dostoieviski - noites brancas

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  • 8/8/2019 dostoieviski - noites brancas

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    NOITES BRANCAS

    F. DOSTOIEVSKI

    INDCE

    PRIMEIRA NOITE.................................................................................................................................... 2

    SEGUNDA NOITE..................................................................................................................................... 8

    A HISTRIA DE NASTENKA...............................................................................................................16

    TERCEIRA NOITE..................................................................................................................................22

    QUARTA NOITE..................................................................................................................................... 26

    A MANH................................................................................................................................................. 31

    NOTAS.......................................................................................................................................................33

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    PRIMEIRA NOITE

    Era uma noite maravilhosa, uma dessas noites que apenas so possveis quando somos jovens,amigo leitor. O cu estava to cheio de estrelas, to luminoso, que quem erguesse os olhos para ele

    se veria forado a perguntar a si mesmo: ser possvel que sob um cu assim possam viver homensirritados e caprichosos? A prpria pergunta pueril, muito pueril, mas oxal o Senhor, amigo leitor,lha possa inspirar muitas vezes!...

    Meditando sobre senhores caprichosos e irritados, no pude impedir-me de recordar a minhaprpria conduta irrepreensvel, alis ao longo de todo esse dia. Logo pela manh, foraatormentado por um profundo e singular aborrecimento. Subitamente afigurou-se-me que estava s,abandonado por todos, que toda a gente se afastava de mim. Seria lgico, na verdade, que

    perguntasse a mim mesmo: mas quem , afinal, toda a gente? Na realidade, embora viva h oitoanos em Sampetersburgo, quase no consegui estabelecer relaes com outras pessoas. Mas quenecessidade tenho eu de relaes? Conheo j todo Sampetersburgo e foi talvez por isso que me

    pareceu que toda a gente me abandonava, quando todo o Sampetersburgo se ergueu e bruscamentepartiu para o campo. Fui tomado pelo receio de me encontrar s e durante trs dias inteiros erreipela cidade mergulhado numa profunda melancolia, sem nada compreender do que se passavacomigo.

    Percorri a Perspectiva, fui ao Jardim, errei atravs do cais, e no vi sequer um dos rostos queencontrava habitualmente nesses mesmos locais, sempre mesma hora e ao longo de todo o ano.Eles, evidentemente, no me conhecem, mas eu conheo-os. Conheo-os intimamente. Estudei assuas fisionomias sinto-me feliz quando esto alegres e fico acabrunhado quando se velam detristeza. Estabeleci laos quase de amizade com um velhinho que todos os dias encontro, sempre mesma hora, na Fontanka. Tem uma expresso muito grave e pensativa e sussurra

    permanentemente, falando consigo mesmo, agitando a mo esquerda enquanto com a direita segura

    uma longa e nodosa bengala com um casto de ouro. Ele prprio me reconhece, dedicando-me umcordial interesse. Se, por qualquer eventualidade, eu no aparecesse hora do costume nesse talsitio habitual na Fontanka, tenho a certeza de que teria um acesso de melancolia. Assim, sentimos,

    por vezes, a tentao de nos cumprimentarmos, principalmente, quando estamos ambos de bomhumor. Recentemente, como no nos vssemos h j dois dias, ao terceiro, quando nos encontramos,amos j a levar as mos aos chapus, mas reprimimos a tempo essa inteno, baixamos os braos e

    passamos com simpatia um pelo outro.Para mim, tambm as casas so velhas amigas. Quando passeio, cada uma delas parece correr

    ao meu encontro na rua: olha-me com todas as suas janelas, dizendo-me algo como isto: Bom dia!Como ests? Eu vou bem, graas a Deus, muito obrigada! Em Maio vo-me aumentar um andar.Ou: Como vais? Amanh vou entrar em obras. Ou: Estive quase a arder e tive bastante medo.

    E outras coisas semelhantes.Tenho algumas preferidas, ntimas. Uma delas tem intenes de fazer uma cura, neste Vero,nas mos de um arquiteto. Irei v-la todos os dias, no v ele mat-la; nunca se sabe. Deus a guarde!

    Nunca esquecerei a histria de uma linda e pequena casa cor-de-rosa claro. Era uma casinhade pedra, olhava-me com um ar to afvel e mirava to orgulhosamente as suas frias vizinhas, que omeu corao se alegrava sempre que passava diante dela. Subitamente, na semana passada, ia a

    passar na rua, olhei para a minha amiga e que ouo eu? Um grito dilacerante: Pintaram-me deamarelo! Malandros! Brbaros! No tiveram piedade de nada, nem das colunas, nem das cornijas;eis a minha amiga amarelo-canrio. Quase tive, por causa disto, um derramamento de blis, e atagora no tive coragem para ir ver a pobrezinha, estropiada, pintalgada com as cores do CelesteImprio.

    Por aqui j v, amigo leitor, como tenho relaes com todo Sampetersburgo.J disse que durante trs dias fui atormentado por uma grave inquietao at ao momento em

    que descobri a sua causa. Na rua sentia-me indisposto (este ausentou-se, aquele saiu da cidade; para

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    onde ter ido aquele outro?), e na minha casa tambm me sentia mal. Passei duas noites a perguntara mim mesmo: que faltar no meu quarto?; por que razo me incomodar tanto aqui estar? e,

    perplexo, examinava as paredes verdes, enegrecidas de fumo, o tecto coberto pela teia de aranha,com tanto xito cultivada por Matriona, passei em revista todo o meu mobilirio, examinei cadeira

    por cadeira: no estar aqui o mal (pois se uma s cadeira: que seja no estiver no seu lugar habitualj no me sinto bem)? Olhava pela janela trabalho perdido: no conseguia o menor alvio! Fui ao

    ponto de chamar Matriona e de ali mesmo lhe dirigir uma paternal censura por causa da teia dearanha e, de uma maneira geral, pela sua falta de asseio: ela limitou-se, porm, a olhar-mesurpreendida; virando-me as costas sem proferir uma nica palavra, de modo que a teia de aranha

    pende ainda intacta do tecto. Em suma, apenas esta manh adivinhei do que se trata. Eh, no hdvida de que foi para se livrarem de mim que eles fugiram para o campo!

    Perdoem-me a vulgaridade com que me exprimo: no me sinto com disposio para usar umestilo requintado...; a verdade que todo o Sampetersburgo fugiraou partira para o campo; averdade que todos os respeitveis cavalheiros da burguesia tinham, aos meus olhos, o ar de quemest em vias de tomar um fiacre; como respeitveis pais de famlia que, aps o trabalho quotidiano,se dirigissem sem bagagens para o seio da famlia que estava no campo; a verdade que todos ostranseuntes tinham agora um ar completamente especial que parecia dizer a cada pessoa que com

    eles se cruzava algo como isto: Bem sabem, s aqui estamos de passagem. Dentro de duas horaspartimos para o campo. Se acaso via abrir-se uma janela em cujas vidraas haviam tamboriladouns dedinhos delicados, brancos como o acar, e debruar-se para a rua a cabecinha de uma lindarapariga para chamar o vendedor de vasos de flores, de repente parecia-me que aquelas flores eramcompradas por comprar (isto , de modo algum para usufruir da Primavera e de flores na atmosferasufocante de um quarto) e que em breve, rapidamente, iriam todos para o campo levando-asconsigo.

    Alm disso, fizera j progressos tais dentro desta ordem particular de descobertas, nova paramim, que podia agora, infalivelmente, primeira vista, determinar para que aldeia tinha ido esta ouaquela pessoa. Os turistas de Kamenny Ostrov e das ilhas Aptekarsky ou da estrada de Peterhofdistinguiam-se pela estudada elegncia das suas maneiras, pelos seus modernos fatos de Vero e

    pelas belas carruagens em que se deslocavam cidade. Os habitantes de Pargolovo4 e daspovoaes mais afastadas distinguiam-se imediatamente pela sua sensatez e pelo seu ar grave. Osvisitantes de Krestovski Ostrov5 eram reconhecveis pela sua imperturbvel jovialidade.

    Encontrava, acidentalmente, uma longa procisso de carroceiros que caminhavamindolentemente, segurando as rdeas nas mos, a par dos seus carros carregados de mveis diversos,mesas, cadeiras, divs turcos e outros, e mais material domstico em cima do qual ia muitas vezes,sentada, no topo de toda aquela pilha, uma magra criada vigiando ciosamente os haveres dos seusamos; via as barcas pesadamente carregadas de utenslios domsticos, deslizando sobre o Neva ousobre o Fontanka, dirigindo-se para o rio Negro ou para as Ilhas6 e, carroas ou barcas,multiplicavam-se por dez, por cem, aos meus olhos. Parecia-me que tudo se pusera em marcha pelas

    estradas, que todos emigravam, em enormes caravanas, para os campos e que Sampetersburgoameaava transformar-se num deserto, de tal modo que acabei por ficar envergonhado, humilhado,aflito: eu no tinha sequer um lugar no campo para onde ir, nem qualquer razo para o fazer.Estava, no entanto, disposto a partir a p, com cada carroa que passava, a acompanhar cadacavalheiro de aparncia respeitvel que alugava um fiacre. Nem um s, porm, absolutamenteningum, me convidou: como se eu estivesse esquecido, como se, na verdade, fosse um estranho

    para eles!Andei muito e durante muito tempo, de tal modo que chegara j ao ponto de, conforme era

    meu hbito, esquecer onde estava, quando, de sbito, me encontrei s portas da cidade. Senti-me,num instante, tomado de alegria e passei a barreira. Avancei ento pelo meio de campos semeados ede prados. No experimentava a mnima fadiga, sentindo apenas, com toda a fora do meu ser, que

    uma espcie de fardo deixava de pesar sobre a minha alma. Todos os transeuntes me olhavam toamavelmente que por pouco ter-me-iam cumprimentado; respiravam, todos eles, uma espcie decontentamento e todos eles, sem excepo, fumavam charutos. Eu tambm me sentia contente como

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    nunca me sentira antes. Dir-se-ia que subitamente fora transportado para Itlia, de tal modo oesplendor da natureza me deslumbrava, a mim, citadino meio enfermo, meio asfixiado entre asminhas quatro paredes.

    Existe algo muito comovente, difcil de exprimir, na paisagem dos arredores deSampetersburgo quando, aproximao da Primavera, manifestando subitamente toda a suaviolncia, todas as foras que recebeu do Cu, se cobre de viosa verdura, se adorna com o colorido

    das flores... Faz-me involuntariamente lembrar uma jovem macilenta que olhssemos umas vezescom piedade, outras com uma pacincia complacente e cuja presena quase no notamos, at que,de repente, num instante lhe encontramos uma maravilhosa e inexplicvel beleza, ao mesmo tempoque, estupefactos, nervosos, nos interrogamos contrariados: que fora ter feito brilhar com um talfulgor estes olhos pensativos e tristes? Que ter tingido de sangue estas faces magras e plidas? Queter acendido a paixo nestes delicados traos? Por que motivo arfa deste modo este peito? Queter, to subitamente, povoado de fora, de vida e de beleza o rosto desta pobre rapariga,iluminando-o com semelhante sorriso e enchendo-o de uma alegria to radiosa e fulgurante?Olharemos em torno de ns, procuraremos algum, adivinharemos... Mas, passado este instante,encontraremos talvez no dia seguinte novamente o mesmo olhar pensativo e distrado que tinhaantes, o mesmo rosto plido, a mesma submisso e timidez nos movimentos e at mesmo um

    arrependimento e os vestgios de um mortificante aborrecimento ou despeito por aquele arrebatamento de um minuto... Lamentaremos ento que aquele fulgor, que aquela efmera beleza, tenha todepressa, to irrevogavelmente, fenecido lamentaremos por no termos sequer tido tempo de aamar...

    E no entanto a minha noite foi mais proveitosa do que o dia! Eis como as coisas se passaram:Regressei muito tarde cidade e j tinham dado as dez horas quando me aproximei da minha

    casa. O caminho que percorri passava junto do cais do canal, onde, quela hora, no se encontravavivalma. Na realidade, moro num bairro bastante afastado. Caminhava cantando, pois quando estoucontente gosto de cantarolar, como qualquer homem feliz que no tenha amigos, nem conhecidos, eque nos seus momentos defelicidade no tem com quem Compartilhar a sua alegria. Subitamente,aconteceu-me a mais inesperada das aventuras.

    Num recanto, apoiada ao parapeito da muralha, estava uma mulher. Com os cotovelosapoiados no gradeamento, parecia olhar com muita ateno a gua turva do canal. Trazia um bonitochapelinho amarelo e uma encantadora mantilha negra. uma rapariga e certamente morena,

    pensei. Parecia no ouvir os meus passos e nem sequer se moveu quando passei por ela, retendo arespirao e com o corao a bater violentamente. Estranho!, pensei Deve ter, sem dvida, umagrande preocupao; e bruscamente detive-me, como que pregado ao solo. Sim, no me enganara:a jovem chorava. Um momento depois, ouvi um novo soluo. Santo Deus! O meu coraocomprimiu-se de angstia. Embora habitualmente seja tmido com as mulheres, a verdade que estecaso era excepcional!... Voltei atrs, uns passos na sua direo e teria forosamente dito:

    Menina!, se no tivesse a conscincia de que esta exclamao fora pronunciada j mil vezes

    em todos os romances mundanos. Foi a nica coisa que me deteve. Porm, enquanto procurava umapalavra, a jovem recomps-se e, dominando-se, passeou um olhar em torno de si, baixou a cabea edeslizou minha frente ao longo do canal. Imediatamente, caminhei em sua perseguio, mas ela,descobrindo-o, deixou o cais, atravessou a rua e foi para o passeio do outro lado. No ouseiatravessar, O meu corao palpitava como o de um pssaro apanhado numa armadilha. De sbito,uma casualidade veio em meu auxlio.

    No passeio para que a rapariga atravessara surgiu subitamente, perto dela, um cavalheiro defraque, com uma idade muito respeitvel, mas com um ar que no o era tanto. Cambaleava,apoiando-se cautelosamente nas muralhas. A rapariga caminhava apressada e timidamente, comosucede geralmente com as raparigas que no querem que se lhes oferea para as acompanhar noiteat suas casas, e, por certo, o oscilante cavalheiro nunca a teria conseguido apanhar se a minha boa

    estrela o no tivesse induzido a recorrer a meios de circunstncia. De repente, sem dizer palavra, osujeito encheu-se de coragem e, com todas as suas foras, desatou a correr em perseguio da minhadesconhecida. Ela fugia, clere como o vento, mas o senhor, embora cambaleando, ia ganhando

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    terreno, at que a atingiu. Ela soltou um grito a eu:.. dei graas aos Cus pela excelente e nodosabengala que trazia na mo direita. Num abrir e fechar de olhos, eis-me do outro lado da rua, e,tambm num abrir e fechar de olhos, o intruso deteve-se, tomou em considerao o meupesadoargumento, calou-se, ficou para trs, e apenas quando amos j muito longe me apostrofou emtermos assaz enrgicos. As suas palavras, porm, perderam-se na distncia.

    D-me o brao disse desconhecida , pois assim ele no ousar voltar a abord-la.

    Silenciosa, estendeu-me o brao ainda trmulo de emoo e de susto. Oh, intruso, como teabenoei naquele momento! Olhei-a furtivamente: conforme calculara, era muito bela e morena;sob as suas pestanas negras brilhavam ainda pequenas lgrimas, lgrimas provocadas pelo sustorecente ou pelo desgosto que a fizera chorar junto da muralha, no sabia. Nos seus lbios, contudo,resplandecia j um sorriso. Olhou-me tambm de soslaio, enrubesceu levemente e baixou os olhos.

    - Est a ver, Se no me tivesse repelido, nada disto acontecido... Mas eu no o conhecia. Julguei que o senhor tambm...- E agora, j me conhece?- Um pouco. Olhe, por exemplo, porque treme?

    Oh! Adivinhou logo! respondi, entusiasmado com o fato de aquela jovem serinteligente: a inteligncia s favorece beleza. Sim, logo primeira vista adivinhou quem eu era.

    Com efeito, sou tmido com as mulheres, no nego que estou emocionado, pelo menos tanto como amenina o estava h momentos, quando aquele sujeito a assustou... Sinto uma espcie de medo, nestaaltura. Dir-se-ia que vivo num sonho, mas mesmo em sonhos nunca acreditei que poderia um diafalar com uma mulher, fosse ela quem fosse...

    O qu? Ser possvel?... Sim, a minha mo treme, pois nunca nela se apoiou uma to linda mozinha... Perdi

    completamente o hbito de lidar com mulheres; isto , nunca tive esse hbito... Bem v, vivo s.Nem sei como se lhes deve falar. Olhe, ainda agora, consigo, no sei se j lhe disse alguma tolice.Se assim aconteceu, diga-mo francamente, pois aviso-a de que no sou susceptvel...

    - No, no disse qualquer tolice, antes pelo contrrio. E se na verdade quer que lhe sejasincera, pois bem, dir-lhe-ei que mulheres apreciam essa timidez. E se ainda quer que v maislonge, digo-lhe que no fujo regra e que no o despedirei at me ter acompanhado a casa.

    Dada a maneira como me est a tratar comecei, anelante de entusiasmo , deixareiagora mesmo de ser tmido e, ento, adeus todas as minhas vantagens!...

    - As suas vantagens? Mas quais vantagens? Isso que j no est bem.- Perdo, no insistirei. A palavra escapou-se-me. Mas como quer que num momento como

    este no tenha o desejo de... De agradar, talvez? isso mesmo! Mas, por amor de Deus, seja benvola! Tente compreender-me. Tenho j

    vinte a seis anos, bem v, e nunca me relacionei com ningum. Assim, como quer que fale comodeve ser, com -vontade e oportunamente? Ser melhor para ambos se falarmos com sinceridade...

    Quando o meu corao fala, a minha boca no se sabe calar. Bem, mas a mesma coisa... Poderacreditar-me? Nem uma mulher, nunca, nunca! Nem sequer um amigo! Apesar disso, todos os diassonho que, finalmente, tarde ou cedo, encontrarei algum. Ah, se soubesse quantas vezes meapaixonei desta maneira!

    Mas como? Por quem se apaixonou ento? Por ningum, por um ideal, apenas, por aquela que em sonhos me visita. Criei, nos meus

    sonhos, romances completos! A verdade que no me conhece! A bem dizer, no podia ser de outramaneira: encontrei duas ou trs mulheres mas seriam elas mesmo mulheres? Eram semprecriadas ou donas de casa que... Vou faz-la rir se lhe disser que tentei, por mais de uma vez,entabular conversa, como agora fazemos, muito simplesmente, com uma aristocrata, na rua, estandoela sozinha, evidentemente; entabular conversa, claro, timidamente, respeitosamente,

    apaixonadamente. Dizer-lhe que morro de solido, que no me repila, que no tenho maneira deconhecer nenhuma mulher, dando-lhe mesmo a entender que dever das mulheres no recusar atmida splica de um homem to infeliz como eu. Que, em suma, tudo o que peo se resume a

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    dirigir-me algumas palavras fraternas, uma ou duas palavras de afeto, a no me repelir logo primeira tentativa, a acreditar na minha boa-f, a escutar o que lhe disser a zombar de mim, se assimentender, mas a dar-me esperana dizendo-me duas palavras, duas palavras apenas, mesmo com acondio de nunca mais nos vermos!... Est-se a rir... Defato, o que lhe digo no para menos...

    - No se zangue. Rio-me, pois o senhor o seu prprio inimigo, pois, se o tivesse tentado,teria talvez obtido xito, mesmo que isso se passasse na rua: quanto mais simples se , melhor...

    No haveria nenhuma mulher, a no ser que fosse uma tola ou ento que estivesse de mau humornesse momento, que tivesse coragem de lhe recusar essas duas palavras que lhe implorava totimidamente... Pensando melhor, que digo eu? Certamente que o tomaria por um louco. A verdade que julgo as outras por mim. Bem sei como esta gente !

    - Agradeo-lhe muito! - exclamei. Nem sequer pode compreender o bem que acaba de mefazer!

    Bem, bem! Diga-me l uma coisa: como concluiu que eu era a mulher que... que o iaconsiderar digno de ateno, de afeto... em suma, que no era uma criada ou uma dona de casa,como as outras de que falou? Por que razo decidiu a abordar-me?

    - Porqu? Porqu? Talvez porque estava s, porque aquele cavalheiro era demasiado atrevido,por ser de noite: tem de reconhecer que no podia fazer outra coisa que era o meu dever...

    - No, no. Refiro-me a momentos antes, junto da muralha.- No verdade que tinha j nessa altura a inteno de me abordar?

    Junto da muralha? Mas, na realidade, nem sei como lhe responder, temo... Sabe? Hojesentia-me feliz, caminhava, cantava, tinha ido at aos arrabaldes, nunca vivera horas de tantaalegria. E a menina.., talvez tenha sido s impresso minha.., enfim, desculpe-me se lho recordo,mas tive a impresso de que chorava, e ento eu.... no suportei tal coisa... o corao apertou-se-me... Meu Deus, no teria acaso o direito de me entristecer por sua causa? Ter sido pecadoexperimentar por si uma fraterna compaixo?... Desculpe, eu disse compaixo... Em suma, paraterminar, t-la-ei ofendido por me ter ocorrido involuntariamente a idia de me dirigir a si?...

    Deixe! Basta! No continue... interrompeu, baixando a cabea e apertando-me a mo. Fui eu quem andou mal em lhe ter falado nisto... Mas sinto-me feliz por no me ter enganado aseu respeito... Chegamos j perto da minha casa, ao fundo desta rua, a dois passos daqui.. Adeus,estou-lhe muito grata...

    Ento possvel? Ser possvel que no nos voltemos a ver... Tudo ficar por aqui?

    Est a ver? respondeu, rindo-se. Primeiro s queria duas palavras, e agora... Mas, defato, no lhe direi adeus... Pode ser que nos voltemos a encontrar...

    Virei amanh. Oh, desculpe-me, eis-me j a exigir. Sim, o senhor est impaciente quase exige...Escute-me s por um momento! interrompia. - Perdoe-me se lhe digo mais uma coisa...

    o seguinte: no posso deixar de aqui voltar amanh. Sou um sonhador; a minha vida real to

    reduzida que momentos como estes que agora vivo so para mim de tal modo preciosos que nopoderei evitar de os reproduzir nos meus sonhos. Sonharei consigo toda a noite, toda a semana, todoo ano. Voltarei obrigatoriamente aqui amanh, justamente aqui, a este mesmo local, a esta mesmahora, e sentir-me-ei feliz por recordar o que hoje aconteceu. Doravante, este lugar sagrado paramim. Tenho j dois ou trs locais como estes em Sampetersburgo. Uma vez, cheguei mesmo achorar por causa de uma recordao semelhante que de si vou guardar... Quem sabe, talvez quetambm a si, h dez minutos, fosse uma recordao que a fazia chorar... Mas desculpe-me, esqueci-me novamente... Talvez que um dia a menina tenha sido particularmente feliz aqui...

    Bem disse a jovem , admitamos, voltarei aqui amanh, s dez horas, como hoje. Vejoque no o posso impedir... A verdade que tenho necessidade de aqui vir; no v julgar que lheconcedo uma entrevista. Repito-lhe, tenho de vir aqui por razes pessoais. Mas, est bem... Vamos

    l, dir-lho-ei com franqueza: no me desagradar se o encontrar. Alm de mais, pode suceder-mealgum dissabor como o de hoje... Em suma, agradar-me-ia v-lo novamente.., para lhe dizer duaspalavras. No entanto, veja bem, no v julgar-me mal, no creia que habitualmente concedo

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    entrevistas com tanta facilidade... No lho faria se... Mas isto o meu segredo! S lhe ponhopreviamente uma condio...

    - Uma condio? Fale, diga, diga j tudo; estou de acordo com tudo, estou pronto para tudo! exclamei, entusiasmado. - Respondo por mim, serei obediente, respeitoso... bem me conhece...

    - Justamente porque o conheo que o convido para amanh respondeu, rindo. Conheo-o j perfeitamente. Mas ateno, s pode vir com uma condio (seja suficientemente bom

    para fazer o que lhe peo, bem v que lhe falo francamente): no se apaixone por mim... impossvel, assegurolho. Se quiser vir por amizade, ser bem-vindo, aqui tem a minha mo... Maspor amor, no, suplico-lhe!

    - Juro-lho! exclamei, segurando a sua minscula mo...- Basta, no jure nada: sei que o senhor inflamvel como a plvora. No me censure por lhe

    falar assim. Se soubesse... Tambm eu no tenho ningum com quem trocar palavras, a quem pedirum conselho. Como evidente, no na rua que se deve procurar conselheiro, mas o senhor umaexcepo. Conheo-o como se fssemos amigos h vinte anos... No verdade que no me trair?...

    - Vai ver... S no sei como vou passar toda esta noite e todo o dia de amanh.- Durma bem. Desejo-lhe, uma boa noite e lembre-se de que confiei em si. O senhor ainda h

    pouco dizia que preciso darmos conta de cada um dos nossos sentimentos, at mesmo de uma

    fraterna amizade! Disse isso de tal modo que subitamente me ocorreu a idia de lhe confiar...- O qu, por amor de Deus? Confiar-me o qu?- At amanh! Que isso permanea por ora como um segredo. E melhor para si: pelo menos,

    assim isto parecer-lhe- um romance. Pode ser que lho diga... Falaremos primeiro e travaremos umconhecimento mais amplo...

    - Eu contar-lhe-ei amanh toda a minha histria! Mas o que se passa? Dir-se-ia que algo deprodigioso me aconteceu... Onde estou eu, meu Deus? Ento, diga-me: no se sente contente porno se ter zangado comigo, como teria sucedido com qualquer outra, de no me ter imediatamenterepelido? Em dois minutos tomou-me feliz para sempre! Sim, feliz! Quem sabe, talvez tenhaconseguido reconciliar-me comigo mesmo, resolvido as minhas dvidas... Talvez que fique parasempre preso a estes minutos... Enfim, amanh contar-lhe-ei tudo, saber tudo...

    - Est bem, aceito. O senhor falar primeiro....- De acordo.- At amanh!- At amanh!E separamo-nos. Caminhei pelas ruas durante toda a noite: no me decidia a voltar ao meu

    quarto. Sentia-me to feliz...At amanh!

    SEGUNDA NOITE

    Como v, sempre passaram esta noite e este dia! disse-me ela estreitando-me ambas asmos.

    - H j duas horas que aqui estou. Nem pode imaginar de que maneira vivi todo este longodia!

    Eu sei, eu sei... Mas vamos ao que importa! Sabe porque vim hoje? Decerto que no foipara tagarelar tolamente, como sucedeu ontem. Doravante devemo-nos conduzir mais inteligentemente. Ontem pensei longamente em tudo isto.

    Mais inteligentemente; mas em qu?. Pela minha parte, estou disposto a isso. Em toda a

    minha vida, porm, nunca me sucedeu nada que fosse mais inteligente do que aquilo que ontem sepassou.

    Na verdade? Primeiramente, peo-lhe, no me aperte as mos dessa maneira; alm disso,

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    informo-o de que refleti hoje longamente a seu respeito. E ento, a que concluso chegou? A que concluso? Conclu que era necessrio recomear tudo desde o incio, pois

    verifiquei hoje que o senhor me ainda perfeitamente desconhecido e que ontem me comporteicomo uma criana, como uma rapariguinha, e conclu justamente que a culpa foi sem dvida domeu bom corao; em suma, fiz o meu elogio, como, no fim de contas, sempre acaba por suceder

    quando nos dedicamos tarefa de nos analisarmos Assim, para reparar o meu erro, decidi informar-me a seu respeito da maneira mais pormenorizada possvel. Como, porm, no conheo ningumque me possa informar, ser o senhor mesmo quem ter de me contar tudo, tudo at ao mais nfimo

    pormenor. Portanto, diga-me: que espcie de homem o senhor? Depressa, Comece, conte a suahistria!

    - A minha histria? exclamei, assustado. A minha histria? Mas quem lhe disse que eutinha uma histria? Eu no tenho histria...

    - Ento, como viveu at agora, se no tem histria? interrompeu-me, rindo-se.- Tenho vivido absolutamente sem a mais pequena histria! Tenho vivido, assim, como se

    Costuma dizer, metido no meu buraco, isto , s, absolutamente s, perfeitamente s... Compreendeo que isto significa: s?

    - Que entende por s? Quer com isso dizer que nunca v ningum? No isso! No que se refere a ver pessoas, vejo-as, mas, no entanto, estou s.- Ento, nunca fala com ningum?- No sentido mais estrito da palavra: a ningum.

    Mas, nesse caso, quem o senhor? Explique-se! Espere, deixe-me adivinhar. Tem, porcerto, uma av, tal como eu. Ela cega e h uma eternidade que no me deixa ir a nenhum lado, a

    ponto de eu quase j no saber falar. Como, h dois anos, cometi uma tolice, concluiu que no tinhamo em mim e, chamando-me junto dela, prendeu a sua saia minha com um alfinete. E assimtemos passado dias inteiros: ela faz meia, embora seja cega, e eu sou obrigada a estar junto dela, acoser ou a ler-lhe em voz alta. um hbito esquisito, este de estar pregada j h dois anos...

    Santo Deus, que sorte a sua! Mas no, no tenho uma av assim. Nesse caso, como pode ficar todo o dia em casa? Oua, quer saber quem sou? Evidentemente que sim! Quer sab-lo exatamente? Exatamente! Pois bem, vou-lhe fazer a vontade; eu sou... um tipo. Um tipo? Mas que espcie de tipo? exclamou a jovem,rindo com tanta vontade que dir-

    se-ia no rir h mais de um ano.O senhor muito divertido! Olhe, h aqui um banco: sentemo-nos... Ningum passa por

    aqui , ningum nos ouvir e... portanto, comece depressa a sua histria, pois, embora me tenha

    querido fazer acreditar no contrrio, o senhor tem uma histria; o que acontece que a esconde.Antes de mais, o que um tipo? Um tipo? Um tipo um excntrico, um sujeito ridculo! respondi, desatando a rir para

    fazer coro com as suas gargalhadas infantis. um carter assim. Escute: sabe o que umsonhador.

    Um sonhador? Desculpe, mas como no havia de o saber? Eu prpria sou uma sonhadora!Por vezes, quando estou sentada ao lado da av, no imagina o que me passa pela cabea!... Olhe,uma pessoa comea a sonhar e j no capaz de parar... Veja, uma ocasio fui ao ponto de imaginarque casara com um prncipe chins... Na verdade, s vezes, faz to bem sonhar!... Vendo melhor,no... Quem sabe! Sobretudo se no h mais nada em que pensar... acrescentou, agora j com umar muita grave.

    - isso mesmo! Se j casou, um dia, com o imperador da China, nesse caso vai portantocompreender-me maravilhosamente. Oua ento... Mas desculpe: no sei ainda o seu nome.- Finalmente! S agora se lembrou disso!

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    - Ah, meu Deus! A verdade que isso no me ocorreu at agora; no me pareceuindispensvel...

    - Chamo-me Nastenka.- Nastenka... nada mais?- Nada mais. No lhe suficiente? O senhor difcil de contentar!- Se me suficiente? Pelo contrrio, chega-me perfeitamente, perfeitamente, Nastenka! A

    menina uma bela rapariga e agradeo-lhe que, para mim, consinta em ser simplesmente Nastenka!- Na verdade? E ento?- Ento, Nastenka, escute e veja como ridcula a minha histria.Sentei-me junto dela, assumindo uma pose de uma seriedade estudada e comecei, como se

    estivesse a ler um livro:- Existem, no sei se o sabe, Nastenka, existem em Sampetersburgo lugares muito inslitos.

    Nesses stios, dir-se-ia que no penetra o mesmo sol que brilha para os outros habitantes da cidade:o sol que ali entra parece ser outro, um novo sol, feito de encomenda para os tais lugares. Nessesstios, minha querida Nastenka, leva-se uma vida completamente diferente, que em nada seassemelha que se desenvolve junto de ns, que pode existir num mundo desconhecido, mas no nonosso, na nossa poca sria, ultra-sria. Esta vida uma mistura de algo de puramente fantstico, de

    encarniadamente idealista e, simultaneamente ai de mim, Nastenka , de grosseiramenteprosaico e comum, para j no dizer de insolitamente vulgar.

    Uf! Meu Deus, que prembulo! Que terei ainda de ouvir? Vai saber, Nastenka (parece-me que nunca me cansarei de lhe chamar Nastenka), vai saber

    que nesses lugares vivem seres esquisitos: os tais sonhadores. Sabe? O sonhador, para o definirpormenorizadamente. no um homem, uma espcie de criatura do gnero neutro. Aloja-se, namaior parte do tempo, num inacessvel refgio, como se pretendesse at ocultar-se da luz do dia, e,uma vez encolhido na sua toca, metido na sua casota como o caracol, ou pelo menos parece-semuito, neste aspecto. com esse curioso bichinho que simultaneamente um animal e uma casa e quese chama tartaruga. Na sua opinio, por que razo gostar ele tanto das suas quatro paredes,monotonamente pintadas de verde, sujas, tristes e enegrecidas pelo fumo do tabaco? Por que razoesse ridculo sujeito, quando algum dos seus raros conhecimentos o vem visitar (e ele procede de talmodo que, a pouco e pouco, os seus amigos acabam todos por desaparecer), por que razo essehomem acolhe o visitante com tal embarao com um rosto de tal modo perturbado e to confusocomo se acabasse de cometer um crime, ali, entre as suas quatro paredes, como se fosse apanhado afabricar notas falsas ou a escrever versinhos para enviar a qualquer revista com uma carta annima,dizendo que o verdadeiro poeta morreu e que um seu amigo considera como dever sagrado publicara sua obra? Por que razo, diga-me. Nastenka, a conversa se estabelece com tanta dificuldade entreestes dois interlocutores? Porque motivo no se soltam gargalhadas e no se troca qualquer palavraespirituosa com este amigo surgido de improviso, o qual em qualquer outra circunstncia tantogosta das gargalhadas e das palavras espirituosas, dos discursos sobre o belo sexo e sobre outros

    assuntos agradveis? Por que razo, em suma, este amigo, por certo um conhecimento de frescadata, logo primeira visita porque, em casos destes, no haver uma segunda visita , por querazo o prprio visitante se sente to perturbado e frio, com o seu esprito (isto se alguma vez oteve) embotado, ao ver o rosto transtornado do seu anfitrio, o qual, por seu turno, est agoracompletamente destitudo do seu derradeiro gro de sensatez, aps ter feito esforos gigantescos,mas vos, para remover as dificuldades da conversa e para a tomar agradvel, mostrando a suaexperincia da sociedade, falando tambm sobre o belo sexo e, pelo menos atravs desta concesso,tentar ajudar aquele pobre diabo cado por engano em sua casa? Por que razo, ainda, o visitanteagarra de repente no chapu e se retira rapidamente, lembrando-se de sbito de um assuntoabsolutamente inadivel, que nunca existiu, e liberta de qualquer maneira a mo do caloroso apertodo anfitrio, empenhado agora em manifestar o seu pesar e a ganhar o tempo perdido? Por que

    razo, ao afastar-

    se da porta, o amigo solta uma grande gargalhada e promete a si mesmo nuncamais voltar a casa daquele excntrico se bem que, no fundo, este excntrico seja um excelenterapaz e, ao mesmo tempo, no se pode impedir de conceder sua imaginao um pequeno

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    olhar daquela maneira? Ser aquele cavalheiro de ar grave, que acaba de cumprimentar de maneirato pitoresca uma senhora que passou por ele, h poucos momentos, na sua elegante carruagem, nasua flamante calea? No, Nastenka, o que lhe poderia agora interessar tais ninhadas? Agora rico,rico na sua vida interior, enriqueceu de um momento para o outro e no foi em vo que brilhou toradiosamente diante dele o derradeiro raio do Sol moribundo, fazendo florescer no seu coraorejuvenescido um enxame de sensaes. Agora, mal repara no caminho que segue, embora os

    mnimos pormenores desse mesmo caminho lhe mobilizassem habitualmente a ateno. Agora, adeusa Fantasia (j leu Jukovski7, minha querida Nastenka?) teceu com mo caprichosa a suatrama de ouro e traou diante dos seus olhos os arabescos de uma vida maravilhosa, estranha, e quem sabe? talvez, com a sua mo caprichosa, o tenha transportado ao stimo cu de cristal,atravs deste excelente passeio de granito por onde se encaminha para sua casa. Tente det-lo,agora, pergunte-lhe bruscamente onde est neste momento, os ardis por que passou; estou certo deque no se recordar de nada, nem donde esteve, nem onde est nesse momento, e, enrubescendo dedespeito, inventar qualquer mentira para salvar as convenincias.

    Eis a razo por que estremeceu de tal modo, quase gritando e olhando assustado em tomo desi s porque uma anci muito respeitvel o interpelou delicadamente no meio do passeio,

    perguntando-lhe o caminho para sua casa, pois perdera-se. Com os sobrolhos franzidos pelo mau

    humor, continuou a caminhar, mal notando que mais de um transeunte sorriu ao observ-lo e sevoltou para o seguir com o olhar e que uma rapariguinha, aps lhe ter receosamente cedido

    passagem, explodiu em sonoras gargalhadas fitando com os olhos arregalados o seu largo sorrisocontemplativo e os gestos dos seus braos. Foi ainda, porm, a Fantasia quem arrebatou no seu vo

    jovial a anci, os transeuntes curiosos, a rapariguinha zombeteira e os homens 4que jantam ali, nassuas barcas que obstruem a Fontanka (suponhamos que o nosso heri passava justamente por anesse momento); a todos envolveu maliciosamente no seu vu, tal como se fossem moscasapanhadas numa teia de aranha, e, com esta nova aquisio, o excntrico entrou finalmente no seuquarto, na sua toca dileta, sentou-se mesa, jantou lentamente e apenas voltou realidade quandoMatriona, a criada, meditativa e eternamente enferma, aps ter levantado a mesa, lhe veio trazer oseu cachimbo; voltou realidade e, com surpresa, verificou que acabara completamente de jantarsem ter a mnima noo do que comera e como comera.

    O quarto est imerso na obscuridade a sua alma, est vazia e triste; todo um reino dequimeras se desmoronou em seu redor, se desmoronou sem deixar rasto, sem rudo nem tumulto,

    passando como um sonho, e ele nem sequer se recordou de ter acalentado essas quimeras. Porm,uma espcie de obscura sensao, que magoou levemente o seu peito. uma espcie de novo desejoseduz, estimula e irrita a sua imaginao e suscita furtivamente um exrcito de novos fantasmas. Noexguo quarto reina o silncio; a solido a ociosidade acariciam-lhe a imaginao e ela lentamentevai-se inflamando e. lentamente, atinge o estado de ebulio, como a gua na cafeteira da velhaMatriona, que. imperturbvel, ao lado, na cozinha, se ocupa a preparar o seu caf caseiro. Ei-la quese evola em girndolas e o livro em que distraidamente pegara cai das mos do meu sonhador, que

    nem sequer leu at terceira pgina. Excitada, a sua imaginao de novo ganha asas, e,bruscamente, mais uma vez, uma nova vida o vem fascinar. Novo sonho: nova felicidade Volta abeber o veneno delicioso e requintado do sonho! Que importa a vida real? Ns vivemos uma vidato ociosa, to parada, to desprezvel, estamos to descontentes da nossa sorte, to enfastiados danossa existncia! E, na verdade, verifique como, primeira vista, tudo se apresenta, na nossa vida,to amargo como hostil... Pobres criaturas!. pensa o meu sonhador. Nada de surpreendente existeno seu pensamento! Repare nesses mgicos fantasmas que diante dele se formam: fascinantes,caprichosos, amplamente e sem limites, num fantstico quadro animado onde se encontra no

    primeiro plano, naturalmente, corno figura principal, a preciosa pessoa do nosso heri. Veja: queaventuras variadas, que infinito turbilho de sonhos exaltados! Perguntar talvez: com que sonhaele? Para qu fazer semelhante pergunta? Como evidente, sonha com tudo... V-se no papel de um

    poeta, a princpio ignorado e depois consagrado; na sua amizade com Hoffmann, na matana danoite de So Bartolomeu, em Diane Vernon8, num papel herico quando da tomada de Caz por Iv,o Terrvel, Clara Movbray9. Effle Deans10, em Huss comparecendo perante os prelados reunidos em

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    conclio, na revolta dos mortos emRoberto, o Diabo (lembra-se da msica? Transporta-nos aocemitrio!), em Mimna e em Brenda11, na batalha do Beresina. na leitura de um poema no palcioda condessa V...a D...a12 em Danton, em Clepatra e isuoi amanti, na casinha de Kolomna13, num

    pequeno refgio onde, a seu lado, um ente amado o escutasse, numa noite de Inverno, com a suaboquinha e com os seus grandes olhos verdes abertos como a Nastenka me escuta agora!...

    No, Nastenka, que lhe interessa a ele, a esse ser mergulhado na volpia da ociosidade, essa

    vida qual ns aspiramos? Na sua opinio, trata-se de uma pobre vida miservel, sem adivinharque, tambm pata ele, talvez venha a chegar a bom amarga em que por um s dia dessa vidamiservel dar toda a sua bagagem de devaneios fantsticos e ainda no por alegria ou felicidade, eem que no querer mesmo escolher, nesse momento de dor, de arrependimento e de infinitodesgosto. Mas, enquanto no chega essa temvel hora, no deseja nada, est acima dos desejos, poisnada lhe falta, est saciado, o demiurgo da sua prpria vida, construindo-a medida da suafantasia de momento. E, com efeito, este mundo fantstico do faz-de-conta cria-se com tantafacilidade, to naturalmente! Como se, na verdade, tudo isso no fosse iluso! Em certas alturas,somos verdadeiramente levados a acreditar que toda esta vida no uma exaltao dos sentidos, deuma miragem, de um equvoco da imaginao, mas sim de algo de real, de autntico, de existente!Por que motivo ento, diga-me, Nastenka, por que motivo nessas alturas a respirao se lhe prende?

    Por que sortilgio, merc de que desconhecida vontade, as pulsaes se lhe aceleram e as lgrimasjorram dos olhos do sonhador, inundando-lhe as faces plidas e ardentes e invadindo todo o seu serde uma felicidade irresistvel? Por que razo passam vertiginosamente as noites de insnia, envoltasnuma alegria e numa felicidade inesgotveis, e quando a aurora trespassa as janelas com a sua luzrsea e o sol da madrugada incendeia o seu triste quarto com a sua fantstica e difusa luminosidade,como sucede sempre em Sampetersburgo, por que razo o nosso sonhador, fatigado, esgotado, sedeixa tombar sobre o leito e adormece, com uma respirao doentiamente sacudida pelo entusiasmoe com um sofrimento to languidamente delicioso no corao?

    Sim, Nastenka, enganamo-nos, embora contra a nossa vontade, ao acreditarmos que a paixoverdadeira, autntica, atormenta a alma, ao acreditai-mos que existe algo de vivo, de tangvel, nossonhos imateriais! Mas que iluso; veja, por exemplo: o amor avassalou o seu peito com toda a suainesgotvel alegria, com todos os seus extenuantes tormentos... Deite-lhe apenas um olhar rpido econvena-se daquilo que lhe digo! Bastar olh-lo para acreditar, minha querida Nastenka, que elenunca conheceu realmente aquela que tanto amou no seu exaltado sonho? Ser possvel que apenasa tenha visto entre esses fantasmas fascinantes e que essa paixo no tenha sido para ele mais doque um sonho? Ser possvel que nunca haja estreitado as mos dela ao longo de tantos anos da suavida, ss, entregues a si mesmos, ignorando todo o universo e unindo cada um deles o seu universo,a sua vida, vida do outro? Ser possvel que no tenha sido ela quem, ao crepsculo, no momentoda separao, se tenha reclinado, soluante e desesperada, sobre o seu peito, sem escutar atempestade desencadeada debaixo de um cu lgubre, sem ouvir o vento que arrancava e arrastavacom fria as lgrimas que brotavam dos seus clios negros? Ser possvel que tudo isto no tenha

    passado de um sonho, este jardim melanclico, abandonado e selvagem, com as suas leasprovoadas de musgo, solitrio e hostil, por onde tantas vezes passearam ambos, esperando,desesperando, amando, amando-se mutuamente, durante tanto tempo, 'to longa e ternamente? Eessa velha manso ancestral, inslita, onde ela viveu solitria e triste durante tantos anos, com o seuvelho e sombrio marido, perpetuamente silencioso e bilioso, um marido que os assustava, pois eramambos tmidos como crianas, melanclicos e receosos, ocultando-se mutuamente o seu amor?Como se atormentavam, como tinham medo, como era puro e inocente o seu amor e como (isto evidente, Nastenka) as pessoas eram ms! E, Deus meu, no foi ela quem ele encontrou depois,longe da ptria, sob um cu estrangeiro, meridional e ardente, na maravilhosa Cidade Eterna, noesplendor de um baile, ao som da msica, numpalazzo (forosamente, numpalazzo) mergulhadonum mar de fogo, nessa varanda engrinaldada de mirtos e de rosas onde, tendo-o reconhecido,

    arrancara apressadamente a sua mscara e sussurrando-lhe: Sou livre!, trmula e soluante se lhelanara nos braos; ento, num grito de entusiasmo, apertados um contra o outro, esqueceram numabrir e fechar de olhos o desgosto e a separao e todos os tormentos, a espera cruel, o velho, o

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    sombrio jardim da ptria distante e o banco sobre o qual, com um derradeiro e apaixonado beijo, elafugira ao seu amplexo, aturdida por um sofrimento sem esperana... Oh. tem de o confessar, minhaquerida Nastenka, foi caso para desejar fugir, para ter ficado perturbado e corado como um colegialque acabasse de esconder no bolso a ma roubada no jardim vizinho, quando um rapaz seu amigo,sadio e alto, alegre e jovial, bem falante, abre sem se ter anunciado a porta do quarto e grita como senada se tivesse passado: Sou eu, meu caro, acabo de chegar de Pavlovsk! Santo Deus, o velho

    conde morreu, eis enfim a felicidade, uma indescritvel felicidade, e nesta altura que o tal tipo lheapeteceu chegar de Pavlovsk14Tendo terminado as minhas patticas exclamaes, calei-me (pateticamente). Lembro-me

    bem, tinha uma terrvel vontade de rebentar em gargalhadas, de rir desmesuradamente, pois sentiacrescer dentro de mim um diabinho inimigo, que a minha garganta comeava a estar presa, que oqueixo me tremia e que cada vez mais os olhos se me marejavam de lgrimas... Esperava que

    Nastenka, que me escutava atentamente, com os seus grandes e inteligentes olhos verdes muitoabertos, ia explodir em gargalhadas infantis, irresistivelmente jovial, e j me comeava a arrependerde ter ido demasiado longe, de ter contado em vo aquilo que desde h tanto tempo me enchia ocorao, aquilo de que podia falar como se estivesse a ler num livro, pois? desde longa data a minhasentena sobre mim mesmo estava decidida (e eu no me impedira de a ler, ainda que, confesso-o

    no esperasse ser compreendido)... Porm, com grande surpresa minha, ela guardou silncio, deixoudecorrer um momento, comprimiu levemente a minha mo e com uma tmida simpatia perguntou:

    verdade que passou desse modo toda a sua vida? Toda a minha vida, Nastenka respondi , toda a minha vida, e, segundo me parece,

    acab-la-ei da mesma forma! No, impossvel replicou com tranqilidade. no ser assim. Ser dessa maneira,

    isso sim, que ir decorrer a minha junto da av. Escute: sabe que no se deve viver assim?Eu sei, Nastenka, eu sei! exclamei, sem poder conter a minha emoo. E agora sei

    melhor do que nunca que perdi gratuitamente os melhores anos da minha vida! Agora sei-o, e,cruelmente, tenho disso uma conscincia mais aguda desde que Deus a enviou junto de mim, a si,meu bom anjo, para m dizer e provar. Agora, que estou sentado junto de si e que falo consigo,tenho medo de pensar no futuro, pois no futuro ser ainda a solido, ainda esta vida intil ereservada.., e no que poderei depois sonhar quando, acordado, ao seu lado, fui de tal modo feliz?Seja bendita, minha querida, por no me ter repelido imediatamente, por me ter permitido dizer hojeque. pelo menos, pude viver duas noites em toda a minha vida!

    Oh, no, no! gritou Nastenka, e pequenas lgrimas refulgiram nos seus olhos. No,isso nunca acontecer. No nos separemos assim! Que so duas noites?

    - Nastenka, Nastenka! Sabe que conseguiu reconciliar-me por muito tempo comigo mesmo?Sabe que no terei, a partir de agora, uma opinio de mim prprio to m como tive em certosmomentos? Sabe que doravante no lamentarei mais, talvez, ter cometido um crime e um pecado naminha existncia (porque uma vida como a minha um crime e um pecado)? E no julgue que estou

    a exagerar; por amor de Deus, no pense uma coisa dessas, Nastenka, porque vivi alturas de um taldesespero, de um tal tdio...; porque nessas alturas comea a afigurar-se-me que nunca serei capazde iniciar uma vida autntica, porque me pareceu j que tinha perdido todo o tacto, toda a noo do

    presente, do real; porque, em suma, cheguei a amaldioar-me a mim prprio; porque aps as minhasnoites fantsticas passei por pavorosos momentos de abatimento! No entanto, ouvimos nossa voltaa multido bramir e rodopiar no turbilho da vida, ouvimos e vemos viver os homens, viver bemacordados, vemos que a vida no lhes interdita, que a vida no se lhes evaporar como um sonho,uma viso, que a vida deles perpetuamente renovada, eternamente jovem, sem que uma hora seassemelhe seguinte, enquanto a tmida fantasia sombria e montona at banalidade, escrava dasombra, da idia, escrava da primeira nuvem que de sbito obscurecer o Sol e oprimir de angstiao verdadeiro corao sampetersburgs, to cioso do seu sol... Ora, na angstia no pode existir

    fantasia!Sentimos que, porfim, essa inesgotvel fantasia se fatiga, se esgota numa perptua tenso,porque amadurecemos e superamos os nossos ideais antigos, os quais se desfazem em p e se

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    desmoronam, e, se no existe outra vida, preciso constru-la mesmo com essas minas. E, noentanto, algo de diferente aquilo que a alma solicita e quer! E, pois, em vo que o sonhador

    procura entre as cinzas dos seus velhos devaneios pelo menos qualquer cintilao para lhe soprarem cima e aquecer com um fogo novo o seu corao arrefecido e nele ressuscitar tudo o que outroraera to agradvel, tudo que lhe sensibilizava a alma, tudo o que lhe fazia palpitar o sangue, tudo oque lhe inundava de lgrimas os olhos e iludia de maneira to magnfica! Sabe, Nastenka, ao que eu

    cheguei? Sabe que me vejo obrigado a celebrar o aniversrio dos meus sentimentos, o aniversriodaquilo que dantes me era to caro e que, na realidade nunca existiu porque esse aniversrio secelebra sempre em memria dos mesmos tolos devaneios e, em ltima anlise, esses prpriostolos devaneios no existem, porque no h possibilidade de os extrair da vida: at os sonhosnascem da vida, no verdade?

    Sabe que gosto agora de lembrar e de visitar, em certas datas, locais onde um dia fui feliz minha maneira; gosto de edificar o meu presente de harmonia com o irreversvel passado, e, muitasvezes, vagueio como uma sombra, sem objetivo, sombrio e triste, por stios afastados e pelas ruas deSampetersburgo?

    Que recordaes! Lembro-me, por exemplo, de que neste local, h justamente um ano,precisamente a esta hora, neste mesmo passeio, vagueei to solitrio e to sombrio como hoje! E

    repare que nessa altura tambm os pensamentos eram tristes; ainda que no fosse mais feliz, sentia,apesar de tudo, que a vida era mais fcil e tranqila, no existindo nela esta idia negra que agora amim se apegou; nada desses problemas de conscincia, sombrios e severos remorsos, que nem dedia nem de noite me deixam descansado. E uma pessoa interroga-se: mas ento onde esto os teussonhos? E sacode a cabea, dizendo: como os anos passam depressa!... E novamente nosinterrogamos: mas o que fizeste tu dos teus anos? Onde foste enterrar o teu tempo mais precioso?Viveste verdadeiramente? Sim ou no? Repara, dizemos para ns mesmos, repara como o mundoarrefeceu. Passaro ainda mais anos e, aps eles, vir a triste solido, vir com a sua bengala avacilante velhice e, aps eles, o tdio e o desespero. O teu mundo fantstico empalidecer; os teussonhos morrero, fenecero, cairo como as folhas mortas caem das rvores... Oh, Nastenka, comoser triste ficar s, completamente s, e no ter absolutamente nada a lamentar, nada de nada..., poistudo o que se perdeu, tudo isso junto, no significa nada, um zero estpido e perfeito, tudo noter passado de um sonho!

    Vamos, no me comova mais! pediu Nastenka, enxugando uma pequena lgrima quelhe rolara dos olhos. Agora tudo isso acabou! Agora somos dois. Agora, suceda o que suceder,nunca nos separaremos. Escute. Eu sou uma rapariga simples, estudei pouco, se bem que a minhaav me tenha contratado um professor; apesar disso, eu compreendo-o, pois tudo o que acaba de mecontar eu prpria j o vivi quando a av me pregou sua saia. Certamente que no teria sido capazde o narrar to bem como o senhor, pois, como j lhe disse, os meus estudos no foram grandes acrescentou timidamente, pois experimentava sempre um certo respeito em relao ao meu tom

    pattico e ao meu estilo grandiloqente. Agora conheo-o perfeitamente, conheo-o dos ps

    cabea. E quer saber uma coisa? Vou lhe contar a minha histria e vou-a contar a mim prpria, semnada ocultar, e, depois disso, em compensao, o senhor dar-me- um conselho, pois um homeminteligente. Promete dar-me esse conselho?

    - Ah, Nastenka respondi eu , nunca fui conselheiro de quem quer que fosse, e muitomenos um conselheiro inteligente, mas vejo agora que, se continuarmos a conviver desta maneira,isso ser j em si inteligente e, portanto, cada um de ns proporcionar ao outro uma grandequantidade de conselhos inteligentes! Ento, minha gentil Nastenka, qual o conselho que me ir

    pedir? Diga-mo francamente. Agora estou to alegre, to feliz, audacioso e inteligente, que aspalavras me ocorrero sem esforo.

    - No, no! interrompeu Nastenka, rindo-se. Do que preciso no somente de umconselho inteligente, mas sim de um conselho vindo do fundo do corao, de um conselho fraterno,

    como se me tivesse amado durante toda a sua vida!- De acordo, Nastenka, de acordo! exclamei num arrebatamento. E se a amasse desde hvinte anos no a poderia amar mais nem melhor.

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    - D-me a sua mo! Ei-la! respondi, estendendo-lha. Vou comear ento a minha histria!

    A HISTRIA DE NASTENKA

    - Metade da histria sabe-a j o senhor, isto , sabe que tenho uma velha av...- Se a outra metade no maior do que essa. interrompi, rindo-me.- Cale-se e escute. Antes de prosseguir, faamos uma combinao: no me interrompa, pois de

    outra maneira sou capaz de perder o fio meada. Ento, escute l com juzo.Tenho uma velha av. Fui para casa dela muito pequenina, pois perdera o meu pai e a minha

    me. de crer que a av foi rica em tempos, pois ainda hoje recorda esses dias melhores. Foi elaque me ensinou francs e, depois, me contratou um professor. Quando fiz quinze anos tenhoagora dezessete . abandonei os estudos. Foi nessa altura que cometi a tal tolice de que lhe falei.

    No lhe direi que tolice foi; basta que lhe diga que a falta no foi grande. Apesar disso, uma belamanh, a av chamou-me junto dela e disse-me que, como era cega e no podia andar atrs de mim,resolvera prender a sua saia minha com um alfinete, acrescentando que, deste modo, iramos

    passar toda a vida presas uma outra, a no ser que eu me emendasse. Em suma, nos primeirostempos no havia maneira de me conseguir afastar: para trabalhar, ler, estudar, tinha de estar sempre

    junto da av. Uma vez tentei uma manha e convenci Fiokla15 a tomar o meu lugar. Fiokla a nossacriada e surda. Fiokla sentou-se no meu lugar; a av, durante esse tempo, adormecera na sua

    poltrona e eu sa com uma amiga para bastante longe. Pois bem, a histria acabou mal. A av,durante a minha ausncia, acordou e perguntou qualquer coisa, pensando que eu continuavaajuizadamente sentada no meu lugar. Fiokla via bem que a av lhe estava a perguntar fosse o que

    fosse, mas no conseguia ouvir. Pensou e tomou a pensar no. que devia fazer e, no encontrandosoluo, abriu o alfinete e fugiu...Neste ponto, Nastenka deteve-se e desatou em sonoras gargalhadas. Eu ri com ela. Parou

    imediatamente de rir. Oua l, no se ria da minha av. Eu rio-me porque acho isto divertido... O que quer... uma

    vez que a av assim... s eu, apesar de tudo, lhe tenho um pouco de amor. Bem... naquela alturaisso arreliou-me bastante: imediatamente me obrigou a voltar ao meu lugar e, depois, nada a fazer,

    proibio de me mexer.Vamos, esqueci-me ainda de lhe dizer que ns temos, ou, melhor, que a av tem, uma casa

    dela, ou, melhor ainda, uma casinha, trs janelas ao todo, uma casinha de madeira, to velha como aprpria av; em cima tem uma mansarda. Pois bem, um belo dia um novo hspede veio morar para

    essa mansarda. Quer ento dizer que havia um antigo hspede? fiz notar. verdade respondeu Nastenka , e por acaso at era capaz de estar calado, coisa que

    no sucede consiga... Na verdade, mal podia mexer a lngua. Era um velhinho, seco, muda, cego,coxa, de tal modo que por fim j no lhe era passvel estar no mundo e acabou por morrer; ento,tomava-se necessrio arranjar um novo hspede, pois no podamos passar sem esse recurso, que,com a penso da av, constitua quase todo o nosso rendimento. Este novo hspede, nem de

    propsito, era um jovem, no aqui da cidade, mas de passagem. Como ele no discutiu o preo, aav aceitou-o. Depois, um dia, perguntou-me: Ento, Nastenka, o nosso hspede novo ou no?Eu no lhe quis mentir: Bem, av, velho de mais para ser jovem e demasiado jovem para servelho.

    ' Bom... e fisicamente agradvel?, perguntou a av. Novamente, no lhe quis mentir.Sim, disse eu, fisicamente agradvel, av! E ela: Ah, maldio, maldio! O que diga, minhafilha, que no te distraias a olh-lo. Que sculo o nosso! Veja-se s isto, um hspede como este,

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    que no tem nada, e fisicamente agradvel! Noutros tempos tudo era diferente!Para a av s existem os outros tempos. A verdade que noutros tempos ela era mais jovem

    e o sol era mais quente noutros tempos, e noutros tempos as natas no azedavam to depressa:sempre noutros tempos! Permaneci sem dizer palavra: porque seria que a av me fazia lembraras coisas, me perguntava se ele era bonito e jovem? Mas, como j lhe disse, fiquei calada, apenas a

    pensar, e, imediatamente, recomecei a contar as malhas e a tricotar a minha meia e, depois, acabei

    por esquecer completamente o assunto.Ora uma vez, pela manh, o hspede entrou em nossa casa para lembrar que lhe tinhamprometido mudar o papel das paredes do seu quarto. Palavra puxa palavra, e a av ela bastantefaladora disse-me: Nastenka, vai ao meu quarto e traz o baco. Dei um salto, corando at raizdos cabelos, sem, saber porqu, e esqueci que estava pregada; em vez de soltar discretamente oalfinete para que o hspede no se apercebesse de nada, saltei de tal modo que a poltrona da avveio atrs de mim. Vendo que o hspede sabia agora toda a minha histria, corei, fiquei como seestivesse colada ao cho, e, de sbito, debulhei-me em lgrimas: estava de tal maneiraenvergonhada e desgostosa naquela altura, que me apetecia morrer! A av gritou: Que ests tu a afazer especada?', e eu cada vez pior... O hspede, vendo-me to envergonhada diante dele, cumprimentou e saiu imediatamente.

    Desde ento, ao menor rudo que ouvisse no corredor, ficava como morta. , dizia paracomigo, a hspede que vai a passar, e, dissimuladamente, abria o alfinete. A verdade que nuncaera ele quem vinha. Passaram-se duas semanas: o hspede mandou dizer atravs de Fiokla que tinhamuitos livros franceses, tudo boas obras que podiam ser lidas: a senhora no desejaria que a meninaos lesse, para ajudar a passar o tempo? A av consentiu reconhecidamente; no entanto, estavasempre a perguntar se eram livros morais ou no, pois, no caso de serem imorais, seria convenienteque tu no os lesses, Nastenka, porque neles aprenderias coisas ms.

    ' E que coisas ms so essas, av? Que vem escrito nesses livros imorais?' Ora! Descreve-se neles como os rapazes seduzem as raparigas honestas; como, sob o

    pretexto de as quererem desposar, as raptam de casa do pais; como, depois, abandonam essasinfelizes sua triste sorte e como elas acabam por morrer da maneira mais triste. Eu, dizia a av,eu li muitos desses livros e tudo aquilo est escrito de tal maneira que a noite passa num instantequando os lemos. Por isso, Nastenka, toma cuidado, no os leias. Mas, diz-me l, que livrosemprestou ele?.

    ' So todos eles romances de Walter Scott, av.' Romances de Walter Scott! Mas, espera l, no haver dentro deles alguma velhacaria?

    V bem, no teria ele posto entre as pginas algum bilhetinho?' No, av, no h qualquer bilhetinho.' V debaixo da encadernao. s vezes eles escondemos debaixo da pele da

    encadernao, esses marotos!...' No, av, debaixo da encadernao tambm no h nada. No h bilhete nenhum.

    ' Bem, est bem.E comeamos a ler Walter Scott; ao cabo de um ms, j tnhamos lido quase metade doslivros emprestados. Depois, ele emprestou outros e outros ainda, emprestou Pushkin, de tal modoque por fim eu j no podia viver sem livros e deixei de sonhar em casar com um prncipe chins.

    Estavam as coisas neste p, quando, uma vez, encontrei o nosso hspede na escada. A avmandara-me ir procurar j no sei o qu. Ele parou, eu corei e ele corou tambm; apesar disso, riu-se e deu os bons-dias, perguntou pela av e disse: Ento, j leu os livros? Respondi: Sim. E dequais gostou mais? Eu disse: Ivanhoe e Pushkin, mais do que qualquer outro. Dessa vez, ficamos

    por a.Uma semana depois, voltei a encontr-lo na escada. Nessa altura no fora a av quem me

    mandara, mas sim eu que tinha necessidade de qualquer coisa. Eram mais de duas horas e o hspede

    era a essa hora que entrava habitualmente em casa. Boa tarde!, disse-me ele. E eu: Boa tarde!' Ento, disse ele, a menina no se aborrece todo o dia metida em casa com a sua av?A esta pergunta, no sei bem porqu, corei, tive vergonha, e novamente me senti humilhada,

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    sem dvida porque as pessoas j se permitiam fazer-me perguntas a este respeito. Tive vontade deno responder e de fugir, mas nem tive foras para tal.

    ' Oua, disse-me ele, a menina boa rapariga. Desculpe se lhe digo isto, mas pode estarcena, desejo o seu bem, mais do que a sua av. No tem amigas a quem possa ir visitar?

    Disse-lhe que no, que tivera uma, Machenka, mas que partira para Pskov.' Escute, disse ele, quer vir comigo ao teatro?

    ' Ao teatro? E ento a av?' Pois bem, sem a av saber...' No, disse eu, no quero enganar a av. Adeus!' Ento, adeus, disse ele, e no acrescentou mais nada.Somente depois do jantar veio a nossa casa. Sentou-se, falou durante muito tempo com a

    av, perguntou se ela saa algumas vezes, se tinha pessoas amigas e, inesperadamente:' A propsito, hoje comprei um camarote para a pera, levam O Barbeiro de Sevilha;

    tinha combinado ir com uns amigos, mas depois mudaram de idias; por isso, o bilhete ficou semprstimo.

    ' O Barbeiro de Sevilha!..., exclamou a av. o mesmo Barbeiro que levaram noutrostempos?

    ' Sim, o mesmo Barbeiro!, disse ele, lanando-me um olhar. Eu j compreendera tudo,corei e o meu corao saltou de esperana!

    ' Como no havia de me lembrar?, disse a av. Lembro-me at muito bem. Eu prpria,noutros tempos, fiz o papel de Rosine num teatro de amadores.

    ' Pois bem, a senhora quer vir ouvi-lo hoje?, disse o hspede. De outro modo, o meubilhete no servir para nada

    ' De fato, se ns fssemos?, disse a av. Porque no havemos de ir? Veja, a minhaNastenka nunca foi ao teatro.

    Santo Deus, que alegria! Fomo-nos imediatamente preparar e vestir e samos. A av, apesarde ser cega, tinha o desejo de ouvir a msica e, alm disso, tem bom corao: queda principalmenteque eu me distrasse; sozinhas, nunca teramos ido. Nem lhe direi a impresso que me causou OBarbeiro de Sevilha. Digo-lhe s que durante todo o espetculo o nosso hspede me olhou de talmodo, me falou de tal maneira, que vi logo que, nessa manh, me quisera apenas por prova,quando me props que fosse sozinha com ele. Meu Deus, que alegria! Deitei-me to orgulhosa, toalegre, o meu corao batia com tanta fora, que tive um pequeno acesso de febre e durante toda anoite revivi, no meio do delrio, O Barbeiro de Sevilha.

    Pensei que, depois disto, ele viria a nossa casa com maior freqncia. Mas no: quase deixoude vir. Uma vez por ms, talvez, entrava apenas para nos convidar para irmos ao teatro.

    Fomos mais duas vezes. Porm, eu no me sentia contente. Via que, pura e simplesmente, eletinha piedade de mim, de me ver com a av naquele estado. Com a continuao, isso foi-meenlouquecendo: j no era senhora de mim, lia sem ler, trabalhava sem trabalhar, s vezes ria-me e

    dedicava-me a irritar a av, outras vezes, muito simplesmente, chorava. Finalmente, emagreci eestive quase a cair doente. A poca da pera terminou e o nosso hspede deixou completamente denos visitar; quando nos encontrvamos sempre na escada, naturalmente , cumprimentava semdizer palavra, com um ar to grave que parecia no querer falar, e j ele estava no patamar e euainda permanecia a meio da escada, vermelha como um pimento, pois sempre que o encontrava osangue me aflua s faces.

    Estou a chegar ao fim. H justamente um ano, em Maio, o hspede chegou nossa casa edisse av que terminara com xito os seus assuntos aqui e que tinha de voltar, por um ano, paraMoscovo. Ao ouvir estas palavras, empalideci e ca numa cadeira, como morta. A av nada notara eele, aps ter dito que ia deixar o quarto, cumprimentou e saiu.

    Que fazer? Refleti bastante, desgostei-me bastante e tomei enfim a minha deciso. Ele

    partiria no dia seguinte, e decidi resolver tudo noite, quando a av se fosse deitar. Foi o queaconteceu. Fiz uma trouxa de todos os meus vestidos, de toda a roupa de que necessitava, e comessa trouxa na mo, mais morta do que viva, subi a escada at mansarda de nosso hspede.

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    Pareceu-me ter gasto mais de uma hora para percorrer os degraus. Quando abri a porta, ele soltouum grito ao ver-me. Tomou-me por um fantasma, to plida eu estava. Correu a buscar me um copode gua, pois mal me sustentava de p. O corao batia-me com tanta fora que sentia a cabea

    perturbada, a ponto de ter quase perdido a conscincia. Quando voltei a mim, comecei por pousar aminha trouxa em cima da cama e sentei-me ao lado, escondi o rosto entre as mos e chorei comouma Madalena. Ele, segundo creio, compreendeu tudo num abrir e fechar de olhos. Estava em p

    diante de mim, plido, e ornava-me to tristemente que eu sentia o corao despedaado.' Oua!, comeou. Oua-me, eu no posso fazer nada; sou pobre; nesta altura nada tenhode meu, nem mesmo um emprego estvel; de que iramos ns viver se eu casasse consigo?

    Falamos durante muito tempo, mas, por fim, enraiveci-me e disse que no podia continuar aviver com a av, que fugiria de casa dela, que no queria estar presa por um alfinete e, quisesse ouno, o seguiria para Moscovo, pois no podia viver sem ele. Vergonha, amor, orgulho, tudo semesclava na minha ira, e estive prestes a cair em cima da cama com convulses, de tal modo temiauma recusa!

    Ele permaneceu alguns minutos sentado sem proferir uma palavra; em seguida, ergueu-se,aproximou-se de mim e segurou-me na mo.

    ' Escute, minha boa, minha querida Nastenka!, comeou atravs das lgrimas que lhe

    embargavam a voz. Escute. Juro-lhe que, se um dia estiver em situao, de me poder casar, consigo que o farei. Escute, portanto: parto para Moscovo e passarei a justamente um ano. Esperoorganizar os meus assuntos. Quando voltar e se continuar a amar-me, juro-lhe que seremos felizes.Agora, isso impossvel, no tenho possibilidades nem o direito de prometer o que quer que seja.

    No entanto, repito-lhe, mesmo que isso no se realize dentro de um ano, realizar-se- certamenteum dia, isto, bem entendido, se Nastenka no escolher outro, pois no a posso nem quero vincular aqualquer juramento.

    Eis o que me disse, e no dia seguinte partiu. Decidramos de comum acordo nada dizer av. Foi ele que assim quis. Pois bem, bem v, est quase terminada a minha histria. Passouexatamente um ano e ele chegou a Sampetersburgo j h trs dias e...

    - E... qu? exclamei, na minha impacincia de conhecer o. fim.- E no veio ainda procurar-me! respondeu Nastenka, como se tivesse, para tal, reunido

    todas as suas foras. Nem uma palavra...Aqui deteve-se, permaneceu por momentos silenciosa, reclinou a sua cabecinha e,

    bruscamente, ocultando o rosto entre as mos, explodiu em soluos que me dilaceraram o corao.De modo algum esperava semelhante desenlace.- Nastenka! comecei com uma voz tmida e persuasiva , Nastenka!, por amor de Deus,

    no chore! Quem sabe se ele ainda no chegou...- Ele est na cidade! replicou ela. Est aqui e eu sei-o. Tnhamos combinado uma coisa,

    naquela noite, na vspera da sua partida: aps termos trocado as palavras que lhe narrei,combinamos que viramos at aqui; justamente at este cais. Eram dez horas; estvamos sentados

    precisamente neste banco, eu deixam j de chorar, deleitava-me a ouvir o que ele me dizia... Disse-me que logo que chegasse viria a nossa casa e que, se no o repelisse, diramos tudo av. Averdade que j chegou, tenho a certeza, e nada, nada!...

    E de novo se debulhou em pranto.- Deus meu! No haver ento qualquer meio de remediar o seu desgosto? exclamei,

    erguendo-me do banco, completamente desnorteado. Diga-me, Nastenka, no poderia eu ir acasa dele?...

    - Parece-lhe possvel? perguntou, levantando bruscamente o rosto para mim.- No, na verdade, no! reconheci, desalentado. Mas veja, h outra soluo: escreva-lhe

    uma carta.- No, impossvel, no possvel! respondeu, convencida, mas mantendo a cabea baixa

    e sem me fitar.- Impossvel, porqu? continuei, obstinando-me no meu projeto. Veja, Nastenka, queespcie de carta? H cartas e cartas... Ah, isso mesmo. Confie em mim, bem sabe que no lhe

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    daria um mau conselho. Tudo se pode remediar! A Nastenka deu o primeiro passo, porque no,agora...

    No, no! Pareceria querer vincul-lo a um juramento... Ah, minha querida Nastenka! interrompi-a, sem ocultar um sorriso. No, nada disso!

    Tem esse direito, uma vez que ele lhe prometeu. Alis, por tudo aquilo que me confidenciou, vejoque ele um homem de bons sentimentos e que se comportou com nobreza continuei,

    entusiasmando-me progressivamente com a lgica das minhas prprias dedues e exortaes. Sim, como se comportou ele? Disse que no Casaria seno consigo, caso decidisse casar-se; Nastenka, pelo contrrio, deixou plena liberdade, at de o recusar agora... Nestas condies, podedar o primeiro passo, tem o direito de o fazer, pois tem uma vantagem sobre ele, quanto mais nofosse por exemplo, para o desligar da sua palavra...

    - Oua: como que lhe escreveria essa carta?- O qu?- Sim, a cana de que falou.- E muito simples, escreveria assim Senhor...- absolutamente necessrio pr: Senhor?- Sem dvida! Na verdade, deixe-me pensar

    - Bem, bem! E depois?- Senhor,Perdoe se... Vendo melhor, no, nada de perdes! O fato em si justifica tudo. Escreva

    simplesmente:Escrevo-lhe. Perdoe a minha impacincia; porem, dura um longo ano, permaneci inebriada

    de esperana. Ser culpa minha se agora no consigo suportar um nico dia de dvida. Agora, queregressou, poder talvez ter mudado de intenes Neste caso, esta minha carta servir para lheassegurar que fico ressentida e no o acusarei. No o acusarei por no ter j t lugar no seu corao:este era, sem dvida, o meu destino!

    O senhor generoso. No sorrir nem se zangar com minhas impacientes palavras.Lembre-se de que as escreveu uma pobre e solitria rapariga, que no tem quem a auxilie ouaconselhe e que no sabe dominar os impulsos do seu corao. Perdoe-me, no entanto, se na minhaalma, mesmo por instante, uma dvida se tenha insinuado. O senhor incapaz mesmo por

    pensamentos, ofender aquela que tanto vos amava e ama ainda.- Sim, sim: isso mesmo o que eu pensava! exclamou Nastenka, com a alegria a brilhar-

    lhe nos olhos. Oh, o senhor resolveu as minhas dvidas, foi Deus quem o enviou! Agradeo-lhe.Como lhe estou grata!

    Mas de qu? Por Deus me ter enviado? respondi, olhando com entusiasmo o seu lindo eresplandecente rosto.

    Sim, quanto mais no fosse por isso. Ah, Nastenka! Agradecemos por vezes s pessoas o que conosco vivem, no verdade? Eu

    agradeo-lhe s por a ter conhecido, da recordao que deixar em toda a minha vida. Bem, chega, chega! Por ora, veja, escute-me: como lhe disse, fora combinado que, mal elechegasse, me assinalaria a sua chegada deixando uma carta num certo local, em casa de amigosmeus, pessoas boas e simples que nada sabem de tudo isto; ou ento que, caso no tivesse maneirade. me escrever, pois h muita coisa que no pode ser dita numa carta, viria aqui, no prprio dia,

    precisamente s dez horas, pois este foi o local onde nos decidimos encontrar. Da sua chegada jtenho conhecimento, mas decorrem j trs dias e nem escreve nem aparece. Pela manh -meimpossvel deixar a av. Entregue o senhor mesmo a minha carta a essa boa gente de que j lhefalei; eles fla-o chegar at ele e, caso haja uma resposta, trar-ma- noite, s dez horas.

    Mas... e a carta? Primeiro que tudo, preciso escrev-la: tudo isso s poder fazer-sedepois de amanh.

    A carta... respondeu Nastenka, um pouco embaraada a carta..., mas...No chegou a acabar, pois antes disso desviou de mim a seu rostozinho, ficou vermelha comouma rosa e, subitamente, senti na mo uma carta, visivelmente escrita h muito tempo, pronta e

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    lacrada. Uma recordao graciosa, amvel e conhecida, atravessou-me o esprito.R, o Ro; s, i si; a, e ne, comecei.Rosine!, cantamos ambos, eu quase a enlaando no meu entusiasmo, ela corando tanto

    quanto podia corar e rindo atravs das lgrimas que tremulavam como prolas suspensa dos seusclios negros.

    Vamos, basta, basta! Adeus! disse ela, rapidamente. Tome a carta e o endereo onde a

    deve ir levar. Adeus! At vista! At amanh!Apertou-me fortemente ambas as mos, acenou-me com cabea e dirigiu-se, rpida como umaflecha, na direo da sua meia. Durante muito tempo permaneci no mesmo lugar, acompanhando-acom os olhos.

    At amanh! At amanh! Estas palavras atravessaram-me o crebro quando ela tinha jdesaparecido.

    TERCEIRA NOITE

    Hoje, o dia esteve triste, chuvoso, sem luz, como a minha futura velhice. Fui assediado porestranhos pensamentos; sentimentos turvos, questes ainda obscuras para mim, comprimiam-sedentro do meu crebro, sem que eu tivesse fora ou vontade para as solucionar. No, no seria euquem poderia resolver tudo isso!

    Hoje no nos veremos. Ontem, quando nos deixamos, as nuvens espalhavam-se no cu e onevoeiro adensava-se. Disse que o dia seria mau; ela no respondeu, pois no queria falar contra si

    prpria: para ela, este dia luminoso e claro e nenhuma nuvem poder eclipsar a sua felicidade.Caso chova, no nos veremos, dissera ela, no virei. Pensei que ela no iria notar a chuva

    de hoje, mas, no entanto, no veio.

    Ontem foi o nosso terceiro encontro, a nossa terceira noite branca.Ainda assim, como a alegria e a felicidade tomam belas as Pessoas! Como o amor enche ocorao! Quando nos sentimos felizes, parece-nos que o corao nos vai transbordar para o coraodo ente amado. Queremos que todos estejam alegres, que todos se riam. E como contagiosa, estaalegria! Ontem exprimia-se nas suas palavras a ternura e a bondade que, em relao a mim, existiamno seu corao... Como ela se preocupava comigo, como me acariciava, como encorajava o meucorao! Oh, quanta garridice a felicidade inspira! E eu... tomava tudo como coisa segura, fui ao

    ponto de pensar que ela...Mas, Deus meu, como posso ter acreditado em tal coisa? Como posso ter sido to cego que

    no vi que nenhum daqueles tesouros me era destinado e que, afinal, aquela ternura, aquelasolicitude, aquele amor... sim, o seu amor por mim, nada era, em suma, mais do que a alegria, que

    se antevia prxima, de ir estar com um outro e, por outra lado, o desejo de impor, a mim tambm, asua felicidade?... Quando ela viu que ele no chegava, que esperramos em vo, ento entristeceu,ficou tmida e receosa. Todos os seus gestos, todas as suas palavras, se tomaram menos naturais,menos joviais e menos alegres. E, coisa estranha, as suas atenes por mim redobraram, como setivesse instintivamente querido derramar sobre mim o que desejava para si prpria, o que comeavaa temer que no se realizasse. A minha Nastenka estava agora de tal modo tmida e amedrontadaque me parece que compreendera, finalmente e s nessa altura, que eu sofria e que a amava,apiedando-se do meu pobre amor. Na verdade, quando estamos infelizes, sentimos com maiorviolncia a infelicidade dos outros; o sentimento no se destri, concentra-se...

    Eu viera com o corao aberto, contando as horas que faltavam para o encontro. Nem sequeradmitia que hoje iria ficar deprimido, que tudo acabaria de uma maneira diferente da habitual.

    Ela resplandecia de felicidade, esperava ansiosamente a resposta, e a resposta era ele prprio.Ele ia chegar, acorrer ao seu apelo. Nastenka viera antes de mim, uma boa hora antes. Primeiro,explodia em gargalhadas ao mnimo pretexto, qualquer palavra minha lhe provocava o riso.

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    Comecei a falar e depois calei-me.

    - Sabe por que razo estou hoje to contente perguntou , to contente por o ver? Porquegosto tanto de si hoje?

    - Diga l pedi, e o meu corao batia descompassadamente.- Gosto de si porque o senhor no se apaixonou por mim. Outro, no seu lugar, importunar-me-

    ia, insistiria, suspiraria. desfaleceria; o senhor, pelo contrrio, to gentil....Nesta altura, apertou a minha mo com tanta fora que quase dei um grito. Riu-se.- Meu Deus, que amigo o senhor tem sido! continuou ao cabo de um minuto, num tom

    muito srio. Foi Deus que ops no meu caminho! Pense no que seria de mim se o senhor noestivesse agora ao meu lado! Como desinteressado! Como gosta de mim! Quando casar, seremosmuito amigos, mais do que se fssemos irmos! Am-lo-ei quase tanto a si como a ele...

    Naquele instante senti uni pungente desgosto. Algo houve, no entanto, que em mim se agitoucomo uma gargalhada.

    - A Nastenka est excitada disse eu , est com medo, receia que ele no venha.- V para o diabo! respondeu. Se eu estivesse menos feliz, julgo que choraria devido

    sua descrena e s suas censuras. Alis, o senhor deu-me uma idia e forneceu-me matria para

    reflexo. Mas isso para mais tarde: agora. confesso-lhe, o que disse verdade. No, eu no estouno meu estado normal, estou completamente na expectativa e, alm disso, vivo sempre as coisascom muita violncia... Mas basta, deixemos os sentimentos em paz!...

    Nessa altura, ouviram-se passos, e na obscuridade destacou-se a silhueta de um transeunte queavanava na nossa direo. Ambos estremecemos; ela esteve quase a dar um grito. Deixei cair amo e esbocei o gesto de me afastar. Mas estvamos enganados: no era ele.

    De que tem medo? Por que razo largou a minha mo? disse-me ela, dando-me novamentea mo. Pois bem, que interessava isso? Vamos acolh-lo os dois. Quero que ele veja como eu e osenhor nos amamos.

    Como eu e o senhor nos amamos! repeti.Oh, Nastenka, Nastenka, pensei, as coisas que tu disseste com essa palavra! H momentos

    em que um amor como este arrefece o corao e pesa na alma. A tua mo est fria e a minha ardecomo fogo. Como s cega, Nastenka! ... Como insuportvel ser-se feliz em certos momentos!Mas, apesar de tudo, no posso zangar-me contigo!...

    Em suma, o meu corao transbordava. Escute, Nastenka! exclamei. Sabe o que me sucedeu durante todo o dia? Diga l: que foi? O qu, diga! Conte depressa! Que foi me ocultou at agora? Primeiramente, aps ter cumprido todas as suas incumbncias, de ter entregue a carta em

    casa dos seus amigos, depois disso... depois disso, voltei ao meu quarto e deitei-me. tudo? interrompeu ela com uma gargalhada.Sim, quase tudo respondi, com o corao apertado, pois a os meus olhos afluam j

    lgrimas tolas. Despertei uma hora antes do nosso encontro, mas foi como se no tivessedormido. No sei o que se passou comigo. Vinha a caminho para lhe contar tudo isto, dir-se-ia queo tempo se detivera para mim, que uma nica sensao, um s sentimento, iria desde esse momento

    perdurarem mim perpetuamente, que um nico minuto se iria prolongar por toda uma eternidade,em suma, que toda a vida fora suspensa para mim... Ao despertar, pareceu-me que um certo temamusical que conheo desde h muito tempo, ouvido outrora em qualquer parte, esquecido eagradvel, me vinha memria. Parecia-me que toda a vida se exalara da minha alma e que apenasagora...

    Meu Deus! Meu Deus! interrompeu Nastenka , como pode isso ser? No compreendonem uma palavra.

    Ah, Nastenka! Eu gostaria de lhe comunicar de maneira satisfatria esta estranha

    impresso... comecei eu como uma voz lastimosa, onde se ocultava ainda uma esperana, aindaque longnqua. Basta, acabe com isso! disse ela.

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    Num relmpago, ela adivinhara, a marota!Bruscamente, pusera-se extraordinariamente tagarela, alegre, travessa. Deu-me o brao, ria-se,

    queria que eu me risse tambm, e cada comovida palavra que eu pronunciava lhe provocava umacesso de riso, to sonoro, to prolongado... Comeava a irritar-me; subitamente, comeava arevelar garridice.

    - Escute ento disse ela. Na verdade, sinto-me um pouco despeitada por o senhor no se

    ter apaixonado por mim. V l a gente compreender os homens! Da mesma maneira, senhorinflexvel, no me pode felicitar pela minha modstia. Digo-lhe tudo a si, todas as tolices que mepassam pela cabea.

    Oua! So onze horas, segundo julgo... disse eu quando as pancadas sonoras de um sinoressoaram ao longe numa torre do centro da cidade.

    Ela deteve-se e, imediatamente, deixou de se rir e comeou a contar.- Sim, onze! disse finalmente, com uma voz irresoluta e tmida.Logo me arrependi de lhe ter metido medo, de a ter obrigado a contar as horas, e amaldioou-

    me por este acesso de maldade. Fiquei desgostoso por causa dela e no sabia como reparar a minhafalta. Impus-me a tarefa de a consolar, de justificar as razes da ausncia do outro, de criar diversosargumentos. diversas provas. Naquele instante, no havia ningum mais fcil de enganar do que ela,

    e, alis, todas as criaturas escutam com alegria qualquer consolao e se sentem felizes por encontrar a mnima sombra de justificao.

    - E, alis, a Nastenka tonta continuei, entusiasmando-me cada vez mais e admirando aextraordinria limpidez das minhas provas, alis, ele no podia vir. A Nastenka enganou-metambm a mim, e fui de tal modo arrastado pelos seus devaneios que perdi a noo do tempo...Reflita um pouco: ele mal teve tempo para receber a carta; suponhamos que lhe foi impossvel tervindo e que responde por escrito. A ser assim, a carta s chegar amanh de manh. Amanh, logo

    pela manh, irei a casa dele e virei imediatamente dizer-lhe o que se passou. Suponha ainda mil euma coisas possveis: ele no estava em casa quando a carta chegou e, portanto, no a pde aindaler... Tudo pode acontecer, no verdade?

    - Sim, sim! respondeu Nastenka. No tinha ainda pensado nisso... Naturalmente, tudopode acontecer continuou ela com uma voz totalmente conciliadora, uma voz onde se apercebiauma desagradvel dissonncia, um pensamento longnquo e desfasado daquilo que dizia. Olhe,eis o que deve fazer continuou : ir amanh, o mais cedo possvel, e, se obtiver qualquerinformao, vir transmitir-ma imediatamente. Sabe onde eu moro? E repetiu-me o seuendereo.

    Depois ficou, subitamente, muito terna e tmida comigo... Tinha o ar de escutar com ateno oque eu lhe dizia, mas, quando lhe fiz no sei que pergunta, ficou em silncio, perturbou-se e desviouo rosto. Olhei-a nos olhos: era o que eu temia; estava a chorar.

    - Ento, como possvel? No seja criana... no continue, por favor!Ela tentou sorrir acalmar, mas o queixo tremia-lhe e o seio agitava-se, arfante.

    - Penso em si disse-me, aps um minuto de silncio. O senhor to bom que seriapreciso ser de pedra se no o sentisse... Sabe o que acaba de me ocorrer? Comparo-vos um ao outro.Porque no ele o senhor? Porque no como o. senhor? No to bom, e no entanto amo-o maisdo que a si.

    Eu nada respondi. Ela esperava, segundo me pareceu, que eu dissesse qualquer coisa.- verdade que talvez no o compreenda ainda completamente, que no o conhea

    totalmente. Bem v, sempre tive uma espcie de medo dele, tinha um ar sempre to grave, dir-se-ia,mesmo, to orgulhoso. De fato, eu sei, apenas tem o ar de ser assim e no seu corao existe maisternura que no meu... Lembro-me de como me olhou no momento em que recorda-se? fui aoseu quarto com a trouxa na mo. Apesar de tudo, respeito-o muito e, deste modo, como se nofssemos iguais. no verdade?

    No, Nastenka, no respondi , isso apenas significa que o ama mais do que a tudo nomundo e que o ama muito mais do que a si mesma.- Sim, admitamos que seja assim respondeu a minha ingnua Nastenka. Mas sabe o que

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    me veio de repente idia? Agora no dele que vou falar, mas em geral; desde h muito tempoque trago isso na cabea. Escute ento: porque no somos todos uns para os outros como irmos eirms? Por que razo mesmo o melhor dos homens tem sempre qualquer coisa a esconder a outro ese cala diante dele? Porque no dizer francamente, vontade, o que est no corao, quando se sabeque no se falar em pura perda? Pelo contrrio, todos se do ares de serem mais ferozes do que oso na realidade, como se temessem desvirtuar osseus sentimentos ao exprimirem-nos demasiado

    depressa... Sim, Nastenka! verdade o que acaba de dizer! Mas isso sucede por bastantes razes interrompi, recalcando os meus sentimentos de uma maneira a que nunca me vira at entoobrigado.

    - No, no! respondeu ela com profunda convico. Veja, por exemplo: o senhor no como osoutros. Sim, no sei como lhe exprimir o que sinto, mas parece-me que o senhor, porexemplo... pelo menos neste momento..., parece-me que est a sacrificar qualquer coisa por mim acrescentou ela timidamente, lanando-me um rpido olhar. Perdoe-me se lhe falo assim: souuma rapariga simples, no conheo bem o mundo e, na verdade, existem momentos em que no seifalar prosseguiu ela, com uma voz trmula, devido no sei a que sentimento oculto, eesforando-se ao mesmo tempo por sorrir , mas queria apenas dizer-lhe que lhe estou muito grata,

    que gostaria de lho poder provar... Que Deus lhe d felicidade em paga do que fez por mim! Olhe, oque me contou sobre o seu sonhador absolutamente falso, quer dizer, no lhe diz, de modo algum,respeito a si. O senhor um santo, verdadeiramente um homem diferente daquele que me pintou.Se um dia amar algum, que Deus lhe d, com ela, a felicidade! Quanto a ela, nada lhe desejo, poisser feliz consigo. Sei-o bem, sou mulher, e tem de acreditar em mim quando lhe digo isto...

    Calou-se e estreitou-me fortemente a mo. Emocionado, eu tambm no podia dizer nada.Decorreram vrios minutos.

    Sim, bem vejo que ele no vir hoje! disse ela finalmente, erguendo o rosto. J tarde!

    - Vir amanh disse-lhe eu, com uma voz to firme e convincente quanto me foi possvel. Sim acrescentou ela, animada , agora vejo-o bem, s amanh ele vir. Pois bem,

    ento at vista, at amanh! Se chover, talvez no venha. Mas, depois de amanh, virei, virei dequalquer modo, suceda o que suceder: esteja aqui, pois quero v-lo, contar-lhe-ei tudo.

    E depois, no momento da despedida, estendeu-me a mo e disse, fitando-me francamente: Ento, agora, estamos unidos para sempre, no verdade?Nastenka, Nastenka! Se tu soubesses em que solido me encontro agora!Quando deram as nove horas, no pude manter-me por mais tempo no meu quarto, vesti-me e

    sa, apesar de estar mau tempo. Estive no cais e sentei-me no nosso banco. Dei um pequeno passeiopela sua rua, mas tive vergonha e voltei para trs sem erguer os olhos para as suas janelas. Entrei nomeu quarto num desespero como nunca conhecera outro igual. Que tempo mido e fastidioso! Setivesse estado bom, teria passeado por aquelas paragens durante toda a noite...

    Mas at amanh, at amanh! Amanh ela contar-me- tudo.No entanto, no veio qualquer carta hoje. Mas, de fato, a ordem natural das coisas. Elesesto j os dois juntos...

    QUARTA NOITE

    Meu Deus, como tudo isto acabou! De que modo acabou! Cheguei s nove horas. Ela j lestava. Vira-a j de longe. Estava como da primeira vez, com os cotovelos apoiados no parapeito da

    muralha, e no se apercebeu da minha aproximao.- Nastenka! chamei, reprimindo a custo a minha emoo.Voltou-se rapidamente para mim.

  • 8/8/2019 dostoieviski - noites brancas

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    com uma expresso de surpresa.- Que se passa? disse por fim.- Oua-me! disse eu, decidido. Oua-me, Nastenka! O que lhe vou dizer agora no

    passa de uma tolice, irrealizvel, disparatado! Sei que tal coisa nunca suceder, mas, no entanto,no posso calar-me. Em nome de tudo aquilo por que sofre, peo-lhe antecipadamente perdo.Perdoe-me!...

    - Mas o qu? Que se passa? disse ela. Deixara de chorar e olhava-me fixamente, enquantouma estranha curiosidade brilhava nos seus belos olhos surpreendidos. Que tem o senhor?- irrealizvel, mas amo-a, Nastenka! isto o que tenho. Agora j disse tudo proferi com

    um gesto de desespero. Deixo pois ao seu critrio se deve ou no continuar a falar-me, como ath momentos, se pode finalmente escutar tudo o que lhe vou dizer...

    - Pois bem, que tem isso? interrompeu. Que mal tem isso? Sabia desde h muito tempoque me amava, mas parecia-me que me amava singelamente, assim. .. Ah, meu Deus, meu Deus!

    - Primeiramente foi... assim, Nastenka, mas agora... agora... estou exatamente no mesmoestado em que a Nastenka estava quando subiu ao quarto dele com a trouxa. Pior a