noites sobrias

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    NOITES

    SOMBRI S

    Organizadores:

    Marcos de Sousa

     Natalia AraújoRaquel Pagno

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    Sumário

    PREFÁCIO - POR EDUARDO KASSE ........................................ 5 

    ALEXSANDER HANTZ... ................................................. 7 

    199X ................................................................................... 8  

    CARLOS NARDI... ........................................................... 27 

     AÇOUGUEIRA .....................................................................28  

    CRISTINA DE AZEVEDO... ............................................ 38 

     ANJO NEGRO ......................................................................39 

    DÉCIO GOMES... .............................................................. 52 

    O COLECIONADOR DE MÁSCARAS .......................................53 

    EDDY KHAOS... ............................................................... 74 

    NUNCA MAIS ENGANADO ..................................................75 

    IGOR QUADROS... ........................................................... 82 

    PESTILÊNCIA .......................................................................83 

    H. A. KIPPER... .................................................................. 94 

    O MARSUPIAL ....................................................................95 

    IRIS ALBUQUERQUE... ................................................. 105 

    NAQUELA NOITE .............................................................. 106 

    MARCOS DE SOUSA... ................................................. 125 

    O VALE DA MORTE ........................................................... 126 

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    MIA ANTIERY... ............................................................. 135 

    INSPIRAÇÃO MACABRA .................................................... 136 

    NATALIA ARAÚJO... .................................................... 145 

    VIÚVA NEGRA .................................................................. 146 

    ORIONN ALBUQUERQUE... ....................................... 158 

     AMSTERDÃ ...................................................................... 159 

    RAQUEL PAGNO... ....................................................... 163 

    MUDANÇA ....................................................................... 164 

    ROGÉRIO QUEIROZ... .................................................. 188 

    POBRE MARIA ............................................................. 189 

    SUSY RAMONE... ........................................................... 210 

    O PORÃO DO DIABO ......................................................... 211 

    UBALDININHA DA COSTA TORRES LUIZE... ....... 220 

    O SOLAR DOS FEITOSA ..................................................... 221 

    VERÔNICA LUIZE... ..................................................... 232 

    REALIDADE REVIRADA ...................................................... 233 

    WILLIAN SAINTS... ....................................................... 239 

    CANTO DEMONÍACO ........................................................ 240 

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    Por Eduardo Kasse

    Medo, arrepios, náuseas, ódio ou até mesmo risos. Um bom

    conto de terror causa sensações e sentimentos diversos no leitor.

    Uma história trabalhada na medida certa sempre mexe com as

    pessoas.

    Para o bem ou para o mal.

    Quantas vezes, ao lermos uma narrativa, não nos pegamos

    com os olhos cheios de lágrimas? Ou ao acabarmos uma cena mais

    pesada, não sentimos um mal-estar estranho, incômodo, que nos

    deixa com o peito apertado e a respiração ofegante...Quantas vezes não olhamos ressabiados para os lados,

    trancamos as janelas e acendemos todas as luzes da casa depois de

    vivenciar a jornada de algum personagem macabro?

    Muitos se ajoelham e oram, com fervor imenso, pedindo para

    afastar o mal. Implorando para ele desaparecer.

    Um mal inexistente, somente literário, o que é mais incrível.Ou talvez não.

    PREFÁCIO

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    Demoramos a dormir, assustados com sombras e sons, com o

    vento assoviando lá fora. Ah, confesse: mesmo depois de adulto

    você já sentiu esses medos!E essa é a magia da literatura!

    É fazer o leitor parte da história, cada um com suas

    interpretações, reações e experiências. É abrir portas para mundos,

    universos e essências novos que vão se construindo a cada

    parágrafo, a cada capítulo.

    Um conto é como um organismo vivo, que depende dahabilidade de quem o escreveu e da percepção de quem o lê. E ele

    nunca vai ser igual: leia-o mais de uma vez e sempre verá novos

    ângulos e perspectivas.

    E, no caso específico desse livro, a grande missão é fazer o

    leitor se deliciar e temer as Noites Sombrias.

    Eduardo Kasse (@edkasse) é escritor, autor da Série Tempos

    de Sangue, palestrante e analista de conteúdos. Tem duas paixões:

    a literatura e os cães. E, por incrível que pareça, elas se

    complementam.

    Contatos: www.eduardokasse.com.br

    http://temposdesangue.com.br

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     ALEXSANDER HANTZ...

    ...tem 19 anos, nasceu em Ipatinga, interior de Minas Gerais.

    Desde muito novo, o mundo da literatura chamava atenção do

    pequeno garoto que cresceu cercado a ele. Em meio de histórias,

    contos, romances, percebeu o quanto bom era ler, ou escutar que

    alguém contasse alguma história interessante. Contudo, descobriu

    que escrever suas próprias histórias era bem mais divertido.

    Hoje, além do conto 199X, possui seu primeiro livro da série A

    Debutante , publicado pela editora APED. Atualmente, Alexsandercursa Engenharia Química em Ipatinga, onde reside.

    Contato com o autor: [email protected]

    199X

    mailto:[email protected]:[email protected]

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    199X

    Five different families had strange experiences in a very dark

    decade. Unaware of the exactly year when they happened. The

    cases were mysteriously lost, but just one of them was found at the

    house where everything happened .The case 199X is open again!

    Cinco famílias diferentes passaram por estranhos

    acontecimentos em uma década sombria. Não se sabe exatamente oano dos acontecimentos. Os registros dos casos desapareceram

    misteriosamente e apenas um deles foi encontrado na casa onde

    tudo aconteceu. O caso 199X está novamente aberto.

    ————————————————————————————— 

    FICHA 19A27H2D

    Nome: Alicia /Idade: 18 anos

    Nacionalidade: Brasileira / País de origem: Brasil.

    Motivo da morte: Esquartejamento

    FICHA 20B28B13

    Nome: Elizabete /Idade: 19 anos

    Nacionalidade: Americana /País de origem: Estados Unidos da

    América.

    Motivo da morte: Esquartejamento

    FICHA 20B28B13

    Nome: DESCONHECIDO

    Nacionalidade: DESCONHECIDO

    Motivo da morte: Esquartejamento

    Estes são alguns dados contidos no relatório feito peloDepartamento de Perícia dos Estados Unidos. Dois de outubro de

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    2014: Alícia, Elizabete e um terceiro corpo ainda não identificado

    foram encontrados no interior de uma floresta próxima ao centro

    da cidade. As duas primeiras foram identificadas: são estudantesde jornalismo de uma conceituada universidade de Boston. O

    terceiro corpo ainda possui identidade desconhecida, contudo, as

    análises para o reconhecimento já foram iniciadas. Também foi

    achada uma câmera com gravações que seria supostamente das

    garotas assassinadas. O curioso é que os corpos foram parcialmente

    cobertos por cerejas... Isso mesmo, cerejas! —  dizia a jornalistamostrando, em um saco plástico, uma delas. — Ainda não se sabe o

    motivo ou se é uma pista deixada pelo criminoso. —  Concluiu a

     jornalista que fazia a cobertura desse misterioso assassinato em

    Chicago.

    Uma semana antes...

    —  O que acha que podemos fazer?—  perguntava Natasha,

    segurando em uma das mãos um caderno e na outra um saco dedoces.

    — Tem que ser algo impactante. — disse Elizabete, amarrando

    os cabelos ruivos encaracolados, deixando aparente sua suave e

    angelical face lustrosa.

    — Algo que irá fazer todos ficarem impressionados. E, quem

    sabe, chamar atenção do Clark. —  argumentou Natashanovamente.

    — Do que você está falando? Do Clark? — Perguntou Alícia,

    aquela que, entre as três, tinha o corpo perfeitamente esculpido em

    mármore. — Ele não é para você! E já sabe a nossa opinião sobre

    ele — disse rindo.

    No último período da faculdade de jornalismo, as três garotas

    - Alícia, Elizabete e Natasha - tinham um trabalho para apresentar,

    muito importante para elas, afinal, a qualidade do mesmo iria

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    avaliar suas competências como futuras jornalistas. Contudo, esse

    não era o único objetivo das três. Natasha queria fazer com que

    Clark, o garoto do time de futebol da faculdade, notasse que elaexistia. Porém, para si mesma, ela não era boa o suficiente para

    Clark e ficava muitas vezes fazendo dietas e estabelecendo padrões

    de famosas e de garotas que ela julgava bonitas. Elizabete queria,

    por sua vez, escrever um trabalho de excelência para que pudesse

    ter seu nome reconhecido na comunidade acadêmica e seguir seus

    estudos como aquela que fez a diferença. Assim como Natasha, elanão se achava tudo o que os professores diziam ser e sabia que

    existiam pessoas mais notáveis na universidade, julgando a si

    mesma um fracasso. Já Alícia queria mesmo era voltar para o

    Brasil, ingressar na carreira publicitária e ver a felicidade

    estampada no rosto de sua mãe. Precisava, porém, conseguir

    dinheiro suficiente para pagar o último aluguel da casa onde

    estava morando, além das despesas de sua viagem de volta.Passaram dois dias pesquisando e discutindo nos horários

    vagos; nesta busca incessante pelo material ideal, foi que Natasha

    teve uma estranha e, de certa forma, duvidosa ideia e que foi

    imediatamente rejeitada por Elizabete.

    — O que é exatamente 199X? — perguntava Alícia, totalmente

    por fora das informações que suas amigas possuíam e começando apensar que fora excluída do clube das garotas por todos esses anos.

    —  É um caso misterioso. —  disse Natasha, com os olhos

     brilhando de felicidade, como se tivesse em mãos o trabalho

    perfeito.

    —  Não dê ouvidos a ela, é apenas uma história local!— 

    revelou Elizabete, juntando seus cadernos na bancada da

     biblioteca.

    — Então por que temer tanto? — retrucava Natasha.

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    —  Não existe nenhuma possibilidade de ele existir — 

    continuou Elizabete — e além do mais, se realmente existir, é um

    caso fechado, não foi provado nada e as garotas tiveram apenas...— O que é 199X? — perguntou Alícia, estalando os dedos para

    sinalizar que ainda estava ali.

    Após ser interrompida, Elizabete explicou:

    —  Basicamente tudo gira em torno de um relógio... —  disse

    ela.

    — Um relógio mágico! — revelou Natasha, muito empolgada.—  Não exatamente... —  rebateu Elizabete. —  É um relógio

    que, de alguma forma, realiza seus desejos.

    — A história verdadeira é sobre um gênio, como o da lâmpada

    mágica. — Interrompeu mais uma vez Natasha, quase pulando na

    frente de Elizabete, complementando tudo o que ela dizia.

    — Um gênio como Aladim?!— perguntou Alícia.

    —Não! Sim! — responderam juntas, em discordância.—Não! — enfatizou Elizabete. — Não é como nesses contos de

    fadas. O que vive naquele relógio é tão maligno quanto qualquer

    coisa que possa existir de pior no mundo real —  continuou,

    olhando nitidamente enfurecida para Natasha. —  Não se sabe

    exatamente o ano em que ocorreram esses casos. A única coisa que

    se sabe é que foi nos anos 90 — disse enquanto pegava um papel eescrevia os números 199 e, por fim, no lugar da unidade numérica,

    a letra X — Por isso os casos dessa época são chamados de 199X.

    Estes foram arquivados, mas misteriosamente os documentos

    desapareceram e apenas um caso foi encontrado no porão da casa

    onde a família viveu por todos esses anos. Realmente parece que o

    relógio, objeto pelo qual o ‚misterioso‛ gênio aparece e realiza os

    desejos daquele que o encontrou, é apenas uma lenda. —e concluiu

    esperançosa — De que nos ajudaria investigar uma coisa que nem

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    sabemos se existe? Seria uma total perda de tempo.

    —  Seria uma ótima ideia descobrir se essa história é real — 

    disse Alícia empolgada.Todas ficaram caladas por um momento.

    — Bom, vou para casa pesquisar alguma coisa que realmente

    seja consistente para nosso trabalho — disse Elizabete, cansada e

    um pouco enfurecida.

    —  Elizabete! —  gritou Natasha pela biblioteca, o que era

    proibido, mas estava muito empolgada sobre o caso 199X. Seguroufirme a mão de Elizabete, não a deixando ir-se. —  Eu sei onde

    encontrar o relógio. Se realmente conseguirmos o que queremos,

    você pode ter o que precisa para que sua carreira decole — disse e,

    com alto poder de persuasão, completou. — Imagine o que se pode

    conseguir se provarmos que o caso 199X é real?—  seus olhos

     brilharam ao cruzar com o olhar das amigas —  Meninas, o caso

    199X está novamente aberto! — decretou, sorrindo maliciosamente.Os dias se passaram e o trio de amigas ainda estava com

    opiniões divididas. Contudo, até mesmo a mais convicta sabia que,

    se elas não conseguissem fatos concretos, esse caso poderia

    arruinar suas futuras carreiras.

    Enquanto Elizabete pesquisava na biblioteca, debruçada sobre

    livros, arquivos e jornais da época e que tratavam sobre o caso,Alícia perguntava sobre o assunto para as pessoas que eram mais

    próximas a elas. Alguns sabiam do que se tratava a lenda, outros se

    recusavam a comentá-lo, por temer o azar que recairia sobre quem

    comentasse o assunto. Natasha, porém, tinha mais do que

    precisava nas mãos.

    No terceiro dia, ao anoitecer, as três amigas estavam juntas, a

    caminho de uma festa, e revolveram fazer uma visitinha à casa

    onde os documentos do caso 199X foram encontrados.

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    Dirigindo seu carro, Alícia desprezava o sofisticado GPS,

    preferindo confiar no conhecimento de Natasha, que dizia saber o

    caminho que levava à casa dos Stronrs.—  Você tem certeza que a casa maldita fica por aqui? — 

    perguntou Elizabete sendo, neste momento, filmada por Natasha

    que estava sentada no banco da frente do carro. — Eu já disse que é

    para você desligar essa câmera—  disse, batendo com toda a sua

    força na mão de Natasha e fazendo com que a câmera caísse.

    —  Olha o que você fez!—  reclamou ela —  Isso vai serimportante para o nosso trabalho, idiota!

    —Parem de brigar, meninas! — disse Alícia, tentando desviar

    dos arbustos e troncos de árvores que se esparramavam pelo

    caminho que cortava uma densa floresta, tomada por uma forte

    neblina. A estradinha parecia não ser usada há muito tempo!

    —Uau! —  disse Natasha, filmando tudo que estava

    acontecendo do lado de fora. —  Parece até aquelas histórias deterror! Só falta o carro estragar no meio da estrada e alguma coisa

    aterrorizante acontecer com todas nós. No final só iriam encontrar

    essa minha brilhante gravação —  e continuava filmando cada

    integrante do carro.

    Alícia, irritada com a filmagem, perdeu o controle do veículo

    que, em alta velocidade, não conseguiu parar.Todas gritavam para que ela parasse.

    — Não estou conseguindo — disse, tentando frear o carro que

    não respondia aos seus comandos.

    —  Amiga... Cuidado! —  Alertou Natasha, quando percebeu

    que Alicia iria atropelar uma garota que apareceu entre a névoa

    sombria da floresta, que serpenteava subindo pelo carro, feito

    tentáculos. Porém, o automóvel parou antes do impacto.

    Todas estavam assustadas e quase em estado de choque.

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    Ficaram caladas por alguns segundos, entreolhando-se

    — O que foi aquilo? — perguntou Elizabete, enquanto Alícia

    tentava ligar o carro, inutilmente.— Uma garota! — disse Natasha, pegando a câmera caída no

    carpete do carro.

    — Eu falei que não era uma boa ideia virmos até aqui — disse

    Elizabete olhando para o lado. —  Momento ideal para contar

    aquela história de terror para nós Natasha... E muito obrigada por

    nos deixar apavoradas! —  agradeceu ironicamente à amiga,relembrando a semelhança do momento narrado por ela com o

    vivido na realidade.

    Por um momento Elizabete achou que estivesse tendo

    alucinações. Mas não. De fato existia uma casa do lado da estrada,

     bem próxima ao carro.

    —  Garotas vejam!—  Disse ela, apontando para o leste. Em

    meio de arbustos e relva, a mansão dos Stronrs se apresentavamajestosa.

    Alicia finalmente conseguiu ligar o carro, virando-o de frente

    para iluminar a fachada do velho e assustador casarão.

    Por um momento ficaram caladas. Elizabete sentia-se

    estranhamente desconfortável ao perceber que estava no local onde

    as misteriosas mortes aconteceram; Natasha estava muitoempolgada, talvez fosse a única achando tudo isso o máximo;

    Alícia, por sua vez, engatou a primeira marcha e avançou,

    determinada, contra o portão de ferro, derrubando-o e fazendo que

    uma densa cortina de poeira ficasse suspensa no ar.

    Aos poucos, a enorme construção vitoriana, em estilo gótico,

    apresentava-se com suas formas e curvas já desgastadas pelo

    tempo. Janelas com vidros quebrados, sacadas destruídas, paredes

    tomadas por plantas trepadeiras... Tudo estava em estado de

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    degradação, exceto a porta, cuja madeira maciça mostrava-se

    lustrosa e convidativa aos visitantes.

    —  Natasha, é melhor irmos embora. —  disse Elizabete. — Ficamos apenas com os artigos e as entrevistas que fizemos com as

    pessoas... Não é mesmo, Alícia? —  perguntou à amiga que já

    entrava, junto com Natasha, na mansão dos Stronrs.

    Em meio aos escombros, móveis velhos e lustres aos pedaços e

    enquanto segurava em uma das mãos a câmera e na outra uma

    lanterna, Natasha começou a narrar os acontecimentos da famíliaStronr.

    —  O Sr. Stronr foi encontrado enforcado exatamente neste

    lustre, no hall de entrada, logo após encontraram a mulher com os

    ossos moídos e parte do corpo esquartejado pendurado nas

    palmeiras do jardim de entrada... — enquanto falava, continuava

    passando pelos corredores, seguida pelas amigas. O clima havia

    ficado mais tenso. Tudo parecia incomodar, até o simples ato derespirar era angustiante. A sensação de ter alguém abraçando-a e

    muito perto do seu rosto era quase palpável. — O filho mais velho,

    Filipe —  continuava Natasha enquanto filmava tudo —  foi

    encontrado afogado na banheira do quarto. A filha mais nova está

    desaparecida até os dias de hoje. Não se sabe do seu paradeiro... — 

    revelou rindo e correndo na frente das outras.—Natasha, volte aqui! — gritava as duas juntas. — Natasha!

    — A lenda diz que os espíritos ainda vivem nesta casa e que

    tudo pode ser destruído, exceto a porta de entrada, que convida

    atrativamente todos a seguir os passos dos integrantes da família

    Stronr e descobrir o verdadeiro segredo! — dizia Natasha com uma

    voz distante e suave.

    Alícia e Elizabete estavam abraçadas quando ouviram a porta

    de entrada bater fortemente. Na mesma hora, viram um vulto

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     branco e brilhante vir rapidamente em sua direção.

    Ambas gritaram de pavor, mas era apenas Natasha pregando

    uma peça nas garotas.— Medrosas!— dizia ela, rindo.

    —  Alícia, vamos embora, não temos nada para ver aqui — 

    dizia Elizabete, segurando na mão da amiga e puxando Natasha,

    que não parava de rir.

    Ao chegarem perto da porta, um barulho ecoou atrás das três

    amigas.— O que foi isso?— perguntou Natasha.

    — Não sei... Não foi você?— perguntou Alícia.

    — Como eu?! Estou aqui com vocês!

    Enquanto Natasha tentava abrir a porta que parecia

    emperrada, Alicia e Elizabete iluminavam tremulamente o local de

    onde o barulho ressoava.

    — A porta não quer abrir! — revelou Natasha desesperada.—  É melhor você abrir essa porta agora ou quem vai ser a

    primeira vítima de qualquer coisa que estiver nesse local será você!

    — dizia Elizabete por entre os dentes.

    Subitamente, uma porta secreta abriu-se por trás de uma

    grande pintura a óleo da família Stronr, pendurada no vão entre as

    escadas.—  O sótão!—  disse Natasha, quebrando o silêncio do

    momento. — Nós temos que entrar lá.

    —Nós? —  perguntou Alicia —  Não, você que quis vir, você

    que vá. Nós ficaremos aqui!

    — Um dos mais intrigantes casos foi achado no sótão, em uma

    escrivaninha velha, onde uma lamparina antiga estava acesa... — 

    disse Elizabete.

    Elizabete e Natasha, por um momento, entreolharam-se e, pela

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    primeira vez, se entenderam com apenas um olhar.

    — Está bem, nós vamos. — disse, pegando a lanterna da mão

    de Alicia.— Como assim? — perguntou. — Não irei ficar sozinha aqui

    — disse, juntando-se às meninas.

     Juntas, entraram no sótão e não foi difícil encontrar o que

    procuravam.

    — Não é possível!— arquejou Elizabete. — Então é real?!

    —  Eu estava certa o tempo todo, meninas! Já podem meagradecer. —  disse Natasha, contente por conseguir provar, de

    maneira totalmente absurda, que estava certa.

    Diante das três garotas, uma escrivaninha velha se

    apresentava com uma luminária antiga. Com a cúpula em

    frangalhos, tremulava uma luz fraca e contínua, que deixava o

    ambiente pouco iluminado e menos assustador.

    Tudo ao redor se agregava às paredes, deixando em um cantoo conjunto - escrivaninha, cadeira e luminária –  singularmente

    chamativo.

    — Está aqui!— disse Natasha, ao apontar para uma das duas

    gavetas da escrivaninha. Lentamente abriu a gaveta e o relógio

     brilhou mais do que qualquer luz que pudesse iluminar o local.

    A sensação de que alguma coisa ruim estivesse prestes aacontecer naquele lugar perturbava Alícia e Elizabete.

    Segura do que estava fazendo, Natasha retirou o relógio da

    gaveta e sorrindo disse:

    — Buh! Não tem nada de assustador nele. — O objeto era um

    modelos de corda e que se programa para despertar. Possuía uns

    15 centímetros de diâmetro, com a caixa prateada e com desenhos

    em alto relevo em toda a volta. Seus sinos eram grandes e pretos;

    entre eles, nas extremidades do pequeno martelo, havia um sol e

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    uma lua dourados.

    —  Estão preparadas para ter a temida e assustadora

    experiência com esse objeto? —  perguntou Natasha, em tom dedesafio.

    Ninguém respondeu à pergunta, apenas olharam-na

    assustadas, observando o quão ela havia se tornado diferente.

    —  Vamos, meninas, pode ser divertido. Às vezes uma

     brincadeirinha não faz mal, não é verdade? —  perguntou,

    instigando-as ainda mais. — Eu sei que cada uma de vocês tem umdesejo escondido, engasgado, alguma coisa que desejariam muito

    que se realizasse. Vejam que ironia: são três desejos e somos

    exatamente três pessoas. Então, meninas, um desejo para cada

    uma! — disse rindo, mas era a única que estava achando graça da

    situação. — Um sonho? Uma vontade de se livrar de alguma coisa?

    Ou o desejo de ter ou de se tornar alguém? — mas mesmo diante

    das atraentes ofertas que Natasha lhes fazia, nenhum sepredispunha a ser a primeira a experimentar o relógio.

    O minuto se passou muito devagar e angustiante.

    — Eu me voluntario — disse Alícia.

    Independente do que as três garotas pudessem pedir, não

    esperavam que ali, naquele pequeno quarto, seus desejos fossem

    definir suas vidas.Alícia deu um pequeno passo à frente e segurou o objeto com

    as mãos trêmulas, como se fosse uma bomba prestes a explodir.

    —Você só precisa girar esta chave... —  sussurrou Natasha,

    muito próxima ao ouvido de Alícia, que permanecia inerte, como

    se não entendesse o que a outra lhe dizia. Natasha guiou-lhe a mão

    até a chave e novamente sussurrou:

    — Gire-a... — Alícia olhou incrédula para a amiga e não sabia

    por que estava se sentindo fraca e sem vida. Era como se o contato

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    com o relógio a fizesse sentir-se inferior a qualquer pessoa presente

    naquela sala. Precisou de esforço para terminar a volta completa da

    chave e então Natasha voltou a se pronunciar:— Não precisa dizer em voz alta o que deseja, mentalize seu

    desejo e espere que o ponteiro maior complete sua volta e a

    campainha toque, e então será realizado... —  sussurrava Natasha

    com os olhos brilhando ao ouvir o travar da chave, sabendo que a

    amiga estava pronta para testar o seu destino.

    Subitamente, Alícia soltou a chave, quase sem forças, eacompanhou com olhos assustados o caminhar lento e doloroso do

    ponteiro, arrastando-se entre os números. Em sua mente, o que

    Alícia mais queria era ter dinheiro suficiente para pagar suas

    dívidas e a passagem para voltar ao Brasil. O ponteiro estava no

    número 9 enquanto ela pensava e começava a acreditar que seus

    problemas seriam solucionados; como se estivesse aprisionada

    nesse sonho, o tocar violento da campainha a fez acordar,refletindo em lágrimas que transbordavam de seus olhos.

    —  Muito bem, garota! —  dizia Natasha, batendo

    carinhosamente no rosto da amiga e retirando o relógio de sua

    mão, pois chegara a vez de Elizabete.

    —Você sabe o que fazer... — disse a influenciadora de mentes.

    —  Não passa de uma velha história. Está claro que alguémdeixou esse relógio aqui antes e que o arquivo não está nas gavetas

    —  disse ela, aproximando da escrivaninha e abrindo uma das

    gavetas. Ficou chocada. Paralisada. Abalada.

    Elizabete tirou da gaveta uma pequena pilha de papéis, em

    um envelope sobrescrito: Quinto Caso 199X.

    — Então em que quer acreditar: na lenda ou na realidade? — 

    perguntou Natasha, depositando o relógio na escrivaninha e

    deixando que Elizabete tivesse todo o tempo que precisasse.

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    Terrivelmente assustada, puxou uma cadeira próxima e

    começou a folhear o caso, percebendo que os documentos eram

    reais. Continham fotos, depoimentos e recortes de jornais que elamesma percebera que faltavam no acervo da biblioteca, quando os

    consultara. Elizabete viu naquele caso a chance de ser alguém de

    renome, que pudesse ser reconhecida por seu notório saber no

    campo jornalístico e investigativo.

    Seus olhos pousaram no relógio que brilhava intensamente

    sob a luz do velho abajur. Não hesitou. Pegou o relógio, girou achave e, fechando os olhos, desejou tudo o que mais queria em

    toda a sua vida: ser respeitada, influente e melhor do que todos na

    sua área profissional. Seu desejo poderia parecer um pouco egoísta,

    mas Elizabete sempre fora competitiva.

    A campainha soou.

    Elizabete riu, como se aquilo fosse uma piada, porque não

    sentiu nada e nada aconteceu de imediato.—  O que está acontecendo com a porcaria desse relógio?— 

    perguntou Natasha se aproximando —  não está funcionando

    direito, porcaria velha! — Exclamou, pegando-o e balançando.

    Ainda achando tudo aquilo completamente estranho, Natasha

    girou a chave e fez o pedido, à medida que o ponteiro completava

    a sua volta. Não era difícil adivinhar seu pedido. Clark sempre foio sonho de consumo de qualquer garota da universidade. Ele

    poderia ficar com todas que quisesse. Ou melhor, com todas que

    ele considerasse boas o suficiente. Natasha, porém, não sabia o que

    era ser ‚ boa o suficiente‛ para o jogador. Então ela desejou ser o

    tipo de garota que Clark sempre quis ter.

    A campainha tocou antes mesmo que ela terminasse de fazer o

    pedido. Abrindo os olhos, sentiu o mesmo fracasso experimentado

    por sua amiga Elizabete.

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    —  Relógio estúpido —  disse Natasha, jogando-o contra a

    mesa. —  Vamos sair daqui, você tinha razão, Elizabete! Isso foi

    uma tremenda perda de tempo!A porta de saída fechou-se subitamente. A luz do velho abajur

    oscilou até apagar-se. E, para piorar a situação, o sino do relógio

    começou a soar incessantemente.

    — Natasha, o que está acontecendo?— perguntou Alícia.

    — Não abra a porta — interrompeu Natasha, ficando na frente

    de Elizabete.O desespero tomou conta das meninas, a escuridão era densa e

    deprimente, tão profunda quanto um abismo no oceano infinito. O

    ar quente, rarefeito e sufocante.

    Não conseguiram encontrar umas às outras no quarto escuro,

    mas tinham a certeza de que uma quarta pessoa saíra dos

    escombros e estava junto delas. Apavoradas, ouviram o silenciar

    do relógio e o ranger da cadeira, o folhear dos documentos e umavoz rouca e onipresente...

    “Os três desejos serão realizados, assim que os escolhidos forem

    selados. O girar do ponteiro irá trazer aquilo que desejais, através daquele

    que não pode viver.” 

    As três amigas não sabiam de onde vinha aquela voz, nem o

    que queria dizer, mas sabiam que alguma coisa estranha eassustadora havia acontecido e que os seus desejos seriam

    realizados.

    Não passou uma hora do ocorrido e as garotas se esbaldavam

    na festa. Queriam se divertir e, se possível, esquecer o que lhes

    havia acontecido naquela noite. Em meio a bebidas, música

    eletrônica e garotos, todas tinham um motivo particular para tal

    comemoração, mal sabendo que essa comemoração não seria para

    todos.

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    —  Como assim, Jack? —  perguntou Natasha. —  Não é

    possível, ele estava bem ontem. Como ele morreu?—  perguntou

    assustada.— Jonathan também — disse Elizabete no telefone com Alicia.

    — Foi encontrado afogado.

    —  Fred sofreu um acidente de carro e não sobreviveu — 

    revelou Alícia.

    Mais tarde, na universidade, estavam assustadas e com medo.

    Tudo levava a crer no que a voz disse: “Os três desejos serãorealizados assim que os escolhidos forem selados” , relacionado às mortes

    da família Stronr.

    —  Fred foi o primeiro garoto que eu beijei naquela noite — 

    disse Elizabete; Alícia e Natasha confirmaram ter beijado Jonathan

    e Jack, respectivamente.

    —  Você acha que tem alguma relação com o que foi falado

    mesmo?!— Está evidente! — disse Elizabete, a mais cabeça do grupo.

    —  O que levaria a essa coincidência? Os três selados, ou seja, os

    três beijados... Além do mais, as mortes foram idênticas com o que

    ocorreu com os membros da família Stronr: Enforcamento,

    esquartejamento, e afogamento. Não acha coincidência demais isso

    ocorrer novamente?— O assassino está de volta?— perguntou Alícia. — Será que

    esses assassinatos têm alguma ligação com a filha?

    —  Você acha que seria o espírito dela nos rondando? — 

    perguntou Elizabete. — Porque ela estaria fazendo isso?

    — Talvez se vingando de alguma coisa...

    —  Meninas, não sejam tão pessimistas. —  disse Natasha. — 

    Vejam o lado positivo: nossos desejos serão realizados! — 

    — Deixe de ser ridícula, garota. Pessoas morreram por nossa

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    causa! Você tem ideia do quão ruim é isso? — perguntou Alícia.

    —  Seja o que for isso que aconteceu, é bom estarmos

    preparadas para termos nossos desejos realizados —  concluiuElizabete, reescrevendo a frase num papel.

    — E quando vai ser?— perguntou Alicia.

    — Hoje à noite. — concluiu amedrontada.

    As horas realmente não estavam a favor das meninas. O

    gradiente do terror levava a um caminho desconhecido e que

    tornava cada segundo que se passava um adeus ao mundo real.As noticias fúnebres eram verídicas. Cada uma das três

    amigas foi ao velório do respectivo garoto e estavam terrivelmente

    assustadas com a cena que se apresentara na frente de cada uma.

    Saber-se o motivo pelo qual uma pessoa foi morta era

    terrivelmente assustador, fazendo-se sentir como um verdadeiro

    assassino. De todas as formas, era preciso não demonstrar nada

    suspeito.Contudo, Elizabete não conteve as emoções no funeral de

    Fred. Principalmente quando avistou o caixão fechado —  já que o

    corpo estava todo estraçalhado - não mediu o choro excessivo,

    fazendo com que as atenções fossem atraídas para ela.

    No anoitecer daquele dia, no mesmo horário e ordem em que

    os pedidos foram feitos, eles foram realizados.A começar por Alícia que, se divertindo em uma festa infantil

    na casa ao lado de sua, teve seu desejo realizado. Havia muitos

    meninos e meninas no jardim da casa. Agitados perto do enorme

    violão de papel recheado de balas, o pequeno prodígio Mathy,

    tentava acertá-lo e assim fazer com que as balas saíssem como uma

    chuva de gostosura. Todos riam do garoto, que com os olhos

    cobertos, não conseguia atingir o alvo.

    Alícia, por outro lado, com os olhos bem abertos, começava a

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    ter estranhas alucinações. No lugar do violão, ela via Jonathan, o

    garoto que foi encontrado enforcado. Este, sob um galho, estava se

    preparando para pular; ela desviou os olhos e tomou mais um golede cerveja.

    — Tenho que parar — pensou, colocando o copo em cima da

    mesa e voltando a olhar para o lugar onde todos estavam se

    divertindo com Mathy. Alicia não conteve o grito quando Jonathan

    pulou:

    — Aahh, não! — Com as mãos nos olhos, ela chorava e gritavadesesperada.

    — O que está acontecendo, querida? — perguntava a avó do

    garoto, que estava próxima.

    — Não faça isso... Não, por favor! — pedia, colocando a mão

    na boca e olhando para Jonathan que sorria para ela e dizia:

    — Aqui está seu presente!

    E foi nesse exato momento que Mathy o atingiu e dele saíramvárias notas de dólares que voavam por todos os lados.

    Seguindo a ordem, Elizabete foi a segunda a ter seu desejo

    realizado. Era tarde e ela relaxava em sua cama, esperando que o

    creme facial atingisse o tempo correto para ser removido;

    aproveitava esse tempo para ler alguma coisa e se distrair.

    — Elizabete! — gritava alguém do lado de fora de sua casa. — Elizabete!

    Porém, concentrada na leitura, ela não prestava atenção ao seu

    redor.

    —  Elizabete, eu trouxe o que precisa. Estou aqui! —  gritava

    um menino na porta de sua casa, tarde da noite.

    A garota assustou-se quando alguma coisa foi jogada na porta

    de vidro da sacada do seu quarto, deixando uma marca

    avermelhada como sangue.

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    —  Mais um pássaro morto! —  pensou, deixando o livro de

    lado e correndo para o andar de baixo para atender à campainha

    que acabara de tocar, nem percebendo o pé decepado que foraatirado em sua sacada.

    — Nossa! A pizza demorou hoje, hein?— comentou, contando

    o dinheiro e abrindo a porta. — Quanto é?

    —  Na verdade, eu trouxe o seu futuro —  disse Fred,

    entregando a ela os arquivos e as partes que faltavam do trabalho

    de excelência que iria apresentar.O grito aterrorizante de Elizabete foi tão alto que consumiu

    todas as suas forças à medida em que ela olhava para Fred, o

    garoto que sofrera um grave acidente de carro e que agora, aos

    pedaços, estava à sua frente, apodrecendo e fedendo à carne

    queimada. Fred caiu aos pedaços quando ela já estava desmaiada.

    A terceira e última foi Natasha, que, em busca de ser ‚ boa o

    suficiente‛ para Clark, teve seu pedido muito bem realizado. Nãopedira apenas para ter um corpo perfeito e desejado. Pediu que

    tivesse as pernas torneadas e bronzeadas de Elizabete e os quadris

    e seios de Alicia. Não se sabe como isso ocorreu, mas os pedaços

    dos corpos das amigas foram arrancados e colocados em seu corpo.

    Porém, nunca teve a oportunidade de chamar a atenção de Clark.

    Natasha era a razão e o motivo maior de tudo aquilo queestava acontecendo. Não era por acaso que ela sabia sobre a

    existência do caso, como chegar ao local e como usar o relógio. Na

    verdade, a garota era uma djinn. De idade milenar, Natasha era a

    filha desaparecida da família Stronr, que havia colocado os

    documentos do caso no lugar onde deveria ser encontrado; foi ela a

    verdadeira protagonista de todos os assustadores eventos que

    envolvem o caso 199X nos Estados Unidos da América.

    ***

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    Era fim de tarde quando um carro parou, dando carona a uma

     bela garota que aguardava com suas malas à beira da estrada,

    esperando que alguém a levasse para longe dali. Comendo umadeliciosa cereja, sua fruta preferida, Natasha seguia para um novo

    local, em busca de realizar novos desejos para manter viva a sua

    história.

     A polícia investigativa de Chicago conseguiu identificar o terceiro

    corpo que estava junto com as duas garotas que foram encontradas mortas

    no mês passado, no interior de uma floresta, perto do centro da cidade. A garota é Barbara Stronr, que esteve desaparecida por muitos anos. Além

    disso, as fitas foram analisadas e uma terceira pessoa estaria envolvida no

    crime, contudo a policia não foi capaz de reconhecê-la, já que as imagens

     parecem ter sofrido a interferência de algum campo magnético muito forte.

     Ainda não se sabe quem é o verdadeiro assassino e se ele ainda continua

    na cidade. Segundo as investigações, parece existir uma conexão deste caso

    com outro ocorrido há uma década: o tão conhecido e temido caso 199X.— Dizia a repórter de um jornal local. 

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    CARLOS NARDI...

    ...nasceu na cidade de Itapetininga, São Paulo, 42, desde

    criança já exercia o dom pela leitura do terror, e aos oito anos

    criava historinhas de quadrinhos. Mudou-se para a cidade de

    Curitiba, no Paraná em razão do trabalho, considera esta cidade

    como "uma criança que cresce muito rápido".

    Tem-se aventurado no mundo do terror, criando seus novos

    temas. Dedica-se colaborando expressamente na área literária, ele é

    reconhecido por todas as partes do Brasil e também no exterior.

    Contato com o autor: [email protected]

     AÇOUGUEIRA

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     AÇOUGUEIRA

    Era uma cidade calma, bem fria e também de muitas nuvens.

    Era muito raro ver o céu aberto, geralmente estava nublado. São

     José dos Pinhais, no interior do Paraná, era uma cidade pequena e

    de habitantes humildes.

    Evandro e sua galera da Faculdade iriam morar nesta cidade;

    três garotos lindos e maravilhosos, cheios de fantasias e desejos de

    aprontar por aquelas bandas. Evandro, ou ‚Evandrão‛, como eraconhecido, era aquele cara que pegava todas as meninas sem dó e

    sem perdão, sequestrava seus corações e depois os descartava. Ele

    era fatal.

    Num dia comum, foi comer um sanduíche próximo à praça,

    sentado num banco com seus óculos Rayban de camelô e relógio

     brilhante, também falso, bermuda e camiseta, mesmo estando

    muito frio. Ele olhava todas as meninas no desfile do calçadão.

    Parecia mesmo um lobo mau: queria pegar a sua primeira vítima.

    Bem na esquina havia uma casa de carnes com o nome de ‚Boi

    Grande‛. Lá, no caixa do açougue, trabalhava uma bela mulher,

    meio coroa, mas era do tipo que qualquer homem se ajoelha

    perante a sua beleza. Era loira e de seios volumosos - e bota

    volume nisto! Evandro descreveu aos seus amigos que ela tinhanádegas tão redondas e grandes que era possível deixar um copo

    de pé na sua parte dorsal.

    – Uma baita de uma gostosa!– disse.

    A troca de olhares e afinidades demonstrou que houve certa

    química... Raquel era o seu nome. De olhar penetrante e misterioso,

    ficara encantada com Evandro.Numa noite qualquer, os dois saíram. Ela usava apenas um

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    vestido preto... Apenas o vestido. Evandro a pegou e beijou, o calor

    e o sexo estavam a circular pelos seus corpos.

    Antes de amanhecer, Raquel já havia saído do motel.Assim, sucessivamente, os dois encontravam-se quase todos

    os dias, ou melhor, todas as noites.

    Na academia, Evandro foi fazer testes rotineiros de educação

    física. O médico disse que ele estava emagrecendo e perguntou se

    ele estava fazendo algum tipo de dieta especial. Evandro, por sua

    vez, disse que estava comendo normal e não tinha feito nenhumadieta.

    O romance estava ficando intenso. Ele dizia amém a tudo e ela

    o enfeitiçava, tirando todos do seu caminho: amigos, parentes e

    conhecidos... Ela o isolava de tudo.

    Os primeiros sinais estranhos já aconteciam...

    O seu melhor amigo era o Evans, um sujeito gente boa.

    Estudava na mesma faculdade de Evandro.Evandro tinha saído da república, pois Raquel havia

    comprado um apartamento para ele: o seu ninho de amor

    particular.

    Um dia, Evans conseguiu o endereço e bateu na porta do

    apartamento de Evandro. A visão que Evans teve do amigo foi

    totalmente assustadora: ele estava ainda mais magro, seus olhosfundos como se estivesse anêmico; a cor de cera de sua pele era

    visível. Evandro convidou Evans para entrar e falou coisas sem

    nexo: perturbações, solidão, sexo que ele queria fazer com as

    outras. Evans lembrou-lhe que já fazia três meses que ele estava

    com Raquel, tendo também faltado por várias semanas à Faculdade

    e à Academia.

    Evans notou que algo estava errado, pois Evandro não saía

    mais de dia. Começou a investigar essa Raquel. Descobriu que ela

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    era de outra localidade, mas já fazia dez anos que morava na

    cidade. De acordo com os vizinhos, viera de Apiaí, interior de São

    Paulo.Evans, investigando por conta própria, foi pessoalmente à

    cidade e descobriu que existia uma ‚Raquel da Cruz‛, mas morrera

    em 1945. Porém, quando teve acesso à documentação descobriu,

    para o seu espanto, que se tratava da mesma pessoa,.

    O corajoso Evans voltou para São José para tentar salvar o

    amigo daquela coisa. Mas era tarde demais, pois havia umasemana que Evandro estava desaparecido. Um boletim de

    ocorrência foi feito e a polícia estava à sua procura.

    Havia muitas dúvidas na cabeça de Evans, porque a tal Raquel

    era muito rica e tinha muitos ‚contatos‛, inclusive na polícia. Mas

    Evans era determinado e, à noite, foi ao açougue da Raquel. Subiu

    numas caixas e teve acesso a uma pequena janela de vidro.

    Quebrou-a, entrou no açougue e viu que aparentemente estavatudo normal, porém a imagem de Evandro não saía de sua mente.

    Evans andava cautelosamente quando escutou um barulho

    estranho debaixo dos seus pés. Abaixou-se e colou a orelha no

    chão. O barulho era forte, como se alguém estivesse puxando

    alguma coisa.

    Viu um pequeno botão no piso que até então parecia umdesenho. Apertou-o e toda a extremidade do chão começou a se

    elevar, revelando-lhe uma escada comprida e desceu. Havia um

    escritório que parecia um mundo, de tão grande que era aquele

    local secreto.

    Evans entrou no escritório e deu uma fuçada. Existiam muitos

    documentos. Percebeu que os papéis continham vários erros

    ortográficos e gramaticais, como se alguém estivesse aprendendo a

    nossa língua.

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    Caminhou e viu pela frente várias portas, vários quartos e

    também um tipo de frigorífico. Evans jamais esqueceria aquela

    cena: uma loja de horrores. Havia ganchos e crianças penduradasde cabeça para baixo, porém, a maioria sem as cabeças. As outras,

    ele não sabia se estavam desmaiadas ou mortas... Não dava para

    saber. E, por último, viu o Evandro nu e de ponta cabeça, com dois

    ganchos em cada pé. Ele estava vivo e se mexia e, até mesmo,

    olhou para Evans.

    Alguém se aproximou e Evans se escondeu entre algumascaixas, mas conseguiu espiar por uma fresta. O perfume de mulher

    incendiava o local. Era a Raquel, apenas de sutiã e uma minúscula

    calcinha. Ele tentou imaginar e processar o que estava acontecendo.

    O telefone de Raquel tocou. Na conversa, ela pronunciou o

    nome Jennifer. Evans percebeu que elas brigavam pelo celular,

    pareciam falar sobre o poder do Sul e do Norte. Falaram também

    em fracasso e que Raquel não iria mais apoiar o seu ramo. Mas queramo seria este? Do quê?

    Ela desligou o celular, furiosa, e foi conferir suas vítimas.

    Depois, se dirigiu a Evandro que estava ainda vivo, fazendo-o

    acordar.

    –  Acorde, meu querido... Esta noite para você será

    inesquecível!A descarada começou a chupar o pênis de Evandro, deixando-

    o ereto. Ela fazia vários movimentos com a boca, cuspindo nele e

    masturbando dentro da sua boca, até que ejaculasse. Rapidamente,

    ela pegou um tipo de machadinha e o acertou bem na raiz do

    pênis. Evandro gritou de dor...

    O sangue jorrou e ela começou a bebê-lo, sem se sujar. Não

    caiu nenhuma gota nela.

    ‚Meu  Deus... Não acredito que no que estou vendo... Ela

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     bebeu sangue!‛, pensou Evans. 

    Raquel se abaixou, pegou um poderoso alicate e mandou

    Evandro abrir a boca. Tirou, um a um, todos os seus dentes. Osangue escorria sem parar. Ela exclamou:

    – Calma, meu bebezão! Já estou quase terminando...

    Ela pegou a boca de Evandro e beijou-o, sugando todo o seu

    sangue. Evans viu as veias do amigo murchando, sugadas por

    Raquel. Quando ela terminou, Evandro já estava morto e, com

    muita maestria, ela pegou um grande facão e decepou sua cabeça.Existia uma sala com várias cabeças embalsamadas, centenas

    delas.

    Ela passou um líquido especial na cabeça do Evandro e a

    colocou em uma das suas coleções.

    ‚Agora eu preciso sair daqui, mas como?‛, refletiu Evans,

    ponderando uma ideia, ‚Acho que vai dar certo‛. 

    Correu em busca da saída, mas não a encontrou. O nervosismosubiu a sua mente. Seu corpo parecia estar inerte, parecia que tudo

    havia congelado. Ele viu a Raquel flutuando e passando em cima

    da sua cabeça.

    Ela falou:

    – Oi, bonitão? Veio atrás do seu amigo?

    Ele não conseguia falar, não conseguia respirar direito... Ela,porém, falava com calma, dizendo que não iria doer nada, que

    seriam apenas dois furinhos no pescoço. E, então, cravou nele os

    seus dentes afiados. O sangue saía, mas ele não sentia nenhuma

    dor.

    Ela pegou no seu pênis. Mesmo ele não querendo, por causa

    do medo, já estava ereto. Ela puxava a calcinha de lado e ele a

    penetrava, naquela selvageria. Seus impulsos estavam

    incontroláveis. Ele rasgou o sutiã, pegou nos seios volumosos,

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    enquanto ela flutuava consigo. Ele nunca tinha trepado daquela

    forma.

    Seu corpo estava para explodir de prazer... Quando o seuorgasmo estava prestes a sair, ela retirou o seu pênis e, no ar, Evans

    viu o seu esperma em gotículas, como se estivesse congelado.

    Perdeu, na hora, a sensação do tempo e da ilusão...

     Já estava no chão, caído e nu, e ela, toda nua, foi em sua

    direção. Parecia que não estava bem...

    Ela estava com enjôos...–  Moleque... Você tem algo no sangue! Toma algum

    medicamento para o sangue?

    Evans respondeu que, desde criança, ele tomava corticóides

    por causa das alergias que tinha.

    Raquel virou-se e vomitou sem parar, como se estivesse

    expulsando todas as refeições de uma semana; o cheiro

    insuportável de todos os males que ela fez.Ela ficou furiosa e parecia que desta vez ele iria morrer.

    Novamente, andou em sua direção. As unhas cresceram em garras

    afiadas, porém, o silêncio foi quebrado com o toque do celular que

    estava no bolso da calça de Evans.

    – Alguém ligando para você? Da polícia? Eles já estão aqui.

    Ela esmagou o celular como se fosse um ovo. Evans, surpreso,apagou como uma gazela. Uma nuvem de sono o abraçou. Estava

    preso em seu desespero... ‚Preciso acordar, preciso provar que é

    ela que...‛, sua mente devaneava. 

    Quando acordou, estava na cadeia, fora acusado por ela de

    invasão a domicilio e tentativa de estupro. Depois de três meses,

    foi solto. Ele mostrou o local para a polícia, mas lhe disseram que o

    açougue fora fechado para uma reforma.

    Quando ele insistiu em delatar o circo de horrores que havia

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    presenciado, foi chamado de louco. Embaixo do açougue havia

    toneladas de concreto. A desculpa era que havia problemas com o

    solo.A maldita sepultou as provas... Tudo foi arquivado, tudo foi

    abafado...

    Naquela cidade nunca mais se viu falar em Raquel e nem no

    seu açougue.

    Por dez anos Evans lutou, tentando se convencer de que suas

    lembranças eram falsas. Pediu ajuda a uma psicóloga e, depois deum tempo, os dois se casaram. Mudaram para Brasília e tiveram

    um filho.

    Evans tornou-se um oficial legislativo. Estava bem no amor, na

    carreira e tinha sucesso. O que mais poderia desejar?

    Em Brasília, na Câmara de Deputados, trabalhava até algumas

    horas da noite, pois precisava entregar as laudas dos projetos todas

    as manhãs. Porém, naquela noite, quando saía, escutou um barulhode pancadaria e homens gritando. Procurou, mas não viu nada...

    Quando menos esperava, um vulto passou na sua frente

    rapidamente. Então, houve um apagão. Tudo ficou escuro e, em

    instantes, os homens da segurança estavam no chão.

    Ele percebeu que um homem estava sentando no seu

    escritório. Disse-lhe que o conhecia através do blog que Evansmantinha. Falou ainda que havia lido o relato onde contava o que

    vira há dez anos. O homem, Elias Ashmole, acreditava que era a

    pura realidade. Evans pensou que ele parecia um psicopata, pois

    ele usava roupas estranhas de couro e sapatos pesados com

     biqueiras de aço.

    Burro, falou tamanha asneira:

    – Você é um vampiro?

    –  Se eu fosse um vampiro, você estaria sangrando e com as

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    últimas gotas de sangue na escadaria do Congresso –  falou

    firmemente Elias, depois de um longo silêncio.

    Ele era um tipo de antigo caçador e isso vinha de gerações.Disse-lhe que Raquel estava pronta para abater o seu alvo, que no

    caso seria Evans, pois ela não deixava suas vitimas para trás.

    Seu pesadelo voltara depois de dez anos. O caçador Elias

    falava que ele seria a isca e que aquela seria sua oportunidade de

    caçar o monstro. Falou coisas horríveis do passado dela, que

    dizimou uma tribo inteira na África usando o seu método deapaixonar as pessoas. Naquela noite, mais de cem homens

    perderam o pênis e o sangue cobrira a terra africana.

    – Como vou fazer para atraí-la, já que sou a isca?

    – No momento certo você saberá. Só haja normalmente, siga a

    sua rotina, pois desta vez eu pegarei a Raquel de jeito.

    Uma semana se passou e a cada dia Evans ficava mais

    nervoso. Sua mulher achava que ele estava voltando a ficcionar.– Caramba! – gritou, perdendo a paciência. – É verdade, essa

    Raquel já esta aqui!

    Sua mulher, sendo psicóloga e o imaginando louco, riu na sua

    cara.

    – Ótimo escritor você seria!

    Passada a discussão, decidiram sair pra se divertir e fazer aspazes. Deixaram seu filho com a babá. Comeram e beberam vários

    champanhes no restaurante lotado. Todos felizes, rindo,

    aproveitando a vida... Quem poderia atacar um local repleto de

    pessoas? Sua teoria caiu por água abaixo.

    Gritos, pavor, barulho, confusão e luz apagada... Todos

    haviam desaparecido quando a luz voltou.

    Havia um ser parado à sua frente.

    Era a dita cuja, o passado e o presente se misturaram. Era

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    Raquel dentro de uma roupa de couro, preta e sexy. Ela era como

    uma aranha que leva a sua vítima para as últimas consequências.

    Não era mais loira: o cabelo estava preto e os olhos azuis. Mas,Elias esperava por ela e disse:

    – Um psicopata para caçar outro psicopata...

    Quando ela escutou a voz de Elias, ficou uma fera; os dentes

    cresceram e suas unhas também.

    Sua mulher participava de tudo. Lá pelas tantas, soltou:

    – Ato ficcional, o caramba!Elias disse:

    – Esperta, já garantiu seus lanchinhos e levou até o garçom de

    gorjeta?

    – A gente faz o que pode, Elias. –  ironizou Raquel. – Mas só

    vou ficar sossegada quando eu acabar com a vida deste que me

    desonra... Deste sangue podre. E, por falar nisto, como vai a sua

    diabetes?–  Ainda não passou dos 400, mas tenho ainda muito tempo

    para caçá-los e isto me garante, é como passe-livre entre vocês.

    Afinal, vampiros que se prezem sabem que um sangue açucarado é

    um veneno mortal.

    Raquel sentiu um cheiro de prata e ficou agoniada. Elias

    espalhou, naquele momento, muita poeira de prata e ela tossiamuito. Começaram a aparecer as fraquezas daquele monstro. Elias

    retirou de sua sacola um tipo de chicote que era feito de rosas.

    Raquel tinha tudo planejado para matar o filhinho de Evans;

    aquela era a sua vingança. Ela fora até o apartamento, mas havia

    sal grosso espalhado pela casa inteira, afugentando o monstro.

    O ódio mortal de Raquel fez que seus olhos ficassem

    vermelhos como fogo; atacou Elias voando, tentando feri-lo com

    suas garras. Elias sacou o chicote de rosas e bateu nas costas de

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    Raquel. O sangue espirrou pelo chão; ela estava muito ferida. As

    rosas são fatais para qualquer vampiro, mais ainda os seus

    espinhos.Aquele chicote de três metros laçara o seu corpo inteiro e ele a

    arrastou até uma rua deserta, num beco sem saída.

    – Isto não e o suficiente para eu morrer! – ela gritou.

     Já estava quase amanhecendo. Quanto mais Raquel se mexia,

    mais o enrosco a apertava e ela ficava mais machucada.

    O sol começara a lançar seus primeiros raios, atingindo o rostode Raquel. Ela queimava devagar, como se fosse uma folha de

    papel. Num instante, seu corpo incendiou-se por completo. Ela se

    levantou e andou alguns passos antes de cair de joelhos e morrer

    carbonizada. Suas últimas cinzas voaram pelo ar.

    O caçador disse:

    —  Venha comigo, Evans! No meu mundo existem poucos

    caçadores, venha. Para mim restam poucos anos de vida; eu teensinarei a caçar esses troféus.

    Então passaram algumas semanas e Evans desapareceu,

    largando a sua mulher e seu filho. Nunca mais alguém ouviu falar

    dele, nenhuma pista.

    Evandro e todos os outros que foram mortos por Raquel foram

    vingados.Elias Ashmole e Evans estão atrás de um novo monstro: a

    misteriosa ‚Admirável dos Vampiros‛, Jennifer. 

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    CRISTINA DE AZEVEDO...

    ...nasceu em Foz do Iguaçu, onde viveu até os dezoito anos de

    idade. Autora do livro Nacqua  –  O Reino Escondido , participou daantologia Chão de Estrelas. Acadêmica correspondente da Academia

    de Letras e Artes de Fortaleza ALAF e estudante de teologia.

    Atualmente vive na cidade de São José dos Pinhais com o esposo.

    Contato com a autora: [email protected]

     ANJO NEGRO 

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     ANJO NEGRO

    O filme que estava passando na televisão não era dos

    melhores, porém, não existe muito o que fazer em uma noite

    chuvosa. Eu moro sozinha há quase um ano e em momentos assim

    é que sinto solidão, mas não sou daquelas pessoas que alimentam

    esse tipo de sentimento, prefiro encontrar alguma coisa que supra

    essas necessidades.Peguei mais um punhado de pipoca e coloquei na boca,

    mastigando sem pressa, enquanto o filme mostrava a cena em que

    uma mulher tentava fugir de um perseguidor. Quando ela estava

    quase conseguindo, é surpreendida por ele. Com uma lâmina

    altamente afiada, a coitada tem sua cabeça decepada.

    Sinceramente, esse tipo de filme não tem efeito algum sobre

    mim; só não dormi ainda porque é muito cedo e o sono ainda não

    veio. Não consigo entender como há pessoas que conseguem se

    assustar com esse tipo de coisa? É tão obvio que é tudo falso, dá até

    para ver que o sangue é de mentira. Em certo ponto do filme,

    comecei a rir. Sei que eu deveria estar com medo, mas para mim é

    tudo muito hilário, uma verdadeira comédia.

    Depois de um tempo, o filme perdeu a graça e preferi trocar ocanal, a fim de assistir ao noticiário:

    ‚Dois rios transbordaram deixando mais de cem pessoas

    desabrigadas e oito desaparecidas. Temos a confirmação de três mortes até

    o presente momento...” 

    Estava chovendo muito e há horas, mas o que chamou minha

    atenção na cena foi um dos rios transbordados. Reconheci o lugar,pois fica a poucos metros da minha casa. Um relâmpago cortou o

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    céu, iluminando a sala através da janela; assustei-me com o trovão,

    que foi o mais alto que escutei em minha vida. E pronto: tudo

    apagou, acabou-se a luz. Argh...Senti um choque de medo dentro do meu coração e o único

     barulho que eu escutava era da chuva cada vez mais forte. Fui até a

    sacada e outro raio tomou o céu. Confesso que tive vontade de

    correr para dentro, mas eu precisava ver o que estava acontecendo

    lá fora. Afinal, sou a única moradora desse prédio; a parte inferior

    é uma sala comercial que está alugada, no momento, para uma lojade artigos de bebê e, no segundo piso, há apenas um apartamento

    que tive a sorte de conseguir alugar.

    Apoiei os braços na proteção da sacada e me esforcei para ver

    o que estava acontecendo lá em baixo. Minha primeira reação foi

    de choque e, logo em seguida, de desespero. A água tinha tomado

    conta de tudo e estava quase alcançando a minha sacada. Fiquei

    pensando: como não ouvi nada antes? Lembrei que, apesar dachuva forte, o som da televisão estava alto demais. E, levando em

    consideração o que a repórter havia falado, isso deveria ser coisa

    de minutos; possivelmente deve ter acontecido rápido demais para

    prever. Havia pessoas gritando por ajuda e, antes que eu pudesse

    tentar sequer ajudar, afundaram nas águas revoltas.

    Fiquei sem saber o que fazer. Voltei para dentro doapartamento pensando em uma maneira de escapar dali. Fui até a

    escadaria para saber qual era a situação; estava tudo submerso e a

    água continuava subindo rapidamente. Eu tinha que sair dali e, de

    alguma maneira, entendi que tinha muito mais a perder do que

    meus bens materiais: minha vida corria risco.

    A única saída seria subir até o telhado. Mas como eu faria

    isso? Voltei para a sacada novamente... Meu celular tocou.

    Trim, trim, trim...

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    —  Alô! —  Eu não tinha tempo a perder... A água estava

    subindo e a correnteza estava forte; só atendi porque vou precisar

    de ajuda.— Fernanda, é você?

    —  Sim, sou eu. Quem fala? — Tentei reconhecer a voz, mas

    estava difícil.

    —  Sou eu, Miguel —  A voz do meu irmão estava estranha,

    logo percebi que tinha alguma coisa errada.

    — Está tudo bem? — Perguntei cautelosa, o gelo que envolveumeu coração me dizia que tinha alguma coisa muito errada.

    — Não, as coisas não estão nada bem. Pode vir aqui em casa

    agora?

    —  O que está acontecendo? —  Perguntei começando a me

    preocupar com a possibilidade de não ter tempo de fugir da água

    antes que fosse tarde demais.

    —  A enchente levou a casa dos nossos pais, eles estãodesaparecidos.

    Gostaria de dizer que foi fácil assim de entender o que ele

    disse. Mas, metade do que me falou tive que deduzir, pois ele

    gaguejou, soluçou e fungou enquanto falava. Fiquei apreensiva,

    nervosa e preocupada. Queria ir até ele, mas antes teria de achar

    algum jeito de salvar a minha vida.— Meu Deus! — Respondi tanto para o que ele tinha falado

    quanto para a enxurrada que passou por cima da proteção da

    sacada, me molhando inteira. — Ahhhhh...

    Soltei um grito quando um galho de árvore apareceu do nada,

    atingindo meu braço e abrindo um corte horrendo.

    —  Fernanda? O que está acontecendo? Fernanda? Fala

    comigo! — Miguel gritava. Assustada, apenas segurei o ferimento

    com força.

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    — Miguel, eu preciso desligar. Se não sair agora daqui, pode

    ser que, em alguns instantes, eu seja mais um dos desaparecidos.

    —  Onde você está? —  Sua voz era angustiada, mas eu nãopodia mais falar. Para completar, o celular começou a falhar.

    — No meu apartamento! — Olhei para dentro e tudo estava

    alagado. As coisas que trabalhei tanto para adquirir estavam

    perdidas.

    — Mas aí é tão alto... Não acredito que você esteja em perigo!

    —  Quisera eu que ali fosse alto o suficiente para estar a salvo,pensei.

    — Miguel? — Meu coração estava pesado só em pensar em ter

    perdido meus pais e, agora, eu tinha a sensação de que algo muito

    ruim ia acontecer.

    — O quê?

    — Eu te amo! — Me lembrei de todas as vezes que deixei de

    falar para meus pais e para meu irmão que os amava. Talvez fossetarde para dizer eu te amo para papai e para mamãe, mas eu não

    podia deixar essa chance, que poderia ser a última, para declarar

    meu amor por ele.

    — Eu também te amo! Mantenha-se a salvo, vou até aí resgatá-

    la.

    Dizendo isso, ele desligou ou a ligação caiu, não sei direito.Comecei a procurar um meio de sair dali. Pela sacada era

    impossível, isso eu já sabia. Voltei para dentro do apartamento

    todo alagado e lembrei-me que, do lado da janela da cozinha, tem

    uma grade. Se tivesse sorte, talvez conseguisse subir no teto através

    dela. Meu braço estava atrapalhando, pois estava sangrando muito

    e latejando de dor. Subi na janela cuidadosamente, coloquei um pé

    e depois o outro, soltei um grito de dor quando tive que segurar o

    peso do meu corpo com a ajuda do braço machucado. Respirei

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    alguns segundos para tomar fôlego e continuar. Eu estava suspensa

    no ar, segurando-me à grade. Se eu caísse dali poderia ser minha

    morte; e eu não queria morrer.Escutei um grito de desespero em algum lugar. Procurei a

    origem do grito e vi uma moça em um prédio à minha direita. Ela

    estava pendurada, mas pouco pude ver, pois não estava em uma

    posição favorável.

    Minha grade rangeu, me deixando preocupada. Apressei-me

    e, com muito esforço e dor, consegui subir no telhado. Logo depois,a grade se soltou, caindo dentro da água. Soltei um suspiro de

    alívio, mas a tensão não diminuiu, pois os gritos da mulher não

    paravam. Olhei para onde ela estava e vi que não estava sozinha.

    Esfreguei os olhos para ver se estava enxergando direito e olhei de

    novo, era um... Um anjo! Um anjo vestido de preto, cujas asas eram

    negras e luminosas. Um anjo negro de pele bem clara. A segunda

    coisa que chamou minha atenção foi sua aparência. Fiqueiespantada com sua beleza, pois, mesmo à distância, dava para ver

    seus traços elegantes. Senti um arrepio percorrer por minha coluna.

    Achei que ele estava ali para ajudar a moça; não imaginava

    um anjo lindo como aquele fazendo outra coisa. Ele voou ao redor

    dela... Achei que a içaria e cheguei a ter inveja, imaginando como

    seria ser carregada por ele. Porém, sua próxima ação me deixouespantada, ou melhor, abalada: ele passou as mãos no ar como se

    estivesse sentindo as vibrações que vinham dela, bateu as asas mais

    algumas vezes e, logo após, plainou abaixo dela, segurou as duas

    pernas da moça com força, puxou-a para baixo, fazendo com que

    ela não suportasse o peso e se soltasse. De longe, vendo tudo, eu

    estava muito horrorizada.

    Ele guiou a queda dela sobre um galho que estava descendo

    na correnteza... A cena que se seguiu parecia de um filme, ou,

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    quem sabe, de um pesadelo. O corpo da mulher caiu de lado e o

    galho trespassou-a, fazendo morrer seus últimos gritos de socorro.

    O anjo agitou as mãos e a água engoliu tudo, sem deixar nenhumsinal do que tinha acontecido ali, além dele mesmo.

    Só percebi que estava gritando e chorando quando o anjo se

    virou e me encarou. Senti um gelo percorrer cada célula do meu

    corpo. Dei um passo atrás instintivamente e quase caí por causa

    disso. Seus olhos me mostraram o mundo, os meus sonhos... O que

    ele queria que eu visse. Mostrou-me de uma maneira como se nadadaquilo tivesse importância; eu estava presa naquele olhar e,

    conforme eu mergulhava na imensidão dos meus próprios desejos,

    senti que estava me perdendo. Não percebi que ele estava

    chegando perto, tão perto que podia me tocar. Sem tirar os olhos

    dos meus, ele pousou a poucos metros de mim. O meu mundo foi

    ruindo e eu já não tinha mais motivos para resistir. Ele deu um

    sorriso e a imagem que vi, em sequência, era eu voando em seus braços, deixando meu passado para trás: tudo o que sou e tudo o

    que um dia eu poderia ser. Ele segurou minha mão e levou até a

     boca, em um beijo suave e frio. Senti suas asas se fechando sobre

    mim. Nesse momento, eu suspirei e consegui ver-me livre daquele

    olhar. Fechei os olhos e respirei fundo, retomando o controle sobre

    mim.Não sei quanto tempo transcorreu até que eu notasse que

    havia algo errado e nem sei quanto tempo descansei nos braços

    dele. Escutei em minha mente uma voz tão doce e suave que me

    embriagou com sua essência.

    —  Você não tem nada a temer. Muitos me conhecem como

    Morte, mas não tenha medo... Eu cuidarei de você.

    Aquelas palavras eram sedutoras e pegajosas, fazendo-me

    querer estar nos braços da Morte. Assim que esse pensamento

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    passou pela minha cabeça, uma ficha que estava presa em algum

    lugar se deslocou e caiu. ‚Espera aí, onde mesmo que eu estou

    indo descansar?‛ MORTE! MORTE! Quando o significado daquilo caiu em meu entendimento,

    tudo ficou claro e percebi o que estava acontecendo. De alguma

    maneira, nós dois estávamos dentro da água. Sendo carregada pela

    correnteza, a primeira coisa que percebi era que ele estava me

    pressionando para baixo, jogando seu corpo por cima do meu.

    Como eu não percebi o que estava acontecendo antes?! Eu estavame afogando sem reclamar, sem nem mesmo lutar pela vida.

    Comecei a me debater... Creio que o peguei de surpresa; ele

    não estava esperando qualquer reação e acabou permitindo que eu

    emergisse. Olhando-me nos olhos, percebi que o anjo queria me

    acalmar. Se existe uma maneira de matar alguém com carinho, era

    exatamente isso que estava acontecendo. Não me deixei prender

    naquelas promessas mentirosas de descanso. Eu tinha uma vida enão iria abrir mão dela assim tão facilmente.

    Comecei a lutar contra ele e fechei meus olhos para não cair

    em seus encantos novamente. Chutei, conseguindo acertá-lo com

    força, fazendo com que ele me soltasse. Vi o momento em que sua

    fisionomia passou de assustada para confusa e de confusa para

    furiosa. Dos seus olhos saiu um fogo negro que gelou minha alma.Tentei me afastar dele.

    —  Você acha mesmo que pode se livrar de mim assim? Eu

    tentei ser bonzinho com você. Gostaria de saber por que todos

    preferem a maneira mais difícil.

    Ele agitou a mão e um pedaço de muro quebrado surgiu sei lá

    de onde e veio em minha direção.

    —Ahhhhh... —  Gritei e, em um impulso pela sobrevivência,

    mergulhei o mais fundo que pude, mas não a tempo de evitar que

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    aquele muro batesse em mim. Fiquei atordoada de dor; um pedaço

    de pedra rasgou minha pele, deixando-me ferida. Imediatamente,

    comecei a afundar, pois meu corpo estava pesado. Lembrei-me daimagem da moça... Tentei enxergar se ele estava me puxando, mas

    era impossível: a água turva impedia qualquer visualização.

    Debati-me na água e minha mão acertou algo. Dei algumas pisadas

    e ele me soltou.

    Eu precisava de ar, precisava ir para a superfície. Nadei e,

    quando tirei a cabeça para fora da água, a Morte pulou por cima demim. Não consegui pegar ar suficiente, me engasguei, pois engoli

    muita água. Porém, ainda tive forças para dar uma cotovelada no

    anjo.

    — Aiiiiiiiii... Merda!

    Ele me soltou novamente. Aproveitei para tomar fôlego e

    nadar até uma árvore que estava perto. Porém, quando eu estava

    quase chegando aos primeiros galhos, vi a sombra do anjo negrologo acima, só esperando que eu chegasse até ali. Desisti da árvore

    e continuei a nadar, procurando um lugar que fosse seguro.

    Ele voou acima de minha cabeça e soltou uma risada.

    Sinceramente, não sei do que ele estava rindo: da minha luta

    patética pela vida, da situação em si ou, simplesmente, se estava

    rindo de mim.— Pensa que pode fugir de mim? Tenho esse dia marcado na

    minha agenda antes mesmo de você nascer. Não existe saída; essa é

    a última oportunidade que te dou para descansar nos meus braços,

    sem sofrimento. Prometo que será como um beijo suave...

    Ele estendeu a mão para mim novamente, como da primeira

    vez. Mas, dessa vez, eu estava imune aos seus encantos. Eu queria

    descansar sim, mas bem longe dos braços da morte.

    — Não! Não! Vá embora! Eu quero viver... — Minha voz foi se

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    perdendo e eu não conseguia pensar em mais nada para falar;

    pensava somente em lutar. O fato de ele sentir dor abriu muitas

    possibilidades de fuga.Havia água em todos os lugares; as casas estavam totalmente

    submersas. O desespero começou a tomar conta de mim; sou uma

     boa nadadora, sei disso, mas estava ficando esgotada.

    — Pensa que vai aguentar isso por quanto tempo?— Sua voz

    entrou pelos meus ouvidos. Tentei localizar onde ele estava e tive a

    sensação de que brincava comigo. —  Eu gosto de você... —  Eleapareceu diante de mim novamente, lindo, perfeito e encantador.

    — Nunca sou visto por ninguém... Fico pensando: por que você é

    diferente? Talvez seja uma espécie de teste para mim... —  Falou,

    pensativo.

    — Por favor, deixe-me ir. Não quero morrer, sou jovem ainda

    —  Me esforcei para falar; tomar fôlego já não era uma tarefa tão

    fácil.— Nunca ouviu? Nem todas as pessoas vivem até a velhice e

    você é uma delas. Olhe para todos os lados e só verá água; não tem

    onde ficar e isso só vai piorar. Com a chuva forte, estourou uma

     barragem a alguns quilômetros daqui e a água vai subir muito

    mais.

    Eu não podia acreditar, tinha que haver alguma saída. Eu nãopodia morrer assim. Não agora.

    —  Por que você não me deixou lá em cima, no telhado? Eu

    estava segura lá, meu irmão viria me resgatar. — Começava a me

    faltar o ar.

    — Você não entende. Aquele prédio foi levado pela água. Se

    não fosse por mim, seria muito mais dolorido.

    —  Você está mentindo! —  Eu gritei e, logo depois, afundei

    mais uma vez, engolindo muita água. Lutei até conseguir voltar à

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    tona.

    —  Por que resiste? Venha para mim... Eu já disse que vou

    cuidar de você. Vai ficar tudo bem, vai ver.Bem? Desde quando uma pessoa morta e enterrada vai ficar

     bem? Ficar bem não tem essa definição para mim. Estava ficando

    difícil de pensar com a correnteza me jogando de um lado para o

    outro.

    — Eu não quero morrer!

    —  Será que você não entende? Eu estou aqui para ajudá-la!Sem mim esse momento crucial seria extremamente traumatizante.

    Sou eu quem conduz as almas para o seu descanso.

    Tentei olhar para qualquer outro lugar, menos para seus olhos

    ou seu corpo pairando a poucos metros de mim.

    — Não! Eu não quero.

    — Cansei desta conversa inútil. Estou aqui para concluir um

    trabalho, quer você queira, quer não.Demorou alguns instantes para eu entender o que ele estava

    fazendo. Com um dedo ele começou a fazer círculos no ar e, logo

    após, surgiu um redemoinho puxando-me para o fundo. Raciocinei

    rápido: sabia que se eu nadasse a favor do redemoinho, chegaria

    um momento que eu sairia dele. Não sabia se teria força para mais

    isso, mas não desistiria sem lutar.Nadei, nadei e continuei nadando até minhas forças acabarem,

    mas não foi esse o maior problema. Com o cansaço eu poderia até

    lutar, no entanto, com a câimbra que tomou minha perna direita,

    isso era impossível. Tomei mais ar e comecei a afundar.

    Nesse momento, o anjo apareceu em todo seu glamour e

    encanto; tão lindo e perfeito acariciando minha face... Olhei em

    seus olhos e ele me segurou, ajudando-me a emergir. Enfim, tomei

    fôlego.

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    — Confie em mim — ele disse, dando um sorriso torto.

    Eu tossi para tirar a água dos meus pulmões, mas antes que eu

    me recuperasse totalmente, fui tomada pela surpresa de seu beijo.Todo meu corpo começou a formigar; tudo estava tão gelado e tão

    quente ao mesmo tempo. Em instantes me entreguei a ele, sentindo

    o sangue correr mais rápido pelas minhas veias. Então senti a

    pressão nos ouvidos; eu estava afundando novamente.

    Suas mãos me seguravam contra ele, enquanto seus lábios

    exigentes procuravam espaço em minha boca. Meus pulmõescomeçaram a arder em reclamação e minha consciência começou a

    se perder em um abismo sem fim. Eu tinha a vaga lembrança de

    que eu estava morrendo e, em uma última tentativa de lutar pela

    vida, clamei de todo meu coração e de toda minha alma: ‚Deus , me

    ajude, não me deixe morrer. Socorro‛. Assim que terminei de fazer

    esse clamor, escutei um grito.

    — NÃOOOOOOOOOOO!Eu emergi tossindo e o anjo se afastou de mim com uma

    expressão demoníaca.

    - Por que você fez isso?—  Perguntou, antes de sumir e eu

    desmaiar.

    Acordar foi estranho; eu estava com minha garganta doendo,

    tinha a sensação que tinha ingerido muita água.— Moça? — Abri os olhos para ver quem estava falando e me

    deparei com uma mulher desconhecida. — Você está bem?

    —  Sim...—  Olhei ao redor, tentando descobrir que lugar era

    aquele. — Onde estou?

    — Você está em um abrigo.

    Agora eu estava notando como o lugar tinha muitas pessoas.

    — Como eu cheguei até aqui?

    — Te encontraram em cima de um galho, desacordada, foi um

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    verdadeiro milagre você não ter morrido. Tiveram que reanimá-la,

    mas logo depois você ficou inconsciente. Mais tarde o médico virá

    vê-la.— E minha família?— Ela me olhou fraternalmente.

    —  Desculpe-me, mas não sei nem o seu nome... Não tenho

    como saber de sua família.

    — Eu que peço desculpas. Chamo-me Fernanda. Pouco antes

    de sair do meu apartamento, recebi uma ligação do meu irmão

    falando que meus pais estavam perdidos.—  Lamento não poder informar nada sobre seus familiares.

    Agora tenho que voltar aos meus afazeres, logo mais os bombeiros

    chegarão e talvez haja alguma notícia.

    Fiquei olhando ela se afastar, encostei a cabeça e fechei os

    olhos para tentar dormir mais um pouco, quando percebi um

    movimento perto de mim. Abri os olhos novamente e dei de cara

    com o rosto do anjo a centímetros de mim. Preparei-me para gritar,mas antes de qualquer reação, ele disse:

    — Não precisa ter medo, não vou demorar.

    — O que quer de mim?

    —  Nada. Só quero lhe dizer algumas palavras... Nunca em

    minha existência desejei tanto alguém como te desejei, mas você se

    recusou, lutou e fugiu de mim. Pelo visto, tem gente lá em cimaque gosta de você e a tirou de mim. No entanto, tenho um recado

    para você. Ainda hoje vai me querer; seu desejo será maior do eu

    senti por você e não vou poder fazer nada.

    Dizendo essas palavras, ele virou-se e foi se afastando. Nesse

    momento, foi como se um véu se abrisse e vi que ele não estava

    sozinho. Reconheci a mulher que caiu do prédio e as pessoas que vi

    se afogarem, quando estava na minha sacada. Uma a uma foram

    atrás dele. No entanto, o que mais me machucou e me feriu tão

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    profundamente foi ver as três últimas pessoas que estavam

    acenando para mim e logo depois viraram as costas, deixando-me

    sozinha. Desse jeito fui obrigada a dizer adeus ao meu pai, minhamãe e meu irmão.

    Meu universo se desmanchou e eu desejei nunca ter lutado

    contra a morte. Quis morrer e pedi a morte, em meu lamento

    desesperado. Eu não precisava que ninguém trouxesse a notícia,

    tinha certeza, em meu íntimo, que tudo foi real. Chamei a morte,

    pois não via mais motivo para viver e recebi um leve riso de volta.Não o vi, só escutei sua voz.

    —  Um dia nos encontraremos de novo, pena que nada será

    como poderia ter sido.

    A voz foi sumindo e o único som que eu escutava era do meu

    próprio choro. As lágrimas escorriam pelo meu rosto conforme eu

    ia pensando no futuro triste e vazio que teria, sem as pessoas que

    mais amava. Suspirei desejando voltar no tempo e poder abraçar amorte, enquanto ele era tão doce e suave comigo, e poder me

    perder em seus braços novamente.

    Por um momento pensei ter conseguido. Quando me vi no

    meio de toda aquela água, sorri ao vê-lo em minha frente, fechei

    meus olhos e me entreguei em seu abraço gélido, adorando cada

    sensação e pedindo mais. Mas, nessa hora, alguém entendeu umcobertor sobre mim, me trazendo de volta à realidade tão triste. De

    repente, sabia que minha morte não será uma coisa muito

    agradável de presenciar.

    Posso não ter motivos para viver mas quando chegar o

    momento, tenho certeza de que vou desejar nunca tê-la encontrado

    novamente.

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    DÉCIO GOMES...

    ...é pernambucano, nascido no fim da década de oitenta.

    Amante da literatura de mistério e terror desde criança, é também

    grande admirador da cultura geek, colecionador de games e discos.Suas maiores influências vêm de nomes como Edgar Allan Poe,

    Márcia Kupstas, Marcelo Rubens Paiva e Arthur Conan Doyle.

    Teve sua carreira literária iniciada em 2012 com o romance

    Albertine, livro que lhe rendeu excelentes críticas e notas em

     jornais, revistas e blogs sobre literatura. Desde então mantém seus

    lançamentos periódicos, sejam romances ou contos.

    Contato com o autor: [email protected]

    O COLECIONADORDE MÁSCARAS 

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    O COLECIONADOR DE MÁSCARAS

    As cores típicas de outubro preenchiam as ruas, as sacadas

    das casas e as vidraças das lojinhas, dando vida a decorações

    alaranjadas, roxas e verdes que pendiam de todos os lugares que a

    vista alcançava. Era uma sexta-feira de clima agridoce, regada à

    véspera do evento mais esperado do ano pelo povo daquelapequenina cidade: o Halloween.

    As ruas e calçadas estavam mais movimentadas que o

    normal, graças ao fluxo que ia e vinha de todos os lugares com

    moradores apressados, carregando suas compras –  em grande

    parte fantasias e sacos dos mais variados tipos de doces –  em

    grandes sacolas coloridas. Por todos os lados crianças corriam,

    muitas já preparadas para a longa noite de travessuras ou

    gostosuras, em suas inocentes figuras de vampiros, esqueletos e

    zumbis. Os veículos que transitavam incessantemente pareciam

    comportar motoristas apressados, ansiosos pela hora dos festejos

    que se dariam poucas horas adiante.

    Em um dos carros, porém, um motorista tranquilo e

    despreocupado derramava seu olhar por cada detalhe da cidade,guiando lenta e cuidadosamente por entre as faixas tomadas por

    pedestres animados e coloridos. Era um homem de meia idade,

    com os cabelos mistos entre o preto e o grisalho, de aparência

     jovial e rosto forte. Usava um casaco de lã marrom, de aparência

    muito velha, que subia em uma longa gola até o fim de seu grosso

    pescoço e roçava na barba parcialmente grisalha a cadamovimento realizado pelo homem.

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    Depois de atravessar mais meia dúzia de semáforos o carro

    do homem de casaco marrom parou rente a um prédio de paredes

     brancas e descascadas, e aos movimentos de uma manobra rápidado motorista foi posicionado em um pequeno estacionamento de

    quatro lugares, preenchidas apenas por ele mesmo e mais um

    carro pequeno, vermelho e repleto de adesivos de times de futebol.

    Sem demora ele abriu a porta e moveu as pernas, sentindo um

    alívio reconfortante por finalmente poder ficar de pé, e curvando-

    se para o banco de trás puxou uma pequena mala preta, detamanho suficiente para comportar apenas um par de roupas e

    talvez um ou dois utensílios pessoais. Trancou as portas do

    veículo e, após levar a mão esquerda a um dos bolsos e de lá

    retirar um discreto maço de cigarros, levou um deles aos lábios e o

    acendeu com um isqueiro prateado que repentinamente surgiu em

    suas mãos, também vindo de um dos bolsos da calça. Tragou,

    sentindo o prazer em forma gasosa deslizar em sua garganta, elogo em seguida pôs-se a caminhar de maneira lenta e

    ligeiramente manca na direção da entrada do prédio.

    Era uma pousada, uma pequenina pousada que