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Misael Batista do Nascimento MINISTÉRIOS E DONS ESPIRITUAIS O CRISTÃO FRUTÍFERO

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Misael Batista do Nascimento

MINISTÉRIOSE DONS ESPIRITUAIS

O CRISTÃOFRUTÍFERO

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O cristão frutífero Ministérios e dons espirituais

Misael Batista do Nascimento 2019

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© 2019 Misael Batista do Nascimento

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou qualquer tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação, sem prévia autorização, por escrito, do autor.

Conversão para e-Book: Misael Batista do Nascimento

Dados para contato: Fone: 55-017-98149-4342

1ª edição – 2019

NASCIMENTO, Misael Batista.

O cristão frutífero: ministérios e dons espirituais/ Misael Batista do Nascimento.

São José do Rio Preto: Misael Batista do Nascimento, 2019.

1. Estudo bíblico 2. Pneumatologia 3. Eclesiologia. 4. Dons espirituais 5. Ministérios. 6. Serviço cristão. 7. Teologia do pacto. 8. Calvinismo. 9. Assembleia de Westminster. 10. Cessacionismo 11. Pentecostalismo 12. Novos apóstolos I. Título

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Dedicado à honra do Cordeiro que foi morto e com o seu sangue comprou para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação,

constituindo-os reino de sacerdotes (Apocalipse 5.9-10).

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Sumário

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8

1. APROXIMAÇÕES NECESSÁRIAS .................................................................................. 10

1.1. AFASTAMENTO, APROXIMAÇÃO E FUSÃO ..................................................................................... 10 1.2. ALGUNS CONCEITOS E IDENTIFICAÇÕES ....................................................................................... 15

1.2.1. Cessacionismo, cessacionismos e cessacionista .......................................................... 16 1.2.2. Pentecostais, carismáticos e novos entusiastas ............................................................ 17

1.3. UMA TENTATIVA DE ABORDAGEM ................................................................................................. 17

2. BATISMO COM O ESPÍRITO SANTO, MINISTÉRIO E CHAMADO ................................ 20

2.1. O PENTECOSTES E O BATISMO COM O ESPÍRITO SANTO ............................................................... 21 2.1.1. O entendimento pentecostal do batismo com o Espírito Santo em Atos ................ 21 2.1.2. Um entendimento mais bíblico do batismo com o Espírito Santo ............................ 25

2.2. MINISTÉRIOS OU SERVIÇOS REALIZADOS PARA DEUS ..................................................................... 27 2.3. O CHAMADO PARA O SERVIÇO ..................................................................................................... 30

3. O SACERDÓCIO DE TODOS OS CRENTES E OS OFÍCIOS DE CRISTO E DA IGREJA ... 34

3.1. TODOS OS CRISTÃOS SÃO SACERDOTES DE DEUS ......................................................................... 34 3.2. O SACERDÓCIO DOS CRENTES IMPLICA SERVIÇO DA IGREJA .......................................................... 36 3.3. O SACERDÓCIO DE TODOS OS CRENTES E OS OFÍCIOS DA IGREJA ................................................. 38 3.4. O ESPÍRITO SANTO FAZ O OFÍCIO TRIPLO DE CRISTO REPERCUTIR NA IGREJA ................................ 40

4. OS DONS DA CRIAÇÃO, OS DONS-SINAIS E OS DONS ESPIRITUAIS ......................... 42

4.1. OS DONS DA CRIAÇÃO OU DA GRAÇA COMUM ............................................................................. 43 4.2. A BÊNÇÃO DOS DONS-SINAIS (PALAVRA E SACRAMENTOS) ........................................................... 44 4.3. A DÁDIVA DOS DONS ESPIRITUAIS ................................................................................................. 45

4.3.1. O que são os dons espirituais ......................................................................................... 45 4.3.2. Quem recebe os dons espirituais .................................................................................. 48 4.3.3. Quantos dons existem ..................................................................................................... 49

5. SOBRE A CONTINUAÇÃO DOS DONS E OFÍCIOS EXTRAORDINÁRIOS ...................... 51

5.1. LEITURAS FUNDACIONAIS DE EFÉSIOS 2.20 .................................................................................. 52 5.1.1. João Crisóstomo: judeus e gentios unidos pela obra de Cristo ................................ 53 5.1.2. Roma: Pedro e a sucessão apostólica como fundamento .......................................... 54

5.2. JOÃO CALVINO: A VERDADE BÍBLICA COMO FUNDAMENTO .......................................................... 56 5.3. JOHN RUTHVEN: A EXPERIÊNCIA DE REVELAÇÃO COMO FUNDAMENTO ......................................... 58

6. PROFECIA FALADA E ESCRITA .................................................................................... 65

6.1. OS PROFETAS BÍBLICOS ................................................................................................................ 65 6.2. POR QUAL RAZÃO DEUS PROVIDENCIOU A ESCRITA DA REVELAÇÃO .............................................. 70 6.3. A IMPLICAÇÃO LÓGICA DE UMA REVELAÇÃO FINALIZADA E ESCRITA .............................................. 71

7. QUATRO DESAFIOS DOS DEFENSORES DA PROFECIA EXTRABÍBLICA ..................... 74

7.1. A PRETENSA AUSÊNCIA DE TEXTOS BÍBLICOS CESSACIONISTAS ...................................................... 74 7.2. PROFECIAS NA IGREJA ATÉ A VOLTA DE CRISTO ............................................................................ 79

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7.2.1. A lacuna da leitura cessacionista de 1Coríntios 13.8-13 ............................................. 79 7.2.2. Orientações e incentivos à profecia em Atos e nos escritos de Paulo ...................... 81 7.2.3. Como a profecia permanece na igreja até a parusia ................................................... 82

7.3. EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS NOMEADAS COMO “REVELAÇÕES” .......................................... 84 7.4. SUFICIÊNCIA INSUFICIENTE ........................................................................................................... 85

8. ACREDITAR, CURAR E REALIZAR MILAGRES ............................................................... 91

8.1. CRENTES EM DEUS QUE OPERA O EXTRAORDINÁRIO ..................................................................... 91 8.1.1. Imprecisões na cosmologia do “mundo encantado” pentecostal ............................. 91 8.1.2. A reforma magisterial, o iluminismo e o naturalismo .................................................. 94 8.1.3. A falácia do extraordinário que se torna ordinário ...................................................... 98

8.2. O DOM DA FÉ ............................................................................................................................... 99 8.3. DONS DE CURAR ........................................................................................................................ 101 8.4. OPERAÇÕES DE MILAGRES .......................................................................................................... 101

9. DISCERNIR ESPÍRITOS, FALAR E INTERPRETAR LÍNGUAS ........................................ 104

9.1. DISCERNIMENTO DE ESPÍRITOS ................................................................................................... 104 9.2. VARIEDADE DE LÍNGUAS ............................................................................................................. 104 9.3. INTERPRETAÇÃO DE LÍNGUAS ...................................................................................................... 104

10. ENSINAR, ACONSELHAR E PRESIDIR ...................................................................... 105

10.1. O DOM DE ENSINAR ................................................................................................................. 107 10.2. O DOM DE ACONSELHAR ......................................................................................................... 108 10.3. O DOM DE DIRIGIR ................................................................................................................... 108

11. SERVIR, DOAR E DEMONSTRAR MISERICÓRDIA .................................................... 111

11.1. SERVIÇO .................................................................................................................................. 111 11.2. CONTRIBUIÇÃO ........................................................................................................................ 111 11.3. MISERICÓRDIA ......................................................................................................................... 111

12. PRODUZIR ARTE, SE CASAR E PERMANECER SOLTEIRO ........................................ 112

12.1. PRODUÇÃO DE ARTE ................................................................................................................ 112 12.2. SE CASAR E PERMANECER CASADO ........................................................................................... 112 12.3. PERMANECER SOLTEIRO ........................................................................................................... 112

13. UMA PALAVRA SOBRE O “DOM” DE EVANGELISTA ............................................... 113

13.1. OBREIROS E OFICIAIS PERMANENTES RECONHECIDOS COMO EVANGELISTAS ............................ 113 13.2. EVANGELISTAS DIFERENCIADOS, AUXILIARES DOS APÓSTOLOS ................................................. 113 13.3. O QUE DIZER DO DOM CONTEMPORÂNEO DE EVANGELISMO OU EVANGELISTA ......................... 116

APÊNDICES 1 A 5 ........................................................................................................... 122

APÊNDICE 1. A PROFECIA MAIS CONHECIDA DE JOEL ............................................... 124

A1.INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 124 A1.1. QUANDO O ESPÍRITO SANTO SERÁ DERRAMADO ..................................................................... 124 A1.2. QUEM RECEBERÁ O ESPÍRITO SANTO ....................................................................................... 126 A1.3. O QUE O ESPÍRITO SANTO REALIZA .......................................................................................... 126 A1. CONCLUSÃO .............................................................................................................................. 130

APÊNDICE 2. ÁREAS DE INTERESSE E POSSÍVEL CHAMADO ....................................... 132

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APÊNDICE 3. MARTINHO LUTERO E OS ENTUSIASTAS ................................................ 135

PARTE 1 ............................................................................................................................................ 135 PARTE 2 ............................................................................................................................................ 136 PARTE 3 ............................................................................................................................................ 138

APÊNDICE 4. ENTUSIASMO E ENTUSIASMADOS .......................................................... 141

A.4.1. OS ENTUSIASTAS DA REFORMA ............................................................................................... 141 A.4.2. SUBSTÂNCIA ........................................................................................................................... 141 A.4.3. ESTILO .................................................................................................................................... 142

APÊNDICE 5. O PROTESTANTISMO ACABOU E OS RADICAIS GANHARAM ................ 144

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 151

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Introdução

Estes estudos beneficiarão cristãos interessados em conhecer o que a Bíblia ensina sobre os ministérios e dons espirituais.

João Calvino afirmou o seguinte:

Os crentes são ricamente equipados com diferentes dons, mas é preciso que cada um reconheça que o Espírito de Deus lhe proporcionou tudo quanto possui, porquanto ele derrama seus dons, assim como o sol difunde seus raios em todas as direções.1

O que são os dons espirituais? Qual sua relação com as atividades de uma igreja e, mais ainda, o que eles têm a ver com o serviço do cristão no mundo? Os dons estendem a obra de Cristo — a redenção — ou são recursos extras, destinados a realizar uma obra adicional do Espírito Santo? Qual ponto de vista é o mais bíblico, o daqueles que afirmam que alguns ofícios e dons mencionados na Bíblia são extraordinários, e portanto, cessaram ou o daqueles que defendem a atualidade de todos os ofícios e dons citados na Bíblia? Podemos definir que um cristão ou uma igreja são “poderosos” ou “frios” baseados em sua percepção e prática dos dons espirituais? Nestes estudos respondemos a estas perguntas, analisando tópicos ligados aos serviços (ministérios) da igreja.

Escrevi uma primeira versão destes estudos em 1997, para uso em classes da escola dominical da Igreja Presbiteriana Central do Gama. O Senhor se manifestou graciosamente chamando, motivando e capacitando pessoas para o serviço. Quando deixei a igreja, em 2009, ainda funcionavam alguns ministérios iniciados naquele primeiro ciclo de estudos.

O material foi alterado algumas vezes, para atualização bibliográfica, em 1999 e 2001. Em 2004, tudo foi reorganizado e reescrito com o título O Cristão Frutífero e esse foi o conteúdo mais compartilhado na internet, ao ponto de ser citado em artigo da Wikipédia.2 Apesar de sua popularidade, uma interpretação mais cuidadosa de algumas passagens bíblicas me conduziu a uma mudança de entendimento. Por isso, entre 2008 e 2009, a fim de apresentar as verdades dentro de uma moldura mais consistente com a doutrina sadia, o texto passou por sua mais extensa revisão e foi publicado em coautoria com Ivonete Silva Porto em três volumes, sob os títulos O Espírito Santo e o Discípulo no Pacto, Introdução aos Ministérios e Dons Espirituais e O Ofício de Pastor Mestre.3 Os volumes abordaram questões interessantes, que não foram incluídas no presente texto.

Em 2011 eu consultei o material em um diálogo com colegas de presbitério e em 2014 e 2019, retomei o título O Cristão Frutífero, em palestras ministradas na Primeira Igreja Presbiteriana de Itajaí, SC.

Os objetivos principais destes estudos de 2019 são:

1. Ajudar o leitor a conhecer o ensino da Bíblia sobre os ministérios, o chamado para o serviço e os dons espirituais.

1 CALVINO, João. 1Coríntios. São José dos Campos: Fiel Editora, 2013, p. 435-436. (Série Comentários Bíblicos). Logos Software. 2 WIKIPÉDIA. Cessacionismo. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Cessacionismo>. Acesso em: 21 jun. 2019. 3 Estes estudos estão disponíveis para download gratuito na página da primeira aula do curso O Cristão Frutífero, no site do Centro de Treinamento Presbiteriano, em: <http://www.ipbriopreto.org.br/ctp/aula/aula-01-rotulos-identicacoes-e-juizos/>. Acesso em: 15 abr. 2019.

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2. Motivar a igreja para servir a Deus na dependência e poder do Espírito Santo. 3. Fornecer subsídios para que os cristãos não se sintam acuados por aqueles que

insistem que o padrão de espiritualidade fiel exige que todos os ofícios e dons mencionados no NT existam na igreja de hoje.

Oro para que estes estudos contribuam para que a igreja seja viva, simples e unida, como família de discípulos de Jesus Cristo. Que os cristãos adorem ao Senhor, evangelizem, vivam comunhão e dediquem a Deus suas vidas, recursos e dons, na dependência do Espírito Santo. Que isso resulte no bem da igreja, em serviço ao Criador no mundo e em glória dada somente a ele.

Misael Batista do Nascimento, julho de 2019.

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1. Aproximações necessárias

Eu me interesso pelos ministérios e dons como cristão, que abraça a fé bíblica propugnada pela Reforma Magisterial do séc. 16, e que acredita que Deus soberanamente chama pessoas para amá-lo e servi-lo, capacitando-as com dons e realizando milagres, em resposta às orações. Como gestor soberano, Deus não apenas institui serviços (ministérios) e funções (ofícios), bem como distribui capacidades (dons). Ele também é livre para modificá-los, quando a obra ou tarefa assinalada apresenta novas demandas, ou fazê-los cessar, assim que esta seja completada.

A Reforma Magisterial do séc. 16 é distinta da Reforma Radical. A primeira é assim chamada porque foi apoiada ou tornada oficial “pelos magistrados, as autoridades civis”.4 Capitaneada por Martinho Lutero, Ulrich Zwinglio e João Calvino, a Reforma enfatizou o retorno às Sagradas Escrituras como revelação ad extra, final e suficiente das verdades de Deus, necessária à pregação, como chamado externo do evangelho e aplicada no coração dos eleitos pelo Espírito Santo, para sua salvação, santificação, consolação e direção para a vida e o serviço a Deus. Esta concepção conduziu os reformadores ao lema sola Scriptura, implicando que a igreja e o cristão não precisam de novas revelações do Espírito Santo.

A Reforma Radical protestou contra a Igreja de Roma e também contra a Reforma Magisterial. “Considerada como uma entidade, representou uma crítica enérgica ao corpus christianum em suas mutações: protestante histórica e católica tridentina”.5 Pode ser identificada nos “profetas de Zwickau” (Nicolas Storch, Thomas Drechsel e Marcus Thomæ)6 e em Thomas Müntzer e Andreas Carlstadt,7 todos hostis a Lutero. E também no movimento anabatista começado por Conrad Grebel e Félix Mantz, inicialmente discípulos e depois oponentes de Zwinglio, em seguida conduzido por Meno Simons.8 Os adeptos da Reforma Radical foram chamados de “entusiastas”, por sua ênfase de fé e ação mobilizadas por “Deus dentro”, o Espírito Santo dispensando-se em novas revelações.

Os antigos faziam referência a esse estímulo do homem interior como motivado por influência divina. Consideravam as pessoas assim excitadas como que possuídas ou possuindo um deus dentro de si. Daí eram chamadas entusiastas (ἔνθεος). Em teologia, pois, os que ignoram ou rejeitam a orientação das Escrituras, e presumem ser guiados por uma influência divina interna para o conhecimento e obediência da verdade, são propriamente chamados entusiastas. Esse termo, contudo, tem sido em grande medida superado pela palavra místicos.9

1.1. Afastamento, aproximação e fusão No movimento evangélico, os entendimentos (magisterial e radical) não apenas sobre revelação, mas sobre ministérios e dons espirituais, foram mantidos distintos e afastados por um tempo, depois, começaram a se complementar e mesclar (o enfrentamento inicial cedeu espaço para diálogo e aproximação). Em seguida, foi iniciada uma fusão que prossegue, gradativamente.

4 GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. 2. ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 32. 5 GEORGE, op. cit., p. 297. 6 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, Um Destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012, p. 248. 7 FEBVRE, op. cit., p. 249. 8 GEORGE, op. cit., p. 299-300. 9 HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, 2001, p. 46. Logos Software.

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O diálogo e aproximação podem ser vistos com bons olhos, afinal de contas, ambas as partes envolvidas acreditam no Espírito Santo. Por um lado, comemora-se o fato das crenças reformadas ganharem tento nas redes sociais e igrejas reformadas receberem gente advinda do pentecostalismo. Além disso, pregadores reformados são cada vez mais convidados para falar em eventos e igrejas pentecostais. Do lado pentecostal, celebra-se que tradicionais e reformados10 estão mais propensos a abraçar uma leitura concordante com a continuidade senão dos ofícios, pelo menos de alguns dons extraordinários. Acredita-se que isso fomenta uma oportunidade ímpar para iniciativas conjuntas centradas no evangelho, de serviço e testemunho cristão na cultura.11

Nem todos, porém, se acham prontos a celebrar a fusão em andamento, não apenas pelo desconforto com a fluidez de sistemas, conceitos e posições, mas também por uma percepção, ainda não devidamente ponderada, de que, nesse derretimento, a maior parte dos construtos magisteriais está evaporando.

E há quem sopese que é cedo para avaliar o que está acontecendo. Como medir, por exemplo a inserção da fé reformada nas redes sociais? A internet é uma plataforma interessante de publicação, pois propicia retorno quase instantâneo sobre o que é postado e até pessoas idosas são hoje beneficiadas com cultos transmitidos via streaming. Apesar disso (e dentre outras coisas), é plausível sugerir que os textos multissemióticos ou multimodais, quase onipresentes na rede, têm potencial para induzir à fragmentação e superficialidade informacional.12 O autor destes estudos recebeu um post compartilhado — uma figura estilizada e, sobre ela, a transcrição de uma frase atribuída a Martinho Lutero. O usuário típico visualiza, curte e compartilha, sem conferir se realmente Lutero disse ou escreveu o que foi postado. E poucos leem uma obra completa de Lutero. Com o passar do tempo, a mente vai cada vez mais se parecendo com um quadro de lembretes post-it, constituída de pedaços diminutos de informação (ou desinformação). As ponderações de Byung-Chul Han, sobre o impacto da mídia digital sobre nosso pensar e viver, nos ajudam a ter uma noção das dimensões do problema:

Somos desprogramados por meio dessa nova mídia, sem que possamos compreender inteiramente essa mudança radical de paradigma. Arrastamo-nos atrás da mídia digital, que, aquém da decisão consciente, transforma decisivamente nosso comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso pensamento, nossa vida em conjunto, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual.13

A cultura digital, por sua vez, desdobra a contemporaneidade, que “diz respeito aos tempos recentes, dos últimos vinte anos”,14 emoldurada por globalização e mundialização. O “contemporâneo” é uma amálgama de modernidade e pós-modernidade, engendrando o

10 Igrejas podem ser reformadas e tradicionais, mas é possível uma igreja ser tradicional e não reformada. É o caso da Igreja Batista Regular, denominação tradicional, por não acolher o pentecostalismo e ao mesmo tempo, não reformada, por abraçar o dispensacionalismo. 11 Cf. CARSON, D. A.; KELLER, Timothy. (Org.). O Evangelho no Centro: Renovando Nossa Fé e Reformando Nossa Prática Ministerial. São José dos Campos: Editora Fiel, 2014, edição do Kindle. Especialmente o apêndice de documentos, p. 361-381. 12 Roxane Rojo e Jacqueline Barbosa esclarecem que “texto multimodal ou multissemiótico é aquele que recorre a mais de uma modalidade de linguagem ou a mais de um sistema de signos ou símbolos (semiose) em sua composição” (ROJO, Roxane; BARBOSA, Jacqueline P. Hipermodernidade, Multiletramentos e Gêneros Discursivos. São Paulo: Parábola Editorial, 2015, p. 108). 13 HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 10. 14 PECCININI, Daisy. Módulo VII. Contemporaneidade. In: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.macvirtual.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo7/contemp/index.html>. Acesso em 21 jun. 2019.

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estado de coisas que os teóricos tentam compreender e definir como hipermodernidade, cultura líquida ou da leveza,15 dificultando abordagens sistêmicas também na Teologia. O risco nesse contexto é o da incapacitação para abordar, compreender e articular crenças como sistemas e a capitulação diante de um tipo de utilitarismo16 que não vê problema em assumir, simultaneamente, doutrinas excludentes.

Em computação, os sistemas Windows e Unix (com seus derivados macOS, IOS, iPadOS, Linux e Android) podem conversar entre si, mas grosso modo, um dispositivo que roda o Windows não rodará o macOS nativamente. Fazer um sistema operacional funcionar dentro de outro exige um recurso denominado “virtualização”, ou seja, uma espécie de “farsa computacional”, pois o sistema acessará o hardware físico através de uma máquina emulada, virtual. O que faz um sistema ser um sistema é o fato de ele ser fechado e distinto de outros sistemas. Quanto à teologia, para os menos entusiasmados com a fusão, as distinções indicativas das bordas dos sistemas se desbotam e somem. Estes (pouco entusiasmados) insistem que os reformadores magisteriais consideravam bíblico e necessário, batalhar contra a proposição dos radicais, de possibilidade de novas revelações do Espírito Santo. O entendimento de que alguns ofícios e dons mencionados no NT eram temporários e cessaram, se encaixava em um sistema bíblico-teológico coerente. Isso contrasta com a situação atual, em que se articula uma “fé reformada” distribuída em rede como pacotes de doutrina, cada um funcionando independentemente, como aplicativo, não como parte de um sistema operacional completo. Desta feita, ao mesmo tempo em que ocorre uma migração de pentecostais e neopentecostais para as igrejas reformadas, um contingente de reformados não vê problema em acolher novas revelações proféticas.

Mas não apenas isso. Com raras exceções, cinco décadas atrás, a literatura que defendia a continuidade dos dons extraordinários era frágil exegética e teologicamente, mais baseada em relatos testemunhais e formulações ancoradas em textos-prova. Atualmente, eruditos respeitados explicam e defendem a atualidade da revelação profética ou de outros ofícios e dons extraordinários.17

15 Zygmunt Bauman contribui refletindo sobre cultura (2012) e tornando popular a ideia de liquidez — da modernidade e da cultura (2001, 2013); cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, edição do Kindle; BAUMAN, Zygmunt. Ensaios Sobre o Conceito de Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, ePub; BAUMAN, Zygmunt. A Cultura no Mundo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Depois de encontrar a ideia de liquidez não apenas em Bauman, mas também nos escritos de Marcos Novac, Gilles Deleuze, Michel Maffesoli, Félix Guattari e Peter Sloterdijk, Lucia Santaella (2007, p. 14-29) reflete sobre linguagens líquidas; cf. SANTAELLA, Lucia. Linguagens Líquidas na Era da Mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. (Comunicação). Em 2004, Gilles Lipovetsky explica cultura utilizando o termo “hipermodernidade”, depois, pondera sobre uma “cultura da leveza e do ligeiro”; cf. LIPOVETSKY, Gilles. Os Tempos Hipermodernos. 4. Reimpressão. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004; LIPOVETSKY, Gilles. Da Leveza. Lisboa: Edições 70, 2016. (Extra-colecção); sobre o impacto disso para o pensamento investigativo, cf. KAKUTANI, Michiko. A Morte da Verdade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018. 16 O utilitarismo é tanto uma teoria ética, quanto uma concepção de vida; “uma forma de consequencialismo, em que as consequências relevantes são identificadas em termos de graus de felicidade”; cf. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 397. A partir de uma perspectiva utilitarista, a fim de agregar multidão e aumentar o número de fiéis no curto prazo, uma igreja pode ser calvinista no currículo da escola dominical, arminiana na evangelização e pentecostal nos ministérios e culto. 17 Cf. GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2000; GRUDEM, Wayne. (Org.). Cessaram os Dons Espirituais? 4 Pontos de Vista. São Paulo: Editora Vida, 2003. (Coleção Debates); GRUDEM, Wayne. O Dom de Profecia: Do Novo Testamento aos Dias Atuais. São Paulo: Editora Vida, 2004; FEE, Gordon D. Paulo: O Espírito e o Povo de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2015; STORMS, Sam. Dons Espirituais: Uma Introdução Bíblica, Teológica e Pastoral. São Paulo: Vida Nova, 2016; KEENER, Craig S. O Espírito na Igreja. São Paulo: Vida Nova, 2017; RUTHVEN, Jon Mark. Sobre a Cessação dos Charismata. Natal: Editora Carisma, 2017; KEENER, Craig S. A Hermenêutica do Espírito. São Paulo: Vida Nova, 2018; KEENER, Craig S. A Mente do Espírito. São

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Por fim, uma evidência de que, na fusão, ocorre evaporação dos construtos da reforma magisterial é a proposição, cada vez mais repetida, de que a crença magisterial, de que alguns ofícios e dons do NT cessaram, (1) apesar de ser ancorada em passagens da Bíblia, não possui peso exegético suficiente; (2) é contaminada pelo iluminismo; (3) é naturalista e deísta; (4) configura, na verdade, descrença, pois não espera que Deus opere milagres hoje; (5) é oposta a Deus.

Retornando ao ponto inicial, herdeiros das duas reformas, magisterial e radical, se sentaram para conversar e essa aproximação encetou uma fusão tida como promissora e ainda em curso. No processo de fusão, a concepção dos ministérios e dons dos reformados magisteriais sofre evaporação, sob crítica de não dar conta, biblicamente, das demandas ministeriais vigentes.

Se as acusações contra o cessacionismo da Reforma Magisterial vingarem, esta última corre risco de sequer poder ser chamada de cristã (pois não há possibilidade de acordo entre fé e incredulidade, entre teísmo cristão e deísmo e entre submissão e oposição a Deus). Esse estado de coisas demanda averiguação.

A inquirição se faz necessária, também, pelo simples fato de que alguns sugerirem que o melhor é não este assunto é verificável. Desde os primórdios da era cristã, crenças e práticas relacionadas aos ministérios e dons do Espírito Santo demandam esforço de entendimento dos seguidores de Jesus Cristo. Bruner afirma que “pelo menos a partir de Montano, talvez a partir de Corinto, os dons do Espírito têm parecido ser mais fonte de embaraço do que de encorajamento para a igreja cristã”.18 Um impulso compreensível é o de aplicar ao tema, inadvertidamente, a parábola escrita por John Godfrey Saxe, sobre os seis homens do Hindustão.

Eram seis homens do Hindustão, inclinados para aprender muito, Que foram ver o Elefante (embora todos fossem cegos) Cada um, por observação, poderia satisfazer sua mente.

O Primeiro aproximou-se do Elefante, e aconteceu de chocar-se Contra seu amplo e forte lado. Imediatamente começou a gritar: “Deus me abençoe, mas o Elefante é semelhante a um muro”.

O Segundo, pegando uma presa, gritou, “Oh! O que temos aqui Tão redondo, liso e pontiagudo? Para mim isto é muito claro Esta maravilha de Elefante é muito semelhante a uma lança!”

O Terceiro aproximou-se do animal e aconteceu de pegar A sinuosa tromba com suas mãos. Assim, falou em voz alta: “Vejo”, disse ele, “o Elefante. É muito parecido com uma cobra!”

O Quarto esticou a mão, ansioso e apalpou em torno do joelho. “Com o que este maravilhoso animal se parece é muito fácil”, disse ele: “Está bem claro que o Elefante é muito semelhante a uma árvore!”

O Quinto, por acaso, tocou a orelha, e disse: “Até um cego Pode dizer com o que ele se parece: Negue quem puder. Esta maravilha de Elefante é muito parecido com um leque!”

Paulo: Vida Nova, 2018 e KEENER, Craig S. O Espírito nos Evangelhos e Atos. São Paulo: Vida Nova, 2018; MCALISTER, Walter; MCALISTER, John. O Pentecostal Reformado. São Paulo: Vida Nova, 2018. 18 BRUNER, Frederick Dale. Teologia do Espírito Santo. 3. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 135.

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O Sexto, mal havia começado a apalpar o animal, Pegou na cauda que balançava e veio ao seu alcance. “Vejo”, disse ele, “o Elefante é muito semelhante a uma corda!”

E assim esses homens do Hindustão discutiram por muito tempo, Cada um com sua opinião, excessivamente rígida e forte. Embora cada um estivesse, em parte, certo, todos estavam errados!19

Os cegos fornecem descrições sinceras, porém inexatas, sugerindo que, na discussão de um assunto, perspectivas diversas podem ser defendidas sem que se chegue, de fato, a uma exposição adequada da verdade. A solução para o problema dos cegos seria que alguém dotado de visão perfeita os ajudasse a perceber que cada um distinguiu um aspecto importante da realidade, mas os discernimentos apresentados não fizeram jus ao animal inteiro. A partir desse ponto, os cegos podiam ser conduzidos a uma compreensão baseada na representação fiel do elefante completo.

A primeira coisa a fazer, quando se aborda o assunto dos ministérios e dons espirituais, é admitir a limitação de nossos esforços para entender as coisas do Espírito de Deus. No entanto, temos a Escritura como guia. Podemos e devemos considerar o que nos é oferecido na Palavra. Os cristãos acreditam que, quanto às coisas fundamentais da fé, a Bíblia possui um único sentido, descortinado mediante correta interpretação. Isso possibilita que pessoas de diferentes denominações afirmem crenças comuns.

Os ministérios e dons do Espírito Santo dizem respeito a estas “coisas fundamentais”?

Há um sentido em que se admite a possibilidade de dizer algumas coisas com clareza e segurança sobre os ministérios e dons. Isso é assim por causa da declaração do próprio Senhor Jesus Cristo: “Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade” (Jo 16.13). O anúncio de Jesus tem a ver com “a verdade” acerca da redenção, mas a doação de dons aos homens e, por conseguinte, nossa experiência com os dons, advêm da ressurreição e exaltação de Jesus Cristo como Redentor dos eleitos de Deus (Ef 4.8; cf. At 2.33; Rm 12.1, 6). Dito de outro modo, os ministérios e dons decorrem da redenção; a luz do Espírito, que nos ajuda a enxergar e acolher a Cristo, também nos conduz a compreender suficientemente e a praticar fielmente os dons que recebemos de Cristo. Se isso não bastasse, nós somos ungidos como habitação do Espírito (1Jo 2.20). Os filhos de Deus experimentam o cumprimento da promessa do pacto: “Todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles, diz o Senhor” (Jr 31.34). Uma vez que, por graça, fomos feitos cristãos conhecedores, nós recebemos subsídios para estudar as verdades de Deus. Os crentes de Corinto deviam se inteirar de algumas questões relativas aos dons espirituais (1Co 12.1).20 A averiguação do assunto é útil para o cristão contemporâneo.

19 SAXE, John Godfrey. Os Cegos e o Elefante. apud MINTZBERG, Henry; AHLSTRAND, Bruce; LAMPEL, Joseph. Safári de Estratégia: Um Roteiro Pela Selva do Planejamento Estratégico. Porto Alegre: Bookman, 2000, p. 12. Grifo nosso. 20 Leitores bem informados alertarão para o fato da palavra charisma (dom) não constar no texto grego de 1Coríntios 12.1, sendo plausível traduzir assim: “a respeito dos espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes”, sugerindo que Paulo pensava não nos dons e sim em algumas pessoas da igreja de Corinto que se achavam “espirituais”. O texto trata dos dons espirituais. Nesse particular, concordamos com Owen, para quem “a imaginação de alguns, relativas às pessoas espirituais a serem destinadas aqui, ao contrário do sentido de todos os antigos, é inconsistente com o contexto”. Cf. OWEN, John. A Discourse Concerning The Holy Spirit. In: GOOLD, William H. (Ed.). The Works Of John Owen. (WJO). Edinburgh: T&T Clark, 1967, p. 15-16, v. 3. Logos Software. Kistemaker acerta quando argumenta: “O tópico que Paulo expõe nesse capítulo é dons espirituais. O adjetivo grego pneumatikōn (espiritual) aparece sozinho no texto original, de modo que somos forçados a acrescentar uma palavra. Completamos a ideia, não com o substantivo referente a pessoas (2.15; 3.1; 14.37), que alguns estudiosos preferem, mas com a palavra dons (comparar com 14.1). O Espírito Santo é o doador desses dons, de modo que a tradução dons do Espírito Santo é não apenas plausível, como também

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Mesmo assim, uma dificuldade persiste. É virtualmente impossível chegar a consensos sobre significados de textos bíblicos que tratam dos ministérios e dons espirituais, pois ocorre o que é descrito por C. S. Lewis: “o pensamento imaginário que colocamos no quadro depende [...] dos pensamentos que estamos na verdade tendo e não vice-versa. Esta é a realidade principal, sobre a qual repousa a atribuição de realidade a qualquer outra coisa”.21 Trocando em miúdos, o cristão convicto da Reforma Magisterial e o cristão assegurado da Reforma Radical enxergam, em uma mesma passagem da Escritura, sentidos não apenas singulares e complementares, mas excludentes. Se nos primeiros dois mil anos da história eclesiástica a exclusão favoreceu os magisteriais, agora, favorece os radicais — daí a evaporação mencionada na introdução, bem como as concepções díspares sobre o assunto, mesmo dentro de uma mesma denominação, de modo que um determinado dom é descrito por um estudioso como semelhante a uma maçã e por outro, como análogo a uma banana”.22

Não deixemos a discussão ser relegada a algum tipo de deep ou dark web teológica.23 Movidos pela própria Escritura, prossigamos tentando compreender e explicar o que a Bíblia diz sobre o assunto. Mas façamos isso conscientes de que, em determinado ponto, o consenso não será possível. Lidamos com sistemas diferentes, modos distintos de leitura de dados, maneiras singulares de abordar as mesmas informações da existência cristã.

1.2. Alguns conceitos e identificações O desafio aqui é o de estabelecer conceitos, considerando “conceito” conforme Blackburn, como “o que é compreendido por um termo, em particular um predicado”.24 A discussão adequada de uma questão os demanda:

A clareza sobre conceitos é importante ao permitir uma boa discussão. Queremos enfatizar que isso é mais do que um jogo de linguagem. [...] estamos convencidos de que a meta primária da linguagem é nos habilitar a falar sobre a realidade. Por isso, em relação aos conceitos, pode-se certamente perguntar se eles oferecem uma representação adequada da realidade.25

atraente. O Espírito Santo continua a dotar os crentes com esses dons”; cf. KISTEMAKER, Simon. 1Coríntios. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 507. (Comentário do Novo Testamento). Logos Software. Uma testemunha deste entendimento antigo é Crisóstomo, cf. CRISÓSTOMO, São João. Homilias Sobre a Primeira Carta aos Coríntios: Homilias Sobre a Segunda Carta aos Coríntios. São Paulo: Paulus, 2010, p. 402. (Coleção Patrística). A edição de 1996 do comentário de 1Coríntios, de João Calvino, traz a tradução do próprio Calvino (modificada na edição posterior, publicada pela Editora Fiel): “no tocante às questões espirituais”. Cf. CALVINO, João. Comentário à Sagrada Escritura: 1Coríntios. São Paulo: Edições Paracletos, 1996, p. 371. Não há problema em admitir que em 1Coríntios 12.1—14.40, Paulo instrui sobre os dons espirituais. No capítulo 12, ele destaca sua origem e utilidade no contexto do corpo. No capítulo 13, ele fala sobre o amor como dom supremo. No capítulo 14, ele orienta como os dons devem ser praticados especialmente nas reuniões de adoração da igreja. 21 LEWIS, C. S. Milagres: Um Estudo Preliminar. São Paulo: Mundo Cristão, 1984, p. 24. (Coleção Pensadores Cristãos). 22 Sobre a inclinação da cultura contemporânea, de rejeitar verdades objetivas, cf. KAKUTANI, op. cit., passim. Devo a Kakutani essa referência a maçãs e bananas, adaptada de uma propaganda da CNN: “Isto é uma maçã. Algumas pessoas vão tentar dizer que é uma banana. Talvez elas gritem repetidas vezes: ‘Banana, banana, banana’. Talvez elas escrevam BANANA em letras maiúsculas. Talvez você até mesmo comece a acreditar que isso é uma banana. Mas não é. Isto é uma maçã”. Comercial da CNN, mostrando a foto de uma maçã. CNN. This is an Apple. In: YouTube. Disponível em: <https://www.youtube.com/embed/vckz6EAn30Y>. Acesso em: 14 abr. 2019, apud ibid., p. 22. 23 A deep ou dark web (web profunda ou escura) é uma parte da internet não aberta aos usuários comuns, frequentada por hackers, organizações governamentais, criminosos, viciados e grupos terroristas. 24 BLACKBURN, op. cit., p. 66. 25 VERKERK, Maarten Johannes; HOOGLAND, Jan; VAN DER STOEP, Jan; DE VRIES, Marc. J. Filosofia da Tecnologia: Uma Introdução. Viçosa: Ultimato, 2018, p. 29.

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1.2.1. Cessacionismo, cessacionismos e cessacionista

Começamos com o conceito de cessacionismo, até agora evitado pelos dicionários bíblicos e de teologia.

Cessacionismo é a persuasão de que alguns ofícios e dons mencionados no NT cumpriram seu papel no estabelecimento inicial da igreja, mas depois cessaram ou foram modificados a um modo de operação ordinário e permanente. Como não existe consenso acerca de quais ofícios e dons cessaram e em que grau ou modo ocorreu sua modificação, talvez o mais adequado seja falar sobre cessacionismos.

Isso tem de ser estabelecido, pois é comum explicar-se “cessacionismo” como ausência absoluta de crença na atualidade de qualquer dom espiritual ou atuação supernatural divina na história, o que não corresponde aos fatos.

Neste estudo, cessacionistas são também chamados de protestantes fundacionais, ou protestantes magisteriais, ou cristãos que abraçam a leitura fundacional protestante.

O que distingue um cessacionista de um pentecostal ou carismático é a crença do primeiro na cessação ou modificação de determinados ofícios e dons, por meio de raciocínio bíblico dedutivo. Isso quer dizer que, desde o início, cessacionistas admitem que não existe um texto na Bíblia no qual conste que determinados ofícios e dons devam cessar após a completação do NT, assim como não há qualquer passagem na qual se lê: “o Deus único é uma Trindade de pessoas”, ou “é preciso se casar para ter relações sexuais”. Tais verdades não são expressamente afirmadas pelas Escrituras, mas deduzidas delas.26

Em seu nascedouro, com os reformadores magisteriais, o cessacionismo não implicava, necessariamente, negação do extraordinário, nem de milagres extrabíblicos. Em um texto das Institutas (bastante citado por eruditos pentecostais), João Calvino não teve dificuldade em descrever profetas como aqueles “que eram excelentes em singular revelação, como agora nenhum subsiste, ou são menos evidentes”.27 Ou seja, Calvino não era cético quanto à possibilidade de, em sua soberania, Deus abrir espaço para algum tipo distinto de profecia, porém, a leitura sóbria da passagem exige reconhecer que, para ele, esse tipo de ocorrência deve ser tida como extraordinária, não podendo haver expectativa de profecias extrabíblicas na vida regular e ordinária da igreja; daí sua afirmação, “agora nenhum subsiste”. Um enquadramento mais rigoroso do cessacionismo foi proposto em 1918, por Benjamim

26 “Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser, lógica e claramente deduzido dela”. ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER. Confissão de Fé (CFW), 1.6. In: BÍBLIA DE ESTUDO HERANÇA REFORMADA (BEHR). Barueri; São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil; Cultura Cristã, 2018, p. 1994. Grifo nosso. Sendo assim, cessacionistas esclarecidos não se sentem ameaçados por declarações como as de G. A. Taylor, de que “não temos ordem bíblica para restringir os dons à igreja primitiva, nem para proibir qualquer dom específico hoje” (TAYLOR, George Aiken. Miracles: Yes or No? Presbyterian Journal, [S.l.], v. 33, n. 16, 14 ago. 1974, p. 9,, apud RUTHVEN, op. cit., p. 94). 27 CALVINO, João. As Institutas: Edição Clássica. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, iv.iii.4 [v. 4, p. 67]. Logos Software. Grifos nossos. Ou seja, Calvino não era cético quanto à possibilidade de, em sua soberania, Deus abrir espaço para algum tipo distinto de profecia, porém, a leitura sóbria da passagem exige reconhecer que, para ele, esse tipo de ocorrência deve ser tida como extraordinária, não podendo haver expectativa de profecias extrabíblicas na vida regular e ordinária da igreja; daí sua afirmação, “agora nenhum subsiste”. Em outro lugar, Calvino também diz que não deseja provocar controvérsia sobre sua explicação sobre os profetas, admitindo que, dos ofícios e dons extraordinários, ainda podem ser percebidos “leves traços ou sombras” (CALVINO, 1Coríntios, 2013, p. 452). Seria exagero entender que a admissão da permanência desses “traços” ou “sombras” dos ofícios e dons extraordinários significa, para Calvino, contemporaneidade de todos os ofícios e dons do NT. O mais certo é compreender que, para Calvino, tais ofícios e dons podem ser conferidos na igreja de hoje modificados, dentro da moldura ministerial de ofícios e dons ordinários e, por conseguinte, permanentes.

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Warfield,28 mas cessacionistas de hoje creem que Deus opera milagres e admitem (1) não apenas limitações, mas impedimento, de alegações de cessação de ofícios e dons baseadas no naturalismo; (2) a dificuldade, para não dizer impossibilidade, de afirmar tal interrupção com base na história pós-bíblica.

1.2.2. Pentecostais, carismáticos e novos entusiastas

Neste estudo, os que acreditam que revelação extrabíblica é para hoje, são chamados de “pentecostais”, “carismáticos” ou “novos entusiastas”.29

Pentecostal é quem abraça a membresia de uma igreja oficialmente denominada como pentecostal.

O carismático não é, necessariamente, vinculado à Renovação Carismática Católica (RCC), mas aquele que, afiliado a uma igreja tradicional ou herdeira da Reforma Magisterial, ainda assim, acredita em revelação extrabíblica.

Novos entusiastas são os que, como Jon Ruthven, levantam a bandeira não apenas da revelação extrabíblica, mas também do ofício de apóstolo.

Admitimos a simplificação da rotulação acima. Uma pessoa indecisa, mas propensa a um ou outro lado, pode não gostar de desde já ser identificada com determinada posição. Além disso, há quem concorde com elementos de uma e de outra posição, ao mesmo tempo em que discorde de detalhes de ambas, portanto, considerariam qualquer rotulagem injusta ou precipitada. Não são poucas as combinações possíveis entre crenças e práticas relativas aos ministérios e dons. Mesmo assim, a identificação de posições é necessária ao estudo e discussão, especialmente porque, quando se tenta hoje conversar sobre sistemas ou plataformas teológicas, não é incomum alguém objetar que “isso não pode ser generalizado; existem exceções”. Consentindo que fé reformada, arminianismo e calvinismo não são monolíticos,30 em hipnose, esse tipo de contradição é ensinada como “manobra do terreno elevado”, contrapor a um argumento uma declaração que não pode ser considerada errada, desviando a atenção do problema central,31 impossibilitando qualquer debate.

Nos limites deste estudo, o que distingue um pentecostal, carismático ou novo entusiasta, é a crença na continuação da profecia extrabíblica.

1.3. Uma tentativa de abordagem O estudo dos ministérios e dons demanda quatro enquadramentos, da doutrina dos dons como aplicação da doutrina da Trindade; dos dons como capacidades divinas que nos ajudam a cumprir os mandatos pactuais; da dádiva do Espírito Santo como culminação da obra redentora e revelação de Jesus Cristo antes da consumação e, por fim, dos dons como bênçãos edificantes.

Um primeiro enquadramento é o da doutrina da Trindade. Os dons são chamados de “espirituais” porque são concedidos pelo Espírito Santo, que opera em harmonia com Deus Pai e Deus Filho, como lemos no Credo Niceno: “Creio no Espírito Santo, o Senhor e o Doador

28 WARFIELD, Benjamin Breckinridge. Counterfeit Miracles. New York: Charles Scribner’s Sons, 1918. Logos Bible Software. 29 Não fazemos uso das designações “terceira onda” ou “abertos, porém cautelosos”, sugeridas por Grudem (2003, p. 10-14). 30 MCALISTER; MCALISTER, op. cit., p. 139; OLSON, Roger. Contra o Calvinismo. São Paulo: Editora Reflexão, 2013, p. 41-58. 31 ADAMS, Scott. Ganhar de Lavada: Persuasão em um Mundo Onde os Fatos não Importam. Rio de Janeiro: Record, 2018, edição do Kindle, posição 3185-3236.

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da vida; que procede do Pai e do Filho; que com o Pai e o Filho é juntamente adorado e glorificado; que falou por meio dos profetas”.32

Um segundo enquadramento é o das ordenanças da criação. O derramamento do Espírito Santo capacita o cristão para viver os mandatos espiritual, social e cultural. Os dons fazem parte do pacote de recursos divinos para nossa caminhada como discípulos de Jesus nesta vida. Dizer que andamos com Deus equivale a servir ao Senhor no mundo conscientes e dependentes do poder e capacitação do Espírito Santo.

O terceiro enquadramento é o entendimento dos dons à luz da pessoa e obra de Cristo como clímax de toda revelação necessária para a salvação, santificação, consolação e serviço dos crentes. A relação entre os ministérios, dons e a suficiência das Escrituras é levada muito a sério por aqueles que acreditam que alguns ministérios e dons mencionados no NT são extraordinários e temporários.

Por fim, quarto e último enquadramento, os dons são dados para edificação e unidade da igreja (1Co 14.26; cf. 1Co 14.12, 17). Se o Espírito aplica o evangelho, os dons espirituais são capacidades para o serviço do evangelho em amor. Deve ser rejeitada qualquer abordagem de doutrina que produza afetação, estranhamento ou divisão do povo de Deus.

Deus nos deu informação suficiente sobre os ministérios e dons, mas não exaustiva. Nenhum ser humano, em qualquer lugar ou época antes da consumação dos tempos, soube, sabe ou saberá tudo sobre esse assunto. Nossa compreensão não apenas da doutrina dos ministérios e dons, mas de muitas outras questões da vida, da Bíblia e da Teologia é ainda parcial e limitada: “agora, vemos como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face. Agora, conheço em parte; então, conhecerei como também sou conhecido” (1Co 13.12).33 Não foi sem razão que o apóstolo sublinhou a supremacia do amor em meio às disputas dos “espirituais” de Corinto (1Co 13.1-13).

Se a própria limitação de nossa capacidade intelectual não bastasse, lidamos ainda com o problema da lacuna de tempo entre a escrita do NT e hoje. Paulo menciona, mas não explica alguns dons, pois parece que, para ele, determinados termos não careciam de esclarecimentos.34 Vinte séculos depois, o significado autoevidente de algumas palavras usadas por Paulo desapareceu.

Se isso é assim, como tentar estabelecer significado para palavras, ou como tentar interpretar e atualizar experiências vividas pelos crentes do NT, mas que não estão mais disponíveis para nós, cristãos do século 21? Será que existe uma maneira de aferir o sentido dos textos bíblicos que conduza a um resultado satisfatório e que combine com a ênfase apostólica no amor cristão?

Nós leremos os textos particulares à luz da Bíblia como um todo. Sempre que possível, quando surgir dificuldade para descrever determinado dom, buscaremos auxílio em outros textos da própria Escritura, na expectativa de que os trechos mais claros forneçam luz para esclarecer os mais obscuros. Além disso, evitaremos dizer coisas sobre os ministérios e dons que a Bíblia não expresse claramente ou que não possa ser “lógica e claramente, deduzido dela”.35 “Calvino enfatizou que o que quer que Deus tenha decretado que ainda não tenha sido publicamente revelado por meio dos profetas e apóstolos [ou seja, das Escrituras] está

32 O Credo Niceno. In: BEHR, p. 1936. 33 Na seção 5.1, constam mais informações sobre a interpretação de 1Coríntios 13.8-13; 14.21-22. 34 Cf. a observação de R. A. Cole sobre as línguas na igreja de Corinto: “Foi obviamente parte tão familiar da vida da igreja em Corinto, que Paulo nunca explicou exatamente o que era, mas assumiu que seu leitor sabia”; COLE, R. A. Línguas, Dom de. In: TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 974, v. 3. Grifo nosso. 35 Cf. CFW 1.6. In: BEHR, p. 1994.

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além da nossa capacidade de saber”.36 Se em sua providência no processo de revelação das Escrituras, Deus decidiu não entrar em detalhes sobre determinada questão; se em toda a história da igreja, iluminando gerações de intérpretes cristãos, Deus decretou que algumas coisas da Bíblia sobre os ministérios e dons fossem claras aos leitores do séc. 1 e não tão claras aos leitores do séc. 21; se algumas questões referentes ao assunto permanecem sob meia-luz; isso aceitamos e com isso nos satisfazemos.

Por fim, entendemos que a lacuna de uma informação da Bíblia sobre determinado dom espiritual não pode ser preenchida com supostas “provas” advindas de experiências do passado ou contemporâneas. Por exemplo, um autor tenta explicar determinado dom, cujo significado e modo de operação não são biblicamente evidentes, e diz algo mais ou menos assim:

— Creio que esse dom é (e completa a frase com uma hipótese ou suposição). Eu me lembro de que atendi uma pessoa com tal problema em meu gabinete, na primavera de 2005 e naquela ocasião o Espírito Santo fez isso ou aquilo, que combina com essa minha explicação do dom.

Reconhecemos que essa forma de lidar com o assunto não parece tão empolgante. Em livros populares sobre os dons espirituais, argumentos são introduzidos ou rematados com narrativas que prendem irresistivelmente a atenção. Um livro que instrui sobre como Deus fala hoje por meio de profecias, sonhos e visões, inicia com a história do Espírito Santo revelando o vício em pornografia de um estudante de Teologia.37 Outro livro conclui o ensino sobre o dom de línguas descrevendo a experiência emocionante do autor recebendo o referido dom, após oração com imposição de mãos.38 Experiências podem ilustrar verdades abertamente declaradas das Sagradas Escrituras e neste estudo relataremos algumas, mas não usaremos experiências para tentar descrever ou sugerir um modo de operação de um dom para o qual a Bíblia não fornece explicação.39

36 HORTON, Michael. Doutrinas da Fé Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 383. 37 DEERE, Jack. Surpreendido Com a Voz de Deus. São Paulo: Editora Vida, 1998, p. 12. 38 STORMS, op. cit., p. 164-165. 39 Reconheço que essa forma de lidar com o assunto não parece tão empolgante. Em livros populares sobre os dons espirituais, argumentos são introduzidos ou rematados com narrativas que prendem irresistivelmente a atenção. Um livro que instrui sobre como Deus fala hoje por meio de profecias, sonhos e visões, inicia com a história do Espírito Santo revelando o vício em pornografia de um estudante de Teologia (DEERE, op. cit., p. 12). Outro livro conclui o ensino sobre o dom de línguas descrevendo a experiência emocionante do autor recebendo o referido dom, após oração com imposição de mãos (STORMS, op. cit., p. 164-165).

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2. Batismo com o Espírito Santo, ministério e chamado

Imaginemos quatro cenas, na primeira, um homem falando a um público cuja terra havia sido devastada por uma praga de gafanhotos que consumiu não apenas suas plantações, mas sua esperança. Na segunda cena, pessoas às margens do rio Jordão se aglomeram em volta de uma figura estranhamente vestida, atraídas por sua mensagem e também dispostas a receber o batismo. Na terceira, comendo a última refeição de Páscoa, o Senhor Jesus Cristo afirma aos seus discípulos que não os deixará órfãos, mas rogará ao Pai e ele dará a eles outro Consolador. A quarta e última cena tem lugar em Jerusalém. Mais de uma centena de cristãos está reunida em oração, aguardando uma promessa feita por Jesus Cristo ressurreto.

O homem da primeira cena olha para as pessoas alquebradas e diz:

E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; até sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias. Mostrarei prodígios no céu e na terra: sangue, fogo e colunas de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que venha o grande e terrível Dia do SENHOR. E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do SENHOR será salvo; porque, no monte Sião e em Jerusalém, estarão os que forem salvos, como o SENHOR prometeu; e, entre os sobreviventes, aqueles que o SENHOR chamar (Jl 2.28-32).

Tempos depois, o mensageiro da segunda cena proclama, em alto e bom som:

Eu vos batizo com água, para arrependimento; mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu, cujas sandálias não sou digno de levar. Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo (Mt 3.11).

Marcos, Lucas e João também registram a fala do profeta, com pequenas variações (Mc 1.8; Lc 3.16-17; Jo 1.32-34). Os ditos de Jesus sobre o envio do Consolador, na terceira cena, não apenas repercutem a profecia do Batista, mas afunilam para sua replicação, em Atos 1.4-5.

A promessa ecoa igualmente profecias de Jeremias e Ezequiel. Na nova aliança, assegurada pelo Messias na inauguração dos últimos dias, Deus daria o Espírito Santo ao seu povo (Jr 31.31-34; Ez 36.26-27) e isso garantiria cinco bênçãos:

1. A mente e o coração dos crentes receberiam uma “impressão” ou “escrita” da lei de Deus — transformação.

2. O povo não mais praticaria a idolatria — fidelidade ao Senhor. 3. Os cristãos desfrutariam de conhecimento pessoal de Deus. 4. Os eleitos seriam completa e definitivamente perdoados — redenção. 5. O Espírito Santo seria colocado “dentro” e “derramado sobre” os crentes, dando

a eles plenitude de revelação.

Jesus atualizou essa expectativa no Evangelho de João e a atendeu em Atos. A promessa do envio do Espírito Santo seria cumprida entre os crentes que a aguardassem em Jerusalém e foi isso que aconteceu. Dias depois da ressurreição, chegou o presente enviado dos céus:

Ao cumprir-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar; de repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam assentados. E apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, e pousou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito lhes concedia que falassem (At 2.1-4).

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No batismo de Jesus, o Espírito Santo foi dado pelo Pai como dádiva ao Filho. Em seguida ele foi prometido pelo Filho aos discípulos. No dia de Pentecostes, o Espírito foi concedido aos cristãos pelo Pai através do Filho (Mt 3.16; At 2.33).

Ao proclamar que o evento do Pentecostes tanto cumpriu a profecia de Joel, quanto as promessas dos Evangelhos, Pedro esclareceu que as primeiras cenas imbricaram na última (cf. Jo 14.25; 16.7; At 2.16-21, 32-33).

2.1. O Pentecostes e o batismo com o Espírito Santo Bruner elucida que, para os pentecostais, “o Pentecostes [...] significa especificamente a poderosa descida do Espírito sobre os primeiros discípulos, capacitando-os a falar em outras línguas — o enchimento pentecostal”.40

R. C. Sproul explica que:

O pentecostalismo deriva seu nome de sua ênfase sobre a sua compreensão quanto ao que sucedeu à igreja no dia de Pentecostes. O registro da atividade do Espírito Santo na vida da igreja primitiva é básico para o movimento carismático moderno. Há um decisivo desejo de recapturar o poder espiritual e a vitalidade acenada no livro de Atos.41

De modo geral, pentecostais e carismáticos se aproximam do livro de Atos de um modo peculiar, como uma espécie de manual para a igreja. Para eles, o evento do Pentecostes estabelece um “modelo paradigmático e uma necessidade pessoal para todos os cristãos”.42 Isso é assim porque, nesse enquadramento, o NT inteiro — especialmente Atos —, passa a ser lido, interpretado e aplicado a partir de uma perspectiva de restauração.

2.1.1. O entendimento pentecostal do batismo com o Espírito Santo em Atos

Na visão da restauração, apregoa-se a reintrodução das experiências do NT na igreja do séc. 21. Um estudioso pentecostal explica isso, nos seguintes termos:

A restauração, em qualquer dimensão da experiência humana, está no coração do evangelho cristão. Ela é tecida através de toda a Escritura e deve estar à frente do nosso ministério da verdade. Atos 3.19-21 faz a mais apontada referência à restauração no NT. Pedro apressa um retorno a Deus para a purificação dos pecados. Ele acrescenta que esse retorno abriria o caminho para um período de uma renovação que resultaria na presença do Senhor com o seu povo. Ela também prepararia o retorno de Cristo, de quem Pedro disse: “o qual convém que o céu contenha até aos tempos da restauração de tudo, dos quais Deus falou pela boca de todos os seus santos profetas, desde o princípio” (At 3.21). Muitos acreditam que é agora, nesses últimos dias, que “tudo” que foi profetizado será cumprido e a restauração será completa. A principal restauração é o retorno da igreja, a noiva de Cristo, para a majestade e a glória de Deus preparada para ela. Para completar essa restauração, Deus começou a distribuir o seu poder e a sua pureza sem medidas, através da igreja. O processo de “peneiração” se iniciou a fim de que o reino inabalável possa ser revelado (Hb 12.27-28).43

40 BRUNER, op. cit., p. 47. 41 SPROUL, R. C. O Mistério do Espírito Santo. 3. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 100. 42 PACKER, J. I. Batismo no Espírito Santo. In: FERGUSON, Sinclair B.; WRIGHT, David F. (Ed.). Novo Dicionário de Teologia. São Paulo: Hagnos, 2009, p. 128. Grifos nossos. 43 ROBISON, James. O Espírito Santo e a Restauração. In: HAYFORD, Jack W. (Ed.). Bíblia de Estudo Plenitude (BEP). Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2002, p. 1389. Grifos nossos.

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Na teologia pentecostal, “restauração” equivale à “consumação”, ou seja, o estado de coisas definido no estabelecimento final do reino de Deus, após a volta de Cristo.44 Além disso, como lemos em Robison, há uma perspectiva de restauração presente, na distribuição do “poder” e “pureza sem medidas, através da igreja”;45 restauração esta, atual, que antecipa e aponta para aquela, futura. A visão pentecostal ou carismática atualiza “o protesto perene suscitado dentro da igreja quando se aumenta a força da instituição e se diminui a dependência do Espírito de Deus”.46 Nesse sentido, deve ser interpretada como uma nota bem-vinda e necessária da Providência, a fim de lembrar aos cristãos da necessidade de uma mudança de pensamento e posição na direção da piedade, do testemunho e do serviço.

Mesmo assim, temos de questionar a validade da leitura, interpretação e aplicação do livro de Atos feita pelos pentecostais. Apesar de Atos não sistematizar uma doutrina sobre os ministérios e dons, a maneira como ele é interpretado afeta nossa compreensão sobre o batismo com o Espírito Santo e o funcionamento dos ministérios e dons espirituais hoje.47 George Knight III informa que é virtualmente impossível estudar os dons espirituais sem mencionar o livro de Atos, considerando que:

Uma das diferenças mais importantes entre os reformados, os pentecostais e alguns carismáticos é a crença dos dois últimos grupos de que o livro de Atos é o nosso guia em relação aos dons espirituais e que o batismo do Espírito Santo, como aparece em Atos, ocorre como um ato especial subsequente à regeneração pelo Espírito.48

O livro de Atos se encaixa na categoria de narrativa. É histórico, descritivo e não prescritivo. Por um lado, ele registra o que sucedeu nos primórdios da igreja e engendra uma teologia (a teologia de Lucas-Atos), bem como destila verdades e princípios úteis para os cristãos de todos os tempos. Por outro lado, o fato de uma coisa ter ocorrido nos primeiros dias da igreja, conforme lemos em Atos, não implica exigência de que esta coisa deva acontecer hoje. Os acontecimentos de Atos tiveram seu lugar na história da redenção e não se repetiram ao longo da caminhada da igreja. São descritas experiências de um contexto singular da história da redenção, sem reivindicação de que as repliquemos. Em suma, Atos não deve ser lido, interpretado e aplicado como se fosse um manual para a igreja e sim como registro da história da salvação. Quando não atentamos para isso, corremos os perigos apontados por Gordon Fee e Douglas Stuart:

Muitos setores do protestantismo evangélico têm uma mentalidade voltada à “restauração”. Com certa regularidade, lembramo-nos da igreja primitiva e da experiência cristã vivida no 1º século como uma norma a ser restaurada ou como um ideal que precisamos alcançar. Assim, muitas vezes dizemos frases como: “Atos nos ensina claramente que [...]”. No entanto, parece óbvio que nem mesmo a totalidade do “ensino claro” é igualmente clara para todos. Na realidade, é nossa falta de precisão hermenêutica quanto ao que Atos procura nos ensinar que resultou em boa parte das divisões existentes na igreja. Tais práticas divergentes como [...] a venda de posses a fim de ter todas as coisas em

44 Cf. WILLIAMS, J. Rodman. Teologia Sistemática: Uma Perspectiva Pentecostal. São Paulo: Editora Vida, 2011, p. 1160-1161. 45 ROBISON, op. cit., loc. cit. 46 CAIRNS, Earle Edwin. O Cristianismo Através dos Séculos: Uma História da Igreja Cristã. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 87. 47 Alguns estudiosos usam a expressão “batismo no Espírito Santo” em lugar de “batismo com o Espírito Santo”; cf. BRUNER, op. cit., p. 47-117; WALKER, Paul. Os Dons e o Poder do Espírito Santo. In: BEP, p. 1394; MCALISTER; MCALISTER, op. cit., p. 197-213. SPROUL, op. cit., p. 97-115 e KNIGHT III, George W. A Cessação dos Dons Espiritual Extraordinários. In: BEEKE, Joel; PIPA, Joseph A. (Org.). A Beleza e a Glória do Espírito Santo. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 90, preferem “batismo do Espírito Santo”. No presente estudo, essas formas são consideradas sinônimas. 48 KNIGHT III, op. cit., loc. cit.

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comum, e até mesmo a manipulação ritual de serpentes (!) têm sido apoiadas, de forma total ou parcial, com base no livro de Atos.49

Errol Hulse propõe que “a ideia que tudo, hoje, deve ser como era no livro de Atos explica porque há esta grande ênfase no batismo do Espírito, como uma crise pós-conversão e, também, porque há o desejo pela existência de profetas e apóstolos”.50 Na leitura pentecostal ou carismática de Atos, os apóstolos eram cristãos que já haviam recebido o Espírito Santo depois da ressurreição e que desfrutaram, no dia de Pentecostes, de uma segunda bênção, cuja evidência foi a capacidade de falar em outras línguas (Jo 20.22; At 2.1-4). Se isso não bastasse, em Atos 10.44-46 o Espírito Santo “caiu” sobre os da casa de Cornélio, de modo que estes falaram em línguas, enquanto Pedro pregava. Mais adiante (At 19.1-6), crentes em Éfeso receberam o Espírito Santo e falaram em línguas, depois de ouvirem o evangelho e Paulo impor as mãos sobre eles. Se isso aconteceu na igreja primitiva, como lemos em Atos, eis o padrão para a igreja de hoje, sugerem os leitores da restauração.

Esta leitura da experiência apostólica e do batismo com o Espírito Santo como segunda bênção (a partir de Atos), ganhou corpo com o tempo.

John Fletcher (1729-1785), designado sucessor de [John] Wesley, e alguns professores reformados referiam-se a batismos repetidos do Espírito, significando intensificação na certeza e melhor capacitação de uma vida santificada e ministério poderoso. Charles Finney [1792-1875], D. L. Moody (1837-1899), R. A. Torrey (1856-1928), Andrew Murray [1828-1917], A. B. Simpson (1844-1919) e outros fizeram coro a essa ideia, mas assimilando-a de modo diverso da abordagem do pensamento wesleyano, ou seja, de experiência de uma única “segunda bênção”, que elevaria a vida de uma pessoa a um novo nível, permanentemente.51

Perceba-se, em tal desenvolvimento, o juízo de que:

A experiência do “batismo do Espírito” é o único caminho pelo qual os crentes podem entrar em um estado espiritual mais elevado. [...] A tendência é, portanto, alegar superioridade em todos os aspectos quanto a liberdade de culto, qualidade de louvor, oração e discernimento da mente de Deus.52

Tais incrementos foram ratificados pelos acontecimentos no Bethel Bible College, em Topeka, Kansas, em 1 de janeiro de 1901. De acordo com Alister McGrath:

A instituição havia sido fundada na tradição de santidade do outubro anterior por Charles Fox Parham (1873-1929), um ex-pastor da Igreja Metodista Episcopal. Topeka já havia atraído grande atenção através dos romances de seu pastor Congregacional Charles Sheldon, autor de Em Seus Passos O Que Faria Jesus. Como exercício, Parham pediu a seus alunos que investigassem a evidência do NT para a atividade contínua do Espírito Santo na vida cristã. Essa pergunta foi vista como vazia e sem sentido por muitos. [...] [Parham] pediu a seus alunos por seus pontos de vista. Sua resposta — talvez facilmente descartada como ingênua e simplista — era que uma leitura direta dos textos bíblicos sugeria que esse dom carismático ainda era uma possibilidade e que poderia ser identificado por falar em outras línguas.

49 FEE, Gordon D.; STUARD, Douglas. Entendes O Que Lês? Um Guia Para Entender a Bíblia Com o Auxílio da Exegese e da Hermenêutica. 3. ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 132. Grifos nossos. 50 HULSE, Errol. O Batismo do Espírito Santo. 2. ed. São José dos Campos: Editora Fiel, 2018. Edição do Kindle, posição 59 de 1613. 51 PACKER, op. cit., p. 128. Lamentamos que, para Lloyd-Jones, o fato de em Atos os discípulos e apóstolos receberem o batismo com o Espírito Santo depois de serem convertidos, estabelece um padrão para os crentes de todos os tempos; cf. LLOYD-JONES, D. Martyn. Deus o Espírito Santo. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997, p. 303-304. (Grandes Doutrinas Bíblicas), v. 2. 52 HULSE, op. cit., posição 75 de 1613. Grifos nossos.

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Impressionado com a clareza dessa resposta, Parham se juntou a seus alunos para uma vigília de oração que começou em 31 de dezembro de 1900.53

O que era buscado, foi pretensamente encontrado na noite do dia 1 de janeiro: “Por volta das 23h, Agnez Ozman, uma das estudantes, recebeu uma oração pelo dom do Espírito Santo, e o Espírito Santo “caiu”.54 McGrath afirma que Parham falou em línguas dias depois, além de outros alunos. Então começaram a divulgar a experiência de “recuperação do dom de línguas”,55 de modo que, em 1905, o pregador afro-americano William J. Seymour ouviu as palestras de Parham e, em 14 de abril de 1906, fundou a Missão da Fé Apostólica, em um prédio que havia sido da Igreja Metodista Episcopal Africana, localizado na rua Azuza 312, em Los Angeles.56 De acordo com Williams, “a convicção de Frank Bartleman, um dos líderes daquele movimento, era de que eles participavam de uma obra restauradora: ‘[...] demos mais um passo em direção ao caminho para a restauração da igreja. Nós estamos completando o círculo’”.57

J. I. Packer resume a perspectiva pentecostal sobre o batismo com o Espírito Santo:

Pentecostais e carismáticos geralmente veem o batismo no Espírito no modo wesleyano, relacionando-o à recepção plena ou libertação do Espírito no ser de uma pessoa, com segurança, exuberância emocional, glossolalia, liberdade interior para falar de Cristo e florescimento de toda espécie de dons para o ministério, inclusive (assim frequentemente alegado) dons de profecia e de cura. O falar em línguas é geralmente considerado como uma espécie de pedra de toque do batismo no Espírito.58

O teólogo pentecostal Paul Walker explica que:

O pentecostal ou carismático vê o batismo ou o recebimento do Espírito Santo como uma experiência subsequente à conversão cristã; [...] que vem através de um processo de submeter a pessoa inteira à liderança e à habitação do Espírito Santo. [...] todos os crentes devem responder à pergunta de Atos 19.2, “recebestes vós já o Espírito Santo quando crestes?” 59

53 MCGRATH, Alister R. Christianity’s Dangerous Idea: The Protestant Revolution — A History from the Sixteenth Century to the Twenty-First. New York, HarperCollins Publishers, 2007, edição do Kindle, p. 388-389. Tradução nossa. 54 WILLIAMS, op. cit., p. 617. 55 MCGRATH, op. cit., p. 389. 56 Ibid., loc. cit.; WILLIAMS, loc. cit. Esta é a data considerada como a de início oficial do movimento pentecostal contemporâneo. Uma segunda erupção de línguas aconteceu dias antes, em Los Angeles, “no dia 9 de abril de 1906, entre um grupo de pessoas brancas e negras que haviam orado e jejuado durante dez dias, pedindo a Deus que enviasse o seu Espírito. No décimo dia, um jovem negro falou em línguas, logo seguido por outros seis crentes” (ibid., loc. cit.). Afirma-se, porém, que o “primeiro registro de uma ocorrência do dom de línguas dos tempos modernos data de 1830”. Cf. CANTO, Judson. O Avivamento da Rua Azusa [sic] Não Começou na Rua Azusa [sic]. Disponível em: <http://judsoncanto.wordpress.com/2010/11/26/o-avivamento-da-rua-azusa-nao-comecou-na-rua-azusa/>. Acesso em: 24 out. 2012. 57 McCLUNG, L. Grant. (Org.) Azuza Street and Beyond [originalmente intitulado How Pentecost Came to Los Angeles] South Plainfield: Bridge, 1986, p. 74-75, apud WILLIAMS, op. cit., p. 528. Grifo nosso. Este é o primeiro registro encontrado pelo autor da experiência pentecostal — especialmente os êxtases e o falar em línguas — como uma “restauração”. A ideia de restauração repercute em vários escritos atuais sobre ministérios e dons espirituais. 58 PACKER, op. cit., loc. cit. 59 WALKER, op. cit., p. 1394. O contrário é que é verdadeiro. A pergunta de Atos 19.2 só faz sentido para uma pessoa que sabe apenas que é preciso se arrepender de seus pecados e se voltar para Deus, como pregou João Batista, mas que não sabe ainda que: (1) Jesus, o Cristo pregado por João Batista já veio a este mundo; (2) que Jesus já morreu e ressuscitou pelos pecadores; (3) que a fé para salvação é fé unicamente em Jesus Cristo e, por fim, (4) que os que creem em Jesus recebem a dádiva do Espírito Santo.

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Quanto ao falar em línguas como evidência do batismo com o Espírito Santo, isso continua sendo crido pelos “pentecostais tradicionais”,60 mas os McAlister informam que existem carismáticos que não consideram o dom de línguas como evidência do batismo com o Espírito Santo.61

Resumindo, faz diferença se lemos Atos como “descritivo da transição do AT para o NT62” e parte do enredo da história da salvação, ou pela ótica da restauração. Essa questão não pode ser ignorada, pois “influencia de modo significativo a maneira pela qual a pessoa se conduz na vida cristã e até o próprio estilo ou tom da vida cristã”.63

2.1.2. Um entendimento mais bíblico do batismo com o Espírito Santo

Podemos agora afirmar duas coisas sobre a profecia de João Batista, sobre o batismo com o Espírito Santo, que aparece no início de todos os Evangelhos: (1) ela começou a se cumprir quando o Espírito Santo foi dado à igreja, no Pentecostes; (2) ela promete tanto bênção quanto juízo. Pensando no juízo, o Batista diz que o Senhor lidará com a “raça de víboras”, ou seja, os que se dizem religiosos e vivem no pecado (Mt 3.1-12). Deus julgará os que não se arrependem e creem em Jesus Cristo.

A menção do fogo [...] ajusta essa aplicação ao Pentecostes, quando “apareceram línguas repartidas como de fogo, pousando sobre cada um deles” (At 2.3). A chama ilumina. O fogo purifica. O Espírito faz as duas coisas. Não obstante, pelo contexto (anterior e posterior, ver v. 10 e 12) e pela profecia de Joel referente ao Pentecostes (Jl 2.30; cf. At 2.19), considerada em seu contexto (ver Jl 2.31), parece que o cumprimento final das palavras de João aguarda a segunda vinda gloriosa de Cristo para purificar a terra com fogo (2Pe 3.7,12; cf. Ml 3.2; 2Ts 1.8).64

Pensando na bênção, a partir do Pentecostes, os que creem em Jesus são batizados com o Espírito Santo. O fato do batismo com o Espírito ocorrer depois da conversão dos apóstolos no Pentecostes, não significa que todos os outros crentes tenham de repetir a experiência de duas etapas dos apóstolos (primeiro conversão a Cristo, depois batismo com o Espírito Santo). Em Atos 2.14-21, Pedro explica que a dádiva do Espírito Santo no Pentecostes cumpre a profecia de Joel 2.28-32. A igreja começou a viver os “últimos dias”, iniciados por Cristo e pelo Espírito (At 2.17; cf. Mc 1.15).65 Ao proclamar o cumprimento tanto do anúncio de Joel, quanto das promessas dos Evangelhos, Pedro esclareceu que as primeiras cenas imbricaram na última (At 2.16-21, 32-33; cf. Jo 14.25; 16.7). Ademais, ele informou que, a partir dali, o Espírito Santo seria dado na ocasião da conversão, no arrependimento e fé simbolizados pelo batismo.

Ouvindo eles estas coisas, compungiu-se-lhes o coração e perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: Que faremos, irmãos? Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo (At 2.37-38).

Este ensino de Pedro (o Espírito Santo é dado ao crente quando este se arrepende e crê) estabelece uma norma ratificada pelo restante do NT, ou, dito de outro modo, outras

60 “Falar em línguas é uma evidência do batismo ou do enchimento do Espírito Santo (At 2.4; 10.45-46; 19.6)”; ibid., p. 1394, 1395. Para os interessados em uma análise cuidadosa do entendimento pentecostal sobre o batismo com o Espírito Santo, recomendamos a leitura do cap. 3 de BRUNER, op. cit., p. 47-102. 61 MCALISTER; MCALISTER, op. cit., p. p. 199-201. Eles sugerem uma “solução” para a doutrina que, no fim das contas, nega o pentecostalismo tradicional e se aproxima do entendimento cessacionista (ibid., p. 202). 62 HULSE, op. cit., posição 103 de 1613. 63 ERICKSON, Millard J. Introdução à Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 362. 64 HENDRIKSEN, William. Mateus. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 260, v. 1. (Comentário do Novo Testamento). Logos Software. 65 Disponibilizamos nossa interpretação de Joel 2.28-32, no apêndice 1: A Profecia Mais Conhecida de Joel.

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passagens do NT lançam luz sobre as experiências mencionadas em Atos. O Espírito Santo foi enviado aos discípulos para os consolar após a partida de Jesus; para habitar dentro deles; para os ensinar e os ajudar a lembrar do que Jesus ensinou; para dar testemunho de Jesus e também capacitá-los para serem testemunhas; para convencer o mundo do pecado, da justiça e do juízo; para guiar os cristãos a toda a verdade e para glorificar Jesus Cristo (Jo 14.16-17, 26; 15.26-27; 16.7-14; At 1.8). O Espírito Santo foi outorgado como selo aos crentes e habita neles. A todos os cristãos foi dado de beber de um só Espírito (Rm 5.5; 8.9; 1Co 12.13; Ef 1.13-14). O que cabe aos discípulos de Jesus hoje não é buscar um batismo com o Espírito Santo, e sim compreender que “a lei do Espírito da vida, em Cristo Jesus” concedeu a eles um poder e produziu neles uma transformação que não podia ser operada pela lei judaica. Sendo assim, cada crente pode e deve evidenciar o fruto do Espírito Santo em santidade prática (Rm 8.2-4; Gl 5.22-23). Além disso, o cristão é exortado a buscar a experiência de ser cheio do Espírito Santo, bem como servir ao Senhor com sua vida, seus bens e seus talentos e dons espirituais (Ef 5.17-18; 1Pe 4.10).

Abre-se espaço para o conceito de batismo com o Espírito Santo proposto por Packer:

Nesse sentido, 1Coríntios 12.13; Atos 11.15-17 e João 1.33, com Atos 1.5; 2.4, 33, 38 como pano de fundo, oferecem, conjuntamente, a definição de batismo no Espírito como o ingresso, mediante a comunhão e o compromisso que a fé gera, à realidade experimentada da vida de ressurreição de Cristo: ingresso que as águas do batismo tanto representam quanto confirmam (Rm 6.2-11; Cl 2.11-13).66

Quanto aos episódios de recebimento do Espírito após o Pentecostes, registrados em Atos, cada acontecimento cumpre tanto uma finalidade específica na história da redenção, quanto sua função consistente com a teologia de Lucas-Atos, especialmente a ênfase de Lucas no amor pelos etnicamente diferentes.67 Em Atos 8.5-25, o evangelho quebra a barreira entre judeus e samaritanos, pois o Espírito Santo é dado aos samaritanos somente depois da imposição de mãos dos apóstolos de Jerusalém. Em Atos 10.1—11.18, o evangelho rompe o muro que separava judeus e gentios. Em Atos 19.1-7, Deus usa Paulo para esclarecer que o evangelho de Jesus cumpre e sobrepuja a pregação de arrependimento de João Batista.68

O derramamento do Espírito no Pentecostes derivou da exaltação do Filho e assegurou os benefícios pactuais prometidos. Desde então, tanto a igreja coletivamente, quanto o cristão individualmente, têm o Espírito. O evangelho foi compreendido e explicado pelos apóstolos e profetas do NT, possibilitando o serviço e testemunho da igreja até “os confins da terra”. O ministério do Espírito Santo não deve ser entendido como algo alheio à obra de Jesus Cristo, mas sim como complemento ou desdobramento da redenção. Os ministérios e dons são dados à igreja para que esta manifeste Cristo ao mundo (figura 1).

Figura 1.A vinda do Espírito no Pentecostes evidenciou a exaltação de Jesus e viabilizou a missão e o serviço da igreja.

66 PACKER, op. cit., p. 129. 67 THIELMAN, Frank. Teologia do Novo Testamento: Uma Abordagem Canônica e Sintética. São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 166-167. 68 Para os interessados em estudar mais e melhor estas passagens de Atos, recomendamos o estudo de KNIGHT III, op. cit., p. 90-96; e ainda, HULSE, op. cit., cap. 3, posição 506-847 de 1613. Um estudo clássico é o de John R. W. Stott; cf. STOTT, John. Batismo e Plenitude do Espírito Santo: O Mover Sobrenatural de Deus. 3. ed. Reimp. 2011. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 21-47. Para um estudo expandido do batismo com o Espírito Santo em todo o livro de Atos, cf. BRUNER, 2012, p. 141-200. Quem quiser saber como João Calvino e outros pais reformadores interpretaram estes trechos de Atos, cf. CHUNG-KIM; HAINS (Comentário Bíblico da Reforma; Atos). Leitores mais empenhados podem ainda compulsar o comentário de Atos, de Simon Kistemaker (KISTEMAKER, Atos, v. 1 e 2, passim).

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Recapitulando, o acolhimento da salvação implica fruição da dádiva do Espírito Santo. O cristão recebe a pessoa e o poder do Espírito Santo em seu coração e vida a partir de sua conversão. Até ser glorificado, ele evidencia o fruto do Espírito enquanto diariamente busca ser cheio do Espírito Santo. Dito negativamente, não acolhemos a doutrina pentecostal, que sugere que é possível ser cristão sem ser batizado com o Espírito Santo — que o batismo com o Espírito Santo é uma “segunda bênção”, cuja evidência é a glossolalia. A partir de uma interpretação sadia das Escrituras, afiançamos que os cristãos verdadeiros são batizados com o Espírito Santo.69

2.2. Ministérios ou serviços realizados para Deus A palavra “ministério” pode denotar lugar destacado. No âmbito do funcionalismo público, um “ministro” é alguém de nível elevado, que deve ser considerado com singular distinção.70

Na Escritura, “ministério” corresponde a serviço. Em Êxodo 3.12, o verbo “servir” traduz ābad, a mesma palavra usada em Gênesis 2.15, ali traduzida como “cultivar”, referindo-se ao serviço que o homem devia prestar ao Senhor, no jardim do Éden.71 E o termo aparece novamente em Gênesis 29.30, descrevendo o serviço que Jacó prestou a Labão, a fim de se casar com Raquel. No NT, na maioria das vezes, “ministério” traduz leitourgia, “ato religioso” ou “serviço” a Deus (Lc 1.23; Hb 8.6) ou diakonia, “tarefa”, “incumbência” ou “serviço”, prestado por Jesus ou pelos apóstolos e diáconos, em favor dos eleitos (Mc 10.43-45; At 1.17, 25; 6.2, 4; 20.24; 21.19; Rm 11.13; 12.7; 2Co 3.3, 7-9; 4.1; 5.18; 6.3; 2Tm 4.5, 11).72

R. A. Bodey nos ajuda a entender a amplitude da ideia bíblica de ministério:

(1) Discipulado em geral (Jo 12.26); (2) o leque completo de serviços e atividades, por meio dos quais o trabalho de Cristo é efetuado na igreja e no mundo (At 21.19; 1Co 16.15; Ef 4.11; Cl 4.17; 2Tm 4.5); (3) a pregação e o ensino da Palavra (At 6.4); (4) um “dom” divino especial para vários serviços espirituais e temporais (Rm 12.7; 1Co 12.5); (5) ministérios beneficentes específicos de assistência social na igreja de Jerusalém (At 6.1) e contribuições das igrejas dos gentios convertidos para os pobres de Jerusalém (2Co 8.4); (6) serviços pessoais

69 Para os interessados em aprender mais sobre o entendimento bíblico do batismo com o Espírito Santo, são muito recomendadas as leituras de GAFFIN JR., Richard B. Perspectivas Sobre o Pentecostes. São Paulo: Os Puritanos, 2010, p. 15-46; de FERGUSON, Sinclair B. O Espírito Santo. São Paulo: Os Puritanos, 2014, edição do Kindle, posições 921-1568 de 4811 e, mais uma vez, de SPROUL, op. cit., p. 97-115. Uma leitura sempre recomendada é STOTT, op. cit., passim. 70 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio. Curitiba: Positivo Informática Ltda., 2009. CD-ROM 71 Desde os primórdios da história, adoração e trabalho são inseparáveis (Gn 2.15). As palavras da Bíblia Hebraica traduzidas por “cultivar” e “guardar” (Gn 2.15) são ligadas ao culto de Israel. O homem deveria ‘ābad, “cultivar” ou “servir como um adorador”. Este termo aparece 290 vezes no AT. Sua raiz aramaica tem o sentido de “fazer” e provém de “uma raiz árabe” cujo significado é “adorar” ou “obedecer (a Deus)”. Cf. KAISER, Walter C. ‘ābad. In: HARRIS, R. Laird; ARCHER JR., Gleason L.; WALTKE, Bruce K. (Org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1065. Outro vocábulo importante é šāmar, “guardar”, ou seja, “cuidar” ou “vigiar” o jardim, usado em conexão com a observância dos preceitos divinos (Gn 18.19; Êx 20.6; Lv 18.26). 72 Há exceções. Em Atos 7.53, “ministério” traduz diatagē, “ordenança” ou “direção” dos anjos; em Atos 8.21, “ministério” traduz logos, “palavra”. Cf. BODEY, R. A. Ministério. In: TENNEY, Merrill C. (Org.). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 285, v. 4. O termo “ministro” traduz ainda hipēretēs, (cf. Lc 1.2; 2Co 4.1), com o sentido de servo. Cf. HESS, Klaus. Servir. In: COENEN, Lothar; BROWN, Colin. (Org.). Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 2343, 2344, v. 2. O Senhor Jesus exemplifica em grau máximo o que é servir a Deus e ao próximo com amor e humildade; cf. Cf. HESS, op. cit., p. 2343, 2344.

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como aqueles prestados por Tíquico a Paulo (Ef 6.21); (7) o ofício de diácono (Fp 1.1; 1Tm 3.8, 12).73

Esta lista permite que digamos, com a reverência devida, que o próprio Deus ministra a nós, usando pessoas. Contrariando a crendice popular de seu tempo, que considerava “santos” apenas as figuras canonizadas pela Igreja Romana, Lutero insistiu que servimos a Deus servindo ao próximo:

Quando desejar fazer alguma coisa pelos santos, volte sua atenção para os vivos, não para os mortos. O santo vivo é seu próximo, o nu, o faminto, o sedento, o pobre que tem esposa e filhos e sofre humilhações. Dirija sua ajuda a eles, comece seu trabalho aqui.74

O ministério ao Senhor pode e deve ocorrer enquanto desempenhamos nossa vocação (beruf) ou profissão.

Um sapateiro, um ferreiro, um lavrador, cada um tem o ofício e a ocupação próprios de seu trabalho. [...] cada qual deve ser útil e prestativo aos outros com seu ofício ou ocupação, de modo que múltiplas ocupações estão voltadas para uma comunidade, para promover corpo e alma, da mesma forma como os membros do corpo servem todos um ao outro.75

Isso quer dizer que pode ser discernida, na mão humana que provê e ajuda, a própria providência e auxílio de Deus. Michael Horton menciona que “Lutero falou do trabalhador que tira o leite e do padeiro como ‘máscaras’ atrás dos quais Deus se esconde a fim de atender as nossa orações por sustento diário. Em cada dom, Deus é o doador último”.76

Verificamos acima, que podemos entender o Pentecostes como corolário da exaltação de Jesus Cristo (At 2.33). Em Efésios 4.7-16, o apóstolo Paulo vincula a exaltação de Cristo com a concessão de dons à igreja.

E a graça foi concedida a cada um de nós segundo a proporção do dom de Cristo. Por isso, diz:

Quando ele subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens.

Ora, que quer dizer subiu, senão que também havia descido até às regiões inferiores da terra? Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas. E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres (Ef 4.7-11).

Todos recebemos graça por meio de Cristo (Ef 4.7). Nenhum cristão é destituído de graça e existe uma “proporção” ou “medida” (NVI) dela. O “dom de Cristo” não deve ser entendido como um “carisma” (como os mencionados em Rm 12.6-8 ou 1Co 12.4-11). O termo aqui é dōrea, “o que é dado” ou “repartido”,77 tal como lemos na NVI: “conforme a medida repartida por Cristo” (grifo nosso). Podemos entende isso de duas formas, a saber, Cristo mesmo é a coisa repartida, quer dizer, sua redenção nos alcança; recebemos tudo dele, por

73 BODEY, op. cit., loc. cit. 74 GEORGE, op. cit., p. 117. 74 GEORGE, op. cit., p. 117. 75 LUTERO, Martinho. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, Acerca da Melhoria do Estamento Cristão. In: LUTERO, Martinho. O Programa da Reforma: Escritos de 1520. 3. ed. atualizada. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2015, edição do Kindle, posição 5766 de 11.783, v. 2. (Obras Selecionadas). 76 LUTHER, Martin. Day By Day We Magnify Thee. Philadelphia: Fortress, 1982, apud HORTON, op. cit., p. 373. 77 LOUW, Johannes P.; NIDA, Eugene Albert. Greek-English Lexicon of the New Testament: Based on Semantic Domains. New York: United Bible Societies, 1996, #57.84, δώρημα; δωρεά; δῶρονa, p. 566–567. Logos Software.

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graça. Ou podemos entender que a graça chega até nós na medida dispensada por Cristo e, nesse caso, a ênfase recai sobre sua soberania. Ambos os entendimentos motivam a olhar para Cristo como fonte e mediador da graça.

O dom de Cristo não é banal. Pelo contrário, provém de sua obra impressionante e vitoriosa (Ef 4.8-10). Paulo cita Salmos 68.18, que descreve os montes elevados invejando o monte escolhido por Deus para sua habitação. O Senhor vitorioso habita no meio, leva o fardo, salva e liberta seu povo da morte.

Por que olhais com inveja, ó montes elevados, o monte que Deus escolheu para sua habitação? O SENHOR habitará nele para sempre. Os carros de Deus são vinte mil, sim, milhares de milhares. No meio deles, está o Senhor; o Sinai tornou-se em santuário. Subiste às alturas, levaste cativo o cativeiro; recebeste homens por dádivas, até mesmo rebeldes, para que o SENHOR Deus habite no meio deles. Bendito seja o Senhor que, dia a dia, leva o nosso fardo! Deus é a nossa salvação. O nosso Deus é o Deus libertador; com Deus, o SENHOR, está o escaparmos da morte (Sl 68.16-20).

No contexto original, o herói vitorioso recebe os homens como dádivas. Isso se aplica plenamente a Cristo (cf. Is 53.12). Em Efésios 4.8, Cristo, o herói vitorioso, concede dons (doma; “dádivas”) aos homens.78 A exaltação dele é descrita graficamente; a própria prisão é levada cativa. E isso custa um preço elevado; Jesus desceu “até às regiões inferiores da terra” (v. 9-10), uma referência à sua encarnação, morte e sepultamento.

O resultado da obra e exaltação do Senhor Jesus Cristo consta em Efésios 4.11: “apóstolos”, “profetas”, evangelistas, pastores e “mestres”, gente dada por Cristo à igreja, a fim de desempenhar determinados ofícios.

Embora ele [Paulo] se refira nos versos 7 e 8 [de Efésios 4] aos dons espirituais que foram dados por Cristo à sua igreja (cf. “a graça foi concedida”, v. 7; “concedeu dons”, v. 8), a lista do verso 11 não é apresentada de forma abstrata, como “dons de curar, dom de profetizar, dons de discernimento e ciência”, a exemplo de outras listas (cf. 1Co 12.4-11; 28-29; Rm 12.6-8). Paulo diz que Cristo concedeu pessoas que são apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres. Ele concedeu “uns” e “outros”. Estas pessoas, sem dúvida, foram capacitadas com dons espirituais para exercer estes determinados e diferentes ministérios ou ofícios na igreja. Segundo Snodgrass, “a ideia aqui não é de dons dados a um grupo especial, mas da graça dando pessoas à igreja”.79

Em que sentido tais pessoas são dádivas do Senhor para a igreja? Efésios 4.12-16 revela que, pelo serviço delas, a igreja é estabelecida, nutrida e amadurecida, a fim de efetuar “o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor” (Ef 4.16). Deus estabelece uma estrutura para o fluxo da vida da igreja — sua vida, autoridade e poder agora correm na igreja como torrentes de águas purificadoras (Ez 47.1-12).80

Outro detalhe a considerar é que, no ministério do Redentor, revela-se uma dinâmica de receber e dar. “Cristo recebeu a fim de dar. Ganhou a fim de premiar. Ele recebeu esses

78 A mesma palavra é encontrada em Mateus 7.11; Lucas 11.13; Filipenses 4.17. 79 LOPES, Augustus Nicodemus. Apóstolos: A Verdade Bíblica Sobre o Apostolado. São José dos Campos: Fiel, 2014, p. 135. Lopes cita SNODGRASS, Klyne. Ephesians. In: The NIV Application Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 1996, p. 203. Recomendamos fortemente a obra de Lopes, uma vez que, no presente estudo, não dedicamos mais espaço à explicação do apostolado. 80 Ainda que o cumprimento final da profecia de Ezequiel 47.1-12 seja aguardado para a consumação, a igreja já desfruta, na medida da graça de Cristo, de diversas bênçãos decorrentes destas “águas purificadoras” e que chegam até nós no evangelho, aqui e agora — pela Palavra primeiramente provida pelos “apóstolos, profetas e evangelistas”, agora ministrada por “pastores e mestres” e aplicada no coração pelo Espírito Santo; cf. BLOCK, Daniel I. O Livro de Ezequiel. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, 620–628, v. 2. (Comentários do Antigo Testamento). Logos Software.

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cativos a fim de dá-los ao reino, para a obra do reino”.81 É plausível inferir os ministérios como serviços que prestamos a Deus, compartilhando aquilo que recebemos dele mesmo graciosamente.

Uma penúltima coisa a ser dita é que todo serviço ou ministério repercute eternamente (Jo 5.28-29; 1Co 3.10-15; 15.58; Ap 14.13). Não há tarefa ou função, por mais modesta que pareça, que seja sem importância no plano divino; daí a demanda de realizar qualquer coisa em nome do Senhor e como para o Senhor (Cl 3.17, 22-25).

A última coisa a afirmar é que todo serviço ou ministério é apenas isso: ocupação que é concluída e missão que é cumprida. Deus chamou e capacitou escribas, artesãos, músicos, guerreiros e juízes. Ele também constituiu oficiais: profetas, sacerdotes e reis, em seguida, apóstolos, evangelistas, pastores e diáconos. Vejamos que:

• Algumas dessas tarefas ou atividades foram mandatórias uma única vez, ou por um tempo e depois cessaram.

• Outras mudaram de tal forma que igreja faz uso delas sem a conotação oficial original. É o caso de pessoas que montam e desmontam equipamentos, cuidam do lugar de adoração ou conduzem a música congregacional, sem exigência de contemporaneidade do ofício de levita.

• Outros serviços e ofícios (de pastor, presbítero e diácono) continuaram ao longo da história da igreja e continuam até hoje.

• A única exigência jamais alterada é que, qualquer empreitada ou função, em todo tempo ou lugar, deve ser assumida e realizada na dependência e poder do Espírito Santo.

Isso abre espaço para deduzir que alguns serviços (ministérios) e funções (ofícios) são extraordinários e temporários, enquanto outros são ordinários e permanentes.

2.3. O chamado para o serviço A palavra do NT para chamado é “vocação” (klēsis; cf. 1Co 1.26; Ef 4.1, 4; Fp 3.14; 2Tm 1.9; Hb 3.1; 2Pe 1.10). Há pelo menos quatro círculos concêntricos de chamado, para a conversão, para a santificação, culto e comunhão, para a evangelização, discipulado e missão e para o serviço na igreja e na cultura.

No chamado para a salvação, o Espírito Santo aplica a palavra ensinada ou pregada em nosso coração (At 16.13-15; Rm 8.28-30; 2Ts 2.14; 2Tm 1.9).82 No chamado para a santidade, culto e comunhão, somos lembrados de que sem “santificação [...] ninguém verá o Senhor” e de que Deus procura por pessoas que o adorem “em espírito e em verdade” (Hb 12.14; cf. Sl 15.1-5; 24.3-5; Mt 5.8; 7.23; Jo 4.23-24; 1Ts 4.7; 1Pe 1.15). No chamado para a evangelização, discipulado e missão, somos responsabilizados pela tradução e distribuição da Bíblia e da mensagem da salvação entre as etnias do mundo e em nossa cidade (Mt 28.18-20; Mc 16.15; Lc 24.46-49; Jo 20.21-23; At 1.8). Por fim, no chamado para o serviço, Deus nos desafia a servi-lo na igreja e na cultura (Mt 5.13-16; Fp 2.15; Cl 3.23-25; 1Pe 2.9; 4.10).

Pensando no chamado para o serviço, encaminhamos sete declarações:

1. Deus nos chama de modo geral, nas ordenanças expressas da Escritura.

81 HENDRIKSEN, William. Efésios e Filipenses. 3. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 1992, p. 226. (Comentário do Novo Testamento). Logos Software. 82 “O Espírito Santo opera de tal maneira sobre o povo eleito de Deus, que eles são levados ao arrependimento e à fé, e assim feitos herdeiros da vida eterna, por meio de Jesus Cristo, Senhor deles. Esta obra do Espírito, nas Escrituras, chama-se vocação” (HODGE, op. cit., p. 961).

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2. Deus nos chama tanto a um trabalho, quanto a um relacionamento íntimo, fiel e sincero com ele.

3. Deus nos chama de um modo pessoal e personalizado. 4. O chamado pode ser respondido com relutância e gerar conflito. 5. O chamado para o serviço é ordinariamente reconhecido pelo povo de Deus. 6. Para realizar o serviço de Deus, nem sempre é preciso reconhecer um chamado

claro ou específico. 7. O chamado para o serviço é pactual, ou seja, estabelece responsabilidades.

Ordens expressas da Escritura não demandam chamado especial ou complementar. Isso quer dizer que não é preciso Deus falar em uma experiência mística, para saber que ele nos convoca a repartir o pão com o faminto, recolher em casa os desabrigados, cobrir o nu e não nos afastar de nosso semelhante. Isso está escrito em Isaías 58.7. Tais ordens devem ser simplesmente acatadas, uma vez que o discípulo de Jesus é chamado para caminhar com ele em obediência à Palavra de Deus.

Isso distingue o serviço a Deus como relacionamento. As palavras bíblicas que tratam do chamado para servir se referem não apenas a um “apelo de Deus a uma tarefa ou função específica”, mas também à “sua relação especial com o seu povo”.83 Esses dois aspectos são inseparáveis. Deus nos chama soberanamente para “estarmos com ele” (relacionamento) e, em seguida, nos incumbe de uma ou mais tarefas (serviço; cf. Mt 28.18-20; Mc 3.13-14; At 18.9-10; 1Co 4.1-2). Os que realizam o serviço para Deus não são os fortes autoconfiantes, e sim os fiéis que andam próximos dele.

Não é dos fortes a vitória, nem dos que correm melhor; Mas dos fiéis e sinceros que seguem junto ao Senhor!84

Quem se apega somente ao serviço se transforma em ativista seco, o típico indivíduo que trabalha duro enquanto se esgota física, emocional e espiritualmente. Quem destaca exclusivamente a comunhão com Deus se torna místico despreocupado com as obras do reino, o indivíduo que experimenta êxtases devocionais no monte, mas não colabora com a reforma dos bancos da igreja, nem presta atenção no vizinho que passa por necessidade.

Quanto à personalização, o chamado se adequa a cada cristão, em seu próprio contexto e tempo. Além disso, cada crente responde a este chamado de modo singular. As biografias dos servos de Deus na Bíblia exemplificam isso, e.g., Moisés e Daniel foram chamados, cada um de modo diferente. O primeiro ouviu Deus lhe falando claramente; o segundo foi levado involuntariamente para a Babilônia e integrado ao serviço real (Êx 3.1—4.17; Dn 1.1-6).

Quanto ao conflito e relutância, alguns respondem imediatamente, enquanto outros relutam antes de serem convencidos (Is 6.8-9; Jr 1.4-5). A convicção pode demandar um período de busca do Senhor (Ne 1.4-11). Isso é assim porque o chamado para o serviço, por um lado, exerce fascínio; por outro, pode ser recebido com hesitação, insegurança e até repulsa, tanto por exigir algo além de nossa capacidade, quanto por forçar ruptura com nossos projetos imaturos (Êx 3.11—4.17; Pv 16.1-3, 9; 19.21; 20.5; 21.2). O padrão é que o período conflituoso dê lugar a uma segurança interior, gerada pela graça.

Quanto ao reconhecimento do povo de Deus, via de regra, o chamado é ratificado pelos irmãos na fé. O autor deste estudo era adolescente quando duas pessoas mais maduras lhe

83 MYERS, Allen C. The Eerdmans Bible Dictionary. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1987, p. 183. Os termos bíblicos são qārā (Êx 3.4) e o termo grego kaleō (Mt 25.14) e seus cognatos gregos proskaleō (Mc 3.13); como vimos, klēsis (Rm 11.29); klētos (Rm 1.1); legō (no sentido de nomear, perguntar ou responder; Mt 1.16; Mc 2.16; 4.11); phōneō (Mc 10.49) e chrēmatizō (denominar ou advertir com instrução; At 11.26; Hb 8.5). 84 CROSBY, F. J.; GINSBURG, S. L. Hino 49. Sempre Vencendo. In: NOVO CÂNTICO. 16. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, versão em ePub, 2018, p. 57.

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disseram, em ocasiões diferentes, que viram nele uma vocação para o ensino da Bíblia. Desde então, outros irmãos falaram coisa semelhante. O reconhecimento por outros, de um chamado e de dons, é o fato objetivo que confirma a persuasão subjetiva.85 Para os puritanos, o chamado para o ministério da Palavra é indireto, ou seja, confirmado no coração pelo Espírito Santo aplicando a Palavra de Deus, no contexto da comunhão da igreja.86

Quanto à possibilidade de servir a Deus mesmo sem saber detalhes sobre o chamado, é possível ser usado por Deus, realizar algo para ele, sem ter consciência de que estamos respondendo a um chamado específico. José só reconheceu um chamado do Senhor para gerir o Egito em retrospectiva, depois de realizar a tarefa (Gn 37.1-28; 40.1—41.57; 45.4-8; Et 1.1—9.32). Deus pode ajuda um cristão a enxergar oportunidades e necessidades, bem como empurrá-lo para situações que demandam resposta e colaboração. Ademais, o chamado para o serviço cristão pode ter relação com nossa aspiração ou atividade profissional, bem como com coisas que apreciamos e com as quais nos identificamos. Mais importante que saber detalhes da vocação divina para o serviço, é se colocar à disposição para ser útil, florescer e frutificar onde se encontra, para o agrado de Deus (Mc 4.20; Cl 1.10).

Finalmente, o chamado de Deus é sempre acompanhado de responsabilidades. Isso é tão solene que o NT sublinha que cada cristão prestará contas pelo modo como serviu ao Senhor (1Co 3.10-17; 2Co 5.10; 1Pe 4.5). Sendo assim, mesmo considerando o que consta no parágrafo acima, é proveitoso ter uma percepção e convicção do chamado, pelo benefício do foco que amplia nosso potencial de cumprir os mandatos divinos mais fielmente.

Eis algumas sugestões para quem deseja identificar seu chamado para o serviço:

• Ore. Peça a Deus que lhe mostre onde e de que forma ele deseja que você o sirva de todo coração.

• Identifique necessidades. Será que você poderia ajudar a supri-las? • Identifique áreas de serviço. Você se aproxima de determinada causa, grupo de

pessoas, atividades ou tarefas da igreja? Se esse não é o caso, sirva em lugares diferentes até localizar aquele em que você seja mais útil.

• Converse com cristãos que parecem demonstrar segurança quanto às suas vocações e aprenda com os discernimentos e experiências deles.

Será que nossa geração corre risco de perder a noção do que seja o chamado para o serviço? Seria possível enfatizar apenas a adoração, deixando de considerar que, além de “adoradores”, Deus também procura “trabalhadores” (Jo 4.23-24; Mt 9.37-38)?

Cristãos comprometidos com o Senhor trabalham para ele com uma convicção, de que não pertencem a si mesmos, e um desejo, de se gastar no serviço divino: “Todo o meu ser não considero meu; quero gastá-lo no serviço teu”.87 O cristão bíblico derrete enquanto trabalha; ele se gasta no serviço. O discípulo de Jesus quer “se gastar” no serviço do Senhor.

85 A Constituição Interna da IPB afirma que “a admissão a qualquer ofício depende da vocação do Espírito Santo, reconhecida pela aprovação do povo de Deus”; cf. Constituição Interna da Igreja Presbiteriana do Brasil (CI/IPB), Artigo 28. In: SUPREMO CONCÍLIO DA IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL. Manual Presbiteriano. 4. reimp. 2016. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. 86 Joel Beeke e Mark Jones explicam que, para os puritanos, “os ministros ordinários são chamados por Deus apenas de forma indireta, não direta” (BEEKE, Joel R.; JONES, Mark. Teologia Puritana: Doutrina Para a Vida. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 910; grifo nosso). Eles citam William Ames, para quem os ministros “são chamados ordinários porque é de acordo com a ordem estabelecida por Deus que podem ser e geralmente são chamados a ministrar” (AMES, William. The Marrow of Theology. Grand Rapids: Baker, 1997, p. 183, apud BEEKE; JONES, op. cit., p. 910-911). 87 ORR, J. E.; KASCHEL, W. Hino 67. Coração Quebrantado. In: NOVO CÂNTICO, p. 75.

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Talvez você já tenha ouvido falar sobre algumas dessas pessoas. Policarpo, pastor em Esmirna, no 2º século, foi queimado vivo aos 86 anos, por não rejeitar a Cristo. David Brainerd, pastor congregacional e missionário entre os índios norte-americanos, morreu aos 29 anos de tuberculose, pouco antes de se casar. William Carey, o “pai das missões modernas”, dedicou sua vida ao trabalho missionário na Índia. David Livingstone deixou o Reino Unido aos 28 anos de idade para servir na África e morreu orando, em 1 de maio de 1873. Hudson Taylor, amigo de Charles Spurgeon, serviu a Deus durante 51 anos na China. Ali dois de seus filhos morreram, um em 1858, outra em 1865. John G. Paton serviu ao Senhor nas ilhas Novas Hébrides, hoje Vanuatu, ao sul do oceano Pacífico. Horace Underwood foi pastor, educador e missionário presbiteriano na Coreia. Amy Charmichael dedicou 55 anos ao serviço de Deus no Japão, Sri Lanka e Índia. O casal Robert Reid Kalley e Sarah P. Kalley fundou a Igreja Evangélica Fluminense, em 1858, apoiou obreiros presbiterianos e, de modo especial, a irmã Sarah compôs muitos hinos, alguns inseridos no hinário Novo Cântico. Ashbel Green Simonton fundou a Igreja Presbiteriana do Brasil e faleceu aos 34 anos, de “febre biliosa”.88 José Manuel da Conceição, primeiro brasileiro ordenado ao ministério evangélico e plantador de igrejas apaixonado, morreu no Vale do Paraíba em decorrência de ferimentos.

A causa cristã deve muito a essas pessoas que abriram mão de seu conforto, a fim de trabalhar para Deus. O que as motivou? O que as fez ficar firmes em seus lugares e tarefas, mesmo sofrendo? Elas levaram o chamado para o serviço a sério. Paulo fez o mesmo anos antes, como lemos em Atos 18.9-11; 26.19; 27.23-26. Em Atos 20.24, ele proferiu palavras que até hoje consolam e mobilizam outros cristãos, quando meditam no chamado para o serviço: “Porém em nada considero a vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça de Deus”. Os cristãos citados acima podiam se acomodar ou, quem sabe, se irritar por causa do sofrimento decorrente de sua consagração. Ao invés disso, movidos pelo senso de vocação eles perseveraram, trabalharam duro e produziram frutos.

Deus deseja que façamos e não apenas ouçamos como deve ser feito, ou como determinado missionário está fazendo. Ele quer que cada um de nós, pessoalmente, faça. “O trabalho a que Jesus te chama aqui, como será feito, se o não for por ti?”89 Cristãos correm risco de se verem como usuários de serviços religiosos. A igreja se torna mera instituição e os pastores, profissionais pagos para atender uma clientela. A saúde da igreja é prejudicada quando os seus membros não atendem aos diferentes chamados de Deus.

88 Para conhecer mais sobre estas personagens, recomendamos a obra de TUCKER, Ruth. Missões Até Os Confins da Terra: Uma História Biográfica. São Paulo: Vida Nova, 2010. 89 WRIGTH, H. M. Hino 312. Há Trabalho Certo. In: NOVO CÂNTICO, op. cit., p. 284. Grifo nosso.

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3. O sacerdócio de todos os crentes e os ofícios de Cristo e da igreja

Desde a queda, existe no coração humano e, por conseguinte, na igreja, a ideia de que os crentes podem ou devem ser divididos em duas categorias, uma inferior ou comum e outra mais elevada. Marcos 10.35-45 registra um pedido que Tiago e João fizeram a Jesus. Ambos solicitaram assentar-se um à direita, outro à esquerda do Senhor, quando este revelasse sua glória. Se Jesus concordasse com aquilo, Tiago e João seriam considerados como discípulos elevados acima dos demais.

Tempos depois, nas igrejas da Galácia, pessoas ensinaram que os cristãos precisavam se submeter à circuncisão judaica (Gl 1.6; 2.3-5, 12; 6.12-13). Paulo esclareceu que a única coisa que assegura um cristão diante de Deus é a fé em Jesus Cristo (Gl 2.16, 19-21; 3.7, 11, 22; 5.1-6, 11-12; 6.15). Se o apóstolo concordasse com a proposta judaizante, haveria naquelas igrejas duas classes de crentes, os não circuncidados (menos consagrados) e os circuncidados (mais dedicados a Deus).

Algo semelhante aconteceu na igreja de Corinto. Trincas surgiram entre os partidos “de Paulo”, “de Apolo”, “de Cefas [Pedro]” e “de Cristo” (1Co 1.12). Paulo repreendeu a divisão infantil deles (1Co 3.1-23). Se aquele estado de coisas prevalecesse, haveria em Corinto crentes considerados menos espirituais, contrastando com outros, mais espirituais.

E o problema retornou em Colossos e Laodiceia. Indivíduos com “raciocínios falazes” sugeriram que, além de Jesus Cristo, o cristão precisava adquirir conhecimento e sabedoria místicos (Cl 1.9-10, 28; 2.1-4, 8-9), bem como se abster de determinados alimentos e bebidas e observar o calendário judaico (Cl 2.16-17). Isso era proposto em um contexto de “culto dos anjos” e “visões” (Cl 2.18-19). Paulo corrigiu o erro sublinhando a singularidade, supremacia e suficiência de Cristo no evangelho (Cl 1.13-29; 2.1-23; 3.1—4.6). Se não fosse arrancada pela raiz, a heresia colossense ensejaria dois tipos de crentes em Colossos, os comuns (que não cultuavam anjos, nem tinham visões, nem se submetiam às dietas e outras práticas rigoristas), e os cristãos mais elevados (santos e sábios das coisas ocultas).

No período medieval firmou-se o ideal monástico:90 o estado espiritual de um cristão que se casa e exerce uma profissão é inferior ao de alguém que opta pela vida em um mosteiro, dedicando-se ao serviço em tempo integral na igreja. Os pais reformadores entenderam isso como atualização do mesmo equívoco, de que os crentes podem ser divididos em duas categorias, uma comum e outra especial.

A Bíblia combate essa ideia primeiro com o evangelho, depois com o ensino sobre o sacerdócio de todos os crentes. Além disso, informa sobre os ofícios da igreja e o modo como o Espírito Santo ajuda a igreja a refletir o triplo ofício de Cristo no serviço prestado a Deus.

3.1. Todos os cristãos são sacerdotes de Deus Todo cristão é constituído sacerdote. No AT, Deus libertou seu povo da escravidão para que este o servisse como “reino de sacerdotes e nação santa” (Êx 19.4-6).

Mesmo assim, o povo no AT não se apresentava diante de Deus diretamente. Foi distinguida uma classe sacerdotal, sendo que o sacerdote funcionava como mediador entre

90 O adjetivo “monástico” deriva de monastikōs (gr.), “relativo à vida solitária”. A palavra “monge” deriva de monachōs, “solitário”.

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Deus e Israel, representando o Senhor diante do povo e o povo diante do Senhor. Somente os filhos de Arão serviam como sacerdotes (Êx 28.1; Lv 1.5, 7-8). Para oficiar, eles eram purificados com sangue e ungidos com óleo, implicando consagração e revestimento com o Espírito Santo (Lv 8.12, 30; 1Jo 2.20, 27). Dito de outro modo, o sacerdote do AT servia a Deus na dependência e poder do Espírito.

O Senhor Jesus é o sumo sacerdote dos cristãos (Hb 5.5-10). Ele exerce este ofício apresentando seu sangue e intercedendo pelos crentes junto ao Pai (Hb 4.14-16; 1Jo 2.1-2). A palavra hebraica para “ungido” é mā·šîaḥ; “Messias” (2Cr 6.42). A palavra grega é Christos, “Cristo” (Jo 1.41; 4.25). Sendo assim, “Jesus Cristo” significa, literalmente, “Jesus, o Ungido”, indicando que Jesus serviu ao Pai na dependência e poder do Espírito.

Em 1Pedro 2.4, somos convocados a nos achegar ao Senhor Jesus, “a pedra que vive”. Em seguida, somos descritos como “pedras que vivem”, santuário edificado pelo Senhor como como “sacerdócio santo” (1Pe 2.5). Por fim, somos chamados de “sacerdócio real”, uma “ordem ou corpo de sacerdotes”,91 incumbido de adoração e testemunho (1Pe 2.9-10).92 Calvino entendeu, com base nesta passagem, que o sacerdócio dos crentes tanto cumpre quanto supera o sacerdócio mencionado em Êxodo 19.

Moisés chamou vossos pais de reino sagrado, porque todo o povo desfrutava, por assim dizer, uma liberdade régia, e dentre seu corpo foram escolhidos os sacerdotes; portanto, ambas as dignidades foram unidas numa só. Agora, porém, vós sois sacerdotes régios, e deveras de uma maneira mais excelente, porque sois, cada um de vós, consagrados em Cristo para que sejais os associados de seu reino e participantes de seu sacerdócio. Ainda que, pois, os pais tinham algo semelhante ao que tendes, contudo sois mais excelentes. Porque, depois que o muro de segregação foi derrubado por Cristo, sois agora congregados de toda nação e o Senhor outorga esses régios títulos a todos quantos toma como seu povo.93

Isso é reafirmado pela Bíblia de Estudo Herança Reformada:

Em 1Pedro 2, o apóstolo recorre a essa eclesiologia bíblica para mostrar que tudo o que valia para a igreja sob a lei vale também para a igreja sob o evangelho, mas em medida mais exaltada. O templo terreno, por exemplo, feito por mãos humanas, foi substituído por uma “casa espiritual”, construída de “pedras vivas”. Sob a lei, a igreja tinha um sacerdócio; sob o evangelho, toda a igreja é um “sacerdócio real”.94

O apóstolo João celebra o sacerdócio dos crentes no Apocalipse. Jesus é louvado porque, por seu sangue, ele “nos constituiu reino [nos fez reis; ARC], sacerdotes para o seu Deus e Pai” (Ap 1.6). Em Apocalipse 5.9-10, o Cordeiro é adorado pela redenção que liberta pessoas de todas as nações e as constitui “reino e sacerdotes”.

O sumo sacerdócio do Redentor, que por sua vez estabelece o sacerdócio dos crentes, dá a estes últimos o direito de entrar com “intrepidez [...] no Santo dos Santos” (Hb 10.19-22). Eles agora oferecem a Deus “sacrifício de louvor” e “sacrifícios espirituais agradáveis [...] por intermédio de Jesus Cristo” (Hb 13.15; 1Pe 2.5; cf. Rm 12.1). O cristão não precisa mais de um “sacerdote” segundo a linhagem de Arão, muito menos de um sacerdote eclesiástico.95 A igreja sacerdotal serve a Deus Pai e Deus Filho na dependência e poder de Deus Espírito.

91 STRONG, James. Strong's Concordance with Hebrew and Greek Lexicon. Spokane WA: Olive Tree Bible Software, Inc., [201-?], #2407. 92 WHEATON, David H. 1Pedro. In: CARSON, D. A.; FRANCE, R. T.; MOTYER, J. A.; WENHAM, G. J. (Ed.). Comentário Bíblico Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 2061-2062. 93 CALVINO, João. Epístolas Gerais. São José dos Campos: Editora Fiel, 2015, p. 192–193. (Série Comentários Bíblicos). Logos Software. Grifo nosso. 94 BEHR, p. 1796. Grifo nosso. 95 Como a palavra grega para igreja é ekklēsia, o diz respeito à igreja é “eclesiástico”.

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Como parêntese, salientamos que este ensino demanda considerar inadequadas decoração, liturgia e práticas de culto que remontam ao tabernáculo ou sacerdócio do AT. Além disso, ter o pastor como um sacerdote, que media a relação do crente com Deus, bem denominar o púlpito ou a parte da frente do lugar de adoração de “altar”.96

3.2. O sacerdócio dos crentes implica serviço da igreja Uma das implicações do sacerdócio de todos os crentes é o serviço dos cristãos uns aos outros e o serviço da igreja no mundo.

Se no AT funcionava o esquema Deus, que abençoa o povo por meio de um sacerdote ungido pelo Espírito Santo, no NT o esquema muda para Deus Pai, que abençoa a igreja por meio de Jesus, o sumo sacerdote celestial que realiza sua obra ungido pelo Espírito Santo e prossegue para o esquema atual: Jesus Cristo, para glória do Pai, enviando a igreja ungida pelo Espírito como corpo sacerdotal, para o serviço e bênção de Deus ao mundo (figura 2).

Figura 2. A progressão do sacerdócio no AT para o sacerdócio de todos os crentes, no NT.

No AT, o serviço a Deus era restrito aos sacerdotes e levitas, agora é atribuído a cada crente. Isso conduz a duas afirmações:

• Todos os trabalhos honestos e úteis, realizados pelos cristãos, são importantes. • O trabalho de cada cristão na igreja é importante.

Uma vez que todos os cristãos são reino e sacerdócio, o trabalho de um pastor possui tanta importância quanto qualquer outro trabalho honesto, realizado por outros membros da igreja. O importante é trabalhar, dentro e fora da igreja, como vocação de Deus, para bênção da igreja e do mundo. Ademais, os ofícios ou cargos na igreja diferenciam os crentes em termos de função, não de estado espiritual, o que implica rejeição do ideal monástico, tal como Lutero explica no documento À Nobreza Cristã da Nação Alemã:

Inventou-se que o papa, os bispos, os sacerdotes e os monges sejam chamados de estamento [stand, “estado”] espiritual; príncipes, senhores, artesãos e agricultores, de estamento [stand, “estado”] secular. Isso é uma invenção e fraude muito refinada. Mas que ninguém se intimide por causa disso, e pela seguinte razão: todos os cristãos são verdadeiramente de estamento [stand, “estado”] espiritual, e não há qualquer diferença entre eles a não ser exclusivamente por força do ofício [amte, “função”], conforme Paulo diz em 1Coríntios 12.12: “Todos somos um corpo, porém cada membro tem sua própria função, com a qual serve aos outros” [tradução de Lutero]. Tudo isso se deve ao fato de que temos um Batismo, um Evangelho, uma fé e somos cristãos iguais, porque é só Batismo, Evangelho e fé que tornam as pessoas

96 Cf. CALVINO, As Institutas, iv.iii.1—viii.16 [v. 4, p. 64-164].

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espirituais e cristãs. Ora, o fato de que o papa ou bispo unge, faz tonsura, ordena, consagra, se veste de forma diferente que os leigos pode perfazer um hipócrita ou um pseudossacerdote, jamais constitui, porém, um cristão ou pessoa espiritual. Assim pois todos nós somos ordenados sacerdotes através do Batismo, como diz São Pedro em 1Pedro 2.9: “Vós sois um sacerdócio real e um reino sacerdotal” [tradução de Lutero], e Apocalipse [5.10]: “Com teu sangue tu nos constituíste sacerdotes e reis” [tradução de Lutero].97

Earle Cairns argumenta que Lutero restabeleceu três pilares bíblicos:

A doutrina da justificação pela fé (sola fide) e a sola Scriptura, a ideia segundo a qual as Escrituras são a única autoridade para o pecador procurar a salvação, e o princípio de sola sacerdos, o sacerdócio dos crentes, passaram a ser os pontos principais de seu sistema teológico.98

Lutero ensinou que cada crente, como sacerdote de Deus, pode interpretar as Escrituras.99 Ademais, “todo cristão é sacerdote de alguém, e somos todos sacerdotes uns dos outros”,100 de modo que “cada um de nós [...] pode ir perante Deus e interceder pelo outro [...]”.101 Tais declarações contêm uma importante implicação: “Ninguém pode ser um cristão sozinho. Assim como não podemos nascer de nós mesmos, ou batizar a nós mesmos, da mesma forma não podemos servir a Deus sozinhos”.102

Para Alister McGrath, os reformadores repudiaram vigorosamente a ideia de que ser chamado por Deus equivale a abandonar a vida comum no mundo.

As pessoas são chamadas, em primeiro lugar, para serem cristãs e, em segundo lugar, para viverem sua fé numa esfera bem definida de atividades no mundo. [...] o cristão é chamado para servir a Deus no mundo. Essa ideia [...] deu uma nova motivação vital para ações fiéis comprometidas no mundo cotidiano. [...] os reformadores rejeitaram a distinção medieval vital entre “sagrado” e “secular”. Não há diferença genuína de posição entre a ordem “espiritual” e a “temporal”. Todos os cristãos são chamados para serem sacerdotes, e esse chamado se estende ao mundo cotidiano. Eles são chamados a purificar e santificar sua vida cotidiana a partir do seu interior. Lutero afirma esse ponto sucintamente: “O que parecem ser obras seculares na verdade são louvores a Deus e representam uma obediência que muito o agrada”.103

O cristão pode e deve se assumir como servo de Deus, na igreja e no mundo. De fato, a igreja-serva é estabelecida como bênção de Cristo ao mundo (Lc 24.48; Jo 17.20-23; At 1.8; Ef 3.10-12). Como corpo de sacerdotes, Deus nos chama para o serviço que ele “de antemão preparou” para nós (Ef 2.10; Jr 1.4-5; Gl 1.15-17). Uwe Holmer explica isso do seguinte modo:

No NT são colocadas mais nitidamente as ênfases sobre o sacerdócio: um sacerdócio real. Um sacerdócio para este mundo – essa é a posição e tarefa da igreja de Jesus [...]. É real porque pertence ao reinado de Deus e vive em direção a ele. Apesar de tribulação e desprezo ele não deixa de ser regiamente livre, porque está vinculado a Deus. Santo é um povo que pertence a Deus, que está separado para o serviço dele. Os que foram convocados desse modo vivem entre

97 LUTERO, op. cit., posição 5727 de 11.783. Grifo nosso. 98 CAIRNS, Earle Edwin. O Cristianismo Através dos Séculos: Uma História da Igreja Cristã. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 260. 99 CAIRNS, op. cit., p. 262. 100 GEORGE, op. cit., p. 116. 101 Ibid., p. 117. 102 Ibid., loc. cit. 103 MCGRATH, Alister E. O Pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 289.

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os povos e, não obstante, constituem um só povo, formando um conjunto por meio de Cristo, separados para o seu serviço (cf. Jo 17.15-19).104

Outro servo de Deus resume a questão assim:

Permanece, no entanto, um sacerdócio que pertence àqueles que, pela fé, foram unidos com Cristo. Costuma-se chamá-lo “o sacerdócio de todos os crentes”. [...] É por isso que somos exortados a “apresentar os nossos corpos”, isto é, a nós mesmos, “por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”(Rm 12.1); e, ao nos sacrificarmos de boa vontade, expressamos o nosso sacerdócio espiritual nos atos de louvor e gratidão, e no serviço altruísta ao nosso próximo, quando ministramos às suas necessidades.[...] [O reino de Cristo], acima de tudo, não possui nenhum sistema sacerdotal. Não interpõe nenhuma tribo ou classe sacerdotal entre Deus e o homem, por cujo exclusivo intermédio Deus é reconciliado e o homem perdoado. Cada membro individual tem comunhão pessoal com a Cabeça Divina. A pessoa tem responsabilidade imediata diante dele, e é diretamente dele que ela obtém perdão e adquire força.105

Se estas são as implicações do sacerdócio dos crentes para o serviço a Deus na igreja e no mundo, como devemos compreender os ofícios da igreja? O sacerdócio universal dos crentes torna desnecessário ordenar pessoas para servirem a Deus na igreja como pastores, presbíteros ou diáconos?

3.3. O sacerdócio de todos os crentes e os ofícios da igreja Timothy George alerta para o fato do ensino da Bíblia sobre o sacerdócio de todos os crentes ser às vezes entendido erroneamente: “Para alguns, isso significa apenas que não há mais sacerdotes na igreja; é a secularização do clero. Dessa premissa, alguns grupos, notadamente os quacres, defendem a abolição do ministério como ordem distinta dentro da igreja”.106 No Brasil há grupos que se denominam evangélicos e, ao mesmo tempo, sustentam que o NT ensina que a igreja contemporânea não deve ter pastores ordenados.

No NT, klēros significa “uma parte” — um pedaço ou porção (At 1.17). Nos primeiros dias da igreja, todos os cristãos se autodenominavam “clero”, por entender que eram “escolhidos para serem de Deus, a ‘parte’ [ou porção] do Senhor (como em Dt 32.9)”.107 Menos de dois séculos depois, “já nos tempos de Tertuliano [klēros] era usado em referência aos oficiais ordenados da igreja, ou seja: Bispos, sacerdotes e diáconos”.108 É por isso que o termo “clérigo” passou a ser usado para identificar o indivíduo que é ordenado para um ofício da igreja. O NT também menciona a palavra grega laos, “povo” (1Pe 2.9), que se refere aos crentes como povo especial do Senhor: “Deus, [...] visitou os gentios, a fim de constituir dentre eles um povo [laos] para o seu nome” (At 15.14)”.109 O que provém do povo, do laos é

104 HOLMER, Uwe. Primeira Carta de Pedro. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2008, p. 180. (Comentário Esperança). Logos Software. 105 HUGHES, P. E. Sacerdócio. In: ELWELL, Walter A. (Ed.). Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 329, v. 3. 106 GEORGE, op. cit., p. 116. 107 MORRIS, L. Clérigos. In: ELWELL, Walter A. (Ed.). Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 290-291, v. 1. 108 MORRIS, op. cit., p. 291. 109 BIETENHARD, H. Povo. In: COENEN; BROWN, op. cit., p. 1743. Cf. ainda: NASCIMENTO FILHO, Antonio José do. O Laicato na Teologia e Ensino dos Reformadores. Disponível em: <http://www.thirdmill.org/files/portuguese/31822~9_18_01_3-22-31_PM~laicato.htm>. Acesso em: 21 fev. 2013.

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laikos, “laico” ou “leigo”.110 A expressão “ofício eclesiástico” diz respeito a uma função exercida no âmbito da igreja. Um oficial é um indivíduo chamado por Deus,111 eleito pelos crentes ou designado por um presbitério,112 com autoridade estabelecida a partir de uma ordenação com imposição de mãos (At 6.5; 14.23; 1Tm 3.1-13; 4.14; 2Tm 1.6; Tt 1.5-9).

Os oficiais estão presentes na história do povo de Deus, dos tempos do AT até hoje. Oficiais (šô·ṭēr, “governadores” na ARC) auxiliaram Moisés na condução do povo e se envolveram nos assuntos militares e na administração civil (Dt 1.15; 20.4-5; 31.28). A função prevaleceu até os tempos dos reis, de modo que haviam milhares de oficiais nos dias de Davi (1Cr 23.4).

No NT, oficiais são dados à igreja para seu estabelecimento, governo, amadurecimento, e aumento em amor. Paulo fala sobre “apóstolos”, “profetas” e “mestres” (1Co 12.28), pessoas designadas para ministérios e funções. Como vimos na seção 2.2, em Efésios 4.11, logo depois de mencionar os dons dados por Cristo à igreja, Paulo lista oficiais chamados e capacitados pelo Espírito Santo.

Ora, é possível que nos sintamos surpresos ante o fato de que, quando o apóstolo fala dos dons do Espírito Santo, ele enumera os ofícios em vez dos dons. Respondo que, sempre que os homens são chamados por Deus, os dons são necessariamente conectados com os ofícios. Pois Deus não veste homens com máscara ao designá-los apóstolos ou pastores, e sim os supre com dons, sem os quais não têm eles como desincumbir-se adequadamente de seu ofício. Portanto, aquele que for designado apóstolo mediante a autoridade de Deus não exibe um título vazio e inútil; pois ele é investido, ao mesmo tempo, tanto com autoridade quanto com capacidade.113

São especificados os ofícios de apóstolo, profeta, evangelista, presbítero (pastor) e diácono. “Apóstolo” era um título de aplicação ampla (dado a diversas pessoas) e que, com o tempo, ficou restrito aos Doze (Ef 4.11; At 6.2; 14.14). Tanto no AT, quanto no NT, “profeta” é alguém incumbido de proferir mensagens infalíveis, reveladas pelo Espírito Santo (Ef 4.11; At 11.27-28). “Evangelista” era alguém incumbido da pregação e do auxílio aos apóstolos no estabelecimento das primeiras igrejas (Ef 4.11; At 21.8; 2Tm 4.5). “Pastores e mestres” governam, pregam, ensinam e ministram os sacramentos. Tal ofício é exercido por presbíteros regentes (governo e Palavra) e docentes (governo, Palavra e sacramentos — Ef 4.11; At 20.28; 1Tm 5.17). Os requisitos espirituais e morais, assim como algumas habilidades necessárias para o presbiterato, constam em 1Timóteo 3.1-7 e Tito 1.5-9. “Diáconos” são o braço de socorro e misericórdia da igreja, para atender aos necessitados (At 6.1-7). Com o tempo, os diáconos foram também incumbidos de cuidar dos doentes e da ordem na casa de Deus. Os requisitos para ser eleito para o ofício constam em Atos 6.3, 5 e 1Timóteo 3.8-13.

Será que todos os ofícios mencionados no NT continuam na igreja? De modo geral, igrejas reformadas entendem que permanecem na igreja os ofícios de presbítero (pastor-mestre) e diácono. Por fim, vejamos como o Espírito Santo sublinha e atualiza Cristo nos ministérios (ofícios) e dons concedidos à igreja.

110 No entendimento popular, o termo “leigo” descreve alguém “estranho ou alheio a um assunto; desconhecedor” — FERREIRA. Leigo. In: op. cit., loc. cit. — enquanto “laico” denota o oposto de “religioso” (e.g., “estado laico”). 111 Para Calvino, “o que torna válido um ofício é a vocação, de modo que ninguém pode exercê-lo correta ou legitimamente sem antes ser eleito por Deus”; cf. CALVINO, João. Hebreus. São José dos Campos: Editora Fiel, 2012, p. 121. (Série Comentários Bíblicos). Logos Software. 112 “Vocação para ofício na igreja é a chamada de Deus, pelo Espírito Santo, mediante o testemunho interno de uma boa consciência e a aprovação do povo de Deus, por intermédio de um concílio”. CI/IPB, Artigo 108. In: SUPREMO CONCÍLIO DA IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL, op. cit. 113 CALVINO, João. Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses. São José dos Campos: Editora Fiel, 2010, p. 295-296. (Série Comentários Bíblicos). Logos Software.

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3.4. O Espírito Santo faz o ofício triplo de Cristo repercutir na igreja Pelo Espírito, os ministérios do cristão e da igreja reverberam o ofício triplo de Jesus. Os ofícios do AT, de profeta, rei e sacerdote, apontam para Jesus Cristo, pois este nos salva como Profeta, Rei e Sacerdote (Dt 18.15; Jo 1.1; 6.14; Ap 17.14; 19.16; Fp 2.5-11; Hb 2.17). Calvino fala sobre isso nas Institutas:

Portanto, para que a fé ache em Cristo sólida matéria de salvação, e assim nele descanse, deve-se estabelecer este princípio, a saber: que o ofício que lhe foi outorgado pelo Pai consta de três partes. Ora, ele foi dado não apenas como Profeta, mas também como Rei, e ainda como Sacerdote.114

O Catecismo de Heidelberg menciona a implicação disso para a vida do cristão:

Por que você é chamado cristão? Porque pela fé sou membro de Cristo e, por isso, também sou ungido para ser profeta, sacerdote e rei. Como profeta, confesso o nome dele. Como sacerdote, ofereço minha vida a ele como sacrifício vivo de gratidão. Como rei, combato nesta vida o pecado e o diabo, de livre consciência; depois, na vida eterna, vou reinar com ele sobre todas as criaturas.115

O ofício triplo de Cristo não apenas garante a salvação dos cristãos, mas também modela o serviço deles. De acordo com Michael Horton, o Espírito atua como mediador dos ofícios de Jesus, como segue:

O Espírito é o mediador do ministério profético de Cristo, defendendo a causa de Deus contra o mundo, convencendo-nos da culpa e dando-nos fé em Cristo. [...]. O Espírito é também o mediador do ministério sacerdotal de Cristo [...]. O Espírito não traz outra Palavra, mas produz dentro de nós o “amém” a Cristo. O Espírito é o mediador do ofício real de Cristo ao subjugar a incredulidade e a tirania do pecado, dando aos pecadores a fé que os une a Cristo de tal modo que eles possam receber todos os dons celestiais.116

Além disso, o Espírito faz com que o triplo ofício de Jesus resplandeça no ministério de todos os cristãos:

Por meio do Espírito, o pedido de Moisés em Números 11.29 (“Tomara todo o povo do SENHOR fosse profeta, que o SENHOR lhes desse o seu Espírito!”) será cumprido além de seus sonhos mais exagerados. [...] O Espírito dá e orquestra os muitos dons derramados sobre o corpo por meio de oficiais ordenados, que diferem apenas nas graças (vocação), mas não na graça (condição ôntica), do Espírito. [...] Por meio do ministério do Espírito, nós também somos refeitos à imagem de Cristo como profetas, sacerdotes e reis; testemunhas verdadeiras e reais no tribunal cósmico, um coro respondendo de modo antífono um louvor ao nosso Redentor.117

Horton nos ajuda a compreender que o ofício triplo de Cristo configura os três ofícios da igreja, de pastor-mestre, presbítero e diácono:

Os dons variados que o Rei ascendido derramou sobre sua igreja pelo seu Espírito incluem não apenas ofícios pertencentes à sã instrução em uma fé e governo espiritual, mas o ministério às necessidades temporais dos santos. [...] O Espírito media o ofício tríplice de Cristo, como profeta, sacerdote e rei nesta era por meio desses três ofícios de pastor-mestre, diácono e presbítero. [...].

114 CALVINO, João. As Institutas: Edição Clássica. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, ii.xv.1 [v. 2, p. 248]. Logos Software. 115 Pergunta 32, apud BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. 2. ed. (BEG2). Barueri; São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil; Cultura Cristã, 2009, p. 1763. 116 HORTON, op. cit., p. 589, 590. Grifos nossos. 117 Ibid., p. 590.

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Pastores pregam e ensinam [o ofício de profeta], presbíteros dirigem [o ofício de rei] e diáconos servem [o ofício de sacerdote].118

Esse modo de compreender as coisas abre espaço para que saibamos o que são os dons espirituais, e como eles devem operar. Quando o NT descreve a igreja, fala de uma comunhão de profetas, reis e sacerdotes, servindo a Deus na dependência e poder do Espírito Santo.

118 Ibid., p. 900, 901.

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4. Os dons da criação, os dons-sinais e os dons espirituais

Uma igreja comum, que se reúne semanalmente sem arroubos de emoção, essa igreja, de reuniões simples, desfruta de dons? Você, cristão que nunca ouviu Deus falando contigo em uma sarça ardente, ou que nunca experimentou um êxtase, nem falou em línguas, você, cristão comum, recebeu dons de Deus? Iniciamos o capítulo anterior falando sobre a inclinação, entre os próprios cristãos, de estabelecer diferenciação de estado entre pessoas, distinguindo os mais dos menos elevados.

Para complicar, em alguns excertos da cultura pagã (e.g., hinduísmo, budismo, helenismo sob Platão), sugere-se o caráter ilusório ou inferioridade daquilo que é material. Se a matéria é uma ilusão, ou se ela é má, a elevação da alma demanda (1) negar a realidade última da matéria; (2) transcender a matéria por meio da ascese — exercícios que conduzem à elevação da virtude e que são, grosso modo, atos de disciplina rigorosa da mente e do corpo (meditação, jejuns, autoflagelação, penitências etc.) ou de anulação da razão e subjugação do corpo pelos espíritos (transes e êxtases). Em suma, o ser humano se eleva esvaziando-se de si mesmo e rompendo a prisão da carne.119

Nesse contexto, o anúncio de que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14), não é devidamente acolhido. A negação da realidade ou da dignidade da carne conduziu alguns a insinuar que não há ressurreição literal do corpo (1Co 15.12-14). De algum modo, a ressurreição já se realizou nos crentes misticamente, não cabendo a estes aguardar uma ressurreição física (2Tm 2.17-18). Mais: se a carne é má, Jesus Cristo não pode ter se tornado um ser humano real. Seu corpo apenas parecia ser verdadeiramente físico ou material.120 A possibilidade de uma divindade se tornar material e coparticipante da vida comum, não soa como algo “espiritual”. Tanto Paulo quanto João combateram tais desvios, Paulo ratificando a historicidade e realidade da ressurreição (1Co 15), João explicando que aquele que nega que Jesus Cristo veio em carne “não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo” (1Jo 4.2-3).

Corremos risco de empreender uma busca espiritual demarcada pela ruptura com as coisas criadas. E quando falamos sobre ministérios e dons espirituais, não é incomum que a

119 Podemos enquadrar a questão de outro modo, sugerindo que, ao longo de sua história, o cristianismo lida com uma tensão — que não deflui da Escrituras e sim da cultura circundante — entre racionalismo e irracionalismo. 120 Esse falso ensino é chamado de “docetismo”. Conforme algumas vertentes dos pensamentos grego e oriental, a substância divina é imutável e toda a matéria é impura. Exatamente por isso era inconcebível que Deus, um ser perfeito, assumisse um corpo material. O docetismo ensinava que Cristo não havia vindo, morrido e ressuscitado em “carne”. Ele “parecia” (dokein; “parecer”) humano, mas não era.

Numa de suas variantes, os docéticos até aceitavam que o Cristo havia assumido um corpo físico, o do homem Jesus de Nazaré, por ocasião do batismo, mas retirou-se dele antes da crucificação (esse foi o ensino de Cerinto). Para eles, o sofrimento e a morte de Jesus eram incompatíveis com a divindade de Cristo. Outra teoria docética, associada a Basílides, sugeria que ocorrera um engano, que Simão, o Cireneu, fora crucificado em lugar de Cristo (HAGGLÜND, Bengt. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia, 1989, p. 18).

Além disso, foram formuladas teorias para explicar o aspecto corpóreo de Cristo. Afirmou-se até que ele possuía um corpo fantasmagórico (irreal) ou que algumas partes dos relatos dos Evangelhos não eram verídicos. É por isso que, juntamente com Irineu, alguns estudiosos afirmam que o Evangelho de João foi escrito para combater o docetismo. Conforme Packer, para o apóstolo João, o docetismo era um “erro mortal inspirado pelo espírito do anticristo, uma negação mentirosa tanto do Pai como do Filho (1Jo 2.22-25; 4.1-6; 5.5-12; 2Jo 7, 9). É usualmente compreendido que a ênfase que se encontra no evangelho de João, sobre a realidade da experiência de fraqueza humana de Jesus [...] tinha a intenção de decepar a raiz desse mesmo erro docético” (PACKER, J. I. Jesus Cristo. In: DOUGLAS, J. D. (Ed.). O Novo Dicionário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 1986, v. 1, p. 501).

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mente viaje para coisas que produzam arrepios na espinha, pois somos atraídos por uma religiosidade do “uau”, das coisas que espantam, impressionam, extrapolam o comum. Ao contrário dessas inclinações à negação do que é material e da vida comum, na contramão da proposição de busca de significado e realização espiritual naquilo que sobrepuja o natural, e para decepção dos que se esforçam por ostentar um estado elevado acima dos demais, a Sagrada Escritura nos convida a assumir uma atitude de gratidão, enquanto desfrutamos dos diferentes dons de Deus, sem desconsiderar aquilo que é natural e comum.

A partir daqui, fazemos três afirmações: (1) nós recebemos os dons da criação e da graça comum; (2) Deus também nos abençoa com os dons-sinais; (3) Deus nos agracia com os dons ativos ou espirituais.

4.1. Os dons da criação ou da graça comum Deus nos abençoa com os dons da criação. A criação não é apenas o primeiro tema da Bíblia, mas um de seus tópicos centrais (Gn 1.1; Sl 95.6; Is 40.26). A Escritura encadeia a criação com a providência e a graça comum: (1) Deus não apenas criou os céus e a terra, mas (2) ele também cuida de sua criação, de modo que (3) o cuidado divino se estende sobre todos — “ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5.45).

Entendendo “dom” como dádiva imerecida, é plausível dizer que a vida é o primeiro presente que recebemos de Deus (Sl 139.14-18). Deus podia não criar, mas ele criou, livre e espontaneamente. “A vida no cosmos é um dom de Deus”.121 Céus e terra, todos os seres vivos — pessoas crentes e descrentes — foram por ele criados e são por ele capacitados e cuidados.122 O Espírito Santo é agente da criação e também da providência (Gn 1.2; Sl 104.30). Nossas habilidades tidas como inatas, ou desenvolvidas por meios comuns ou naturais, também resultam da operação do Espírito Santo.

Ao contrário das doutrinas pagãs, que alardeiam a matéria como intrinsecamente má, a Bíblia revela que Deus fez tudo “muito bom” (Gn 1.4, 10, 12, 18, 21, 25, 31). A glória de Deus pode ser parcialmente discernida na criação, apesar dos profundos estragos produzidos pela queda (Sl 19.1-6; Rm 1.19-20). Um Hino de H. M. Wright sublinha esta doutrina:

Seu grande poder deveis contemplar No céu estrelado, no amplo mar. A gota de orvalho, a mínima flor, Proclamam, constantes, ser Deus seu Autor.123

A relevância da realidade material é confirmada de dois modos: (1) Jesus Cristo “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14; 1Jo 4.1-3); Jesus Cristo assegurou nossa ressurreição (Jó 19.25-27; Jo 5.24-29; 1Co 15.1-3, 12-24). Sendo assim, as coisas criadas (comuns) podem e devem

121 VAN GRONINGEN, Gerard. Criação e Consumação. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, v. 1, p. 63. 122 A doutrina da graça comum surgiu em decorrência da constatação, dentre outras coisas, da existência de “dons e talentos especiais” no “homem natural”, e também “do desenvolvimento da ciência e da arte por gente totalmente vazia da nova vida que há em Cristo Jesus” (BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 4. ed. Reimp. 2015. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 399). Berkhof (op. cit., loc. cit.) esclarece que, “diversamente da teologia arminiana”, a “teologia reformada não considera a doutrina da graça comum como parte da soteriologia [doutrina da salvação]”. Isso se encaixa perfeitamente com o que sustentamos neste estudo: Deus pode soberanamente conceder dons a uma pessoa inconversa, a fim de realizar seu propósito santo. Berkhof afirma (op. cit., p. 402) que “quando falamos de ‘graça comum’, temos em mente, ou (a) as operações gerais do Espírito Santo pelos quais ele, sem renovar o coração, exerce tal influência sobre o homem por meio da sua revelação geral ou especial, que o pecado sofre restrição, a ordem é mantida na vida social, e a justiça civil é promovida; ou (b) as bênçãos gerais, como a chuva e o sol, a água e o alimento, roupa e abrigo, que Deus dá a todos os homens indiscriminadamente, onde e quando lhe parece bom fazê-lo”. 123 WRIGHT, H. M. Hino 23. Adoração ao Criador e Salvador. In: NOVO CÂNTICO, p. 29.

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ser devidamente apreciadas e consagradas para a glória de Deus. Não deveríamos entender “espiritual” como, necessariamente, imaterial ou não pertencente à vida comum.

Um desdobramento disso é que o Deus criador concede dons antes da conversão ou a despeito dela, chamados de dons da criação ou da graça comum. Tais dons são as aptidões com as quais nascemos, ou que adquirimos ao longo da vida (e.g., o pendor, talento ou habilidade para trabalhos manuais, música, esportes, leitura, escrita, matemática etc.).

Devemos servir ao Senhor usando nossos talentos naturais ou nossos dons espirituais? Essa questão enseja um dilema falso, pois “os dons mais significativos da vida da igreja (pregação, ensino, liderança, conselho, sustento) normalmente são capacidades naturais santificadas”.124

A finalidade última dos dons é nos tornar aptos para o serviço a Deus. Sendo assim, usar os dons para o agrado divino é mais importante do que distingui-los detalhadamente. Alguns autores investem espaço e tempo demais, tentando demarcar se determinada habilidade é um dom ou talento.125 O mais bíblico é entender que, na criação, graça comum e redenção, Deus nos configura para que atendamos ao seu chamado. Uma vez que Deus soberanamente nos constitui, todos os nossos dons e talentos devem ser consagrados para o serviço dele.

Sob esta ótica, a instrução de Paulo a Timóteo, “não te faças negligente para com o dom (charisma) que há em ti” (1Tm 4.14), implica esforço consciente para aprimorar o uso dos dons. Não é ilegítimo, para este fim, lançar mão de meios comuns, e.g., quem possui o dom de ensino pode melhorar seu desempenho ministerial aprendendo a usar novas tecnologias, pesquisando métodos de instrução ou estudando sobre argumentação ou oratória. Nesse caso a dependência do Espírito Santo não é diminuída, pois ele é agente soberano da graça comum que disponibiliza subsídios para que sirvamos mais e melhor, para glória de Deus.

4.2. A bênção dos dons-sinais (palavra e sacramentos) Deus nos abençoa com os dons-sinais, a Palavra e os sacramentos.

Usados pelo Espírito Santo para sinalizar e aplicar Cristo aos corações, os dons-sinais comunicam graça, e por conseguinte, vida.

Todos os crentes são assim batizados por Cristo num só corpo; o Espírito é o instrumento desse batismo. A vida, porém, neste corpo é governada pelos meios que Cristo estabelece para o desenvolvimento e crescimento de seu povo: particularmente pelas ordenanças do batismo, da Ceia do Senhor e do ministério [Palavra].126

Nesse contexto, a operação do Espírito corresponde a trazer para nós aquilo que nos foi assegurado por Cristo. Tanto na Palavra, quanto nos sacramentos, “o Espírito dá testemunho a Cristo, toma do que lhe pertence e o revela a seu povo, vestido com as roupagens de seu ministério messiânico”.127 O Espírito Santo torna os dons-sinais eficazes para nossa

124 PACKER, J. I. Caminhando no Poder do Espírito. 2. ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 39. 125 Wagner afirma que não podemos confundir dom espiritual com talento natural (WAGNER, C. Peter. Descubra Seus Dons Espirituais. 5. ed. Atualizada e Ampliada. São Paulo: Abba Press, 2009, p. 85-88). O livro de Wagner é popular, mas suas explicações não decorrem de exegese bíblica sadia. Ele dá mais atenção ao consenso verificado em pesquisa sociológica e bibliográfica, do que ao significado exato da Sagrada Escritura. Ademais, sua interpretação da Bíblia ocorre dentro de uma grade heterodoxa. Posições mais biblicamente equilibradas são sugeridas por STOTT, op. cit., p. 95-99 e RICHARDS, Lawrence O.; MARTIN, Gib. Teologia do Ministério Pessoal: Os Dons Espirituais na Igreja Local. São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 83-84. 126 FERGUSON, 2014, posição 3486-3500 de 4811. Grifos nossos. 127 Ibid., posição 3565 de 4811. Grifo nosso.

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salvação, santificação e consolação: “A eficácia do batismo e da ceia do Senhor não pode ser separada do ministério do Espírito mais do que a eficácia do ler e ouvir as Escrituras”.128 Escritura e sacramentos se entrelaçam como meios de graça tornados eficazes pelo Espírito.

O Espírito tomará o que é de Cristo e o “fará conhecido” a seus discípulos. Ele faz isso fundamentalmente através da revelação apostólica, de modo que nada é revelado na ceia que já não se tenha feito conhecer nas Escrituras. Na ceia, porém, há (1) representação visual e (2) enfoque simples e específico sobre a carne partida e o sangue derramado de Cristo. Isso nos leva ao cerne da questão, e de fato ao centro do ministério do Espírito: iluminar a pessoa e a obra de Cristo.129

O desfrute dos dons-sinais torna desnecessária qualquer nova revelação do Espírito Santo, ao mesmo tempo em que nos ajuda a “obter melhor o mesmo Cristo”, pelo Espírito.

Nenhuma nova revelação é dada; nenhum outro Cristo é feito conhecido. Mas, como disse bem Robert Bruce (1554-1631), embora não obtenhamos um Cristo diferente e melhor na ceia do que o Cristo obtido na Palavra, podemos obter melhor o mesmo Cristo que o Espírito ministra pelo testemunho dos emblemas físicos sendo associados à Palavra.130

A relação dos dons-sinais com os dons da criação e da graça comum é a seguinte: Deus nos comunica graça enquanto recebemos água, pão e vinho, elementos criados, da vida comum (Sl 104.10, 14-15; Mt 28.19; 1Co 11.23-29). Naquele culto tranquilo, depois de um sermão simples, o povo de Deus toma em suas mãos os elementos sacramentais, come do pão e bebe do vinho. Nada de extraordinário se vê, mas o Espírito Santo opera com poder, conectando os crentes aos benefícios assegurados pelo Cristo redivivo, fazendo-os participantes da vitalidade de seu corpo glorificado.

Grata pelos dons da criação e da graça comum e revitalizada pela Palavra e participação nos sacramentos, a igreja está pronta para servir ao Senhor com os dons ativos ou espirituais.

4.3. A dádiva dos dons espirituais Deus nos abençoa com os dons espirituais. Vejamos o que são os dons espirituais, quem os recebe e quantos dons existem.

4.3.1. O que são os dons espirituais

A principal palavra do NT traduzida por “dom” (e.g., Rm 12.6; 1Co 12.4) é charisma, formada a partir de charis, graça.131 O vocábulo tem o sentido de “doação”, “um revestimento pessoal com graça”,132 “dotação particular”133 ou “uma expressão concreta de graça”.134

Os dons espirituais são às vezes explicados como (1) capacidades dadas à e para a igreja; ou como (2) poderes para expressar Cristo no mundo; ou ainda como (3) competências para o cumprimento dos mandatos pactuais.

128 Ibid., posição 3578 de 4811. 129 Ibid., posição 3567 de 4811. 130 Ibid., loc. cit. Grifos nossos. 131 Esta palavra informa que os dons espirituais são imerecidos. Do substantivo charisma, deriva o adjetivo “carismático”. 132 ESSER, Hans-Helmut. Graça, Dons Espirituais. In: COENEN, Lothar; BROWN, Colin. (Org.). Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 907, 913, v. 1. 133 HENDRIKSEN, Efésios e Filipenses, p. 223. 134 FEE, Gordon D. Dons do Espírito. In. HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.; REID, Daniel G. (Org.). Dicionário de Paulo e Suas Cartas. São Paulo: Paulus; Vida Nova; Loyola, 2008, p. 411.

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No primeiro grupo de descrições, para Walter Elwell e Barry Beitzel, os dons são “habilidades que o Espírito Santo concede à igreja”.135 A primeira edição da Bíblia de Estudo de Genebra vincula o exercício dos dons com o crescimento da igreja, como “uma habilidade para expressar, celebrar, demonstrar e, portanto, comunicar Cristo de um modo que edifique e fortaleça a fé em outros cristãos e faça a igreja crescer”.136 Herman Ridderbos define dons como o “equipamento espiritual especial da igreja, o qual é necessário para a sua edificação”137 e para Franklin Ferreira e Alan Myatt, “os dons do Espírito, o fruto do Espírito, e a vida no Espírito florescem no contexto da igreja, o povo de Deus, constituído como tal pelo mesmo Espírito”.138

Packer entende os dons não apenas para o benefício da igreja, mas também para a expressão de Cristo no mundo. Dons são “poderes práticos para se demonstrar Cristo”.139 O alcance e amplitude deste conceito são explicados pelo próprio Packer:

A verdade que precisamos entender aqui é que o nosso exercício dos dons espirituais não é nada mais nem menos do que o próprio Cristo ministrando por meio do seu corpo ao seu corpo, ao Pai e a toda a humanidade. Do céu, Cristo usa os cristãos como sua boca, suas mãos, seus pés e até seu sorriso; é por meio de nós, seu povo, que ele fala e age, encontra, ama e salva, aqui e agora neste mundo.140

Por fim, focado nas ordenanças da criação, Abraham Kuyper vê os dons como “meios e poderes divinamente ordenados pelos quais o Rei capacita sua igreja a realizar sua tarefa na terra”.141 Sendo assim, parece consistente com a Escritura afirmar que os dons espirituais são habilidades e competências que Deus dá para que o sirvamos na igreja e no mundo.

As ênfases de Packer e Kuyper repercutem em Vern S. Poythress, para quem os dons espirituais permitem expressar o ofício triplo de Jesus Cristo (figura 3).142

O serviço realizado com os dons repercute o ofício profético, real ou sacerdotal de Jesus Cristo. Nosso Redentor usou os dons espirituais para servir a Deus como Messias (o primeiro nível de exercício dos dons). Os doze, bem como os “homens apostólicos” próximos a eles, serviram a Deus sob inspiração direta do Espírito Santo (o que chega a nós, deles, possui “autoridade divina”). Jesus, os apóstolos e os “homens apostólicos” não apenas trabalharam para Deus em sua geração, mas também constituíram uma base para o trabalho dos crentes e da igrejas de todas as gerações, como agentes da completação da revelação do NT.

A partir de um fundamento de revelação concluído e suficiente, a igreja serve a Deus com os dons espirituais nos níveis 3 e 4. Uma vez que a Bíblia está disponível para os cristãos de hoje como base única de sua fé e prática, a igreja serve a Deus “sob autoridade”. Os oficiais (pastores e mestres, presbíteros e diáconos) atuam no terceiro nível, chamado de “especial” não por causa de diferença de importância, mas da função de servir governando a igreja pela Palavra de Deus. Todos os crentes que não são oficiais ordenados servem a

135 ELWELL, Walter A.; BEITZEL, Barry J. (Ed.). Baker Encyclopedia of the Bible. Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1988, p. 425. 136 BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. 1. ed. (BEG1). Barueri; São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil; Cultura Cristã, 1999, p. 1406. 137 RIDDERBOS, Herman. A Teologia do Apóstolo Paulo: A Obra Clássica Sobre o Pensamento do Apóstolo dos Gentios. 2. ed. Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 495. 138 FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: Uma Análise Histórica, Bíblica e Apologética Para o Contexto Atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 683. 139 PACKER, 2018, p. 104. 140 Ibid., p. 103. Grifo nosso. 141 KUYPER, Abraham. A Obra do Espírito Santo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 209. 142 POYTHRESS, Vern. S. O Que São Dons Espirituais? In: PHILLIPS, Richard D. (Org.). Série Fé Reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 70-93, v. 2.

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Deus com seus dons no quarto nível, “geral”, também orientados pela instrução infalível e suficiente da Sagrada Escritura.

Figura 3. Os dons como expressões do triplo ofício de Jesus Cristo.

Os dons são chamados de espirituais por causa de sua fonte. Paulo os menciona depois de sublinhar as “misericórdia de Deus”, em Romanos 12.1-8. À luz destas “misericórdias”, os cristãos são convocados a se consagrar a Deus em culto racional (Rm 12.1-2) e, com a modéstia devida (Rm 12.3-5), usar os dons para servir ao Senhor enquanto servem uns aos outros (Rm 12.6-8).

Em outro lugar (1Co 12.2-7), o mesmo apóstolo revela que éramos estranhos a Deus, mas agora, pelo Espírito, confessamos Jesus como Senhor (1Co 12.2-3). Paulo menciona “dons” ligados ao Espírito (1Co 12.4), “serviços”, ao Senhor Jesus Cristo143 (1Co 12.5) e “realizações”, a Deus o Pai (1Co 12.6). Como “serviço” é sinônimo de “ministério” (seção 2.2), “há variedades de ministérios”144 e, portanto, de “realizações”, quer dizer, ações que resultam do “poder energizador de Deus”.145 O Deus Triúno é a fonte da vida da igreja — de seus dons, serviços e realizações. A vida da igreja resulta de uma ação conjunta da Trindade.146 Deus mesmo é a origem de todo vigor, capacidade e boa ação na e da igreja (Tg 1.16-18).

143 Paulo usa “Senhor” (kyrios) para se referir a Jesus Cristo (cf. Ef 4.4-6; Fp 2.11); cf. BEG1, nota 12.4, p. 1360. 144 KISTEMAKER, 1Coríntios, p. 505. 145 Ibid., loc. cit., grifo nosso; FEE, Dicionário de Paulo e Suas Cartas, p. 410, traduz por “modos de ação”. Em 1Coríntios 12.6, “realizações” traduz energēmata, um termo que só ocorre duas vezes no NT, aqui e em 1Coríntios 12.10, ali traduzido como “operações” (de milagres). 146 Calvino (1Coríntios 2013, p. 433) afirma que “Os Pais usaram estes versículos contra os arianos como evidência em abono da Trindade de Pessoas” (grifo do autor).

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Se cada ato voluntário e honesto de dedicação e serviço cristão decorre da ação graciosa de Deus em e através de nós, devemos permanecer humildes e dependentes dele.

4.3.2. Quem recebe os dons espirituais

Os dons espirituais são dados a todos os cristãos. “Deus [...] opera tudo em todos”, ou seja, em cada cristão (1Co 12.6; cf. 1Co 12 7, 11-30). Cada discípulo de Jesus Cristo recebe uma ou mais capacidades necessárias e úteis para o serviço de Deus na igreja e no mundo. Isso desdobra a afirmação do Credo Apostólico, sobre a comunhão dos santos.

Como você entende “a comunhão dos santos”? Primeiro: Entendo que todos os crentes, juntos e cada um por si, têm, como membros, comunhão com Cristo, o Senhor, bem como todos os seus ricos dons. Segundo: Que todos devem sentir-se obrigados a usar seus dons com vontade e alegria para o bem dos outros membros.147

Mas os dons espirituais não são dados somente aos cristãos. Deus profetizou por meio de Balaão, homem ambicioso e imoral (Nm 24.2-25; cf. 2Pe 2.15; Jd 11; Ap 2.14).148 Packer propõe um entendimento de 1Coríntios 13.1-3 digno de nota: “Sem amor, diz Paulo, você pode ter os maiores dons do mundo e mesmo assim ser nada (13.1-3) — isto é, ser espiritualmente morto. Paulo suspeitava de que algumas pessoas da igreja coríntia de fato não eram ‘nada’ nesse sentido”.149

Packer menciona John Owen, para quem “pode haver dons sem graças”150 e esclarece que “alguém pode ser capaz de desempenhos que beneficiem os outros espiritualmente e, mesmo assim, ser um estranho no que diz respeito à transformação interior operada pelo Espírito, que só o verdadeiro conhecimento de Deus pode propiciar”.151 Daí ele cita Owen, quando diz que os dons:

Não mudam o coração com poder, embora possam reformar a vida mediante a eficácia da luz. E embora Deus não os conceda normalmente a pessoas perversas, nem permita que eles continuem a operar em pessoas que, depois da sua recepção, se tornam perversas, contudo, eles podem existir em pessoas que não foram renovadas e não têm em si nada que as preserve absolutamente dos piores pecados.152

Trocando em miúdos, Se você é cristão, possui um ou mais dons, mas possuir dons não é evidência de que se é um cristão. O verdadeiro cristão é um eleito de Deus, regenerado e unido a Cristo, portanto, santificado e consolado pelo Espírito Santo (Jo 3.5; Rm 6.5; 8.2, 12-17, 30; 2Co 5.17). Como sugere Packer, “ninguém deve tratar os seus dons como prova de que agrada a Deus ou como garantia da sua salvação. Os dons espirituais não realizam nenhuma dessas coisas”.153 Pessoas serão condenadas, apesar de terem “profetizado”, “expelido demônios” e feito “muitos milagres” no nome de Jesus (Mt 7.15-23).154 Em outro lugar, o Senhor declara: “alegrai-vos, não porque os espíritos se vos submetem, e sim porque o vosso nome está arrolado nos céus” (Lc 10.20).

147 Catecismo de Heidelberg, pergunta 55, apud BEG2, p. 1765. Grifos nossos. 148 Podem ser mencionados ainda os exemplos de Saul e Judas; cf. PACKER, 2018, p. 41. 149 Ibid., p. 40. 150 Ibid., loc. cit. Grifos do autor. 151 Ibidem. 152 OWEN, John. In: GOOLD, op. cit., 4:437, apud PACKER, 2018, p. 41. 153 Ibid., p. 41. Grifo nosso. 154 Desconfortavelmente, junto do falar em línguas, profetizar, curar enfermos e expulsar demônios são capacidades extraordinárias tidas como evidências da contemporaneidade da ação do Espírito Santo, entre pentecostais e carismáticos.

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4.3.3. Quantos dons existem

Se os dons são habilidades que o Espírito Santo dá para que o sirvamos na igreja e no mundo, não é implausível alegar que um ou mais dons estão em ação, sempre que alguém serve a Deus, tanto hoje, quanto nos tempos bíblicos. Uma lista de passagens da Escritura que mencionam os dons pode ser conferida na tabela 1.

Êxodo 31.1-11

Romanos 12.6-8

1Coríntios 7.7-9

1Coríntios 12.8-10

1Coríntios 12.28

Efésios 4.11

1Pedro 4. 11

Produzir arte Profecia

Permanecer solteiro

Palavra da sabedoria Apóstolos (Apóstolos) Falar

Ministério (serviço) Se casar Palavra do

conhecimento (Profetas) (Profetas) Servir

Ensino Fé (Mestres) Evangelistas

Exortação Dons de curar (Operadores de milagres)

Pastores e (mestres)

Contribuição [doação] Operações de

milagres (Dons de curar)

Presidência [direção] (Profecia) (Socorros)

Misericórdia Discernimento de espíritos

(Governos) [administração]

Variedade de línguas

(Variedade de línguas)

Interpretação de línguas

(Interpretação de línguas)

Tabela 1. Alguns textos da Bíblia que mencionam dons para o serviço.

Em Êxodo 31.1-11, o Espírito Santo dá a Bezalel e Aoliabe “habilidade” e “inteligência”, a fim de produzirem arte para o tabernáculo. Esta passagem nem sempre é mencionada nos estudos sobre dons, talvez porque produzir arte não pareça uma “atividade espiritual”, mas o problema é resolvido quando entendemos que Deus é servido com carismas e dons da criação ou graça comum.

Em Romanos 12.6-8, Paulo menciona os dons de profecia, ministério (serviço), ensino, exortação, contribuição (doação), presidência (direção) e misericórdia.

Em 1Coríntios 7.7-9, outra passagem nem sempre mencionada nos estudos sobre ministérios e dons, a palavra carisma descreve as diferentes vocações, para se casar ou permanecer solteiro. E em 1Coríntios 12.8-10, o apóstolo aponta os dons de palavra da sabedoria, palavra do conhecimento, fé, dons de curar, operações de milagres, profecia, discernimento de espíritos, variedade de línguas e interpretação de línguas. No mesmo capítulo (1Co 12.28), constam apóstolos, profetas, mestres, operadores de milagres, dons de curar, socorros, governos (administração), variedade de línguas e interpretação de línguas.

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Na lista de ofícios de Efésios 4.11 estão apóstolos, profetas, evangelistas e pastores e mestres. Por fim, há quem encontre, em 1Pedro 4.11, duas categorias de dons, capacidades para falar e habilidades para servir.155

Será que a tabela menciona todos os dons possíveis? Parece mais bíblico intuir que “nosso Deus é um Deus de uma diversidade rica e colorida”.156 Em sua soberania, ele não é obrigado a repetir hoje exatamente os mesmos dons descritos no NT. Ao mesmo tempo, ele pode conceder dons inteiramente novos, de acordo com os seus planos específicos para cada igreja e pessoa. John Stott parece acertar quando diz: “Quantos dons diferentes existem? [...] devemos dizer: ‘O NT especifica pelo menos vinte, e o Deus vivo que ama a diversidade e é um doador generoso pode muito bem conceder muito, muito mais do que isto’”.157

155 Esse parece ser o entendimento de Poythress; cf. POYTHRESS, in: PHILLIPS, op. cit., p. 70-71. 156 STOTT, op. cit., p. 94. 157 Ibid., p. 95.

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5. Sobre a continuação dos dons e ofícios extraordinários

A discordância mais grave sobre os ministérios e dons espirituais gira em torno da questão: O Espírito Santo continua chamando pessoas para todos os ofícios e concedendo todos os dons mencionados no NT?

Admitindo a simplificação, apresentamos três posições sobre o assunto (figura 4).

Figura 4. Diferentes entendimentos sobre a contemporaneidade dos ofícios e dons do NT.

Em um extremo estão os que acreditam que todos os ofícios e dons do NT continuam (ou estão sendo restaurados) hoje. “Se algo está no NT e não há nenhuma passagem da Bíblia que expresse que deva deixar de existir”, dizem, “isso é para a igreja atual”.

Outros se colocam mais ao centro, não admitindo a contemporaneidade do apostolado do NT, mas acreditando na continuação das profecias e outros dons extraordinários. Desde antes de Grudem, mas especialmente a partir dele, uns dentre estes postulam que as profecias hodiernas diferem das do AT, pois podem conter erros. Argumenta-se ainda que o falar em línguas da igreja de Corinto é diferente do falar em línguas dos cristãos em Atos (e advoga-se que o falar em línguas atual é semelhante ao da igreja em Corinto).

Esta segunda posição é simpática porque é intermediária, de centro, parece não radical, um ponto de convergência para aproximações produtivas e edificantes. Postar-se no centro comunica e produz uma sensação psicológica de equilíbrio, nem demasiadamente para a esquerda dos novos apóstolos, nem demasiadamente para a direita do cessacionismo. Outro motivo para a popularidade desta posição é que (1) ela é cada vez mais propagada como tendo sustentação exegética; (2) ela não parece infectada pelo iluminismo e naturalismo; (3) ela provê explicações aparentemente plausíveis para as experiências de cristãos e igrejas pentecostais; (4) mesmo teólogos contrários a esta postulação, sugerem que devemos respeitar tanta teologia, quanto as igrejas que a sustentam. Ora, se ouvimos de pregadores e escritores respeitáveis que a posição central não deve ser rotulada como erro, não há porque não se servir dela, no bufê doutrinário disponível.

No extremo da direita, entende-se que alguns ofícios e dons serviram ao período de fundação da igreja cristã, até a completação dos livros do NT, mas depois cessaram, permanecendo os ofícios de presbítero e diácono. Os que se situam neste extremo acham problemática a possibilidade de (1) levada às últimas consequências, a posição da extrema esquerda abrir espaço, dentre outras coisas, para o acolhimento tanto da proposição de sucessão apostólica e de continuação das revelações do romanismo, quanto da continuidade do apostolado e revelações em igrejas que se identificam como evangélicas. E ainda, (2) que a posição central, ainda que aparentemente blindada quanto à atualidade do apostolado, continua aberta para a confusão proveniente de revelações extrabíblicas.

A posição da extrema direita não é simpática porque semelha radical, fomentando estranhamento que distancia. Sugere à mente uma representação de “fundamentalismo” indesejado, potencializando a sensação psicológica de desequilíbrio.

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Mesmo em denominações reformadas, vicejam argumentadores simpáticos ao centro e desconfortáveis com a articulação da extrema direita.

Na seção 1.1, dissemos que a crença dos reformadores magisteriais — de que alguns ofícios e dons do NT cessaram — tem sido acusada de, apesar de fazer uso da Bíblia, não possuir peso exegético suficiente. Se esta acusação proceder, a lógica interna da própria Reforma Magisterial exige passar em revista a proposição de cessação. Por outro lado, se for suficientemente demonstrado que (1) a interpretação bíblica dos reformadores magisteriais, com relação aos ministérios e dons, é sadia e sólida; (2) e que esta interpretação se harmoniza com aquilo que denominamos “fé reformada” como “sistema”, “cristãos reformados” que não veem problema em acolher profecias extrabíblicas só teriam como fazer isso por meio de “virtualização”, acessando um sistema teológico dentro de outro, uma emulação que, ainda que implementada com a melhor das intenções e produzindo resultados de curso prazo interessantes e desejáveis, configuraria um tipo de “dissimulação teológica”. Por conseguinte, cristãos com convicção bíblica cessacionista poderiam descansar em sua fé, libertos de culpa induzida, ou do constrangimento de serem tidos como menos bíblicos, por não acreditarem em novas profecias.

Nosso objetivo é propor uma demonstração, ainda que admitindo que, no fim de nossa mostra, muitos dos que abraçam um entendimento contrário continuarão firmes em suas posições, pois, como reconheceu Calvino, “é difícil mudar a mente de alguém sobre os dons e os ofícios, dos quais a igreja foi privada por tanto tempo, a não ser aqueles leves traços ou sombras deles que ainda podem ser percebidos”.158

Iniciamos olhando para Efésios 2.20, considerado por um autor contemporâneo como “o último refúgio exegético do cessacionismo”.159 Em seguida (nos próximos capítulos), analisaremos outras passagens, a fim de verificar se, de fato, o entendimento dos pais da reforma magisterial (sobre os ministérios e dons) carece de peso exegético.

5.1. Leituras fundacionais de Efésios 2.20 Em Efésios 2.19-22, Paulo descreve a igreja como um santuário que, por graça, é constituído de judeus e gentios.160 Em razão da ação de Cristo, estes últimos agora são oikeios, “membros da casa” ou, como se lê na maioria das traduções, da “família de Deus” (Ef 2.19). No v. 21 consta um “edifício” (oikodomē; “estrutura”; “construção”) que, “bem ajustado, cresce para santuário” (naos, “templo”) “dedicado ao Senhor”. Os leitores de Paulo fazem parte desta obra, estão sendo “edificados [synoikodomeō; lit., “construídos”] para habitação de Deus no Espírito” (Ef 2.21). A igreja é uma morada — a Casa de Deus — em processo de edificação.

É irretorquível que aqui se faz uso de metáforas advindas das técnicas e práticas do 1º séc., de construção de casas e edifícios. No contexto desta percepção, lê-se Efésios 2.20 — “edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular”.161

Como devemos entender a palavra “fundamento”, em Efésios 2.20? E o que quer dizer Jesus Cristo como “pedra angular”? Nesta construção, qual é o papel dos “apóstolos e profetas”? E de que modo as respostas às questões anteriores afetam nosso juízo sobre a continuação, interrupção ou modificação dos ofícios e dons do NT?

158 CALVINO, 1Coríntios 2013, p. 452. Grifo nosso. 159 RUTHVEN, op. cit., p. 10. 160 HENDRIKSEN, Efésios e Filipenses, p. 167-168. 161 Grifo nosso. Neste estudo, sempre que nos referimos ao “argumento” ou “leitura fundacional”, apontamos para o uso que Paulo faz do vocábulo “fundamento”, em Efésios 2.20.

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Comecemos com o vocábulo “fundamento” (themelios). Uma leitura respeitosa ao contexto ensejará a compreensão desta palavra como “parte de uma construção destinada a distribuir as cargas sobre o terreno; alicerce”.162 Deus decidiu construir um edifício cujas paredes são compostas por judeus e gentios — sua própria casa, a igreja. E ele atentou para as etapas necessárias a um correto e eficaz processo de edificação, iniciando com o alicerce, de modo que a igreja possui uma “base firme e forte sobre a qual uma construção é feita”.163

Isso nos conduz a outra expressão. Jesus Cristo é (akrogōniaiou) a “pedra angular”, o que combina perfeitamente com a metáfora, uma vez que, no primeiro século, um edifício sem uma pedra angular “seria fraco e ineficaz”.164 H. G. Stigers informa que:

[A pedra angular era] colocada no canto ou na interseção de duas paredes. Nos tempos bíblicos, os edifícios geralmente eram feitos de pedras cortadas em formato de prisma reto. Ao unir dois muros que se interceptavam, a pedra angular servia para alinhar todo o edifício e garantir sua resistência.165

Esta era chamada “pedra de cantão” ou de “esquina” porque ficava à mostra, às vezes no canto inferior, ligado ao fundamento, ou em posição mais alta, completando e unindo as paredes (figura 5).

Figura 5. Exemplos de pedras angulares.166

Um detalhe digno de nota é que o texto grego permite enxergar Jesus Cristo como pedra angular do fundamento, nesse caso, ele é “parte essencial do fundamento”, ou ainda, como pedra angular de todo o edifício.167

Prossigamos checando quatro enquadramentos de Efésios 2.20, o primeiro e terceiro condizentes com o texto, mas o segundo e último, infelizes e inadequados.

5.1.1. João Crisóstomo: judeus e gentios unidos pela obra de Cristo

João Crisóstomo (séc. 4-5) leu Efésios 2.20-21 sublinhando a unidade do edifício constituído e sustentado pelo Redentor — judeus e gentios agregados pela obra de Jesus Cristo.

162 FERREIRA, Aurélio, op. cit., loc. cit. 163 YOUNGBLOOD, Ronald F. (Ed.). Dicionário Ilustrado da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2004, p. 588. 164 STIGERS, H. G. Pedra Angular, Pedra de Esquina. In: TENNEY, op. cit., p. 848, v. 4. 165 YOUNGBLOOD, op. cit., p. 1100. 166 Imagens disponíveis em: < https://www.lds.org/media-library/images/photo-cornerstone-temple-1622782?lang=eng> e < https://eastdailyoffice.wordpress.com/2017/02/14/morning-prayer-15-2-17-thomas-bray-priest-missionary-1730/cornerstone-upstore-me/>. Acesso em: 13 mai. 2019. 167 HAHN, Eberhard. Comentário Esperança, Carta aos Efésios. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2006, p. 55. Logos Software. Johannes P. Louw e Eugene Albert Nida argumentam que o vocábulo utilizado por Paulo “provavelmente se referiria ao tipo de pedra que teria sido usada no Templo em Jerusalém, e portanto é mais provável entender [akrogōniaiou] como uma pedra angular, em vez de uma pedra angular de um telhado pontiagudo”; cf. LOUW, Johannes P.; NIDA, Eugene Albert. Greek-English Lexicon of the New Testament: Based on Semantic Domains. New York: United Bible Societies, 1996, #7.44 ἀκρογωνιαῖος; κεφαλὴ γωνίας, p. 87. Logos Software.

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“Estais edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas”. Isto é, os apóstolos e os profetas são os alicerces. E em primeiro lugar coloca os apóstolos, os últimos relativamente ao tempo. Ou demonstra e afirma que estes e aqueles são os fundamentos, e o todo é um só edifício e uma só raiz. Pensa em gentios que teriam os patriarcas por fundamento. É mais apropriado do que dizer enxertados; e impressiona mais. Em seguida diz: “Do qual é Cristo Jesus a pedra angular”, isto é, Cristo abrange todas as coisas. A pedra angular sustém as paredes e os fundamentos. “Nele bem articulado, todo o edifício”. Vê como ele uniu. Declara que às vezes contém e abrange do alto todo o corpo, às vezes, porém, por baixo sustenta o edifício, e serve de raiz.168

Crisóstomo entendia que alguns ofícios e dons do NT tinham cessado. Em seus estudos sobre 1Coríntios 12, ele concluiu que alguns detalhes do texto de Paulo pareciam obscuros porque nem todos os acontecimentos do séc. 1 eram conhecidos da igreja de seu tempo.

O desconhecimento dos acontecimentos de então, e que agora não advêm, produz a obscuridade. E por que agora não sucedem? Eis, pois, que a causa da obscuridade gera outra interrogação para nós. Por que acontecia então e agora, não?169

Pregando sobre o Evangelho de João, o mesmo Crisóstomo afirmou:

Ainda agora não há também quem sai em busca de sinais? Deveras ainda há, nesta nossa época, quem inquira por que também agora os sinais não são dados? Se você é crente, como deve ser, se você ama a Cristo como deve ser amado, então você não necessita de sinais, pois estes são dados aos incrédulos.170

Crisóstomo explicou Efésios 2.20 de modo sucinto e cristocêntrico, sem sinalizar debate sobre ministérios e dons.

Uma nova leitura de Efésios 2.20 aventou um sentido para “fundamento” distinto do proposto por Paulo e até então compreendido por Crisóstomo.

5.1.2. Roma: Pedro e a sucessão apostólica como fundamento

Calvino entendeu que Roma se equivocou na leitura de Efésios 2.20. Os teólogos romanistas admitiram Cristo como “pedra angular”, mas, ao mesmo tempo, esta honra foi “transferida para Pedro”.

“Sendo o próprio Cristo a principal pedra angular”. Aqueles que transferem esta honra para Pedro, e defendem a tese de que a igreja se encontra fundada sobre ele, são tão destituídos de pudor, a ponto de tentar justificar seu erro apelando para esta passagem. Objetam que Cristo é chamado a principal pedra angular em comparação com outras, e que há muitas outras pedras sobre as quais a igreja se acha fundada.171

Esta explanação favoreceu a doutrina de sucessão apostólica, que sugere ser o papa o vigário (aquele que faz as vezes) de Deus, bem como o raciocínio de que, pelo magistério da igreja, revelações extrabíblicas são necessárias para a constituição da Sagrada Tradição.

A Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) tem os apóstolos em alta conta, afirmando que a vida da igreja é suprida por eles — “aquilo que foi transmitido pelos apóstolos,

168 CRISÓSTOMO, São João. Comentário às Cartas de São Paulo/1: Homilias Sobre a Carta aos Romanos: Comentários Sobre a Carta aos Gálatas: Homilias Sobre a Carta aos Efésios. São Paulo: Paulus, 2010, Sexta Homilia [Sobre Efésios], edição do Kindle, posições 9899-9914 de 12857. (Coleção Patrística, 27/1). 169 CRISÓSTOMO, João. 2: Homilias Sobre a Primeira Carta aos Coríntios: Homilias Sobre a Segunda Carta aos Coríntios. São Paulo: Paulus, 2010, p. 403. (Coleção Patrística). Grifos nossos. 170 CRISÓSTOMO, João. Homily 24*, Homilies on John [NPNF1, 14:84, p. 59.143-44], apud TURRETINI, François. Compêndio de Teologia Apologética, 18.xliv. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 151. v. 3. Grifos nossos. 171 CALVINO, Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses, p. 259.

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abrange tudo quanto coopera para a vida santa do povo de Deus e para o aumento da fé”.172 O ponto é que essa contribuição apostólica não implica suficiência das Escrituras, pois a ICAR assevera que os bispos (e dentre eles, o papa) sucedem, hoje, os apóstolos do NT:

Porém, para que o evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na igreja, os apóstolos, deixaram os bispos como seus sucessores, “entregando-lhes o seu próprio lugar de magistério”. Portanto, a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos são como um espelho no qual a igreja, peregrina na terra, contempla a Deus, de quem tudo recebe até ser conduzida a vê-lo face a face tal qual ele é.173

A Tradição é uma obra “realizada pelo Espírito Santo [...] distinta da Sagrada Escritura” e corroborada pelos Santos Padres (os papas).174 Este “ensinamento dos Santos Padres [dos papas] testemunha a presença vivificante desta Tradição, cujas riquezas se difundem na prática e na vida da igreja crente e orante”.175 “O fundamento dos apóstolos e profetas” se replica e atualiza na história, com o Espírito Santo ampliando a Tradição, provendo o Magistério e os “Santos Padres” com novas revelações. Destarte, a igreja não possui a “plenitude da verdade divina”, mas “progride” na obtenção dessa verdade sob o ministério dos sucessores dos apóstolos que possuem o “carisma [dom] seguro da verdade”.

Esta tradição apostólica progride na igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da reflexão e do estudo dos crentes, que a meditam no seu coração (cf. Lc 2.19,51), quer mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam um carisma seguro da verdade. Isto é, a igreja, no decorrer dos séculos, caminha continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus.176

Retornando às questões levantadas no início da seção 5.1, Roma entende Cristo como fundamento, sem deixar de considerar também Pedro como tal. Para Roma, apóstolos e profetas introduzem uma experiência de revelação que continua até hoje pela via da Tradição —revelações extrabíblicas do Espírito, dadas ao papa e aos bispos, na sucessão apostólica e magistério da igreja.

Trocando em miúdos, se o Espírito Santo continua fornecendo revelações depois do fechamento do cânon (AT e NT), a ICAR é provida pela Escritura mais Tradição.

Daí resulta que a igreja, à qual estão confiadas a transmissão e a interpretação da Revelação, não deriva sua certeza a respeito de tudo o que foi revelado somente da Sagrada Escritura. Por isso, ambas [Escritura e Tradição] devem ser aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverência.177

Este entendimento, aberto à contemporaneidade da revelação, sofreu contestação na Reforma Magisterial do séc. 16. Especialmente João Calvino, e outros depois dele, sugeriram uma leitura e interpretação diferentes de Efésios 2.20.

172 CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum: Constituição Dogmática Sobre a Revelação Divina. (DV). 13. ed. São Paulo: Paulinas, 2006, cap. ii: a transmissão da revelação divina, seção 7, p. 12. 173 CONCÍLIO VATICANO II, op. cit., cap. ii, seção 7, p. 11-12. 174 LIBRERIA IDITRICE VATICANA. Catecismo da Igreja Católica: Novíssima Edição de Acordo Com o Texto Oficial em Latim. 19 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2017, cap. ii, artigo 2.i.78, p. 34. 175 LIBRERIA IDITRICE VATICANA, op. cit., loc. cit. 176 CONCÍLIO VATICANO II, op. cit., seção 8, p. 12-13. Grifo nosso. 177 LIBRERIA IDITRICE VATICANA, op. cit., cap. ii, artigo 2.ii.82, p. 35. Grifo nosso.

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5.2. João Calvino: a verdade bíblica como fundamento Os intérpretes da Reforma foram fiéis ao texto bíblico ao explicar Efésios 2.20. Martin Bucer, Heinrich Bullinger e Erasmus Sarcerius, disseram que “o fundamento dos apóstolos e profetas” é o próprio Senhor Jesus Cristo.178

Calvino também compreendia Cristo como fundamento único da igreja, mas, para ele, a própria Escritura exige que essa declaração — de Cristo como único fundamento — seja complementada por outra. Comentando 1Coríntios 3.11, ele escreveu: “Esta afirmação contém duas partes: em primeiro lugar, que Cristo é o único fundamento da igreja; e, em segundo lugar, que os coríntios tinham sido solidamente fundados sobre Cristo mediante a pregação de Paulo”.179 Como podemos saber algo sobre Jesus Cristo? Como podemos saber algo sobre a igreja que está sendo edificada? Cristo chega até nós pela verdade pregada e ensinada pelos apóstolos — foi a resposta de Calvino.

Se isso é assim, argumentou Calvino, “o fundamento dos apóstolos e profetas”, em Efésios 2.20, equivale à doutrina cristã.

Fundamento, nesta passagem, inquestionavelmente significa doutrina; porquanto o apóstolo não faz menção de patriarcas nem de reis piedosos, mas tão-somente daqueles que detêm o ofício de ensinar e a quem Deus designou para edificarem sua igreja. E assim Paulo ensina que a fé da igreja deve estar fundamentada nessa doutrina.180

E ainda, “a igreja se fundamenta não sobre juízos de homens, não sobre sacerdócios, mas sobre a doutrina dos apóstolos e dos profetas, nos lembra Paulo”.181

Esse juízo fez frente à leitura fundacional de Roma. Podemos saber quem é Jesus, o que é a igreja e todas as outras coisas necessárias à vida cristã, porque temos informação disponível na doutrina dos apóstolos e profetas, provida em uma Bíblia escrita. Um repositório confiável, completo e suficiente de verdade divinamente revelada foi dado a nós.

A partir deste ponto, calvinistas posteriores propuseram que a doutrina da Escritura é o fundamento da igreja, cuja revelação culmina em Jesus. Para Jean Diodati:

Sua fé, na qual você subsiste na comunhão dos santos, tem seu fundamento na regra infalível e inamovível, a doutrina do Antigo e do Novo Testamento[s], cujo sujeito principal é Cristo, que em sua pessoa é o fundamento único, real e essencial e, por assim dizer, a pedra de esquina.182

178 BRAY, Gerald. (Org.). Gálatas e Efésios. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 325-326. (Comentário Bíblico da Reforma). 179 CALVINO, 1Coríntios 2013, p. 130. Grifo nosso. 180 CALVINO, Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses, p. 258. Grifos nossos. Outra tradução (BRAY, op. cit., p. 325) traz: “o fundamento é claramente a doutrina”; grifo nosso. A BEG1 (p. 1404) parece seguir Calvino, vinculando Efésios 2.20 com 1Coríntios 3.11: “O fundamento da casa de Deus foi definitivamente posto pelos apóstolos e profetas do NT. A pedra angular é Cristo (1Co 3.10-11)”, mas nem todos os intérpretes contemporâneos concordam com esta ligação, e.g., Peter O’brien: “O fundamento dos apóstolos e profetas é uma expressão incomum. Intérpretes anteriores, aparentemente no interesse de harmonizar a frase com 1Coríntios 3.11, entenderam que significa ‘o fundamento posto pelos apóstolos e profetas’. Mas isso confunde a imagem e não se encaixa com a frase qualificativa, ‘o próprio Cristo Jesus sendo a principal pedra angular’; cf. O’BRIEN, Peter T. The Letter to the Ephesians. Grand Rapids: Eerdmans, 1999. (Pillar NT Commentary). Olive Tree Software. 181 Cf. CALVINO, As Institutas, iv.ii.4 [v. 4, p. 56]. 182 BRAY, op. cit., p. 326.

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David Dickson entendeu inclusive, que Deus continua chamando “edificadores”, não novos apóstolos e profetas, mas ministros da igreja que ensinam a doutrina bíblica com fidelidade:

O apóstolos e outros ministros fiéis depois deles são os edificadores, que ensinam que Cristo (que é o único capaz de realizar toda a obra de redenção e salvação) é o único fundamento desse templo, e desse modo ensinando a edificar os santos sobre Cristo, segundo a doutrina dos apóstolos e profetas.183

Em suma, os protestantes, desde o séc. 16, e os evangélicos, depois deles, afirmam que Efésios 2.20 ensina que a igreja é construída sobre um “alicerce de doutrina” revelada por Deus aos apóstolos e profetas.184 Jesus Cristo é o clímax e culminação desta doutrina e, como “pedra angular”, “faz de ambos, gentios e judeus, parte da mesma parede”.185 Mesmo um estudioso de origem carismática, como Max Turner, entende que, na passagem em questão, “o fundamento” é a revelação dada por Deus aos apóstolos e profetas bíblicos:

Os leitores de Paulo estão sendo edificados já agora, diz ele, no fundamento dos apóstolos e profetas. A sintaxe grega aqui, em que um artigo rege dois substantivos (como em 3.5), sugere um só grupo fundamental, apóstolos funcionando como profetas (i.e., trazendo revelação), e não dois, embora um grupo separado de profetas seja também conhecido em [Ef] 4.11. O próprio Jesus é identificado como a pedra angular, aquela a partir da qual o restante do fundamento é construído ao longo da linha das paredes propostas. O ponto aparentemente seria então que o templo é construído a partir da revelação dada em Cristo e sobre ela, mediante a elaboração reveladora e a implementação do mistério por meio das figuras dos apóstolos proféticos (cf. [Ef] 3.4-11, especialmente o v. 5). Mas tudo é construído sobre Cristo, sustentado por Cristo, e o estado e a forma do prédio em construção são determinados por Cristo, a pedra angular.186

Para Calvino e demais reformadores magisteriais, em Efésios 2.20, “fundamento” quer dizer base de doutrina do santuário que Deus está construindo, tendo Cristo como pedra angular. “Apóstolos e profetas” lançam o alicerce de revelação, sobre o qual as paredes do edifício — judeus e gentios — serão levantadas ou edificadas.

Esta leitura comporta um juízo por dedução, sobre profecias extrabíblicas. O trabalho dos responsáveis pelas fundações de uma casa é feito apenas uma vez (a não ser que seja mal executado e exija reparo). Lançados os alicerces, a demanda fundacional cessa e inicia outra, de continuidade e completação da construção. Um fundamento sólido é dado à igreja pela doutrina suficiente das Sagradas Escrituras. Os apóstolos e profetas, levantados por Deus para lançar o fundamento, não são mais necessários. Com a finalização e escrita do NT, cessaram as demandas de apostolado e profecia.

183 Ibid., loc. cit. 184 Sem prejuízo à ortodoxia, O’brien (op. cit., loc. cit.) entende que o melhor é entender o “fundamento” não como “doutrina” e sim, como as pessoas dos apóstolos e profetas, como segue: “É mais natural [...] entender o fundamento como consistindo dos apóstolos e profetas”. Ou como consta na BEHR (p. 1680), “os apóstolos e profetas são o fundamento porque proclamaram as verdades agora escritas como o NT”. 185 STIGERS, op. cit., p. 848. 186 TURNER, Max. Efésios. In: CARSON; FRANCE; MOTYER; WENHAM, op. cit., p. 1852; grifos nossos. Não recomendamos esta leitura, de “um só grupo fundamental, apóstolos funcionando como profetas”. Apesar de sublinhar o papel dos apóstolos como agentes humanos da revelação divina, ela implica afirmar que a revelação autoritativa de Deus só veio pelos profetas do AT e apóstolos do NT, relegando os profetas do NT ao estado de receptores de uma “revelação” cuja autoridade e confiabilidade é diminuída. Nesse ponto, concordamos com O’brien: “Os profetas [em Ef 2.20] são profetas do NT, não os do AT. [...] é questionável sintaticamente se ‘apóstolos que profetizam’ é uma tradução apropriada do grego. [...] No balanço, [...] tanto os apóstolos como os profetas [do NT] estão em vista aqui (cf. [Ef] 3.5)” (op. cit., loc. cit.).

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Ao compulsar comentários bíblicos, teologias bíblicas e sistemáticas e notas de Bíblias de estudo protestantes e evangélicas, rematamos que, do séc. 16 até agora, esta dedução é tida como admissível, cuidadosa e fiel — um incremento necessário à metáfora paulina —, portanto, possuidora de peso exegético. Calvino não manipulou, distorceu ou tratou com leviandade Efésios 2.20, como se precisasse, a todo custo, obter “munição” contra Roma. Tanto ele como os herdeiros da Reforma Magisterial entenderam, como decorrência forçosa do texto bíblico, que os apóstolos e profetas do NT foram depositários únicos e últimos de revelação, considerando (1) o caráter fundacional de sua tarefa — lançar, por meio dos escritos do NT, o alicerce de doutrina da igreja; e (2) a perfeição, utilidade e suficiência das Escrituras completadas para tudo o que concerne à glória de Deus “e para a salvação, fé e vida do homem”.187

Se, como vimos na seção 3.2, o nome de Lutero está ligado ao restabelecimento do pilar ou lema sola Scriptura, o de Calvino está ligado à leitura fundacional protestante de Efésios 2.20, sempre citada nas discussões sobre a continuação dos ofícios e dons do NT. Ambos contribuem para o ponto de vista protestante da suficiência das Escrituras, que implica rejeição da leitura fundacional de Roma.

Para os protestantes e evangélicos identificados com o legado magisterial, a Bíblia é a única regra de fé e prática. Completado “o fundamento” (a doutrina do NT), não há mais revelação e sim iluminação e aplicação da verdade bíblica anteriormente dada. O Espírito Santo salva, santifica e consola os crentes pela Palavra e pelos sacramentos. A Bíblia é não apenas inspirada, inerrante e infalível, mas também suficiente. A igreja protestante é provida pela Escritura aclarada e aplicada nos corações pelo Espírito Santo, e nada mais.

Os reformadores magisteriais foram contestados pelos entusiastas ou reformadores radicais. Ao longo da história, os argumentos da reforma radical reapareceram aqui e ali, sempre à margem da ortodoxia protestante, mas ganharam fôlego, com ênfases distintas, no pentecostalismo e teologia carismática contemporânea.

5.3. John Ruthven: a experiência de revelação como fundamento O pentecostalismo sempre propôs uma interpretação paradigmática de Atos e a restauração de dons extraordinários (cf. seção 2.1.1). Mesmo assim, até pouco tempo, inclusive teólogos pentecostais abraçavam a implicação de cessação do apostolado, fazendo uso (ainda que adaptado) da leitura funcional protestante. É o caso de J. Rodman Williams:

Não pode haver sucessão nem restauração do apostolado. A sucessão é inadmissível, não só por causa do caráter único e não repetível de seu apostolado. A restauração é igualmente impossível, já que os apóstolos cumpriram seu papel e continuam seu ministério por meio dos escritos do NT. Qualquer ideia de perpetuar ou restaurar o apostolado como cargo oficial é estranha ao NT e ao propósito de Cristo para sua igreja.188

Este entendimento — de que a igreja prescinde de novos apóstolos — tem sido questionado pela Nova Reforma Apostólica189 e pela defesa da contemporaneidade dos dons, proposta por Jon Ruthven.190 Afastando-se do pentecostalismo clássico, que até então

187 CFW 1.6. In: BEHR, p. 1994. 188 WILLIAMS, op. cit., p. 886. Grifo nosso. 189 Cf. LOPES, op. cit., especialmente a parte III, p. 225-332. 190 RUTHVEN, Jon Mark. On The Cessation of The Charismata: The Protestant Polemic on Post-Biblical Miracles — Revised & Expanded Edition. Tulsa: Word & Spirit Press, 2011, p. i. (Word & Spirit Monograph Series: 1).

Jon Mark Ruthven é tido como “um dos teólogos pentecostais mais respeitados da atualidade. Iniciou o ministério em Boston/Nova Iorque ao lado de David Wilkerson em meados dos anos 60 evangelizando gangs e moradores de rua, assim como também serviu a Deus como missionário na África” (SKOOB. Jon Ruthven.

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negava a existência de novos apóstolos, Ruthven postula que o NT ensina a atualidade de todos os ofícios e dons, incluindo o apostolado. Ainda que Ruthven não seja tão reconhecido como outros teólogos que também sustentam a continuação de dons extraordinários, a publicação de seu livro no Brasil foi divulgada com “entusiasmo” e a primeira impressão se esgotou rapidamente.

Olharemos agora para a interpretação de Efésios 2.20, sugerida por Ruthven.

Ele insinua que os teólogos pentecostais falharam em responder à leitura protestante de Efésios 2.20. Identificar “o fundamento”, com “doutrina” equivale a concluir que a Escritura é alicerce único, implicando cessação da revelação.191 Para evitar isso, Ruthven sugere que o vocábulo “fundamento” seja entendido não como “alicerce” e sim como um “arquétipo” atualizado e replicado ao longo da história da igreja.192 Calvino e os demais protestantes entendiam “fundamento” como o alicerce que, em um edifício, é feito somente uma vez. Ruthven rejeita esta “identificação padrão da ‘fundação’ derivada de Calvino”193 e propõe que “fundamento”, em Efésios 2.20, não implica cessação do ofício ou papel dos apóstolos e profetas. Pelo contrário, apóstolos e profetas ministrando revelação são um protótipo para a igreja contemporânea.

Efésios 2.20 [...] parece ser o último refúgio exegético do cessacionismo [...]. O resultado é que os cessacionistas argumentam que a metáfora do “fundamento” dos apóstolos, profetas e Cristo, de alguma forma exige que, assim como eles morreram, seus dons morreriam com eles. Deveríamos, então, naquela mesma lógica, insistir que a morte do prefeito de uma cidade requer a extinção do cargo, título ou função de prefeito? Pelo contrário: seu papel “fundacional” como prefeito estabelece o padrão e implica continuação do papel depois dele.194

O problema deste entendimento é que não combina com a metáfora de construção, proposta por Paulo em Efésios 2.20. Ruthven substitui a ideia de “fundação” como alicerce de um edifício, por “fundação” como ato que inicia ou estabelece uma cidade. Em seguida, ele mistura a função do indivíduo fundador de uma cidade, com a do indivíduo gestor (prefeito) de uma cidade.

Depois de fundada, uma cidade precisa de novos prefeitos, mas nunca mais, de novos fundadores. Convertendo a ilustração de Ruthven para a moldura protestante, sugerimos que os fundadores de uma cidade são, para a cidade, como a doutrina dos apóstolos e profetas é para a igreja. O ato fundador de uma cidade ocorre somente uma vez, assim como a revelação da doutrina apostólica foi dada apenas uma vez. Fundadores de uma cidade são extraordinários e temporários, assim como os apóstolos e profetas bíblicos. A cidade, por

Disponível em: <https://www.skoob.com.br/autor/20650-jon-ruthven>. Acesso em 27 mai. 2019; grifo nosso). Há quem o celebre como autor da “obra teológica mais densa de 2017”; cf. PABLO, Rafael. Sobre a Cessação dos Charismata. In: Teologia Pentecostal Assembleiana. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=l6PpCq28NqE>. Acesso em: 20 jun. 2019. Em um texto em que parece concordar que o entendimento cessacionista é contaminado por racionalismo e iluminismo, Alistair McGrath recomenda o livro de Ruthven como “o melhor estudo sobre o assunto”; cf. MCGRATH, Alister R. Christianity’s Dangerous Idea: The Protestant Revolution — A History from the Sixteenth Century to the Twenty-First. New York, HarperCollins Publishers, 2007, edição do Kindle, p. 388, nota de rodapé 3. Grifo nosso. Tradução nossa. Gene Green, teólogo pentecostal e professor do NT, sustenta que: “Ruthven argumenta que os carismas emergem da obra do Espírito Santo dentro da Nova Aliança e que, portanto, o “cessacionismo prega um evangelho truncado. A ascensão do pentecostalismo global exige uma ampla e renovada audiência de seus argumentos bíblicos e teológicos em favor dos carismas contemporâneos dentro da igreja” (RUTHVEN, 2011, página de recomendações pela edição expandida e revisada. Grifo nosso. Tradução nossa). 191 RUTHVEN, 2017, p. 204-205, 208-217. 192 Ibid., p. 195-201, 209-217. 193 Ibid., p. 208. 194 Ibid., p. 10. Grifos nossos.

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sua vez, precisa sempre de gestores ou prefeitos. Prefeitos são, para as cidades, aquilo que os pastores são para as igrejas. Prefeitos de cidades são ordinários e permanentes, assim com o ofício de pastor e mestre. Devidamente reconfigurada, a ilustração proposta por Ruthven não ajuda a provar, nem explicar a contemporaneidade do apostolado.

Ruthven busca reforçar seu argumento mencionando Jesus Cristo como fundamento da igreja, ligando Efésios 2.20 com a confissão de Pedro, em Mateus 16.18.

A referência paulina aos apóstolos (e aos profetas) como “fundamentais” para a igreja (Ef 2.20; 3.5) é paralela à tradição de Jesus sobre a revelação sob os moldes da confissão de Pedro: “Tu és Pedro (Πέτρος), e sobre esta pedra (πέτρᾳ = revelação acerca de Cristo) edificarei a minha igreja” (Mt 16.18).195

Não há novidade em enxergar Cristo incluído no “fundamento”, bem como vincular Efésios 2.20 com Mateus 16.18, pois intérpretes reformados também fizeram isso (Bucer, Bullinger e, especialmente Sarcerius). A coisa nova é que, quando Ruthven menciona a “revelação de Cristo”, sua ênfase não está na doutrina, na verdade proposicional objetiva sobre Jesus como “Cristo” e “Filho do Deus vivo” (Mt 16.16), mas na experiência de recepção da revelação em si. O protestantismo magisterial afirmava que a igreja é edificada sobre o enunciado de Pedro. Ruthven assevera que a igreja é edificada, geração após geração, sobre a recepção de revelação extrabíblica sobre Jesus Cristo.

Esta confissão [de Pedro, em Mt 16.18] é divinamente revelada e, com a revelação aos apóstolos e profetas representa a “fundação” da igreja, da qual Cristo é a “pedra fundamental”, ou “cabeça da esquina” (pedra angular), que continuamente, através do Espírito, mantém a estrutura conjunta, tanto de cima, como de baixo (1Co 3.11). Estritamente falando, Cristo é o fundamento exclusivo da igreja (1Co 3.3-17) que um líder ou um apóstolo como Paulo pode “estabelecer”, mas o líder ou apóstolo não é ele próprio aquele fundamento. Paralelamente à imagem do corpo (1Co 12), o dom do apostolado é mais funcional do que cronológico. Portanto, apóstolos e profetas são “fundamentais” na medida em que “prototípicos” de toda a igreja que reduplica a experiência de revelação original sobre Cristo no âmbito do evangelho cristão. [...] Portanto, esta passagem não mostra que os apóstolos e os profetas cessaram, mas sim que, como sua experiência é “fundamental” [fundacional] e arquetípica, sua experiência e funções, portanto, continuam.196

Pedro confessou que Jesus é o Cristo recebendo revelação direta de Deus Pai (Mt 16.17). Os apóstolos do NT receberam revelação sobre Jesus Cristo (Gl 1.15-16). Esta experiência, de receber revelação extrabíblica para pregação do evangelho, é “reduplicada” na igreja por apóstolos e profetas contemporâneos.

Ruthven, critica a leitura fundacional protestante em sete declarações:

1) “Fundação” indica um “padrão” a ser replicado, e não uma “geração” congelada no tempo; 2) o “fundamento” de Efésios 2.20 representa tanto o próprio Cristo como a recorrente apostólica “confissão fundacional” profeticamente inspirada, como a “grande confissão” de Pedro (Mt 16.16-18), revelada a todos os cristãos em todas as épocas; 3) o protestantismo tradicional vê um apóstolo do NT como um papa do séc. 16 e não como uma função ministerial em curso dentro da igreja; 4) a metáfora cessacionista, em uma falácia ilógica, confunde a morte dos primeiros apóstolos e profetas com a morte de seus dons; 5) a metáfora é destruída se Cristo, a ἀκρογωνιαίου (“pedra de esquina”) é, como provável, também a “pedra principal” ou o “sustentáculo do fundamento”, segurando as paredes como se fossem dedos entrelaçados (Ef 2.21), que está também em contato com cada pedra; 6) esta metáfora

195 Ibid., p. 197-198. 196 Ibid., p. 198.

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cessacionista viola o ensino claro de Efésios 4.11, e, 7) substitui a “letra” do NT para a experiência do Espírito revelado do próprio Cristo como fundamento final.197

Na primeira crítica, Ruthven dá ao vocábulo “fundação” um sentido que destoa da metáfora de edificação de uma casa, usada pelo apóstolo Paulo em Efésios 2.20. A ideia de um alicerce que se “replica” ao longo do tempo é estranha às práticas de construção do séc. 1. Além disso, a leitura fundacional protestante não propõe “uma ‘geração’ congelada no tempo”, mas sim uma doutrina completada e suficiente.

Quanto à segunda crítica, protestantes magisteriais também entendem que a confissão de Pedro é “fundacional” e “profeticamente inspirada”, mas tanto Mateus 16.13-20, quanto Efésios 2.20, não exigem a conclusão de que deve haver continuação da revelação. A igreja será edificada sobre a doutrina de Jesus como Cristo e Filho do Deus vivo. O santuário de Deus é edificado sobre a doutrina divinamente revelada e ensinada pelos apóstolos e profetas. Isso esvazia a reivindicação de revelações extrabíblicas, bem como de apóstolos ou profetas contemporâneos. Os cristãos são abençoados e nutridos desfrutando da revelação do evangelho e feitos testemunhas dela — revelação dada pelo Espírito Santo aos apóstolos e profetas, e registrada por estes nas Escrituras (Gl 1.8-9, 15-17; 2Pe 3.15-16).

Terceiro, ao dizer que o protestantismo enxerga um apóstolo do NT como um papa do séc. 16, Ruthven replica o argumento do reformador radical Sebastian Frank, que dizia que o sola Scriptura estabelecia um “papa de papel”.198 Ruthven afirma que “os apóstolos e os profetas apenas comunicaram revelações; eles não as criaram, ex-catedra, como papas protestantes”.199 E sugere que a leitura fundacional protestante assume as premissas de Roma acriticamente.

Para minimizar as reivindicações do papa de ser a autoridade religiosa final pela sucessão apostólica, os reformadores não analisaram adequadamente os papéis dos apóstolos e profetas do NT. Em vez disso, assumiram as premissas de Roma e simplesmente transferiram a coroa e a autoridade do papa do séc. 16 aos apóstolos do primeiro século! Os apóstolos, então sob esta perspectiva, os únicos que podiam receber a revelação divina, canonizaram a sua autoridade doutrinal e eclesiástica definitiva, não por meio de encíclicas papais, mas no NT. Os reformadores, e particularmente os teólogos que os seguiram, protegeram ainda mais a autoridade “papal” do NT, negando qualquer revelação divina adicional baseada implicitamente [no] papel “fundacional” dos profetas em Efésios 2.20.200

A terceira crítica é imprecisa na análise do ponto de vista dos protestantes magisteriais, acerca do papa de Roma e dos apóstolos do NT. Os últimos são depositários e escritores da doutrina divinamente revelada, enquanto o primeiro, não. O NT difere radicalmente das encíclicas papais pelo simples fato destas últimas resultarem de esforço humano, enquanto o primeiro, de revelação de Deus infalível, inerrante e suficiente. Enquanto a premissa de Roma demanda continuação da obra de revelação do Espírito Santo, via Sagrada Tradição, a premissa magisterial admite sua cessação. Não é que os magisteriais acordaram entre si, arbitrariamente, rejeitar profecias extrabíblicas. Para eles, esta negação é requerida como dedução e aplicação razoáveis e fiéis de Efésios 2.20. Desde o início (e com razão,) a Reforma Magisterial assumiu que postular qualquer fonte de verdade ou orientação religiosa além das Escrituras — em outras palavras, alimentar expectativa ou deixar-se guiar por profecias

197 Ibid., p. 203. 198 Cf. EBELING, Florian. The Secret History of Hermes Trimegistus: Hermeticism from Ancient to Modern Times. Ithaca: Cornell University Press, 2011, p. 82, apud HORTON, Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: A Presença Santificadora de Deus na Criação, na Redenção e na Vida Cotidiana. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 244. 199 RUTHVEN, 2017, p. 198. 200 Ibid., p. 207-208.

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extrabíblicas — fragiliza a igreja, abrindo espaço não apenas para encíclicas papais, mas todo tipo de manipulações e tirania religiosa.

Ademais (quarta crítica), a leitura protestante não afirma que dons morrem, e sim, que determinados dons cessam quando seus possuidores morrem. Não há qualquer “falácia ilógica” nesta afirmativa. Se as listas de dons da Bíblia não são exaustivas e os dons são dados para que cristãos sirvam ao Senhor em diferentes lugares e tempos (cap. 2-4), é bíblico e verossímil admitir Deus como soberano para conceder dons para a realização de coisas singulares e, concluída a tarefa, depois da morte dos servos para ela designados, fazer cessar os respectivos dons. E se há coisas que sempre devem ser feitas ou estar presentes na igreja, e outras divinamente deliberadas para ocorrer apenas uma vez ou durante um tempo, nada mais crível do que acolher a proposição de alguns ofícios e dons como extraordinários e temporários, e de outros como ordinários e permanentes. Afirmar isso não equivale a dizer que a igreja cristã não seja apostólica, nem que a igreja não tenha de desempenhar um papel profético na história, ou que Deus emudeceu. Ao mesmo tempo em que não ratificam novos apóstolos e profetas ou revelações extrabíblicas, os protestantes fundacionais acreditam que Deus continua chamando e capacitando pessoas para servi-lo em cada geração.

Na quinta crítica, propõe-se uma conclusão não exigida pela premissa. Cristo como “pedra principal” e “‘sustentáculo do fundamento’, segurando as paredes como se fossem dedos entrelaçados (Ef 2.21), que está também em contato com cada pedra”, não “destrói a metáfora”, como alardeia Ruthven. Um cristão pode concordar com Jesus como sustentáculo do “fundamento”, certo de que o desfrute do Redentor e de seus benefícios se dá pela Escritura somente, aplicada em seu coração pelo Espírito Santo.

Quanto à sexta crítica, é controverso se o ensino de Efésios 4.11 é, de fato, “claro”. As leituras da Reforma Magisterial e Radical chegam a conclusões diferentes sobre este texto.

A sétima crítica é deletéria ao tentar estabelecer um falso (e antigo) dilema: Deus ou a Palavra. Uma coisa é “a experiência do Espírito revelado do próprio Cristo”; outra coisa é a “‘letra’ do NT”. Ruthven retoma o erro cometido pelo cardeal Sadoleto, combatido por Calvino: “E tu, Sadoleto, tropeçando no primeiro passo sob o umbral, foste castigado pela injúria que fizeste ao Espírito Santo, separando-o da Palavra”.201 Calvino repercute os Artigos de Esmalcalde, de Lutero: “Deus não deseja lidar conosco senão através da Palavra falada e dos sacramentos. É o próprio diabo o que é exaltado como Espírito sem a Palavra [...]”.202

Aliás, como não é raro entre os carismáticos, para Ruthven a “experiência reveladora” e o “forte tom de revelação” são por demais importantes.

Alguns cessacionistas parecem estar insistindo que “o fundamento” é a doutrina estabelecida nos documentos do NT. Como alguém comprometido com a infalibilidade e inerrância da Escritura, eu nunca procuraria minimizar o significado central da Bíblia para a fé. No entanto, a Bíblia em geral, e Efésios em particular, não se identificam com o núcleo fundacional da igreja. Pelo contrário, a experiência reveladora de Cristo, embora dentro de seu arcabouço bíblico, é verdadeiramente o fundamento da igreja. São Paulo estava preocupado que a fé cristã não se baseasse em palavras, mas em “uma demonstração do poder do Espírito” (1Co 2.14) [2.4]. Isto sugere fortemente que um sistema de proposições, por mais verdadeiras que sejam, não é a base para a fé normativa; é o próprio Cristo, por meio

201 CALVINO, João. De Calvino a Sadoleto: Uma defesa da Reforma. [S.l.]: Projeto Castelo Forte, 2017, edição do Kindle, posição 247 de 1267. Grifo nosso. 202 LUTHER, Martin. The Smalcald Articles, III.VIII.10-11. Tradução nossa. In: The Book of Concord: The Confessions of the Lutheran Church. Disponível em: <http://bookofconcord.org/smalcald.php#part3.8.10>. Acesso em: 13 mai. 2019. Sobre a luta de Lutero contra os que seguiam novas revelações, recomendamos a leitura dos apêndices 3 a 5.

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da atividade do Espírito de Cristo, com um forte tom de revelação, que caracteriza este fundamento.203

Ruthven se compromete “com a infalibilidade e inerrância da Escritura”, mas não com sua suficiência (sola Scriptura). Diz que “a Bíblia em geral, e Efésios em particular, não se identificam com o núcleo fundacional da igreja”, quando o mais honesto seria, mesmo apresentando argumento contrário, explicar que (1) o texto grego de Efésios 2.20 permite sim, a leitura proposta por Calvino; (2) o entendimento do “fundamento” como “doutrina”, em Efésios 2.20, abre espaço sim, para a dedução de cessação de profecias extrabíblicas; (3) a leitura magisterial constitui hermenêutica sadia (mesmo ele não concordando com ela). Se isso não bastasse, ele retira 1Coríntios 2.4 de contexto e subverte seu sentido, como se, ao mencionar aqueles que utilizavam “linguagem persuasiva de sabedoria”, Paulo se dirigisse aos cristãos que abraçam a leitura fundacional protestante, e como se “demonstração do Espírito e de poder” equivalesse à contemporaneidade do apostolado e da profecia. Ruthven ainda insiste em um rompimento desnecessário entre “um sistema de proposições, por mais verdadeiras que sejam” (a doutrina) e “o próprio Cristo, por meio da atividade do Espírito de Cristo”, como se o Espírito de Cristo sublevasse ou ultrapassasse aquilo que ele próprio revelou no NT.

Por fim, Ruthven faz uma acusação séria: os cristãos que abraçam a interpretação protestante de Efésios 2.20 se assemelham aos apóstolos falsos, combatidos por Paulo em 2Coríntios: “Um falso apóstolo prega um reino que consiste de palavra, e não de poder ([...] 1Co 4.20) — ou seja, um cessacionista!”204 O apostolado, diz ele, continua hoje e a negação disso implica concordância com uma “noção de apóstolo [...] historicamente condicionada”, bem como “rigoroso ceticismo”:

Assim, já que a noção de apóstolo é tão historicamente condicionada como a última autoridade religiosa, qualquer pessoa reivindicando o apostolado certamente será medida e julgada com rigoroso ceticismo. No entanto, é possível que nenhum impedimento bíblico exista para alguém hoje atuar, ou mesmo ser dotado com o apostolado.205

Resumindo, para Ruthven, a palavra “fundamento”, em Efésios 2.20, tem o sentido de experiência de revelação que serve de arquétipo a ser repetido. Jesus Cristo como “pedra angular” equivale à experiência de recebimento de revelação de Pedro, a ser replicada em cada geração. Uma vez que apóstolos e profetas são prototípicos, apostolado e profecia continuam hoje. Deus aplica a redenção enquanto a igreja avança recebendo revelações extrabíblicas. Este esquema se ajusta ao pentecostalismo clássico, com a diferença de que, neste último, não há espaço para novos apóstolos. Tanto o pentecostalismo clássico quanto Ruthven rejeitam sola Scriptura, em favor da Escritura mais profecias extrabíblicas. Ruthven empreende uma defesa da contemporaneidade dos dons descolada da ortodoxia protestante e evangélica, ao preconizar a atualidade do apostolado. As interpretações de Ruthven contêm imprecisões lógicas, exegéticas e teológicas. Ele lê os dados bíblicos, históricos e teológicos dentro de uma moldura consistente com a reforma radical do séc. 16, atacando a leitura fundacional propugnada pelos reformadores magisteriais.

A questão do início do capítulo recebe respostas excludentes. Ruthven diz que sim, o Espírito Santo chama e contempla pessoas hoje, para todos os ofícios e com todos os dons mencionados no NT. Os que abraçam a leitura protestante de Efésios 2.20, entendem que o

203 RUTHVEN, 2017, p. 217. Grifos nossos. 204 Ibid., p. 197. 205 Ibid., p. 201. Grifo nosso.

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Espírito Santo continua chamando pessoas para servir a Deus, mas descontinuaram os ofícios e dons fundacionais.

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6. Profecia falada e escrita

Tudo começou com a palavra falada: “Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus [...]” (Hb 11.3).206 Falando, Deus criou, proveu e organizou (Gn 1.3—2.3).207 Destarte, é descabido pensar em “palavra de Deus” como teoria ou discurso dissociado de ação.208 Deus não fala “apenas por falar”. Sua fala denota operação e “não volta vazia” (Is 55.11). Ao enviar sua palavra Deus cura, modifica o mundo e regenera os homens (Sl 107.20; 147.15-20; 1Pe 1.23-25). A palavra divina assegura a vida, restaura a alma e sustenta o cosmos (Dt 8.3; Sl 19.7-10; Hb 1.3).

Deus o Pai fala por meio de Deus Filho que é chamado de “Verbo”, por meio de quem “todas as coisas foram feitas” (Jo 1.1-3; Cl 1.15-16). O Espírito Santo fala como “sopro” da boca de Deus (Sl 33.6; cf. Gn 1.2). Em suma, o Deus Triúno opera falando, de tal modo que sempre devemos pensar em Deus e a Palavra ou em Deus na Palavra, jamais em Deus ou a Palavra, como se aquele exigisse a desconsideração desta, ou como se ambos — Deus e sua Palavra — pudessem ser absolutamente separados.

Deus decidiu não apenas falar, mas mediar sua fala, ou seja, pronunciar-se por meio de seres humanos, designados profetas.209

6.1. Os profetas bíblicos Em Efésios 4.11, o ofício de profeta é mencionado como um presente de Jesus Cristo à igreja, derivado de sua autoridade como Redentor exaltado: “ele mesmo [Cristo] concedeu uns para [...] profetas”.210 Os profetas são citados como os oficiais em segundo lugar de importância, logo depois dos apóstolos: “A uns estabeleceu Deus na igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas” (1Co 12.28).

Um profeta (nābî’, AT; prophētēs, NT) era escolhido e enviado por Deus para falar “antecipadamente ou abertamente”,211 como representante autoritativo dele (Êx 7.1; Is 6.8;

206 Van Groningen informa que nem todos os eruditos concordam com esta declaração; há uma tendência de alguns considerarem os fatos históricos, e não a fala de Deus, como atividade iniciante da revelação: “Nos meus primeiros dias de estudo teológico, percebi que alguns estudiosos do AT hesitavam em considerar a palavra falada de Yahweh Deus como o fator iniciante na revelação, conforme registrado nas Escrituras”; cf. VAN GRONINGEN, Gerard. O Progresso da Revelação no Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 16. Van Groningen responde dizendo que “não deve haver dúvida de que quando Deus criou o cosmos sua palavra falada e criadora era e é uma realidade histórica” (VAN GRONINGEN, 2018, p. 16-17). 207 A criação é deflagrada pelo comando “haja” (hayah, existir, Gn 1.3). A provisão, pela ordem “produza” (dasha, germinar, reverdecer, Gn 1.11). A organização pelos verbos “fazer” (asah) e “separar” (badal, dividir, separar, isolar, Gn 1.4, 7, passim), além dos atos de “ajuntamento” (Gn 1.9-10) e “especificação” (associar “conforme a sua espécie”, Gn 1.12, passim). 208 “Este ato de falar foi a motivação que originou um ato que se seguiu. Em vários exemplos o ato de falar e o ato de executar são tão intimamente relacionados que é difícil distingui-los” (VAN GRONINGEN, 2018, p. 17). 209 A fala de Deus aos homens precede o ofício de profeta, pois Deus se comunicou com Adão, Noé e os patriarcas muito antes do estabelecimento do profetismo de Israel (e.g., Gn 1.28-29; 2.16-17; 3.9 et seq.; 4.6-7; 6.13-21; 12.1; 26.2-5; 31.1). O que diferencia o ofício profético não é o fato de Deus falar com pessoas, e sim, dele designar pessoas para falarem a outras, em nome dele. 210 CHAPELL, Bryan. Estudos bíblicos expositivos em Efésios. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 192. 211 VINE, E. R.; UNGER, Merril F.; WHITE JR., William. Dicionário Vine: O Significado Exegético e Expositivo das Palavras do Antigo e do Novo Testamento. 7. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006, p. 903. Hendriksen informa: “Como mostra esse termo – e seus derivados – (visto que neste caso o sentido etimológico continua apegado a ele), um profeta (προφήτης de πρό diante, e φημί falar) é ‘uma pessoa que fala diante de’. E o que ele fala diante de ou declara publicamente é a vontade e a mente de Deus. Ele é aquele que ‘proclama’, e não necessariamente (ainda que às vezes também) aquele que ‘prediz’. Cf.

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10.24; Jr 1.5-10; 7.25). Às vezes ele era chamado de “vidente” (rō’eh, em 1Sm 9.9; 1Cr 9.22, ou ḥō·zě(h), em 2Cr 9.29), porque Deus se dava a conhecer a ele “em visão” ou “em sonhos”, excetuando-se Moisés, com quem Deus falava diretamente, e Jesus, “Deus unigênito” que está “junto do Pai”, revelando o Pai (NAA; Nm 12.6-8; Is 6.1; Ez 1.1; Jo 1.18; Hb 1.1-2).212

O conteúdo da fala profética era divinamente inspirado, ou seja, o profeta era um canal de revelação infalível (Gn 15.1; 1Sm 15.10; 2Sm 7.4; Is 2.1; Ez 7.1; Jn 3.1; Sf 1.1; 1Co 14.6, 29-30; 2Tm 3.16-17; 1Pe 1.10-12; 2Pe 1.19-21). Como explica Berkhof, “o profeta é alguém que vê coisas, isto é, que recebe revelações, que está a serviço de Deus, particularmente como mensageiro, e que fala em seu nome”.213 Por isso, falas proféticas no AT eram iniciadas com “assim diz o SENHOR Deus” (Is 7.70; 10.24; Jr 4.3; Am 1.3; Zc 1.17) e no NT, com “isto diz o Espírito Santo” (At 21.11; cf. 13.2). Berkhof informa ainda, que “era dever dos profetas revelar a vontade de Deus ao povo. Isto podia ser feito na forma de instrução, admoestação e exortação, promessas gloriosas ou censuras severas”.214

Alguns entendem que há uma diferença entre os profetas do AT e NT, quanto à autoridade da profecia. Dizem que a revelação infalível veio pelos profetas do AT e apóstolos do NT e que a profecia do NT podia conter falhas. Isso é evidenciado — sugerem — de três modos: (1) diferente do AT, o NT não possui livros escritos por profetas, e sim pelos apóstolos e pessoas ligadas a eles. (2) Os profetas de Corinto deviam se submeter à instrução de Paulo (1Co 11.2-16; 14.26-40). (3) A profecia do NT tinha de ser julgada (Rm 12.6; 1Co 14.29; 1Ts 5.20-21).215

Opondo-nos a tal entendimento, admitimos que o profeta do AT é, de fato, distinto do profeta do NT, pois este último ministrava no contexto da promessa de Joel 2.28-32, cumprida no Pentecostes. O profeta do NT recebia revelação pertinente ao Cristo que já veio, ressuscitou, subiu ao céu e voltará, e à redenção consumada na cruz, ou como explica Gaffin Jr., à “salvação em Cristo, com suas implicações ricas e diversificadas para a fé e a

HENDRIKSEN, William. 1 e 2Tessalonicenses, Colossenses e Filemon. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 164. (Comentário do Novo Testamento). Logos Software. Profecia (prophēteia) é a “capacidade de proferir mensagens inspiradas”; cf. LOUW; NIDA, op. cit., #33.461, προφητεία, p. 440. 212 CULVER, Robert D. rō’eh. In: HARRIS; ARCHER JR.; WALTKE, op. cit., p. 1384; ROBECK JR., C. M. Profecia, Profetizar. In: HAWTHORNE; MARTIN; REID, op. cit., p. 1009, 1010. 213 BERKHOF, op. cit., p. 328. Cf. RIDDERBOS, op. cit., p. 506: “A profecia é uma forma especial do Espírito concedida à igreja e operante dentro dela. Por esse motivo, o discurso dos profetas também pode ser chamado de revelação”. 214 BERKHOF, op. cit., p. 329. 215 Será que este era o entendimento de Herman Ridderbos? Ele escreveu que “essa profecia e revelação não deve ser entendida [...] como dom excepcional, no qual a igreja, como tal, não tem participação e que precisa receber apenas como uma mensagem infalível do Espírito vinda a ela de fora” (RIDDERBOS, op. cit., p. 506; grifos nossos). Lopes considera uma “tese difícil de provar”, a de que a profecia, em 1Coríntios 14, seja um dom revelatório (LOPES, Augustus Nicodemus. O Culto Espiritual: Um Estudo em 1Coríntios Sobre Questões Atuais e Diretrizes. 2. ed. revisada e aumentada. Reimpressão 2017. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 127). Ele diz ainda: “Se por revelação entendermos o conhecimento infalível e seguro da vontade de Deus, captado e transmitido por instrumentos inspirados (os autores bíblicos) de tal forma que viesse a ser conhecida exatamente como Deus o desejava [...] fica difícil considerar nesses termos as [...] profecias [...]que ocorriam durante o culto na igreja de Corinto. Seria dar aos ‘espirituais’ de Corinto o status de apóstolos ou de profetas do AT, ofícios pelos quais Deus transmitiu sua revelação escrita” (LOPES, 2012, loc. cit.). D. A. Carson considera “difícil justificar exegeticamente” que a profecia do AT e NT possuam o mesmo status de autoridade (CARSON, D. A. A Manifestação do Espírito: A Contemporaneidade dos Dons à Luz de 1Coríntios 12—14. São Paulo: Vida Nova, 2013, p. 95). Para ele, “a profecia do NT, em contraste com a do AT, tem um perfil bem inferior” (CARSON, op. cit., p. 98) e “há exemplos de profecias em Atos que são vistas como genuinamente de Deus, embora tenham menos status de autoridade em comparação com as profecias do AT” (ibid., p. 99). Um argumento que gerou polêmica e engendrou respostas de estudiosos reformados foi o de Wayne Grudem (GRUDEM, 2000, p. 892-902). Grudem sugere que os “profetas” mencionados em Efésios 4.11 são apenas os do AT e que os profetas do NT transmitiam mensagens genuinamente de Deus, mas que podem conter imprecisões de transmissão ou de recepção.

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vida da igreja”.216 A profusão de profetas nas igrejas de Antioquia e Corinto (At 13.1; 1Co 14.29-31) confirma o construto do oráculo de Joel, concernente à ampla distribuição do dom profético na igreja do NT. Tais distinções entre os profetas do AT e do NT não implicam, porém, diferença de natureza do ofício (uma vocação e habilitação divina para falar como representante de Deus), muito menos de autoridade (como se o NT abonasse uma profecia errática ou falível).

Alvitramos que não há diferença entre os profetas do AT e NT, quanto à autoridade e exatidão da profecia, por quatro razões: (1) A sugestão de Grudem, de que tanto Ágabo quanto os profetas de Corinto (At 11.27-28; 21.10-11; 1Co 14.1-40) ministravam um tipo de profecia menos autoritativo, distinto da profecia do AT, não corresponde ao ensino da Escritura sobre o ofício profético.217 (2) O que Paulo fala sobre a profecia, em 1Coríntios 14.3, é perfeitamente aplicável aos profetas do AT. (3) Dizer que as profecias do NT são de outra natureza, revelações do Espírito Santo, cuja autoridade é inferior às revelações das Escrituras canônicas, dadas pelo mesmo Espírito,218 meras “impressões do Espírito na mente”,219 ou que são sim, divinamente inspiradas, mas pode haver ruído ou corrupção, ou seja, erro, em seu enunciado ou recepção220 ou, por último, que profecias são condicionais, ou seja, pode não acontecer o que o profeta afirmou, caso o receptor da mensagem não aja de conformidade com o anúncio ou não exercite sua fé — nada disso corresponde ao ensino bíblico sobre os profetas e as profecias. (4) Tanto no AT quanto no NT, profecias que contêm erros devem ser tidas como falsas. Uma suposta profecia que “falha” não é dada pelo Espírito Santo. No AT, os profetas falsos deviam ser mortos; no NT eles deviam ser identificados, rejeitados e “vencidos” pelo apego à doutrina sadia (Dt 13.1-5; 18.20-22; Mt 7.15; 2Pe 2.1; 1Jo 4.1-6). Se no AT, o profeta era obrigado a pronunciar mensagens consistentes com a Lei de Moisés (cf. Ml 4.4), no NT, a profecia tinha de ser “segundo a proporção (analogia) da fé” (Rm 12.6), quer dizer, análoga à “fé” ou doutrina do evangelho (At 6.7; Jd 3).221 Sendo assim, concordamos com Thomas Schreiner, quando afirma que:

216 GAFFIN JR., op. cit., p. 66-67. 217 Não há espaço aqui para analisar a argumentação de Grudem. Os interessados em conhecê-la podem conferir GRUDEM, 2000, p. 892-902; GRUDEM, 2004, p. 87-117. Uma refutação da tese de Grudem consta em GAFFIN JR., op. cit., p. 62-78. Para Carson, o fato do profeta do AT dever ser obedecido, mas o do NT ter de ser cuidadosamente avaliado (op. cit., p. 96-97); o fato de não existir um texto ameaçando de excomunhão um profeta que “não fizesse jus à sua designação” (ibid., p. 97); e o fato dos profetas de Corinto terem de se subordinar à autoridade apostólica de Paulo — todas essas “observações exegéticas minam a crítica de Gaffin [...] contra Grudem” (ibid., loc. cit.; grifo nosso). Outras respostas bíblicas a Grudem são fornecidas por O. Palmer Robertson (ROBERTSON, O. Palmer. A Palavra Final: Resposta Bíblica à Questão das Línguas e Profecias Hoje. São Paulo: Editora Os Puritanos, 1999, p. 106-135); KNIGHT III, op. cit., p. 99-101; KNIGHT III, George W. A Profecia no Novo Testamento. São Paulo: Editora Os Puritanos, 1998; SCHREINER, Thomas R. Teologia de Paulo: O Apóstolo da Glória de Deus em Cristo. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 332-334. 218 PACKER, 2018, p. 269; WILLIAMS, op. cit., p. 692-693. Packer (2018, loc. cit.) afirma que “a profecia potencialmente universal do NT era menos do que infalível e irreformável, havendo a possibilidade de precisar ser qualificada ou, de fato, corrigida”. Discordamos desta ponderação, pois a profecia do AT também exigia ouvidos atentos e discernimento. 219 GRUDEM, 2000, p. 892. 220 STORMS, op. cit., p. 107-108; STORMS, C. Samuel. O Ponto de Vista da Terceira Onda. In: GRUDEM, 2003, p. 101-139. 221 A tradução da NTLH entende que Paulo está falando sobre uma medida de fé subjetiva, dada ao profeta: “se o dom que recebemos é o de anunciar a mensagem de Deus, façamos isso de acordo com a fé que temos”. Gaffin propõe uma leitura semelhante, sugerindo que Deus concede “medidas de fé” pertinentes ao exercício de cada um dos dons mencionados por Paulo em Romanos 12.6-8 (cf. GAFFIN JR., op. cit., p. 67-69). Mesmo assim, não parece haver motivo para rejeitar a interpretação de Calvino, ratificada por Ridderbos: “É possível, pois, que ele esteja aqui, pela mesma razão, admoestando os que profetizavam na igreja, para que harmonizassem suas profecias à norma de fé, a fim de que não divagassem em algum ponto ou se desviassem da linha reta. Pelo termo fé ele quer dizer os princípios rudimentares da religião, e que seja condenada como sendo falsa qualquer doutrina que não pode ser encontrada em plena correspondência com estes princípios”; cf. CALVINO,

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O ônus da prova está com aqueles que desejam criar uma divisão entre os profetas do AT e do NT, pois o que se espera é que ambos se comportassem da mesma maneira. Ambos eram julgados da mesma maneira e esperava-se precisão dos dois. [...] Resumindo, não há nenhuma evidência convincente de que os profetas do NT falassem tanto a verdade quanto o erro. A exemplo dos profetas do AT, eles comunicaram a palavra do Senhor com precisão.222

Estabelecido o ofício profético, Deus moveu alguns dos seus profetas a escrever (Êx 17.14; 34.27; Is 30.8; Jr 30.1-2; 36.2). Os livros do AT são produto deste esforço de escrita. Ainda que se saiba que nem todos os seus autores (e.g., Davi ou Esdras) tenham exercido o ofício profético, de modo geral, considera-se que tais livros advém de revelação profética, daí sua autoridade como regra de fé e prática. A escrita da palavra demarcou a transição de uma cultura oral, baseada na escuta, para uma cultura visual, baseada na leitura. A “religião das profecias” cedeu lugar para a “religião do livro”.223

Organizando até aqui, primeiro Deus falou. Em seguida, ele designou profetas como mediadores de sua fala. Depois, adicionou uma segunda camada de mediação, movendo alguns profetas a escrever. Quando a coleção de livros do AT foi completada, tanto o ofício de profeta quanto a revelação cessaram por alguns séculos, até a vinda de Jesus Cristo.

Terminado o AT com o Messias mencionado como promessa, fazia-se necessário o NT, revelando Cristo e explicando não apenas como a promessa se cumpriu, mas também, quais as implicações deste cumprimento. Uma vez que a fala de Deus cria, provê e organiza, sem a revelação divina continuada no NT, não haveria uma palavra escrita sobre a nova criação em Cristo, nem sobre a provisão para a vida diária cristã, tampouco para a organização da igreja. Em outras palavras, a revelação do AT não era suficiente; não estava completa. Por isso, Deus levantou novos agentes e os capacitou com o dom de profecia, para produção e completação da revelação. Esses novos agentes foram o próprio Senhor Jesus Cristo, bem como os apóstolos e profetas do NT, como lemos em Hebreus 2.3-4:

Como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande salvação? A qual, tendo sido anunciada inicialmente pelo Senhor [Jesus], foi-nos depois confirmada pelos que a ouviram [os apóstolos]; dando Deus testemunho juntamente com eles, por sinais, prodígios e vários milagres e por distribuições do Espírito Santo, segundo a sua vontade.

A palavra “apóstolos” não consta em Hebreus 2.3. A confirmação ou “testemunho” de Deus com “sinais, prodígios e vários milagres e por distribuições do Espírito Santo, segundo a sua vontade” (Hb 2.4), especialmente à luz de 2Coríntios 12.12, permite identificar os “que a ouviram” com os apóstolos. Este é o entendimento de Calvino, que primeiro vê a palavra “salvação” (Hb 2.3), como equivalente à “doutrina”:

Observe-se que a palavra “salvação” aqui se aplica metonimicamente à doutrina, porque, assim como Deus quer que os homens sejam salvos, de nenhuma outra forma senão através do evangelho, assim também, quando ele é negligenciado,

João. Romanos. São José dos Campos: Editora Fiel, 2013, p. 496–497. (Série Comentários Bíblicos). Logos Software. E ainda: “Nessa passagem, não é dito que todo profeta deve profetizar segundo a medida de fé que lhe foi dada, pois esse seria um parâmetro geral demais e difícil de compreender. Fica evidente que a intenção aqui é apresentar uma norma que seja mais objetiva, isto é, a fé de acordo com seu conteúdo, ou, de um modo geral, a doutrina cristã” (RIDDERBOS, op. cit., p. 507; grifo nosso). 222 SCHREINER, op. cit., p. 333, 334. Bryan Chapell (op. cit., p. 133) também argumenta que “profetas”, em Efésios 2.20, se refere aos profetas do AT e NT. 223 VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamentos. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 431-433.

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então se rejeita toda a salvação divina. “Porquanto ele é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” [Rm 1.16]”.224

Em segundo lugar, Calvino chama estes que “ouviram”, de “discípulos de Cristo”.225 Daí, comentando Hebreus 2.4, ele os identifica como os apóstolos: “Além do fato de que os apóstolos haviam recebido do Filho de Deus a mensagem que pregavam, o Senhor também imprimira seu selo de aprovação na pregação por meio de milagres, como que por uma solene rubrica”.226

Simon Kistemaker vai em direção semelhante vinculando a “salvação” (em Hb 2.3), com o NT: “Assim a palavra salvação refere-se ao evangelho da salvação proclamado por Jesus. Essa única palavra engloba a doutrina da redenção em Cristo e, em um sentido, refere-se ao NT”.227 Hebreus se refere aos apóstolos como primeiros ouvintes: “ele não fornece detalhes sobre a proclamação do evangelho por Jesus (1.3) e pelos apóstolos, e não especifica o que são os “sinais, prodígios e vários milagres, e por dons do Espírito Santo”.228

Fritz Laubach entende que Hebreus 2.3-4 informa sobre a revelação do evangelho, que culminou nas Escrituras:

O apóstolo fala de um modo específico sobre como Deus introduziu a salvação em nosso mundo: a salvação eterna das pessoas está vinculada à palavra viva de Deus! Jesus Cristo, o Filho de Deus e Senhor do mundo, incorporou a salvação divina em sua pessoa, anunciando-a em sua pregação. Por meio de sua paixão, morte e ressurreição ele abriu o acesso à salvação para todas as pessoas. Os apóstolos, testemunhas do Ressuscitado, constituem o fundamento da igreja (Mt 16.18; Ef 2.20) e tornam-se portadores da mensagem da salvação. Assim como a palavra de revelação do AT, falada por meio dos anjos, evidenciou-se como legalmente eficaz, assim também a salvação no NT foi “anunciada de maneira legalmente válida pelos apóstolos, ratificada juridicamente”. O próprio Deus confirmou a sua palavra.229

Resumindo, para que fôssemos alcançados pelo evangelho, o Espírito Santo graciosa e eficazmente (1) concedeu plenitude de revelação sobre Jesus Cristo; (2) providenciou a escrita desta revelação; (3) chamou e moveu pessoas para cumprirem a missão, de modo que o evangelho chegasse até nós; (4) nos iluminou, ou seja, nos esclareceu e deu entendimento quando ouvimos, lemos, estudamos e meditamos no evangelho; (5) aplicou o evangelho em nosso coração e, (6) ainda hoje, pela Palavra, cria coisas novas, nutre e organiza nossa vida (Cl 1.25-29; Lc 1.1-4; At 1.1; Gl 6.11; Rm 10.12-15; 2Co 4.5-6; Sl 119.97-112; Ef 5.25-27; 6.17; 1Pe 1.22—2.3).

224 CALVINO, Hebreus, p. 51. 225 “Por essa razão o apóstolo nos lembra que a doutrina que lhes fora ensinada por outros, no entanto procedia de Cristo. Ele afirma que os discípulos de Cristo eram aqueles que se mantiveram fiéis às instruções transmitidas por Cristo mesmo” (CALVINO, op. cit., p. 52). Grifo nosso. 226 Ibid., loc. cit.; grifo nosso. 227 KISTEMAKER, Simon. Hebreus. 2. ed. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2013, p. 84. (Comentário do Novo Testamento). Logos Software. 228 KISTEMAKER, Hebreus, p. 85. Grifo nosso. 229 LAUBACH, Fritz. Carta aos Hebreus. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2000, p. 51–52. (Comentário Esperança). Logos Software. Citando SCHLIER, H. Ki-ThW, p. 603, v. 1, Laubach informa que tanto o adjetivo bebaios, traduzido como “firme”, em Hebreus 2.2, quanto o verbo bebaioō, traduzido como “confirmada”, em Hebreus 2.3, transmitem o sentido de ratificação legal. “A palavra grega [...] que o apóstolo utiliza nos v. 2, 3, significa originalmente ‘afixar’, ‘passar a vigorar legalmente’, cf. 1Coríntios 1.6. A validade legal da palavra de Deus é confirmada no AT e NT pelo pacto da aliança, em grego diathēkē; cf. também Marcos 16.20. É importante que de acordo com 2Coríntios 1.21, 22 a ratificação e confirmação da palavra de Deus acontecem quando somos selados com o Espírito Santo em nossos corações” (LAUBACH, op. cit., p. 52, nota de rodapé 88).

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6.2. Por qual razão Deus providenciou a escrita da revelação Somos conduzidos a duas questões: (1) Por que Deus fez assim? Por que ele conduziu as coisas para que tivéssemos sua revelação escrita? (2) Qual é a implicação da completação e escrita da revelação de Deus, de termos uma Palavra de Deus finalizada, redigida e impressa? Responderemos a primeira questão nesta seção e a segunda, na seção seguinte.

Por que essa insistência, da divina providência, em que sejamos não apenas o povo da profecia, mas também o povo do livro? Considerando a presença contínua dele conosco, pelo Espírito; considerando que o Espírito prometido nos foi dado, e nas promessas (especialmente por meio de Jeremias e Ezequiel) consta que o Espírito nos traria conhecimento; considerando que o Espírito Santo poderia falar audivelmente por meio de profetas contemporâneos (e.g., At 13.1-2), por que Deus decidiu encapsular sua Palavra falada na escrita e assim, formatá-la visual e objetivamente; literalmente, cimentá-la?

Vamos tentar retornar para o tempo dos reformadores magisteriais, e, um século depois, para o tempo dos teólogos de Westminster.

Os eruditos contemporâneos estão certos quando dizem que sempre houve uma movimentação carismática no entorno da igreja. Eles não erram ao dizer que, na época de Lutero, haviam os “profetas celestiais” e, na de Calvino, os “entusiastas”. E que em pleno séc. 17 pululavam revelações proféticas entre os crentes escoceses. O que não pode ser esquecido é que Lutero combateu as novas revelações dos “profetas de Zwickau” (o pisoeiro Nicolas Storch, Thomas Drechsel e Marcus Thomæ)230 e bateu de frente com Thomas Müntzer e Andreas Carlstadt.231 Calvino lutou contra os anabatistas e o cardeal Sadoleto, entendendo que este último propunha uma separação indevida entre a Palavra e o Espírito. E os teólogos de Westminster escreveram uma Confissão de Fé que confrontou as novas revelações dos profetas escoceses.

Nem Roma, nem os entusiastas (e os carismáticos, depois deles), conseguiram responder corretamente à primeira pergunta, porque disseram que um registro escrito da revelação é necessário, mas insuficiente (cf. seções 5.1.2 e 5.3).

Os irmãos de Westminster acertaram. Em plena efusão das revelações dos profetas escoceses, eles concluíram que Deus decidiu escrever a revelação “para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo”.232 Eles atinaram para o valor da escrita para “preservação e propagação da verdade”, bem como para a profundidade e extensão da depravação total. A proposição de revelações extrabíblicas abre espaço para a “corrupção da carne”, tal como aconteceu nos tempos de Jeremias (Jr 23.25-26). Além disso, a abertura a profecias extrabíblicas torna os crentes e a igreja suscetíveis à “malícia de Satanás e do mundo”, atualizando o alerta do próprio Cristo, em Mateus 24.24-25: “porque surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos. Vede que vo-lo tenho predito”.

Resumindo, por que Deus conduziu as coisas para que tivéssemos sua revelação por escrito, fazendo de nós não o “povo da profecia”, mas o “povo do livro?” Sim, Deus está presente nos crentes e, por conseguinte, em sua igreja. Sim, o Espírito em nós traz conhecimento. E sim, o Espírito Santo pode falar audivelmente por meio de profetas contemporâneos, mas o próprio Deus decidiu encerrar sua Palavra falada na escrita, garantindo que as novas gerações acessem ao evangelho tal como ele é, sem deturpações

230 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, Um Destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012, p. 248. 231 FEBVRE, op. cit., p. 249. 232 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, CFW, 1.1, in: BEHR, p. 1992.

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engendradas pelas ilusões do coração humano, por mentiras de Satanás ou pelos enganos da cultura decaída.

6.3. A implicação lógica de uma revelação finalizada e escrita Isso nos coloca diante da segunda questão: qual é a implicação da completação e escrita da revelação de Deus, de termos uma Palavra de Deus finalizada, redigida e impressa? Para respondê-la, lembremos que foi dito antes que, quando a coleção de livros do AT foi concluída, tanto o ofício de profeta quanto a revelação cessaram por alguns séculos, até a vinda de Jesus Cristo. Então Deus Pai enviou ao mundo Jesus, sua Palavra encarnada. Em seguida, no Pentecostes, o Espírito Santo foi enviado pelo Pai e pelo Filho, assegurando plenitude e culminância de revelação (as “visões”, os “sonhos” e as “profecias” anunciadas por Joel). Destarte, Cristo é o centro, o clímax e a culminância da revelação.

Geerhardus Vos nos ajuda a entender que tanto a revelação natural, quanto o AT, são revelações de e sobre Jesus Cristo, e que a culminação de toda revelação se dá no NT, nas duas últimas de quatro etapas ou “divisões” desta ampla e completa revelação, como segue:

a) A revelação natural ou também chamada de revelação geral, que se estende indefinidamente desde a criação do mundo.

b) A revelação sob a economia do AT, que se estende da entrada do pecado do mundo até a encarnação.

c) A revelação de Deus feita durante seu ministério público na terra, que se estende da natividade até sua ressurreição e ascensão.

d) A revelação mediada por ele por meio de seus servos escolhidos, que se estende da ascensão até a morte da última testemunha inspirada, falando sob o guiar infalível do Espírito Santo.233

Por esse ângulo, considerar Cristo como centro, clímax e culminação da revelação equivale a dizer que o NT é o clímax e culminância da revelação, pois o NT é a explicação sobre Jesus e sua obra. Tudo o que consta no NT, de Mateus até o Apocalipse, apresenta e explica o Redentor, como registro fiel, definitivo e suficiente da nova dispensação. Retornando a Vos:

Notaremos que em Hebreus 1.1-2, como nas declarações do AT, de Jesus e de Paulo, a nova dispensação aparece como final. E isso se aplica igualmente à revelação que a introduz. Ela não é uma revelação a ser seguida por outras, mas é a revelação consumada além da qual nada é esperado. Depois da fala “no Filho” (assim chamado qualitativamente) nenhuma fala mais elevada era possível. Paulo também fala de Deus ter enviado Deus o Filho no pleroma dos tempos [Gl 4.4]. Consequentemente, não há em nenhum lugar qualquer traço de pontos de vista acumulativos: profetas, Jesus, apóstolos. O NT é um todo orgânico e completo em si mesmo.234

Vos define Jesus como centro da revelação, de três modos: (1) Jesus Cristo é o grande fato a ser exposto na revelação; (2) como “unigênito” que “está no seio do Pai” e como Profeta, Jesus comunica revelação (Jo 1.18); (3) Jesus promete e concede o Espírito Santo, tornando real a identificação entre Jesus e seus intérpretes [os apóstolos], “tanto quanto ao caráter absoluto de autoridade como à adequação do conhecimento conferido”.235

Agora, após o NT, a única revelação que os cristãos devem aguardar é a “revelação dos filhos de Deus”, na consumação (Rm 8.18-25; 1Jo 3.2-3).

233 VOS, op. cit., p. 414-415. 234 Ibid., p. 364. Grifos nossos. 235 Ibid., p. 365.

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A consumação pertencerá à revelação do NT como uma divisão final. A revelação mística reivindicada por muitos nesse ínterim como um privilégio pessoal não está em linha com o pensamento da religião bíblica. Misticismo em sua forma desvinculada não é especificamente cristão.236

Repetindo a segunda pergunta, se esta revelação, completa e culminante, está agora impressa, nas páginas da Bíblia, qual a implicação disso?

Como enredo, “clímax” significa “o grau máximo de um desenvolvimento”;237 assim que chega ao seu ponto máximo de incremento, um enredo termina. Culminância tem a ver com altitude (e.g., o cume de um pico, como o Everest) e equivale a “auge, apogeu, zênite”.238 Depois que se chega ao topo do Everest (depois da culminância), tudo é rebaixado, existem apenas platôs e elevações menores. Se Cristo é o clímax da revelação antes da consumação, não há porque aguardar novas revelações por via mística. Se Cristo é a culminância da revelação, cabe a nós prosseguir a caminhada sem expectativa de novos picos, a não ser o da consumação.

Finalmente, respondendo a segunda pergunta, eis a implicação: Completado o NT, cumpriu-se o propósito da revelação. Com a morte dos apóstolos e profetas do NT, tanto os ofícios de apóstolo e profeta, quanto o dom de profecia cessaram.

Os reformadores magisteriais entenderam revelação (apokalypsis) de duas maneiras, como Palavra de Deus e como evangelho.239 Carismáticos não negam esse sentido geral, mas enfatizam “revelação” como desvendamento de um “mistério” divino, por meio de visão, sonho ou conhecimento sobrenatural de fatos passados, presentes ou futuros da vida de uma pessoa, seguido de exortações ou orientações específicas (2Sm 12.7-14; 1Co 14.24-25). Afirma-se que “com este dom, o Espírito ilumina o progresso do reino de Deus, revela os segredos dos corações das pessoas e submete o pecador à convicção”.240

Pelo ângulo carismático, “mistério” significa um evento na história, ou algo na vida de uma pessoa, que é previsto ou desvelado na profecia.241 Protestantes fundacionais admitem este uso de “mistérios”, e.g., traduzindo rāz, “segredo”, em Daniel 2.28, 29, 47, mas no NT, mystērion equivale aos construtos pertinentes ao “reino de Deus”, ou seja, ao evangelho, até então “ocultos” e agora revelados aos discípulos e demais “ministros de Cristo” (Mt 13.11; Lc 8.10; 1Co 4.1). Nas cartas aos Romanos, Efésios e Colossenses, “mistério” se refere às verdades referentes à pessoa e obra de Jesus Cristo, bem como às suas implicações para os judeus e gentios (Rm 11.25; 16.25; Ef 1.9; 3.3-4, 9; 5.32; 6.19; Cl 1.26-27; 2.2; 4.3). Este também parece ser o sentido de “mistério” em 1Coríntios 2.7 e 1Timóteo 3.9, 16. Em outros lugares, “mistério” comunica a ideia de “segredo” ou “enigma” (1Co 15.51; 2Ts 2.7). Considerando este uso paulino de “mistério”, não é implausível aventar que “mistérios”, em 1Coríntios 13.2; 14.2, não tenha a ver com “coisas até então ocultas, sobre eventos ou pessoas”, como sugerem os carismáticos. Não negamos a possibilidade de uma pessoa anunciar um evento futuro que, de fato, aconteça. Ou de um segredo de alguém ser sobrenaturalmente descoberto. Apenas

236 Ibid., p. 367. 237 FERREIRA, Aurélio, op. cit., loc. cit. 238 Ibid., loc. cit. 239 Sem revelação, nós não podemos sequer conhecer a Deus. “O homem só pode conhecer a Deus na medida em que este ativamente se faz conhecido” (BERKHOF, op. cit., p. 33). Não negamos o sentido de apokalypsis como profecia, no último livro do NT; nem como sinônimo de “iluminação”, em Efésios 1.17, ou de “esclarecimento”, em Filipenses 3.15. Isso não exige que discordemos da proposição fundacional de Vos, como sugere Carson (op. cit., p. 165-167). 240 HORTON, Stanley M. Teologia Sistemática: Uma Perspectiva Pentecostal. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 1996, p. 475. 241 Relatos deste tipo de ocorrência “profética” podem ser conferidos em DEERE, op. cit., passim e STORMS, op. cit., passim.

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chamamos a atenção para o ensino da própria Escritura: a ocorrência de tais fenômenos não denota, necessariamente, ação do Espírito Santo (Dt 13.1-3; 18.14; Mq 5.12; At 16.16-17).

Porque isso é assim, para os protestantes fundacionais, a “revelação” do “mistério” é o pacote de verdades sobre Jesus Cristo, dado nas Escrituras e suficiente para nossa salvação, santificação e consolação. O. Palmer Robertson explica isso da seguinte forma:

O alvo principal da “revelação” não é a perpétua experiência da revelação propriamente dita. A revelação, na verdade, é um meio para um fim. É o método pelo qual Deus se faz conhecer aos pecadores que vivem sem esperança, perdidos e separados de seu Filho, o Senhor Jesus Cristo.242

Carismáticos insistirão em sugerir que a profecia extrabíblica deve ter lugar na igreja. Uma evidência histórica disso, dizem, são os “profetas escoceses” dos séc. 16-17, mas Westminster respondeu a eles como segue: A Escritura Sagrada é indispensável, e cessaram os modos antigos de revelação,243 quer dizer, a consequência da completação da escrita do NT é a cessação da revelação.

Não parece razoável considerar que, completada a revelação, cessaram tanto os ofícios de apóstolo e profeta, quando o dom de profecia? Não caberia ao Espírito Santo, desde então, assegurar poder para pregação do evangelho completo de Jesus Cristo, acompanhado das suas operações necessárias para a salvação, santificação e consolação dos eleitos de Deus? Os romanistas e os pentecostais esperam novas inserções de revelação antes da consumação, ou se esforçam para atingir outros picos, no afã de obter “mais de Deus”. Os herdeiros da Reforma Magisterial olham para o evangelho revelado no NT, certos de que Deus já nos deu tudo até a consumação.

242 ROBERTSON, op. cit., p. 59. Grifo nosso. 243 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, CFW, 1.1, in: BEHR, p. 1992. Grifo nosso.

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7. Quatro desafios dos defensores da profecia extrabíblica

Os teólogos de Roma, os pentecostais e carismáticos e até leitores ditos “calvinistas” ou “reformados” abertos a profecias extrabíblicas, desafiam o entendimento da Reforma Magisterial e de Westminster, de quatro modos: (1) não há passagem bíblica que diga, expressamente, que a revelação profética cessaria após o término do NT. (2) Além disso, 1Coríntios 13.8-13 abre espaço para afirmar que profecias, línguas e ciência continuam até a parusia (volta de Cristo) e Paulo encoraja e sublinha a utilidade do dom profético para o cristão e a igreja. (3) Se o dom profético cessou, como explicar as experiências atuais que os carismáticos chamam de “revelações”? (4) É possível crer em profecias extrabíblicas e, ao mesmo tempo, assumir sola Scriptura.

7.1. A pretensa ausência de textos bíblicos cessacionistas Quanto ao primeiro desafio, realmente não existe qualquer passagem na Bíblia onde conste: “as profecias cessarão após o fechamento do cânon”. Esta objeção aparece em quase toda argumentação carismática e viceja até na fala de C. Peter Wagner, incentivador da Nova Reforma Apostólica:

[...] não há nada na Bíblia que diga que ela tem 66 livros. Na verdade, Deus levou algumas centenas de anos para revelar à sua igreja quais os escritos deveriam ser incluídos na Bíblia e quais não deveriam. Isto é revelação extrabíblica.244

É lamentável que, para Wagner, até a fixação do cânon exige “revelação extrabíblica”. Deere também exemplifica essa argumentação:

Lógico que o argumento sobre o período do cânon aberto é simplesmente uma besteira teológica moderna. Foi inventado para explicar de outra forma qualquer exemplo bíblico que contradiga a atual escassez de experiências bíblicas. Não existe nenhum texto bíblico ou qualquer argumento legitimamente bíblico que diga que, uma vez que temos a Bíblia completa, não precisamos mais ouvir a voz de Deus além da Bíblia. Pense na grande tolice desse argumento. Na verdade ele nos afasta da Bíblia!245

O fato de algo não ser expressamente afirmado não denota problema irresolúvel, pois algo não biblicamente declarado, pode ser biblicamente deduzido, tais como o sistema de governo eclesiástico, ou a Trindade, ou o batismo infantil. No caso dos ofícios de apóstolo e profeta, bem como do dom de profecia, sua cessação pode ser inferida primeiro, do que aprendemos sobre ministérios e dons, segundo, do desenvolvimento progressivo da revelação bíblica e terceiro, de textos da própria Escritura.

Ministérios e dons são meios e não fins, estabelecidos e dados para cumprimento de determinados propósitos temporais, depois, modificados ou cessados, conforme o desígnio soberano de Deus (cf. seção 2.2). Como explica Gaffin Jr., “alguns dons são temporários de propósito e não permanecem depois do tempo dos apóstolos”.246 Destarte, não é antibíblico, nem irracional, admitir que um ministério, ofício ou dom, estabelecidos e dados por Deus no passado, percam utilidade e deixem de existir no presente.

244 WAGNER, C. Peter. The New Apostolic Reformation in Not a Cult, apud LOPES, 2014, p. 262. 245 DEERE, op. cit., p. 277. 246 GAFFIN JR., op. cit., p. 57.

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Isso é aceitável, especialmente à luz do progresso da revelação bíblica.247 Vos entende esta progressão como atos sucessivos de revelação: “A revelação não foi completada num único ato exaustivo, mas se desdobrou ao longo de uma série de atos sucessivos”.248 De acordo com Van Groningen, na revelação “há avanço; há desenvolvimento; há crescimento; há riqueza crescente na medida em que a revelação continua de uma fase para outra ou de um cenário para outro, ou de uma situação ativa para outra”.249 A revelação é concluída com o fechamento do cânon das Escrituras:

Deus progressivamente revelou-se em acontecimentos e nas Escrituras, culminando tais eventos com a morte-ressurreição-exaltação de Jesus Cristo, e culminando as Escrituras com o fechamento do cânon. [...] A revelação anterior prepara o caminho para a posterior; a posterior leva a revelação adiante e, de alguma forma, explica a anterior.250

O quadro suficiente da verdade é mostrado com mais detalhes à medida que mais revelação é concedida ao longo da história bíblica.251 Há progressão nos detalhes, por vezes, aumento de compreensão (e.g., a igreja em Atos e o “mistério”), mas não evolução (do erro para a verdade, ou da concepção primitiva à sofisticada).

Esta revelação é também orgânica, ou seja, a árvore está contida na semente; as partes da revelação se relacionam mutuamente, ou como diz Vos, “o progresso orgânico vai do estado germinal até atingir o crescimento pleno; mesmo assim, nós não dizemos que, qualitativamente, a semente é menos perfeita do que a árvore”.252

Geerhardus Vos propõe um mapeamento do campo da revelação (tabela 2).

Revelação

Geral ou natural Especial ou sobrenatural

Interior Exterior Justiça e graça

Consciência religiosa A “assinatura” de Deus na natureza Pré-redentora Redentora

Consciência moral

Tabela 2. A proposta de Geerhardus Vos, de mapeamento do campo da revelação.

Há uma revelação geral ou natural, verificável tanto no interior do homem (em sua consciência religiosa e moral; cf. At 17.22-23; Rm 2.15), quanto no cosmos (as marcas de Deus na criação; cf. Sl 19.1-6; Rm 1.18-20). E há uma revelação especial ou sobrenatural, de justiça e graça, nas Escrituras Sagradas (Sl 19.7-14; Rm 1.16-17).253 No conteúdo redentor da revelação especial ou sobrenatural, Deus inspira e escreve o “Livro da Aliança” (berîṯ; Êx 24.7). O termo hebraico aqui tem o sentido simples de pacto; “a ideia de ‘testamento’ era totalmente desconhecida dos antigos hebreus”.254 Mateus 26.28 menciona “o sangue da [nova] aliança”. O vocábulo diathēkē, por sua vez, pode ser traduzido por “testamento”, daí, “o sangue do

247 Carson explica que a expressão “revelação progressiva” é escorregadia, pois surgiu entre os teólogos liberais para “descrever uma abordagem evolutiva à compreensão da Bíblia” e depois foi adotada “por círculos conservadores e recebeu outro significado” (CARSON, D. A. Teologia Bíblica ou Teologia Sistemática? Unidade e Diversidade do Novo Testamento. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 53-54). 248 VOS, op. cit., p. 16. 249 VAN GRONINGEN, 2018, p. 19. 250 CARSON, 2008, p. 54. 251 Ibid., p. 36, 53-60, 65, 68, 82; VOS, op. cit., p. 16-20; VAN GRONINGEN, 2017, p. 198. 252 VOS, op. cit., p. 18. 253 Ibid., p. 33-36. 254 Ibid., p. 38.

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Novo Testamento” (ARC).255 Esse movimento, de um pacto antigo para um novo testamento, é entendido pelos teólogos bíblicos como completo e finalizado. Se o motor do movimento foi a revelação, depreende-se que a completação do movimento implica parada do motor, ou seja, cessação da revelação.

Isso se harmoniza com textos da própria Escritura, e.g., com a leitura fundacional protestante de Efésios 2.20 (cf. seção 5.2). Horton fornece um subsídio útil para o entendimento da “diferença qualitativa entre o assentamento dos alicerces e a construção”.256 Ele diz que a compreensão fundacional tem origem no relato da criação, quando Deus usa dois verbos distintos, “haja” e “produza”: “mesmo na criação, a palavra de decreto (que cria algo a partir do nada) é sucedida pela obra do Espírito em organizar uma realidade, cuja existência foi decretada, em um padrão e por meio de processos comuns”.257 É realmente interessante considerar Deus, como primeiro profeta, fundando pelo comando “haja”, que sublinha os meios extraordinários, e também provendo edificação e nutrição pelo comando “produza”, que sublinha os meios ordinários.

A partir daí, Horton propõe que “sinais miraculosos como esses dons extraordinários se agrupam em torno de supernovas na história da redenção. Eles não são comuns na vida do povo de Deus”.258 E prossegue:

É significativo que Paulo, mesmo sendo um apóstolo ainda vivo, já exortasse os coríntios, imaturos e propensos ao culto de personalidades: “não ultrapasseis o que está escrito; a fim de que ninguém se ensoberbeça a favor de um em detrimento de outro” (1Co 4.6). Não há necessidade de nenhuma revelação adicional, visto que Cristo é o ápice da palavra de Deus (Hb 1.1-2). Assim, após a era apostólica, o Espírito opera por meio do ministério comum, tornando a palavra eficaz no coração dos pecadores.259

Horton conclui mencionando Hebreus 1.1-2. Tanto para os reformadores magisteriais, quanto para Westminster, Hebreus 1.1-2 foi tido como lastro do sola Scriptura. O texto foi usado pelos escritores da Confissão de Fé, informando que “foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua igreja aquela sua vontade”, e também assegurando que cessaram “aqueles antigos modos de Deus revelar a sua vontade ao seu povo”.260 Será que Hebreus 1.1-2 foi mal utilizado pelos reformadores magisteriais e irmãos de Westminster? De acordo com Hebreus 1.1, Deus falou “outrora”, quer dizer, na aliança antiga, “muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas”. Em seguida (v. 2), nos “últimos dias”, quer dizer, na nova aliança, Deus “nos falou pelo Filho”. Os magisteriais leem isso como uma nota sobre a completação da revelação.

Stuart Olyott resume o ensino corretamente, ao dizer que a passagem sublinha (1) “o fato de uma revelação divina: Deus falou”;261 (2) “a realidade do AT como revelação divina”262 e (3) “a superioridade de Cristo como revelação divina”.263 Para Richard D. Phillips, o ensino de Hebreus 1.1-2 pode ser intitulado como “a Palavra final de Deus”.264 Phillips entende que

255 Ibid., loc. cit. 256 HORTON, Michael. Redescobrindo o Espírito Santo: A Presença Santificadora de Deus na Criação, na Redenção e na Vida Cotidiana. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 236-239. 257 HORTON, 2018, p. 236. Cf. nota de rodapé 213. 258 Ibid., p. 237. 259 Ibidem. Grifos nossos. 260 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, CFW, 1.1, in: BEHR, p. 1992. 261 OLYOTT, Stuart. A Carta aos Hebreus Bem Explicadinha. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 14. 262 OLYOTT, op. cit., p. 14-15. 263 Ibid., p. 15-16. 264 PHILLIPS, Richard D. Estudos Bíblicos Expositivos em Hebreus. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 15-24. Grifo nosso.

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“a Carta aos Hebreus oferece sua própria opinião quanto ao processo de revelação”265 e ratifica o que foi dito acima, acerca da revelação progressiva: “a mensagem da Bíblia é revelada progressivamente, de modo que o evangelho aparece como botão no AT e em floração apenas no NT”.266 Daí ele informa que “o AT é incompleto. Cheio de expectativa, anseia pela resposta que vem em Jesus Cristo. Ao contrário, a revelação de Deus em Cristo não é parcial, tampouco incompleta”.267 Ele esclarece ainda que foi Calvino quem primeiro enxergou que Hebreus 1.1-2 ensina que Jesus é a Palavra final268 e conclui apontando para a interpretação de Martinho Lutero:

Se a palavra dos profetas é aceita, devemos nos apegar muito mais ao evangelho de Cristo, visto não se tratar de um profeta dirigindo-se a nós, antes o Senhor dos profetas, não um servo, mas um filho, não um anjo, mas o próprio Deus.269

Para Kistemaker, em Hebreus 1.1-2:

O escritor está enfatizando que a plenitude da revelação é única, final e completa. Ele não está sugerindo que a revelação gradual dada pelos profetas era inferior, e que a revelação fornecida pelo Filho era sem variação. De maneira alguma. A revelação multilateral de Deus, que veio repetidamente aos antepassados nas épocas anteriores ao nascimento de Cristo, era inspirada por Deus. Era uma revelação progressiva que, de modo constante, apontava para a vinda do Messias. E quando Jesus finalmente veio, ele trouxe a mesma Palavra de Deus porque ele é a Palavra de Deus. Portanto, Jesus trouxe essa Palavra em toda a sua plenitude, riqueza e multiplicidade. Ele era a revelação final. Como F. F. Bruce observa habilmente, “A história da revelação divina é uma história de desenvolvimento até Cristo, mas não há desenvolvimento depois dele”.270

Esta interpretação de Hebreus 1.1-2 se harmoniza com o modo como Gálatas 1.8-9 e 2Tessalonicences 2.2 (também citados pela CFW)271 são lidos pelos estudiosos identificados com o enquadramento da Reforma Magisterial. O significado da instrução de Paulo (em Gl 1.8-9) — ninguém pode adicionar nada ao evangelho apostólico pregado aos crentes da Galácia — é expandido, no sentido de que nada pode ser acrescentado, em tempo algum, à revelação dada nas Escrituras,272 ou, como sumariza Adolf Pohl, se houver outra revelação depois do evangelho, este deixa de ser clímax e palavra última, e é rebaixado a palavra penúltima: “é desse modo que se torna nítido o sentido básico: Tudo entre o céu e a terra depende de que seja preservado o evangelho único. Do contrário Deus não seria mais Deus, pois sua última palavra seria degradada a uma palavra penúltima”.273

O alerta (em 2Ts 2.2) para que os crentes não se deixem influenciar por ensino falso advindo de “espírito”, “palavra” ou “epístola”, infere desvio carismático. Hendriksen sugere que “alguém estaria falando a todos sobre uma ‘mensagem inspirada’ ou ‘voz profética’ (‘espírito’) recebida por ele (ou assim pensava ele)”.274 Werner de Boor entende que, “as

265 PHILLIPS, 2018, p. 20. 266 Ibid., p. 22. 267 Ibid., loc. cit. 268 Ibid., p. 23. 269 LUTERO, Martinho, apud HUGHES, Philip E. A Commentary on the Epistle to the Hebrews. Grand Rapids: Eerdmans, 1977, p. 37, apud PHILLIPS, 2018, loc. cit. 270 KISTEMAKER, Hebreus, p. 42, cita BRUCE, F. F. The Epistle of Hebrews. Grand Rapids: Eerdmans, 1964, p. 3. (New International Commentary on the New Testament Series). 271 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, CFW, 1.6, in: BEHR, p. 1994. 272 RIKEN, Philip Graham. Estudos Bíblicos Expositivos em Gálatas. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 21-26; BRAY, op. cit., p. 70-77. 273 POHL, Adolf. Carta aos Gálatas. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1999, p. 44. (Comentário Esperança). Logos Software. Grifo nosso. 274 HENDRIKSEN, 1 e 2Tessalonicenses, Colossenses e Filemom, p. 196.

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pessoas se reportavam de um ou outro modo a uma revelação do Espírito ou a uma palavra oral ou escrita dos fundadores da igreja”.275 Ancorando-se apropriadamente na referida passagem, Westminster ensina que “à Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito nem por tradições dos homens”.276

Isso imbrica na compreensão de que (1) os ofícios mencionados em Efésios 4.11 são dados para o governo da igreja pela Palavra; e (2) alguns são extraordinários e temporários, por serem fundacionais (apóstolo, profeta e evangelista), enquanto o ofício de pastor e mestre é ordinário e permanente. Ainda que tal categorização não seja expressa em Efésios 4.11, ela é favorecida (1) pela leitura fundacional protestante de Efésios 2.20; (2) pela descrição dos apóstolos e profetas (em Ef 3.4-5), como fiéis depositários do “mistério de Cristo”, o evangelho que origina (funda), nutre e dirige a igreja e (3) por Jesus Cristo como clímax e culminação da revelação, nos termos de Hebreus 1.1-2.

Outra repercussão se dá na interpretação de Apocalipse 21.14: “A muralha da cidade tinha doze fundamentos, e estavam sobre estes os doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro”, quer dizer, o paredão que protege a igreja é alicerçado na doutrina apostólica pura e sólida, como explica Hendriksen:

Mediante o testemunho e os escritos dos doze apóstolos os homens foram levados à comunhão com Deus (Ef 2.20; 1Co 3.9). Cristo Jesus é a pedra principal dessa fundação. Os apóstolos eram apóstolos “do Cordeiro”. Eles o proclamavam. Por meio da pregação dos apóstolos resplendeu a diversidade do esplendor e brilho de todos os atributos de Deus. Esse é, com toda probabilidade, o significado das pedras preciosas que adornam os doze fundamentos (cf. Is 54.11). A multiforme sabedoria de Deus é revelada na igreja por meio da pregação da Palavra sempre que ela é aplicada ao coração pelo Espírito Santo (cf. Ef 3.10).277

Desta feita, até a palavra conclusiva do Apocalipse 22.18-19, que proíbe acrescentar ou retirar qualquer coisa daquela profecia de João, termina sendo lida como conclusão adequada para a totalidade do cânon bíblico: depois desta última revelação, dada ao profeta de Patmos, nada deve ser acrescentado ao corpo de revelações.

Mesmo não havendo uma passagem bíblica na qual conste, preto no branco, que a revelação profética cessaria após o término do NT, isso “pode ser, lógica e claramente, deduzido”278 das Escrituras. Como explica Dixhoorn:

Muitas vezes, Deus nos revela sua vontade nos princípios e não podemos modificá-los, ignorá-los ou ir além deles. Em outras palavras, a igreja cristã deve dar atenção ao que está expressamente registrado na Escritura. Da mesma forma deve se dedicar ao que pode ser deduzido como consequência natural e boa. Então, aí deve a igreja parar.279

Tais considerações não significam que, em sua relação com as Escrituras, os cristãos prescindem do Espírito Santo.

Não precisamos de novas revelações do Espírito. No entanto, isso não quer dizer que não precisamos do Espírito, ou que ele haja terminado seu trabalho. [...]. Colocando de outra forma, a Bíblia é suficiente para todas as nossas necessidades, mas nossas necessidades são muito grandes [...]. Precisamos que ele lance luz nas

275 BOOR, Werner de. Segunda Carta aos Tessalonicenses. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2007, p. 114. (Comentário Esperança). Logos Software. 276 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, CFW, 1.6, in: BEHR, p. 1994. 277 HENDRIKSEN, William. Mais Que Vencedores. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 237. 278 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, op. cit., loc. cit. 279 DIXHOORN, Chad Van. Guia de Estudos da Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 42. Grifo nosso. A sabedoria está, exatamente, em saber onde e quando “parar”.

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trevas de nossos corações para que possamos ouvir o evangelho e ser salvos. [...] Precisamos ser ensinados por Deus.280

Em suma, há passagens da Escritura cujo significado aponta para a completação da revelação do evangelho e permitem deduzir a cessação das revelações no período pós-bíblico. Não existe impedimento em esperar que o Espírito Santo nos abençoe de diferentes modos, de acordo com seu poder ilimitado e vontade soberana, mas aguardar que tal bênção venha na forma de revelações extrabíblicas exige interpretar mal, ou desconsiderar dados que deveriam ser melhor analisados, da doutrina dos ministérios e dons, da história da revelação e de textos relevantes do NT.

7.2. Profecias na igreja até a volta de Cristo É possível manter a dedução magisterial, mesmo diante do que Paulo ensina sobre profecias e a volta de Cristo? O que pode e deve ser dito aos pentecostais e carismáticos que dizem que profecias extrabíblicas têm lugar na igreja até a parusia?

7.2.1. A lacuna da leitura cessacionista de 1Coríntios 13.8-13

Começamos admitindo uma lacuna. Alguns intérpretes usam 1Coríntios 13.8-13 para tentar “provar biblicamente” que determinados dons cessaram. A explanação sugerida por eles não deixa de ser interessante, mas não é exegeticamente sólida.

Entendamos o argumento. Com base em 1Coríntios 13.8, afirma-se que profecias, línguas e a ciência cessarão (de fato, esse é o sentido do texto). A partir daí, são tecidas três considerações: (1) que a mudança nas vozes dos verbos (no texto grego), indica uma distinção no modo como profecias e ciência, de um lado, e línguas, de outro, cessarão.281 (2) Profecias e ciência passarão quando vier “o que é perfeito” (v. 9, 10-12); línguas passarão depois de cumprir seu papel como “sinal” para os “incrédulos” (1Co 14.20-22). Por fim, sugere-se que (3) “o que é perfeito” e o estado de coisas que se segue (v. 10-12) apontam para o fechamento do cânon.282 O “sinal” das línguas (14.21-22), corresponde à destruição de Jerusalém pelos romanos, permitindo concluir que o dom de variedade de línguas cessou no ano 70.283

Explicando a terceira consideração, quanto ao cânon, a proposição é que a Bíblia completada represente a “perfeição” da revelação e, portanto, engendre a plenitude descrita nos v. 11-12. Quanto a línguas como “sinal” relacionado com a destruição de Jerusalém, em 1Coríntios 14.21, Paulo cita Isaías 28.11-12. A partir daí, argumenta-se que a profecia de Isaías apontava para Jerusalém sendo arrasada por um povo de “lábios gaguejantes” (lit., “lábio zombeteiro”) e “língua estranha” (lit. “língua estrangeira”; quer dizer, a queda de Samaria sob os assírios).284 No séc. 1, mais uma vez Deus castigaria a incredulidade dos judeus que

280 DIXHOORN, op. cit., p. 43. 281 GARDINER, Jorge E. A Catástrofe Corintiana. São Paulo: Imprensa Batista Regular, 2012, p. 31-32, VAN GORDER, Paul R. Confusão Carismática: O Falar em Línguas. Terceira impressão, 1993. São Paulo: Imprensa Batista Regular, 1974, p. 40-41. 282 SCHWERTLEY, Brian. O Movimento Carismático e as Novas Revelações do Espírito. São Paulo: Editora Os Puritanos, 2000, p. 34-37; VAN GORDER, op. cit., p. 41-42. 283 GARDINER, op. cit., p. 32-34. 284 OSWALT, John. Isaías. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 608. (Comentários do Antigo Testamento), v. 1. Logos Software. Cf. BEG2, nota 28.11-12, p. 915, língua estranha: “Os assírios se tornaram os mestres de Israel devido à falha deste em permanecer fiel”. E ainda, Oswalt, op. cit., p. 618-619: “O profeta faz as palavras dos desdenhosos voltarem-se contra eles mesmos, quando pronuncia a palavra de juízo. Para eles, as palavras de Deus eram de fato simples e suaves. Visto, porém, que recusavam dar-lhes ouvido, agora têm de ouvir palavras confusas e repetitivas, porém dos lábios dos feitores assírios. Já que não aprenderam as verdades simples da vida, da parte dos porta-vozes de Deus, terão por fim de aprendê-las com chicote e sovela”. Por fim, RIDDERBOS, J. Isaías: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2007, p. 214-215. (Série Cultura Bíblica): “Replicando à zombaria, o profeta agora proclama a sua destruição. Virá o dia quando sons mais

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não acolheram o evangelho. As línguas são um “sinal” (1Co 14.22) da proximidade de um castigo de Deus, que recairia sobre os judeus como atualização da sentença de Isaías.

Admitida essa leitura, assevera-se que o dom de línguas cessou no ano 70, e que os dons de profecia e de ciência cessaram assim que a lista de livros da Bíblia foi completada e morreram os últimos apóstolos e profetas do NT. Uma arguição bem intencionada e que combina com a ortodoxia, mas, infelizmente, é exegeticamente frágil, pelas seguintes razões:

1. A variante verbal (1Co 13.8), pode ser tida como recurso estilístico. 2. É mais provável que “o que é perfeito”, em 1Coríntios 13.10, e o estado de coisas

que se segue (v. 11-12) se refiram à consumação. 3. São possíveis outros entendimentos de 1Coríntios 14.21-22.

Mesmo os intérpretes que acreditam que a Bíblia ensina sobre a cessação das profecias extrabíblicas, admitem que as vozes verbais de 1Coríntios 13.8 não informa nada sobre ocasiões diferentes de cessação das profecias, línguas e ciência, e devem ser entendidas apenas como recurso estilístico.285

“O que é perfeito”, em 1Coríntios 13.10, não se refere ao fechamento do cânon bíblico. Kistemaker explica que “uma das objeções a este ponto de vista é que não podemos esperar que os coríntios, em 55 d.C., tivessem a ideia de ligar perfeição com fechamento do cânon na última década do séc. 1”.286 Paulo se refere ao estado de perfeição instalado na consumação, comparando as coisas aqui e agora, parciais e imperfeitas, com as coisas lá e então, completas e perfeitas após o estabelecimento definitivo do reino. Calvino entendeu a passagem assim:

Ele está dizendo: “Quando a perfeição chegar, tudo quanto nos auxiliou em nossas imperfeições será abolido.” Mas, quando tal perfeição virá? Em verdade, ela começa na morte, quando nos despirmos das inúmeras fraquezas juntamente com o corpo; ela, porém, não será plenamente estabelecida até que chegue o dia do juízo final, como logo veremos. Portanto, desse fato concluímos que é algo em extremo estúpido alguém fazer toda esta discussão aplicar-se ao período intermediário.287

Kistemaker explica que:

Quando os crentes partem desta vida terrena, eles deixam para trás tudo o que é imperfeito e incompleto. Adentram o céu e experimentam a alegria e a paz de um estado sem pecado. Mas sua perfeição não será completa até que aconteçam a volta de Cristo, a ressurreição e o dia do juízo final. No fim do tempo cósmico, os dons espirituais, que os crentes agora possuem em parte, cessarão. Seus dons espirituais imperfeitos sobre a terra serão superados pelo seu perfeito estado de conhecimento na consumação.288

Por fim, é possível interpretar 1Coríntios 14.21-22 de modo distinto, e.g., (1) mesmo que se estabeleça uma conexão entre o “sinal” das línguas com a destruição de Jerusalém pelos

estranhos do que esses sons com que agora eles imitam Isaías, soarão aos seus ouvidos. Os assírios virão, e por sua língua bárbara o Senhor lhes falará; isso dará fim às suas zombarias. Eles só poderão culpar a si próprios”. O. Palmer Robertson enxerga na profecia de Isaías uma referência à capitulação de Judá diante dos babilônios: “o exército dos ‘babilônios balbuciantes’ representa para Israel o retorno do juízo que antes trouxera a confusão das línguas na torre de ‘Babel’” (ROBERTSON, op. cit., p. 51). 285 KISTEMAKER, 1Coríntios, p. 571; LOPES, 2012, p. 123-125; CARSON, 2013, p. 69. 286 KISTEMAKER, op. cit., p. 575; cf. LOPES, op. cit., p. 125-128. 287 CALVINO, 1Coríntios, p. 467. 288 KISTEMAKER, 1Coríntios, p. 575–576. Este parece ser o entendimento de outros intérpretes, e.g., LOPES, op. cit., loc. cit.; VENEMA, Cornelis P. A Promessa do Futuro. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 384-385; KNIGHT III, 2017, p. 107; LIMA, Leandro Antonio de. Razões da Esperança: Teologia Para Hoje. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 462, 661; e ainda, VANG, Preben. 1Coríntios. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 183. (Série Comentário Expositivo).

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romanos,289 o entendimento das vozes verbais de 1Coríntios 13.8 como recurso estilístico e do “perfeito” como a consumação do reino esvazia e necessidade de cessação do dom de variedade de línguas no ano 70. Ademais, (2) Carson admite que 1Coríntios 14.21-25 é difícil de entender.290 (3) Há quem estime que “incrédulos”, em 1Coríntios 14.22-23, se refira a descrentes de modo geral, não apenas aos judeus. (4) E mesmo admitindo que se trata de um “sinal” para Israel, estudiosos como Robertson enxergam nele um indicativo de que “Deus está fazendo uma mudança [na história da redenção]. [...] Deus [...] não mais falaria um único idioma a um único povo”.291 Repercutindo as línguas no Pentecostes, as línguas em Corinto “serviriam como um sinal da incomensurável bênção divina direcionadas as todas as nações do mundo, inclusive Israel”,292 ou seja, “elas marcaram a transição para um evangelho verdadeiramente mundial”.293

Eis uma sugestão de interpretação plausível: em 1Coríntios 13.8, Paulo diz que “o amor jamais acaba; mas, havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará”. O fato de ele iniciar e terminar o capítulo mencionando estes três dons (profecias, línguas e ciência) pode indicar que tais carismas eram não apenas apreciados, mas motivo de contendas. Apesar dos coríntios os valorizarem e se desentenderem por causa deles, eles deviam saber que tais dons são fugazes, se esgotarão (katargēthēsontai) e “cessarão” (pausontai), ao contrário do amor, que “permanece” como virtude “maior” (v. 13). Essas coisas tão estimadas constam na existência atual, que é “em parte” (v. 9), ou seja, incompleta, mas virá “o que é perfeito” (teleios) e “o que é em parte será aniquilado” (outra vez, katargēthēsontai; v. 10). Só então virá o amadurecimento pleno (v. 11), “veremos face a face”, deixaremos de conhecer “em parte” (v. 12). Esta completude, perfeição e maturação só será desfrutada na eternidade, na consumação do reino, após a vinda de Jesus Cristo.

Paulo finaliza contrapondo aos três dons do Espírito (profecia, línguas e ciência), três virtudes também operadas pelo Espírito (“a fé, a esperança e o amor”). Os coríntios agiam como “crianças em Cristo”, instigados por “ciúmes e contendas” (1Co 3.1-3). Precisavam deixar de brigar por coisas passageiras e olhar para a glória prometida no evangelho, em fé, esperança e amor. Eles teriam toda condição de resolver seus problemas focando nas três virtudes e fazendo bom uso dos dons depois de considerá-los sob o ângulo correto.

Os que acreditam que a Bíblia desencoraja profecias extrabíblicas deveriam evitar tentar provar isso utilizando 1Coríntios 13.8-13. O que Paulo diz aqui é que, na consumação, tudo o que é incompleto e imperfeito cederá lugar ao que é completo e perfeito. Cristãos alinhados à leitura fundacional protestante são chamados de volta ao estudo humilde e dedicado da Escritura, entendendo que, desde a Reforma, Calvino e outros teólogos magisteriais sustentaram que alguns ministérios e dons são extraordinários, sem recorrer a 1Coríntios 13.8-13.

7.2.2. Orientações e incentivos à profecia em Atos e nos escritos de Paulo

Os cristãos do séc. 1 viveram uma experiência ímpar. Tanto o diácono Filipe quanto Ananias (não somente os apóstolos e profetas oficiais) receberam revelações (At 8.26, 29; 10.10-16); e as quatro filhas de Filipe, bem como algumas mulheres de Corinto, profetizaram (At 21.8-9; 1Co 11.4-5). E haviam profetas na igreja em Antioquia, pelo quais o Espírito Santo forneceu direção estratégica (At 13.1). Em Corinto, tanta gente profetizava, que Paulo escreveu para organizar a participação dos profetas nos cultos (1Co 14.26). As profecias eram

289 Cf. LOPES, op. cit., p. 161. 290 CARSON, op. cit., p. 110. 291 ROBERTSON, op. cit., p. 53. 292 Ibid., p. 54. 293 Ibid., loc. cit.

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importantes ao ponto de Paulo orientar os crentes a não desprezá-las (1Ts 5.19-20). O próprio Timóteo recebeu seu “dom” para o ministério em uma cerimônia do presbitério, com imposição de mãos e profecia (1Tm 4.14).

Estas realidades foram abençoadoras, necessárias e adequadas ao contexto. Utilizando a terminologia de Horton, o séc. 1 engendrou a supernova da revelação (o comando “haja”). Em seguida, Deus passou a nutrir a igreja pelo meio ordinário da Escritura lida, pregada e ouvida, estudada e meditada (comando “produza”). Dizer que o meio é ordinário não equivale a afirmar que não contemple a ação do Espírito Santo, pois o Espírito abençoa o meio, aplicando a verdade da Escritura dos eleitos de Deus. Em outras palavras, (1) temos a Escritura toda, em uma Bíblia, algo que os primeiros crentes não tinham, e (2) Deus continua agindo hoje na igreja, mas de modo diferente do que na época do NT.

Os carismáticos talvez se sintam inclinados a considerar os protestantes fundacionais “engessados”, ou, como diz Ruthven, culpados de “congelar” a ação de Deus em um ponto específico da história, mas ocorre exatamente o oposto. São eles que insistem em dar um print na ação do Espírito Santo no séc. 1, não apenas cultivando uma “expectativa”, mas formalizando um tipo de “exigência”, de que Deus repita hoje aquilo que fez no tempo dos apóstolos. Assim como interpreta contextualmente a exigência das mulheres usarem “véu”, em 1Coríntios 11.2-16, o leitor protestante fundacional interpreta todas as referências a profecias sob o filtro da “fundação” apostólica da igreja (que equivale ao fechamento do NT). Destarte, as orientações de Paulo sobre a profecia, em 1Coríntios 14, são lidas como explicando um fenômeno que ocorreu nas igrejas do séc. 1, mas que hoje, na igreja contemporânea, reverbera como pregação. O ato de concessão do “dom” ministerial a Timóteo (1Tm 4.14), é lido como regulador das cerimônias de ordenação de oficiais ordinários da igreja hoje, com pregação, oração e imposição de mãos. E não “apagar” o Espírito, bem como “não desprezar profecias”, em 1Tessalonicenses 5.19-20, corresponde a respeitar o limite canônico definido pelo próprio Espírito, como explica Gaffin Jr.:

Concluir, então, que os dons de profecia e línguas foram retirados da igreja não é ser “contra o Espírito Santo” ou extinguir a liberdade do Espírito, mas respeitar o modo que o Espírito escolheu soberanamente para revelar a vontade de Deus e assim assegurar a liberdade do crente.294

Como sugerido acima, protestantes fundacionais admitem um uso continuado da profecia até a parusia.

7.2.3. Como a profecia permanece na igreja até a parusia

Em que sentido “profecia” e “ciência” prosseguem até a volta de Cristo? Apesar de não mais existir o ofício de profeta, muito menos o dom de profecia como capacidade de proferir novas revelações, permanece na igreja um múnus profético. Berkhof nos ajuda a entender que há um dom de falar para a edificação da igreja [1Co 14.3-5] que “é permanente na igreja cristã, e foi definidamente reconhecido pelas igrejas reformadas (calvinistas)”.295 Ele não se refere a profetizar com o dom carismático de falar sob inspiração especial, e sim, como um expositor das Escrituras.296 Nesses termos, Berkhof repercute os reformadores magisteriais, para quem, guardadas as devidas proporções, “profecia” podia equivaler a “pregação”.297 Calvino insiste em que:

Portanto, na igreja Cristã, nos tempos atuais, profecia é simplesmente o correto entendimento da Escritura e o dom particular de explicá-la, visto que todas antigas

294 GAFFIN JR., op. cit., p. 130. 295 BERKHOF, op. cit., p. 538. Grifo nosso. 296 Ibid., loc. cit. 297 ROBECK JR., op. cit., p. 1016.

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profecias e todos os oráculos divinos já foram concluídos em Cristo e seu evangelho. Paulo a entendia neste sentido, quando disse: “Eu quisera que vós todos falásseis em outras línguas; muito mais, porém, que profetizásseis” [1Co 14.5], e: “Conhecemos em parte, e em parte profetizamos” [1Co 13.9]. Não fica evidente se ele tencionava, aqui, considerar somente aquelas excelentes graças pelas quais Cristo adornou seu evangelho em seus primórdios. Vemos, ao contrário, que ele está se referindo simplesmente aos dons ordinários que permanecem perpetuamente na igreja.298

Até a vinda do Senhor Jesus, a igreja é estabelecida e capacitada para testemunhar profeticamente, convocando as nações ao arrependimento e fé (Ap 11.1-14). Comentando Apocalipse 11.3, G. K. Beale sugere que “as duas testemunhas aqui mencionadas, que profetizam, não são pessoas, mas antes representam a igreja corporativa na sua capacidade como testemunha profética fiel de Cristo”.299 Além dele, também Kistemaker:

No parágrafo precedente (v. 1 e 2), aprendemos que o povo de Deus está seguro espiritualmente e protegido divinamente. Agora lemos que recebem como igreja uma tarefa aqui na terra: devem ser testemunhas de Deus, que os está capacitando com seu poder para cumprir essa tarefa.300

Hendriksen explica que “essas testemunhas simbolizam a igreja militante dando testemunho por meio dos seus ministros e missionários ao longo de toda a presente dispensação [...] (cf. Lc 10.1)”.301

Jesus, como profeta, bem como os apóstolos e profetas do NT, profetizaram com autoridade divina (Dt 18.15; Jo 1.1, 18; 7.40; 1Ts 4.15-18; 2Pe 3.11-13; Ap 1.9-10). A igreja profética prega a Escritura canônica sob autoridade do Espírito Santo (At 1.8; 2.17-18; 1Ts 1.5 — tabela 3).

Autoridade divina Jesus, o Profeta (Dt 18.15; Jo 1.1, 18; 7.40)

Apóstolos profetas (1Ts 4.15-18; 2Pe 3.11-13; Ap 1.9-10)

Sob autoridade divina Uma igreja profética (que prega a Palavra; At 1.8; 2.17-18; 1Ts 1.5)

Tabela 3. A contemporaneidade ortodoxa da profecia.

É claro que a interpretação dos textos mencionados acima pode ser objetada. Pentecostais e carismáticos podem dizer que Paulo não está dizendo que as profecias cessaram; apenas que devem ser bem utilizadas. Enquanto um carismático lê o NT com os óculos da reforma radical — como incentivo a buscar revelações extrabíblicas —, um protestante os lê com as lentes da Reforma Magisterial, concluindo que: (1) no contexto do séc. 1, em plena profusão da revelação, os cristãos tinham de valorizar e dar ouvidos ao ministério dos apóstolos e profetas fundacionais, e (2) na atualidade, é preciso prestar atenção à Palavra escrita de Deus, ensinada e pregada pelos pastores e mestres.

298 CALVINO, Romanos, p. 496. 299 BEALE, G. K. Brado de Vitória. São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 206-207. Grifo nosso. 300 KISTEMAKER, Simon. Apocalipse. 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 428. (Comentário do Novo Testamento). Logos Software. E ainda (op. cit., p. 429): “as duas testemunhas representam a igreja de Cristo que, ao proclamar o evangelho, convoca o mundo ao arrependimento”. Cf. BEHR, p. 1850. 301 HENDRIKSEN, Mais Que Vencedores, p. 154. Grant R. Osborne diz que “essas ‘testemunhas’ que se apresentam como reis e sacerdotes de Deus, nesse período final da história, agora começam (11.5) seu ministério profético de proclamação (sua função sacerdotal) e de juízo ( sua função régia). A mão de Deus está sobre elas e, uma vez mais (cf. 3.10; 7.3,4; 9. 4, 20; 11.1), é vista a proteção de Deus sobre seu povo” (OSBORNE, Grant R. Apocalipse: Comentário Exegético. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 475).

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7.3. Experiências contemporâneas nomeadas como “revelações” Terceiro desafio: Como explicar as experiências nomeadas como revelações? Não é tão simples explicá-las, uma vez que, no campo da religião, o vocábulo “experiência” denota algo que aconteceu a uma pessoa ou grupo, validado subjetivamente e que não pode ser replicado de modo consistente. Como contradizer alguém que diz ter visto um anjo? Ou que determinadas palavras apareceram destacadas, sobre a testa de alguém, em uma sessão de aconselhamento?

Pastores relatam iluminação e intervenção diretiva do Espírito Santo na preparação ou entrega de um estudo bíblico ou sermão. Em certas ocasiões, enquanto conversamos com alguém, entendemos que o Espírito Santo nos conduz a um texto da Bíblia que se encaixa em uma situação (cristãos relatam sobre o consolo recebido por alguém que os visitou em uma hora difícil, levando-lhes uma palavra que só podia ter sido sugerida pelo Espírito). Outros foram singularmente guiados em meio a circunstâncias difíceis e há quem diga que já experimentou o que é relatado em Isaías 30.21.302 Tanto Jack Deere quanto Renato Cunha mencionam as experiências incomuns dos profetas escoceses.303

Os carismáticos gostam de citar a palavra de Calvino, quando ele diz que Deus “às vezes suscita” apóstolos, profetas e evangelistas, “conforme convém à necessidade dos tempos”304 e, especialmente, quanto aos profetas, “ele chama profetas não a quaisquer intérpretes da vontade divina, mas àqueles que eram excelentes em singular revelação, como agora nenhum subsiste, ou são menos evidentes”.305 Comparando esse dito com interpretações de Calvino de outras passagens (ele está explicando Ef 4.11; cf. o que ele diz sobre Ef 2.20, na seção 5.2), Renato Cunha acusa Calvino de “ambiguidade interpretativa”,306 quando o mais correto seria entender que, para Calvino, a cessação dos ofícios e dons extraordinários, não equivale à cessação de todo evento extraordinário.

O autor destes estudos se lembra de algo que lhe aconteceu em meados da década de 90, no Distrito Federal. Ele trabalhava em uma empresa de construção civil e passava por um momento difícil. Seu irmão mais velho sofreu um choque anafilático e ficou em coma durante 29 meses, vindo a falecer. Ele teve de deixar a igreja que frequentava, na qual serviu por sete anos como evangelista, devido a um desentendimento com seu pastor. De modo geral, estava abatido e deprimido, mas o ponto alto do abatimento aconteceu no dia em que ele soube que foi preterido em uma promoção. Depois de receber a notícia ele foi até o banheiro da empresa, apagou as luzes, se ajoelhou e se derramou em choro diante de Deus. Então se recompôs e voltou ao trabalho. Minutos depois, o telefone tocou. Era uma irmã da congregação, dizendo:

302 “Uma palavra atrás de si comunica a proximidade do Mestre e a sensibilidade do aluno, respectivamente. Em vez do animal contumaz que tem de ser arrastado ou chicoteado para tomar a direção certa, aqui está uma pessoa cujo mestre está em seus ombros e que de vez em quando pouco mais que uma palavra é necessária para que ele permaneça na vereda certa. Essa é a vida ideal cheia do Espírito, onde o contato entre nós e ele é tão íntimo que basta um sussurro para nos mover em seu caminho (Gl 5.16–25)”; cf. OSWALT, op. cit., p. 676. Ou ainda: “O v. 21 descreve a orientação espiritual que eles agora recebem; o seu mestre anda por trás deles, para observar os seus passos para que, se estiverem para se desviar para a esquerda ou para a direita, ouvirão de trás de si uma voz que lhes fará lembrar o caminho certo”; cf. RIDDERBOS, 2007, p. 234-235. 303 DEERE, op. cit., p. 61-74; CUNHA, Renato. Sob os Céus da Escócia: Uma Análise das Profecias dos Puritanos Escoceses no Século 17. 2. ed. revisada. Natal; Rio de Janeiro: Editora Carisma; Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2016, passim. Edição do Kindle. 304 CALVINO, As Institutas, iv.iii.4 [v. 4, p. p. 67]. 305 CALVINO, op. cit., loc. cit. Grifo nosso. 306 CUNHA, op. cit., posição 738 de 3694.

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— Oi irmão, estou ligando para te dizer que Deus está com você. Ele me mostrou você de joelhos, chorando dentro de um banheiro, mas você não deve se desanimar; Deus está no controle de tudo e não vai te desamparar. E desligou.

Relatos assim corroboram o óbvio: Deus é vivo, cuida de nós e fala conosco por meio de irmãos (Cl 3.16). Não é biblicamente necessário (nem biblicamente honesto) considerar eventos deste tipo como evidências de uma restauração do ofício ou dom de profecia. Muito menos, a partir deles, fomentar a expectativa de revelações extrabíblicas. Ainda que tais experiências possam ser edificantes, elas não possuem peso normativo, nem corroboram a tese de contemporaneidade do ofício profético. Por outro lado, fica claro que assumir a leitura fundacional não equivale a descrer nas intervenções divinas na história.

7.4. Suficiência insuficiente O último desafio colocado pelos pentecostais e carismáticos é a sugestão de que é possível acreditar em profecias extrabíblicas e, ao mesmo tempo, assumir sola Scriptura.

Iniciamos afirmando que sim, é executável abraçar a continuação de todos os dons do NT e, ao mesmo tempo, a crença na suficiência das Escrituras. Se isso já era imaginável nos primórdios do pentecostalismo, quanto mais agora, no fulgor da modernidade líquida e pulverização digital, que abre mão dos sistemas completos, em favor dos subsistemas.307

Ao argumentar sobre o milagre da encarnação, C. S. Lewis propõe a analogia de um romance ou sinfonia, que nos ajuda a abordar o quarto desafio.

Suponhamos que possuímos parte de um romance ou uma sinfonia. Alguém nos traz um pedaço de manuscrito recém-descoberto e diz: “Esta é a parte que falta na obra. Este é o capítulo em que todo o enredo do romance se baseia. O tema principal da sinfonia”. Nossa tarefa seria verificar se a nova passagem realmente esclarece todas as partes que já vimos e as “une”, caso admitida no espaço central que o descobridor reivindica para ela. Não seria também provável que nos alongássemos muito no erro. A nova passagem, se espúria, por mais atraente que parecesse ao primeiro olhar, tornar-se-ia cada vez mais difícil de reconciliar-se com o restante da obra quanto mais considerássemos o assunto. Mas se fosse genuína, então a cada vez que ouvíssemos a música ou lêssemos o livro, veríamos sua acomodação no todo, fazendo-se mais à vontade nele e extraindo significado de toda sorte de detalhes que até então havíamos negligenciado. Embora o novo capítulo central ou tema principal contivesse grandes dificuldades em si mesmo, nós continuaríamos a considerá-lo autêntico desde que removesse continuamente dificuldades em outros pontos.308

Um romance ou sinfonia configuram um todo, uma obra completa, um sistema em que cada parte se integra e contribui para o global, ajudando a remover dificuldades dos demais pontos. Um construto “espúrio” produz o efeito contrário, não “une”, nem “esclarece” as partes. Na perspectiva da reforma magisterial, o entendimento de que alguns ofícios e dons do NT cumpriram seu papel fundacional e não estão mais presentes, era parte de algo maior, do sistema, da narrativa ou da sinfonia protestante, que preconizava sola Scriptura. E tal entendimento unia as partes e removia dificuldades em diferentes pontos doutrinários e práticos da fé protestante. Isso foi assim, até o evento da fusão, mencionado na introdução, que favoreceu a inserção do elemento novo, o recorte pentecostal e carismático, colado como remendo na veste outrora protestante fundacional — um remendo que, na opinião do autor deste estudo, não une, não ajuda a remover dificuldades, nem esclarece as partes, haja

307 Nesse contexto, é presumível assumir não o Sistema Calvinista, como um todo, mas uma parte dele, um subsistema, e.g., os “Cinco Pontos”, e ainda assim, se identificar como reformado ou calvinista. 308 LEWIS, op. cit., p. 103.

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vista (1) a reticência de alguns concílios, em denominações reformadas, de exercer juízo sobre posições de candidatos ao Sagrado Ministério, abertas a profecias extrabíblicas, a despeito dos documentos oficiais das denominações sobre o assunto; (2) o acanhamento de recém-formados em Teologia, influenciados pela cultura teológica circundante, de assumir e defender a leitura fundacional protestante, perante suas congregações. Enquanto nas igrejas pentecostais ou carismáticas, as pregações sobre o assunto são convictas, em algumas ditas reformadas, exauridas pela fusão, o ensino é titubeante ou favorável às profecias extrabíblicas. Ruthven, teólogo carismático, intui que as duas subscrições — de continuação de todos os dons do NT e da suficiência das Escrituras — são excludentes (cf. seção 5.3), mas é cada vez mais comum teólogos, ministros e concílios reformados considerarem coerente abraçar ambas as proposições.

A doutrina da suficiência da Bíblia é resumida no lema da Reforma sola Scriptura. Kevin Vanhoozer explica que, de todos os solas da Reforma Magisterial, este é o que tem sofrido mais ataques:

O sola Scriptura talvez seja o mais desafiador dos solas a recuperar. Até mesmo muitos teólogos protestantes insistem agora em que se abandone esse sola porque insistir na Escritura somente negligencia, ou exclui, a importância da tradição, a necessidade da hermenêutica e a relação entre Palavra e Espírito.309

O autor destes estudos se lembra de duas falas, uma proferida em uma cerimônia de formatura, em um seminário, outra em uma votação de sentença de tribunal de presbitério. Na primeira o pastor, paraninfo da turma, disse:

— Imagine vocês ministrando a uma pessoa endemoninhada. Nesse caso, somente a Bíblia não vai resolver o problema; apenas ler Salmos 23 não expulsará o demônio. Vocês terão de confrontar o inimigo cheios do poder do Espírito Santo.

Ainda que bem-intencionado, desejando motivar os recém-formados a buscar uma vida cheia do Espírito Santo, tal pastor estabeleceu um dilema falso entre a Escritura e o poder de Deus. Seria mais adequado ele informar que a Escritura instrui que temos de lidar com os poderes das trevas revestidos com o poder do Espírito Santo.

Na segunda ocasião, um colega afirmou que a Bíblia é suficiente quanto às verdades sobre salvação, mas não para outras questões também importantes da vida espiritual. Eu presumo que ele esteja se referindo ao fato da Bíblia não fornecer informação sobre tudo. Nesses termos, somos ajudados pela nota de Vanhoozer :

O sola Scriptura também implica a suficiência da Escritura, embora o conceito abstrato nos leve a perguntar: “Suficiente para quê?” Dizer que a Escritura é suficiente para tudo — investimentos no mercado de ações, torneiras pingando, artérias entupidas — é sobrecarregá-la de expectativas irreais e, por fim, sucumbir ao biblicismo ingênuo e ao pântano do pluralismo interpretativo generalizado.310

Mesmo assim, o alcance da suficiência bíblica é devidamente esclarecido por John Frame: “a Escritura contém todas as palavras divinas necessárias para cada aspecto da vida humana”. Comentando o capítulo um, parágrafo seis, da CFW, Frame pondera que “‘fé e vida’ são um par de conceitos abrangentes [...]. Por isso, é razoável pensar que ‘fé e vida’ [...] refere-se a todo o escopo da vida cristã”.311 E prossegue:

309 VANHOOZER, Kevin J. Autoridade Bíblica Pós-Reforma: Resgatando os Solas Segundo a Essência do Cristianismo Protestante Puro e Simples. São Paulo: Vida Nova, 2017, edição do Kindle, posição 3030 de 7110. 310 VANHOOZER, op. cit., posição 3107 de 7110. 311 FRAME, John M. A Doutrina da Palavra de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 194, 195.

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Suficiência [...] não é suficiência de informações específicas, mas suficiência de palavras divinas. A Escritura contém palavras divinas suficientes para tudo na vida. Ela tem todas as palavras divinas que o encanador precisa e todas as palavras divinas que o teólogo precisa. Assim, ela é tão suficiente para o trabalho de encanação quanto para a teologia. E, nesse sentido, ela também é suficiente para a ciência e a ética.312

Vanhoozer enquadra a suficiência em uma moldura cristocêntrica, como segue:

Esses versículos [2Tm 3.16-17] nos ajudam a ver o que significa suficiência e o que não significa. A Bíblia é suficiente para o uso que Deus faz dela, e não para outro uso qualquer que nós queiramos dar a ela. Nas palavras de John Webster: “A Escritura basta. Isto porque a Escritura é o que Deus deseja ensinar”. A Escritura “basta” para aprender Cristo e a vida cristã.313

Destacando a expressão “todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem”,314 no mesmo trecho da CFW analisado por Frame, Chad Dixhoorn afirma o seguinte:

Se você quer saber o que vai equipá-lo completamente para a salvação, para a fé, ou para a vida, você o encontrará nas Escrituras (2Tm 3.15-17). Se você quer saber o que Deus considera essencial para a própria glória, você o achará na Bíblia. Na verdade, “todo o conselho de Deus” concernente a todas as coisas necessárias é revelado na Palavra de Deus.315

A vida inteira é coberta pelas Escrituras, não apenas as ditas questões “religiosas”. Por isso, o modo como compreendemos a suficiência da Bíblia estabelece o pano de fundo de nosso debate sobre ministérios e dons. Para quem abraça a leitura fundacional protestante, suficiência das Escrituras equivale a término e, por conseguinte, cessamento da revelação — nenhuma necessidade de profecias extrabíblicas —; sola Scriptura quer dizer que a Bíblia dá conta de todas as nossas necessidades espirituais. Sola Scriptura não corresponde a uma “amarração” ou demarcação de “limite hermenêutico” ou “tradição eclesiástica”, nem é assumido por ser um marco da Reforma ou da CFW. O princípio sola Scriptura deflui da própria Escritura.

Em uma nota de rodapé, Vanhoozer cita Robert W. Jenson, para quem “o sola Scriptura é o slogan mais problemático da Reforma e, em sua opinião, ‘não pode, no fim das contas, ser resgatado para qualquer uso significativo’”.316 Como dissemos alhures, Ruthven exemplifica o evangélico alinhado à reforma radical, que não subscreve sola Scriptura. Outros acreditam na contemporaneidade das revelações, dizendo que isso não fragiliza seu compromisso com a suficiência bíblica. Evangélicos que dizem abraçar o lema sola Scriptura, acreditam em uma suficiência insuficiente, pois o Espírito Santo precisa chamar e designar pessoas com o dom de profecia, para prover a igreja com mais revelações.

Para os reformadores magisteriais e teólogos de Westminster, a revelação encapsulada nas Sagradas Escrituras é suficiente. Não são necessárias novidades e sim reafirmação e conhecimento do evangelho (Is 8.20; Lc 16.27-31; Gl 1.8; 1Tm 3.15). O propósito do ministério profético era tríplice:

312 FRAME, op. cit., p. 195. Grifo nosso. 313 VANHOOZER, op. cit., posição 3107-3123 de 7110. O autor cita WEBSTER, John. The Domain of The Word: Scripture and Theological Reason. London: Bloomsbury T & T Clark, 2012, p. 18. Grifo nosso. 314 DIXHOORN, op. cit., p. 40. Grifo nosso. 315 Ibid., p. 41. Grifos nossos. 316 JENSON, Robert W. Lutherans Slogans: Use and Abuse. Delhi; EUA: American Lutheran Publicity Bureau, 2011, p. 63, apud VANHOOZER, op. cit., posição 3031 de 7110.

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1. Oficial. Os profetas foram designados por Deus para um ofício reconhecido pela igreja.

2. Basilar ou fundacional. Eles lançaram o fundamento sobre a qual as novas gerações de cristãos devem edificar (cf. seção 5.2).

3. Canônico. Os profetas foram usados por Deus para escrever ou influenciar diretamente a escrita ao AT e NT (seção 6.2).

Na luta da Reforma Magisterial do séc. 16, havia a consciência de que a pureza do evangelho só poderia ser mantida a partir da rejeição tanto da Sagrada Tradição quanto das novas revelações.

Enquanto os reformados enfrentaram os desafios católico romanos à clareza e suficiência da Bíblia, os anabatistas minaram sola Scriptura também por apelos à revelação extrabíblica e pela criação de uma multidão de seitas individualistas lideradas por profetas carismáticos. Nos dias de hoje, também, a Palavra e o Espírito muitas vezes são colocados um contra o outro naquilo que lamentavelmente é chamado de “avivamento”. Pontos de vista errôneos sobre orientação do alto e alegações de ter recebido revelação direta do Espírito contribuem para isso.317

Esse modo de compreender a profecia e a revelação resguardou o protestantismo primevo de perigos e assegurou benefícios.

Os perigos da abertura a novas revelações proféticas são três: (1) fragilidade bíblica; (2) complexidade em discernir qual nova profecia provém de Deus; (3) possibilidade de acolhimento de doutrinas estranhas às Escrituras.

Primeiro, há uma base bíblica suficiente para afirmar que a revelação profética cessou após o fechamento do NT: Se o NT é o clímax da revelação; se o alicerce da igreja só precisa ser lançado uma única vez; se a Bíblia é Palavra de Deus suficiente, não há necessidade de atualização do ofício profético, nem de profecia extrabíblica.

Segundo, o argumento dos defensores da atualidade do dom de profecia — as profecias atuais não têm o mesmo peso da Bíblia, ou seja, não são Palavra infalível — atrapalha ao invés de ajudar. Isso é exemplificado na instrução a seguir, dada por um estudioso que defende a atualidade das profecias:

O povo deve ser instruído antecipadamente que não é adequado pensar na profecia como uma analogia dos profetas do AT. Portanto, não seria correto prefaciar o que disserem com a declaração “Assim diz o Senhor”. Em vez disso, devem começar dizendo: “Acho que o Senhor está colocando em minha mente que” ou “parece que o Senhor está nos mostrando” ou algo equivalente a isso. Se for realmente uma revelação vinda do Senhor, até mesmo um prefácio simples encontrará a confirmação no coração do povo de Deus e trará os resultados que o Senhor deseja.318

Eis o problema: como saber ao certo qual profecia é digna de confiança?

Os evangélicos que defendem profecias extrabíblicas respondem que ela não oferece perigo, pois seu conteúdo não pode contradizer a Escritura — toda nova profecia deve ser testada.319 Os McAlister informam que o Espírito Santo não acrescenta nova revelação às Escrituras:

317 BOICE, James M. et al. Reforma Hoje: Uma Convocação Feita Pelos Evangélicos Confessionais. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 104. 318 Cf. GRUDEM, 2004, p. 289. Grifo nosso. 319 ROBECK JR., op. cit., p. 1015-1018; GRUDEM, 2004, p. 291-292.

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Profecia não nos assusta, pois cremos que é o mesmo Deus quem fala por meio de alguém cheio do Espírito Santo, e jamais poderá contradizer o que ele mesmo falou por meio dos autores das Sagradas Letras. Se houver divergência, certamente a falha parte de nós e não dos autores da Bíblia, pois não cremos que Deus acrescenta nova revelação às Escrituras, as quais em si são suficientes [...].320

Na prática, isso é complicado e há risco das novas revelações serem acolhidas como iguais ou superiores às Escrituras. Os próprios McAlister admitem essa possibilidade:

Todavia, afirmar que todos observam as Escrituras com esse rigor seria um erro. Há muitos — especialmente entre os neopentecostais — que levam ao extremo essa abertura para as coisas novas que Deus possa fazer. Chegam a dizer que Deus pode até nos mostrar revelações novas desde que não sejam contraditórias às Escrituras. Em outras palavras, desde que a Bíblia nada fale a seu respeito, não são necessariamente antibíblicas. Mas esse é um terreno minado e perigoso.321

Retornando à analogia de Lewis, será que isso se integra ao todo da teologia reformada? Une? Ajuda a remover dificuldades dos demais pontos? O que deve fazer a moça que ouve do “profeta” que “o Senhor está dizendo” que ela deve se casar com o Osório?322 A CFW responde a essa questão muito bem, informando que, em determinadas “circunstâncias”, o melhor é usar a “luz da natureza e da prudência cristã”,323 quer dizer, é mais sensato a moça checar se o Osório é um homem de Deus; se ela o ama; se ele a ama, se os pais de ambos concordam com a união e se há condições econômico-financeiras para o casamento. Não é necessária uma profecia extrabíblica para isso.

Resumindo, acreditar em profecias extrabíblicas abre caminho para a insegurança quanto à direção de Deus, para o acréscimo de doutrinas estranhas e até contrárias à Bíblia, para a desvalorização do uso da Escritura como regra única de fé e prática (a palavra final, nas controvérsias, vem da Sagrada Tradição ou das novas revelações?) e para a possibilidade de deturpação do evangelho, do culto e da santidade prática.

Uma vez que, biblicamente, revelação é uma palavra infalível de Deus, conclui-se que o Espírito Santo não concede novas revelações. Crer e viver à luz dessa verdade produz quatro resultados excelentes.

1. Segurança doutrinária. Nossa fé e prática passam a se basear não em tradições ou experiências subjetivas, e sim na Palavra de Deus.

2. Valorização do uso da Bíblia. Recorremos ao AT e NT como fontes únicas de instrução, fortalecimento e santificação. A palavra final, em qualquer controvérsia, passa a ser a da Sagrada Escritura.324

3. Pureza do evangelho e do culto. A pregação e a adoração da igreja são purificados da “Sagrada Tradição” da ICAR e das “novas revelações” dos entusiastas contemporâneos. É incluído no culto apenas o que é biblicamente prescrito.

4. Maturidade. Alimentados pela doutrina sadia, deixamos de ser “como meninos, agitados de um lado para outro e levados ao redor por todo vento de doutrina”; não mais somos presas da “artimanha dos homens” e da “astúcia com que

320 MCALISTER; MCALISTER, op. cit., p. 66-67. 321 Ibid., p. 67. Os McAlister (ibid., loc. cit.) listam algumas crenças e práticas abraçadas por neopentecostais, a partir de supostas novas revelações do Espírito, e.g., relacionados à guerra espiritual (hierarquias demoníacas, mapeamento espiritual), terapias de regressão e quebra de maldições e agendas apocalípticas. 322 ROBERTSON (op. cit., p. 97-135) demonstra que, em determinadas situações, exercitar esse tipo de avaliação é virtualmente impossível. 323 ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER, CFW, 1.6, in: BEHR, p. 1994. 324 Ibid., 1.10, loc. cit.

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induzem ao erro” (Ef 4.14). Enfim, somos feitos discípulos maduros de Jesus Cristo.

Deus não emudeceu. Ele continua criando, provendo e organizando por meio de sua Palavra profética. Esta Palavra nos foi dada, completa, nas Escrituras, de modo que não precisamos de profecias extrabíblicas. Ouvimos a voz de Deus quanto lemos, estudamos e meditamos nas “Sagradas Letras” (2Tm 3.15). Além disso, Deus fala conosco no ensino e na pregação zelosa e fiel. O Espírito, que inspirou os autores bíblicos, ilumina nosso entendimento e transpõe a revelação escrita nas páginas da Escritura para nosso coração nos instruindo, repreendendo, corrigindo e educando na justiça, fazendo de nós cristãos “perfeitos e perfeitamente habilitados para toda boa obra” (Sl 40.6-8; 2Tm 3.16-17).

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Apêndices 1 a 5

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Apêndice 1. A profecia mais conhecida de Joel

Misael Batista do Nascimento

28 E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; 29 até sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias. 30 Mostrarei prodígios no céu e na terra: sangue, fogo e colunas de fumaça. 31 O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que venha o grande e terrível Dia do SENHOR. 32 E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do SENHOR será salvo; porque, no monte Sião e em Jerusalém, estarão os que forem salvos, como o SENHOR prometeu; e, entre os sobreviventes, aqueles que o SENHOR chamar. Joel 2.28-32.

Sermão pregado na IPB Rio Preto, no dia 23/10/2016, às 19h30.

A1.Introdução O que há em comum entre uma pessoa andando no escuro, em uma trilha desconhecida, e um piloto de avião enfrentando uma tempestade feroz? Ambos precisam de auxílio para percorrer o trajeto certo. O caminhante será ajudado por uma lâmpada; o fato de dispor de uma boa lanterna ajuda a eliminar a tensão e concede senso de direção. O piloto pode prosseguir seguro, se a aeronave tiver um bom sistema de navegação. Estes recursos externos ao homem o ajudam a posicionar-se (saber onde está) e a conduzir-se (decidir para onde deve ir). A Palavra de Deus funciona como uma lâmpada que ilumina a trilha escura. Não é sem razão que o autor do Salmo 119 chama a Bíblia de “lâmpada para os pés” (v. 105).

Deus enviou sua Palavra como luz em um tempo de trevas, por meio do profeta Joel. A nação estava literalmente sob a escuridão de uma nuvem de gafanhotos. O desalento parecia triunfar sobre a esperança. As pessoas não tinham meios, nem vontade, para cultuar a Deus (Jl 1.7-12, 16; 2.3). Joel anunciou que era preciso preparar-se com conversão, choro e adoração sincera (Jl 2.6, 10, 12-17). Os que buscassem a Deus seriam preservados, a sorte de Judá e Jerusalém seria mudada, os inimigos vencidos e a presença gloriosa de Deus estabelecida (Jl 2.32; 3.1-21).

Hoje nós olharemos para a profecia mais conhecida do livro do profeta Joel. Tentaremos entender não apenas o que ela significou para as pessoas daquela época, mas também os crentes do NT e para nós. Deus promete, por meio de Joel, um derramamento de seu Espírito. Ele já disse, em 2.23-26, que sustentaria seu povo com chuva, provendo o necessário para a vida e para o culto. Mas ele promete, além disso, sustento espiritual. Não apenas o derramamento de chuvas, mas também, o derramamento superabundante do Espírito Santo (2.28-29). O caminho que percorreremos é simples. Tentaremos responder a três perguntas, ligadas ao texto lido. Primeira questão: Quando o Espírito Santo será dado? Segunda questão: Quem receberá esta bênção? Terceira questão: O que esta bênção produzirá nas vidas dos que o receberem? Olhemos para a primeira pergunta.

A1.1. Quando o Espírito Santo será derramado 28 E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão

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visões; 29 até sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias.

Quando o Espírito Santo será derramado? Três expressões enquadram a profecia cronologicamente: “depois” (v. 28); “naqueles dias” (v. 29) e “antes que venha o grande e terrível Dia do SENHOR” (v. 31). “Naqueles dias” (v. 29) quer dizer “no tempo em que Deus derramar o Espírito Santo”.

Isso acontecerá “depois” do quê? Pela ordem imediata do texto, Deus derramará o Espírito Santo depois de restaurar o sustento material da nação, como lemos em 2.19-27. Mas não apenas isso. Nós devemos ler esta profecia de Joel comparando-a com outra profecia, proferida por Ezequiel. Em Ezequiel 39.28-29 lemos que Deus derramará o Espírito Santo “depois” que o povo de Judá for liberto do cativeiro na Babilônia:

28 Saberão que eu sou o SENHOR, seu Deus, quando virem que eu os fiz ir para o cativeiro entre as nações, e os tornei a ajuntar para voltarem à sua terra, e que lá não deixarei a nenhum deles. 29 Já não esconderei deles o rosto, pois derramarei o meu Espírito sobre a casa de Israel, diz o SENHOR Deus.415

Em outra passagem (Ez 36.24-27), consta que não apenas o Espírito Santo será dado após a libertação do exílio babilônico, mas também, que isso acontecerá no contexto de uma experiência profunda de redenção:

24 Tomar-vos-ei de entre as nações, e vos congregarei de todos os países, e vos trarei para a vossa terra. 25 Então, aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei. 26 Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. 27 Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis.

Dito de outro modo, o termo “depois”, que aparece em Joel 2.28, significa, primeiramente, que Deus derramará o Espírito Santo depois que Judá for restaurada da praga dos gafanhotos, e depois de Judá ser trazida de volta para sua terra, após o cativeiro da Babilônia.

E isso que é prometido por Joel acontecerá antes do juízo final e antes do estabelecimento definitivo do reino de Deus. Por isso lemos, no v. 31, “antes que venha o grande e terrível Dia do SENHOR”. Conforme eu explicarei no primeiro domingo de novembro, se Deus permitir, esta profecia de Joel 2.28-32 se cumprirá antes do trato de Deus com as nações, registrado em Joel 3.1-17, e do estabelecimento final do reino, mencionado em Joel 3.18-21. Quando olhamos o NT, especialmente Atos 2, lemos que 50 dias depois da ressurreição, no Dia de Pentecostes, o Espírito Santo foi derramado sobre a igreja (At 2.1-13). Os discípulos estavam reunidos — um grupo orava, esperando o cumprimento de uma promessa do próprio Jesus Cristo ressurreto (At 1.4-5). O Espírito Santo veio sobre eles em “línguas como de fogo” e passaram a falar idiomas humanos que nunca haviam estudado (At 2.4). Pessoas que estavam na cidade, de diferentes etnias, puderam ouvir Deus sendo glorificado em seus próprios idiomas (At 2.6-8). Naquele dia a promessa de Joel 2.28-32 foi cumprida. E como veremos em breve, esta promessa continua se cumprindo nos dias atuais, mas o grande evento da dádiva do Espírito ocorreu no Pentecostes.

Respondendo à pergunta — Quando o Espírito Santo será derramado? — A profecia se cumpriu depois do fim da praga dos gafanhotos, depois do exílio babilônico e, antes do fim do mundo. Historicamente, 50 dias após a ressurreição de Jesus, no Dia de Pentecostes, como lemos em Atos 2. Isso nos conduz à segunda questão.

415 Ezequiel está profetizando as bênçãos da nova aliança, anunciadas também em Jeremias 31.33-34.

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A1.2. Quem receberá o Espírito Santo Quem é beneficiário desta promessa de Joel 2.28-32? O texto diz que Deus derramará o Espírito Santo “sobre toda a carne” e prossegue mencionando “vossos filhos e vossas filhas”, e também “vossos velhos”, além de “vossos jovens” (v. 28) e, por fim, “servos e [...] servas” (v. 29). Estas palavras significam que o Espírito Santo será derramado sobre todo o povo de Deus. Repetindo, os v. anteriores dizem que Deus abençoará o seu povo com sustento material (2.18-27). Joel 2.28-32 ensina que Deus continuará abençoando seu povo com sustento espiritual — com a dádiva do Espírito. Notemos os beneficiários da promessa identificados no v. 32: São os que “invocam o nome do SENHOR”; os que são “salvos, como o SENHOR prometeu”; os “sobreviventes” ou remanescentes e “aqueles que o SENHOR chamar”. Deus derramará seu Espírito sobre todo o seu povo sem distinção de sexo (filhos e filhas), idade (velhos e jovens) ou classe social (servos e servas).

Eu sei que isso talvez não pareça grande coisa para você, especialmente se você foi criado dentro da igreja, sabendo desde a infância que os crentes têm o Espírito Santo. A proximidade com a doutrina cristã e com as coisas da religião cristã nos fazem minimizar coisas muito preciosas. Quando Joel profere esta profecia, ele o faz no contexto do AT, quando apenas alguns judeus recebiam o Espírito Santo. Alguns poucos judeus do AT foram ungidos pelo Espírito para o exercício de vocações artísticas (Êx 31.1-11). Outros foram ungidos pelo Espírito Santo para exercer liderança (Nm 11.25), ou para serem profetas (Nm 24.2-9; 1Sm 10.10; Ez 11.5), sacerdotes (Lv 8.30) ou reis (1Sm 16.13). E outros receberam o Espírito para exercer a função de juízes (Jz 3.9-11; 11.29). Deus usa Joel para prometer que chegaria o tempo em que todo o povo de Deus, indistintamente, a igreja inteira, receberia o Espírito Santo. Isso atualiza Números 11.29. Moisés diz ao povo: “Tomara todo o povo do SENHOR fosse profeta, que o SENHOR lhes desse o seu Espírito”. E agora Joel se levanta e diz: Deus fará isso. Ele dará seu Espírito a todo o povo.

Como dissemos, isso se cumpriu no Dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo foi derramado sobre toda a igreja reunida naquele lugar. E a partir daquele tempo, esta profecia se cumpre na vida de todo aquele que crê em Jesus Cristo. A Bíblia diz, em Efésios 1.13, que quando cremos em Jesus, nós somos “selados com o Santo Espírito da promessa”. Em Romanos 8.9, Paulo ensina que aquele que não tem o Espírito de Cristo não pertence a ele. Agora, entre o povo de Deus, não existem categorias diferentes de unção de crentes. Você não precisa de uma segunda bênção — de um batismo com o Espírito Santo que acontece depois da conversão. No momento em que você crê em Jesus você recebe o Espírito Santo. Vejamos que a profecia de Joel vincula o derramamento do Espírito Santo à fé salvadora em Jesus. Duas vezes encontramos a expressão “e acontecerá”, uma vez dizendo, “derramarei o meu Espírito sobre toda a carne” (v. 28), e depois, “todo aquele que invocar o nome do SENHOR será salvo” (v. 32).

Respondendo à pergunta — Quem receberá o Espírito Santo? — Todos os que crerem em Jesus para a salvação. Todo o povo de Deus. Os sobreviventes. Os que Deus chamar para ele. E isso nos leva à última questão, mais complexa.

A1.3. O que o Espírito Santo realiza O que o Espírito Santo realiza? O que acontece com o povo, após receber o Espírito Santo? Que bênçãos estão vinculadas a esta dádiva do Espírito? A profecia afirma, no v. 28: “[...] profetizarão, [...] sonharão, e [...] terão visões”. Eu entendo que a maior parte do que eu afirmei até agora, seria bem-recebido pela maioria dos crentes evangélicos. No entanto, diante desta questão — o que o Espírito Santo realiza — nós nos dividimos muito. De fato, muitas divisões entre igrejas evangélicas acontecem por causa de respostas diferentes a esta

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pergunta: O que o Espírito Santo realiza? Se você é um presbiteriano de algum tempo de caminhada, talvez você já tenha passado pela experiência, desconfortável, de conhecer outro crente e, depois de identificar-se, ouvir: “Ah, você é presbiteriano? Que pena! Ouvi dizer que em sua igreja as pessoas não creem no Espírito Santo”. Quantas divisões ao longo da história! O Que o Espírito Santo realiza?

Joel diz: O Espírito será derramado. O povo de Deus profetizará. Sonhará. E terá visões. De onde vem a confusão? O ponto é: Ao longo da história, esta passagem tem sido entendida de duas maneiras. A primeira maneira é a mais popular. Se você veio de outra igreja evangélica, não é difícil que você tenha aprendido esta primeira versão. Esta primeira interpretação, apesar de ser mais popular, é errada (e isso não deve nos causar surpresa, porque, grosso modo, as coisas erradas são mais populares do que as certas).

Deixe-me tentar explicar esta primeira interpretação que, como eu digo, é errada. Depois eu apresentarei a interpretação correta e menos popular. Comecemos com a interpretação errada. Alguns olham para esta passagem e dizem: “Vejam bem! Deus está dizendo que o Espírito Santo nos conduzirá utilizando profecias, sonhos e visões. Está aqui, escrito no texto, “preto no branco”; “vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões” (v. 28). “Eu sou um crente orientado pela Palavra. E a Palavra de Deus diz que eu devo ser orientado por profecias, sonhos e visões”. Esta é a doutrina pentecostal.416 E quando eu explico esta doutrina eu não estou criticando os que creem assim; apenas estou afirmando que a doutrina, em si, é errada, e explicarei a razão. Mas antes deixe eu dizer outra coisa. Esta é também a doutrina da Igreja Católica Apostólica Romana.

A Igreja Católica Apostólica Romana produziu um documento intitulado Dei Verbum, e nele consta que o Espírito Santo continua dando revelações à igreja por meio de visões, sonhos e outras experiências místicas.417 Alguém questiona: Por que vocês adoram a Maria neste santuário, em Fátima? E a resposta será: Algumas crianças tiveram uma visão de Maria. Esta é a doutrina oficial da igreja Católica. Ela ensina que o Espírito Santo continua falando por meio de visões e sonhos. Ou se você conversar com um morador de Belém do Pará, e perguntar porque eles cultuam o Círio de Nazaré, eles responderão: Aconteceu um milagre — um sinal sobrenatural envolvendo um pescador e a estátua da virgem Maria. É nesta base — de experiências místicas — que estas crenças são estabelecidas. E seguindo esta direção, os Católicos terminam assumindo crenças e práticas que não estão na Bíblia.

Mas entre os evangélicos pentecostais, neopentecostais, terceira onda e até entre o grupo mais recente denominado “abertos, mas cautelosos”,418 não é muito diferente. Um pastor foi visitar uma igreja pentecostal e viu que naquela igreja, na porta, os diáconos paravam todos os homens e mediam os cintos. Nenhum homem podia entrar com um cinto medindo mais do que dois centímetros de largura, porque o pastor da igreja recebeu uma “revelação”: Deus ordenou que não queria que os homens usassem cintos mais largos do que dois centímetros. Último exemplo. Uma irmã de uma igreja que liderei me disse que teve um sonho. Ela se via andando em uma estrada de areia muito fofa e profunda. E o Espírito disse a ela que isso significava que a igreja estava se afundando. Ela perguntou por

416 E também daqueles que se assumem como “carismáticos”. O pentecostalismo ensina que “novas revelações proféticas” são dadas no uso dos dons de “palavra de sabedoria e palavra de conhecimento” (WILLIAMS, op. cit., p. 660-670), “profecia” (ibid. p. 691-699), “variedade de línguas” e “interpretação de línguas” (ibid., p. 704-718). Interessados em conhecer o ponto de vista dos evangélicos carismáticos (ou pelo menos teologicamente abertos à leitura carismática), podem conferir: DEERE, op. cit.; GRUDEM, op. cit.; CARSON, op. cit.; STORMS, op. cit.; RUTHVEN, 2017. Para uma leitura da posição deste pregador, cf. BRUNER, op. cit.; ROBERTSON, op. cit. 417 CONCÍLIO VATICANO II, op. cit. 418 Estas designações são extraídas de GRUDEM, 2003.

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que, e Deus disse que os crentes não deveriam mais consagrar seus dízimos e ofertas. Que é errado entregar dízimos e ofertas.

Então vejam, o problema desta ideia — de que nossa vida deve ser guiada por novas profecias, sonhos e revelações —, é que dizendo que cremos no que está escrito na Bíblia (eu só sigo a Bíblia; eu sigo exatamente o que está escrito em Joel 2.28), nós terminamos sendo afastados da Bíblia, e passamos a seguir experiências místicas pessoais; e ao fazer isso, começamos mesmo a afundar na areia de nossos próprios delírios e imaginações, além de abrir espaço para todo tipo de ensino de demônios. É por isso que, em nosso meio, hoje, se conhece tão pouco o evangelho. Muitos correm atrás de superstições, penduricalhos e gurus que dizem “Deus falou comigo”. E se Deus falou com ele, quem pode contradizê-lo? Como questionar o “ungido de Deus”? Tais líderes dizem “faça isso” e “faça aquilo”, de modo que temos uma geração de líderes manipuladores, tratando o povo de Deus, como lemos em Zacarias 11.7, como “ovelhas destinadas para a matança”. E o povo de Deus definha porque lhe falta “conhecimento” (Os 4.6).

Resumindo, esta interpretação — de que Joel 2.28-29 significa que nós devemos ser guiados por novas profecias, sonhos e visões — é muito popular, mas é errada. Ela conduz você a uma caminhada de subjetividade, de modo que não conseguirá mais dizer com segurança se determinada coisa é a vontade de Deus ou não. Dependerá de seu sentimento, ou do que o anjo falou; ou você terá de pedir informação adicional no próximo sonho. As coisas ficarão bem confusas para você.

É por isso que, no século 16, os fundadores de nossa igreja rejeitaram esta interpretação popular da profecia de Joel. Eles resumiram a rejeição a esta interpretação com uma frase: “Somente a Escritura”. Vamos tentar entender isso melhor. Qual é a interpretação certa? Em primeiro lugar, a interpretação correta atenta para a estrutura do texto da Bíblia Hebraica. Nesses termos, estamos diante de uma poesia. Joel é conduzido pelo Espírito Santo a usar um recurso da língua dos judeus, chamado paralelismo. Um paralelismo é a expressão de uma mesma ideia usando duas linhas de poesia. Isso quer dizer que, em Joel 2.28, “profetizarão” equivale a “sonhar” e “ter visões”:

Vossos filhos e vossas filhas profetizarão, [primeira linha do paralelismo] vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões. [Segunda linha]

Vamos entender melhor. Na Bíblia, “sonhos” e “visões” são os meios estabelecidos por Deus para usar profetas para revelar sua Palavra inerrante e infalível. Isso é explicado em Números 12.6:

Então, disse: Ouvi, agora, as minhas palavras; se entre vós há profeta, eu, o SENHOR, em visão a ele, me faço conhecer ou falo com ele em sonhos.

Por que Deus dava sonhos e visões? Para que alguém trouxesse a Palavra infalível dele, uma palavra que se cumpriria com exatidão — como “Palavra de Deus”. Foi assim que Deus formou o AT. Ele falou diretamente a Moisés, ele falou usando profetas, com sonhos e visões. E foi dessa maneira que Deus usou seus instrumentos de revelação no NT. Ele falou diretamente e também lhes deu sonhos e visões, ao fornecer a profecia definitiva sobre a pessoa e obra de Jesus Cristo. Se isso é assim, o que Deus está prometendo por meio de Joel? Que no contexto do derramamento do Espírito Santo, Deus dará ao seu povo a revelação plena do evangelho — a profecia final; aquilo que faltava para que assegurar o sustento pleno de nossa vida espiritual. E como Deus nos sustenta espiritualmente? Com experiências místicas? Com delírios? O que sustenta nossa vida espiritual é o evangelho aplicado em nossos corações pelo poder do Espírito Santo. Deus está prometendo as duas coisas: O Espírito Santo e o evangelho. O evangelho é a plenitude; o clímax, o ponto alto de toda profecia. Como lemos em Hebreus 1.1-2:

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1 Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, 2 nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo.

Cristo é o ponto alto desta revelação. Tudo aponta para ele; tudo encontra sua plena realização nele. Nós não precisamos de nada além do conhecimento de Cristo no evangelho. É por isso que os reformadores disseram “somente a Escritura, somente Cristo”. A doutrina aqui é simples: Deus está prometendo não apenas sustento material ao seu povo. Ele promete também sustento espiritual, ou seja, o evangelho. O evangelho é profecia derradeira. O evangelho é profecia definitiva. Como eu disse, esta é a interpretação correta de Joel 2.28-29, e também a interpretação menos popular.

O que nos dá segurança sobre esta interpretação de Joel? Simples: Ela é confirmada pelo NT. De acordo com Atos 2.11, os que receberam o Espírito no dia de Pentecostes falaram das “grandezas de Deus”. Eles fizeram isso de modo que os estrangeiros compreenderam em seus próprios idiomas maternos (At 2.8). O resultado do Pentecostes: Pedro outrora inseguro, o mesmo que negou o Senhor no pátio da casa de Caifás, se levanta cheio do Espírito Santo e prega o evangelho (Mc 14.66-72; At 2.37-41). O Pentecostes traz revelação plena do evangelho. Pedro se torna instrumento poderoso de pregação do evangelho. Cumpre-se Atos 1.8. Resumindo, “profetizarão”, em Joel 2.28, abrange a experiência de conhecer a Deus (desfrute da fé salvadora) e, como consequência, pregar o evangelho, ou, usando a terminologia do próprio Senhor Jesus Cristo, ser uma “testemunha” (Lc 24.48-49; At 1.8).

E eu sei que o argumento está longo, mas preciso dizer duas coisas antes de terminar. Primeira, os fenômenos cósmicos, relatados em Joel 2.30-31 não se relacionam com o fim do mundo (porque eles acontecerão antes do fim do mundo, como vimos). Na verdade, eles estão vinculados ao evangelho. Joel usa figuras que, para os judeus de seu tempo, remetiam aos atos salvadores de Deus na redenção de Israel do cativeiro egípcio. O “sangue” indicaria Êxodo 7.17: “Assim diz o SENHOR: Nisto saberás que eu sou o SENHOR: Eis que eu com esta vara, que tenho em minha mão, ferirei as águas que estão no rio, e tornar-se-ão em sangue”. O “fogo”, Êxodo 9.23-24:

23 E Moisés estendeu a sua vara para o céu, e o SENHOR deu trovões e saraiva, e fogo corria pela terra; e o SENHOR fez chover saraiva sobre a terra do Egito. 24 E havia saraiva e fogo misturado entre a saraiva, mui grave, qual nunca houve em toda a terra do Egito, desde que veio a ser uma nação.

E as “colunas de fumaça”, Êxodo 19.18: “E todo o monte Sinai fumegava, porque o SENHOR descera sobre ele em fogo; e a sua fumaça subia como fumaça de um forno, e todo o monte tremia grandemente”. Tais figuras se cumprem no Redentor, uma vez que, na ocasião de sua morte, houve trevas e terremoto (Mt 27.45, 54). Ademais, imediatamente após citar a profecia de Joel, Pedro apresenta Cristo, como se dissesse: “Isso tudo tem a ver com Jesus”! (At 2.22-36). Paulo explica que houve um embate cósmico na cruz, cujo resultado foi o triunfo sobre os “principados e potestades” e consequentemente, seu “despojamento” e exposição “ao desprezo” (Cl 2.15). Como evento de consequências cósmicas, a morte de Jesus teve por finalidade destruir “aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo” (Hb 2.14). Visto desta forma, o “derramamento” do Espírito citado nos v. precedentes tem a ver com a obra redentora. O ato dramático no qual o Filho de Deus enfrentou o inimigo e submeteu-se às angústias do inferno a fim de resgatar os crentes (Mc 15.34; Jo 19.30; Cl 1.13-14). Daí a declaração do Credo Apostólico: “desceu ao Hades”.

Por fim, todas estas figuras mencionadas em Joel 2.30-31 evocam, também a ideia de imperfeição e sofrimento do mundo — o caos reinante na era presente, antes da

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consumação do reino. Joel está dizendo que mesmo depois de receber o Espírito Santo, a igreja continuará enfrentando tribulações, como diz Calvino:

O profeta não pretende ameaçar os fiéis, mas sim adverti-los, para que não se iludam com sonhos vazios, esperando desfrutar de um descanso feliz neste mundo. [...] Como assim? Haverá prodígios no céu e na terra, o sol se converterá em trevas e a lua em sangue; todas as coisas estarão em desordem e horrível escuridão. O que seria dos homens se Deus, pela graça do seu Espírito, não brilhasse sobre eles, apoiando-os em tal confusão no céu e na terra e mostrando-se como Pai?419

E agora o último detalhe. A era de derramamento do Espírito será, também a era da salvação:

32 E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do SENHOR será salvo; porque, no monte Sião e em Jerusalém, estarão os que forem salvos, como o SENHOR prometeu; e, entre os sobreviventes, aqueles que o SENHOR chamar.

Os ouvintes (ou leitores) da mensagem de Joel foram motivados a “invocar o nome do SENHOR”. O termo traduzido por “invocar” (qārā’, na Bíblia Hebraica) tem o sentido de “chamar”. Ainda que tal invocação não os livre do sofrimento cotidiano, como vimos acima, eles serão salvos da ira divina no juízo final (cf. v. 31; Jo 5.24).

Esta promessa é qualificada. Cumprir-se-á “no monte Sião e em Jerusalém”. Joel cita o “monte Sião” ou o “santo monte” nove vezes (Jl 2.1, 15, 23, 32; 3.16, 17, 21). Jerusalém aparece seis vezes (Jl 2.32; 3.1, 6, 16, 17, 20). Tais vocábulos nos remetem ao rei Davi e seu descendente eterno, o Messias (2Sm 5.7; 7.13; Sl 2.6; 14.7; 48.2; 50.2; 53.6; 110.2; 146.10; 149.2). Por esta razão Paulo entendeu a invocação do SENHOR como confissão da fé em Cristo, e João viu os salvos reunidos ao “Cordeiro”, no “monte Sião” (Rm 10.9-13; Ap 14.1; cf. Sl 84.7; 87.5; Ez 37.14). Quem são estes salvos? Repetindo, eles são “os sobreviventes” (śārîdh, “poupados de uma catástrofe”, na Bíblia Hebraica). Em outras palavras, o remanescente. Eles são aqueles a quem Deus quis “chamar” (o mesmo vocábulo traduzido antes por “invocar”). Isso indica que eles são um “pequeno número” e que sua redenção e sustento dependem somente da graça divina. Aqui temos a garantia de preservação da verdadeira igreja, composta dos eleitos de Deus.

Na verdade, todos nós somos, indistintamente, dignos de morte. É, portanto, somente a eleição de Deus que faz a diferença entre uns e outros. Assim, vemos que a bondade gratuita de Deus é exaltada pelo Profeta, quando ele diz que um remanescente será salvo e que serão chamados pelo Senhor, pois não está no poder dos homens manter-se a menos que sejam eleitos, e a bondade de Deus é a segurança de sua salvação. João Calvino.420

Por isso, no Dia de Pentecostes, o derramamento do Espírito Santo foi acompanhado de testemunho sobre a salvação. E aqui finalizo esta terceira e mui longa divisão. Respondendo à pergunta — O que o Espírito Santo realiza? — Ele traz a profecia definitiva, que é o evangelho de Jesus Cristo. E nós não apenas desfrutamos deste evangelho, como também, somos feitos testemunhas dele. Dito isto, podemos concluir.

A1. Conclusão Os benefícios mencionados há pouco foram desfrutados por aqueles que receberam o Espírito Santo, no Dia de Pentecostes. E eles são desfrutados por aqueles que recebem Cristo

419 CALVIN, John. Commentaries on the Twelve Minor Prophets. Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2010, p. 99, v. 2. Tradução nossa. 420 CALVIN, op. cit., p. 111-112.

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hoje. Os que creem em Jesus acolhem o evangelho, recebem a Palavra de Deus que provê segurança e força para o enfrentamento dos embates da vida.

O povo que sofria debaixo da praga dos gafanhotos olharia para frente e receberia alento. Os crentes do tempo de Joel podiam estar certos de que as devastações trazidas pelos gafanhotos e seca não eram definitivas. Deus garantiria o pacto restaurando-os integralmente e habitando entre eles (Jl 2.27). O Espírito que seria “derramado” e a unção do Espírito daria a eles um “conhecimento”, ou seja, uma comunhão com Deus diferenciada (1Jo 2.20, 27; cf. Jr 31.34). Ele invocariam o SENHOR e seriam salvos. E poderiam caminhar com Deus sendo sustentados pelo Espírito Santo. Esta interpretação combina com o NT, ela nos conduz ao evangelho. Então preste atenção: Rejeite qualquer doutrina que lhe conduza para esquisitices, ao mesmo tempo em que o afasta do evangelho. É muito bom poder ler o AT sabendo que ele aponta para o evangelho.

“E acontecerá, depois, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne” (v. 28). Quando isso aconteceu? No Dia de Pentecostes. E isso acontece pode acontecer hoje, em sua vida, se você crer em Jesus Cristo. Acontece quando pessoas entregam suas vidas a Cristo. Esses são os beneficiários: Os que creem em Deus; o povo de Deus de todos os tempos.

Desde o Pentecostes Deus está fazendo algo maravilhoso — dando o seu Espírito a todos os que o invocam. Esta é uma promessa grandiosa. O Cristianismo não nos promete apenas uma crença ou uma ideologia. Nem apenas uma estrutura sociológica de apoio, sugerindo que não ficaremos mais sozinhos porque temos uma irmandade ou igreja. Isso é precioso, mas esta não é a única promessa. A promessa do Cristianismo não é apenas te dar um passaporte para a eternidade. Sem dúvida, isso consta no Cristianismo e é maravilhoso, mas entendamos que o Cristianismo vai além disso.

O Cristianismo afirma que o Deus vivo habita dentro de nós. Não apenas Deus junto de nós, ou aproximando-se de nós. É Deus fazendo morada em nós. Nós, a igreja, como santuário de Deus. E nós somos ligados a ele, e sustentados, santificados e consolados por ele à medida que ele mesmo aplica o evangelho em nós. O Espírito Santo nos é dado para que desfrutemos da derradeira profecia, o evangelho, que é “o poder de Deus” (cf. Rm 1.16).

Estas verdades nos ajudam a compreender que, firmados em Deus, podemos continuar caminhando. Os ouvintes de Joel podiam saber disso: A situação está difícil, mas Deus enviará ajuda material e espiritual. Acima de tudo, Deus nos dará Cristo, ele nos dará dele mesmo — seu Espírito será derramado sobre nós! Não apenas ele derramará chuva para fazer crescer a relva e alimentar os animais, mas também o Espírito Santo, para revitalizar nosso coração com fé, devoção e certeza de vida eterna.

Sendo assim, cada tribulação abre espaço para a invocação. Assim como, nos tempos de Joel, a nuvem de gafanhotos fomentou uma busca renovada de Deus, depois do derramamento do Espírito Santo, ainda há circunstâncias em que temos de clamar pelo socorro de Deus. Como disse um servo de Deus, “a fé é sempre a mãe da oração”. E entre a primeira e a segunda vindas de Cristo, temos o evangelho que nos sustenta e, ao mesmo tempo, impulsiona ao testemunho. O desfrute do Espírito Santo, como lemos em Atos, produz expansão missionária. A obra de evangelização é levada adiante com a consciência de que Deus é quem chama o seu remanescente – somente os eleitos serão salvos.

Assegurados no amor de Deus, continuemos a invocá-lo de todo nosso coração. Amém. Vamos orar.

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Apêndice 2. Áreas de interesse e possível chamado

O formulário a seguir auxilia na identificação de áreas de interesse e possível chamado para o serviço na igreja.421

O chamado de Deus pode se revelar imediata e claramente ou aos poucos e gradativamente. Isso significa que tentar identificar o chamado por meio de um teste pode parecer inadequado para alguns. De fato, as perguntas a seguir não são uma ferramenta infalível, mas podem servir de auxílio à reflexão e tomada de posição diante de alguns grupos humanos e áreas de atividades.

Aqueles que estão iniciando a carreira cristã e conhecem pouco a igreja talvez tenham mais dificuldade em responder algumas questões. Apesar disso, é útil tentar preencher este questionário observando o seguinte:

• Ore enquanto considera suas respostas. • Complete o questionário sozinho. • Não há respostas certas nem erradas.

1. No final de minha vida eu gostaria de saber que fiz algo em prol de:

_______________________________________________________________________________

2. Se alguém mencionasse seu nome para um grupo de amigos seus, o que eles diriam ser o seu maior interesse?

_______________________________________________________________________________

3 Tenho opiniões/sentimentos fortes sobre esses assuntos/causas:

Meio-ambiente. Discipulado. Violência. Educação. Economia.

Saúde. Aborto. Igreja. Cuidar de crianças. AIDS. Injustiça.

Vícios. Alcançar os perdidos. Pobreza. Fome. Ideologia de gênero.

Política. Racismo. Tecnologia. Família. Alfabetização

Outros:

_______________________________________________________________________________

4. Observe a lista de tipos ou grupos humanos abaixo. Marque com um traço aqueles com os quais você se identifica, para os quais gostaria de realizar um serviço cristão ou que exigem sua atenção devido aos encaminhamentos da providência de Deus.

Bebês. Crianças. Pré-adolescentes. Adolescentes. Jovens.

Homens. Mulheres. Casais. Idosos.

421 Adaptado de BUGBEE, Bruce; COUSINS, Don; HYBELS, Bill. Rede Ministerial: Pessoas Certas Nos Lugares Certos Pelas Razões Certas. 3ª Impressão, 1997. São Paulo: Editora Vida, 1996, p. 23-32. Eu não compartilho de todas as convicções doutrinárias e metodológicas de Bugbee, Cousins e Hybells. Mesmo assim, como calvinista que acredita na graça comum, louvo a Deus pelo trabalho destes irmãos, dando a eles o crédito pela proposição original deste formulário.

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Portadores de necessidades especiais. Desempregados. Moradores de rua

Viciados em álcool. Viciados em drogas. Enfermos. Líderes.

Marginalizados. Pobres. Presos. Solitários. Nenhum grupo específico

Outros:

_______________________________________________________________________________

5 Observe a lista de atividades, serviços e causas gerais. Marque com um traço aquelas com as quais você se identifica, através das quais gostaria de realizar um serviço cristão ou que exigem sua atenção devido aos encaminhamentos da providência de Deus.

Ajudar em acampamentos. Administrar e organizar.

Conversar com pessoas que estão chegando. Atividades de lazer.

Educação física. Atividades de socialização. Construção e reforma.

Limpeza e conservação. Reparos gerais. Conserto de máquinas.

Marcenaria. Serviços elétricos. Jardinagem. Plantio de horta e pomar.

Cuidado com lavoura. . Dirigir utilitários, ônibus e caminhões. Artesanato.

Criação publicitária. Redação. Revisão de textos. Secretariado

Serviços de escritório. Confecção de cartazes. Decoração. Desenho manual.

Fotografia. Música. Enfermagem. Serviços médicos.

Serviços odontológicos. Serviços psicológicos. Assistência social.

Projetos sociais. Digitação de texto. Desenho e programação de banco de dados.

Redes sociais. Fazer slides (Keynote, PowerPoint). Edição de áudio.

Desenho vetorial (Adobe Illustrator). Edição de imagem (Adobe Photoshop).

Editoração (Adobe InDesign). Edição e publicação de vídeos.

Gravação de CD/DVD. Redes Wi-Fi. HTML, CSS e WordPress.

Cozinhar. Gerenciamento de equipe de cozinha. Ensino.

Outros:

_______________________________________________________________________________

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RESUMO DO QUESTIONÁRIO

Baseado em minhas respostas, é possível que minha(s) área(s) de interesse ou chamado se relacionem com os seguintes grupos humanos ou atividades (escreva nas linhas abaixo os tipos ou grupos humanos e atividades, serviços e causas gerais que você marcou):

___________________________________________________

___________________________________________________

___________________________________________________

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Apêndice 3. Martinho Lutero e os entusiastas

Matthew Phillips.422

Parte 1 Cristo encontra não apenas Caifás entre seus inimigos, mas também Judas entre seus amigos. (Martinho Lutero, LW 40:66).

Martinho Lutero escreveu esta frase em uma carta aberta aos cristãos em Estrasburgo para adverti-los contra o ensinamento do Dr. Andreas Bodenstein von Karlstadt sobre o batismo e a Ceia do Senhor. Nesta carta de 1524, Lutero descreveu Karlstadt como um falso mestre que havia traído o ensinamento básico da emergente Reforma em Wittenberg. Em alguns posts, examinarei as principais diferenças entre os ensinamentos de Lutero e de seus primeiros oponentes dentro de seu próprio círculo em relação à Palavra externa e ao Espírito Santo. Os dois adversários mais significativos foram Karlstadt e Thomas Müntzer, que Lutero identificou como entusiastas (esta palavra deriva de palavras gregas que significam “deus dentro”). O primeiro post será uma visão geral histórica dos eventos.

Andreas Karlstadt foi professor de teologia em Wittenberg quando Lutero recebeu seu doutorado em 1512. Quatro anos depois, Karlstadt, como Lutero, começou a promover o afastamento da teologia escolástica medieval tardia para um enfoque maior na Bíblia e nos escritos de Agostinho de Hipona no currículo teológico da Universidade de Wittenberg. Contudo, apesar de uma aliança inicial, suas ênfases doutrinárias em relação à justificação e à salvação começaram a divergir. Quando Lutero ficou escondido no Castelo de Wartburg (maio de 1521 a março de 1522), Karlstadt promoveu uma rápida reforma da prática em Wittenberg. Ele rejeitou o celibato (e se casou com uma jovem), fez mudanças drásticas na Liturgia de Culto e promoveu as imagens e crucifixos de todas as igrejas. Lutero retornou a Wittenberg em março de 1522 e pregou seus famosos “Sermões Invocavit” sobre fé, amor e a implementação da reforma gradual.

Em 1523, Karlstadt rejeitou seus estudos acadêmicos, começou a se vestir como um camponês e se tornou pastor da congregação na pequena cidade de Orlamünde. Ali Karlstadt implementou sua própria reforma através da remoção de imagens, rejeitando o batismo infantil e interpretando a Ceia do Senhor apenas como refeição comemorativa. Martinho Lutero se opôs a todas essas coisas publicamente através de uma turnê de pregação da Saxônia Eleitoral. Os ensinamentos e ações de Karlstadt levaram ao seu exílio na Saxônia Eleitoral no outono de 1524. Por esta época, Karlstadt havia pregado e escrito folhetos para promover seus ensinamentos e se familiarizar com outros reformadores no sul da Alemanha e na Suíça. Particularmente, Karlstadt impressionou um grupo de pregadores de Estrasburgo (parte da França moderna). Lutero respondeu às suas indagações com uma carta em dezembro de 1524. Simultaneamente, Lutero escreveu Contra os Profetas Celestiais

422 PHILLIPS, Matthew. Martin Luther and the Enthusiasts - Part I. In: The Brothers of John the Steadfast. Publicado em 20 mar. 2015. Disponível em: <https://steadfastlutherans.org/2015/03/martin-luther-and-the-enthusiasts-part-i-2/>. Acesso em: 04 mai. 2019.

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pelo qual ele primeiramente procurava refutar Karlstadt, no entanto, Lutero certamente também tinha em mente Thomas Müntzer.

Thomas Müntzer, um sacerdote que inicialmente apoiou Lutero, era pregador em Zwickau em 1520. Nos dois anos seguintes, ele foi a Praga e voltou à Saxônia. Durante esse tempo, ele estabeleceu um entendimento diferente do evangelho de Lutero e acabou em Allstedt em 1523. Lá ele ganhou seguidores leais como pastor e profeta. Por volta de 1524, Müntzer promoveu a noção de usar a força para realizar sua versão da reforma na sociedade. Por exemplo, seu grupo destruiu uma pequena capela fora de Allstedt. Müntzer exortou os príncipes a realizar uma reforma radical com ele como seu conselheiro espiritual. Quando eles rejeitaram essa ideia, ele se tornou mais radical. Durante a Guerra dos Camponeses, ele se juntou a outros em 1525 em Frankenhausen contra as tropas dos príncipes alemães. A essa altura, ele estava profetizando a derrubada dos príncipes ímpios e o estabelecimento de um novo reino divino. Em maio de 1525, as tropas dos príncipes o capturaram e depois o executaram.

Embora Lutero frequentemente confundisse os ensinamentos de Karlstadt e Müntzer, Karlstadt nunca promoveu a violência como uma ferramenta para reformas religiosas ou sociais. De fato, ele tentou afastar os camponeses da revolução violenta. Karlstadt até retornou com sua família para os arredores de Wittenberg e parecia ter se reconciliado com Lutero. Em 1529, ficou claro que Karlstadt ainda discordava de Lutero quanto à Ceia do Senhor. No final de 1530, ele abraçou a reforma associada a Ulrich Zwinglio. Karlstadt mudou-se para Zurique, onde serviu como capelão de hospital. Em 1534, estabeleceu-se como professor de AT e pastor em Basel, na Suíça, onde morreu em 1541. Claramente, ele havia repensado algumas de suas noções mais radicais a partir do início da década de 1520, mas suas ideias eram muito mais próximas de Zwinglio e outros reformadores suíços do que de Lutero.

Fontes:

BRECHT, Martin. Martin Luther: Shaping and Defining the Reformation. Minneapolis: [Editora], 1990, p. 146-172.

LINDBERG, Carter. The European Reformations. 2. ed. Oxford: [Editora], 2010, p. 89-92, 130-150.

Parte 2423 Neste segundo post sobre este tópico, examinaremos os ensinamentos básicos de

Andreas Karlstadt e Thomas Müntzer no início da década de 1520 […]. Ambos os homens desafiaram os ensinamentos de Lutero sobre a Palavra e os Sacramentos. Esses homens rejeitaram o batismo infantil, a doutrina da presença corpórea de Cristo na Ceia do Senhor e o uso de imagens nas igrejas. Ambos enfatizavam uma experiência espiritual interna na alma do crente como o fundamento para a vida cristã. Por outro lado, Lutero enfatizou a promessa da Palavra de Deus que vem de fora do indivíduo para justificar o crente.

A ênfase de Andreas Karlstadt no renascimento espiritual interno e na mortificação levou ao uso primário da Escritura como um guia divino para a vida santa. Ele também tomou emprestado um conceito do misticismo alemão medieval que reforçou sua concentração na transformação interior. Os místicos ensinavam que os indivíduos precisavam se esvaziar do apego às coisas físicas e materiais e entregar suas almas

423 PHILLIPS, Matthew. Martin Luther and the Enthusiasts - Part II. In: The Brothers of John the Steadfast. Publicado em 20 mar. 2015. Disponível em: < https://steadfastlutherans.org/2015/06/martin-luther-and-the-enthusiasts-part-ii/>. Acesso em: 04 mai. 2019. Tradução nossa.

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completamente a Deus por meio da oração e da meditação. Dessa maneira, eles podem se tornar progressivamente mais espirituais e menos pecaminosos. Karlstadt explicou: “Quando a glória, a honra, o louvor, a vontade e o amor de Deus governam em nós com poder, então o eu, o ego e a autoabsorção de todos devem enfraquecer e tornar-se nada”.424

Enquanto a ênfase de Karlstadt no misticismo o colocou em conflito com Lutero, a separação entre os dois homens surgiu em relação aos seus ensinamentos sobre a Ceia do Senhor, a reforma litúrgica e o uso de imagens na igreja. Em outubro de 1524, Karlstadt publicou dois tratados sobre a Ceia do Senhor que rejeitavam o ensinamento da presença física de Cristo no pão e no vinho consagrados. Ao fazê-lo, ele ajudou a instigar a controvérsia eucarística entre aqueles associados à Reforma em Wittenberg e os primeiros reformadores suíços, especialmente Ulrich Zwinglio. Karlstadt ensinou que o digno destinatário da Ceia do Senhor deve possuir uma lembrança fervorosa da paixão e do derramamento de sangue de Cristo. Ele afirmou que as palavras da instituição de Cristo apontavam para a crucificação do corpo de Cristo e o derramamento de seu sangue na sexta-feira santa. Contudo, Cristo não pretendia com isso tornar seu corpo físico e sangue presentes no pão e no vinho. Karlstadt escreveu:

Se Cristo deu seu corpo aos discípulos no pão, então Cristo também deu seu corpo no pão para seus discípulos e, além disso, dará seu corpo no futuro para todos aqueles a quem ele deveria dar seu corpo hoje no sacramento. Mas isso é anticristão, pois seria como se disséssemos que Cristo foi crucificado e morreu por nós no pão [e] Cristo derramou seu sangue no cálice.425

Agora, os crentes devem lembrar dentro de suas almas como Cristo deu sua vida por eles na cruz. Karlstadt também apontou que a gramática grega (e latina) não poderia apoiar a ideia de que o pão se tornou ou continha o corpo de Cristo. Por esta razão, os cristãos devem olhar para Cristo na cruz, não no sacramento.426

Thomas Müntzer expressou suas crenças em um número de publicações, de 1521 a 1525. Durante esse período, ele se tornou um fervoroso crítico de Lutero e eventualmente liderou uma violenta rebelião contra os “ímpios”, a fim de estabelecer o reino de Deus na Terra. Em 1521, Müntzer publicou sua primeira grande obra, Prague Manifesto, que demonstrou sua ruptura com Lutero. Ele escreveu que nenhum padre, monge ou erudito havia lhe ensinado genuinamente sobre a fé, o sétimo dom do Espírito Santo e a verdadeira ordem de criação de Deus. Müntzer afirmou que a Palavra eterna de Deus não pode ser apenas um texto que se lê ou memoriza, mas Deus deve falar continuamente com o espírito do crente. Ele escreveu: “Eu ouvi falar deles sobre a mera Escritura, que eles roubaram da Bíblia como assassinos e ladrões […]. Quem não sente o Espírito de Cristo dentro dele, ou não tem certeza de tê-lo, não é um membro de Cristo, mas do diabo […]”.427

Em 1522, Müntzer escreveu a Philip Melanchthon em termos amigáveis, mas também criticou os teólogos de Wittenberg. Ele explicou que Melanchthon e Lutero adoravam um Deus mudo e eles não reconheceram o julgamento vindouro sobre o mal. Ele os exortou a ouvirem o falar de Deus para eles. Müntzer também os advertiu contra a bajulação de governantes mundanos e os exortou a aplicar mais rapidamente novas práticas em suas congregações. Ele concluiu:

424 KARLSTADT, Andreas. The Meaning of the Term “Gelassenheit” and Where in Holy Scripture It is Found. In: The European Reformations: Sourcebook. 2. ed. Oxford: Carter Lindberg, 2014, p. 53. Tradução nossa. 425 KARLSTADT, Andreas. Eucharistic Pamphlets of Bodenstein von Karlstadt. In: BURNETT, Amy Nelson. Karlstadt and the Origins of the Eucharistic Controversy. Oxford: [s/ed.], 2011, p. 149. Tradução nossa. 426 KARLSTADT, op. cit., p. 60-64. 427 MÜNTZER, Thomas. Prague Manifesto. In: The European Reformations: Sourcebook, op. cit., p. 86.

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Se você desejar, eu apoiarei tudo o que eu disse das Escrituras, da ordem da criação, da experiência e da clara Palavra de Deus. Vocês, delicados eruditos bíblicos, não se atrasam. Eu não posso fazer outra coisa.428

Dois anos depois, depois que Müntzer começou a promover violência e rebelião, Lutero escreveu diretamente contra ele. Isso fez Müntzer publicar um ataque contundente a Lutero e seus colegas em Wittenberg. Ele os acusou de aliança profana com os príncipes e apoio à tirania dos ímpios. Referindo-se a Lutero como Dr. Mentiroso e Padre Pussyfoot [sonso, que não se compromete], Müntzer afirmou que Lutero amava a vida fácil e suave em Wittenberg em oposição à tribulação e sofrimento dos piedosos. Müntzer combinara sua própria visão apocalíptica do triunfo dos piedosos com as queixas sociais e econômicas dos camponeses e dos trabalhadores urbanos. Em sua mente, Lutero e seus colegas haviam se aliado aos príncipes do mal e ao diabo contra os piedosos.429

Parte 3430 Este terceiro post sobre este tópico enfocará a resposta do Dr. Lutero aos entusiastas e

como esta resposta moldou as Confissões Luteranas. Martinho Lutero respondeu inicialmente aos ensinamentos dos dois homens com cartas. Em julho de 1524, ele publicou uma carta aberta aos príncipes da Saxônia, Frederico, o Sábio e João (o Firme). Como era prática de Lutero, ele identificou o diabo por trás de falsos mestres e o atacou em seus escritos. Ele reconheceu (e rejeitou) a ênfase de Müntzer em ouvir a voz de Deus diretamente em sua alma através de experiências místicas. O Dr. Lutero explicou como sua própria doutrina repousava na Sagrada Escritura e não uma nova revelação do Espírito. Ele observou a ironia de que aqueles que acreditavam que os verdadeiros crentes deviam ouvir a voz de Deus diretamente ainda ensinavam a outros através da pregação e da escrita. Finalmente, Lutero viu a agenda demoníaca por trás do ensino de Müntzer:

Por isso, reconhecemos e julgamos que esse espírito tem como propósito invalidar as Escrituras e a Palavra oral de Deus, e acabar com o sacramento do altar e do batismo. Ele nos forçaria a um espírito no qual deveríamos tentar a Deus com nossas próprias obras e com livre arbítrio, e assumir o seu trabalho, enquanto estabelecemos tempo, lugar e medida para Deus lidar conosco.431

Além disso, Lutero contrastou o comportamento e o ensino de Müntzer com o de Cristo, os apóstolos e sua própria vida. Para Lutero, verdadeiros pregadores usam a Palavra de Deus para derrubar o diabo e não forçar [a igreja].432

Em dezembro de 1524, Lutero enviou uma carta aos cristãos em Estrasburgo a respeito dos ensinamentos de Karlstadt. Ele explicou que Karlstadt havia rejeitado uma compreensão adequada dos sacramentos (o batismo e a Ceia do Senhor) e o uso de imagens. No entanto, Lutero descreveu como Karlstadt enfatizou Cristo como exemplo e a imitação de Cristo como um dom de Deus para a salvação. De acordo com Lutero, Karlstadt inverteu essa ordem e assim perturbou grandemente as consciências ansiosas.433

428 Ibid., p. 87. 429 Ibid., p. 91. 430 PHILLIPS, Matthew. Martin Luther and the Enthusiasts - Part III. In: The Brothers of John the Steadfast. Publicado em 20 mar. 2015. Disponível em: <https://steadfastlutherans.org/2015/06/martin-luther-and-the-enthusiasts-part-iii/>. Acesso em: 04 mai. 2019. Tradução nossa. 431 LUTHER, Martin. Letter to the Princes of Saxony [Carta aos Príncipes da Saxônia], LW 40:55. 432 LUTHER, op. cit., passim. 433 LUTHER, Martin. Letter to the Christians at Strassburg, Saxony [Carta aos Cristãos de Estrasburgo], LW 40:65-71.

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Essas cartas serviram como precursoras de uma das mais longas e significativas obras de Lutero, Contra os Profetas Celestiais na Matéria das Imagens e dos Sacramentos (1525). Como esse trabalho é bastante longo (LW 40: 79-223), só podemos dar um pequeno resumo com ênfase em algumas passagens. No geral, o Dr. Lutero afirmou a autoridade objetiva da Palavra de Deus contra a natureza subjetiva dos ensinamentos dos entusiastas. Ele demonstrou que os entusiastas reverteram como Deus escolheu trabalhar através de sua Palavra. Para Lutero, Deus trabalha através do exterior para provocar uma mudança no interior. Além disso, Deus dá fé em Cristo como um presente antes que quaisquer ações ou frutos de santificação possam aparecer. Lutero escreveu:

Agora, quando Deus envia seu santo evangelho, ele trata conosco de uma maneira dupla, primeiro exteriormente, depois interiormente. Externamente ele nos trata através da palavra oral do evangelho e através de sinais materiais, isto é, o batismo e o sacramento do altar. Interiormente ele lida conosco através do Espírito Santo, fé e outros dons. Mas seja qual for a medida ou ordem, os fatores externos devem e devem preceder. Deus determinou dar o interior a ninguém exceto através do exterior.434

Ele explicou como Karlstadt inverteu a ordem da fé interior e viveu exteriormente como um cristão. A mortificação da carne vem depois do dom da fé recebido através da Palavra pregada ou dos sinais exteriores. Para Lutero, a reversão dessa ordem é demoníaca.

Em Contra os Profetas Celestes, o Dr. Lutero também apresentou uma refutação completa da compreensão defeituosa de Karlstadt da Ceia do Senhor. Ele lamentou o foco de Karlstadt na meditação interior da paixão de Cristo como fonte de salvação. Karlstadt rejeitou a presença física de Cristo na Ceia do Senhor. No entanto, ele enfatizou a lembrança sincera da paixão de Cristo como um meio para a transformação espiritual. Lutero chamou seu ensino de uma fantasia que rejeitou a Palavra exterior e seus benefícios. A fim de refutar Karlstadt Luther explicou:

Tratamos o perdão dos pecados de duas maneiras. Primeiro, como isso é alcançado e ganho. Em segundo lugar, como é distribuído e dado a nós. Cristo alcançou isso na cruz, é verdade. Mas ele não distribuiu nem deu na cruz. Ele não ganhou na ceia ou sacramento. Lá ele distribuiu e deu através da Palavra, como também através do evangelho, onde é pregado.435

O Dr. Lutero incorporou seus ensinamentos sobre a relação entre a Palavra de Deus e o Espírito Santo no Grande Catecismo. Em sua explicação do terceiro artigo do Credo Apostólico, Lutero afirmou que ninguém poderia ter fé em Cristo, a menos que o Espírito Santo tivesse pregado o evangelho a essa pessoa. Mesmo que Cristo tenha terminado a obra de redenção, Deus deve instigar a pregação de sua Palavra para que o Espírito Santo possa aplicá-la aos crentes. O Espírito Santo faz isso através da igreja cristã que Lutero identificou como “a mãe que gera e leva todo cristão através da Palavra de Deus”.436

Na década de 1530, Martinho Lutero também falou sobre como o Espírito opera através da Palavra nos Artigos de Esmalcalde. Ao explicar a confissão e a absolvição, Lutero enfatizou como o Espírito Santo opera através da Palavra falada em oposição aos entusiastas, que acreditavam receber o Espírito sem a Palavra externa. Ele identificou Thomas Müntzer e o papado aqui especificamente como exemplos de entusiastas. Lutero salientou que o diabo

434 Ibid., 40:146. 435 Ibid., 40:213-214. 436 LUTHER, Martin. [Catecismo de Lutero] LC. II.38-42.

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desviou Adão e Eva da Palavra externa de Deus para sua própria forma de espiritualidade presuntiva.437

O Dr. Lutero então contrastou os ensinamentos dos entusiastas sobre “receber o Espírito” com a forma como a salvação realmente chega aos crentes. Ele afirmou que a fé vem através da Palavra externa ligada ao batismo ou pregação. Por exemplo, Cornélio e outros gentios tinham fé na vinda do Messias e receberam o Espírito como Pedro pregou a eles antes do batismo (At 10). Lutero resumiu este artigo com uma advertência contra o entusiasmo, isto é, confiando na palavra interna. De fato, ele a identificou como a fonte de todos os ensinamentos falsos, incluindo o Papado e o Islamismo. Com base nessas observações, Lutero aconselhou:

Portanto, devemos e devemos constantemente manter este ponto, que Deus não deseja lidar conosco senão através da Palavra falada e dos sacramentos. É o próprio diabo o que é exaltado como Espírito sem a Palavra e os sacramentos.438

437 LUTHER, Martin, [Artigos de Esmalcalde] SA. III.8.3-6. 438 LUTHER, Martin, SA. III.8.10-11.

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Apêndice 4. Entusiasmo e entusiasmados

Caleb Keith.439

A Reforma nem sempre foi tão recortada e organizada como gostaríamos que fosse. Nós dividimos doutrinas em pequenas frases curtas e nos concentramos em um punhado de datas importantes sobre as quais o ensinamento ortodoxo foi recuperado e claramente expresso. No entanto, o ensinamento bíblico que Lutero, Melanchthon e muitos outros ensinaram e pregaram foi desafiado a todo momento. Não apenas por Roma e pelo papa, mas por outro grupo chamado de entusiastas e reformadores radicais. Como Lutero, os reformadores radicais reconheceram a corrupção da doutrina e prática da igreja do séc. 16, mas a maneira pela qual eles promoveram a Reforma significava deixar de lado os ensinamentos bíblicos centrais e exilar intencionalmente crentes fiéis. O ensino de entusiastas está muito presente na igreja moderna, mas é frequentemente confundido ou mal interpretado com a emoção do entusiasmo. Abaixo eu gostaria de explorar o que significa ser um entusiasta e como isso difere de ter entusiasmo.

A.4.1. Os entusiastas da Reforma O termo “entusiasta” é um resumo para os mestres e igrejas que colocam a emoção interna e o movimento pessoal de Deus em sua vida acima ou como um substituto para a Palavra externa e os meios de [graça de] Deus. Isso significa que eles acreditam que Deus trabalha e se comunica pessoalmente com o indivíduo e não através das Escrituras e dos meios físicos. Durante a Reforma, os entusiastas incluíram pessoas como Ulrich Zwinglio, Andreas Karlstadt, Caspar Schwenckfeld, entre muitos outros. Seus movimentos de reforma já foram definidos como radicais devido à sua substância e estilo.

A.4.2. Substância Enquanto você pode encontrar críticas da doutrina entusiasta através dos escritos de Lutero e dos reformadores luteranos, o Artigo 12 da Fórmula de Concórdia oferece um bom exemplo do contraste entre o cristianismo histórico e os erros e ensinamentos prejudiciais dos reformadores radicais. Por uma questão de brevidade, não listarei todos os erros descritos aqui, mas farei os agrupamentos principais.

Cristologia: “Cristo não recebeu seu corpo e sangue da Virgem Maria”. “Cristo não é Deus verdadeiro, mas meramente tem mais dons do Espírito Santo”.

Meios de graça: “As crianças não devem ser batizadas até que atinjam o uso da razão”. “Os filhos dos cristãos são santos sem e antes do batismo”. “O pão e o vinho na Santa Ceia não são meios pelos quais e com os quais Cristo distribui seu corpo e sangue”.

Viver cristão: “Um cristão não pode possuir propriedade privada com uma boa consciência, mas é obrigado a entregar tudo à comunidade”. “O cristão que é verdadeiramente renascido através do Espírito Santo pode manter e cumprir a lei de Deus perfeitamente neste vida”.440

439 KEITH, Caleb. Enthusiasm and the Enthusiasts. Publicado em 07 nov. 2018. Disponível em: <https://1517.org/1517blog/calebkeith-enthusiastsdefined>. Acesso em 04 mai. 2019. Tradução nossa. 440 ARAND; KOLB. The Formula of Concord. In: The Book of Concord, p. 520-522.

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Embora nem todos os mestres dos entusiastas contemplem essas variações exatas de erro, eles se unem distorcendo a ordem e a importância da fé e da emoção internas e a obra externa de Deus.

Até mesmo os reformadores radicais mantiveram a doutrina da Sola Fide ou fé somente. O próprio Zwinglio declara: “Mas nós dissemos que é pela fé que os pecados são perdoados. Com isso, pretendíamos simplesmente afirmar que somente a fé pode dar a certeza do perdão”.441 No entanto, Zwinglio e os outros reformadores radicais afirmam incorretamente que a comunicação de Deus através da emoção e da fé pessoal dão poder ao batismo, à ceia e à pregação. Isso é contrário à afirmação das Escrituras, de que Deus age por meio de sua Palavra para criar, restaurar e renovar a fé interior. Romanos 10.17 declara a realidade que é a Palavra externa que cria fé e não a fé pessoal que revela e valida a Palavra. “Assim a fé vem de ouvir e ouvir através da Palavra de Cristo”.

Da mesma forma, não é nosso compromisso pessoal com Jesus que dá ao Batismo seu poder, mas a morte física e ressurreição de Cristo. “Você não sabe que todos nós que temos foram batizados em Cristo Jesus foram batizados em sua morte? Fomos, portanto, sepultados com ele pelo batismo na morte, a fim de que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, nós também andássemos em novidade de vida” (Rm 6.3-4).

A.4.3. Estilo O segundo identificador da teologia entusiasta é o conceito de reformar rapidamente a prática e a atitude do culto cristão a algo interior e não externo. Da mesma maneira, o entusiasta limita o envolvimento cristão no mundo e na vocação para atividades específicas de autossacrifício.

Em outras palavras, um entusiasta também é em grande parte um separatista. Os entusiastas eram tipicamente iconoclastas, o que significa que eles rejeitavam e removiam todas as imagens e símbolos das igrejas. Isto incluiu a remoção de cruzes, bem como imagens e pinturas de figuras bíblicas.

Os entusiastas também abandonaram e exilaram igrejas que anteriormente eram utilizadas pela igreja romana. Diferentemente dos reformadores luteranos, que trabalhavam com igrejas e congregações existentes para guiá-los e levá-los ao ensino e à prática ortodoxa, os reformadores radicais enfatizavam a rebelião e um novo chamado e pronunciamento de fé. A teologia entusiasta rejeita exteriormente o estabelecimento histórico da igreja e, em vez disso, falsamente promove a igreja como um edifício definido pela piedade pessoal daqueles dentro de suas paredes. Em contraste com isso, os luteranos concentraram-se no trabalho externo de Deus para definir o que a igreja é. Melanchthon escreve na Confissão de Augsburgo: “A igreja é a assembleia de santos em que o evangelho é puramente ensinado e os sacramentos são administrados corretamente”. Novamente, a distinção é que o entusiasta coloca a fé pessoal e ação do crente como o qualificador se Deus pode ou não fazer o seu trabalho.

Definir um entusiasta não depende de ter ou não entusiasmo pela fé cristã. Em vez disso, a definição é baseada em se a fé, a emoção e as coisas internas são como e onde Deus trabalha e fala, ao invés da Palavra externa dada através de meios físicos. Na igreja moderna, vemos isso em práticas como o batismo do crente, em que a principal questão é: “como você vê Deus trabalhando em sua vida?” E a ideia de que Deus operará coisas incríveis se você o deixar entrar em seu coração primeiro. Mesmo à parte da ideia específica de que as boas

441 The Exposition of the Faith in Zwingli and Bullinger, p. 268.

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obras salvam, a teologia do entusiasta é uma forma sorrateira de justiça e justificação próprias.

Em vez de libertar o cristão, essa Teologia coloca um fardo pesado no crente para provar a fé e infunde o medo de que ele não tenha fé suficiente. Quando a emoção se esgota, o entusiasta fica muitas vezes devastado. Os dons de Deus que nos foram dados através da Palavra e dos sacramentos são os meios da graça pelos quais recebemos fé e verdadeira segurança. Isso significa que, quando sentimos o fardo do pecado e deste mundo, e nosso entusiasmo se esgota, podemos procurar mais — fora de nós mesmos — pelo perdão e pela esperança. Para este fim, Lutero diz: “Mas qualquer que seja sua medida ou ordem, os fatores exteriores (Palavra e Sacramento) devem e devem preceder. A experiência interior segue e é afetada pela exterior.442

O entusiasta não é aquele que se rasga durante a absolvição, canta mais alto durante um hino ou seu canto favorito, faz o sinal da cruz durante o culto ou levanta a mão em oração, mas é antes aquele que ensina e acredita que essas coisas internas permitem a Deus falar e trabalhar. Ao fazê-lo, o entusiasta rejeita a grande dádiva de Deus, que foi libertada de fora de nós, mesmo quando estávamos contra ele. A verdade é que cada cristão tem ou vai sentir falta de entusiasmo. No entanto, nosso grande consolo é que apesar de nossas constantes tentativas de buscar a Deus em nossos próprios corações, Cristo nos afasta de nós mesmos para não confiar em nossos próprios pensamentos ou percepções, mas na realização externa de sua morte e ressurreição distribuída a nós com água, a Palavra, pão e vinho.

442 LUTHER, LW 40, Against the Holy Prophets, p. 146.

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Apêndice 5. O protestantismo acabou e os radicais ganharam

Michael Horton.443

Grande parte do entusiasmo em torno do quinhentos anos da Reforma Protestante não passa de tagarelice. Em 31 de outubro de 2016, em uma celebração conjunta em Lund, na Suécia, o papa Francisco e o presidente da Federação Luterana Mundial trocaram sentimentos calorosos. O Rev. Martin Junge, secretário geral da Federação Luterana Mundial, disse em um comunicado de imprensa para a celebração conjunta: “Tenho a profunda convicção de que, trabalhando pela reconciliação entre luteranos e católicos, estamos trabalhando pela justiça, paz e reconciliação em um mundo dilacerado pelo conflito e pela violência”. Reconhecendo as contribuições positivas de Lutero, o papa falou de como a unidade Cristã é importante para trazer cura e reconciliação para um mundo dividido pela violência. “Mas”, acrescentou, de acordo com um relatório, “não temos intenção de corrigir o que aconteceu, mas contar essa história de maneira diferente”.

Talvez o exemplo mais evidente de perda do ponto seja a afirmação do ano passado em Berlim por Christina Aus der Au, pastora suíça e presidente de uma convenção ecumênica da igreja: “Reforma significa procurar corajosamente o que é novo e se afastar dos antigos costumes familiares”. Certo, era disso que se tratava a Reforma: leigos e arcebispos davam seus corpos para serem queimados e a igreja ocidental estava dividida, porque as pessoas se cansavam da mesma coisa e procuravam crenças e modos de vida não tradicionais — assim como nós!

The Wall Street Journal relata um estudo do Pew [Pew Reserch Center] no qual 53% dos protestantes norte-americanos não identificaram Martinho Lutero como aquele que iniciou a Reforma (estranhamente, judeus, ateus e mórmons estavam mais familiarizados com Lutero). De fato, “menos de três em cada dez evangélicos brancos corretamente identificaram o protestantismo como a fé que acredita na doutrina da sola fide, ou justificação pela fé somente.444

Muitos que hoje reivindicam a Reforma como sua herança são mais provavelmente herdeiros dos radicais anabatistas. Na verdade, quero testar as águas com uma sugestão estranha: nosso mundo moderno pode ser entendido pelo menos em parte como o triunfo dos radicais. No começo, isso parece um disparate; afinal, os anabatistas foram o grupo mais perseguido da época — perseguidos não apenas pelo papa, mas também pelos magistrados luteranos e reformados. Além disso, os anabatistas de hoje são pacifistas que geralmente evitam se misturar com estranhos, em vez de incendiários revolucionários como Thomas Müntzer, que liderou insurreições na tentativa de estabelecer utopias comunistas do fim dos tempos (com eles mesmos como governantes messiânicos).

443 HORTON, Michael. Protestantism Is Over and the Radicals Won. In: White Horse Inn: For a Modern Reformation. Publicado em: 01 Set. 2017. Disponível em: <https://www.whitehorseinn.org/article/protestantism-is-over-and-the-radicals-won/?utmcontent=bufferb7b1c&utmmedium=social&utmsource=twitter.com&utmcampaign=buffer>. Acesso em: 05 mai. 2019. Tradução nossa. 444 HENNESSEY, Matthew. A Catholic·World Fades·Over a Lifetime. In: The Wall Street Journal, 04 mai. 2017. Disponível em: <https://www.wsj.co·m/articles/a­catholic-world-fades-over-a-lifetime-1493939277?mod=e2fb>. Acesso em: 09 mai. 2019.

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Eu não estou falando sobre comunidades Amish na Pensilvânia rural. Na verdade, eu não tenho em mente ramificações específicas, como os batistas arminianos, como tal. Estou pensando mais nos anabatistas radicais, especialmente os primeiros, que eram mais uma erupção do misticismo revolucionário medieval do que um desdobramento da Reforma. Tenho em mente uma religião utópica, revolucionária e quase gnóstica da “luz interior” que eventualmente influenciou todos os ramos da cristandade. É o tipo de piedade que os reformadores chamam de “entusiasmo”. Mas isso se infiltrou como uma névoa em todas as nossas tradições.

É importante notar que os primeiros anabatistas tinham um relacionamento precário com o que geralmente é chamado de reforma magisterial. Seus principais líderes eram antigos estudantes de Lutero e Zwinglio, mas seu curso teológico foi estabelecido pelas formas radicais do misticismo medieval tardio, especialmente Meister Eckhart e a Teologia Alemã. Esse sistema de inclinações panteístas tinha uma semelhança maior com o antigo gnosticismo do que com o ensinamento cristão dominante, seja católico romano ou reformado. Eles também foram influenciados pelo profeta místico Joachim de Fiore, do séc. 12, cuja interpretação do livro do Apocalipse dividiu a história em três eras: a Idade do Pai, associada à lei e à ordem dos casados, acabaria cedendo a Era do Filho, identificada com o evangelho e a ordem do clero. Mas o dia está chegando — talvez em breve, argumentou Joachim — quando a Era do Espírito surgirá na história, tornando a nova aliança obsoleta como a antiga. Na Era do Espírito — isto é, a ordem dos monges — todos conhecerão a Deus imediata, intuitiva e diretamente. Não haverá necessidade de pregadores ou mesmo de Escrituras, credos e doutrinas que dividam religiões ou sacramentos. De fato, a própria igreja visível e externa não mais existirá, pois toda a raça humana se tornará uma só família de Deus. As especulações de Joachim impregnaram a era medieval com expectativas de utopia após um período de sofrimento revolucionário. Os primeiros anabatistas disseram explicitamente que estavam cumprindo as visões de Joachim.

Os primeiros anabatistas também não mostraram interesse na doutrina da justificação, sola fide. Tornar-se essencialmente um com Deus foi um grande salto da imputação de uma justiça vinda de fora. De fato, de acordo com historiadores anabatistas, eles estavam se afastando ainda mais de Roma sobre essas questões, uma vez que o objetivo da salvação era alcançar a união com Deus através de extrema disciplina. Eles dificilmente eram fãs de sola Scriptura, uma vez que estavam ainda mais convencidos do que o papa de que os profetas contemporâneos eram agentes inspirados de nova revelação. Assim, ironicamente, os anabatistas eram mais radicalmente papistas que os protestantes radicais. Essa estranha alegação foi feita por Calvino em sua famosa carta de 1539 ao cardeal Sadoleto: “Somos contra duas seitas: o papa e os anabatistas”. À primeira vista, ele reconhece, a comparação faz pouco sentido, já que esses partidos estavam em oposição extrema. No entanto, eles estão realmente unidos de uma maneira importante: “Tanto para enterrar a palavra de Deus, a fim de abrir espaço para suas falsidades”, reivindicando a autoridade dos veículos modernos de revelação sobre o ensino expresso dos profetas e apóstolos da Escritura canônica.445

Reformadores, em vez de revolucionários, Lutero e Calvino acreditavam que a igreja havia se desviado significativamente, mas ainda assim poderia ser chamada de volta. Eles certamente acreditavam em milagres e revelações, mas não que ainda houvesse profetas e apóstolos trazendo revelação inspirada hoje. Eles certamente acreditavam na importância da lei, mas estavam convencidos de que o papa e os anabatistas haviam basicamente transformado o evangelho em uma nova lei. E os reformadores insistiram que Cristo era o

445 CALVIN, John. Reply by John Calvin to Cardinal Sadoleto's Letter. In: BEVERIDGE, Henry; BONNET, Jules. (Ed.). Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters. 7 v. Grand Rapids: Baker, 1983, 1.36. Tradução nossa.

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Senhor sobre ambos os reinos deste mundo e da igreja. Mas, como o papa, os primeiros anabatistas queriam colapsar o primeiro para o segundo irromper com um reino de Deus, como a teocracia do AT.

Os reformadores tinham um nome para isso: “entusiasmo”. Significando literalmente “Deus-dentro-ismo”, essa inclinação por se confundir com Deus era uma tentação perene, lamentavam eles. Em seus Artigos de Esmalcalde (SA III.4–15), Martinho Lutero argumentou que Adão foi o primeiro entusiasta. Seu ponto era que o anseio de identificar a Palavra de Deus com nossa própria voz interior, em vez de atender às Escrituras externas e à pregação, é parte e parcela do pecado original.

Somos todos entusiastas. Müntzer e outros radicais afirmaram (e ainda hoje afirmam) que o Espírito fala diretamente a eles, acima e até às vezes contra o que ele revelou nas Escrituras. A “palavra” secreta, privada e inata era contrastada com a “palavra exterior que apenas ressoa no ar”.446 Os reformadores pressionaram: não é isso que o papa faz? Enquanto o entusiasmo funciona de dentro para fora (experiências internas, razão e livre arbítrio expressadas externamente), Deus trabalha de fora para dentro (a Palavra e os sacramentos). “Portanto, devemos e devemos constantemente manter este ponto”, Lutero trovejou, “que Deus não deseja lidar conosco senão através da Palavra falada e dos sacramentos. É o próprio diabo o que é exaltado como Espírito sem a Palavra e os sacramentos”.447

Para os anabatistas, o dualismo platônico entre matéria e espírito foi mapeado no contraste do NT entre a carne e o Espírito.448 Tudo externo, ordenado, ordinário, estruturado e oficial era “feito pelo homem”, em oposição ao interno; testemunho espontâneo, extraordinário, informal e individual do Espírito interior.

Então, quando Immanuel Kant disse que a revelação na qual podemos realmente confiar é aquela que está dentro de nós — razão e “a lei moral interior” — ele não estava seguindo Lutero, mas o “espírito” do entusiasmo. Quando ele exaltava a “religião verdadeira” — isto é, o dever da lei universal que conhecemos lá no fundo — em contraste com as “religiões eclesiásticas” com seus credos particulares, reivindicações miraculosas, doutrinas e rituais, ele estava basicamente seguindo o roteiro dos gnósticos e das Seitas medievais radicais que levaram aos primeiros anabatistas. O entusiasta de todos nós não quer ouvir uma Palavra externa, confirmada por sacramentos externos, submetendo-se à disciplina externa de uma igreja visível. Queremos ser autônomos, estendendo nosso domínio do pequeno trono de nossa livre vontade, obras, razão e experiência subjetiva. Além da graça conquistadora de Deus, nunca nos permitirão saber quem somos por Deus em sua lei e evangelho.

O mesmo contraste entre o interior e o exterior domina o protestantismo liberal.449 É Jesus em meu coração — não o Jesus salvífico externo da história que é conhecido por meio

446 Cf. e.g., MÜNTZER, Thomas. The Prague Protest (2-7); MÜNTZER, Thomas. Sermon to the Princes (20). In: BAYLOR, Michael G. (Ed.). The Radical Reformation: Cambridge Texts in the History of Political Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1991; cf. FINGER, Thomas N. Sources for Contemporary Spirituality: Anabaptist and Pietist Contributions. In: Brethren Life and Thought 51, nº 1-2. Winter/Spring 2006, p. 37. 447 LUTHER, Martin. SA III. 8.10-11. 448 FINGER, Thomas N. A Contemporary Anabaptist Theology: Biblical, Historical, Constructive. Downers Grove: InterVarsity Press, 2004, p. 563. 449 F. C. Bauer, por exemplo, argumentou que o apóstolo Paulo usou “o ‘espírito’ [...] para denotar a consciência cristã”. Essa consciência é um princípio essencialmente espiritual, que proíbe um cristão considerar qualquer coisa meramente externa como uma condição de sua salvação. [...] Assim, o espírito é o elemento no qual Deus e o homem estão relacionados mutuamente na unidade do espírito”. BAUER, F. C. Paul The Apostle of Jesus Christ: His Life and Work, His Epistles and His Doctrine. London: Williams and Norgate, 1875, apud LEVISON, John R. Filled With The Spirit. Grand Rapids: Eerdmans, 2009, p. 4. Levison

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das Escrituras e da pregação, do batismo e da eucaristia. Mesmo onde existem diferenças importantes em crenças particulares, os protestantes mais conservadores exibem as mesmas categorias de pensamento e vida. A mesma antítese traçada por séculos de liberalismo aparece no manifesto que lançou o pentecostalismo: “Nós somos [. . .] os que procuram substituir as formas mortas e credos […] pelo cristianismo vivo e prático”.450

Mas os mesmos contrastes têm sido evidentes no evangelicalismo não pentecostal. Por exemplo, o teólogo batista Stanley Grenz encorajou uma recuperação das raízes do movimento pietista contra as ênfases da Reforma e pós-Reforma: “Nos últimos anos, começamos a desviar o foco de nossa atenção da doutrina com seu foco na verdade proposicional em favor de um interesse renovado no que constitui a visão exclusivamente evangélica da espiritualidade”.451 Outros contrastes familiares aparecem em sua Revisioning Evangelical Theology: A Fresh Agenda for the 21st Century: “baseado no ‘credo’ versus ‘piedade’ (p. 57); no ‘ritual religioso’ versus ‘fazer o que Jesus faria’ (p. 48); na prioridade dada a ‘nossa caminhada diária’ em relação à ‘frequência aos cultos dominicais pela manhã’ (p. 49) e ao ‘comprometimento individual e interno’ em relação à ‘identidade corporativa’” (p. 49-53). “Uma pessoa não vem à igreja para receber a salvação”, mas para receber ordens de marcha para a vida diária (p. 49). Ele acrescenta: “Nós praticamos o batismo e a Ceia do Senhor, mas entendemos o significado desses ritos de uma maneira cautelosa”. Eles são “perpetuados não tanto por seu valor como por condutores […] da graça de Deus para o comunicante, porque eles lembram o participante e a comunidade da graça de Deus recebida interiormente e são parte de uma resposta obediente” (p. 48).

Dada a história de entusiasmo, as descobertas do sociólogo Wade Clark Roof não são surpreendentes: “A distinção entre ‘espírito’ e ‘instituição’ é de grande importância” para os buscadores espirituais hoje.452 “O espírito é o aspecto interno e experimental da religião; a instituição é a forma exterior e estabelecida da religião”.453 Ele acrescenta: “A experiência direta é sempre mais confiável, se não por outra razão que não por causa de sua ‘intimidade’ e ‘interioridade' — duas qualidades que têm sido muito apreciadas em uma cultura altamente expressiva e narcisista”.454 A ironia não é para ser desperdiçada: a secularização moderna é o produto menos do ateísmo do que de um fanático “entusiasmo” que está sendo perpetuamente despojado de sua referência explicitamente religiosa. É o tipo de misticismo insípido que as pessoas têm em mente quando dizem que são “espirituais, não religiosas”.

Assim como Joachim profetizou, a Era do Espírito, identificada com o reino de Deus, tornou obsoleta a igreja visível e seu ministério. O pai do Evangelho Social, Walter Rauschenbusch, afirmou: “Jesus sempre falou do reino de Deus. Apenas dois dos seus ditos relatados contêm a palavra ‘igreja’, e ambas as passagens são de autenticidade questionável. É seguro dizer que ele nunca pensou em fundar o tipo de instituição que depois afirmou estar agindo por ele”.455 Com a subordinação do reino à igreja, argumentou Rauschenbusch,

adiciona o sentimento de Herman Gunkel: “A relação entre a atividade divina e humana é a da oposição mutuamente exclusiva” (LEVISON, op. cit., p. 5). 450 GEE, Donald. Azusa Street Mission, Tests for ‘Fuller Revelations’. In: The Pentecostal Evangel, 14 Fev. 1925, apud KÄRKKÄINEN, Veli-Matti. In: YONG, Amos. (Ed.). Toward a Pneumatological Theology: Pentecostal and Ecumenical Perspectives on Ecclesiology, Soteriology, and Theology of Mission. Lanham, MD: University Press of America, 2002, p. 98. 451 GRENZ, Stanley. Revisioning Evangelical Theology: A Fresh Agenda for the 21st Century. Downers Grove: InterVarsity Press, 1993, p. 56; e ainda KÄRKKÄINEN, op. cit., p. 9-37. Em todos esses casos, uma “hermenêutica pneumática” é apresentada como uma maneira de se aproximar de Roma. 452 ROOF, Wade Clark. A Generation of Seekers: The Spiritual Journeys of the Baby Boom Generation. San Francisco: HarperCollins, 1993, p. 23. 453 ROOF, op. cit., p. 30. 454 Ibid., p. 67. 455 RAUSCHENBUSCH, Walter. A Theology for the Social Gospel. New York: Macmillan, 1917, p. 132.

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surgiu o eclipse da ética por um foco diminuído na doutrina, adoração, pregação e sacramentos — portanto, tanto a igreja medieval, com suas corrupções, quanto o protestantismo, fracassaram em reformar as estruturas da sociedade.456

O teólogo católico Matthew Levering se refere ao exemplo da estudiosa da religião Diana Eck, que evita a imagem do “corpo de Cristo” como hierárquica em favor da “família”. “A base fundamental da família mundial terá finalmente de ser o pluralismo”, ela afirma.457 Além disso, “este reino de bênção divina” é muito mais amplo que a igreja. É o Reino de Deus, não a Igreja Cristã.

A visão de Eck de uma unidade mundial baseada no reconhecimento de nossa humanidade comum negligencia a necessidade humana de perdão, de misericórdia, que requer a ação histórica do Deus vivo para superar nosso quebrantamento e o dano que causamos aos outros. Precisamos do Deus de misericórdia, em Jesus Cristo e do Espírito Santo, para curar nossa condição alienada e estabelecer para nós uma relação de amor e justiça por um dom transformador de amor.458

Além disso, para Eck, a morte é o fim; assim, nossa única esperança reside nesta vida.459 Tudo o que é sagrado, incluindo o Espírito e o reino, foi reduzido ao quadro imanente — em outras palavras, foi secularizado.

Mas esse espírito de entusiasmo é evidente também nos círculos católicos romanos, como Levering também reconhece. O reino de Deus (que é universal e interior) é colocado contra a igreja (que é particular e criada pela Palavra externa). Precisamos da igreja? O padre Richard P. McBrien escreve: “A igreja não deve mais ser concebida como o centro do plano de salvação de Deus. Nem todos os homens são chamados à membresia na igreja, nem tal filiação é um sinal de salvação presente ou garantia de salvação futura. A salvação vem através da participação no reino de Deus, e não através da afiliação com a igreja cristã”.460 Ele acrescenta: “ Todos os homens são chamados ao reino, porque todos os homens são chamados para viver o evangelho. Mas a vida do evangelho não é necessariamente aliada à participação na comunidade cristã visível e estruturada”.461 A Primeira Vinda de Thomas Sheehan: Como o Reino de Deus Se Tornou Cristianismo (Random House, 1986) é outro exemplo da oposição entre o reino e a igreja nos círculos católicos romanos hoje.

É impossível (especialmente em um espaço tão curto) oferecer um relato detalhado. Mas minha opinião é que muitas das principais características de nosso mundo moderno e secularizado são levadas em parte por essa mudança de um Deus que fala com autoridade, julgando e nos salvando, fora de nós na história, para o “deus interior” — significando que a nossa própria voz interior é o nosso governante soberano. Até mesmo um teólogo liberal como Paul Tillich reconheceu que o Iluminismo era, em certa medida, o triunfo do entusiasmo radical: “A razão interna do Iluminismo é realmente a luz interior dos Quakers”.462

Também vemos o impulso quase-gnóstico na obsessão moderna com revoluções religiosas, culturais e políticas. O trabalho de Eric Voegelin me ajudou a entender como o ódio gnóstico do mundo pode assumir duas formas: ou o gnóstico insiste em destruí-lo e

456 RAUSCHENBUSCH, op. cit., p. 133-134. 457 ECK, Diana. Encountering God: A Spiritual Journey from Bozeman to Banaras. Boston: Beacon, 2003, p. 228, apud LEVERING, Matthew. Engaging the Doctrine of The Holy Spirit: Love and Gift in the Trinity and the Church. Grand Rapids: Baker, 2016, p. 303. 458 LEVERING, op. cit., p. 303. 459 Ibid., loc. cit. 460 MCBRIEN, Richard P. Do We Need the Church? London: Collins, 1969, p. 228. 461 MCBRIEN, op. cit., p. 161. 462 TILLICH, Paul. A History of Christian Throught. New York: Touchstone, 1972, p. 286.

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refazer tudo de novo na forma de puro espírito, ou ele recua totalmente do mundo e busca segurança em um pequeno grupo de puristas que se isolam dos ímpios. Podemos ver ambas as abordagens em inúmeros movimentos que são sempre profundamente religiosos ou espirituais em seu motivo básico — mesmo quando o proletariado substitui Deus. Levante este mundo até suas fundações e construa uma nova civilização a partir do zero. A história está se movendo em direção a um ponto final, seja de desastre apocalíptico ou de utopia, e nós seremos agentes desse destino providencial. Como Karl Löwith explica, a moderna doutrina do progresso é a escatologia cristã secularizada. O clímax da história deve ser encontrado não no final da história, mas no meio — não pelo retorno de Cristo, mas pelo nosso esforço coletivo.

Também vemos as duas abordagens do gnóstico em várias formas de envolvimento evangélico com a política. Na primeira metade do séc. 20, os fundamentalistas tenderam a se separar do mundo sem Deus, mas depois se engajaram politicamente nos anos 80. Sua atitude básica em relação ao mundo, contudo, permaneceu constante: uma visão relativamente hostil da cultura, ciência, artes e especialmente das “elites” que cada vez mais eram gnósticos da esquerda — a mesma divisão maniqueísta entre luz e trevas, os santos e os réprobos, agentes da liberdade revolucionária versus conspiradores com as forças do mal. Mas se a ideia de autonomia — o eu como soberano — está no coração do secularismo moderno, então sua genealogia pode ser facilmente rastreada até o mago renascentista e os protestantes radicais que foram moldados por esse conceito do eu interior como uma centelha do Divino.

Se minha tese está perto de ser correta, então a história de nossa era moderna não é tanto a ideia de Lessing de “educação da raça humana” e o triunfo gradual da razão sobre a suposta revelação, a ciência sobre a superstição e a paz secular sobre violência religiosa, como é uma versão secularizada do misticismo cristão radical. De fato, o próprio Lessing disse que as visões de Joachim de Fiore sobre uma Era do Espírito não estavam erradas, apenas prematuras, aguardando a chegada do Iluminismo.

Vamos tirar isso das nuvens e descer para onde a maioria de nós vive todos os dias como cristãos. Um inventário superficial dos livros e pregadores cristãos mais populares conta a história. Concentrando-se mais no fortalecimento interno para o eu autônomo do que no próprio Deus e em sua obra de criação, providência, redenção, justificação, santificação, glorificação e ressurreição do corpo, grande parte da dieta espiritual é “sopa de galinha para a alma”. Muitos crentes consideram passar tempo a sós com Deus em oração, ouvindo “o que ele está dizendo para mim hoje”, mais importante do que ir à igreja para se reunir com outros pecadores e ouvir a Palavra de Deus proclamada e receber seus sacramentos. Estamos em nosso próprio país fazendo isso em vez de nos submetermos a algo externo à nossa voz interior. Por que tentar seguir argumentos, narrativas, doutrinas e comandos difíceis junto com outras pessoas quando podemos basicamente olhar para dentro para encontrar as respostas?

À medida que o crescimento do cristianismo se transfere para o sul do Globo, algumas formas são mais fiéis do que suas contrapartes mais liberais do norte. Os anglicanos na África frequentemente coçam a cabeça, imaginando qual possível conexão espiritual eles têm com a Igreja Episcopal nos Estados Unidos. E, no entanto, o “entusiasmo” americano continua a se espalhar como fogo em formas extremas de reavivamento, pentecostalismo e “evangelho da prosperidade”. Protestantes conservadores se tornaram hábeis em detectar o liberalismo a quilômetros de distância. Mas nós não somos muito bons em reconhecer variedades mais fundamentalistas de entusiasmo gnóstico, mesmo quando estamos nadando nele.

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Então, o que exatamente estamos celebrando nestes 500 anos da Reforma? Estamos nos regozijando na Reforma da doutrina e adoração da igreja, longe da religião centrada no homem para uma fé centrada no Deus Triúno e no evangelho de sua graça salvadora somente em Cristo, recebida somente através da fé, comunicada através da Palavra e dos sacramentos? Somente? Ou estamos celebrando o entusiasmo radical que nossa cultura confunde com a Reforma: o eu autônomo, o individualismo, o livre-arbítrio, a experiência interior e a razão?

Enquanto muitas pessoas estão debatendo este ano se a Reforma acabou, meu pensamento é este: Realmente alguma vez ela saiu do chão? Sim, a princípio, houve uma maravilhosa recuperação do evangelho e uma sensação de que somos totalmente dependentes de Deus e de sua graça em Jesus Cristo. Em muitas partes do mundo, os efeitos dessa recuperação ainda estão sendo sentidos com força. Mas na cultura moderna em geral, a Reforma Magisterial perdeu terreno para os entusiastas da esquerda e da direita. Agora que temos tentado o Protestantismo Radical por vários séculos, a melhor maneira de celebrar a Reforma seria dar a chance de ela ser novamente ouvida.

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