epistemológico quanto no do naturalismo Quine teve precursores importantes. Ele próprio reconhece isso
relativamente ao bem documentado caso de Pierre Duhem, mas haveria outros autores importantes a mencionar,
como Poincaré (1968; 1ª ed. 1902) e Einstein e Infeld (1971; 1ª ed. 1938). Comentando o estatuto das leis da
mecânica newtoniana, estes últimos escrevem: “É o nosso sistema completo de suposições [guesses] que realmente
deve ser ou provado ou refutado pelos experimentos. Nenhuma das assunções pode ser isolada para um teste
separado” (pp. 30-31). Especificamente quanto ao holismo semântico, Hans Aarsleff mostrou que ele remonta ao
menos ao século XVIII, com Condillac e Diderot (Aarsleff 1994, pp. 275-277).
3
as idéias o “material do conhecimento” (II i 2, 25, xxii 9, etc.), Locke acredita estabelecer assim
que todo o conhecimento provém, em última instância, da experiência.2
Após dedicar um livro inteiro ao estudo das palavras (o livro III), Locke finalmente aborda,
no livro IV, a questão do conhecimento propriamente dito. Logo no segundo parágrafo do
primeiro capítulo desse livro encontramos a seguinte definição:
Conhecimento parece-me não ser senão a percepção da conexão e acordo, ou desacordo e repugnância de
quaisquer de nossas idéias. Ele consiste somente nisso. Onde há essa percepção, aí existe conhecimento; e
onde não há, embora possamos imaginar [fancy], supor [guess] ou crer, ficaremos sempre aquém do
conhecimento. (IV i 2)
Essa forma de conceber o empirismo, que Michael Ayers chamou de “empirismo de
conceito” (concept-empiricism; Ayers 1991, p. 14), é inteiramente compatível com a
interpretação quineana de Locke: são os termos, ou, se preferirmos, os conceitos ou idéias,
individualmente, que apresentam conexão direta com a experiência. O conhecimento
propriamente dito, o conhecimento proposicional, resulta de uma operação intelectual sobre as
idéias: a percepção de que “concordam” ou “discordam” entre si.
Locke propõe que há quatro tipos de acordo ou desacordo entre idéias: 1) identidade e
diversidade; 2) relação; 3) coexistência, ou conexão necessária; e 4) existência real.3
No primeiro, “a mente percebe de modo claro e infalível que cada idéia concorda consigo
mesma, que ela é o que é, e que todas as idéias distintas discordam, i.e., que uma não é a outra. E
isso faz [...] à primeira vista, por seu poder natural de percepção e distinção” (i 4). Exemplos
dados por Locke: ‘Branco não é vermelho’, ‘Redondo não é quadrado’.
2 “All ideas come from sensation or reflection. Let us then suppose the mind to be, as we say, white paper, void of all
characters, without any ideas: – How comes it to be furnished? Whence comes it by that vast store which the busy
and boundless fancy of man has painted on it with an almost endless variety? Whence has it all the materials of
reason and knowledge? To this I answer, in one word, from EXPERIENCE. In that all our knowledge is founded;
and from that it ultimately derives itself. Our observation employed either, about external sensible objects, or about
the internal operations of our minds perceived and reflected on by ourselves, is that which supplies our
understandings with all the materials of thinking. These two are the fountains of knowledge, from whence all the
ideas we have, or can naturally have, do spring.” (II i 2)3 Ver IV i 3. Daqui em diante todas as referências de capítulo serão relativas ao livro IV, salvo indicação em
contrário.
4
O segundo consiste na “percepção da relação entre duas idéias quaisquer, de qualquer tipo,
seja de substâncias, de modos ou qualquer outro” (i 5). Um exemplo recorrente no Essay é o da
proposição de que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a dois ângulos retos.4 Na
verdade, Locke reconhece logo abaixo (i 7) que esse tipo de acordo ou desacordo entre idéias de
fato inclui o primeiro e o terceiro, e diz que os separou explicitamente porque são particularmente
importantes.
O terceiro tipo de acordo ou desacordo – coexistência, ou conexão necessária – “pertence
particularmente a substâncias” (i 6): a ligação ou conexão de uma idéia à idéia de uma
determinada substância.5 O exemplo favorito de Locke de (putativo) conhecimento de
coexistência é a proposição ‘O ouro é fixo’ (i.e. não se consome no fogo; i 6), ao qual retornarei
mais adiante.
Finalmente, o quarto tipo de conhecimento – existência real – apresenta um problema sério:
não se trata evidentemente de um tipo de acordo ou desacordo de idéias; portanto não se
enquadra na definição geral de conhecimento apresentada inicialmente por Locke, apesar de
tentar artificialmente colocá-lo nela: “A quarta e última espécie é a da existência atual real
concordando com uma idéia qualquer” (i 7).
Fica claro do exame geral do Essay que a razão pela qual Locke efetivamente amplia desse
modo sua definição inicial de conhecimento é seu desejo de escapar a uma posição idealista,
permanecendo próximo ao senso comum. Em particular, pretende sustentar que conhecemos a
existência de três itens: o eu, Deus e as coisas materiais atualmente presentes aos sentidos. A
própria existência, enquanto ser pensante, é conhecida “intuitivamente” (IV ix); a de Deus,
“demonstrativamente” (IV x). Intuição e demonstração são os dois “graus” do conhecimento,
Locke propõe em IV ii; as razões apontadas por Locke para que sejam dois graus distintos não
são sustentáveis; mas esse é um outro assunto. O que importa agora é que ele consistentemente
4 “When we possess ourselves with the utmost security of the demonstration, that the three angles of a triangle are
equal to two right ones, what do we more but perceive, that equality to two right ones does necessarily agree to, and
is inseparable from, the three angles of a triangle?” (i 2) 5 A natureza dessa ligação não é clara, o que se reflete no próprio modo ambíguo pelo qual Locke a denomina:
‘conexão necessária’ sugere que se trata de uma ligação a priori entre as idéias, enquanto que ‘coexistência’ não
carrega essa conotação. A expressão ‘coexistência necessária’ também aparece umas poucas vezes ao longo do livro
(i 6, iii 14, vi 7).
5
reconhece que em ambos há certeza, condição necessária ao conhecimento, na concepção
unanimemente aceita no período moderno.
No mesmo capítulo, intitulado “Dos graus do conhecimento”, no entanto, Locke introduz o
que seria um terceiro “grau”, o grau inferior do conhecimento, justamente para acomodar a
existência das coisas materiais presentes aos sentidos: o “conhecimento sensitivo”. Enfatiza,
porém, que “indo além da mera probabilidade, sem no entanto alcançar perfeitamente nenhum
dos graus precedentes de certeza, passa pelo nome de conhecimento”, apenas isso (ii 14; grifei).
Subjacente a essa cautela está certamente o reconhecimento de que os argumentos para a
existência dos corpos materiais presentes aos sentidos, a serem apresentados no capítulo xi, são
apenas argumentos de plausibilidade: argumentos abdutivos, sustento; mas esse também é outro
assunto.
Quero apenas notar que, ao admitir o “conhecimento” de existência Locke efetivamente
começa a ultrapassar a forma estrita de empirismo atribuída a ele por Quine, o empirismo de
idéias. Mostrarei a seguir que Locke prossegue firmemente nessa direção, ao tratar do estatuto
epistemológico das leis científicas.
3. O estatuto epistemológico das leis científicas: o bloqueio da via a priori
Locke não dedica um tópico especial do Essay (ou de outras obras) ao estatuto epistemológico
das leis científicas. As implicações de sua teoria epistemológica para essa questão são, porém,
claras. Ela está subsumida ao tópico do conhecimento das proposições universais de
coexistência, que é amplamente discutido em diversos capítulos do livro IV (especialmente iii, vi
e xii).
Como vimos, para Locke conhecimento é, idealmente, a percepção do acordo ou desacordo
de idéias. Ele será universal se e somente se as idéias forem gerais. “Pois aquilo que for
conhecido acerca de tais idéias gerais será verdadeiro com relação a toda coisa particular na qual
aquela essência, i.e. idéia abstrata, for encontrada. [...] De modo que todo conhecimento geral
terá de ser procurado e encontrado apenas em nossas próprias mentes.” (iii 31; ver também vi 13
e xii 7.) Essa é uma tese central para o nosso tema, e acerca da qual Locke manteve uma
consistência absoluta.
6
No capítulo vi, que trata “das proposições universais, sua verdade e certeza”, Locke
assevera, já no parágrafo 4, que “não podemos estar certos da verdade de nenhuma proposição
geral, a menos que conheçamos os limites e a extensão precisos das espécies designadas por seus
termos.” Tal conhecimento pressupõe o conhecimento das essências dessas espécies.
No caso das idéias simples e dos modos, em que as essências reais coincidem com as
nominais (III iii 18), as espécies são conhecidas de maneira precisa e completa.6 A verdade das
proposições universais a seu respeito poderá então ser claramente determinada, se houver
percepção de seu acordo ou desacordo. Enquadram-se nessa categoria as proposições gerais de
identidade e diversidade de idéias simples, como por exemplo ‘Nada que é quadrado é redondo’,
bem como as que se baseiam nas demais relações entre idéias, que não as de coexistência.
Segundo Locke, estas últimas formam “o campo mais amplo de nosso conhecimento” (iii 18), e
incluem, paradigmaticamente, as proposições da matemática. A extensão do conhecimento
depende aqui apenas de “nossa capacidade de encontrar idéias intermediárias” (ibid.), ou
“provas”, que possam tornar percebida a relação das idéias em questão.
Dificuldades aparecem, no entanto, quando consideramos as idéias de substâncias, nas
quais “uma essência real distinta da nominal é suposta constituir, determinar e limitar as
espécies” (vi 4). Nenhuma proposição universal de coexistência sobre uma substância poderá ser
conhecida se uma referência à sua essência real for subentendida, porque as essências reais são,
para Locke, completamente incognoscíveis: “não conhecendo essa essência real, não podemos
saber o que é, ou não é, daquela espécie e, conseqüentemente, o que pode ou não ser afirmado
com certeza a seu respeito.” 7
O processo cognitivo pela análise das idéias falha neste caso, porque se trata de examinar as
relações de uma idéia com outra que é inteiramente obscura: a da essência real da substância em
questão. Nas palavras de Locke: “Os nomes de substâncias, então, sempre que tomados para
6 A noção de essência real corresponde à noção tradicional de essência, tal qual considerada até Locke, ou seja, “o
ser de qualquer coisa pelo qual ela é o que é” (15). Por essência nominal Locke entende uma idéia abstrata referida
por um termo geral (III iii 15; IV iv 17, vi 4), “a medida e fronteira de cada tipo ou espécie, pela qual um tipo
particular é constituído, e distinguido dos outros, [...] que não é nada além da idéia abstrata à qual o nome [do tipo] é
anexado, de modo que tudo contido nessa idéia é essencial para o tipo” (III vi 2). As essências nominais são, pois,
criações da mente. Ver também II xxxi 6 e seguintes, onde essa distinção é apresentada de forma preliminar.7 IV vi 4; ver também o parágrafo seguinte. Para a incognoscibilidade das essências reais das substâncias, ver e.g. III
iii 17; vi 6, 9 e 19; IV vi 4, 5 e 8.
7
representar espécies que se supõe constituídas por essências reais [...] não são capazes de trazer
certeza ao entendimento” (vi 5; ver também vi 15).
Assim, para obtermos algum conhecimento geral de coexistência só resta a alternativa de
nos referir exclusivamente às essências nominais das substâncias, i.e., determinadas coleções de
idéias que decidimos tomar como constituindo tais essências. Essas idéias complexas são
geralmente sugeridas pela experiência, mas seus contornos definitivos são estabelecidos
livremente por nós. São, pois, passíveis de completa determinação e clareza. Infelizmente surge
aqui outra dificuldade não menos séria:
Por outro lado, quando os nomes das substâncias forem usados como devem ser, para [designar] as idéias que
os homens têm em suas mentes, não nos servirão para fazer muitas proposições universais de cuja verdade
possamos estar certos, embora [neste caso] possuam significação clara e determinada. Não porque nesse seu
uso estejamos incertos acerca de que coisas significam, mas porque as idéias complexas que eles designam
são combinações de idéias simples tais que não trazem em si nenhuma conexão ou repugnância que possa ser
descoberta a não ser com muito poucas outras idéias. (vi 6)
Vejamos agora como Locke fundamenta essa importante tese de que “a conexão entre a
maioria das idéias simples é desconhecida” (iii 10). Há três casos a considerar:
a) Conexões entre idéias de qualidades primárias.8 Essas são as únicas conexões de idéias
simples que Locke considera concebíveis pela mente humana. Mas em todo o Essay só fornece
dois exemplos concretos de conexões conhecidas desse tipo: “Na verdade, algumas poucas
qualidades primárias têm uma dependência necessária e conexão visível umas com as outras,
como forma necessariamente supõe extensão; [e a capacidade de] receber ou comunicar
movimento supõe solidez”.9
8 A distinção entre qualidades primárias e secundárias, que permeia todo o pano de fundo metafísico do Essay e de
toda a ciência moderna, é introduzida no capítulo viii do livro II. As qualidades primárias são aquelas “totalmente
inseparáveis dos corpos, em qualquer estado que estejam” (9): solidez, extensão, forma, movimento ou repouso,
número, tamanho e textura (9, 10 e 23). As qualidades secundárias são aquelas que “na verdade não são nada nos
próprios objetos senão poderes de produzir várias sensações em nós, como cores, sons, gostos etc, por meio das
qualidades primárias [...] de suas partes imperceptíveis.” (10)
9 IV iii 14. Deve-se estar atento para que a noção de solidez adotada por Locke é mais ampla que a usual: no capítulo
iv do livro II, “Da solidez”, lemos, no primeiro parágrafo: “[Solidez] é aquilo que [...] impede a aproximação de dois
corpos quando um é movido na direção do outro”. No capítulo sobre as máximas, IV vii, parágrafo 5, encontramos
uma proposição que Locke aparentemente considera conhecida por um outro caso de percepção da “repugnância”
8
b) Conexões entre idéias de qualidades primárias e secundárias. Estas Locke considera
não apenas incognoscíveis mas também inconcebíveis (ver e.g. iii 12 e vi 14). No entanto, como
na concepção de mundo adotada por Locke todas as qualidades secundárias são supostas decorrer
“das qualidades primárias das partes diminutas e imperceptíveis” dos corpos (iii 11; II viii), ele
tem que admitir que essas conexões de fato existem, e as atribui “à determinação arbitrária
daquele Agente Todo-Sábio que as fez ser tais quais são [...] de um modo totalmente acima da
concepção de nossos fracos entendimentos” (iii 28; ver também 29).
c) Conexões entre idéias de qualidades secundárias. Estas são a fortiori incognoscíveis e
inconcebíveis. Há aqui dois obstáculos intransponíveis para o conhecimento: 1) nossa falta de
sentidos suficientemente agudos para descobrir as propriedades primárias particulares das partes
diminutas de cada tipo de corpo, que são “a raiz de onde brotam” suas qualidades secundárias (iii
11 e 25); e 2) nossa referida incapacidade de descobrir, e mesmo de conceber, as conexões entre
qualidades primárias e secundárias, o que constitui um fator “ainda mais irremediável de
ignorância” (iii 12 e 28). Portanto “em todas as qualidades secundárias não podemos descobrir
nenhuma conexão” (vi 7), “exceto naquelas referentes a um mesmo sentido, que necessariamente
se excluem umas às outras” (vi 10).
Ilustremos a posição de Locke recorrendo ao seu exemplo favorito: a proposição ‘O ouro é
fixo’.10 Nunca podemos obter certeza sobre sua verdade, pois se a palavra ‘ouro’ denotar uma
espécie definida pela Natureza por meio de uma essência real, é evidente que, não conhecendo
quais substâncias particulares são dessa espécie (pois não temos qualquer idéia clara dessa
essência real), não poderemos afirmar nada universalmente com certeza acerca do ouro. E se, por
outro lado, ‘ouro’ denotar uma espécie determinada por sua essência nominal, por exemplo a
idéia complexa de um corpo de uma determinada cor amarela, maleável, fusível e pesado, as
únicas qualidades que com certeza poderemos atribuir universalmente ao ouro são aquelas cujas
idéias tenham conexão necessária, que possa ser descoberta, com as que formam essa essência
nominal. Mas pelo que foi visto acima, isso só ocorre com as referentes a um mesmo sentido.
Saberemos com certeza que a proposição ‘Nenhum ouro é azul’ é verdadeira, por exemplo. Mas
não sendo capazes de descobrir qualquer conexão necessária da idéia de fixidez com aquelas
idéias, ou com o seu conjunto, nunca teremos certeza se o ouro é ou não fixo, a menos que
entre idéias de qualidades primárias: ‘Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar [ao mesmo tempo]’.
10 Esse exemplo aparece inúmeras vezes ao longo do Essay; ver e.g. II xxiii 10, IV vi 8, 9, 46 ss., xii 9.
9
modifiquemos a essência nominal do ouro, de modo a incluir a idéia de fixidez. Porém neste caso
a proposição ‘O ouro é fixo’ expressará uma verdade puramente verbal, que nada instrui sobre o
mundo. E o problema continuará se colocando com relação às demais qualidades, como a
solubilidade em aqua regia, a ductilidade, etc., e nunca poderá ser eliminado.
Locke conclui que nosso conhecimento universal de coexistência sobre substâncias é
extremamente reduzido11, incluindo apenas: 1) as proposições referentes aos poucos casos de
conexão entre idéias de qualidades primárias que podem ser descobertas; 2) as proposições do
tipo ‘Nenhum ouro é azul’; e 3) aquelas a que Locke chama trifling, que nada acrescentam ao
conhecimento das coisas, mas “apenas ensinam a significação das palavras” (viii 7); alguns
exemplos fornecidos por ele são: ‘O chumbo é um metal’, ‘Todo ouro é fusível’, ‘Todo homem é
um animal’ (viii 4, 5 e 6), subentendendo-se que o que está sendo predicado dos sujeitos faz parte
de suas essências nominais.
Ficam assim excluídas do âmbito do conhecimento praticamente todas as proposições
universais “instrutivas” (iii 26) sobre o mundo exterior, tais como: ‘Todo homem será
envenenado pela cicuta’; ‘Nenhum homem pode se nutrir de madeira ou de pedras’ (vi 15), e as
leis científicas de tipo fenomenológico em geral.
4. O estatuto epistemológico das leis científicas: a via a posteriori
Notemos que, aparentemente, Hume beneficiou-se dessa análise de Locke, pois ele assume de
partida que o conhecimento de proposições dessa classe não cai no âmbito das relações de idéias,
dedicando-se a mostrar que, enquanto expressão de questões de fato também não são seguras. O
fato de Hume embutir a primeira dessas teses na sua distinção preliminar entre relações de idéias
11 “This [...] is yet very narrow, and scarce any at all” (iii 10). No parágrafo 13 do capítulo vi, Locke diz que o
“julgamento [judgment] pode ir mais longe; mas isso não é conhecimento. [...] Homens inquisitivos e observadores
possivelmente podem, por esforço de julgamento [strength of judgment], penetrar além; e, com base em
probabilidades tomadas de observações cuidadosas, e sugestões [hints] bem dispostas, podem freqüentemente supor
acertadamente [guess right] acerca do que a experiência ainda não lhes descobriu. Mas isso ainda será suposição
[guessing]; importa apenas em opinião, e não possui aquela certeza que é necessária ao conhecimento.”
10
e questões de fato12 não implica que seja uma tese trivial, especialmente para o contexto da época
de Locke.
Quanto à segunda tese, embora evidentemente as contribuições de Hume para o seu estudo
sejam fundamentais, deve-se notar que o próprio Locke iniciou as investigações sobre ela. Não
obstante o papel primordial atribuído por Locke à experiência seja o de fonte das idéias, admite
que ela pode fornecer conhecimento direto de proposições particulares sobre substâncias, a
saber, a coexistência de uma determinada idéia com uma idéia particular de substância. Chama
isso de “conhecimento sensitivo” (ver e.g. iii 29), estendendo assim o significado dessa
expressão, introduzida inicialmente para o conhecimento de existência real dos objetos materiais,
conforme indiquei acima. 13
Como naquela ocasião, ocorre aqui uma efetiva ruptura com o empirismo de idéias, desta
vez ainda mais significativa, pois se trata de oferecer uma abordagem epistemológica distinta a
proposições do mesmo tipo, ou seja, não-existenciais: enquanto que algumas delas, como por
exemplo o teorema de Pitágoras, têm seu conhecimento estabelecido a priori, pela via das idéias,
outras, como a proposição de que todo ouro é fixo, e em geral as leis fenomenológicas das
ciências naturais, não podem ser conhecidas desse mesmo modo.
Reconhecendo, porém, a importância dessa classe de proposições para a ciência e para o
homem comum, Locke não se acomoda a um ceticismo puro e simples a seu respeito. Vai, pois,
na direção do senso comum e de análises filosóficas empiristas anteriores à sua, como por
exemplo a de Gassendi,14 e procura aborda-las a partir de casos particulares, a seu turno tratados
12 Pode ser significativo que Hume só faça isso na Enquiry, não no Treatise, texto em que o débito de Hume a Locke
geralmente não é tão bem dissimulado.13 Uma distorção grave sobre esse ponto está presente na análise da epistemologia de Locke feita por Woolhouse
(1994). Ele não percebe que no caso de proposições particulares Locke não tem nenhum escrúpulo de afirmar que
temos de fato conhecimento. Conhecimento sensitivo particular de coexistência é conhecimento certo para Locke.
Em IV xii 9, ao comentar mais uma vez o exemplo da fixidez do ouro, Locke diz: “Here again for assurance, I must
apply my self to Experience; as far as that reaches, I may have certain Knowledge, but no further” (grifei). Não há
aqui nada semelhante à ressalva feita por Locke no caso do conhecimento sensitivo de existência, de que na verdade
ele apenas “passa pelo nome de conhecimento”. Por causa dessa falha interpretativa Woolhouse é levado a concluir
que Locke teria tido “pouco interesse no que veio a ser conhecido como o problema da indução” (p. 155), em
contraste direto com o que passo a defender a seguir.14 Para esse ponto, ver Ayers 1991, pp. 14 ss. Ayers nota, incidentalmente, que o próprio Locke começara por aí, no
Draft A do Essay, datado de 1671, quase duas décadas portanto antes da publicação do livro.
11
por um empirismo proposicional. “A experiência tem de me ensinar aqui o que a razão não
pode”, diz Locke (xii 9).
Locke nota, porém, que essa experiência evidentemente não fornece certeza senão sobre o
que já foi experimentado; jamais redunda em conhecimento universal, ou mesmo acerca de casos
não observados. Saberemos, por exemplo, que este determinado pedaço de ouro mostrou-se fixo
em tais e tais testes a que foi submetido. Não podemos, porém afirmar que se mostrará fixo em
outros testes, e muito menos que todo objeto de ouro é fixo. Vejamos algumas passagens
importantes sobre esse ponto.
No parágrafo 14 do capítulo iii, após repetir que o conhecimento das substâncias oferecido
pelo acordo ou desacordo entre as idéias é muitíssimo reduzido, Locke acrescenta:
Em todas essas investigações o nosso conhecimento vai muito pouco além de nossa experiência. [...] Ficamos
apenas com a assistência de nossos sentidos para conhecer que qualidades [as substâncias] contêm. [...] Pois
essa coexistência não pode ser conhecida além do que é percebida; e ela não pode ser percebida a não ser em
objetos particulares, pela observação de nossos sentidos, ou, em [objetos] gerais [i.e. idéias abstratas], pela
conexão necessária das próprias idéias. (iii 14)
E no parágrafo 28 desse mesmo capítulo lemos:
Pois onde [a conexão entre as idéias] nos falte, somos cabalmente incapazes de conhecimento universal e
certo; e ficamos [...] apenas com a observação e o experimento que, quão estreitos e confinados são, quão
distantes estão do conhecimento geral, não precisa ser dito. (iii 28)
A incerteza sobre a próxima ocorrência de um fenômeno que vem se repetindo é exposta
explicitamente em iii 25:
Não podemos estar mais seguros sobre [as propriedades e modos de operação dos corpos] do que alcançam
uns poucos testes que fazemos. Mas se eles darão certo de novo, não podemos ter certeza. Isso impede nosso
conhecimento certo de verdades universais sobre os corpos naturais. (iii 25)
Estamos pois diante de um conjunto de afirmações que efetivamente redundam no
reconhecimento da insolubilidade daquele que, na terminologia contemporânea, seria chamado de
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“problema da indução”.15 A conseqüência é expressa por Locke em termos da impossibilidade de
uma “filosofia científica” (iii 26), ou “uma ciência perfeita dos corpos”:
As coisas que – tão longe quanto vá a nossa observação – observamos de maneira constante ocorrer
regularmente, podemos concluir que agem por uma lei que as determina; porém por uma lei que
desconhecemos. Embora causas funcionem de modo estável, e efeitos fluam delas de modo constante, suas
conexões e dependências não podendo ser descobertas em nossas idéias, só podemos ter um conhecimento
experimental a seu respeito. [...] Mas quanto a uma ciência perfeita dos corpos naturais [...] concluo ser
esforço vão procurá-la. (iii 29; grifei)
No capítulo xii, sobre “a melhoria de nosso conhecimento”, após expressar a “suspeita” de
que “não se pode fazer da filosofia natural uma ciência” (10), Locke tenta tranqüilizar o homem
comum e o cientista, esclarecendo que não pretende “desprezar ou desencorajar o estudo da
Natureza” (12), mas apenas advertir que não devemos esperar conhecimento onde ele não pode
ser obtido.
Não desejando que a falta de conhecimento propriamente considerado signifique ignorância
plena, onde observações sistemáticas possam ser realizadas, Locke irá desenvolver, nos capítulos
xiv, xv e xvi, um interessante estudo sobre os “graus do assentimento” inferiores à certeza. Em
sua análise das “bases do assentimento”, procura assegurar às leis naturais uma posição alta na
escala da confiabilidade epistêmica. Propõe, assim, que no caso do “funcionamento regular de
causas e efeitos no curso ordinário da Natureza”, se o assentimento geral de todos os homens em
todas as épocas concordar com a nossa experiência constante e sem falhas, as “probabilidades se
elevam tão próximo da certeza, que passam a governar os nossos pensamentos de modo tão
absoluto, e a influenciar tão plenamente nossas ações como a demonstração mais evidente” (xvi
6).
Resumindo esta seção: Forçado pelo respeito ao senso comum e à filosofia natural, Locke
saiu novamente da via das idéias. Nem assim encontrou um modo de fundar o conhecimento de
verdades universais sobre substâncias. Prosseguiu então, adentrando o domínio da probabilidade.
Caberia às épocas futuras – ao século XX, em especial – retomar e aperfeiçoar a tosca, porém
inovadora proposta de Locke nessa direção.15 Parece injustificável a generalizada omissão de Locke na vasta literatura sobre o problema da indução. Ver e.g.
Russell 1945, Smart 1968, Goodman 1983, Popper 1972a e 1972b, Hacking 1975 e os artigos reunidos em
Swinburne 1974. Uma exceção é Milton 1987; porém seus brevíssimos comentários sobre Locke estão muito longe
de fazer justiça às contribuições de Locke sobre o assunto.
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5. As leis não-fenomenológicas. A via das hipóteses.
Passo agora a considerar brevemente uma outra contribuição de Locke no sentido do alargamento
do referencial empirista. Trata-se de seu reconhecimento de que nem todas as leis das ciências
são do tipo que vem sendo considerado até aqui, ou seja, leis fenomenológicas. Ele observa que o
domínio das proposições que são apenas prováveis divide-se naquelas sobre “questões de fato,
que, caindo sob a observação, são capazes de serem testemunhadas pelos homens; [e naquelas]
sobre coisas que, escapando à descoberta de nossos sentidos, não são capazes de tal testemunho”
(xvi 5). O primeiro caso engloba as leis científicas fenomenológicas; o segundo, as leis científicas
introduzidas a título de hipóteses, e não a título de generalizações indutivas, como poderia ser o
caso das primeiras.
Este segundo domínio encontrava-se ainda em fase de implantação científica e
reconhecimento filosófico, por assim dizer. Seguindo, porém, a elite científica e filosófica da
época (Descartes, Newton, Boyle, etc.), Locke reconheceu sua importância, tanto ao recorrer a
hipóteses em seu próprio sistema filosófico – notadamente a “hipótese corpuscular” (IV iii 16, II
viii) –, como ao comentar seu estatuto epistemológico.16
Vejamos, a título ilustrativo, estas interessantes considerações do parágrafo 13 do capítulo
xii sobre o “verdadeiro uso de hipóteses”. Após haver alertado, no parágrafo anterior, que
“devemos tomar cuidado com hipóteses e princípios errados”, ele adita:
Não que não possamos, para explicar os fenômenos da Natureza, fazer uso de nenhuma hipótese provável
qualquer que seja; hipóteses, se forem bem feitas, são pelo menos grandes auxiliares da memória, e
freqüentemente direcionam-nos para novas descobertas. O que quero dizer, porém, é que não devemos adotar
qualquer uma com demasiada pressa, [...] antes que tenhamos examinado muito bem os detalhes, feito vários
experimentos com a coisa que queremos explicar com nossa hipótese, e verificado que ela concorda com
todos eles; que os nossos princípios [i.e., hipóteses] nos hajam conduzido bem ao longo desses experimentos,
e que não são inconsistentes com um fenômeno natural quando parecem acomodar e explicar outro. E que
pelo menos tomemos cuidado para que o nome princípios não nos engane, nem se imponha sobre nós,
fazendo-nos aceitar por uma verdade inquestionável o que na realidade é, quando muito, uma conjetura muito
duvidosa, como é o caso da maioria das (e quase diria de todas as) hipóteses da filosofia natural. (xii 13)
16 Uma análise abrangente da postura de Locke diante das hipóteses é feita em Farr 1987. Para uma opinião
divergente, ver Yost 1951.
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Assim, Locke adverte contra a atribuição de um grau epistêmico demasiadamente elevado
às hipóteses, ressalta sua função heurística, põe como condições de sua aceitação a sujeição a
testes e a sua abrangência, destacando, por fim, a natureza irremediavelmente conjetural das
hipóteses da filosofia natural.
Não podemos deixar de notar a atualidade dessas idéias. Ademais, é evidente que têm
muito pouco a ver com o empirismo de idéias. As hipóteses não são tomadas como construídas a
partir de idéias, mas introduzidas prontas, como proposições, freqüentemente motivadas por
analogias (xvi 12). Tampouco Locke sugere que devam ser traduzidas ou reduzidas a idéias. Sua
significatividade e legitimidade epistêmica derivam de eventualmente exemplificarem bem as
virtudes que destaquei no parágrafo precedente.
Além disso, James Farr mostrou, num artigo recente (1987), que Locke ressaltou ainda
outros traços teóricos e metodológicos importantes na avaliação de hipóteses. Farr examinou, em
particular, um pequeno manuscrito de Locke intitulado “Método”, datado de 1694 (transcrito
integralmente no artigo de Farr). Nesse manuscrito fica claro, por exemplo, o reconhecimento de
Locke que uma certa dose de tolerância com as falhas que as hipóteses evidenciem nas etapas
iniciais de seu desenvolvimento pode ser importante, e que hipóteses não devem ser avaliadas
apenas em comparação com a experiência, mas também com hipóteses alternativas (temas caros a
Lakatos, se lembrará).
Mas o aspecto mais interessante para o assunto central destas notas é o relativo à sugestão
de Locke de que as hipóteses devem ser examinadas dentro de “sistemas” teóricos mais amplos, e
não isoladamente. Comentando a situação de escolha entre duas hipóteses, Locke observa:
Mas para mostrar qual dos lados tem a melhor pretensão à verdade e à adesão de seguidores, os dois sistemas
completos devem ser comparados e considerados de forma integral, para que se veja qual é o mais consistente
em todas as suas partes, qual é o menos obstruído por incoerências ou absurdos, e qual o mais isento de
princípios emprestados e noções ininteligíveis. Este o meio mais correto de buscar a verdade e o mais seguro
de não nos enganar de que lado ela está. (Apud Farr 1991, p. 71.)
Se Quine tivesse lido isso, bem como ponderado os pontos que destaquei na seção
precedente, talvez ele tivesse formado uma melhor opinião acerca de Locke. Principiando embora
suas investigações empiristas no empirismo de idéias – e havia boas razões para isso, mas esse é
um outro assunto –, Locke soube transcendê-lo em duas etapas importantes, ambas referentes ao
estudo do estatuto epistemológico das leis científicas. Primeiro, constatado o bloqueio do
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conhecimento a priori das verdades universais sobre substâncias, Locke introduziu a noção de
“conhecimento sensitivo” de proposições particulares de coexistência, sugerindo o recurso a
probabilidades para o tratamento de suas generalizações. Depois, reconhecendo que nem todas as
proposições relevantes da ciência se enquadram nesse caso, examinou de forma breve, porém
bastante apropriada, a via das hipóteses, chegando por aí bem próximo ao holismo
epistemológico defendido por Quine.
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