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CHASQUI Boletim Cultural do Ministério de Relações Exteriores Ano 14, número 29 2016 A POESIA DE BLANCA VARELA / A ARTE DE TORRE TAGLE VARGAS LLOSA: O ESCRITOR ENTREVISTADO / A FILOSOFIA DE P. S. ZULEN PABLO MACERA: A HISTÓRIA REUNIDA O CORREIO DO PERU Retrato de mulher com criança nos braços, de Baldomero Alejos. S.f.

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CHASQUIBoletim Cultural do Ministério de Relações ExterioresAno 14, número 29 2016

A POESIA DE BLANCA VARELA / A ARTE DE TORRE TAGLEVARGAS LLOSA: O ESCRITOR ENTREVISTADO / A FILOSOFIA DE P. S. ZULEN

PABLO MACERA: A HISTÓRIA REUNIDA

O CORREIO DO PERU

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CHASQUI 2

Primeiro foi Ese puerto existe. A bela e jovem poetisa Blanca Varela acabava de se casar

com o pintor Fernando de Szyszlo, com quem partira numa mítica viagem a Paris. Como ela mesma disse, naquele tempo eram «jovens provincianos, intimidados pelas luzes da cidade grande ». Chegaram «muito desconcertados, com mais ilusões que dinheiro»; procuravam «através da arte, da poesia, uma nova maneira de ser e de estar na-quele mundo ‘moderno’ [em] que tínhamos que aprender a viver». Paris era uma cidade da pós-guerra, cheia de privações, mas também de luzes. Lá, o jovem casal conheceu Octavio Paz: «Sem exagero, Paz foi nosso Virgílio naquela selva infer-nal e ao mesmo tempo celeste que era Paris na época». Foi ele quem os pôs em contato com artistas lati-no-americanos como Julio Cortázar e o poeta Carlos Martínez Rivas, entre outros. «Octavio também nos levou até as margens de outro rio, que não o Sena, que parecia adormecido, mas onde rugia, má-gico, como sempre o surrealismo». No início com De Szyszlo, depois sozinha, Blanca ficou em Paris por quase uma década: conheceu André Breton, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Michaux, Giacome-tti, Léger. «Foi uma época feliz e trágica ao mesmo tempo. Foi dura a aprendizagem de vida, quando tentamos virar pessoas, seres reais». Foi definitivamente o tempo e o lugar em que Blanca Varela esco-lheu a poesia como seu «inevitável e dolorido ofício».

Foi justamente Octavio Paz quem em 1959, dez anos após iniciada sua experiência parisiense, lhe deu o «melhor presente de toda a vida». Ele pediu e publicou seus poemas com o título Ese puerto existe y otros poemas (Xalapa, Universidad Veracruzana, 1959). Originalmente ia se chamar Puerto Supe, nome da praia no litoral norte do Peru onde Blanca passou alguns verões de sua infância; também outros, na casinha de praia habitada por José Maria Arguedas e as irmãs Bustamante. Octavio Paz disse que aquele era um título muito feio. Blanca revidou: «Mas, Octavio, esse porto existe». Nesse momento, ele respondeu: «Esse é o título». Foi as-sim que saiu à luz «o canto solitário de uma jovem peruana», como Paz qualificou a poesia de Blanca Varela no prólogo que escreveu «para mi-nha surpresa, sem eu ter pedido».

Blanca retornou para o Peru, de-pois morou um tempo em Washin-

gton, em Ithaca (Nova Iorque) e finalmente fixou residência em Lima. Em 1963 publica Luz de día; em 1971, Valses y otras falsas confesio-nes; em 1978, Canto villano. Todas eram edições pequenas, sempre feitas graças à insistência de amigos que praticamente a obrigaram a desengavetar seus textos.

Aprendeu de seus mestres César Moro e Emilio Adolfo Westphalen «que o silêncio também alimenta a poesia».

Em 1986, no Fondo de Cultura Económica (México), reúne sob o título de Canto villano todos os poe-mários dispersos. Em 1996 aparece uma reedição ampliada com dois novos livros que a poetisa tinha escrito: Ejercicios materiales e El libro de barro. Concierto animal foi publi-cado no Peru em 1999 e em 2000 o Círculo de Lectores editou Donde todo termina abre las alas, que inclui todos os livros e que finaliza com El falso teclado a série mais recente de poemas, inédita até então.

IIBlanca Varela assumiu, desde muito cedo e para sempre, um compromis-so radical com a poesia, entendida não apenas como a simples produ-ção de versos mais ou menos belos na busca de efeitos retóricos. Paz disse no prólogo: «Blanca Varela não se satisfaz com suas descobertas nem fica embriagada com seu can-to». Longe de qualquer pretensão

complacente, longe de escrever para agradar, o programa poético de Blanca Varela, como aponta Roberto Paoli, «é fiel a sua pessoal escavação, a seu rigor ético que é, ao mesmo tempo, uma espécie de asce-tismo estético». Ascetismo estético jamais traído em nome das modas ou das experimentações formais e menos ainda do hermetismo que se nega à comunicação. Se bem a poesia de Blanca Varela não é «fá-

cil» no sentido convencional, sua dificuldade não passa pela escuridão voluntária de quem evade a comu-nicação: para ler Blanca é preciso se dispor ao sobressalto, à tensão, à desesperança e ao medo; porque seu olhar nos obriga a enxergar o que não queremos ver nem saber, aqui-lo que dolorosamente preferimos negar. É preciso treinar a releitura, voltar uma e outra vez aos poemas e fechar os olhos para fazer possível

BLANCA VARELARETORNO À RAÍZ

Giovanna Pollarolo*A poesia de Blanca Varela (Lima, 1926-2009) passou a ser um dos referentes da lírica ibero-americana

contemporânea. Durante seus últimos anos de vida, Varela obteve os prêmios Octavio Paz (2001), Federico Garcia Lorca (2006) e Reina Sofia (2007). O texto a seguir foi lido num dos últimos eventos públicos em que a poetisa

esteve presente, em Lima.

Blanca Varela por volta da 1970.

Foto

: Mar

iella

Ago

is.

Blanca Varela com os filhos.

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a comunicação, a «comunhão», diria Paz, e assim entregar-nos às paisagens interiores, cheias de materialidade e silêncios, ao caos dos mundos fragmentados e das batalhas contra a própria sombra.

Poesia de busca. A consciência da poetisa reconhece que a palavra é apenas artifício, máscara, mentira: as confissões são falsas, o canto é vilão, o concerto é animal, o teclado do escritor é falso. Entretanto, a linguagem é a única arma que pos-sui para seu cometimento; mesmo sabendo de antemão que o poema é impossível, que não há palavras para aquilo que é inexprimível, busca uma e outra vez: transitando da luz para a sombra, da noite para o dia, da luz para o nada. A partir do desespero, como único cami-nho, embora o único destino seja a derrota...

E tudo deve ser mentiraporque não estou no lugar de minha alma.Não me queixo da boa maneira.A poesia me satura.Fecho a porta.Urino tristemente sobre o mes-quinho fogo da graça.(Valses y otras falsas confesio-nes).…é preciso começar sempre

novamente. Como a eternidade de Sísifo e sua condena, é combate corpo a corpo com o poema:

Um poemacomo uma grande batalhaatira-me à areiasem outro inimigo além de mimeue o grande ar das palavras(Valses y otras falsas confesiones).A poesia de Blanca Varela ex-

pressa um permanente diálogo com a própria consciência, desdobrada, que pode ser um «outro», um «tu»

que somos nós os leitores comina-dos por essa voz afiada como nava-lha, seca e lacônica, mais confiada no silêncio que no grito, e que com dureza descarnada abre seus/nossos olhos e ouvidos desde sua própria náusea, desde o horror do desespe-ro e do saber que não há lugar para as quimeras nem para a esperança. Como para Paul Celan, caro poeta para Blanca Varela, a voz, a palavra, «viram o poema de alguém que observa, que está dedicado ao que aparece, que interroga ou interpela o que aparece; o poema se torna diálogo; e frequentemente, um diálogo desesperado».

Vamos dizer que ganhaste a corridaE que o prêmio era outra cor-ridaque não bebeste o vinho da vitóriamas teu próprio salque jamais escutaste ovaçõesmas latidos de cachorrose que tua sombratua própria sombrafoi tua única e desleal adver-sária.(Canto villano).É o diálogo desesperado com

a vida: «E de repente a vida / no meu prato de pobre / um magro pedaço de celeste porco / aqui no meu prato» (Canto villano). A vida como um magro pedaço de celeste porco, de uma vitela assediada por moscas varejeiras (Ejercicios materiales), animal pleno à mercê de «infamantes anjos zumbidores» diante de cuja contemplação a voz poética condensa a mais profunda dor nascida da compaixão:

ah, senhorque horrível dor nos olhosque água amarga na bocadaquele intolerável meio-dia

em que mais rápida que lentamais antiga e escura que a mortedo meu ladocoroada de moscaspassou a vidaTambém é «O animal que se

refestela na lama» (Concierto animal) e vai festejando, cantando, ao mata-douro: «é preciso o dom para entrar na poça»; é preciso ter o dom para persistir, sabendo que não existe outra saída «além da porta que nos entrega / à enlouquecedora matilha de nossos sonhos» (Canto villano).

Porque a partir da absoluta consciência da inutilidade de tudo, surge a dolorosa contradição vare-liana, a da «agonia gozosa», a de aceitação resignada, mas furiosa: «Ninguém vai abrir a porta para você», mas «continue batendo. Do outro lado se ouve música / Você está só, do outro lado / não querem deixar você entrar / Procure e volte a procurar, escale, grite. É inútil» (Valses y otras falsas confesiones). É dessa forma que o poema se cons-trói: ascendendo da noite «à escu-ridão mais plena» (El falso teclado) e sua existência desafia a mentira, o nada, o nojo, a desesperança. O que importa é o ato de o construir mesmo tendo a lucidez de saber que aspira ao impossível; o que importa é ser «o nadador contra a corrente / que ascende do mar ao rio / do rio ao céu / do céu à luz / da luz ao nada» (Canto villano).

E começar de novo, como após «Um naufrágio sem mar, sem praia, sem viajante. / Só a urgência, o desvelo, a absurda esperança» (El libro de barro): «Embora trilhar o invisível» (El falso teclado) enquanto se espera o momento de «Cheirar o que já foi vivido / e dar a volta / simplesmente / dar a volta» (El falso teclado).

IIITira o chapéuse tiverestira o cabeloque te abandonatira sua peleas tripas os olhosbota uma almase a encontrares.(El falso teclado).«Strip tease» é o título do poe-

ma acima, que faz parte de El falso teclado. A poetisa força a si mesma e seus leitores a se despir, a se despojar de todo artifício e do próprio corpo. Tudo é falsidade e adorno, mas alcançar a verdade, «encontrar a alma», «cantar desde o lugar de minha alma» é impossível. Assustadora ordem sem a farsa de promessa alguma, apenas a limpa e dramática aposta por aquilo que se sabe inatingível. Este poema é assim: duro e lacerante, profunda-mente verdadeiro. Blanca Varela é assim. Não escreve para comprazer nem para agradar nem para obter reconhecimentos e homenagens. O compromisso de Blanca Varela é assim: sua poesia é lugar da ex-ploração, das perguntas, de tudo que é inquietação e que «deve ser resolvido através da poesia. A poesia é isso, não é?», questiona Blanca. Sim, a poesia é isso graças a ela.

* É poeta e narradora, além de professora na Pontificia Universidad Católica del Perú. O tex-to acima foi também publicado em: Blanca Varela, El libro de barro y otros poemas. Lima, INC, 2005.

A Casa da Literatura Peruana organizou este ano a exposição «Presentimiento de la luz» (agosto-dezembro) em homenagem aos 90 anos do nascimento de Blanca Varela. Veja também: Ina Salazar, La poesia ante la muerte de Dios: César Vallejo, Jorge Eduardo Eielson y Blanca Varela. Lima, PUCP, 2015; Mario Montalbetti. El más crudo invierno. Notas a un poema de Blanca Varela. Lima, Fondo de Cul-tura Económica, 2016. Da poetisa peruana, foi publicado recentemente Poesia reunida. 1949-2000. Lima, Librería Sur.

TRÊS POEMAS DE BLANCA VARELA

[CLARO ESCURO]

Eu sou aquelaque vestida de humanaoculta o raboentre a seda friae enrola sobre negros pensamentosuma mechaainda escura

Ou não sou isso aquimas no ar nublado do espelhoolhar alheio mil vezes ensaiadoate virar cegueira

a indiferença o ódioe o esquecimentona folhagem de sombras e de vozescom que sou assediada e rejeitada

quem eu fuiquem eu souquem jamais sereique era então

entronizada entre o sol e a luaentronizadacontempla-me a mortenesse espelhoe me visto diante dela

com luxo tão severoque dói a carneque sustento

a carne que sustento e alimentao verme postremoque buscará nas águas mais profundasonde semeara gema de seu gelo

como nos velhos quadroso mundo párae terminaonde o a moldura apodrece

CLAROSCURO

yo soy aquellaque vestida de humanaoculta el raboentre la seda fríay riza sobre negros pensamientosuna guedejatodavía oscura

o no lo soy aquísino en el aire nublado del espejomirada ajena mil veces ensayadahasta ser la ceguera

la indiferencia el odioy el olvidoen la fronda de sombras y de vocesme acosan y rechazan

la que fuila que soyla que jamás seréla de entonces

entronizada entre el sol y la lunaentronizadame contempla la muerteen ese espejoy me visto frente a ella

con tan severo lujoque me duele la carneque sustento

la carne que sustento y alimentaal gusano postreroque buscará en las aguas más profundasdónde sembrarla yema de su hielo

como en los viejos cuadrosel mundo se detieney terminadonde el marco se pudre

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PABLO MACERAA HISTÓRIA REUNIDA

Celebramos o fato de o Fondo Editorial do Congresso da República publicar uma

boa parte da obra historiográfica de Pablo Macera, cuja seleção foi encomendada ao historiador da Universidad San Marcos Miguel Pinto. Os dois primeiros volumes já publicados incluem Tres etapas en el desarrollo de la conciencia nacional, uma obra de Macera que não cons-ta no volume Trabajos de Historia, publicado pelo Instituto Nacional de Cultura em 1977. Nesse sentido, trata-se de um valioso esforço que resgata e difunde a obra de um dos historiadores peruanos mais relevan-tes do último meio século.

A importância de Macera ul-trapassa os múltiplos temas sobre os quais publicou em formatos acadêmicos científicos. Sua partici-pação nos debates nacionais como um intelectual comprometido foi fundamental para saber como o Peru de seu tempo era concebido, especialmente nas décadas de 1970 e 1980. Suas entrevistas naquela época, múltiplas e profundas, eram de grande interesse para muitos in-telectuais, estudantes universitários e interessados na política nacional. Suas preocupações foram várias: a soberania do mar, aspectos estatísti-cos das contas do Peru, a definição e o proceder da esquerda no pais, os partidos políticos, diversas persona-lidades, entre outras. Para Macera, o passado/presente e o futuro eram planos indissociáveis, razão pela qual, sua inter-relação era medular para seu trabalho como intelectual. Muitas de suas melhores entrevistas foram marcadas pelas incertezas do país, particularmente no âmbito econômico, a crise política e a vio-lência interna (veja Pablo Macera, Penas y furias. Lima, Mosca Azul, 1983). Macera também foi um dos grandes agentes das artes populares no Peru. Sua sensibilidade artística não só permitiu que escrevesse im-portantes trabalhos a respeito, mas também que se tornasse um grande colecionador (parte de sua coleção está hoje na Casa de la Moneda). Macera deve ser lembrado como um grande promotor das exposições de arte popular, que além do mais, ajudou artistas populares da serra e da selva a obterem merecido reco-nhecimento. Ao longo de sua vida, Macera se relacionou como amigo, cientista e promotor com inúmeros artistas populares.

Pablo Macera Dall’Orso, nascido em Huacho em 1929 —ano da gran-de crise do capitalismo—, pertence à geração de 1950. Na Universidad San Marcos, fez parte do círculo de discípulos do mestre Raúl Porras Barrenechea, entre os quais des-tacam Mario Vargas Llosa, Carlos Araníbar, Hugo Neira, Waldemar Espinosa e outros. Quando da mor-te do mestre, Macera deu um dos discursos de ordem. Como para seu

mestre, a Universidad de San Marcos foi essencial em sua vida acadêmica e política. Em 1966, durante o reitorado de Luis Alberto Sánchez, faz 50 anos, fundou o Seminário de Histó-ria Rural Andina, do qual foi diretor até 2000. Mesmo sem contar com um orça-mento adequado, o seminário se tornou um espaço para o diálogo, aprendizado, pesquisa e divulgação científica de historia-dores, arqueólogos, antropólogos e soció-logos, e não apenas para quem fosse de San Marcos, mas tam-bém para estudiosos das universidades Católica e Federico Villarreal. A preocupação constante de Macera e do seminário era Peru em clave andina, o Peru da segunda metade do século XX, em mudança constante, com as marcas da violên-cia política, expressa de múltiplas formas que não escaparam ao inte-resse do intelectual.

Qual o Peru que Macera viveu? Nosso historiador nasce num Peru oligárquico; é o país dos grandes senhores, com extensas árvores genealógicas, daquelas que pre-tendiam estender a linha de seus ancestrais até tempos anteriores à era do adubo das aves do Pacífico. Isto é, os grandes senhores tentavam se diferenciar dos novos ricos do século XIX. O mundo deles, porém, ia desaparecendo, e Macera era testemunha de uma nova sociedade emergente: a das migrações andinas e da recriação de novas estruturas sociais pouco democráticas e pouco igualitárias. Houve grandes deslo-camentos do campo para a cidade, e as diversas faces do país se multi-plicavam, demandando uma nova representação. Novos atores —índios e não índios— procuravam seu lugar de um modo diferente nas novas estruturas de poder.

Nesse contexto histórico, Ma-cera pertencia a uma geração de historiadores que trabalhavam no-vos temas na história. Muito além dos clássicos temas como a história política, Macera aborda questões econômicas, sociais, culturais, de gênero, entre outras. São tantos os temas abordados apenas nos dois primeiros volumes editados pelo Congresso, que não resta dúvida nenhuma: Macera é um dos grandes motores da abertura da temática histórica.

Isaiah Berlin classifica os inte-lectuais em dois tipos: as raposas e os ouriços. Enquanto os ouriços enfatizam uma ideia para compreen-

der o mundo, as raposas repelem a monotemática e enfatizam a neces-sidade de diversos focos e aspectos para compreender, vamos dizer, o Peru. A distinção de Berlin pode ser percebida na comparação entre Macera e Hernando de Soto. De Soto representa os ouriços; enfa-tiza o estudo da propriedade para compreender o desenvolvimento econômico e político de um país. Já Macera é uma raposa, fato atestado pela impossibilidade de resumir seu pensamento sobre o Peru. Muitos de seus trabalhos discutem aspectos e temáticas diferentes entre si. Veja-mos a diversidade apresentada nos dois primeiros volumes editados pelo Congresso:

Há um conjunto de trabalhos que tratam o tema da cultura, do imaginário político e da educação na época colonial, especialmente no século XVIII: Tres etapas en el desarrollo de la conciencia nacional, Bibliotecas peruanas del siglo XVIII, El lenguaje y modernismo peruano del siglo XVIII, El probabilismo en el Perú durante el siglo XVII, entre outros. Para os historiadores, os trabalhos de Macera sobre as bibliotecas, por exemplo, são fonte fundamental para a história do livro no Peru, que deriva nas práticas de leitura, coisa que na atualidade já é tema da história cultural. Os trabalhos sobre o probabilismo que tratam o tema da moral e da verdade são muito discutidos entre os historiadores da filosofia peruana na atualidade.

Um segundo conjunto de traba-lhos discorre sobre sociedade e eco-nomia: Iglesia y economía, Instrucciones para el manejo de las haciendas jesuitas del Perú republicano (ss. XVII-XVIII), El guano y la agricultura peruana de exportación 1909-1945, Feudalismo y capitalismo en el Perú, Estadísticas históricas del Perú del sector minero. Macera tem dois grandes méritos na

história econômica do Peru e deve ser considerado como um de seus maiores intérpretes; discute temas que vão desde o debate clássico entre capitalismo e feudalismo no regime colonial ou republicano até a forma de se administrar as fazendas. Além disso, Macera, com o Seminario de Historia Rural Andina, reuniu uma grande quantidade de fontes (desde instruções administrativas até infor-mação quantitativa) que fazem parte fundamental dos estudos econômi-cos atuais.

Um terceiro grupo de trabalhos trata sobre a tarefa do historiador. Muitas vezes é severo com os histo-riadores, especialmente com os cha-mados «conservadores» (La historia del Perú: ciencia e ideología); outras vezes discute de modo simpático com a historiografia (El Perú de Basa-dre). Um quarto grupo, considerado como «outros», é uma variedade de trabalhos que demonstra tanto sua imaginação quanto sua habilidade. Nesse grupo, Sexo y coloniaje destaca por seu carácter inovador, consi-derando o momento em que foi publicado.

A luta pela representação do passado e do presente são parte con-siderável da tarefa de um científico social. Certamente, os trabalhos de Macera fazem parte de uma nova maneira de ver o Peru, crítica, an-gustiada pela interpretação de nosso passado e do presente, que descreve uma nação fragmentada e conflitiva. Muitas vezes, essa percepção, espe-cialmente em suas entrevistas, gera em Macera uma postura de medo diante do futuro, que compartilho parcialmente.

* É doutor em história pela Universidade de Chicago (1996). Estudou história na Pontificia Universidad Católica del Perú. Sua tese doutoral foi publicada sob o título: Caudillos y constituciones. Perú 1821-1845 Lima, IRA-FCE, 2000.

Cristóbal Aljovín de Losada*É reunida e publicada uma série de obras escolhidas do destacado historiador e mestre da

Universidad Nacional Mayor de San Marcos.

Pablo Macera.

Foto

: Car

etas

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CHASQUI 5

Fragmentos de um estudo de Pablo Macera sobre os forjadores da consciência nacional.

OS AMANTES DO PAÍS*

Sobre a tarefa que os redatores de Mercurio Peruano se propuse-ram —estruturar a consciência

nacional— Riva-Agüero disse que tiveram que fazer em poucos anos um trabalho que teria precisado de séculos. A natureza e o valor dessa obra foram avaliados com maior ou menor justeza pelos principais pesquisadores de nos-sa História. A historiografia estrangeira (Mitre e Vicuña, por exemplo), mesmo elogiando sua qualidade intelectual, restam importância a sua contribuição para a empresa emancipadora.

No Peru o elogio quase unânime alternou com as interpretações mais díspares. Javier Prado diz sobre eles que «homens de tamanha grandeza já mereciam ser livres», e acrescenta que revelam «intuições e ensinamentos sur-preendentes». Riva-Agüero encontra em Os Amantes do País o preâmbulo de uma consciência nacional; mas, com sua declarada relutância ao elo-gio, aponta que diante dos tradicionais pródigos louvores… «sente-se algo semelhante à desilusão»; Belaunde in-terpreta a ideologia de Mercurio Peruano como uma síntese das concepções da ilustração e da religião cristã; Raúl P. Barrenechea, em sua Historia del perio-dismo peruano, considera que eles são os «construtores serenos do futuro», elogiando em sua obra duas virtudes fundamentais: a qualidade intelectual e a contida afirmação do sentimento patriótico. Basadre opinou que os membros da geração de Mercurio Perua-no têm «um secreto sossego, um har-monioso racionalismo» e que em vão procuraremos neles «a íntima tortura, a tumultuosa presença de contrários atavismos».

Essas interpretações indicaram, desde diversos ângulos, algumas essên-cias e valores do movimento geracional de Mercurio Peruano. Continuando seus ensinamentos, temos de tentar uma caracterização do pensamento nesse jornal, significando sua contribuição para o desenvolvimento da consciência nacional.

A empresa da Sociedade Amantes do País teria sido impossível sem as circunstâncias políticas favoráveis de seu tempo. Os últimos anos do século são caracterizados pela calma e tolerân-cia relativas que conseguiu instaurar a ilustração e a prudência do vice-rei Gil y Lemos (1790-1796). Leitor incansável dos autores franceses, foi um típico representante da etapa crepuscular do despotismo ilustrado. Protegeu ex-pedições marítimas; realizou censos e cartografias, deu ao Peru um descanso intelectual entre os desastres políticos e econômicos, que foi aproveitado pelos Amantes do País a favor da consciência patriótica. Simultaneamente, o pen-samento ilustrado aumentava sua in-fluência, entrando numa etapa imedia-ta à ação. São os tempos próximos das revoluções norte-americana e francesa. Os Amantes do País, herdeiros das in-quietações nacionalistas anteriores à fé tradicional e à doutrinação ilustrada, irão definir sua posição com relação a essas influências através das exegeses de nossa realidade e de seus propósitos de reforma.

A modalidade de associação escolhida por eles —uma Sociedade de Amantes do País— era uma mani-festação típica do século XVIII. Não houve um só país na Europa em que os homens instruídos não se associassem de diversas formas, sempre com vistas ao intercâmbio e divulgação culturais. «Para se obter do pensamento um bom proveito —diz Mercurio Peruano— o comércio dos sábios é indispensável». Uma das formas desse proveitoso co-

mércio foram as sociedades científicas de natureza acadêmica, quase sempre propiciadas pelas autoridades. Em menos de trinta anos —diz Jeans e Ha-zard— as principais capitais ganharam numerosas sociedades de física, astro-nomia, ciências naturais: Academia de Berlim (1744), Academia de Estocolmo (1739), Real Sociedade de Copenha-gue (1745), Instituto de Ciência de Bolonha, etc. Simultaneamente a esses colégios científicos, outras associações de índole mais prática e com propósito mais decidido a divulgar os conheci-mentos se desenvolviam. Na Espanha foram as chamadas Sociedades Econô-micas de Amantes do País que, com antecedentes na Conferência de Bar-celona na Academia de Agricultura de

Lérida, tiveram sua primeira expressão na Sociedade Econômica Vascongada, fundada em 1763 e posteriormente imitada pela Sociedade Econômica de Madri e pelas de Sevilha e Valência, entre outras cidades espanholas. Essas sociedades tiveram uma preocupação decididamente reformista e algumas delas tinham entre seus membros aque-les que, como Cabarrús, Floridablanca, Jovellanos, apresentavam para o rei projetos de reabilitação econômica que nem sempre receberam a atenção necessária.

Além da nossa Sociedade Amantes do País, dentre outras semelhantes às espanholas na América poderia ser mencionada a dos Filósofos Mexica-nos, que publicou a Gaceta, o Diario

Civil e a Revista de Historia Natural, e mais tarde, a Sociedade Patriótica e Literária, proposta na Argentina ao vice-rei Avilés por Jaime de Bausate e Mesa (1800).

No Peru o desejo de associação ilus-trada é representado pela Sociedade de Amantes do País, precedida pela

Sociedade Filarmônica e seguida pela Academia Limana.

Anteriores a elas, podem ser cita-dos alguns pontos precursores dessa nova paixão por «unir o homem com o homem —como diz Mercurio Peruano— e conciliar a uniformidade de seu cará-ter… no comércio delicioso das ideias». Esses pontos eram as tertúlias e os cafés de Lima. Enquanto nas mansões de Orrantia e Casa Calderón, nas casas

de Unanue, Egaña e em muitas outras, multiplicavam-se os encontros para dis-cutir temas culturais, vão aparecendo os cafés em Lima.

Desde 1771, quando foi aberto o primeiro deles em Santo Domingo, os cafés foram frequentados com entusias-mo. Em 1788, já havia seis na capital. A bebida excitante, símbolo da con-versa, substitui o chá caseiro e crioulo que requer —como atinadamente diz o sociológico Mercurio Peruano— «um repouso e cautela que não são compa-tíveis com a publicidade de uma loja». No «Retrato histórico y filosófico de los cafés de Lima», aparecido em Mer-curio Peruano, esses centros de reunião são qualificados como instrumentos de ilustração dos homens. «As discussões

literárias —diz— começam a acontecer neles [os cafés]… já são ponto de reu-nião que aproximam os homens de talento, facilitam o comércio delicioso das descobertas caseiras, excitam uma nobre emulação pública e apuram as combinações científicas». Foi nesse meio, inquietado pelas tertúlias no-turnas e os prolongados encontros em cafés, onde surgiu a Sociedade de Amantes do País, culminando esta necessidade de comunicar e divulgar o conhecimento.

Qual a origem da Sociedade de Amantes do País? O próprio Mercurio Peruano diz: «Em 1787, Hesperiófilo (José Rossi y Rubio) parou de viajar por causa de um engano da fortuna se estabeleceu nesta cidade». O imigrante quis esquecer esse engano com a equita-ção, a caça e as leituras. Ele costumava sair saudosamente pelos arredores de Lima. Durante um dos seus passeios, conheceu Hermágoras, Homónimo e Mendiridio (José Maria Egaña, De-metrio Guasque e…). Discutiram, no crepúsculo de Lurín, sobre filosofia e ciências naturais. O encontro casual se tornou reunião periódica: iam à casa de Egaña todos os dias de «oito às onze», «retratavam matérias literárias e discutiam notícias públicas». Reuniões puramente racionais e científicas, qua-se universitárias. «A detração, o jogo, as bagatelas e os contos amatórios eram prescritos da congregação de filósofos». Assistiam à tertúlia Unanue e três mu-lheres, desconhecidas hoje, ocultas sob os pseudônimos de Doralice, Floridia e Egereia.

Os membros da Sociedade Filar-mônica, como foi chamada, costuma-vam redigir suas discussões em atas, infelizmente perdidas. Talvez muitas delas, como as posteriores da Socieda-de Amantes do País, constituíram os principais artigos do Mercurio Peruano [...].

A maioria dos Amantes, homens por volta dos quarenta anos, no auge de suas vidas, pertenciam às categorias médias da rígida hierarquia social do vice-reino, excetuando seus dois pro-tetores. Como eles próprios diziam, «ligados a ocupações ativas das quais dependiam a honra e a subsistência de nossas carreiras, devíamos dar priori-dade ao desempenho e adiantamento das mesmas». Eram «todos jovens empregados a serviço do rei, outros, formados nos diversos exercícios da universidade, outros, ministros do altar». Tais limitações econômicas, a preocupação pela « honra e a sub-sistência», foram reconhecidas por eles, mas sem ressentimento algum. Queixavam-se de não ter tempo «para meditar, estudar, estender nosso pen-samento, cuidar da imprensa, congre-gar nossas reuniões… mais tempo que aquele que usurpamos à diversão e ao sono».

Sem dúvida, a posição social mé-dia favoreceu a dedicação apaixonada ao exercício da inteligência. Muitos, como Unanue, deviam a ela todo seu prestígio. Groeythusen apontou que as classes médias intelectuais do século XVIII criaram ou abraçaram decididamente as reformas filosóficas porque elas atendiam os valores que elas mesmas cultivavam: inteligência, esforço pessoal, concepção raciona-lista do mundo. Também é possível dizer que na Sociedade de Amantes do País houve um grupo homens que se dedicaram à inteligência porque, em grande medida, deviam tudo a ela.

* Em: Pablo Macera, Obras escogidas de historia. Miguel Pinto, compilador. Lima, Fondo Editorial del Congreso del Perú, Lima, 2014.

CHASQUI 6

VARGAS LLOSA:O ESCRITOR ENTREVISTADO

Jorge Coaguila*Com as comemorações pelos 80 anos do Nobel peruano, foi editada uma antologia de suas novelas na Pléiade,

coleção francesa que reúne o cânone da literatura universal. No Peru foi reeditada uma seleção de entrevistas feitas ao grande escritor.

Cada vez que voltava para Lima, costumava assistir melodramas mexicanos

nos cinemas de bairro, enquanto aborrecia as longas-metragens do britânico Alfred Hitchcock. Como júri do Prêmio Biblioteca Breve, votou contra La traición de Rita Hayworth (1968), primeira novela de Manuel Puig, porém, mais tarde publicou um elogioso artigo sobre esse narrador argentino. No início da década de 1960, colaborou com a Frente de Liberação Nacional da Argélia e alguns anos depois lutou contra todo tipo de nacionalismo. Despreza o livro que sua ex mulher Julia Urquidi escreveu sobre seu primeiro casamento, mas adora fuçar na vida privada de escritores que admira, como Gustave Flaubert ou Victor Hugo. Essas são algumas das confissões de Mario Vargas Llo-sa que o leitor interessado poderá encontrar em Entrevistas escogidas1, quarta edição, volume que reúne 35 conversas realizadas por diversos jornalistas, de 1964 a 2015.

Qual a importância das entre-vistas a escritores? Em muitos casos, permitem conhecer suas reflexões sobre a própria obra. Entretanto, algumas declarações confundem, e por isso não devemos nos prender às afirmações do criador. «A gente nun-ca é bom juiz daquilo que escreveu», confessa Vargas Llosa a seu colega, o novelista Edgardo Rivera Martínez.

Às vezes, o escritor pode se de-salentar e achar que tudo que criou não tem valor algum, mas isso não deve ser motivo para um crítico arra-sar com uma produção. Além disso, a resposta que ele daria a hoje a uma determinada pergunta dificilmente seria a mesma daqui a três décadas. Portanto, temos que escolher cri-teriosamente o que vamos aceitar daquilo que ele declarou.

Também pode acontecer que um livro acabe sendo um produto alheio às intenções do literato. A final, é mais importante o que o leitor encontra nele que o que o autor quis dizer. O próprio Vargas Llosa manifesta em seu livro de ensaios La verdad de las mentiras (1990): «As afirmações de um no-velista sobre sua própria obra nem sempre são esclarecedoras; podem até ser confusas, errôneas, porque o texto e seu contexto são para ele dificilmente dissociáveis e porque o autor tem tendência a ver no que fez aquilo que aspirava a fazer (e ambas as coisas bem podem coincidir, mas muitas vezes divergem consideravel-mente)».

De outro lado, em Entrevistas escogidas podemos observar como algumas obras amadureceram. O caso mais evidente é El paraíso en la otra esquina (2003), cujo processo durou quase meio século. Já em 1984, Vargas Llosa disse ao jornalis-ta Jorge Salazar que preparava uma

novela sobre a ativista francesa Flora Tristán.

Isso quer dizer que é uma obra mais bem acabada? Não, simples-mente significa que a elaboração desse livro exigiu muito mais tempo. Não tem nada a ver com o resultado, embora duas das novelas que mais trabalho deram ao narrador, como Conversación en la Catedral (1969) e La guerra del fin del mundo (1981), tenham tido grande acolhida. Tam-bém acontece o contrário. Quando disse a Sonia Goldenberg que estava escrevendo El hablador (1987), afir-mou: «Ainda falta muito». Porém, a novela foi publicada no ano seguinte.

Entre outras curiosidades, o leitor poderá se deparar por exem-plo com a chegada do reconhecido jornalista Alfonso Tealdo com uma hora de atraso à entrevista marcada com Vargas Llosa em 1966. Também verá como a leitura de uma notícia de no jornal levou o novelista a escrever pelo menos dois livros: Los cachorros (1967) e Historia de Mayta (1984). Além disso, saberá sobre a mudança de título de algumas obras: El guardaespaldas e Vida y milagros de Pedro Camacho, por exemplo, recebe-ram os títulos definitivos de Conver-sación en la Catedral e La tía Julia y el escribidor (1977), respectivamente.

Algumas entrevistas, como a de Sonia Goldenberg, revisam a obra do escritor, outras focam numa obra, como a realizada por Carlos Batalla, que analisa El paraíso en la otra esquina. Nesse sentido, não há uniformidade. Embora o livro pre-tenda ser orgânico, os temas pulam

de um lado para a outro. Há casos em que as conversas são centradas num assunto, como cinema ou a amizade de Vargas Llosa com o con-tista Julio Ramón Ribeyro.

Outro assunto é a singular re-lação do escritor com os meios de comunicação. Ele chegou a declarar que 80 por cento do jornalismo na-cional é «desprezível e vergonhoso». Entretanto, ele mesmo surgiu desse meio: o narrador arequipenho se iniciou aos 15 anos de idade como repórter no extinto diário La Cróni-ca. Depois se tornou diretor de in-formações em Radio Panamericana, entrevistador e comentarista literá-rio no jornal El Comercio, tradutor na agência de notícias France-Presse, condutor de um programa radial em Rádio Televisão Francesa, articulista do jornal Expreso, condutor do pro-grama de televisão La Torre de Babel e colunista do semanário Caretas e do jornal El País, entre outras publi-cações.

O que atrai Vargas Llosa do jor-nalismo? Num texto de El lenguaje de la pasión (2001), seleção de seus artí-culos do jornal El País, confessa: «O jornalismo foi a sombra de minha vocação literária; seguiu-a, alimen-tou-a e impediu-a de se afastar da realidade viva e atual, numa viagem puramente imaginária».

Entretanto, em sua obra o jor-nalismo é mal visto ou exercido por personagens afundados no fracasso: em Conversación en la Catedral, o repórter Carlitos diz a seu colega Santiago Zavala: «É preciso ser ma-luco para entrar num jornal quando

se tem algum amor pela literatura. O jornalismo não é uma vocação, mas uma frustração. A poesia é a maior coisa que existe».

Outros casos: em Pantaleón y las visitadoras (1973), o jornalista radial Sinchi é um chantagista que oferece seu silêncio ao capitão do exército Pantaleón Pantoja em troca de di-nheiro; em La tía Julia y el escribidor, o redator de boletins Pascual tem uma «irreprimível predileção pelo atroz» e Pedro Camacho acaba humilhado como informante de policiais; em La guerra del fin del mundo, o barão de Cañabrava avisa o coronel Moreira César sobre «o jornalista míope», inspirado no escritor brasileiro Eu-clides da Cunha: «Sua vocação é a intriga, a inconfidência, a calúnia, o ataque arteiro. Era meu protegido e quando passou para o jornal de meu adversário, tornou-se o mais vil de meus críticos»; em Cinco Esquinas (2016), as críticas são dirigidas à imprensa amarela.

Apesar das alfinetadas, os jor-nalistas anseiam conseguir uma entrevista com consagrado nove-lista, muitas vezes para pedir suas opiniões políticas ou sobre outro assunto qualquer, como se ele fosse uma espécie de oráculo. Tomara que Entrevistas escogidas permita a muitos conhecer melhor um dos escritores imprescindíveis da língua castelhana.

* Jornalista e escritor. Especialista em Julio Ramón Ribeyro e Mario Vargas Llosa.

1 Mario Vargas Llosa: Entrevistas escogidas. Seleção, prólogo e notas de Jorge Coaguila. Lima, Revuelta Editores, 2016.

Mario Vargas Llosa.

CHASQUI 7

A ARTE DE TORRE TAGLELuis Eduardo Wuffarden*

Um impecável volume mostra o patrimônio artístico da Chancelaria do Peru.

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CHASQUI 8

Há quase um século, quando designado oficialmente como sede do Ministério de Rela-

ções Exteriores do Peru, o Palácio de Torre Tagle começava a ocupar um espaço singular no imaginário do público nacional. Não só era a única mansão da antiga capital do vice-reino que ostentava a categoria palaciana, mas um edifício cujo pro-tagonismo na história do país tinha uma importância secular. Seu último proprietário colonial, José Bernardo de Tagle y Portocarrero, proclamara a Independência por primeira vez em Trujillo e foi o principal colaborador peruano de José de San Martín. Mais tarde, exerceu o comando supremo do país até em quatro ocasiões, antes de enfrentar seu polêmico final na era bolivariana. A casa foi preservada a través de todas essas transformações e, ao longo do século XIX, seus muros acolheram congressos internacionais, foram asilo e refúgio em tempos de guerra, além de albergar um dos museus de pintura mais importan-tes da cidade. Todas essas fases são sintetizadas hoje nesse monumento emblemático da diplomacia peruana, que conjuga suas altas funções oficiais com a conservação de um notável patrimônio artístico interior que não parou de crescer com o tempo.

Construído desde seus alicerces por um dos grupos familiares mais ricos da cidade, o imóvel constituiu um verdadeiro símbolo de prestígio social e seus detalhes foram cuidado-samente escolhidos, começando por sua localização no tecido urbano.

O enxoval dos marquesesComplemento lógico da riqueza arquitetônica do palácio era sua decoração interior, que certamente condizia com o suntuoso gosto da elite limenha, particularmente sensí-vel às manifestações daquilo que José Durand chamou de «luxo indiano ». Felizmente, foi conservado o elemen-to simbólico central e mais duradou-ro da casa: a galeria de retratos de seus sucessivos donos, que evidencia a continuidade do morgado. Porém, pouco sabemos do resto de objetos que faziam parte do enxoval original dos Tagle, pois a maior parte se per-deu e são muito poucas as referências a respeito […].

A Pinacoteca Ortiz de ZevallosPor volta de 1840, a única filha sobrevivente do quarto marquês, Josefa de Tagle y Echevarría, contraiu segundas núpcias com Manuel Ortiz de Zevallos y García, advogado e diplomático limenho de ascendência equatoriana, quem se tornou assim o quinto marquês consorte de Torre Tagle. Ortiz de Zevallos teve intensa atividade pública e chegou a exercer os cargos de ministro de Fazenda e Chanceler do Peru. Começava então

uma nova etapa para o morgado de Torre Tagle, inevitavel-

mente marcado pelo afã de recuperar a memória

de seus predecessores e pela consequente recuperação física do palácio familiar, muito danificado pelos saques e o embargo de bens sofridos a partir de 1824.

Feito o levantamento do embargo e após o retorno dos proprietários ao imóvel, foi preci-

so recondicionar quase todos os

ambientes interiores. Na tarefa, os novos

marqueses procuraram denodadamente, por

diversos meios, restaurar na medida do possível o

aspecto original da casa. Esse imperioso afã de restauração parece

ter dado origem à paixão pelo cole-cionismo artístico que desenvolveu

Manuel Ortiz de Zevallos y Tagle (1845-1900?), irmão do sexto mar-quês. Para o final do século XIX, efetivamente, ele chegou a formar a maior pinacoteca da cidade, e pro-vavelmente de toda a América do Sul, para ser instalada nos muros do palácio familiar. Um primeiro passo foi reunir peças procedentes de vários morgados limenhos: além do aporte da própria família Tagle, obras de importância foram fornecidas pelas casas de Aliaga, Velarde y Zevallos, bem como a descendência do capitão Martín José de Mudarra de la Serna, primeiro marquês de Santa Maria de Pacoyán […].

Mas o impulso definitivo da coleção só chegaria por volta de 1870, quando Ortiz de Zevallos era representante diplomático do Peru na Inglaterra. Esse ano comprou duas grandes coleções europeias, uma inglesa e outra italiana, que mandou pouco depois para o palácio familiar de Lima, para serem o ponto alto de sua pinacoteca. Ao chegarem as centenas de quadros, eles foram estudados e classificados por dois pintores estrangeiros ativos na cida-de: o frade austríaco Bernardo Maria Jeckel e o retratista espanhol Julián Oñate y Juárez, discípulo de Raimun-do de Madrazo. Em 1873 apareceu impresso o catálogo feito por ambos, e desde estão foi sabido que em Lima havia uma vasta pinacoteca privada que reunia a praticamente todas as escolas europeias, desde os primitivos italianos até os pintores do gênero do rococó francês, passando pelos grandes paisagistas holandeses, todos os mestres espanhóis do Século de Ouro, várias figuras estelares do bar-

roco flamenco e os grandes retratistas alemães do século XVII. No final da década, a irrupção da Guerra do Pací-fico (1879-1884) impôs uma pausa indefinida à iniciativa, que pareceu se agravar durante os longos meses da ocupação de Lima e sua conhecida sequela destrutiva. Nessas circunstân-cias, foi providencial para a preser-vação do palácio e suas coleções que ele se tornasse sede temporária da legação francesa […].

A dispersão definitiva da coleção começaria em 1918, após a venda do Palácio de TorreTagle ao Estado peruano. Mais tarde, na década de 1920, a maior parte das telas passaria para as mãos do empresário norte-a-mericano Clarence Hoblitzelle, quem deixou sua coleção como legado pessoal ao Museu de Dallas […]. Só um grupo menor das obras ficou em Lima, e foram paulatinamente vendidas a diferentes colecionadores, até restar no palácio atual apenas um pequeno conjunto de telas, como memória simbólica da pinacoteca que outrora sediou.

A Chancelaria e a Pátria NovaSó em 1920, concluído o governo de Pardo, a Chancelaria peruana foi instalada no Palácio de Torre Tagle […] como outros edifícios públicos de categoria, Torre Tagle se tornou um dos cenários favoritos para comemorações oficiais pelo centená-rio da Independência e da batalha de Ayacucho […]. Enquanto isso, a decoração dos salões e dependências interiores avançava lentamente. O processo acelerou no transcurso de 1923, quando o palácio foi designado como alojamento oficial do cardeal

Retrato equestre não identificado. Anônimo napolitano. Óleo sobre tela, 333 × 259,7 cm, aprox. 1680-1700. Rosa Juliana Sánchez de Tagle, primera marquesa de Torre Tagle, de Cristóbal de Aguilar. Óleo sobre tela, 189 × 128 cm, aprox. 1743-1756.

Mariscal Ramón Castilla, de Manuel Maria del Mazo. Óleo sobre tela, 123,5 × 107 cm, 1871.

CHASQUI 9

Juan Benlloch y Vivó, arcebispo de Burgos e representante diplomático da Espanha no mais alto nível […]. Impôs-se então claramente o gosto pelos estilos clássicos e historicistas, num sentido amplo. Nos salões prin-cipais, as mesas barrocas «coloniais» alternavam com cadeiras inglesas de estilo Reina Ana e Chippendale, embora não sempre se tratasse de móveis de época. O gabinete destina-do ao cardeal —previsto para o chan-celer— possuía móveis republicanos decorados com incrustações de bron-ze e um grande quadro devoto de San José rodeado de santos, de fina feitura cusquenha, com moldura neoclássica da mesma feitura. Para a sala de jan-tar cardinalícia, foi adquirida uma cristaleira de estilo neorrenacentista centro-europeu, pouco comum na cidade, que hoje pode ser apreciada junto ao escritório do chanceler. É provável que também entrasse nesse então um conjunto de sofás ou divãs neoclássicos de desenho norte-ame-ricano, que nos primeiros anos da República eram muito apreciados, fato que motivou o deslocamento de alguns ebanistas da Filadélfia para Lima, onde instalaram suas próprias oficinas[…].

Passando para o campo da pintu-ra, é interessante constatar que talvez a primeira aquisição oficial destinada à nova Chancelaria tenha sido um par de quadros de Teófilo Castillo, para os quais a arquitetura do palácio é fundo cenográfico nos episódios imaginários do passado vice-reinal […]. Entre as poucas peças artísticas procedentes da antiga Chancelaria, há três esculturas europeias de bron-ze ainda conservadas. São obras de

carácter alegórico, representativas do academicismo finissecular, adquiri-das em 1897 pelo governo de Recons-trução Nacional, presidido por Nico-lás de Piérola, destinadas ao salão de recepção do gabinete ministerial. A esses bronzes estrangeiros —titulados La Paz, La Fortuna e Pro Patria— se uni-ram as obras deixadas como emprés-timo pelo Museu Nacional daquele então, como a carroça dos condes de Torre-Velarde; a composição alegórica de Combate naval de Pacocha, do pin-tor franco-cubano Luis Boudat; Un paso difícil, obra de gênero atribuída a Francisco Masías; La Margarita, obra crucial da pintora acadêmica Rebeca Oquendo; e um conjunto significati-vo de retratos oficiais, entre os quais destaca a famosa efígie póstuma do Mariscal Ramón Castilla, executada em 1871 por Manuel Maria del Mazo.

Logo após terminado o Oncenio, em meio ao período de grande agita-ção política que sucedeu à queda de Leguía, Rafael Larco Herrera, minis-tro de Relações Exteriores da Junta Nacional de Gobierno constituída em 1931, doou esse ano à Chan-celaria a Venus india, escultura de bronze do mestre valenciano Ramón Mateu, quem tinha desenvolvido uma longa trajetória de trabalho no Peru durante a década anterior […]. com esse presente, Larco Herrera iniciou a tradição de doações feitas por ex-chanceleres para contribuir ao enriquecimento decorativo do palácio.

Desde a restauração moderna até a atualidade

O período de restauração moder-na de Torre Tagle, compreendido entre 1955 e 1958, abriu uma nova

etapa na história do edifício […]. Des-de o ponto de vista político e admi-nistrativo, coube a Manuel Cisneros Sánchez, chanceler da República de 1956 a 1959, assumir a culminação desse projeto. Reconhecido colecio-nador e conhecedor de arte, Cisne-ros Sánchez deixaria um importante legado, efetivado por sua viúva, certa-mente em memória de seu papel no ressurgimento da mansão […].

Um dos incrementos mais trans-cendentes dos últimos tempos foi, sem dúvida, a galeria de retratos dos marqueses de Torre Tagle, que inclui obras de pintores limenhos de pri-meira linha, como Cristóbal de Agui-lar, Cristóbal Lozano e José Gil de Castro. Como é sabido, essas telas se encontravam na casa desde que ela foi comprada e perma-neciam nela em qua-lidade de depósito. Só em 2010 elas foram adquiridas definitivamente, garantin-do sua pertença natural e obrigatória ao palácio. Outro ingresso de carácter histórico relativamente recente é o retrato Carlos M. Elías, de Carlos Baca-Flor, que evidencia a proteção dispensada pelo diplomático peruano ao jovem pintor formado no Chile, que visaria a decolagem de sua car-reira como artista acadêmico. Para-lelamente, foram adquiridas peças notáveis de arte peruana recente […]. Essa presença das criações visuais modernas e contemporâneas permite ver uma vitalidade promissória, pois, longe de permanecer presas no pas-sado, as coleções do palácio de Torre

Tagle estabeleceram uma saudável continuidade no tempo, que faz da instituição um autêntico «museu vivo», permanentemente atento à cambiante realidade artística de nos-so país.

Fragmentos do estudo introdutório do livro El arte de Torre Tagle. La colección del Ministerio de Relaciones Exteriores del Perú. Edição de Luis Eduardo Wuffarden e Guido Toro. Lima, Ministério de Relações Exteriores, 2016.

* Curador, historiador e crítico de arte.

Rosa Juliana Sánchez de Tagle, primera marquesa de Torre Tagle, de Cristóbal de Aguilar. Óleo sobre tela, 189 × 128 cm, aprox. 1743-1756.

José Manuel de Tagle Isásaga, tercer marqués de Torre Tagle, de José do Pozo. Óleo sobre tela,223,5 × 147 cm, aprox. 1795-1800.

Santa Rosa de Lima, de Francisco Laso. Óleo sobre tela, 191 × 115,5 cm, aprox. 1858-1867.

Venus india, de Ramón Mateu

Montesinos. Bronze fundido, 87 × 87 × 34 cm,

aprox. 1927.

CHASQUI 10

MEMÓRIA DO PERUFOTOGRAFÍAS 1890-1950

Primeira exposição itinerante de uma trilogia dedicada a mostrar um panorama significativo da fotografia peruana. A amostra, cujos curadores são Jorge Villacorta, Andrés Garay e Carlo Trivelli, é organizada pelo Centro Cultural Inca

Garcilaso do Ministério de Relações Exteriores e o Centro da Imagem de Lima.

Numa rica geografia que con-juga florestas amazônicas, geleiras tropicais, imponen-

tes cordilheiras e áridos desertos, as diversas culturas autóctones do Peru —um dos seis países conside-rados como berço da civilização no mundo— entraram em contato com povos vindos da Europa, África e Oriente. Foi uma história de con-quista e migração que acabou con-figurando um cenário pós-colonial.

Esses elementos —geografia, sociedade e cultura— interagem de formas complexas, às vezes contraditórias, e produziram mani-festações culturais surpreendentes. Uma delas foi a fotografia. Como demonstram as imagens que com-põem Memoria del Perú. Fotografias 1890-1950, a tradição fotográfica peruana foi nutrida do talento indubitável de um conjunto de destacados criadores visuais que uti-lizaram a câmera fotográfica —um dos mais conspícuos emblemas da modernidade no período que nos ocupa— como meio para retratar, compreender e interpretar o país.

Para uma sociedade como a peruana no final do século XIX, fragmentada geográfica e cultural-mente, a imagem fotográfica foi uma ferramenta essencial na cons-trução de uma ideia do nacional.

Graças a essas imagens —e a muitas outras—, o Peru, como o conhecemos hoje, começou a sur-gir diante de si mesmo como uma realidade apreensível. As mara-vilhas naturais de seu território, os grandes monumentos de seu passado pré-colombiano e os cos-tumes ancestrais se misturam com as aspirações modernizadoras, o avanço da economia capitalista e os conflitos sociais de uma sociedade nacional em formação.

Memoria del Perú. Fotografías 1890-1950 permite reviver parcial-mente esse processo de construção e valorizar o talento de mestres da

Retrato con inundaciones, de Pedro N. Montero. Piura, 1925.

Escuela fiscal, de Carlos e Miguel Vargas. Arequipa, aprox. 1925.

Portada y muro inca en Ollantaytambo, de Martín

Chambi. Cuzco, aprox. 1931.

lente como Max T. Vargas, Martín Chambi, Carlos e Miguel Vargas, Juan Manuel Figueroa Aznar, Sebastián Rodríguez, Baldomero Alejos ou Walter O. Runcie, que são apenas alguns dentre os mais conspícuos da seleção. Carlo Tri-velli.

CHASQUI 11

Ubaldina Yábar, de Juan Manuel Figueroa Aznar. Paucartambo, Cusco, 1908.

Pareja de wampis (anônimo). Aprox. 1950.

Mineros y mineral, de Walter O. Runcie. Cotamamba, Apurimac, aprox. 1939-1940.

Retrato de campesino, de César Meza. Cusco, 1945.

Roberto Baudot y señoras, de Eugène Courret. Lima, aprox. 1890.

CHASQUI 12

PEDRO S. ZULENFILÓSOFO E ATIVISTA INTELECTUALO Fondo Editorial do Congresso da República edita os escritos do filósofo peruano de origem chinesa, que foi

também um dos fundadores da Associação Pro Indígena. A compilação foi feita pelos filósofos Rubén Quiroz, Pablo Quintanilla e Jael Rojas. A seguir, um fragmento do estudo introdutório.

Pedro Salvino Zulen1 é um dos filósofos peruanos mais interessantes e importantes

do século XX. Foi bastante estu-dado por pesquisadores tanto peruanos quanto estrangeiros, porém, sua obra permaneceu pou-co acessível por ter ficado sempre nas primeiras edições. Agora, são reunidas pela primeira vez a totalidade de suas publicações filosóficas e a quase totalidade das jornalísticas e políticas, que cons-tituem uma grande contribuição à pesquisa académica sobre o autor e sobre o pensamento filosófico peruano do século XX.

Zulen nasceu em Lima em 1889, como filho de uma lime-nha crioula e de um imigrante chinês cantonês. Em 1906 entrou à Universidade de San Marcos (desde 1946, Universidad Nacio-nal Mayor de San Marcos) para estudar ciências naturais e mate-máticas, mas em 1909 passou à Faculdade de Letras para estudar filosofia. Viajou pela primeira vez para os Estados Unidos em 1916 para realizar uma pós-graduação de Filosofia na Universidade de Harvard, mas a tuberculose de que já padecia o obrigou a voltar para o Peru quase que imediatamente.

Obteve o grau de bacharel na Universidade de San Marcos com uma tese que seria publicada em 1920 com o título de La filosofía de lo inexpresable: bosquejo de una interpretación y una crítica de la filo-sofía de Bergson, que constitui uma exposição e um questionamento da filosofia de Henri Bergson, na época, predominante na filosofia peruana e conhecida com os ape-lativos de espiritualismo, vitalis-mo ou intuicionismo. A filosofia de Bergson irrompeu no Peru no início do século XX devido à influência de Alejandro Deustua, e foi uma reação ao positivismo de Comte e, especialmente, ao posi-tivismo evolucionista de Spencer, que tivera uma presença impor-tante na obra de autores peruanos como Javier Prado, Jorge Polar, Manuel González Prada e o pró-prio Alejandro Deustua.

De 1920 a 1922, Zulen estu-dou na Universidade de Harvard graças a uma bolsa do Estado peruano.

Lá conheceu os movimentos anglo-saxões mais importantes da época, como o neo-hegelianismo, o neorrealismo e as origens do pragmatismo norte-americano. Novamente teve que voltar para

o Peru devido à tuberculose e obteve seu doutorado na Univer-sidade de San Marcos com uma tese que seria publicada em 1924, intitulada Del neohegelianismo al neorrealismo. Estudio de las corrientes filosóficas en Inglaterra y los Estados Unidos, desde a introducción de Hegel hasta la actual reacción neorrealista.

Apenas um ano despois, em 1925, Zulen faleceu em consequência da doença que já o perseguira por tantos anos.

Além dos dois livros acadêmi-cos mencionados, Zulen publicou uma grande quantidade de artigos jornalísticos em revistas e jornais da época, muitos deles sobre

temas filosóficos, porém, a maior parte tratava problemas sociais e políticos. De fato, Zulen conjugou sua vida filosófica com uma inten-sa vida política. Foi um dos funda-dores, em 1909, da Associação Pró Indígena, que liderou junto com Joaquín Capelo e Dora Mayer.

A obra de Pedro S. Zulen é importante por múltiplos moti-vos. Zulen foi um pensador talen-toso que pôde integrar, em sua própria obra, as influências filo-sóficas mais importantes de sua época: o espiritualismo francês, o neo-hegelianismo, o nascente pragmatismo e a incipiente filoso-fia analítica. Essas diferentes esco-las foram importantes na filosofia peruana da primeira metade do século XX. De outro lado, Zulen mostra uma valiosa integração entre sua capacidade acadêmi-co-filosófica e seu compromisso político e social. Adicionalmente, Zulen foi um inspirado professor de filosofia, fato evidenciado pelo programa do curso de Psicologia e Lógica, ministrado por ele em 1924 e publicado pela primeira vez em 1925, que está incluído também no presente volume.

Agora publicamos a obra de Zulen acompanhada de três estu-dos introdutórios. O primeiro deles, a cargo de Rubén Quiroz, discute La filosofía de lo inexpresa-ble. O segundo, escrito por Pablo Quintanilla, faz o mesmo com Del neohegelianismo al neorrealismo e o programa do curso de Psicologia e Lógica de 1925. Finalmente, o livro tem um estudo realizado por Joel Rojas, presidente do Grupo Pedro S. Zulen, da Universidad Nacional Mayor de San Marcos, que apresenta os escritos jorna-lísticos do autor que refletem sua intensa e denodada vida de intelectual.

[…].Confiamos que o libro dará

acesso a um maior conhecimento da qualidade da filosofia produ-zida pela sociedade peruana em diferentes momentos de sua histó-ria. Esperamos que o que foi feito com Zulen possa também se fazer com outros filósofos peruanos do século XX, cujas obras ainda são pouco conhecidas.

Em: Pedro S. Zulen. Escritos reunidos. Lima, Fondo Editorial del Congreso del Perú. 2015.1 Segundo o pesquisador coreano Song No,

seu nome completo original era Pedro Salvino Sun Leng. Cfr. «Entre el idealismo práctico y el activismo filosófico: la doble vida de Pedro S. Zulen», em Solar, ano 2, nro. 2, 2006, pp. 73-78.

O INEFÁVEL

O que é o mundo? O que é meu espírito? O que é isto que me en-volve? O que é esse algo inconfundível, perene, ativo que sinto em mim? A filosofia não revelou até agora, nem devemos desejar que o faça, mesmo se pudesse.

O que estudamos, o que almejamos nas páginas dos homens que pensaram, que pensaram na ilusão de que pensavam para satis-fazer o anseio humano de se internar no além? Aspiramos a alma desses homens que surge real, concreta, genuína dessas páginas, para ser mostrada em todas suas características individuais e de-monstrar com a mais clara e decisiva das evidências a eternidade do mundo individual.

Em: Pedro S. Zulen, Del neohegelianismo al neorrealismo. Lima, Editorial Lux, 1924.

Pedro S. Zulen na Universidade de Harvard, 1016. Arquivo familiar.

CHASQUI 13

SONS DO PERU

LUCHA REYES: SUA VOZ PERSISTEAbraham Padilla*

Nascida no distrito limenho de Rímac com o nome de Lucila Justina Sarcines

Reyes (19 de julho de 1936-Lima, 31 de outubro de 1973), como filha de pai limenho e mãe de El Carmen, a cantora peruana Lucha Reyes (pseu-dônimo artístico que adotou em 1960) é muito conhecida e admira-da por suas sensíveis interpretações.

Se bem explorou diversos gêne-ros, foi com a música crioula, maná de sua infância nos Barrios Altos, que obteve suas maiores conquistas, especialmente após suas aparições na rádio e em algumas peñas lime-nhas, e mais tarde, com a gravação de seu primeiro disco em 1969.

Suas versões manifestam a notá-vel qualidade de seu timbre de voz, prístina, rica em harmonia e resso-nância. Sua vocalização era clara e articulada. Seus matizes, amplos, criavam grandes contrastes ou su-tis transições. Sua força era muitas vezes como um grito; sua ternura, comovedora. Sua dor, empática; sua alegria celebrava a vida, a vida que perdeu por causa de um infarto fulminante a caminho da festa pelo Dia da Canção Crioula, vítima de uma saúde ancestralmente fraca (diabete juvenil, arteriosclerose), poucas semanas após ter feito 37 anos de idade.

Parte do sucesso de Lucha Reyes é resultado de sua interpretação de inspiradas melodias de composito-res que criavam novos repertórios com temáticas românticas, de des-peito, de sofrimento existencial e similares, deixando um pouco de

lado as referidas às ruazinhas de ou-tros tempos e aos costumes da época posterior ao vice-reino, e que expres-savam esse lado da subjetividade po-pular peruana emparentada com as rancheras ou os boleros, e que a pró-pria artista explorou com certa sabe-doria comercial quando foi artista exclusiva de FTA, representante de RCA Víctor (1970-1973). Nessa curta, mas frutífera fase, consolidou seu estilo vocal característico e parti-cipou do desenvolvimento de uma estética instrumental crioula inova-dora, a cargo do conjunto de Rafael Amaranto (dos violões, saxofone, teclado ou sanfona e percussão).

Entretanto, Lucha Reyes não caiu no sentimentalismo melodra-mático que algumas músicas pare-

ciam propor. Sua voz dava a todos os temas sons verdadeiros e transcen-dentes. As vicissitudes de uma infân-cia marcada pela pobreza, pela falta do pai que faleceu prematuramente, pelas múltiplas mudanças de casa, pelo revezamento de pessoas que tomavam conta dela, não foram su-ficientes para abalar seu espírito mu-lher, de raça negra ainda por cima, que já lutava contra as limitações.

Provavelmente seria preciso procurar em suas vivências ao lado daqueles que tomaram conta dela quando menina, em sua mãe, nas freiras franciscanas do Convento de Nuestra Señora de la Caridad del Buen Pastor, onde ficou como interna por oito anos e estudou até o terceiro ano do ensino funda-

mental, em sua resiliência e em sua resistência à autocompaixão, a base em que desenvolveu sua autoestima e essa capacidade de se renovar ape-sar até dos maus-tratos e da falta de saúde física. Colecionava bonecas que cuidava com esmero. Só um ser humano de profunda sensibilidade poderia transmutar suas vivências e as oferecer musicalmente com a maturidade e serenidade com que ela fez isso.

Foi apelidada «La Morena de Oro del Perú» pelo animador Augus-to Ferrando no famoso programa Peña Ferrando, onde ela trabalhou entre 1960 e 1970, e onde aprendeu a dominar o cenário, tendo que li-dar com piadas de tipo racista mui-to comuns na época. Lucha Reyes representa não apenas o paradigma do som da música crioula no Peru numa determinada época, mas tam-bém, e especialmente, a capacidade de se superar, de se entregar com paixão à vida apesar de tudo e de a expressar com toda a alma, de viva voz. Segundo todos que a conhe-ceram, foi uma pessoa de grande bondade e simplicidade. Seu caixão foi carregado sobre ombros desde a Igreja de São Francisco até o ce-mitério El Ángel, da Beneficência Pública de Lima. Trinta mil pessoas acompanharam o cortejo chorando e cantando «Tu voz», de Juan Gon-zalo Rose, e «Regresa», de Augusto Polo Campos, enquanto ela, coroa-da com uma bela peruca, ingressava no silêncio de sua última morada.

* Musicólogo, compositor, diretor de orquestra.

Rosas MeRcedes ayaRza de MoRales

LOS PREGONES DE LIMAendesa, 2006

O disco é dedicado aos pregões ori-ginais para voz e piano da falecida Rosa Mercedes Ayarza de Morales (Lima, 8 de julho de 1881-2 de maio de 1969). De menina, começou a estudar música com sua tia e mais tarde recebeu conselhos de canto de Claudio Rebagliatti, mas sua formação foi maiormente intuitiva e autodidata. Durante sua vida desenvolveu atividades sempre liga-das à música (seu irmão Alejandro foi um autor crioulo conhecido com

o apelido de «Karamanduca»). Foi ativa promotora de montagens de zarzuela e espetáculos de canto lírico. Criou músicas próprias e transcreveu para partitura algumas que recolheu de autores populares. Entre suas cria-ções mais difundidas estão os pre-gões, caracterizados musicalmente por empregar as formas, harmonias e giros melódicos da zarzuela espanho-la, misturados às vezes com música crioula e a ideia do pregão da Lima antiga. Vários desses pregões estam-pam uma caricaturização onomato-peica da pronúncia de personagens itinerantes, alguns negros, chineses e índios. O disco inclui onze faixas interpretadas por diversos cantores peruanos acompanhados de piano. A brochura contém os textos com-pletos dos pregões.

VaRios

GRAN COLECCIÓN DE LA MÚSICA CRIOLLA(www.11y6disCos.Com. 2011)

Formada por quinze volumes, a «Gran Colección de la Música Criolla» inclui uma compilação das

obras mais representativas de um amplo conjunto de compositores e intérpretes de música crioula perua-na como Arturo «Zambo» Cavero, Chabuca Granda, Los Embajadores Criollos, Eva Ayllón, Los Morochu-cos, Óscar Avilés, Jesús Vásquez, Los Kipus, Felipe Pinglo, Filomeno Ormeño, Lucho de la Cuba, Fiesta Criolla, Lucila Campos, Los Zañartu e Lucha Reyes. Cada volume contém uma brochura com uma biografia detalhada (sem os nomes dos auto-res) e quatro discos com as gravações mais conhecidas e emblemáticas dos artistas. Através dos discos é possível

ver desenvolvimento desse gênero musical, incluindo o maior espectro de criadores e cantores publicado até os nossos dias. Um material de cole-ção que deve fazer parte da fonoteca de qualquer pesquisador de nossa música e de quem estiver interessado em conhecer mais profundamente o acervo musical da costa peruana.

Leyenda

Lucha Reyes.

CHASQUIBoletim Cultural

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

Direção Geral para Assuntos CulturaisJr. Ucayali 337, Lima 1, Peru

Telefone: (511) 204-263

E-mail: [email protected]: www.rree.gob.pe/politicaexterior

Os artigos são responsabilidade de seus autores.Este boletim é distribuído gratuitamente pelas

missões do Peru no exterior.

Tradução:Angela Peltier Maldonado

Impressão:Tarea Asociación Gráfica Educativa

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DOCE PÁTRIATeresina Muñoz-Nájar*

Se bem a influência hispano-arábica foi fundamental na história da confeitaria peruana, ela continuou evoluindo através dos séculos até adquirir um singular estilo, com sobremesas tão originais e notáveis como a

mazamorra morada, o torrone Doña Pepa, o suspiro à limenha, o queso helado ou o King Kong.

É indubitável que a «confeita-ria» chegada ao Novo Mundo nos barcos dos conquistado-

res (junto com a cana de açúcar) tinha de romana, moura e sefar-dita. São três raízes fundamentais que foram a base de nossa atual confeitaria, enriquecida através dos anos com sabores próprios e autênticos e com o reforço de exó-ticos produtos americanos como a batata doce, o milho, a baunilha, o abacaxi, o cacau, o amendoim, a lúcuma e a atemoia.

Como aponta Manuel Martí-nez Llopis em La dulcería española. Recetarios histórico y popular, durante os duzentos anos da conquista da Península Ibérica (de 218 a. C. a 19 a. C.), a famosa romanização (adaptação das sociedades domi-nadas ao estilo de vida romano) também chegou à cozinha. «A confeitaria romana teria grande in-fluência sobre a arte de confeitaria ibérica», escreve Martínez. Prova disso são os euchylés, «uma espécie de buñuelos. A massa semilíquida passava por um funil e caía no óleo quente onde era frita e adotava formas inesperadas e grotescas, que depois eram cobertas com mel ou vinho melado». Também devemos aos romanos a existência da massa phyllo, tão usada atualmente para a elaboração de pastéis e empadas.

Muito tempo depois, os espa-nhóis experimentariam a influên-cia de outra importante invasão, a dos povos muçulmanos do norte da África, que chegaram com o maior dos tesouros escorrendo entre os dedos: o açúcar.

Dentre as sobremesas mouras daqueles tempos, Martínez Llopis destaca as kinafas, feitas com pe-daços de pão fritos em abundante óleo e depois cobertos com mel, salpicados com água de rosas e misturados com açúcar, cravo, amêndoas picadas e caramelo, e que poderiam ser antecessores de nosso peruaníssimo «ranfañote». Ele também menciona o halwa, preparado com açúcar peneirado e amêndoas descascadas e esma-gadas, ingredientes que eram amassados com água de rosas e óleo de amêndoa, para formar diversas figurinhas que iam para o forno. Tirando o detalhe do forno e da água de rosas, a fórmula é praticamente idêntica à do nosso maçapão.

Finalmente, Martínez Llopis conta que a doçaria sefardita «ela-borada nas aljamas judias antes da expulsão dos sefarditas decretada pelos Reis Católicos em 1492»

também influiu na confeitaria espanhola, embora em menor es-cala. São de origem sefardita, por exemplo, as compotas de frutas, entre elas, a de marmelo, que era exatamente igual à que nós prepa-ramos atualmente.

Segredos dos claustrosDurante o vice-reino, nas casas das famílias limenhas são feitos os primeiros doces peruanos co-zidos em tachos, fritos em roscas ou com claras de ovo batidas em neve. Entretanto, é dos conventos de freiras de que provêm os dados mais precisos e importantes sobre a elaboração de sobremesas. Além disso, como disse o historiador Eduardo Dargent Chamot em seu livro La cocina monacal en la Lima virreinal, o monastério colonial refletia a maneira de comer de um setor importante da sociedade daquela época e «a distribuição social das mulheres internas nos conventos reproduzia a da cidade onde estavam localizados, e são de interesse porque, a diferentemente das casas de família, nos monasté-rios eram feitas detalhadamente as contas dos produtos comprados, recebidos em doação e utilizados». Por volta de 1675, por exemplo, a população de freiras nos monas-térios limenhos equivalia ao vinte por cento da população feminina da cidade.

Dargent revisou minuciosa-mente documentos dos conventos (não apenas de Lima) e encontrou, além das listas de produtos mais consumidos nesses locais —fartas quantidades de leite, ovos e fru-tas—, referências a algumas sobre-mesas que as freiras faziam (século XVII) como o feijão doce, o arroz doce, a conserva de marmelo ou de berinjela, o doce de batata doce e o requeijão doce. Ele afirma que de 1771 a 1774, «nas contas revisadas do monastério de Santa Catalina de Siena da cidade de Cusco, grande parte se refere ao consumo de açúcar tanto na entrega direta às religiosas como na elaboração de maçapão, chouriços, colações, pastéis, torrones de alicante, con-servas de cidra, pêssegos em calda, conserva de marmelo, alfajor, doce de leite, arroz e caixas de doces». O historiador afirma também que no século XVIII as sobremesas mais citadas nos registros conventuais são o arroz doce e o feijão doce. «Também se encontrou a menção de mazamorras moradas e de fermen-to, a quinoa com açúcar, as cajetas de conserva e de doce de leite, as panquecas doces e as conservas de berinjela. Como doces preparados que poderiam ser qualificados como típicos de convento, há uma lista de Santa Clara que menciona, além das cajetas em conserva e a berinjela em conserva, pomelos

cristalizados, marmelada, conserva de pêssego e nozes açucaradas».

Penas gulosasCabe apontar alguns comentários de dois cronistas do século XIX que confirmam o grande prestígio confeiteiro das freiras de clausu-ra. Em primeiro lugar, existem observações de Flora Tristán, que veio de Paris para Arequipa em 1833 a fim de reclamar a herança supostamente deixada por seu tio Pío Tristán, e que ficou alguns dias em dois conventos arequipenhos, Santa Rosa e Santa Catalina. Flora conta que, no primeiro, foi levada pela madre superiora «até sua gran-de e bonita cela e lá, depois de ter me convidado a sentar sobre ricos tapetes e brancas almofadas, fez ser-vir para mim, numa das mais belas bandejas trazidas de Paris, diversos tipos de deliciosos pães doces feitos no convento, vinhos da Espanha em lindas taças de cristal lavrado e um magnífico copo do mesmo cristal e gravado com as armas da Espanha».

Sobre Santa Catalina, ela escre-ve: «Em cada cela todas as freiras falavam ao mesmo tempo entre risadas e anedotas, e todas nos ofe-reciam pasteizinhos de incontáveis tipos, doces, cremes, açúcar cande, licores e vinhos da Espanha. Era uma série contínua de banquetes».

Já o pesquisador Sergio Zapata, em seu Diccionario de gastronomía peruana tradicional, recolhe os co-mentários sobre os conventos de Lima deixados por Jean Descola em La vida cotidiana en el Perú en tiempos de los españoles 1710-1820: «Cada uma das comunidades se orgulha de alguma guloseima es-pecial que recomenda ao público. Santa Rosa tem sua mazamorra ao carmim, espécie de papinha que à noite fica exposta nos telhados do convento, onde o frio lhe dá particular qualidade. Santa Catalina destaca pelo preparo de pasteizinhos das aves conservadas em leite de amêndoas: é o manjar branco. Finalmente, El Carmelo se jacta de suas roscas fritas com mel, salpicadas com folhas e lantejoulas de oro».

De pregões e regiõesJá na República, muitas persona-gens que apareceram durante o vice-reino continuaram vendendo nas ruas da capital produtos doces e salgados. Em seu livro Lima: apun-tes históricos, descriptivos, estadísticos y de costumbres, Manuel Atanasio Fuentes, «El Murciélago», fala dos

Em: Lima: apuntes históricos, descriptivos, estadísticos y de costumbres, de Manuel Atanasio Fuentes. París, 1867.

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pregoeiros: padeiros, sorveteiros, vendedores de chás medicinais, etc., antecessores de nossos vende-dores de carrinho ou daqueles ho-mens e mulheres que carregando um cesto ou uma pequena caixa vendem, até hoje, nos parques ou perto dos colégios de bairro, desde rosquinhas até pudim de trigo, afetos, broas, massinhas e arroz caramelados, entre outros.

Porém, tudo sempre muda e com a Independência apareceram também outros usos e costumes. Em Lima, por exemplo, instituiu--se a moda francesa, cuja acolhida registram antigos cardápios. Sobre isso, a pesquisadora Rosario Oli-vas diz: «O melhor da confeitaria mestiça constava nas listas dos banquetes junto com as delica-dezas de origem francês, como broche de oro ». Então, entre confeites ou castelos de amên-doas, lia-se Charlotte russe, cabinet pudding ou macedoine de fruits. Infelizmente, diante da explosão

das primeiras confeitarias, sorve-terias e pastelarias inauguradas em Lima ao longo do século XIX, os conventos foram aos poucos perdendo seu grande prestígio, embora não totalmente. Ain-da podemos encontrar algumas magníficas obras da confeitaria monacal em alguns conventos do país. Ninguém ainda conseguiu superar as habilidosas mãos das freiras na elaboração de algumas sobremesas como a «bola de ouro», bolo obrigatório nas festas de bati-zado e primeira comunhão.

Outra manifestação interessan-te, a partir do século XX, foi a afir-mação de identidade de cada canto do país através de suas comidas, sobremesas e bebidas. Lima, então, caracteriza-se por sua mazamorra morada, seu suspiro e seu ranfañote; Trujillo por seu King Kong; Are-quipa por seu queso helado e seus gargueiros ou gaznates; Moquegua por seus alfajores de Penco e Ica por seu doce de feijão.

MAZAMORRA MORADA

Ingredientes50 gramas de abricó seco50 gramas de frutas secas50 gramas de ameixa seca50 gramas de pera seca50 gramas de pêssego seco1 ½ quilo de grão de milho roxo 4 litros de água2 marmelos1 abacaxi grande2 paus de canela4 cravos 4 xícaras de açúcar branco (ou mascavo se preferir)200 gramas de farinha de batata doce2 limõesCanela moída para salpicar

PreparoNa véspera, deixar de molho em água morna o abricó, as frutas, a ameixa, a pera e o pêssego secos. Descascar o marmelo, o abacaxi e a maçã. Colocar as cascas para ferver com os grãos de milho roxo, os paus de canela e o cravo nos quatro litros de água. Deixar até o líquido ficar roxo escuro. Coar e reservar uma xícara. Ferver novamente o milho, até os grãos arrebentarem. Coar numa peneira fina e descartar o milho. Acrescentar ao líquido o açúcar, os frutos secos que ficaram de molho, o abacaxi, os marmelos e as maçãs, tudo picadinho. Ferver novamente. Na xícara de líquido reservada, dissolver a farinha de batata doce, incorporar na panela com os outros ingredientes e deixar ferver por mais 25 minutos, no mínimo. Ao retirar do fogo, acrescentar o suco dos limões e mexer. Para servir, salpicar com canela moída.

MANJAR DE LÚCUMA

Ingredientes2 xícaras de leite condensado2 xícaras de leite evaporado2 quilos de polpa de lúcuma 4 gemas

PreparoLimpar bem as lúcumas, descascar, tirar as sementes e passar no processador de alimentos com pouca água. Peneirar o purê. Reservar. Numa panela grossa, ferver os leites em fogo brando até ponto de doce de leite. Quando esfriar completamente, acrescentar as gemas uma a uma. Finalmente incorporar o purê de lúcuma, que não deve cozinhar. Refrigerar.

RECEITASReceitas tomadas de El gran libro del postre peruano, de Sandra Plevisani, editado pelo Fondo Editorial de la Universidad San Martín de Porres.

ENROLLADO DE CHIRIMOYA Y PRALINÉ

IngredientesRocambole: Óleo em spray ou de cozinhaFarinha de trigo para salpicar a forma5 ovos a temperatura ambiente (separar as claras das gemas)¾ de xícara de açúcar branco granulado2/3 de xícara de farinha de trigo sem fermento1 colheradinha de essência de baunilha½ colheradinha de sal½ xícara de açúcar de confeiteiro

Recheio:Doce de leite (pode ferver uma lata de leite condensado por duas horas e abrir quando esfriar)1 receita de praliné2 xícaras de polpa de atemoia sem caroço, coberta de suco de laranja para que não oxidar1 litro de creme de leite batida tipo chantilly

Praliné:1 xícara de açúcar branco1 xícara de nozes picadas

Preparo Rocambole:Pré-aquecer o forno em 375 ºF (190 ºC). Passar óleo numa assadeira de beira alta, de 18 × 12 polegadas, forrar com papel manteiga e molhar o papel óleo. Salpicar com farinha de trigo e sacudir para deixar uniforme e retirar o excesso. Na batedeira, misturar as gemas com ½ xícara de açúcar branco granulado. Bater até dobrar o volume, durante 4 ou 5 minutos. Num outro recipiente limpo e seco bater as claras em ponto de neve e ir acrescentando o resto do açúcar. Bater por mais 3 minutos. Misturar as gemas com as claras, usando uma espátula de borracha, em 2 ou 3 adições. Juntar a farinha de trigo, a baunilha e o sal. Misturar bem. Colocar a massa uniformemente na assadeira previamente preparada e assar de 12 a 15 minutos, até a massa ficar dourada e com as beiras um pouco levantadas. Colocar um pano limpo na mesa de trabalho e salpicar com açúcar de confeiteiro. Virar a forma em cima do pano, retirar a assadeira e o papel, enrolar a massa com ajuda do pano e deixar esfriar enrolada. Desenrolar e cobrir com o doce de leite misturado com o chantilly e o praliné, e finalmente com a polpa de atemoia. Usar o pano para levantar a parte comprida da massa e enrolar o rocambole. Decorar com chantilly e o praliné.

Praliné:Numa assadeira, dourar ligeiramente as nozes no forno. Reservar. Numa panela pequena, colocar o açúcar e levar ao fogo para caramelizar. Mexer constante-mente para não grudar. Quando o caramelo estiver pronto, acrescentar as nozes de uma vez só. Misturar rapidamente e despejar a mistura numa assadeira bem untada de óleo. Quando esfriar e endurecer totalmente, triturar grosseiramente com um martelo de cozinha.

Lúcuma.

Atemoia (chirimoya)

Maíz morado.

Mazamorra morada.

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MAURO CASTILLO

Alfonso Castrillón Vizcarra*Nascido em Azángaro, Puno, em 1946, Mauro Castillo mora em Arequipa, onde estudou na Escuela Regional de Bellas Artes Carlos

Baca Flor. Realizou exposições individuais em várias cidades do mundo e foi bolsista na Comissão Fullbright. O Centro Cultural Inca Garcilaso do Ministério de Relações Exteriores apresentou uma recente amostra antológica de sua obra.

ELOGIO DA LUZ

Leyenda

A antiga técnica da aquarela foi desenvolvendo sua própria lin-guagem, partindo de sua posição

utilitária, como esboço de futuras telas a óleo, até atingir a qualificação de obra de arte em si. Vou explicar. No século XIV, Cennino Cennini registrou no seu recei-tuário um procedimento para dar relevo aos esboços de personagens cobertos com panos, usando uma tinta preta e aguada, cuja gama incluiu posteriormente outras cores misturadas com goma arábica. Ao longo de vários séculos, a técnica se pro-pagou por toda a Europa, especialmente na Inglaterra, onde William Turner a desenvolveu até os mais altos níveis de criatividade e excelência.

É provável que a técnica tenha che-gado à América, e consequentemente a Lima, com os artistas italianos e espanhóis e que com o correr do tempo tenha recebido a influência de outros mestres viajantes europeus que deram a conhecer as sutilezas e os segredos de sua aplicação em ilustrações de costumes e «vistas» (vedute) de grande qualidade (Léonce Angrand, Maurício Rugendas e outros).

Entretanto, foi em Arequipa onde a técnica se desenvolveu de forma plausível e virtuosista, talvez pela qualidade da luz, pelo céu límpido ou pelo exemplo inesquecível de Vinatea Reinoso, até o ponto de chegar a se falar de uma «Escola Arequipenha» da aquarela. Nomes como Núñez Ureta, Luis Palao, Ramiro Pareja, Germán Alarcón (Kinkulla), já formam uma lista de artistas consagrados pela crítica.

Menção especial merece Mauro Castillo, embora nascido em Puno, é are-quipenho por adoção; artista que dedi-cou muitos anos ao desenvolvimento da aquarela, adaptando procedimentos que fazem de sua proposta um exemplo de tradição e originalidade ao mesmo tempo.

Os pesquisadores apontam, de um lado, as dificuldades de trabalhar com aquarela: as pinceladas na superfície da cartolina são rápidas e não há possibili-dade de duvidar nem fazer correções; de outro lado, obriga o artista ao exercício contínuo e ao virtuosismo. Assim, a superfície branca do papel se incorpora à

linguagem da cor como áreas de descan-so, que se alternam harmoniosamente. Outro procedimento empregado por Castillo é o trabalho sobre a cartolina úmida, em cuja superfície se espalha a cor aplicada, dando a impressão de bruma e distanciamento. Seu modo de pintar lembra o antigo conceito de «cor local» que, segundo Milizia (1797), é a cor própria de cada objeto suavizada pela distância. O ar interposto contribui para essa atenuação da cor».

Na minha opinião, Castillo poderia ser considerado um impressionista, não pela técnica, mas pela sensibilidade, pelo

protagonismo da luz em seus temas. Não junta cores para enganar nossos olhos; trabalha com golpes de luz que o obrigam a seguir a descrição do tema. A primeira maneira é uma retina ativa, a segunda, uma visão surpreendida, como a fotografia.

Quanto ao tema (soggetto), Castillo encontra grande prazer em reproduzir tudo que seu olhar curioso captura do entorno: casarios, mercados, igrejas, récuas de camélidos andinos, onde a contribuição do desenho é mínima, uma referência para localizar suas figuras no espaço, porque o resto é confiado à man-

cha, a um trabalho de superposições que guardam surpresas cromáticas, ou livra os vazios dos brancos, sempre aplicando primeiro as gamas suaves para terminar com as escuras e determinantes.

Mauro Castillo, seguidor de uma tradição centenária que revela a vida do homem andino e sua paisagem, ocupa um merecido lugar dentro do conjunto de artistas arequipenhos.

* Curador, museólogo, historiador e crítico de arte. Dirige o Mestrado em Museologia e Gestão Cultural na Universidad Ricardo Palma de Lima.

Fiesta del Espíritu Santo. Aquarela, 80 × 60 cm.

El puente. Aquarela, 80 × 60 cm. Mujeres de Cajamarca. Óleo sobre tela, 40 × 50 cm.