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TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007 61
NOTAS SOBRE O FUTURISMO LITERÁRIO∗
Mariarosaria Fabris∗∗
RESUMO A publicação de “Fundação e Manifesto do Futurismo” (Le Figaro, Paris, 20/2/1909) apresentava ao meio intelectual mundial o movimento criado por Marinetti, que abarcará quase todas as manifestações artísticas. Na literatura, as palavras em liberdade e as tavole parolibere representaram uma fragmentação da estrutura lingüística da poesia, mas serão também a matéria prima para a construção de outras experiências literárias das vanguardas e das neovanguardas. PALAVRAS-CHAVE Literatura italiana, vanguarda, poética, Futurismo, Filippo Tommaso Marinetti.
ABSTRACT The publication of “Foundation and Manifesto of Futurism” (Le Figaro, Paris, February 20, 1909) introduced into world intellectual milieu the movement formulated by Marinetti, that embraced almost all artistic manifestations. In literature, the parole in libertà (words set free) and the tavole parolibere represented the fragmentation of poetry’s linguistic structure. They also will be the basis of other literary experiences for Avant-Gardes and Neo-Avant-Gardes. KEYWORDS Italian literature, Avant-Garde, poetics, Futurism, Filippo Tommaso Marinetti.
Com a publicação de “Fundação e Manifesto do Futurismo” em Le Figaro,
a 20 de fevereiro de 1909, o movimento futurista era lançado em Paris. Como
salienta Annateresa Fabris (1987, p. 57, 59), o fato de o Futurismo se anunciar
∗Versão ampliada da comunicação “Futurismo literário: da alegoria à poética da matéria”, apresentada no simpósio “Modernidade, tradição e vanguardas literário-artísticas na época do ‘moderno inelutável’”, que integrou o IX Congresso Internacional da ABRALIC–Travessias, Porto Alegre, UFRGS, 18-21 de julho de 2004. ∗∗Professora doutora aposentada do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil).
TRICEVERSA Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro de Estudos Lingüísticos e Culturais ISSN 1981 8432 www.assis.unesp.br/cilbelc TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007 C I LBELC
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por um manifesto não representava em si um dado novo do ponto de vista
cultural, uma vez que todo movimento nascido na França desde o último
quartel do século XIX havia proclamado seu surgimento dessa forma. Se, de um
lado, não se tratava de um acontecimento culturalmente inédito, de outro, era
indubitável que as teorias do Futurismo eram muito mais ousadas e inovadoras
do que as de seus antecessores, por se valerem da provocação para se afirmar.
A escolha da Cidade-Luz para a apresentação oficial do Futurismo e sua
veiculação num jornal como Le Figaro não foram gratuitas, pois vinham
assegurar ao movimento uma repercussão no meio cultural italiano e
internacional muito maior do que a alcançada se este tivesse sido anunciado no
país de origem. De fato, apesar do lançamento na França, pesquisas mais
recentes assinalam que “Fundação e Manifesto do Futurismo” já havia sido
divulgado alguns dias antes em dois periódicos napolitanos: na revista La
Tavola Rotonda (14 de fevereiro), que o publicou na íntegra, e no jornal Il
Giorno (16-17 de fevereiro), que reproduziu alguns de seus trechos
(D’AMBROSIO, 1996, p. 125, 15).
Esse manifesto serviu de modelo para todos os outros que o Futurismo
lançou, por seu duplo aspecto: ao mesmo tempo em que atestava a fundação
do movimento, representava também a afirmação de uma poética, que se
relacionava dialeticamente com a literatura que o havia antecedido.
Annateresa Fabris (1987, p. 60-2) lembra que vários críticos viram em sua
introdução uma viagem de iniciação comparável à empreendida por Dante
Alighieri em A divina comédia, se bem que às avessas, pois, se para o poeta
florentino a morte espiritual simbolizava a maneira encontrada pela razão para
ensinar ao homem como superar a própria morte, para Marinetti conhecer a
morte e transformá-la em companheira eterna era um modo de rechaçar a
razão. Isso seria atestado pelo emprego de figuras peculiares de linguagem: o
automóvel era comparado com a “fera”, o “tubarão”; os futuristas,
arrebatados pela “furiosa vassoura da loucura” e guiados pelo “faro”,
domesticavam a Morte e repudiavam a sabedoria. Os “cães de guarda” que
vigiavam as “soleiras” das “casas” (metáfora dos que ainda defendiam a velha
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sensibilidade, as fórmulas artísticas desgastadas) eram esmagados; o homem
novo, num gesto repentino e inesperado, para se descartar dos ideais dos
passadistas, que Marinetti (1968a) configurava como dois ciclistas
“titubeantes”, dois raciocínios “persuasivos” e “contraditórios” ao mesmo
tempo, saltava no fosso lamacento para renascer de suas águas. Renascia
aberto psicologicamente ao universo da nova sensibilidade mecânica, e
abandonava as velhas categorias mentais, lingüisticamente recorrentes em
metáforas e imagens que ele repudiava.
A polêmica com o passado representava a afirmação das novas forças
criadoras e isso se explicitava ao longo dos onze pontos programáticos, que
constituem o manifesto propriamente dito, em que o estilo discursivo e
fortemente alegórico (ainda com laivos decadentes e simbolistas) do prólogo
era substituído por um tom declamatório, peremptório, concitador na
exposição das crenças e do programa de ação dos futuristas.
Do ponto de vista literário, os manifestos muitas vezes constituíram o
reverso da medalha, pois, para expor suas concepções, os futuristas raramente
recorreram às formas sintéticas de expressão preconizadas nesses textos, as
quais se limitarão às construções poéticas. Nas outras áreas de expressão e
comunicação continuaram a respeitar a sintaxe e a pontuação, quando não se
serviram de uma retórica desgastada e de imagens tradicionais.
O manifesto de fundação, com seus dois níveis de escrita, remete-nos, de
um lado, ao Marinetti pré-futurista, promotor do verso livre; de outro, aponta
para o que será a poética futurista, explicitada, no caso da literatura, nos
programas dos manifestos técnicos.
Tentar estabelecer datas e fases para um movimento é sempre uma tarefa
ingrata, pois esbarramos em critérios diferentes, conforme o autor que
consultamos. O Futurismo literário também não escapa dessa regra; se
pegarmos somente três autores (escolhidos dentre os mais importantes
estudiosos do movimento), veremos que há algumas divergências. Enquanto
Luciano De Maria (1973) fala em dois momentos – o do verso livre, entre 1909 e
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1913, e o das palavras em liberdade, de 1914 a 1944 –, Mario Verdone (1986) e
Enrico Falqui (1959) falam em três, pois acrescentam o das tavole parolibere
[composições de palavras em liberdade] e o da aeropoesia, respectivamente.
Verdone antecipa para 1890, com Gian Pietro Lucini (quando não para 1811,
com Ugo Foscolo) o nascimento do verso livre, e, embora reconheça que sua
difusão mais ampla se deu entre 1909 e 1914, encontra ecos até 1937; quanto
ao momento das palavras em liberdade, este se estenderia de 1914 a 1919, mas
haveria antecedentes em 1912 e epígonos até 1940.
Escolhemos a datação estabelecida por De Maria pelos motivos arrolados a
seguir:
1. apesar de já em 1905 ter surgido a revista Poesia, divulgadora do verso livre,
foi a partir de 1909 que o Futurismo se afirmou1 e, se quisermos ser ainda mais
radicais, foi só em 1912, com a publicação do “Manifesto técnico da literatura
futurista”, que se pode falar de literatura futurista e, nesse caso, ela só
corresponderia às palavras em liberdade, sendo a fase do verso livre um estágio
preparatório. Ao considerarmos como textos literários também os manifestos –
malgrado a literatura futurista seja mais marcada pela poesia –, então podemos
tomar como data inicial o ano de 1909;
2. embora as palavras em liberdade já estivessem explicitadas nesse primeiro
manifesto técnico e um exemplo delas – Batalha Peso + Odor – tivesse
aparecido nas “Respostas às objeções” (1912); embora tenham sido retomadas
nos manifestos “Destruição da sintaxe Imaginação sem fios Palavras em
liberdade” (1913) e “O esplendor geométrico e mecânico e a sensibilidade
numérica” (1914), seu grande momento de afirmação deu-se a partir da
publicação de Zang tumb tuuum (1914), de Filippo Tommaso Marinetti, em que
a sucessão mecânica de substantivos e infinitivos de Batalha Peso + Odor era
substituída por uma orquestração verbal mais variada e elástica;
1Como pondera Annateresa Fabris (1987, p. 51-52), “antecipar o nascimento do Futurismo para 1905, a fim de fazê-lo coincidir com Poesia, [é uma] operação que não pode ser aceita historicamente, pois a enquête sobre o verso livre representava a atualização do público italiano com uma temática já consolidada na França e não uma nova proposta estética como aquela que surgiria alguns anos depois através de meios promocionais em consonância com os instrumentos de divulgação do século XX”.
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3. quanto à distinção entre palavras em liberdade, tavole parolibere e
aeropoesia, pode-se dizer que elas constituem três momentos da nova poesia,
três momentos em estrita interdependência. De fato, na própria concepção das
palavras em liberdade já estavam contidas as tavole parolibere, só que nestas
acabavam por predominar os ritmos figurativos. No que diz respeito à
aeropoesia (que surge em 1931), esta nada mais era do que “uma versão mais
elástica e ampliada das palavras em liberdade” (DE MARIA, 1973, p. XIX) e, em
relação às tavole parolibere, constituiu um retrocesso, pois as palavras
voltavam a seguir um fluxo retilíneo. O texto, que havia se tornado mais visual,
voltava a ser mais literário, mais retórico. Ademais, o próprio Marinetti
(1968g), em 1937, em “A técnica da nova poesia”, caracterizava as tavole
parolibere, as palavras em liberdade e as palavras em liberdade de aeropoesia
como três tipos de parolibrismo.
Como De Maria, portanto, manteremos esses dois momentos: o do verso
livre e o das palavras em liberdade, lembrando ainda que um não excluiu o
outro, pois, mesmo na fase das palavras em liberdade, alguns poetas
continuaram a escrever em versos livres2.
Embora a fase do verso livre só tenha durado quatro anos (1909-1913),
para Marinetti a polêmica já havia iniciado nas páginas da revista Poesia,
lançada em fevereiro de 1905 em Milão, junto com Sem Benelli e Vitaliano
Ponti.
Poesia, como observa Annateresa Fabris (1987, p. 48-54), propunha-se a
publicar versos inéditos e renovar as formas de expressão lírica, mas, quando
de seu lançamento, era colocada sob a égide de um poeta consagrado, Giosuè
Carducci, apresentava uma capa de inspiração simbolista e seu editorial havia
sido redigido numa linguagem decadente-nietzschiana. Apesar dessa premissa,
2A distinção entre versos livres e palavras em liberdade nem sempre é fácil. Por exemplo, Poesie a Beny – uma coletânea de poesias escritas em francês por Marinetti, entre 1920 e 1938, para sua esposa Benedetta – são consideradas composições em versos livres por Luciano De Maria (1973, p. XXXVIII), enquanto Gilberto Finzi (1979, p. 68) encontra, nesses “textos só aparentemente ‘regulares’”, o mesmo poeta das palavras em liberdade.
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a revista não seguia uma linha rígida, pois publicava lado a lado poetas
franceses simbolistas e vers-libristes (praticamente desconhecidos na Itália) e
novas vozes poéticas italianas, como Aldo Palazzeschi, Corrado Govoni, Enrico
Cavacchioli, Paolo Buzzi, Federico De Maria, associados a poetas tradicionais,
dentre os quais Giuseppe Lipparini, e a nomes consagrados, como Gabriele
D’Annunzio, Giovanni Pascoli e Ada Negri, além do já citado Giosuè Carducci.
O espírito de Poesia era internacionalista e, entre seus colaboradores,
constavam vários autores que estavam na base da formação literária de
Marinetti: Paul Adam, Emile Verhaeren, Alfred Jarry, os integrantes da Abadia
de Créteil, Catulle Mendès, Comtesse de Noailles, Henri de Régnier, Paul Fort,
Francis Jammes, Jules Laforgue, Jean Moréas, Paul Claudel, além de Gustave
Kahn (divulgador do verso livre na França, ao lado de Marie Krysinska).
A revista Poesia podia ser caracterizada como uma grande antologia
desordenada e caótica, que promovia não só a divulgação da produção lírica
(na qual, raras vezes, se concretizou o interesse pela modernidade e seus
símbolos, em obras como “À l’automobile”, de Marinetti; “L’artigliere
meccanico”, de Mario Morasso; “Lyrisme militariste”, de Jarry), como também
concursos e enquetes, destacando-se, dentre estas, a do verso livre. A “Prima
inchiesta internazionale sul verso libero” – que, iniciada em 1907, se prolongou
até o ano seguinte – nasceu do encontro entre Marinetti e Lucini, o qual, desde
o fim do século XIX, estava elaborando uma visão nacional da poesia simbolista,
operação que acontecia na Itália quando na França o Simbolismo já iniciava seu
declínio.
Com a enquete, instaurava-se, no âmbito da revista, o único debate de
verdade, em que se envolveu também Carlos Magalhães de Azeredo, o qual
declarou que no Brasil os “versos bárbaros” – expressão que preferia a “verso
livre” – haviam sido acolhidos com simpatia, mas sem unanimidade (julho-
setembro de 1906). Poeta pós-parnasiano que queria aperfeiçoar os “metros
bárbaros” de Carducci, Magalhães de Azeredo teve duas de suas composições
publicadas por Poesia: “Canção do nauta seduzido” (fevereiro-maio de 1907) e
“Sobre uma ânfora de vinho grego” (outubro de 1908).
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Na discussão sobre o verso livre, enfrentavam-se dois grupos: os
franceses, quase todos favoráveis, a começar por Kahn, e os italianos, quase
todos contrários, com exceção de poucos: Buzzi, De Maria e Lucini. Das
quarenta e cinco respostas se deduz que o tema, o qual não era uma novidade
para a França, na Itália constituía um elemento de ruptura com a tradição.
Se a prioridade da experiência vers-libriste na Itália cabe a Gian Pietro
Lucini – que, em 1898, publicava Drammi delle maschere, em 1908, Il verso
libero e, em 1909, Revolverate (com “Prefácio futurista” de Marinetti) –, a
divulgação polêmica em escala nacional cabe, sem dúvida, à ação da revista
Poesia.
A destruição do soneto, do hendecassílabo, do terceto, a absoluta
liberdade de acentuação, as estrofes de tamanhos imprevistos e diferentes, o
novo ritmo, os novos efeitos fônicos eram algumas das características do verso
livre. Entre os melhores exemplos de poemas em verso livre lembramos:
Aeroplani (1909), de Paolo Buzzi; L’incendiario (1910), de Aldo Palazzeschi;
Poesie elettriche (1911), de Corrado Govoni; Il canto dei motori (1912), de
Luciano Folgore, e Cavalcando il sole (1914), de Enrico Cavacchioli.
A renovação representada pelo verso livre, entretanto, não bastava; de
fato, além do prefácio da obra de Lucini, Marinetti (1968b) só fez referências
explícitas a ele em “Discurso aos triestinos” (1910) e em “Manifesto dos
dramaturgos futuristas” (1911). No primeiro manifesto, como vimos, havia uma
referência às temáticas futuristas, mas não às técnicas, uma vez que neste a
ordem sintática das palavras era respeitada e a corrente da emoção lírica era
aprisionada pela sintaxe; por isso era preciso libertar as palavras dos fios
condutores que as mantinham ligadas, “fazer explodir as pontes das coisas já
ditas”, “destruir os trilhos do verso”, era necessário que a essência da matéria
aflorasse, para poder adentrar o Novo e o Futuro. Desse modo, a partir de
1912, Marinetti começava a propor a teoria das palavras em liberdade, numa
tentativa de superação das técnicas literárias anteriores.
Destruída a poética do passado, por meio de uma subversão que não era
só gramatical ou estilística, mas principalmente psicológica, porque era o
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reflexo de uma nova sensibilidade, estava aberto o caminho para a construção
da poesia moderna.
A teoria das palavras em liberdade foi elaborada, como já dissemos, nos
três manifestos “técnicos”, surgidos entre 1912 e 1914, que era também o
período de gestação de Zang tumb tuuum, o que vem provar que teoria e
práxis se desenvolviam paralelamente. Pela análise dos três manifestos,
podemos arrolar as seguintes características das palavras em liberdade: (1)
destruição da sintaxe; (2) emprego do verbo no infinitivo3; (3) uso do adjetivo-
semáforo ou adjetivo-farol ou adjetivo-atmosfera; (4) criação de um duplo
para cada substantivo; (5) abolição da pontuação; (6) expansão das ligações
analógicas; (7) eliminação das categorias de imagens; (8) disposição caótica na
orquestração das imagens; (9) destruição do eu (subjetivismo) na literatura,
substituído pela (10) obsessão lírica da matéria, cuja essência seria captada
por meio da (11) introdução do rumor, do peso e do odor dos objetos na
literatura; (12) exaltação do feio na literatura.
Muitas dessas características, como bem lembra Luciano De Maria (1986),
já estavam presentes na literatura francesa: Victor Hugo, Charles Baudelaire,
Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé eram alguns dos modelos. A originalidade
de Marinetti consistiu em ter aglutinado esses elementos dispersos,
transformando-os numa linguagem própria.
O cerne do manifesto de 1912, “Manifesto técnico da literatura futurista”
(MARINETTI, 1968e), era o ataque ao psicologismo na literatura, a negação do
subjetivismo dos românticos e dos simbolistas, a destruição do eu obsessivo,
que levava a atribuir paixões e atribulações próprias do homem a outros seres
animados e inanimados. Depois da “simultaneidade dos estados d’alma”,
proclamada pelos pintores futuristas em fevereiro de 1912 (“Prefácio do
catálogo das exposições de Paris, Londres, Berlim, Bruxelas, Munique,
Hamburgo, Viena etc.”, assinado por Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi
3Luciano Folgore, em “Lirismo sintético e sensação física” (publicado na revista Lacerba, 1º. jan. 1914), proporá a abolição total do verbo.
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Russolo, Giacomo Balla e Gino Severini), a subjetividade, que parecia
completamente eliminada das teorizações marinettianas, seria recuperada. No
manifesto de 1913, “Destruição da sintaxe Imaginação sem fios Palavras em
liberdade”, Marinetti (1968d) começava a falar de “consciências múltiplas e
simultâneas num mesmo indivíduo”, apropriando-se da simultaneidade,
“palavra mágica” – como a define De Maria (1969, p. XXIX) – descoberta pelos
pintores. A aceitação do conceito de simultaneidade lírica – ou “lirismo
multilíneo”, para usarmos a expressão de Marinetti – representou um
importante passo adiante em relação à teoria enunciada no manifesto de 1912:
o objetivismo absoluto era substituído pelo subjetivismo relativo, que permitia
a coexistência de vários pontos de vista. Subjetivismo confirmado em 1914, no
terceiro manifesto técnico, “O esplendor geométrico e mecânico e a
sensibilidade numérica”, quando Marinetti (1968f) propôs que se alcançasse
uma “perspectiva emocional multiforme” através das palavras em liberdade e
pelo repúdio da sintaxe, inimiga da emoção.
Os exemplos mais significativos de palavras em liberdade são do próprio
Marinetti: Zang tumb tuuum (1914), mas, já antes, Batalha Peso + Odor (1912)
e Adrinopla cerco orquestração (publicado em Lacerba, 15 mar. 1913), além de
várias “colagens tipográficas”, em que o autor antecipava a poesia visual ou
concreta, reunidas em 1919 em Les mots en liberté futuristes, e do “romance
explosivo” Otto anime in una bomba (1919).
Zang tumb tuuum pode ser considerado a melhor realização prática dos
conceitos teóricos formulados por Marinetti entre 1912 e 1914. A
correspondência entre a poética, contida nos três manifestos técnicos, e a
poesia, expressa nessa obra, era praticamente perfeita: embora o resultado
final deixasse um pouco a desejar, nas intenções formais os preceitos teóricos
haviam sido bem aplicados. A harmonia do estilo era substituída por uma
escrita dinâmica que se valia de várias técnicas:
1. destruição da sintaxe, pois as palavras apareciam soltas, não mais ligadas
pelos fios da lógica gramatical. Não havendo mais esse intermediário, o leitor
era atraído para dentro do texto (como nas obras de Mallarmé);
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2. verbos no infinitivo: a descrição da batalha tornava-se mais incisiva e direta,
com o emprego de poucos verbos no infinitivo (que é uma das formas nominais
do verbo). Nesse tipo de enunciado mais sintético, a expressividade provinha
dos substantivos e dos adjetivos, que se manifestavam com maior força
realista. Conseqüentemente, alcançava-se a destruição do subjetivismo,
seguindo as pegadas da tradição poética francesa, principalmente de
Baudelaire;
3. abolição da pontuação: o tamanho variável dos espaços em branco (como em
Mallarmé) indicava ao leitor as pausas da intuição. A pontuação podia ser
substituída também por símbolos matemáticos;
4. onomatopéias e expansão de vogais e consoantes: Marinetti, no entanto,
nem sempre confiava no valor do rumor da matéria em movimento e decifrava
as onomatopéias para o leitor, entre parênteses;
5. revolução tipográfica, graças ao uso de corpos diferentes;
6. adjetivo-farol, o qual, com a eliminação do advérbio e do adjetivo comum,
lançava sua luz sobre as palavras circunstantes;
7. ligações analógicas entre as palavras, o que permitia gradações de analogias
cada vez mais amplas, uma maior orquestração das imagens e uma fusão de
sentimentos e sensações (visuais, olfativas, auditivas, táteis).
A matéria não estava mais sujeita aos estados d’alma do poeta, mas
ganhava uma força própria. Não existiam mais as barreiras, as névoas, as
cortinas do Simbolismo, havia o contato direto com a realidade física.
Entrementes, era um realismo que, estranhamente, se construía, como vimos,
através de sensações. Isso no que diz respeito ao estilo. Quanto ao conteúdo, a
guerra (para dentro da qual o leitor era arrastado) era apresentada como uma
festa, um espetáculo grandioso e, paradoxalmente, como afirmação da vida.
A leitura de Zang tumb tuuum não é fácil, pois a ausência de uma sintaxe
organizada a dificulta muito. Além disso, nem sempre é possível reconstruir a
rede de analogias pensadas por Marinetti. Quando apresentava essa obra, o
autor contornava as dificuldades propondo uma interpretação física em que,
para espalhar as palavras em liberdade, o declamador, pela movimentação,
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fizesse de seu corpo um instrumento no meio de outros instrumentos: o rosto e
a voz deviam ser desumanizados e a gesticulação geométrica. O dinamismo
desse novo tipo de declamação tornaria o espectador participativo,
arrancando-o da atitude contemplativa, como preconizado em “A declamação
dinâmica e sinóptica”, em 1916 (MARINETTI, 1968c)4.
Dessa forma, o poema assumia um aspecto contraditório: de um lado, era
o ponto de partida da poesia visual ou concreta; de outro, representava a
última manifestação da poesia declamada. O aspecto visual e o aspecto
acústico, portanto, coexistiam: a tipografia livre expressiva e as onomatopéias
precisavam ser declamadas para se realizarem plenamente. A
poliexpressividade, auspiciada no manifesto “A cinematografia futurista”, em
1916 (MARINETTI et al., 1973), já vinha-se concretizando: “Colocaremos em
movimento as palavras em liberdade que rompem com os limites da literatura,
marchando para a pintura, para a arte dos rumores e lançando uma ponte
maravilhosa entre a palavra e o objeto real”5.
Além de Marinetti, na fase das palavras em liberdade, destacaram-se:
Luciano Folgore, com Ponti sull’oceano (1914); Carlo Carrà, o qual, em
Guerrapittura (1915) demonstrava a inexistência, em muitos casos, da
distinção entre as artes figurativas e a literatura; Auro D’Alba, com Baionette
(1915); Corrado Govoni, com Rarefazioni e parole in libertà (1915); Paolo
Buzzi, com L’elisse e la spirale (Film + parole in libertà) (1915); Francesco
Meriano, com Equatore notturno (1916); Volt (Vincenzo Fani-Ciotti), com Archi
voltaici (1916); Armando Mazza, com Firmamento (1920); Francesco Cangiullo
com Piedigrotta (1916) e Caffeconcerto (1919), obras eivadas de um grande
senso de humor, nas quais o elemento visual predominava; Ardengo Soffici,
que, em BIF§ZF + 18 simultaneità e chimismi lirici (1919), oferecia um dos
4Em sua viagem ao Brasil, em maio de 1926, Marinetti declamou vários poemas, entre os quais O bombardeio de Adrinopla, cuja apresentação surpreendeu o público e foi considerado pela imprensa, “excessivamente cheio de ruídos: marcha de batalhões, clarins, apitos, guinchos, gritos de soldados feridos, estouros de metralha, fuzilaria, resfolegar de motores, fragor de edifícios que se desmoronam...”(FABRIS, 1994, p. 220-222). 5O manifesto era assinado por F. T. Marinetti, Bruno Corra, Emilio Settimelli, Arnaldo Ginna, Giacomo Balla e Remo Chiti.
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melhores exemplos de tavole parolibere. Nessa obra, a mensagem poética
recorria às novas técnicas de comunicação industrial e se exprimia por meio do
uso de corpos tipográficos diferentes.
Outros exemplos significativos pertencem à década de 1930, isto é, ao
período do segundo Futurismo: Infinito (1933) e Accenti e quote (1935), de
Bruno Sanzin; Tavole parolibere (1932), Canti della metropoli verde (1935) e
Poesie dei ferri chirurgici (1940), de Pino Masnata. Este último autor inventou
o substantivo “de dupla função” – um nome que, colocado entre dois verbos,
servia de objeto direto para o primeiro e de sujeito para o segundo – e o
adjetivo “bivalente”, assim denominado porque concordava com os dois
substantivos entre os quais era colocado (VERDONE, 1986, p. 45). Isso vinha
demonstrar que, mesmo depois da fase heróica (1909-1920)6, ou seja, aquela
da vanguarda como descoberta, como renovação, os futuristas continuaram em
sua busca experimental.
A fase da aeropoesia, cujas maiores expressões foram o “Manifesto da
aeropoesia” (1931) e O aeropoema do golfo de La Spezia (1935)7, correspondeu
à realização literária da aeropintura (surgida em 1929), dominada pela síntese,
pelo dinamismo, pela interpenetração, pela simultaneidade e pela nova
afirmação do mito da máquina.
A aeropoesia caracterizava-se por uma exacerbação da simultaneidade,
sobretudo graças à eliminação da pontuação, à fusão de palavras, ao emprego
de adjetivos-atmosfera e de verbos em modos finitos (Presente do Indicativo)
ao lado de verbos no infinitivo. O emprego do Presente permitia à lembrança se
vivificar, fundindo simultaneamente o presente e o passado na memória do
autor. A simultaneidade do presente e do passado, ao anular as distâncias
6Nesse caso, também, a periodização estabelecida por De Maria difere daquela de Verdone, que a prolonga até 1940, e daquela de Falqui, para quem a fase áurea não iria além de 1915-1916 (quando os marinettianos se afastaram do grupo da revista Lacerba). 7Podem ser lembrados ainda: Aeropoema del golfo di Napoli (1937), de Emilio Buccafusca, Idrovolanti in siesta nel golfo di Napoli (1938), de Geppo Tedeschi, Il poema del vestito di latte (1937), Il poema di Torre Viscosa (1938) e Il poema non umano dei tecnicismi (1940), de Marinetti, L’aeropoema futurista della Sardegna, de Gaetano Pattarozzi, L’aeroporto, de Ignazio Scurto, L’aeropoema futurista dell’Umbria, de Franca Maria Corneli, dentre muitos outros. (D’AMBROSIO, 1996; VIAZZI, 1977; PAGLIA, 1977).
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espaciotemporais, correspondia à simultaneidade de visão e à interpenetração
propiciada pela velocidade aérea, pelas comunicações via rádio e pelo cinema.
Os meios de percepção e de expressão se ampliavam: cores, odores e sons
favoreciam uma síntese, às vezes forçada, de realidades distantes. A sintaxe, o
discurso, destruídos na fase anterior, ressurgiam de forma muitas vezes
retórica, através da exaltação da guerra e da tensão oratória. Os nexos lógicos,
antes negados, tornavam a aparecer de forma imprópria, em momentos em que
poderiam ter sido eliminados, por já estarem pressupostos. Em suma, entre o
parolibrismo e a aeropoesia não havia uma grande diferença: havia algumas
variações, às vezes uma redução, um recuo em termos estilísticos.
As palavras em liberdade e, principalmente, os poemas paroliberi, com as
analogias desenhadas, a ortografia e a tipografia livre expressiva,
representaram uma fragmentação da estrutura lingüística da poesia, mas, ao
mesmo tempo, serviram como material de construção de outras experiências
literárias. Por exemplo, na Rússia, as obras de Maiakóvski apresentavam muitas
afinidades com o Futurismo no campo dos procedimentos formais, embora
partindo de concepções ideológicas opostas. Dadaístas e surrealistas (Tzara e
Breton) valer-se-ão da experiência futurista em nível teórico e prático,
assimilando imagens, analogias, a sintaxe nominal. Na Itália, foram devedores
do Futurismo, dentre outros, Dino Campana, Massimo Bontempelli, Salvatore
Quasimodo e, sobretudo, Giuseppe Ungaretti, que chegou a adotar uma
declamação futurista (VERDONE, 1986; DE MARIA, 1973, 1986; BRIOSI, 1972;
GRISI, 1994; GIMÉNEZ-FRONTIN, 1977).
No Brasil, o diálogo com os futuristas é facilmente detectável em Oswald
de Andrade, não só em Poesia pau-brasil (1925), mas também nos romances
Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933),
que se caracterizam por rápidos flashes sintéticos (fragmentos), estilo nominal,
telegráfico, fluxo de idéias, paródia ou reescrita de autores anteriores
(apropriação do olhar do outro). Estará presente, ainda, nas neovanguardas –
por via direta ou indireta, através de outras vanguardas históricas – como foi o
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007
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caso da poesia concreta nos anos 1950. No Plano-piloto para poesia concreta
(1958), de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos (2002, p.
204), a contribuição do Futurismo, arrolado como um dos precursores da nova
poética brasileira, é mais substancial do que se pode supor à primeira vista. A
idéia de ideograma (“método de compor baseado na justaposição direta –
analógica, não lógico-discursiva – de elementos”), a “tendência à
substantivação e à verbificação”, a “sintaxe puramente relacional baseada
exclusivamente na ordem das palavras”, a negação do subjetivismo, a
descoberta do “espaço gráfico como agente estrutural”, em oposição ao
“desenvolvimento meramente temporístico-linear” da composição, são
evidências de que a poética da matéria, preconizada por Marinetti, continuava
a se afirmar mesmo depois de seu momento histórico, comprovando a
vitalidade das teorizações e da práxis futuristas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRIOSI, Sandro. F. T. Marinetti. Firenze: La Nuova Italia, 1972.
CAMPOS, Augusto de, Décio PIGNATARI & Haroldo de CAMPOS. Plano-piloto para poesia concreta. In: SCHWARTZ, Jorge (org.). Da Antropofagia a Brasília: 1920-1950. São Paulo: FAAP, Cosac & Naify, 2002. p. 204.
D’AMBROSIO, Matteo (org.). Marinetti e il Futurismo a Napoli. Roma: Edizioni De Luca, 1996.
DE MARIA, Luciano. Introduzione. In:______. (org.) Per conoscere Marinetti e il Futurismo. Milano: Mondadori, 1973. p. XIII-XXXVIII.
DE MARIA, Luciano. Cronologia. In: MARINETTI, Filippo Tommaso. La grande Milano tradizionale e futurista. Milano: Mondadori, 1969. p. XXVI-XXXII.
DE MARIA, Luciano. Parole in libertà [verbete]. In: HULTEN, Pontus (org.). Futurismo & Futurismi. Milano: Bompiani, 1986. p. 536-8.
FABRIS, Annateresa. Futurismo: uma poética da modernidade. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1987.
FABRIS, Annateresa. O Futurismo paulista: hipóteses para o estudo da chegada da vanguarda ao Brasil. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1994.
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007
75
FALQUI, Enrico. Bibliografia e iconografia del Futurismo. Firenze: Sansoni, 1959.
FINZI, Gilberto. Un dono di Marinetti. In: Poesia in Italia: Montale, novissimi, postnovissimi (1959-1978). Milano: Mursia, 1979. p. 68.
GIMÉNEZ-FRONTIN, José Luis. Le avanguardie letterarie. Novara: Istituto Geografico De Agostini, 1977.
GRISI, Francesco (org.). I futuristi. Roma: Newton, 1994.
MARINETTI, Filippo Tommaso. Fondazione e Manifesto del Futurismo. In: DE MARIA, Luciano (org.). Teoria e invenzione futurista. Milano: Mondadori, 1968a. p. 7-13.
MARINETTI, Filippo Tommaso. Battaglie di Trieste / Discorso ai Triestini. In: DE MARIA, Luciano (org.). Teoria e invenzione futurista. Milano: Mondadori, 1968b. p.210-216.
MARINETTI, Filippo Tommaso. La declamazione dinamica e sinottica. In: DE MARIA, Luciano (org.). Teoria e invenzione futurista. Milano: Mondadori, 1968c. p. 104-111.
MARINETTI, Filippo Tommaso. Distruzione della sintassi Immaginazione senza fili Parole in libertà. In: DE MARIA, Luciano (org.). Teoria e invenzione futurista. Milano: Mondadori, 1968d. p. 57-70.
MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto tecnico della letteratura futurista/Risposte alle obiezioni/ Battaglia Peso + Odore. In: DE MARIA, Luciano (org.). Teoria e invenzione futurista. Milano: Mondadori, 1968e. p 40-54.
MARINETTI, Filippo Tommaso. Lo splendore geometrico e meccanico e la sensibilità numerica. In: DE MARIA, Luciano (org.). Teoria e invenzione futurista. Milano: Mondadori, 1968f. p. 84-92.
MARINETTI, Filippo Tommaso. La tecnica della nuova poesia. In: DE MARIA, Luciano (org.). Teoria e invenzione futurista. Milano: Mondadori, 1968g. p.180-3.
MARINETTI, Filippo Tommaso et al. La cinematografia futurista. In: DE MARIA, Luciano (org.). Per conoscere Marinetti e il Futurismo. Milano: Mondadori, 1973. p. 189-194.
PAGLIA, Luigi. Invito alla lettura di Marinetti. Milano: Mursia, 1977.
VERDONE, Mario. Il movimento futurista. Roma: Lucarini, 1986.
VIAZZI, Glauco. Collaudi futuristi. Napoli: Guida, 1977.
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007
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E LASCIATEMI DIVERTIRE E DEIXEM QUE EU ME DIVIRTA
(Canzonetta) (Cançoneta)
Aldo Palazzeschi Tradução de Haroldo de Campos
Tri tri tri, Tri tri tri,
fru fru fru, fru fru fru,
ihu ihu ihu, uhi uhi uhi,
uhi uhi uhi! ihu ihu ihu.
Il poeta si diverte, O poeta se diverte,
pazzamente, loucamente,
smisuratamente! desmesuradamente!
Non lo state a insolentire, Não o venham censurar
lasciatelo divertire deixem-no brincar
poveretto, coitado,
queste piccole corbellerie estas ninharias
sono il suo diletto. são a sua alegria.
Cucù rurù, Cucu ruru,
rurù cucù, ruru cucu,
cuccuccurucù! cuccuccurucu!
Cosa sono queste indecenze? Que tolices são essas?
Queste strofe bisbetiche? Estrofes desconexas?
Licenze, licenze, Licenças, licenças,
licenze poetiche! licenças poéticas!
Sono la mia passione. são a minha paixão.
Farafarafarafa, Farafarafarafa,
tarataratarata, Tarataratarata,
paraparaparapa, paraparaparapa,
laralaralarala! laralaralarala!
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007
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Sapete cosa sono? O que são? Direi:
Sono robe avanzate, São coisas avançadas,
non sono grullerie, não são bizarrias,
sono la spazzatura são a... varredura
delle altre poesie. das outras poesias.
Bubububu, Bubububu,
fufufufu, fufufufu,
Friu! Friú!
Friu! Friú!
Ma se d’un qualunque nesso Se não têm nem um pouco
son prive, de senso
perché le scrive por que perde tempo
quel fesso? esse louco?
Bilobilobilobilobilo Bilobilobilobilobilo
blum! Blum!
Filofilofilofilofilo Filofilofilofilofilo
flum! flum!
Bilolù. Filolù. Bilolú. Filolu.
U. U.
Non è vero che non voglion dire, Não é que não queiram dizer
voglion dire qualcosa. nada: algo querem dizer.
Voglion dire... A saber...
come quando uno Como alguém que se põe a
si mette a cantare [cantar
senza saper le parole. e esquece as palavras.
Una cosa molto volgare. Coisa muito vulgar.
Ebbene, così mi piace di fare. Pois bem, isto me agrada.
Aaaaa! Aaaa!
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007
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Eeeee! Eeee!
Iiiii! Iiii!
Ooooo! Oooo!
Uuuuu! Uuuu!
A! E! I! O! U! A! E! I! O! U!
Ma giovinotto, Mas
ditemi un poco una cosa, diga-me, rapaz,
non è la vostra una posa, e essa pose, esse ar,
di voler con così poco de quem quer com tão pouco
tenere alimentato alimentar
un sì gran foco? um grande fogo?
Huisc... Huiusc... Huisc... huiusc...
Sciu sciu sciu, Huisciu...sciu sciu,
koku koku koku. Sciukoku... Koku koku,
Sciu
Ko
Ku.
Ma come si deve fare a capire? Como fazer para entender?
Avete delle belle pretese, Isto, desta vez,
Sembra ormai che scriviate in giapponese. parece escrito em japonês.
Abì, alì, alarì. Abí, alí, alarí.
Riririri! Riririri!
Ri. Ri.
Lasciate pure che si sbizzarrisca, Deixem: há de saciar-se,
anzi è bene che non la finisca . melhor seria porém que terminasse,
Il divertimento gli costerà caro, pode custar-lhe caro o sarcasmo:
gli daranno del somaro. no final, orelhas de asno.
Labala Labala
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007
79
falala Falala
falala Falala...
eppoi lala. e mais lala...
Lalala lalala. e lalala lalalala lalala.
Certo è un azzardo un po’forte, De certo, é muita ousadia
scrivere delle cose così, escrever essas coisas tortas,
che ci sono professori oggidì há professores, hoje em dia,
a tutte le porte. em todas as portas.
Ahahahahahahah! Ahahahahahahah!
Ahahahahahahah! Ahahahahahahah!
Ahahahahahahah! Ahahahahahahah!
Infine io ho pienamente Enfim,
[ragione, tenho toda a razão
i tempi sono molto cambiati, os tempos mudaram muito,
gli uomini non dimandano ninguém quer mais nada
più nulla dai poeti, com poetas:
e lasciatemi divertire! e deixem que eu me divirta!
BATTAGLIA SOTTO VETRO-VENTO
Filippo Tommaso Marinetti
a 5000 m. davanti calma solennità metodo
della battaglia in sordina ru-
mori oliati dalla distanza fra-
stuoni portati nel cristallo veloce del vento
forte Kartal-Tépé (FRESCO GRIGIO – PERLA
GIALLINO SOLLETICANTE INAFFERRABILE
DUBBIOSO) forte Koutch-Tépé
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007 61
forte Cheittam-Tépé forte Kazal-
Tépé 30 vampe successive isocrone valllzer
di 30 coppie rosse dietro vetri chiusi
(SILENZIOSO INCOMPRENSIBILE ASSURDO) cin-
ghie-trasmissioni di echi ruuussssssanti
lavoro ordinato d’officina
mulino oscillare
telaio tessitura spole di fuoco seta del
rumore fucileria = stridore di mola fuga
alternata di sottili fumi bianchi (SHRAPNELS)
grossi fumi neri (GRANATE)
concorrenza industriale di gridi + fiamme
+ proiettili + sfracellamenti sotto il vento
regolatore commerciale sciopero
di rumori a 1000 m. davanti a
me 2 aratri pazieeeenza scriiiicchiolìo di zolle
sassose pettini-furtivi-del-vento su 6 pecore
tosse d’un ufficiale seduto su un cassone
nella trincea risonanza dei pol-
moni tisi flussssso e riflusssssso di foglie
tremanti sulla spiaggia del silenzio bulgaro
mare agonie elegante Nizza Menton
San Remo patapum-pluff (ONDA)
fraaaaaah (GHIAIA)
plupumflac (DURO PRECIPITATO LUGUBRE)
fraaaaaah (INDULGENTE SCONSOLATO)
pluuuum (CADAVERE O CANNONATA)
sciaaaaaah (VENTAGLIO D’ACQUA ANGOSCIE
RICORDI)
a 8000 m. a destra al di là della Maritza
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007
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valle piena di esplosioni imbavagliate (CALMO
NONCURANTE AZZUUURRO VERDE GRIGIO FRE-
SSSSSSCO GIOVANE SORRIDENTE) ingenuità di
4 fumi bianchi su quell’altura shrapnels quasi
silenziosi garbatezza di una batteria
invisibile spazzare la CrRrREsta sopra l’arram-
picarsi (INVISIBILE POCO RUMOROSO CERTO
ACCANITO) fanteria sussulti graziosi d’acqua
bollente quella caldaia borbottare (MITE LON-
TANO DOLCE DOLCISSIIIIMO PACIFICO IN-
NOCENTE) risposta ugualmente gar-
bata shrapnels turchi (LEGGIERO FESTOSO
NONCURANTE) fuochi artificiali
ventaglio perforante delle mitragliatrici lon-
tane rinfrescare però rinfrescare certo la
marmellata gialla di rovi intestini grasso
sangue fango fra balzi dei tizzoni entusiasti
ossa carbonizzate spegnersi 2-3-4
scosse spegnersi brivido
brivido immobilità indiffe-
renza della Maritza sorrisi calma affettata
degli amoerri (VERDE AZZURRO MOLLE SE-
RICO DELICATO LENTO) sotto di
me a 3000 metri 3a divisione bulgara (af-
frettarsi certo correre correre correre) rallen-
tare apparente come per nascondersi tenten-
namenti cautela al riparo di quelle alture
(che pur sembrano schiacciate) scendere pace
sete delle mandre cornute di baionette ab-
beveratoio Maritza 1000 m. più
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007
84
lontano 4a divisione bulgara bian-
chezza triangoli tende serenità
indifferenza sonno di
un accampamento nomade sotto 4 shrapnels
(ISOCRONO ABITUDINARIO ALLEGRO TIMIDO
INFANTILE LEGGENDARIO) batteria turca tiro
rapido 4 stelle argentee apparse
4 sparite
4 APPARSE
4 sparite
8 appariiire
PRESEPIO
BATALHA SOB VIDRO-VENTO
Tradução de Mário Faustino
a 5.000 m. diante da calma solenidade método da
batalha em surdina rumores oleados da
distância fragores levados no cristal ve-
loz do vento forte Kartal-Tépé (FRESCO CINZENTO – PÉROLA
AMARELINHO COMICHANTE INAFERRÁVEL DUVIDOSO)
forte Kazal-Tépé forte Cheittam-Tépé
forte Kazal-Tépé 30 chamas sucessivas isócronas
valllsas de 30 casais vermelho atrás dos vidros fechados
(SILENCIOSO INCOMPREENSÍVEL ABSURDO) fitas-transmissões
de ecos rooossssssnantes
trabalho ordenado de oficina
moinho oscilar
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007
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tear tessitura fusos de fogo seta do rumor fuzilaria
= estridor de mola fuga alternada de sutis fumaças
brancas (SHRAPNELS) grossos fumos negros (GRANADAS)
concorrência industrial de gritos + chamas + projéteis
+ esfacelamentos sob o vento regulador comercial
greve de rumores a 1.000 m.
diante de mim 2 arados paciêêêêêência raaange-raaange de
torrões pedregosos pentes-furtivos-do-vento sobre 6 ovelhas
tosse de um oficial sentado num caixão na trincheira
ressonância dos pulmões tísica fluxxxxo e refluxxx-
xxxo de folhas trêmulas sobre a praia do silêncio
búlgaro mar agonias elegantes Nice Menton
San Remo patapum-pluff (ONDA)
fraaaaah (SAIBRO)
plupumflac (DURO PRECIPITADO LÚGUBRE)
fraaaaaah (INDULGENTE DESCONSOLADO)
pluuuuum (CADÁVER OU CANHONEIO)
chaaaaah (LEQUE D’ ÁGUA ANGÚSTIAS LEMBRANÇAS)
a 8.000 m. à direita além da Maritza vale
cheio de explosões amordaçadas (CALMO DESPREOCUPADO)
AZUUUUUL VERDE CINZA FRESSSSSCO JOVEM SORRI-
DENTE) ingenuidade de 4 umaças brancas aquele alto
shrapnels quase silenciosos gentileza de uma
bateria invisível varrer a CrRrRista sobre subiragar-
rando-se (INVISÍVEL POUCO RUMOROSO CERTO TEIMOSO)
infantaria sobressaltos graciosos de água fervendo aquela
caldeira borbulhar (PIO LONGÍNQUO DOCE DULCÍÍÍSSIMO PA-
CÍFICO INOCENTE) resposta igualmente gen-
til shrapnels turcos (LEVE FESTIVO DESCUIDADO)
fogos artificiais leque perfurante das
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007
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metralhadoras longínquas resfrescar porém resfrescar certo
a marmelada amarela de espinheiros intestinos gordura
sangue lama entre pulos dos tições entusiastas ossadas
carbonizadas apagar-se 2-3-4
sacudidelas apagar-se calafrio
calafrio imobilidade indiferença
da Maritza sorrisos calma afetada das amoreiras
(VERDE AZUL MOLE SEDOSO DELICADO LENTO)
abaixo de mim a 3.000 metros 3a divisão búlgara
(apressar-se certo correr correr correr) diminuiramar-
cha aparente como para esconder-se vacilações cautela ao
abrigo daqueles altos (que também parecem esmagados)
descer paz sede dos rebanhos cornudos de baionetas
bebedouro Maritza 1.000 m. mais
longe 4a divisão búlgara brancura
triângulos tendas serenidade
indiferença sono de um acampamento
nômade sob 4 shrapnels (ISÓCRONO FAMILIAR ALE-
GRE TÍMIDO INFANTIL LENDÁRIO) bateria turca tiro
rápido 4 estrelas prateadas aparecidas
4 desaparecidas
4 APARECIDAS
4 desaparecidas
8 apareciiidas
PRESÉPIO