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Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada ao programa de pós-graduação PROFLETRAS da UPE-Garanhuns N.° 15 - ESPECIAL - 2015 - ISSN: 2236-1499. UPE/Garanhuns - PE – Brasil D.O.I: 10.13115/2236-1499 ANAIS DO VOLUME I AUTORES DE A a E 11 a 14 de maio de 2015 Universidade de Pernambuco UPE Campus Garanhuns

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Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade

Associada ao programa de pós-graduação PROFLETRAS

da UPE-Garanhuns

N.° 15 - ESPECIAL - 2015 - ISSN: 2236-1499.

UPE/Garanhuns - PE – Brasil

D.O.I: 10.13115/2236-1499

ANAIS DO

VOLUME I

AUTORES DE A a E

11 a 14 de maio de 2015

Universidade de Pernambuco – UPE

Campus Garanhuns

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Ficha catalográfica

REVISTA DIÁLOGOS, n.° Especial 15 - III Encontro Nacional e II Encontro Internacional de

Literatura e Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 3 vols, campus Garanhuns.

(2015, Garanhuns, PE). Vol. I

Anais (recurso eletrônico) / III Encontro Nacional e II Internacional de Literatura e

Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 11 a 14 de Maio de 2015 – Garanhuns,

PE, UPE.

Disponível em: www.revistadialogos.com.br/anais

1. Letras – eventos 2. Lingüística 3. Literatura 4. Teoria Literária

ISSN: 2236-1499

CDU 869.0(81)

CDD B869

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UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO - UPE

Campus Garanhuns

REITOR

Prof. Dr. Pedro Henrique de Barros Falcão

VICE-REITORA

Profª. Drª. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcante

DIRETOR

Prof. Dr. Cloves Gomes da Silva Junior

VICE-DIRETORA

Profª. Ms. Rosângela Falcão

COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS

Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes

VICE-COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS

Profª. Ms. Dirce Jaeger

COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO

COORDENADORA

Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)

COMISSÃO ORGANIZADORA

Prof. Esp. Anderson de Souza Frasão (UFS)

Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)

Profª. Ms. Dirce Jaeger (UPE)

Prof. Dr. Elcy Luiz da Cruz (UPE)

Prof. Esp. Erick Camilo da Silva Gouveia (UFS)

Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes (UPE)

Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)

Prof. Esp. José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)

Profª. Drª. Maria das Graças Ferreira (UPE)

Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)

COMISSÃO CIENTÍFICA

Profª. Drª. Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)

Prof. Dr. Carlos Reis (Universidade de Coimbra)

Profª. Drª. Jeane de Cássia Nascimento Santos (UFS)

Prof. Dr. Júlio Araújo (UFC)

Prof. Dr. Luiz Costa Lima (UERJ)

Profª. Drª. Rosângela Sarteschi (USP)

COMISSÃO EDITORIAL

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Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)

Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)

Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)

APOIO

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior – CAPES

Fundação de Amparo à Ciência e atecnologia do Estado de Pernambuco – FACEPE

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SUMÁRIO

VOLUME I

PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE COMO PROCEDIMENTO

ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO DE LEITORES.........................................................

Abda Alves Vieira de Souza (UFAL)

Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL)

23

GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA EXPERIÊNCIA DE

LETRAMENTO LITERÁRIO............................................................................................

Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL)

30

ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA: LITERATURA

MENOR E AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E

FERRÉZ..............................................................................................................................

Adriano Carlos Moura (IFF)

40

O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM ESTUDO SOBRE A

METALINGUAGEM EM “LISBELA E O PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS............

Adriano Siqueira Ramalho Portela (UFPE)

50

MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC NOVEL À POESIA,

IDENTIDADE DE GÊNERO EM ANGÉLICA FREITAS...............................................

Ágatha Costa Salcedo (UFAL)

59

DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM.................

Alaíde Marie Correia Barros (IFAL)

Nádia Mara da Silveira (IFAL)

67

OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE MATERNA..........................

Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH)

74

ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA

COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI SIMULADO............................................................

Alberto Felix da Hora (UPE)

86

POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E OUTROS GÊNEROS

JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA...

Alberto Roiphe (UFS)

98

INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA PRESSUPOSIÇÃO

DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES”..........................................................................

Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB)

108

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Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB)

A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA NOVELA

NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ

ELÉTRICA..........................................................................................................................

Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES)

119

A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM PROCESSO DE

RETEXTUALIZAÇÃO......................................................................................................

Aline Peixoto Bezerra (UERN)

131

A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A VARIÁVEL IDADE

EM MACEIÓ – AL.............................................................................................................

Almir Almeida de Oliveira (UFAL)

143

UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE REMANESCENTE

QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS?............................................................................

Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/UERN)

Marcos Nonato de Oliveira (UERN/CAMEAM)

155

ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE OS

PERSONAGENS................................................................................................................

Amador Ribeiro Neto (UFPB)

Rafael Torres Correia Lima (UFPB)

164

CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES E ENSAIOS.............

Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE)

176

PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A FORMAÇÃO DE

LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA LEITURA DELEITE................................

Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife)

184

METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A CIDADE DO

RECIFE POR CARLOS PENA FILHO..............................................................................

Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)

189

DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO: COMENTÁRIOS

ONLINE NO FACEBOOK..................................................................................................

Ana Carolina A. de Barros (UFPE)

199

O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS

LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA?....................................................

Ana Cátia Silva de Lemos

Maria Margarete Fernandes de Sousa

211

O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE LÍNGUA NA

CONTEMPORANEIDADE................................................................................................

Ana Cláudia Soares de Paiva (UNICAP)

222

QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO ESCOLAR: DESAFIOS

DO TRABALHO COM A IMAGEM.................................................................................

Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB)

230

A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO GÊNERO

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CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL.....................................................................

Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ)

239

LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS MANUSCRITOS DE

SAUSSURE.........................................................................................................................

Ana Paula El-Jaick (UFJF)

250

DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN BLIXEN E ELENA

FERRANTE........................................................................................................................

Ana Paula Raposo (UFMG)

256

O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A ÓTICA DA

LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA ANÁLISE DA VOZ DO

NARRADOR E DAS PERSONAGENS EM CONTOS MODERNISTAS.......................

Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE)

Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE)

266

GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO? CONTRADIÇÕES,

DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO, RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO

SOBRE EDUARDO CAMPOS..........................................................................................

André Cavalcante (UFPE)

277

POESIA E MITO EM LUCILA NOGUEIRA....................................................................

André Cervinskis (UFPE)

287

O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES E VALORES: UMA

ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO

CAMPOS NO PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE................................................................

Andre Cordeiro dos Santos (UFPE)

294

O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA: UM OLHAR PARA

A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º

ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL...............................................................................

Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG)

Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG)

305

PEDRAS SOBRE RIOS: O LUGAR DO CORPO EM RAKUSHISHA DE ADRIANA

LISBOA...............................................................................................................................

Anne Louise Dias (PósLit/TEL/UnB)

317

A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE PORTUGAL NO CORPO

DO LIVRO E DO VELHO: UM ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER

ESPANHÓIS, DE VALTER HUGO MÃE.........................................................................

Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI)

327

O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE A OBRA A HORA

DA ESTRELA.......................................................................................................................

Antonia Gerlania Viana Medeiros (UERN)

Roniê Rodrigues da Silva (UERN)

336

O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA CONCEPÇÃO DE ESCRITA

INTERACIONAL...............................................................................................................

345

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Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN)

INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM..................

Antonielle Menezes Souza (UFS)

Marcio Carvalho da Silva (UFS)

355

O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS DISCURSIVAS................

Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)

Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)

363

O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA................................................

Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL)

375

A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA IRREVERÊNCIA...........................

Arturo Gouveia (UFPB)

383

A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS DE VIRGINIA

WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE

EMPODERAMENTO DA AUTORIA FEMININA...........................................................

Asenati Araújo de Melo (UNEB)

Juliana C. Salvadori (UNEB)

392

USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE ESTUDANTES DE

GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA

COMUNICAÇÃO VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS?.........................................................

Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Amanda Cavalcante de Oliveira Ledo (UFPE)

401

O MEDO E A FÚRIA ― MOVIMENTOS DE UMA POÉTICA DA PARTICIPAÇÃO.

Bianca Campello Rodrigues Costa (UFPE)

Bruno Eduardo da Rocha Brito (UFPE)

413

ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE

SOCIOINTERACIONISTA................................................................................................

Bruna Bandeira (UFPE)

423

AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO BARUSCO NA CPI DA

PETROBRAS......................................................................................................................

Brwnno Gabryel de Araújo Silva (UFPE)

Rosilene Felix Mamedes (UFPB)

435

A PERSONAGEM LIA DE MELO, DO ROMANCE AS MENINAS, DE LYGIA

FAGUNDES TELLES, COMO RESISTÊNCIA FEMININA À DITADURA MILITAR

Caio Victor Lima Cavalcanti Leite (UPE)

Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

446

A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA: O DISCURSO A FAVOR DE UMA

IDENTIFICAÇÃO..............................................................................................................

Camila da Silva Lucena (PPGL/UFPE)

455

AS MISSIVAS DA IMPRENSA NORTISTA: RETRATOS LITERÁRIOS DA SECA..

Camila M. Burgardt (UFPB)

465

O REGRESSO AO PASSADO E AS RAÍZES MÍTICAS NA OBRA O SÉTIMO

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JURAMENTO......................................................................................................................

Camilla Rodrigues Protetor (UPE)

Amara Cristina de Silva e Barros Botelho (UPE)

477

NARRATIVAS HOMOERÓTICAS NOS COMPÊNDIOS DE HISTÓRIA

LITERÁRIA BRASILEIRA...............................................................................................

Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UFRPE/UFPB)

487

A METACOGNIÇÃO NA LEITURA E AS INFERÊNCIAS SOCIOCULTURAIS:

UMA EXPERIÊNCIA COM ACADÊMICOS DO CURSO DE TURISMO DA

UNEB..................................................................................................................................

César Costa Vitorino (UNEB/FVC)

498

SOBRE O SAGRADO E O PROFANO EM BALADA DE SANTA MARIA

EGIPCÍACA, DE MANUEL BANDEIRA.........................................................................

Cícero Émerson do Nascimento Cardoso (UFPB)

509

DE GÊNESIS A SHAKESPEARE: MISTICISMO E SIGNIFICAÇÃO DO NÚMERO

SETE....................................................................................................................................

Clara Mayara de Almeida Vasconcelos (UFPB)

Eveline Alvarez dos Santos (UEPB)

519

ENSINO, ESCRITA E AUTORIA: A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO-AUTOR NO

CONTEXTO ESCOLAR....................................................................................................

Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)

Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)

528

FERDINAND DE SAUSSURE E EUGÊNIO COSERIU: PROPOSIÇÕES SOBRE O

TEXTO................................................................................................................................

Clemilton Lopes Pinheiro (UFRN)

540

DISCURSO E IDENTIDADE: ASPECTOS DA CONSTRUÇÃO POÉTICA EM

PATATIVA DO ASSARÉ..................................................................................................

Dalva Patricia de Alencar (URCA)

Romão Alisson de Almeida Morais (URCA)

551

FORMA E SUBSTÂNCIA: REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA, ORALIDADE E

ESCRITA A PARTIR DE SAUSSURE E DE HJELMSLEV............................................

Dayanne Teixeira Lima (UFAL)

560

A EXPERIÊNCIA DO ENFRENTAMENTO NO ESPAÇO DA INTIMIDADE: UMA

LEITURA DO ROMANCE A PAIXÃO SEGUNDO G.H..................................................

Daysa Rêgo de Lima (PPGL/UERN)

571

DISCURSO CRONÍSTICO; IDEOLOGIA E MARGINALIZAÇÃO ÉTNICO-

RACIAL. REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS EM ACD – VAN DIJK E

ALTHUSSER......................................................................................................................

Dayvison Bandeira de Moura (UA-PY)

Cacilda Rodolfo de Andrade ( UA-PY)

Edair Gonçalves (IFECT-SP)

578

OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA: RETRATO SÓCIOANTROPÓLOGICO

DO SERTANEJO NORDESTINO E DA GÊNESE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO

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COMO LÍDER MESSIÂNICO...........................................................................................

Deividy Ferreira dos Santos (UPE)

593

PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO EM SALA DE AULA: UM CAMINHO DE

APROPRIAÇÃO NA ESCRITURA DE GÊNEROS TEXTUAIS.....................................

Dennys Dikson (UFRPE/UFAL)

Wanessa Gomes Teixeira Maciel (UPE)

605

ANÁLISE DE GÊNEROS DA ESFERA JORNALÍSTICA NO CURRÍCULO DE

PORTUGUÊS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO DE

PERNAMBUCO.................................................................................................................

Diana Pereira Costa Alves (UPE)

Ecia Mônica Leite de Lima Freitas (UPE)

616

ENSINO DE LITERATURA EM WEBQUEST: O IMAGINÁRIO E O CRIATIVO

EM ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS..........................................................................

Diego Paulo da Silva (IFAL)

Nádia Mara da Silveira (IFAL)

628

ENTRE AS ESTRADAS QUE (NÃO) SE ABREM: TERRA SONÂMBULA,

LITERATURA E CINEMA................................................................................................

Diogo dos Santos Souza (UFAL)

Victor Mata Verçosa(UFAL)

639

FORMAÇÕES DISCURSIVAS E IDENTIDADE DO SUJEITO PROFESSOR EM

“QUE RAIO DE PROFESSORA SOU EU?”, DE FANNY ABRAMOVICH..................

Djamara Virgínia Ferreira da Rocha Silva (UFCG)

Aloísio de Medeiros Dantas (UFCG)

648

DE SELFIE A MINICONTO MULTIMODAL: ENSINO DE GÊNERO DIGITAL EM

SALA DE AULA................................................................................................................

Dorinaldo dos Santos Nascimento (UFS)

Vanusia Maria dos Santos Oliveira (UFS)

659

LACUNAS E DISTORÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO “OFICINA DE

ESCRITORES”...................................................................................................................

Edilaine P. de Sousa (UPE)

Magna Kelly Sales (UPE)

670

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM PERNAMBUCO: OCORRÊNCIAS LEXICAIS

PARA CIGARRO DE PALHA E TOCO DE CIGARRO.....................................................

Edmilson José de Sá (CESA)

684

O RISO IRÔNICO NA POESIA DE ANGÉLICA FREITAS............................................

Eduarda Rocha Góis da Silva (UFAL)

695

HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA: MEMÓRIA E IDENTIDADE NA LITERATURA

INFANTO-JUVENIL DE GRAÇA GRAÚNA E INALDETE PINHEIRO......................

Eidson Miguel da Silva Marcos (UFRN)

Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)

704

O MICROCONTO: UM PRODUTO DA ROMANCIZAÇÃO.........................................

Elias Coelho da Silva (UFPB)

713

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A DESAGREGAÇÃO HUMANA EM MAÇÃ AGRESTE, DE RAIMUNDO

CARRERO..........................................................................................................................

Eliene Medeiros da Costa (UEPB)

725

A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM LAÇOS DE FAMÍLIA, DE

CLARICE LISPECTOR......................................................................................................

Elizabete Sampaio Vieira da Silva (PPGEL/UNEMAT)

Elisabeth Battista (UNEMAT)

736

ENTRE LENDAS E GUARANÁS: O IMAGINÁRIO SIMBÓLICO

BRASILEIRO......................................................................................................................

Eliziane Navarro (PPGEL/UNEMAT)

Olga Maria Castrillon-Mendes (PPGEL/UNEMAT)

746

MAINHA, VOU NO SHOPPING: UM ESTUDO DA VARIAÇÃO DA LÍNGUA

NUMA PERSPECTIVA LINGUÍSTICA E GRAMATICAL............................................

Eloir Geneci Castro da Silva (UNICAP)

Carla Moreira de Paula (UNICAP)

756

A TÉCNICA MODERNA NA VISÃO DE HEIDEGGER: NOVAS PERSPECTIVAS

DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NO CAMPO DA

LINGUAGEM.....................................................................................................................

Emmanuella Farias de Almeida Barros (UFPE)

764

AS GRAMÁTICAS E DICIONÁRIOS RENASCENTISTAS E O SABER

LINGUÍSTICO OCIDENTAL............................................................................................

Enézia de Cássia de Jesus (UFAL)

776

AS DANÇAS DA LINGUAGEM, OS CAMINHOS DE UMA LEITURA POÉTICA....

Érica Thereza Farias Abreu (UFPE)

781

CIUMENTO DE CARTEIRINHA, DE MOACYR SCLIAR – UM JOGO FICTÍCIO E

INTERTEXTUAL...............................................................................................................

Everaldo Bezerra de Albuquerque (UFAL/PPGLL)

790

A LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS: UMA ABORDAGEM PEIRCEANA...........

Expedito Ferraz Júnior (UFPB)

798

VOLUME II

O NEOLOGISMO EM CANÇÕES DE GILBERTO GIL.................................................

Fabiana Vieira Barbosa (UFRPE/UAST)

Adeilson Pinheiro Sedrins (UFRPE/UAST)

804

OS SENTIDOS DO DISCURSO DO ENSINO PROFISSIONAL COMO ACESSO AO

EMPREGO NO BRASIL....................................................................................................

Fabiano Duarte Machado (PPGLL-UFAL)

816

O SAGRADO NA POESIA FEMININA DE ADÉLIA PRADO E DIVA CUNHA.........

Felipe Assis Araujo (UFRN/CERES)

828

SOBRE CIMENTO E SANGUE: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS

ENTRE O NOVO BRUTALISMO E A LITERATURA BRUTALISTA.........................

840

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Felipe Benicio de Lima (PPGLL/UFAL)

TRADUÇÃO MULTIMODAL: ASPECTOS ESTRUTURAIS DE ASSASSIN’S

CREED................................................................................................................................

Felipe Cezar Menezes (UNEB)

Juliana Cristina Salvadori (UNEB)

Adolfo Paiva de Andrade (UNEB)

852

CONSIDERAÇÕES SOBRE O HIPER-REALISMO DE ANDRÉ SANT’ANNA..........

Felipe de Castro Cruz (UFPB)

Jéssica Rodrigues Férrer (UFPB)

863

TENDÊNCIAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA......................

Felipe Vigneron Azevedo (IFF)

871

LITERATURA E NATUREZA EM MANOEL DE BARROS..........................................

Fernanda Bezerra de Aragão Correia (UFS)

883

“XANDRILÁ” SOB UM VIÉS SEMIÓTICO....................................................................

Flávio Passos Santana (UFS)

894

A PRESENÇA DOS GÊNEROS TEXTUAIS NAS QUESTÕES DE MATEMÁTICA

NO ANTIGO ENEM...........................................................................................................

Francielle Santos Araújo (UFS)

Fabíola dos Santos Lima (UFS)

906

RECLUSÃO E LIBERDADE NA TRAJETÓRIA FICCIONAL DE MAYOMBE............

Francigelda Ribeiro (UFMG)

Lila Léa Cardoso Chaves Costa (UFPI)

916

ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS: UMA ABORDAGEM INTERTEXTUAL E

MULTIMODAL DO GÊNERO..........................................................................................

Francilene Leite Cavalcante (UNICAP/IFAL)

Roberta Caiado (UNICAP)

924

O LETRAMENTO ACADÊMICO E O TRABALHO DOCENTE: OS CONFLITOS

VIVENCIADOS NA ELABORAÇÃO DE UM MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO

DA EAD..............................................................................................................................

Francineide Ferreira de Morais (UFPB\PROLING\GELIT)

936

RODAS DE CONVERSA COMO EVENTO DE LETRAMENTO PARA A

PRODUÇÃO E REFACÇÃO TEXTUAL NA EJA...........................................................

Francisca Aldenora Moreno Fernandes (UFRN)

Ana Maria de Oliveira Paz (PPgEL/UFRN)

948

O GÊNERO ENTREVISTA: UMA PROPOSTA DE RETEXTUALIZAÇÃO DA

FALA PARA A ESCRITA.................................................................................................

Francisca Fabiana da Silva (UFRN)

960

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES...............................

Francisco Canindé de Assunção (SABERES)

971

DO CORDÃO À WEB: O CORDEL-NOTÍCIA NA INTERNET..................................... 981

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Francisco Leandro de Assis Neto (UEPB)

AS TRANSPARÊNCIAS DO TERROR............................................................................

Gabriel D. M. Moura Freitas (GELISC/CNPq/UFPB)

993

A UTILIZAÇÃO DO CONTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS PRÁTICAS DE

ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS EM SALA DE AULA.......................................

Gabriela Ulisses Fernandes (UNEAL)

1.002

A PERFOMANCE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA DE MARCELINO

FREIRE...............................................................................................................................

Gérsica Cássia Ferreira Leite (UFPE)

1.011

ETHOS DO COTIDIANO FEMININO DE TEXTOS LITERÁRIOS DAS AUTORAS

CONTEMPORÂNEAS BRASILEIRAS IVANA ARRUDA LEITE E MARTHA

MEDEIROS.........................................................................................................................

Giovanna de Araújo Leite (BARÃO EAD - Ribeirão Preto/SP)

1.024

VOCÊ VIU TU, SENHOR? COMPETIÇÃO DE TRATAMENTO EM CARTAS DO

SERIDÓ E CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO...........................................................

Gisonaldo Arcanjo de Sousa (UFRN)

1.037

ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO À

LEITURA DE POEMAS LÍRICOS....................................................................................

Helio Castelo Branco Ramos (IFPE)

1.048

INTENCIONALIDADE LINGUÍSTICA NAS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS EM

OUT-DOORS NAS CIDADES DE OLINDA E RECIFE..................................................

Heloisa Pedrosa de Araújo (UFPE)

1.061

RESUMO DE LEITURA: UMA ANÁLISE DO DOMÍNIO DO DISCURSO

TEÓRICO À LUZ DO ISD.................................................................................................

Hermano Aroldo Gois Oliveira (UFCG/PÓS-LE)

1.070

A VOZ DO SILÊNCIO INDÍGENA: O EXERCÍCIO DO PODER IDEOLÓGICO

SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE ATORES SOCIAIS..................................................

Ilka da Graça Baía de Araújo (UEG)

Gláucia Cândido Vieira (UFG/UEG)

1.083

GÊNERO E RELAÇÕES INTERÉTNICAS NA CONSTRUÇÃO FAMILIAR

AFRICANA EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE.............

Ilka Souza dos Santos (UPE)

Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

1.096

A ABORDAGEM SEMIÓTICA COMO MÉTODO PARA ENSINO DE ANÁLISE

DO TEXTO LITERÁRIO...................................................................................................

Ingrid Cruz do Nascimento (UFPB)

Dalva Sales Carvalho Cunha (UFPB)

1.109

O CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO UM GÊNERO INSERIDO NO

CONTÊINER DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS..............................................................

Isabela Bastos de Carvalho (IFF/CEFET-RJ)

1.113

PLANO PLURIANUAL DE ALFABETIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL NO

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ESTADO DE SERGIPE: APLICAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO INICIAL

DE ALFABETIZADORES E COORDENADORES DE TURMAS.................................

Isis Mota Rodrigues Dantas (SEED – Secretaria de Estado da Educação)

1.126

A VIDA ÍNTIMA DA MORTE SUBVERTIDA NA POÉTICA CONTEMPORÂNEA

DE HILDA HILST..............................................................................................................

Ivon Rabêlo Rodrigues (FAFIRE)

Edigar dos Santos Carvalho (UFPE)

1.140

REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DA MILITÂNCIA POLÍTICA: NOS, OS DO

MAKULUSU, DE JOSE LUANDINO VIEIRA E UN FUSIL DANS LA MAIN, UN

POEME DANS LA POCHE, DE EMMANUEL DONGALA............................................

Jacqueline Fernanda Kaczorowski Barboza (USP)

1.149

OS LETRAMENTOS NO CIRCO DO FUXIQUINHO E O PAPEL DO PROFESSOR..

Jaécia Bezerra de Brito (UFRN/PROFLETRAS)

1.159

O ÍCONE METAFÓRICO PEIRCIANO NO POEMA MORTE E VIDA SEVERINA.......

Janicreis Gomes de Souza (UFPB)

Expedito Ferraz Júnior (UFPB)

1.170

A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM E O DISCURSO PEDAGÓGICO

DO PROFESSOR: UMA AULA MAGNA DE ARIANO SUASSUNA...........................

Janielly Santos de Vasconcelos(UFPB)

1.180

PRODUÇÃO DE CHAMADAS TELEVISIVAS: O ENSINO DA ESCRITA NUMA

PERSPECTIVA PROCESSUAL........................................................................................

Jária Suéldes Alves de Lima (UFRN)

1.190

O JOGO ENTRE AS REMINISCÊNCIAS E O DESVELAMENTO NOS POEMAS

DE BANDEIRA DE TEMÁTICA ONÍRICA....................................................................

Jefferson Cleiton de Souza (UFPE)

1.203

COLONIALISMO E PÓS-COLONIALISMO EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ,

DE PAULINA CHIZIANE.................................................................................................

Jeferson Rodrigues dos Santos (UFS)

Anderson de Souza Frasão (UFS)

1.211

REPRESENTAÇÕES DA MULHER AMAZÔNICA NO ROMANCE DE MILTON

HATOUM............................................................................................................................

Joanna da Silva (UFAM)

1.218

INTERTEXTUALIDADE COMO METALITERATURA: ANÁLISE

COMPARATIVA DE VIDAS SECAS E “FAROESTE CABOCLO”................................

João Batista da Silva (UFRPE/UAG)

Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)

1.231

CHARGES SOBRE O CARNAVAL: UM RISO CARNAVALESCO?............................

Jociane da Silva Luciano (UFRN)

1.243

PRODUÇÕES TEXTUAIS DE ALUNOS GRADUANDOS INICIANTES EM

LETRAS..............................................................................................................................

Joelma da Silva Santos (UFPB)

1.255

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GÊNEROS TEXTUAIS E ANÁLISE LINGUÍSTICA COMO PROCESSO DE

ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA E IDENTIDADE SOCIAL.........................................

John Hélio Porangaba de Oliveira (UNICAP)

1.268

A ESTÉTICA NEOBARROCA NA CANÇÃO DE CHICO CÉSAR: UM LEITURA

DE A PROSA IMPÚRPURA DE CAICÓ..........................................................................

Jonathan Lucas Moreira Leite (UFPB-PPGL)

1.280

A AMBIVALÊNCIA DA CONFISSÃO NA ESCRITURA DE MIA COUTO................

José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)

1.287

ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES FINAIS:

PROCESSOS DE RETEXTUALIZAÇÃO COM O GÊNERO MEMÓRIAS...................

José Aurélio da Câmara (UFRN)

1.300

VIOLÊNCIA, REPRESSÃO E FORMA EM AVALOVARA..............................................

José Helber Tavares de Araújo (UFPB)

1.312

O JOGO DAS PALAVRAS NO POEMA “MY SWEET OLD ETCETERA”, DE E. E.

CUMMINGS.......................................................................................................................

José Vilian Mangueira (UERN)

1.325

ANALISANDO O DISCURSO E O HUMOR NAS CHARGES: DO MATERIAL

LINGUÍSTICO À MATERIALIDADE DISCURSIVA.....................................................

José Wellisten Abreu de Souza (PROLING-UFPB)

1.335

EQUÍVOCOS E CONTROVÉRSIAS DO LIVRO DIDÁTICO SOBRE O ENSINO DE

GÊNEROS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL............................................................

Josefa Maria dos Santos (UPE)

Maria Alcione Gonçalves da Costa (UPE)

1.348

A TÉCNICA DO MONÓLOGO INTERIOR NA CONSTRUÇÃO DO SER DA

FICÇÃO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS...................................................

Josivaldo Silva Menezes (UPE)

1.361

A IMPORTÂNCIA DAS TIC NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE

INGLÊS...............................................................................................................................

Joyce Rodrigues da Silva Magalhães (IFAL/UFAL-PPGLL/ObservU)

Adriana Nunes de Souza (IFAL)

1.371

O IMAGINÁRIO FICCIONAL EM “A MORTE DE D.J. EM PARIS” DE ROBERTO

DRUMMOND.....................................................................................................................

Juceli da Cruz Carneiro (FAFICA)

1.382

O TRATAMENTO DADO ÀS VARIEDADES LINGUÍSTICAS NOS LIVROS

DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO ENSINO FUNDAMENTAL (ANOS FINAIS)

APROVADOS PELO PNLD-2014.....................................................................................

Juciano Santos Soares da Silva (UFPE/FACEPE)

1.393

A PERSONAGEM ILUMINATA COMO A MANIFESTAÇÃO DA VOZ FEMININA

NA FICÇÃO DE LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA....................................................

Júlio César Martins de Sales (UPE)

Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

1.406

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IMAGENS DE NAÇÃO EM ODETE SEMEDO E CONCEIÇÃO EVARISTO..............

Karina de Almeida Calado (PUC-Minas)

1.417

NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE....................................................

Karina Kelly Amâncio (IFAL)

1.432

UMA ANÁLISE DA TEORIA ARGUMENTATIVA EM AVALIAÇÕES EM LARGA

ESCALA NO BRASIL – SAEB E PROVA BRASIL........................................................

Karine Alves David (UFRN)

1.438

VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM MARCELINO FREIRE: UMA ANÁLISE

CRÍTICA.............................................................................................................................

Karla Karine Claudino Tenório (UPE)

1.450

A INTERVENÇÃO DIDÁTICA NO PROCESSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL DE

ALUNOS PARTICIPANTES DA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA-OLP....

Karolynne Kaya Maria Amorim Moura (PPGE)

Adna de Almeida Lopes (UFAL)

1.463

CUTUCAR, CURTIR, COMENTAR, COMPARTILHAR: UMA ANÁLISE DOS

RELACIONAMENTOS AFETIVOS NA CONTEMPORANEIDADE NA REDE

SOCIAL FACEBOOK.........................................................................................................

Kassios Cley Costa de Araújo (UnP)

1.476

PRODUÇÃO DE TEXTO NA CONTEMPORANEIDADE –UMA VISÃO SOBRE O

ENSINO DE LINGUAS NA ERA DIGITAL………………….……………………...….

Kathia Maria Barros Leite (UFAL/IFAL)

Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)

1.486

GÊNERO TEXTUAL COMO EIXO NORTEADOR DO ENSINO DE LÍNGUA

PORTUGUESA...................................................................................................................

Katiane Silva Santos (IFAL)

1.498

UMA ANÁLISE DE CONCEITOS E CONCEPÇÕES NOS REFERENCIAIS

CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO DA PARAÍBA: A PRESENÇA DE

BAKHTIN...........................................................................................................................

Keila Gabryelle Leal Aragão (UFPB)

Ayanne Mayelle da Silva Ferreira (UFPB)

1.506

A LINGUAGEM DO PROBLEMA MATEMÁTICO.......................................................

Kelly Jane da Silva Tcham (PIBIC/IFAL)

Nádia Mara da Silveira (IFAL)

1.519

FACEBOOK E ENSINO DE GÊNEROS: UMA EXPERIÊNCIA MIDIÁTICA EM

REDE...................................................................................................................................

Laene Alves Pacheco Vaz (UPE)

Benedito Gomes Bezerra (UPE)

1.529

CRIADAS E MALVADAS: A IDENTIDADE VISUAL DAS LATINO-

AMERICANAS...................................................................................................................

Larissa de Pinho Cavalcanti (UFPE)

1.541

DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE EM “NOIVAS

PROIBIDAS DOS ESCRAVOS SEM ROSTO NA CASA SECRETA DA NOITE DO

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TEMÍVEL DESEJO”..........................................................................................................

Laura Fernanda Vicente de Souza (FAFICA)

1.553

GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMAS DE CONTEXTUALIZAÇÃO NO

ESPAÇO VIRTUAL: O CASO DO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA........................

Laura Jorge Nogueira Cavalcanti (UFPE)

1.564

O USO DOS RECURSOS COESIVOS NA PRODUÇÃO DE TEXTOS DO

GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO EM INGLÊS: PROBLEMAS ENFRENTADOS

PELO APRENDIZ..............................................................................................................

Leane Mayara da Silva Santos (UNEAL)

Delma Cristina Lins Cabral de Melo (UNEAL)

1.575

MECANISMOS DE COESÃO REFERENCIAL EM PRODUÇÕES ESCRITAS: UMA

ABORDAGEM NO CONTEXTO ESCOLAR...................................................................

Leonildo Leal Gomes (UFRN)

1.587

GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS E MANUAIS DO PROFESSOR: QUAL O

TRATAMENTO DADO ÀS QUESTÕES CONTEXTUAIS?...........................................

Lílian Noemia Torres de Melo Guimarães (UFPE)

1.596

BARROQUISMOS NA POESIA DE DRUMMMOND....................................................

Lindjane Pereira (UFPB)

Líllian Régis (UFPB)

1.608

A EXPERIÊNCIA DE LEITURA E O LEITOR EM FORMAÇÃO NO PRIMEIRO

CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL...........................................................................

Luana Machado (UFAL)

Léa Maria da Silva Borges (UFAL)

1.617

APOCALIPSES DA MODERNIDADE: O FIM DO MUNDO EM ENSAIO SOBRE A

CEGUEIRA E 2666.............................................................................................................

Lucas Antunes Oliveira (UFPE)

1.625

O CORVO DE EDGAR ALLAN POE – UMA ANÁLISE CONTRASTIVA DAS

TRADUÇÕES DE MACHADO DE ASSIS E FERNANDO PESSOA.............................

Lucélia Aparecida de Ávila Carvalho (IFTO)

1.637

UM CRIME DELICADO SOB A ÓTICA PÓS-MODERNA............................................

Luciana Bessa Silva (FALS)

1.648

A ÁFRICA QUE HÁ EM NÓS... IMPRESSÕES E EXPERIÊNCIAS

COMPARTILHADAS NO ENSINO FUNDAMENTAL..................................................

Luciana Maria Carvalho Medeiros dos Santos (UFRN)

Valdenides Cabral de Araújo Dias (UFRN)

1.659

UM ESTUDO SOBRE MARCADORES DISCURSIVOS NO GÊNERO

COMENTÁRIO DE BLOG FUTEBOLÍSTICO PERNAMBUCANO..............................

Lucineudo Machado Irineu (UNILAB)

Walison Paulino de Araújo Costa (UFRPE)

1.671

A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM O ESPELHO DIAMANTINO –

PERIÓDICO DE POLÍTICA, LITERATURA, BELAS ARTES, TEATRO, E MODAS

DEDICADO ÀS SENHORAS BRASILEIRAS.................................................................

1.679

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Lucirley Alves de Oliveira (UFPE)

A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA ESCRITA DE ANA MIRANDA......................

Luiz Renato de Souza Pinto (IFMT)

1.689

AS LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS NA SALA DE AULA –

UM NOVO FAZER PEDAGÓGICO.................................................................................

Lygia Maria Andrade Figueira dos Santos (UFRRJ)

Viviane de Araújo Nascimento (UFRRJ)

1.697

VOLUME III

CONTRIBUIÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA

PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO E A FORMAÇÃO DO LEITOR.......................

Mabel Cristina Azevedo dos Santos (PROFLETRAS – UPE)

Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

1.707

O GÊNERO BLOG PEDAGÓGICO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: POR

UMA PRÁTICA EDUCOMUNICATIVA DE LEITURAS DIALÓGICAS DA MÍDIA

POLÍTICA...........................................................................................................................

Manassés Morais Xavier (UFCG)

Maria de Fátima Almeida (UFPB)

1.718

LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA POSSIBILIDADE

DE DIÁLOGO ENTRE BRASIL E ANGOLA..................................................................

Marcela de Melo Cordeiro Eulálio (POS-LE/ UFCG)

Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE/ UFCG)

1.729

A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA MATERNA NA AULA DE LÍNGUA

ESTRANGEIRA: OS MARCADORES CONVERSACIONAIS E A ALTERNÂNCIA

DE LÍNGUA.......................................................................................................................

Marcelo Augusto Mesquita da Costa (UFPE)

Kazue Saito Monteiro de Barros (UFPE)

1.741

O TRABALHO COM O GÊNERO POESIA, O TEXTO E A ORALIDADE NO

ENSINO..............................................................................................................................

Márcia Nadja Oliveira de Medeiros Galvão (UFRN)

1.752

MR. POTTER E A VOICELESS DO SUJEITO COLONIAL: IDENTIDADE, RAÇA E

MARGINALIDADE EM JAMAICA KINCAID...............................................................

Márcia Oliveira (UFPE)

1.762

O ETHOS QUE QUEREMOS E O ETHOS QUE PODEMOS..........................................

Márcia Regina Curado Pereira Mariano (DLI – UFS)

1.772

CULTURA: VARIEDADES DA LÍNGUA NA CONCORDÂNCIA VERBAL E

INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA......................................................................................

Márcione Teles de Melo Barros (ULHT)

1.783

CAMINHADO POR TERRAS HABITADAS POR FANTASMAS: A

PEREGRINAÇÃO DO NARRADOR NA OBRA ‘OS ANÉIS DE SATURNO’.............

Marcos Eduardo de Sousa (UFOP)

1.794

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OS NOVOS REALISMOS NOVOS EM PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE LÍNGUA

INGLESA............................................................................................................................

Marcus V. Matias (UFAL)

1.800

O FEEDBACK COLABORATIVO NA PRODUÇÃO DO GÊNERO E-MAIL: UMA

EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL II..............................

Maria Angela Lima Assunção (UFRN)

1.812

SEQUÊNCIA DIDÁTICA POR GÊNEROS TEXTUAIS: UMA PROPOSTA PARA O

LETRAMENTO..................................................................................................................

Maria Aparecida Barbosa da Silva (UFPE)

Erivaldo José da Silva (UFPE)

1.823

SOLIDÃO E DESAMPARO EM OS CUS DE JUDAS DE ANTÓNIO LOBO

ANTUNES..........................................................................................................................

Maria Aparecida da Costa (UERN)

José Juvêncio Neto de Souza (UERN)

1.833

DO PRETEXTO PLÁSTICO À VERDADE PLÁSTICA: ANÁLISE DIALÓGICA DO

DISCURSO ESTÉTICO – POESIA, PINTURA E OUTROS GÊNEROS – LIÇÕES DE

ESPANHA...........................................................................................................................

Maria Bernardete da Nóbrega (UFPB)

1.841

O GÊNERO TEXTUAL CONTO COMO FERRAMENTA ARTICULADORA NAS

PRÁTICAS DE ESCRITA E REESCRITA EM SALA DE AULA...................................

Maria Claudicélia Curvelo da Silva (UNEAL)

1.851

A BUSCA DA IDENTIDADE CULTURAL NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO

DAS PERSONAGENS EM MÁRIO DE ANDRADE.......................................................

Maria da Conceição José de Sousa (UNEMAT)

1.859

MUNDOS LENDÁRIOS: LENDAS NEGRAS E URBANAS NO CONTEXTO DA

SALA DE AULA................................................................................................................

Maria das Graças da Costa (UFCG)

Ana Rafaela Oliveira e Silva (UFRN)

1.866

EVENTOS DE LETRAMENTO: O USO SOCIAL DA LEITURA E DA ESCRITA

NA SALA DE AULA.........................................................................................................

Maria das Vitórias dos Santos Medeiros (UFRN)

Maria Marlene dos Santos (UFRN)

1.875

MOVIMENTOS DE CONSTRUCÃO DA IDENTIDADE FEMININA NO GÊNERO

PUBLICITÁRIO DA NATURA: PERSPECTIVAS DIÁLOGICAS.................................

Maria do Carmo R. da Silva (UFPB)

Julia Cristina de L. Costa (UFPB-PROLING)

1.887

A ESTETIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA

CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA DE O MATADOR DE PATRÍCIA MELO........

Maria Fernandes de Andrade Praxedes (UEPB)

1.897

MEMÓRIA E LITERATURA: TRAUMA, ESQUECIMENTO E PÓS-MEMÓRIA NA

REPRESENTAÇÃO DO MASSACRE DOS ÍNDIOS EM A LENDA DOS CEM, DE

GILVAN LEMOS...............................................................................................................

1.909

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Mariá Gonçalves de Siqueira (UFPE)

ANÁFORAS ENCAPSULADORAS NA VOZ DO NARRADOR DE MENINO DE

ENGENHO..........................................................................................................................

Maria José Cavalcanti de Andrade (UNICAP)

1.920

MUDANÇAS GRAMATICAIS DOS ITENS “E”, “AÍ”, “AGORA” NA FALA E

CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO..............................................................................

Maria José de Oliveira (IFRN- Caicó/ UFPB-PROLING)

Camilo Rosa da Silva (UFPB-PROLING)

1.929

ANA CRISTINA CESAR: A CONSTRUÇÃO DE UMA DICÇÃO AUTORAL.............

Maria Lúcia Colombo (UNIR/IFRO)

Sônia Maria Gomes Sampaio (UNIR)

1.942

“A ESCRAVA ISAURA” E “ROSAURA, A ENJEITADA”: IMAGENS QUE SE

CONFUNDEM NA OBRA DE BERNARDO GUIMARÃES...........................................

Maria Rosane Alves da Costa (UPE)

1.952

ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO

DISCURSO JORNALÍSTICO............................................................................................

Maria Sirleidy de Lima Cordeiro (UFPE)

1.963

LETRAMENTO DIGITAL: PARA TC DE VZ EM KNDO NA AULA DE

PORTUGUÊS......................................................................................................................

Maria Solange de Lima Silva (FCU/UNIFUTURO)

1.974

MAIS DO QUE “SENTIDO FIGURADO”: O EFEITO METAFÓRICO SEGUNDO

MICHEL PÊCHEUX..........................................................................................................

Mariana da Silva Gouveia (UFCG)

1.981

AQUILINO RIBEIRO E GUIMARÃES ROSA: PROPOSTAS LITERÁRIAS EM

DIÁLOGO...........................................................................................................................

Marília Angélica Braga do Nascimento (IFRN/UFC)

1.988

A VARIAÇÃO FONÉTICA DO [R] DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NA FALA

DOS NATIVOS DE LÍNGUA INGLESA..........................................................................

Marília Gomes Teixeira (UFPE)

2.000

UMA PEDAGOGIA PARA UM PAÍS MULTILÍNGUE..................................................

Marinázia Cordeiro Pinto (UFRRJ)

Michele Cristine Silva de Sousa (UFRRJ)

2.010

O TRANSPOSITOR SEM: CRITÉRIOS PARA DETERMINAÇÃO DO VALOR

MODAL EM ORAÇÕES ADVERBIAIS REDUZIDAS...................................................

Marta Anaísa Bezerra Ramos (UEPB)

Camilo Rosa Silva (UFPB)

2.021

UMA BREVE ANÁLISE DISCURSIVA EM MÚSICAS CRISTÃS...............................

Max Silva da Rocha (UNEAL)

José Bezerra da Silva (FACESTA)

2.033

DICIONÁRIO ELETRÔNICO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINO-

APRENDIZAGEM DE LÍNGUA.......................................................................................

2.044

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Mayara Oliveira Feitosa (UFS)

Elaine Vieira Gois (UFS)

ANGÚSTIAS NO INFÉRTIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE “NOS HAN DADO LA

TIERRA” DE JUAN RULFO…………………………………………….…...………….

Mercia Paulino Nicolau da Silva (UFPE)

2.052

ANÁLISE DIALÓGICA DO FILME FAHREINHEIT 451...............................................

Micheline Barros Chaves (UEPB)

2.062

DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE: O QUE DIZEM OS

PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL A RESPEITO DA DOCÊNCIA...............

Mirelle da Silva Monteiro Araujo (UFPB)

2.075

A CRIAÇÃO DE ESTRATÉGIAS PERSUASIVAS NA CONSTRUÇÃO DE AULAS

ARGUMENTATIVAS........................................................................................................

Nádia Mara da Silveira (IFAL)

2.087

O PROCESSO DE SUMARIZAÇÃO EM POSTAGENS DO FACEBOOK: O CASO

DA SÉRIE “JEAN COMENTA”........................................................................................

Nadiana Lima da Silva (UFPE)

Monique Alves Vitorino (UFPE)

2.098

DISCUTINDO A LEITURA A PARTIR DAS INICIATIVAS NA CIDADE DE

SERROLÂNDIA/BA..........................................................................................................

Naylane Araújo Matos (UNEB)

Juliana C. Salvadori (UNEB)

2.114

RETRATOS DA DESCOLONIZAÇÃO: O RETORNO DE DULCE MARIA

CARDOSO..........................................................................................................................

Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE/USP)

2.126

ATRAVÉS DA LITERATURA: LITERATURA SHAKESPEARIANA..........................

Patrícia Gonzaga da Silva (UNEAL)

Rosangela Nunes de Lima (UNEAL)

2.138

LEITURAS DE TEMAS POLÊMICOS NA SALA DE AULA: POR QUE NÃO

FAZER?...............................................................................................................................

Patrícia Lira Guedes de Oliveira (UFPB)

2.146

A LÍNGUA EM INTERAÇÃO: UM ESTUDO DE CADEIA DE

GÊNEROS EM CONTEXTO DE CONCURSO PÚBLICO..............................................

Patrícia Silva Rosas de Araújo (PROLING/UFPB)

Manassés Morais Xavier (UFCG)

2.158

A MOBILIZAÇÃO DE LINKS EM MATERIAL DE FORMAÇÃO CONTINUADA

DE PROFESSOR DO ENSINO BÁSICO..........................................................................

Patricio de Albuquerque Vieira (UEPB)

2.168

LETRAMENTO CRÍTICO E O ENSINO DE INGLÊS: REFLEXOS DENTRO E

FORA DA SALA DE AULA..............................................................................................

Paula Tenório dos Santos (IFAL)

2.179

A MECÂNICA, A POTÊNCIA E O ATO ENFÁTICO OU A PRODUÇÃO TEXTUAL

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BARRETIANA...................................................................................................................

Paulo Alves (UFPB)

2.186

OLHARES SOBRE O FEMININO: A CONSTRUÇÃO DE UM DOCUMENTÁRIO

POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO DENTRO DE UMA EXPERIÊNCIA DE

ESTÁGIO SUPERVISIONADO........................................................................................

Pedro Felipe de Lima Henrique (UFPB)

Frederico de Lima Silva (UFPB)

2.198

ANÁLISE CRÍTICA DO CONTO “A CHINELA TURCA” SOB O VIÉS DA

ESTÉTICA DA RECEPÇÃO..............................................................................................

Pedro Santos da Silva (UFS)

2.210

POLÍTICAS LINGUÍSTICAS EDUCACIONAIS NO ESTADO DE PERNAMBUCO:

INTERPRETAÇÕES DOS PROFESSORES ACERCA DOS PARÂMETROS DO

ESTADO.............................................................................................................................

Rafaela Cristina Oliveira de Andrade (UFPB)

Terezinha de Jesus Gomes do Nascimento (UFPB)

2.216

“A PROSA DOS MEUS VERSOS”: SENTIDOS DO REAL NA POESIA LÍRICA

MODERNA.........................................................................................................................

Raquel Brandão do Sêrro (Universidade de Coimbra)

2.229

A MODALIDADE COMO ESTRATÉGIA DISCURSIVA: DO ENFOQUE

SISTÊMICO-FUNCIONAL AO DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA....................

Rebeca Sales Pereira (UFC)

2.240

A ABORDAGEM DOS GÊNEROS DISCURSIVOS EM SALA DE AULA...................

Renata Xavier Moreira (UFPB)

2.252

CARTÃO-POSTAL PUBLICITÁRIO: MARCAS TEXTUAIS E CONSIDERAÇÕES

SOBRE O GÊNERO...........................................................................................................

Renato Lira Pimentel (UFPE)

2.259

PERGUNTAS DO ALUNO AO PROFESSOR: FERRAMENTAS DE

APRENDIZAGEM E INTERAÇÃO..................................................................................

Renato Suellisom da Silva Medeiros (UFRN)

Marise Adriana Mamede Galvão (UFRN/DLC)

2.266

A NOÇÃO DE EXISTÊNCIA EM LA VIE EN CLOSE, DE PAULO LEMINSKI...........

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS)

2.277

CULTURA DIGITAL E ENSINO......................................................................................

Rosana Cardoso Gondim (UNEB)

2.286

REPRESENTAÇÃO DAS MINORIAS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA:

VIOLÊNCIA E (DES) ENCONTROS URBANOS............................................................

Rosana Meira Lima de Souza (UFPE)

2.297

TODA NUDEZ (NÃO MAIS) SERÁ CASTIGADA: O DESNUDAMENTO DO

FEMININO EM NELSON RODRIGUES..........................................................................

Rosana Trevisol Seibt (IFAL)

2.308

A PARTICULARIDADE ESTÉTICA NA OBRA UMA APRENDIZAGEM OU O

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LIVRO DOS PRAZERES (1969), DE CLARICE LISPECTOR..........................................

Rosilene Pimentel Santos Rangel (UFAL/ESTÁCIO FASE)

2.320

PRÁTICAS DE ESCRITA NO LETRAMENTO ESCOLAR: OS TEXTOS DA

DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA EM LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO

ENSINO MÉDIO................................................................................................................

Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UNICAMP)

Eloiny Ptra Brasil Lazamé (UNIFAP)

2.328

A MULHER, O TRABALHO E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES:

ASPECTOS TEÓRICOS MATERIALISTAS E DISCURSIVOS NO DISCURSO

MIDIÁTICO........................................................................................................................

Samuel Barbosa Silva (UFAL)

2.344

ESTUDO ARGUMENTAL DO VERBO ARRUMAR........................................................

Sandro Luis de Sousa (IFRN/UFPB)

2.354

A ESCRITA DE ANA CRISTINA CESAR: UMA POÉTICA NEOBARROCA.............

Sara de Miranda Marcos (UPE)

2.366

DEIXA IR MEU POVO: GÊNERO E CULTURA............................................................

Sarah da Silva Barretto (UPE)

Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

2.379

ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: A IMPORTÂNCIA DE FALAR, OUVIR, LER E

ESCREVER TEXTOS EM LÍNGUA PORTUGUESA NAS AULAS DE

PORTUGUÊS......................................................................................................................

Shania Jéssika Cavalcante Rodrigues (IFAL)

2.388

FRICÇÕES DAS VOZES LABIRÍNTICAS EM A DANÇA DOS CABELOS, DE

CARLOS HERCULANO LOPES......................................................................................

Shantynett Souza F. M. Alves (UNIMONTES)

2.400

O INTERDISCURSO COMO RELAÇÃO CONSTITUTIVA ENTRE FDS: O CASO

BOLSONARO E OS DIREITOS HUMANOS...................................................................

Sheila Alves de Oliveira (UFPE)

2.407

TEMPO, TRANSCENDÊNCIA, ENVELHECIMENTO: UMA LEITURA DA

CRÔNICA “NOS TRILHOS DO TEMPO” DE CAIO FERNANDO ABREU.................

Sidileide Batalha do Rêgo (UERN)

Antonia Marly Moura da Silva (UERN)

2.418

A RELAÇÃO SENSORIAL ENTRE O CORPO DO LEITOR E O TEXTO

LITERÁRIO: UMA ABORDAGEM REFLEXIVA ACERCA DO LETRAMENTO

LITERÁRIO NO CONTEXTO UNIVERSITÁRIO–

...........................................................

Silvio Nunes da Silva Júnior (UNEAL)

2.426

ESCRITA MULTIMODAL: UMA PROPOSTA DE MULTILETRAMENTO NO

ENSINO FUNDAMENTAL QUILOMBOLA...................................................................

Soraya Conceição Branco (URCA/UDCS)

Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/ UDCS)

2.434

(RE) LENDO O ARQUIVO – A PROPÓSITO DAS BASES DOCUMENTAIS DO

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DISCURSO “OFICIAL”.....................................................................................................

Sóstenes Ericson Vicente da Silva (UFAL)

Maria Virgínia Borges Amaral (UFAL)

2.442

TECENDO OS FIOS DA MEMÓRIA: PALAVRA E MEMÓRIA NOS ROMANCES

DE MIA COUTO................................................................................................................

Suelany C. Ribeiro Mascena(UFPE)

2.454

MÍNIMO, MÚLTIPLO E INCOMUM: O CONTO DE VERONICA STIGGER.............

Susana Souto Silva (UFAL)

2.464

ALFABETIZAÇÃO E/OU LETRAMENTO: COMO FUNCIONA A

APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA.....................................................................

Tamiris de Almeida Silva (IFAL)

Adriana Nunes de Souza (IFAL)

2.472

MODELO PARA DESARMAR: A ESCRITURA DE WALY SALOMÃO.....................

Tazio Zambi de Albuquerque (IFPB/USP)

2.481

SEMIOSES NÃO VERBAIS COMO TRAÇOS CONTEXTUALIZADORES DE

MICROCONTEXTO EM SALA DE AULA......................................................................

Thaís Ludmila da Silva Ranieri (UAST/UFRPE)

2.489

O RESSUSCITÓRIO DE ODORICO-PARAGUAÇU E SUAS OUTRAS GENTES,

UMA ESCRITA PALIMPSESTICA..................................................................................

Thais Rabelo de Souza (UFPE/CAPES)

2.501

UM OLHAR ATENTO SOBRE O COTIDIANO FRAGMENTADO E O FAZER

LITERÁRIO CONTEMPORÂNEO: MARIO LEVRERO, DO DISCURSO VACÍO A

NOVELA LUMINOSA.........................................................................................................

Thays Albuquerque (UEPB)

2.508

O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ATRAVÉS DO RELATO DE

FUNDO BIOGRÁFICO: UMA LEITURA DE AVÓDEZANOVE E O SEGREDO DO

SOVIÉTICO, DE ONDJAKI..............................................................................................

Thiago da Camara Figueredo (IFPE/UFPE)

2.516

LETRAMENTO BUROCRÁTICO: PRÁTICAS DISCURSIVAS E GÊNEROS

TEXTUAIS NA ESFERA ADMINISTRATIVA ESTATAL............................................

Valfrido da Silva Nunes (UFAL)

2.525

A SUBJETIVIDADE DO NARRADOR ORAL NA PÓS-MODERNIDADE..................

Vanessa de Santana Vila Flor (UNEB)

2.536

LUANDA: CENÁRIO AFETIVO DA DISTOPIA PÓS-COLONIAL: UMA LEITURA

DAS OBRAS DE AGUALUSA E ONDJAKI....................................................................

Vanessa Riambau Pinheiro (UFPB)

2.549

SMARTPHONE, GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:

INTERAÇÕES MIDIÁTICAS NO APLICATIVO WHATSAPP.....................................

Vera Lúcia de Siqueira Lira (UPE)

2.559

SOB A TRIDIMENSIONALIDADE DA ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA, A

LEITURA DE MUNDO COM BASE NOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS....................

2.570

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Vera Lúcia Santos Alves (FASJ)

A ESCRITA PROCESSUAL E O FEEDBACK COLABORATIVO ENTRE PARES

NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TURMA DO 6º ANO DO ENSINO

FUNDAMENTAL...............................................................................................................

Vilma Abdias de Lima Bezerra (UFRN)

2.581

SER EMPREGADO DOMÉSTICO NO BRASIL É SER ESCRAVO: UMA

METÁFORA SISTEMÁTICA DA SEGUNDA ABOLIÇÃO...........................................

Vinícius Nicéas do Nascimento (UFPE)

2.592

LITERATURA ERÓTICA: OU ISTO É ERÓTICO OU AQUILO É

PORNOGRÁFICO EM HILDA HILST.............................................................................

Wanderly Alves Ferreira (UPE)

José Laécio de Oliveira (UPE)

Jairo Nogueira Luna (UPE)

2.601

LÉXICO REGIONAL/POPULAR DE ZÉ VICENTE DA PARAÍBA: GLOSSÁRIO

DA CANÇÃO “DESTINO DE VAQUEIRO”....................................................................

Wellington Lopes dos Santos (UFPB)

2.612

CAMINHAR PARA DENTRO DE SI MESMO: A METALITERATURA EM

CONTOS DE MIA COUTO...............................................................................................

William Duarte Ferreira (UFRPE/UAG)

Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)

2.623

MOTIVAÇÕES SOCIOFONÉTICAS DO FONEMA LATERAL E FRICATIVO

PALATAL: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DE ELE..........

Zaine Guedes da Costa (UFPE)

Rafael Alves de Oliveira (UFPE)

2.634

O VERBETE DE DICIONÁRIO COMO GÊNERO DISCURSIVO: UMA ANÁLISE

DISCURSIVA.....................................................................................................................

Zilda Maria Dutra Rocha (UERN)

Antônio Luciano Pontes (UERN)

2.645

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 23

PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE

COMO PROCEDIMENTO ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO

DE LEITORES [Voltar para Sumário]

Abda Alves Vieira de Souza (UFAL)

Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL)

Introdução

O Ministério da Educação (MEC) com a finalidade de melhorar o processo de

alfabetização vem adotando medidas para melhorar a aprendizagem da leitura e escrita no

país. Uma das iniciativas adotadas foi a criação do PNAIC (Pacto Nacional pela

Alfabetização na Idade Certa) que é um programa cujo objetivo imediato é a alfabetizar

crianças até os oito anos de idade, foi implementado em 2013 pelo governo federal que

investiu na formação continuada visando formar 360 mil professores alfabetizadores até 2015.

A iniciativa do MEC partiu dos dados levantados pelo Censo 2010. Ao todo, são 15,2% as

crianças brasileiras em idade escolar que não sabem ler, nem escrever. O PNAIC traz em seu

conteúdo reflexões e sugestões de atividades de alfabetização, letramento e incentivo à

formação do leitor. Assim, percebemos a importância de assegurar um amplo debate sobre

possíveis repercussões causadas pelo Pacto no cotidiano das práticas de alfabetização. Nesse

sentido, o objetivo deste trabalho é refletir até que ponto as estratégias de formação

vivenciadas no PNAIC contribuíram para a melhoria das práticas de leitura desenvolvidas na

escola pelas professoras alfabetizadoras.

A formação de Professores Alfabetizadores PNAIC foi desenvolvida durante o ano de

2013. Nessa formação, atuamos como formadoras dos Orientadores de Estudos Estado da

Paraíba. Os orientadores de estudo tinham como função realizar a formação com os

professores dos municípios e acompanhar os resultados da aprendizagem. O processo de

formação continuada ocorreu durante todo o ano letivo com a participação de 43 orientadores

de estudo de dezoito municípios. Durante este período, tivemos a oportunidade de refletir

sobre as seguintes temáticas: currículo inclusivo; planejamento e organização de rotina na

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 24

alfabetização; o último ano do ciclo de alfabetização; vamos brincar de reinventar histórias; o

trabalho com diferentes gêneros textuais em sala de aula; diversidade e progressão escolar;

alfabetização em foco – projetos didáticos e sequências didáticas em diálogo com os

diferentes componentes curriculares; a heterogeneidade em sala de aula e a diversificação das

atividades; progressão escolar e avaliação o registro e a garantia de continuidade das

aprendizagens no ciclo de alfabetização. É importante destacar, que os orientadores de

estudos realizaram a formação em seus municípios com os professores alfabetizadores,

trabalhando com as temáticas supracitadas realizadas em 09 encontros, com duração de 08

horas cada.

O ensino da leitura na sala de aula

Acreditamos que é necessário planejamento por parte dos professores na organização

do trabalho pedagógico de forma que promovam atividades que ajudem as crianças a

desenvolverem habilidades de ler e compreender textos. Por esse motivo, julgamos pertinente

refletir sobre o ensino de leitura, ainda que sucintamente.

Adotamos a concepção de leitura enquanto interação, como uma atividade interativa

entre o autor e o leitor, mediada pelo texto. Nesta perspectiva, o leitor não assume um papel

passivo diante do material escrito, antes, atua sobre ele na busca pela construção do sentido

daquilo que lê. Ou seja, a leitura não pode ser entendida sem considerar a compreensão do

texto, pois se não há a compreensão do material lido, houve apenas um processo de

decodificação. (ALBUQUERQUE; SANTOS, 2007)

A prioridade no trabalho com a leitura na escola tem sido a decodificação, isto é, a

escola tem investido em um ensino que tem como objetivo instruir as crianças na

aprendizagem do sistema de escrita alfabética, deixando os outros aspectos em segundo plano.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN/LP, 1997) postulam que

qualquer leitor mais experiente que consegue analisar sua própria leitura percebe que a

decodificação é apenas um dos procedimentos utilizados quando se lê.

Nesse sentido, o ensino/aprendizagem de estratégias de leitura é essencial para que o

aprendiz desenvolva uma leitura proficiente. Solé (1998) ao discorrer sobre a importância

dessas estratégias, explica que são operações regulares para abordar o texto, e destaca que elas

podem favorecer a compreensão textual. Tais estratégias podem ser cognitivas (operações

inconscientes) e metacognitivas (passíveis de controle consciente). Ainda de acordo Solé

(1998), esse momento em que o leitor monitora sua leitura, pode ser entendido com um

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 25

“estado estratégico’, caracterizado pela necessidade de aprender, de resolver dúvidas e

ambiguidades de forma planejada e deliberada [...]”. Para isto, o leitor faz uso das estratégias

metacognitivas. Estas, conforme Kleiman (1997, p.50), são “operações (não regras),

realizadas com algum objetivo em mente, sobre as quais temos controle consciente, no sentido

de sermos capazes de dizer e explicar a nossa ação.” Cabe ressaltar que não é o fato de possuir

um grande repertorio de estratégias que levará o leitor a entender um texto, mas é necessário,

sobretudo, saber usá-las, pois estas se constituem como um caminho para atingir a

compreensão. (COUTINHO 2004)

Ensinar os alunos a utilizarem estratégias de compreensão leitora deve ser tarefa

primordial no ensino da leitura desde a educação infantil, antes mesmo das crianças

aprenderem a ler convencionalmente. (COUTINHO 2004; BRANDÃO, 2006). Como bem

coloca as autoras supracitadas, desde cedo, uma criança é capaz de dominar a língua com

bastante propriedade, mesmo que ainda não esteja alfabetizada, ela é capaz de compreender

aquilo que alguém lê para ela, considerando á adequação do texto à sua idade. Nesse

processo, a criança mobiliza e, ao mesmo tempo amplia seus conhecimentos linguísticos

relativos tanto ao funcionamento da língua, quanto ao vocabulário. Kleiman (1997, p. 60),

acrescenta que “quando o aluno ainda não é proficiente na leitura, é na interação que se dá a

compreensão”. Nesse sentido, Brandão (2006) aponta com muita propriedade, como deve ser

o ensino da leitura antes mesmo da alfabetização propriamente dita.

(...) desde a educação infantil, devemos ensinar nossos alunos a ler como alguém

que tenta montar um quebra cabeça. Desse modo, estaremos formando um leitor

que, diante de qualquer texto, procura encontrar e construir elos entre as peças,

identificando pistas para relacionar as partes, com vistas a elaborar um todo

coerente: uma imagem que faça sentido e que possa, afinal, ser interpretável e

compreendida. (p.74)

Portanto, é necessário que haja um investimento diário na sala de aula, por parte dos

professores, no ensino das estratégias de compreensão leitora, aliadas ao domínio ensino do

sistema de escrita alfabética e ao trabalho de produção diversos gêneros orais e escritos para

que os alunos se tornem alfabetizados e letrados.

Sabemos que os materiais didáticos e as práticas pedagógicas refletem diferentes

concepções de ensino-aprendizagem da língua materna. A importância do planejamento para

o ensino dos eixos do componente curricular Língua Portuguesa está inserida na perspectiva

de que esta é uma atividade que antecede a um ato intencional. A rotina escolar, nessa

dimensão, passa a ser um momento de escolhas e decisões didáticas e pedagógicas baseadas

na reflexão sobre como agir e sobre as suas possibilidades.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 26

Nesse sentido, a Leitura Deleite pode ser uma estratégia eficiente para favorecer o

gosto pela leitura, porque pode promover uma aproximação das crianças com o mundo

letrado, mesmo quando ainda não sabem ler. Tal atividade pode contribui para ampliar a

visão do mundo, estimular o desejo de outras leituras, nessa atividade, o professor pode

desenvolver com as crianças estratégias de leitura que ajudem a compreender o texto. Assim,

na rotina da sala de aula, seja qual for à idade dos alunos é fundamental que sejam garantidos

momentos diários de leitura pelo professor e pelas crianças.

A leitura deleite na rotina da sala de aula

Durante o ano nos encontros de formação continuada PNAIC uma das atividades

permanentes vivenciadas foi a “leitura deleite”, tal atividade, tinha como objetivo ler por

prazer, era feita como sugestão para que a leitura fosse realizada pelas professoras

diariamente em suas classes, tinha como finalidade incentivar nas crianças o gosto pela

leitura.

Neste trabalho, estamos apresentando a inserção da leitura deleite como estratégia

eficaz proposta pelo PNAIC, cujos resultados foram comprovados nos relatos de experiências

produzidos pelas orientadoras de estudo no final do ano letivo sobre os resultados da

formação e as repercussões na sala de aula.

O relato de experiência produzido por uma orientadora de estudo do município de

Campina Grande-PB traz o seguinte depoimento e de uma professora sobre inserção da leitura

deleite:

A professora contemplou os resultados positivos da realização de um trabalho

sistemático com a literatura infantil em sua sala de aula. Sabendo que a leitura

deleite se tratava de uma atividade diária, a professora passou a ler para seus alunos

e propiciar momentos de exploração dos livros do acervo disponibilizados pelo

Pacto. Os alunos internalizaram a rotina de leitura deleite e se encantaram pelo

fantástico mundo da literatura. Foi criado um colorido cantinho da leitura no final da

sala, lugar disputado pelos alunos que encontravam além dos livros, pensamentos

acerca do mundo da leitura.

A professora estabelecia metas de leitura, incentivando os alunos a ler; realizava

locações para que durante os finais de semana, os alunos não ficassem sem ler em

suas casas. Nesse período, a professora promoveu atividades de escrita a partir dos

livros lidos nas quais os alunos tiveram a oportunidade de opinar e até criar outros

finais para a história, como foi o caso do livro “A Pipa e a Flor”. A docente elaborou

cartazes com os livros preferidos da turma, organizou e apresentou gráfico de barras

registrando o quantitativo de livros lidos pelos alunos da turma, fazendo uma

interdisciplinaridade com matemática, realizou ainda, preenchimento de fichas de

leitura de pelo menos um livro bimestralmente (o livro preferido), promoveu

atividades de recontos orais e escritos dos livros do acervo enviado pelo MEC.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 27

Com esse trabalho, os alunos envolveram-se em virtude da motivação recebida da

parte da docente e também dos próprios colegas, que entusiasmados relatavam suas

experiências com a leitura, a ponto de adentrarem a sala de aula querendo saber qual

seria a leitura deleite do dia, apresentando no olhar o brilho de quem havia

descoberto o prazer que os livros proporcionam aos leitores!

Toda a comunidade escolar percebeu e avaliou de forma positiva o trabalho da

professora que emocionada, faz menção aos comentários feitos pelas mães dos

alunos, especialmente dos que inicialmente não conheciam nem as letras.

A gestão da escola acompanhou o trabalho das docentes atendidas pelo Pacto e

salientou a satisfação com os resultados obtidos pelos alunos.

Em visita à escola, tivemos a oportunidade de ver a socialização dos trabalhos

desenvolvidos na turma, tivemos um retorno do nosso trabalho como orientadora de

estudo ao contemplar a transposição didática do que é estudado nos encontros de

formação para a sala de aula. (Na ocasião, gravamos vídeos com o depoimento da

gestora escolar, professora, e mães de alunos). Foi muito gratificante ver o brilho

nos olhos das crianças ao expressar quantas aprendizagens conquistaram neste ano!

O que motiva tanto à professora, quanto a nós que ora desenvolvemos a atividade de

orientadora de estudos. (relatório da orientadora de estudo de Campina Grande-PB)

Outra experiência relatada por uma orientadora de estudos do Município de Caturité-

PB, mostra uma sequencia de atividades que foi desenvolvida em uma escola pública a partir

de uma leitura deleite que teve como objetivo proporcionar aos alunos momentos de leitura,

de alegria e fantasia possibilitando o enriquecimento do hábito de ler, reservado na rotina

semanal, como atividade permanente, a leitura deleite teve como intuito enfatizar os eixos:

leitura e oralidade. O relato produzido pela orientadora traz o seguinte depoimento da

professora:

A leitura deleite do livro “Eu sou o mais forte” de Mário Ramos teve como objetivo

principal despertar nos alunos o hábito da leitura, bem como, desenvolver estratégias

de leitura necessárias para a compreensão de textos lidos, formando assim leitores

proficientes. Como essa leitura despertou grande interesse nos alunos, elaborei uma

sequência didática com o objetivo de enfatizar alguns direitos de aprendizagem nos

eixos da leitura e da oralidade. Percebi neste processo, um grande interesse por parte

dos alunos em relação à leitura, o que facilitou muito a inserção dos mesmos nas

atividades propostas. Sem dúvida a aprendizagem tornou-se mais significativa com a

participação efetiva de todos os alunos da turma. A sequência didática realizada

organizou-se do seguinte modo:

No primeiro momento, apresentei o livro “Eu sou o mais forte” de Mário Ramos,

mediante a discussão oral para levantamento de hipóteses sobre o assunto tratado no

texto. Depois abordei informações importantes como: título, autor, ilustrador e

editora. Tais procedimentos auxiliam na concentração e a atenção das crianças em

relação ao texto a ser lido. Prosseguindo, promovi uma roda de contação de história

e foi feito os seguintes questionamentos sobre o personagens o “lobo”: onde vive?

Quais são suas características? Se conheciam outras histórias em que o lobo

aparece? Todos respondiam e discutiam oralmente e assim os alunos expressavam

os conhecimentos prévios sobre a personagem do lobo fazendo inferências ao texto

apresentado.

Após a roda de contação de história trazidas pelas crianças, fiz a leitura do título e da

história: “Eu sou o mais forte” para a comprovação das hipóteses levantadas pelos

alunos ao mesmo tempo em que eles iam prevendo outras. Assim, fiz

questionamentos antes, durante e após a leitura. Uma das hipóteses que me chamou

atenção foi: “vai aparecer o caçador para acabar com o lobo”. Com isso, todos

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 28

ficaram atentos aguardando a confirmação dessa hipótese que no final da história

não é confirmada.

Esses procedimentos metodológicos os levam a desenvolver estratégias de leitura

como a antecipação e o conhecimento prévio. Além disso, observei o quanto às

crianças participam do momento da leitura com entusiasmo.

Finalizando o primeiro momento, os alunos relataram oralmente o final da história

lida, apontando que “o lobo que queria ser o mais forte do bosque se deu mal ao dar

de cara com um animal mais feroz que ele um dragão”.

No segundo momento, sentamos em círculo no cantinho da leitura retomei a história

através do reconto oral da história: ‘Eu sou o mais forte” e logo após distribui o

texto fatiado, em duplas e solicitei que os alunos colassem a narrativa no mural

observando a sequência lógica e temporal da história e, ao mesmo tempo fazia a

leitura da fatia colada.

Nessa atividade, observei a interação entre os alunos, pois os que já liam com

fluência ajudava os que tinham dificuldades. Encerrando o segundo momento,

propus a turma a dramatização do livro: “Eu sou o mais forte”. Todos demonstraram

muito interesse e logo dizia que personagem queria representar. Houve uma grande

disputa pela personagem do lobo.

Iniciando o terceiro momento, realizei a escolha dos personagens que cada um iria

representar. Em seguida, sentamos no cantinho da leitura e realizamos a leitura

compartilhada do livro: “Eu sou o mais forte” neste momento cada criança leu uma

parte do texto em voz alta. Por fim, caracterizados com os respectivos personagens,

os alunos dramatizaram a leitura (Eu sou o mais forte), inclusive fizeram uma

apresentação no seminário final do PNAIC, com muita alegria, fantasia, imaginação

e entusiasmo! ( relato de uma professora contido no relatório da orientadora de

estudo de Caturité-PB)

Ao desenvolver essa sequência didática a partir de uma leitura deleite a professora

avaliou o resultado como satisfatório uma vez que conseguiu fazer com que as crianças

realizassem diversas vezes a leitura de um mesmo livro, sem que em nenhum momento se

recusassem a realizá-las. Sendo assim, as estratégias utilizadas foram eficientes para que os

alunos vivenciassem todas as atividades aprendendo com satisfação.

Considerações finais

Neste trabalho, tivemos como finalidade refletir até que ponto as estratégias de

formação vivenciadas no PNAIC contribuíram para a melhoria das práticas de leitura

desenvolvidas na escola pelas professoras alfabetizadoras.

Com base nos dados analisados, foi possível perceber nos relatórios produzidos pelas

orientadoras de estudos que a formação permitiu momentos de reflexão em relação à prática

pedagógica contribuindo para a implantação de mudanças significativas no cotidiano da sala

de aula, sobretudo nos planejamentos das aulas e na organização da rotina pedagógica.

Nos relatos apresentados sobre a inserção da leitura deleite na rotina diária das classes

de alfabetização de textos literários indicaram que tal atividade, proporcionou o

desenvolvimento do gosto pela leitura nas crianças, uma vez que as próprias ações das

professoras e suas rotinas diárias com o uso dessas leituras favoreceram o processo ensino e

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 29

aprendizagem. Foi ainda, o ponto de partida de sequencia de atividades que tiveram a leitura

como eixo principal.

Referências

BRANDÃO, A. C. O ensino da compreensão e a formação do leitor: explorando as estratégias

de leitura. In: BARBOSA, M. L. Práticas de leitura no ensino fundamental. Belo Horizonte:

Autêntica. 2006.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua

Portuguesa. – Brasília. 1997.

COUTINHO, M. L. Praticas de leitura na alfabetização de crianças: o que dizem os livros

didáticos? O que fazem os professores? Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de

Pós-graduação em Educação. Universidade Federal de Pernambuco. 2004.

KLEIMAN, A. B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática

social da escrita. Campinas: Mercado de Letras. 1995.

KLEIMAN, A. B. Oficina de leitura. São Paulo: Pontes. 1997.

RAMOS, M. Eu sou o mais forte. São Paulo: Martins Fontes. 2005

SOLÉ, I. Estratégia de leitura. Porto Alegre: ArtMed. 1998.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 30

GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA

EXPERIÊNCIA DE LETRAMENTO LITERÁRIO [Voltar para Sumário]

Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL)

O professor no universo das TICs

O mundo contemporâneo trouxe uma série de novos recursos fascinando a todos os

que têm acesso a eles: computadores, tablets e smartphones atraem com inúmeros aplicativos,

a Internet promove viagens virtuais fascinantes. Tais recursos são vistos por muitos

professores como vilões que distanciam o aluno do ato de estudar, são imagens que tornam a

leitura algo raro e desinteressante no cotidiano, são pesquisas irreais que se limitam ao copiar

e colar.

Entre esses docentes, muitos lecionam literatura e reclamam que os alunos não gostam

de ler, limitam-se a coletar resumos na Internet, repudiam os clássicos, têm um vocabulário

limitado. Inúmeros afirmam que a escrita abreviada da Internet é uma afronta à língua, que

homepages servem como um arquivo de trabalhos já prontos do qual o aluno apenas copia o

que deve ser entregue como atividade para nota sem nem mesmo ler, que os computadores,

tablets e smartphones afastam o jovem da leitura.

Entretanto, essa visão é enganosa, pois computadores, tablets e smartphones têm

criado inúmeros leitores, não o leitor escolar da literatura dissociada do cotidiano, alheia às

preferências individuais, mas um leitor dinâmico que cria novos caminhos, passeia pelos

textos, escolhe o que deseja ler: o leitor do hipertexto.

Esse novo leitor exige um novo professor, o qual retire a máscara do preconceito de

que as redes sociais e toda a Internet dificultam a aprendizagem da língua e da literatura – e

passe a encarar as TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) como aliadas, como um

recurso eficiente para o letramento literário.

Temos possibilidades imensas de pesquisa na rede mundial de computadores;

inúmeros aplicativos voltados à leitura, jogos apoiados em estratégias que necessitam de um

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 31

alicerce em textos trazidos em cada uma de suas fases; redes sociais em que a interação ocorre

basicamente pela leitura; comunidades de leitores nas redes sociais; para que esse universo

passe a ser aliado da educação, basta haver a vontade de inserir esse novo mundo ao

construído na sala de aula, pensar não na imposição da leitura única dos clássicos, na aula de

história da literatura, no desrespeito ao gosto e na avaliação mecânica dos resumos para

pensar num ensino que una esse novo recurso ao respeito, à multiplicidade de leituras, de

gêneros, ao prazer de ler.

As TIC podem ser aliadas no processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura e a

leitura algo muito mais atraente para o discente, inserindo-a no mundo de que ele gosta.

Lembremos que a associação do novo à literatura pode criar um inovador e fascinante mundo

para o aluno: por que o docente deve começar o Mal-do-século (Segunda Geração do

Romantismo Brasileiro) com um texto de Álvares de Azevedo, tão distante do aluno – pela

linguagem do século XXI, se pode discutir inicialmente o estado de alma romântico e partir

de Exagerado de Cazuza para falar do sentimento de autodestruição e de um amor exacerbado

e idealizado. Isso, certamente, agradaria mais o aluno e o convidaria a navegar pelo texto.

Igual efeito a Internet (com as redes sociais, as homepages e os inúmeros aplicativos para

tablets e smartphones) pode trazer ao ensino da literatura e consequentemente à formação do

leitor.

A educação há muito se preocupa com a construção do conhecimento a partir da

realidade do aluno, assim, se as TIC são parte dessa realidade, deve-se vê-las como aliadas. O

professor, nesta nova realidade, precisa saber orientar os educandos sobre onde colher

informação, como tratá-la e como utilizá-la. Esse educador será o encaminhador da

autopromoção e o conselheiro da aprendizagem dos alunos, ora estimulando o trabalho

individual, ora apoiando o trabalho de grupos.

Gêneros digitais e ensino

Discutiremos o papel das TIC e dos gêneros digitais para o ensino da literatura, será

uma breve análise das tecnologias da informação e comunicação no ambiente escolar como

recurso fundamental do processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura algo mais

próximo da realidade do aluno e mais prazeroso, fazendo do ato de ler algo sempre atual e

encantador, contribuindo para o letramento literário e facilitando o trabalho docente.

O acesso à Internet e a disseminação do uso das TIC estão provocando uma revolução

no conhecimento. A forma de produzir, armazenar e disseminar a informação está mudando;

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 32

um enorme volume de fontes de pesquisas é aberto aos alunos pela rede, bibliotecas digitais

em substituição às publicações impressas e os cursos à distância, por videoconferências ou

pela Internet, são hoje uma realidade.

Essa revolução precisa ser inserida na escola, em especial se pensarmos no ensino de

literatura, pois a Internet está possibilitando a adolescentes um maior contato com a leitura e a

escrita. Eles passam horas diante da tela, conversando nos bate-papos, redigindo postagens

para as redes sociais, escrevendo e lendo e-mails, visitando sites. Utilizar este gosto pela

navegação pode proporcionar ao aluno “um novo encontro com a literatura” (FREITAS,

2003, p. 170).

A Internet, o computador, os tablets e smartphones podem, portanto, ser aliados no

processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura e a leitura algo muito mais atraente para

o discente, inserindo-a no mundo de que ele gosta. Lembremos que a associação do novo à

literatura pode criar fascinante mundo para o aluno, contribuindo para o hábito de leitura tão

desejado pelos professores.

Sabemos que essa preocupação com a formação do gosto e o hábito de leitura é

fundamental para o ensino de literatura. Incentivar a iniciação à pesquisa bibliográfica, por

meio da adequação do material de leitura à clientela escolar é objetivo frequente nos

planejamentos e a Internet é uma importante aliada para se atingir tal objetivo.

Sendo a escola um espaço privilegiado de interação social, ela deve integrar-se aos

demais espaços de conhecimento hoje existentes e incorporar os recursos tecnológicos e a

comunicação via redes, permitindo fazer as pontes entre conhecimentos se tornando um novo

elemento de cooperação e transformação.

Tal incorporação da Internet, das TIC, à escola gera uma ampla discussão sobre o

possível impacto do uso de dispositivos técnico-informacionais (como os tablets,

computadores e smartphones) na estrutura educacional, mas um ponto é fundamental: a

necessidade da criação de uma cultura educativa que integre os instrumentos, tanto no nível

da concepção quanto no da prática, considerando a complexidade da relação entre os

instrumentos informáticos e os conhecimentos e técnicas utilizadas pelo docente.

Para essa integração, no caso específico do ensino de literatura e da formação do

leitor, nosso foco nessa discussão, torna-se necessário discutir a questão dos gêneros textuais

que emergiram a partir da revolução do conhecimento que a tecnologia proporcionou.

A questão dos gêneros é bastante ampla e para comentá-la temos de pensar primeiro

de onde provêm os gêneros? Para Todorov (1981), a resposta é que vêm simplesmente de

outros gêneros. Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 33

antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação. Um texto atual deve tanto à poesia

quanto ao romance do século XIX. Nunca houve literatura sem gêneros; é um sistema em

contínua transformação. Saussure não afirmara: “O problema da origem da linguagem não é

outro senão o de suas transformações”?

Assim, podemos afirmar que a Internet nos trouxe novos gêneros, mas eles não são tão

variados assim, pois partem de outros já consolidados. Entretanto são importantes, são

frequentes no cotidiano do alunado e podem contribuir para a formação do leitor que, pelo

contato com estes e com outros gêneros, construirá um repertório de leitura que possibilitará a

análise e a crítica, além do reconhecimento de outros gêneros.

Lembremos que, para Todorov (1981), os gêneros existem como instituição,

funcionam como horizontes de expectativa para os leitores e como modelos de escritura para

os autores. Por um lado, os autores escrevem em função do sistema genérico existente, aquilo

que podem testemunhar no texto e fora dele, ou, até mesmo entre os dois. Por outro lado, os

leitores leem em função do sistema genérico que conhecem pela crítica, pela escola, pelo

sistema de difusão do livro ou simplesmente por ouvir dizer; no entanto, não é necessário que

sejam conscientes desse sistema.

Observamos, pois, que a diversidade de gêneros na escola, e não escolares (como a

redação escolar ou o livro didático), é fundamental para o ensino de literatura. As TIC, a

Internet em especial, como recurso didático são importantes, pois podem proporcionar um

contato com diversas modalidades textuais o que é defendido pelos PCN (Parâmetros

Curriculares Nacionais – publicados em 1997 – foram elaborados por equipes de especialistas

ligadas ao Ministério da Educação, têm por objetivo estabelecer uma referência curricular e

apoiar a revisão ou a elaboração da proposta curricular dos sistemas de ensino no Brasil e,

segundo o Ministério, visa à educação básica de qualidade).

A necessidade de trazer um amplo número de textos e modalidades textuais para a

escola, para a qual a Internet é aliada, faz-se presente não apenas por ser uma indicação dos

PCN, mas por ser a língua um organismo vivo, por ser um leitor completo aquele que

consegue passear pelos diversos gêneros, compreendê-los e efetuar realmente a comunicação.

Nesse sentido, é importante lembrarmos o pensamento de Bakhtin.

Perceber a utilização da língua como um processo com heterogêneas e múltiplas

maneiras de realização é fundamental para a compreensão do ponto de partida proposto por

Bakhtin para conceituar gênero do discurso. Para ele, o ser humano em quaisquer de suas

atividades serve-se da língua a partir do interesse, intencionalidade e finalidade específicos

dela, realizando enunciados linguísticos de maneiras diversas. A essas diferentes formas de

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 34

incidência dos enunciados, o autor denomina gêneros do discurso, porque “cada esfera de

utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN,

2000, p. 277).

É válido comentarmos que essa relativa estabilidade, inerente ao gênero, chama a

atenção e deve ser compreendida como algo passível de alteração, aprimoramento ou

expansão. Tratando-se de linguagem, modificações podem ocorrer em função de

desenvolvimento social, de influências culturais, ou de outros tantos fatores com que a língua

tem relação direta. Ciente do caráter inesgotável das atividades humanas e seu constante

processo de evolução, torna-se impossível definir quantitativamente os gêneros, que se

diferenciam e se ampliam em seu uso.

Um dos aspectos marcantes dos gêneros, que alude de forma direta à questão do uso é

o fato de que devemos considera-los como um meio social de produção e de recepção do

discurso. Para classificar determinado enunciado como pertencente a dado gênero, é

necessário verificarmos suas condições de produção, circulação e recepção. É relevante

observar que o gênero, como fenômeno social, só existe em determinada situação

comunicativa e sócio-histórica; caso modifiquemos tais condições, é possível que um mesmo

enunciado passe a pertencer a outro gênero.

Bakhtin, com sua proposta de conceituação para os gêneros do discurso veio suprir a

necessidade de se compreender os enunciados como fenômenos sociais, resultantes da

atividade humana, caracterizados por uma estrutura pilar básica, suscetível a determinadas

modificações. Um gênero do discurso é parte de um repertório de formas disponíveis no

movimento de linguagem e comunicação de uma sociedade.

Indissociável da sociedade e disponível em sua memória lingüística, o domínio de um

gênero permite ao falante prever quadros de sentidos e comportamentos nas diferentes

situações de comunicação com as quais se depara. Conhecer determinado gênero significa ser

capaz de prever regras de conduta, seleção vocabular e estrutura de composição utilizada. É

essa competência sociocomunicativa dos falantes que os leva à detecção do que é ou não

adequado em cada prática social.

A vivência das situações de comunicação e o contato com os diferentes gêneros

exercitam a competência linguística do indivíduo. A saber: competência lingüística é um

conceito aprofundado, que possui certa complexidade, mas que aqui será recortado no sentido

de que todos nós somos aptos a, perante determinada estrutura e contexto, definir a qual

categoria um dado enunciado pertence. Essa competência é inerente ao ser humano social, que

interage, comunica, cria e recria. Na medida em que um indivíduo avança em grau de

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 35

escolaridade, tende a tornar-se cada vez mais proficiente na operacionalização de variadas

categorias textuais. Da mesma maneira, experiência de vida e cultura geral fazem evoluir

linguisticamente os falantes.

Sendo assim, é fundamental percebermos o gênero como um produto social e como

tal, heterogêneo, variado e suscetível a mudanças. Devido à heterogeneidade dos gêneros do

discurso, resultado da infinidade de relações sociais que se apresentam na vida humana,

Bakhtin optou por dividir os gêneros em dois tipos: primário e secundário.

Os chamados gêneros primários são aqueles que emanam das situações de

comunicação verbal espontâneas, não elaboradas. Pela informalidade e espontaneidade,

dizemos que nos gêneros primários temos um uso mais imediato da linguagem (comunicação

imediata, como em uma reunião de amigos).

Nos gêneros secundários, existe um meio para que seja configurado determinado

gênero. Esse meio é normalmente a escrita. Logo, se há meio, dizemos que há relação mediata

com a linguagem, há uma instrumentalização. O gênero funciona como instrumento, uma

forma de uso mais elaborada da linguagem para construir uma ação verbal em situações de

comunicação mais complexas e relativamente mais evoluídas: artística, cultural, política.

Esses gêneros chamados mais complexos absorvem e modificam os gêneros primários.

Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários,

transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua

relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados

alheios.. (BAKHTIN, 2000, p.281)

Para melhor compreensão do fenômeno de absorção e transmutação dos gêneros

primários pelos secundários, Bakhtin traz como exemplo uma carta ou um diálogo cotidiano,

os quais, quando inseridos em um romance, desvinculam-se da realidade comunicativa

imediata, só conservando seus significados no plano de conteúdo do romance. Ou seja, não

são mais atividades verbais do cotidiano, e sim de uma atividade verbal artística, elaborada e

complexa. É importante lembrarmos que a matéria dos gêneros primários e secundários é a

mesma: enunciados verbais, fenômenos de mesma natureza. O que os diferencia é o grau de

complexidade e elaboração em que se apresentam.

Se os gêneros primários e secundários partem de uma mesma matéria, podemos

afirmar: os gêneros que emergiram a partir do advento da Internet também a utilizam e,

portanto, precisam ser discutidos, para isso as obras Marcuschi e Xavier são utilizadas como

referência.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 36

Para Marcuschi (2004), é certo que a Internet e todos os gêneros a ela ligados são

eventos textuais fundamentalmente baseados na escrita, assim, ela continua essencial apesar

da integração de imagens e de som. Por outro lado, a ideia que hoje prolifera quanto a haver

uma “fala por escrito” deve ser vista com cautela, pois o que se nota é um hibridismo mais

acentuado, algo nunca visto antes, inclusive com o acúmulo de representações semióticas.

As formas textuais emergentes nessa escrita são várias e versáteis. Entre os gêneros

mais conhecidos e que vêm sendo estudados podemos situar pelo menos estes (numa tentativa

de designar e diferenciar tais gêneros): e-mail, bate-papo virtual em aberto (inúmeras pessoas

interagindo simultaneamente, como ocorre nos grupos do WhatsApp), bate-papo virtual

reservado (chat), como acontece no Messenger, do Facebook); bate-papo agendado (ICQ),

algumas universidades utilizam esse recurso para o ensino à distância; aula virtual (interações

com número limitado de alunos tanto no formato de e-mail ou de arquivos hipertextuais com

tema definido em contatos geralmente assíncronos; bate-papo educacional (interações

síncronas no estilo dos chats com finalidade educacional, geralmente para tirar dúvidas, dar

atendimento pessoal ou em grupo e com temas prévios); lista de discussão e fórum.

Entre os mais praticados pelos jovens estão os e-mails, bate-papos virtuais e fóruns.

Em todos esses gêneros a comunicação se dá pela linguagem escrita, vemos assim que é

fundamental aproveitarmos esse recurso como auxiliar na formação do leitor e também na

aula de literatura.

O professor e os gêneros digitais

Todos esses gêneros podem ser utilizados pelo professor como apoio para o ensino de

literatura, podem-se criar perfis de personagens como Capitu, de Machado de Assis, o

discente teria uma interação com a personalidade virtual (o professor responderia às

mensagens); pequenas encenações ou fragmentos de textos literários podem ser publicados

em um blog e discutidos em um fórum; entre outras estratégias que insiram a literatura no

cotidiano discente.

Essa nova interação com o texto literário que a internet pode proporcionar é recurso

eficiente para o letramento literário e para a formação do leitor, por proporcionar o contato

com diversos gêneros: digitais ou não. Sendo eficiente, ela, entretanto, exige um professor que

não se limite ao livro didático ou aos clássicos, mas que se aproprie do conhecimento acerca

desses novos gêneros e os insira em sua prática.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 37

Para Pinheiro (2010), o professor precisa compreender que o estudante de hoje possui

uma lógica de raciocínio e atenção utilizada em várias atividades simultâneas, as tecnologias

proporcionam isso. O professor deve entender a realidade do discente enxergando as coisas

sob a perspectiva dele, caso contrário assumirá uma posição desfavorável em sala de aula e

isso poderá tornar o ensino ineficaz.

Se os gêneros digitais que a Internet proporciona são parte do cotidiano do aluno, o

professor precisa inseri-lo em sua prática como um elemento que proporcione a aprendizagem

e aproxime a literatura de seus discentes. O professor de literatura não será mais um mero

transmissor de conhecimentos, mas será um facilitador do letramento literário.

O professor se transforma agora no estimulador da curiosidade do aluno por querer

conhecer, por pesquisar, por buscar a informação mais relevante. Num segundo

momento, coordena o processo de apresentação dos resultados pelos alunos. Depois,

questiona alguns dos dados apresentados, contextualiza os resultados, os adapta à

realidade dos alunos, questiona os dados apresentados. Transforma informação em

conhecimento e conhecimento em saber, em vida, em sabedoria. (VIEIRA, 2012, p.

6).

Não apenas a leitura, mas a escrita será desenvolvida com a inserção dos gêneros

digitais na prática docente. Vemos em Marcuschi (2004) que a escrita tem fundamental papel

na construção dos gêneros digitais e que nestes há uma interação real. Pensemos nos fóruns de

discussão das redes sociais, em especial o Facebook, amplamente utilizado pelos

adolescentes. Eles podem constituir um bom recurso didático para a formação do leitor.

Nesses fóruns, o participante expõe suas opiniões sobre dado tema e com isso põe em prática

o que Bronckart denomina modalizações.

Bronckart afirma que as modalizações têm “como finalidade geral traduzir, a partir de

qualquer voz enunciativa, os diversos comentários ou avaliações formulados a respeito de

alguns elementos do conteúdo temático”. (BRONCKART, 1999, p. 330)

Portanto, as modalizações pertencem à dimensão configuracional do texto,

contribuindo para o estabelecimento de sua coerência pragmática ou interativa e orientando o

destinatário na interpretação de seu conteúdo temático.

Existem quatro funções de modalização inspiradas na teoria dos três mundos de

Habermas, são elas:

Modalizações lógicas: avaliação de alguns elementos do conteúdo temático apoiada em

critérios elaborados e organizados a partir do mundo objetivo;

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Modalizações deônticas: avaliação de alguns elementos do conteúdo temático apoiada em

valores, opiniões e regras do mundo social;

Modalizações apreciativas: avaliação de alguns aspectos do conteúdo temático, apoiada em

critérios provenientes do mundo subjetivo;

Modalizações pragmáticas: explicitação de alguns aspectos da responsabilidade de uma

entidade constitutiva do conteúdo temático (o narrador, por exemplo).

As modalizações relacionam-se ao gênero a que pertence o texto. É, pois, importante

estudarmos a teoria de Bronckart a fim de que possamos considerar a inserção de variados

gêneros na relação didática uma necessidade para que o aluno conheça as várias

possibilidades de expressão de uma mesma ideia, tornando-se, portanto, um leitor completo,

que reconheça os gêneros e interprete o mundo.

Observa-se que as TIC proporcionam ao jovem um amplo contato com a escrita e a

leitura, sendo aliadas para a formação do leitor, Chartier faz importante afirmação em A

aventura do livro: do leitor ao navegador:

Aqueles que são considerados não-leitores, leem, mas leem coisa diferente daquilo

que o cânone escolar define como uma leitura legítima. O problema não é tanto o de

considerar não-leituras estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de

fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre essas práticas

incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola mas também

sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras leituras. É preciso utilizar

aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte para dar acesso à leitura na sua

plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e mais capazes de transformar a visão

do mundo, as maneiras de sentir e pensar. (CHARTIER, 1998, p. 103-104)

Considerações finais

Como educadores, devemos nos despir dos preconceitos e do lugar comum que diz: as

TIC são um problema, que distanciam o jovem da leitura e vestir a idéia de que elas podem

constituir um aliado na construção do conhecimento.

Para ser esse professor que não se veste de preconceitos, mas utiliza os novos recursos

como aliados, é necessário qualificar-se, conhecer as redes sociais, os gêneros digitais da

internet e familiarizar-se com essa nova linguagem. É necessário mergulhar no mundo dos

adolescentes, conhecer suas leituras, aquilo que faz sucesso entre eles. É fundamental estudar

com profundidade as obras que serão trabalhadas para que se possa aproximá-la do aluno: seja

criando um perfil de personagens nas redes sociais, seja construindo um site, seja num fórum

ou em um bate-papo.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 39

Para isso, as políticas públicas precisam voltar-se à formação e atualização de

professores, de forma que a tecnologia seja de fato incorporada ao currículo escolar, e não

vista apenas como um acessório marginal. É preciso pensar em como incorporá-la ao

cotidiano da educação de forma definitiva.

Podemos afirmar, portanto, que as TIC são importante recurso para a introdução de

inúmeros gêneros textuais na sala de aula, garantindo a diversidade necessária para a

formação de um leitor completo e crítico, para a consolidação do gosto pela leitura e para o

letramento literário tão desejado por docentes em seus planejamentos.

Referências

AZEVEDO, A. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

BAKHTIN, M. A. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BRONCKART, J.P. Atividade de linguagem, textos e discursos: Por um interacionismo

sócio-discursivo. Tradução Anna Rachel Machado. São Paulo: EDUC, 1999.

CHARTIER, Roger. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. São Paulo, SP: Unesp,

1998.

MARCUSCHI, L. A. & XAVIER, A. C. Hipertexto e Generos Digitais: novas formas de

construção de sentido. Rio de Janeiro. Lucerna, 2004.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros Textuais Emergentes no Contexto da Tecnologia Digital.

Texto da Conferência pronunciada na 50ª Reunião do GEL – Grupo de Estudos Lingüísticos

do Estado de São Paulo, USP, São Paulo, 2002.

PINHEIRO, P. P. Direito Digital. 4ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação e do desporto do Brasil.

Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: Autor, 1997.

TODOROV, T. Os Gêneros do Discurso. Coleção: SIGNOS. Edições 70, 1981.

VIEIRA, M. M. Educação e novas tecnologias: O papel do professor nesse novo cenário de

inovações. http://eduemojs.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14359/8641

(Acessível em 08 de junho de 2014).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 40

ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA

CONTEMPORÂNEA: LITERATURA MENOR E

AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E

FERRÉZ [Voltar para Sumário]

Adriano Carlos Moura (IFF)

Introdução

A literatura contemporânea tem-nos apresentado grandes desafios sob a perspectiva

crítica, teórica e cultural. A ausência de modelos predefinidos, a democratização dos meios de

produção, criação e circulação de obras contribuíram para que a literatura passasse a não ser

mais privilégio de uma elite “letrada” e abastada, e se consolidasse também como uma “tarefa

do povo”, que não atua apenas como receptor/leitor, mas também como

autor/produtor/enunciador. Apesar de não serem fenômenos exclusivos da

contemporaneidade, registros coloquiais, regionais e informais, ou seja, uma linguagem não

canônica, se intensificaram nesse período. O “povo” deixou de ser apenas personagem ou

leitor e assumiu a tarefa da autoria.

Este trabalho visa a um estudo de romances de dois autores contemporâneos da

literatura brasileira e portuguesa: Meu nome é legião de António Lobo Antunes e Capão

pecado de Ferréz . Ambos tratam de personagens excluídos social e economicamente. No

entanto, a linguagem do primeiro pauta-se pelo português lusitano legitimado pelo cânone

linguístico e crítico e por uma narrativa fragmentada pelo discurso de vários narradores-

personagens. O segundo, pelo português falado na periferia de São Paulo, estado situado num

país que viveu como “periferia” portuguesa durante quase quatro séculos.

Por meio dos conceitos de “Literatura menor” e “Agenciamento” dos filósofos Gilles

Deleuze e Félix Guattari, pretende-se refletir sobre os processos criativos e composicionais

das obras que compõem o corpus do trabalho, bem como possíveis problemas imbricados na

recepção pelo leitor e pela crítica.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 41

Antes de iniciar o estudo das obras a que se refere o parágrafo o anterior, faz-se

necessário uma exposição dos conceitos nos quais este trabalho se respalda.

Em Kafka por uma literatura menor, escrevem os filósofos: “Literatura menor não é a

de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE e

GUATTARI, 2014, p.35). O conceito de “Literatura menor” de Deleuze e Guattari é

elaborado a partir do estudo que os filósofos fazem da obra do escritor tcheco Franz Kafka,

judeu e alemão, morando em Praga, onde o alemão era uma língua “desterritorializada”,

própria à utilização por “minorias” como ciganos e judeus. Como afirmam os autores, algo

parecido com o uso que os negros norte-americanos fazem do inglês. Pertencer a um grupo

marginalizado e escrever numa língua dominante talvez seja a principal característica desse

tipo de literatura. No caso de Kafka, o alemão era uma língua dominante, mas em Praga, não

tão prestigiada quanto o tcheco. Imagina-se um escritor imigrante, radicado na França,

escrevendo em outro idioma que não o francês, ou num francês “contaminado” pelas

influências de seu idioma de origem.

A “literatura menor” se caracteriza ainda pela ligação do individual ao coletivo

conferindo um caráter político e revolucionário à literatura. Na literatura menor, o ambiente

social não serve apenas de pano de fundo para as situações vividas pelo personagem, mas para

conectá-lo à realidade de tantos outros num projeto de enunciação coletiva ou agenciamento

coletivo de enunciação.

Mas o que seria, então, um agenciamento na concepção deleuziana?

Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos,

um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de

corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de

outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados,

transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical

orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou

reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem.

(DELEUZE e GUATTARI, 2014, p.112)

Como tipos territorializados de agenciamento há as instituições familiares, sociais,

jurídicas, educacionais, religiosas. Em O vocabulário de Deleuze (online), François

Zourabichvili escreve que os agenciamentos sociais são definidos por códigos

preestabelecidos, mas que são frequentemente afetados pelas investidas das ações do

indivíduo, que

aí introduz sua pequena irregularidade, seja porque procede à elaboração

involuntária e tateante de agenciamentos próprios que "decodificam" ou "fazem

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 42

fugir" o agenciamento estratificado: esse é o pólo máquina abstrata (entre os quais é

preciso incluir os agenciamentos artísticos). (ZOURABICHVILI, 2004, p.8)

A literatura é uma máquina abstrata, porquanto se constitui pelos dois tipos de

agenciamento: o de expressão (agenciamento coletivo de enunciação) e de conteúdo

(agenciamento maquínico). Para Deleuze o agenciamento é o objeto por excelência do

romance.

Literatura menor e agenciamento em Capão pecado

Na literatura menor, “tudo toma um valor coletivo” (DELEUZE e GUATTARI, 2014,

p.37). Capão pecado é um livro que, por mais que seja assinado por um autor, Ferréz, trata-se

do resultado de um projeto de enunciação coletiva, em que o português não canônico – a

linguagem de jovens marginalizados da periferia de São Paulo – é o código linguístico

utilizado para produção da obra. Parte dos enunciados que compõem o agenciamento

maquínico de Capão pecado carrega a sintaxe e o léxico de um português bem diferente do

escrito e falado nas academias e na maioria das obras consideradas canônicas. O português é a

“língua maior” por meio da qual se expressam autor e personagens, mas uma língua maior

que comporta inúmeras variantes.

Ora, ocorre que uma língua de literatura menor desenvolve particularmente esses

tensores ou esses intensivos. Wagenbach, nas belas páginas em que analisa o alemão

de Praga influenciado pelo tcheco, cita como características: o uso incorreto de

preposições; o abuso do pronominal; o emprego de verbos curingas ( DELEUZE e

GUATTARI, 2014, p.46).

Se ao analisar o alemão de Praga, o editor e escritor Klaus Wagenbach observa o

hibridismo linguístico em sua composição, além das transgressões às normatizações

gramaticais e sintáticas, o que o filósofo não escreveria sobre o português falado e escrito no

Brasil. Afinal, como bem cantado na letra de Sem tradução do compositor Noel Rosa, “Tudo

aquilo que o malandro pronuncia. Com voz macia é brasileiro, já passou de português”. O

português brasileiro, além de suas raízes europeias, é fortemente afetado pelas línguas

indígenas e africanas. Na fala do brasileiro, dificilmente escuta-se a utilização da ênclise. A

próclise é a forma usual do pronome oblíquo na fala cotidiana, fenômeno já poeticamente

abordado pelo escritor modernista Oswald de Andrade em seu conhecido poema

Pronominais: “Dê-me um cigarro/Diz a gramática/Do professor e do aluno/E do mulato

sabido/Mas o bom negro e o bom branco /Da Nação Brasileira/Dizem todos os dias/Deixa disso

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 43

camarada/Me dá um cigarro.” Além das misturas linguísticas e transgressões normativas, pode-se

afirmar que as variantes resultantes de diferenças regionais, classes sociais e grupos culturais

contribuem para uma formação ainda mais complexa do português falado e escrito no Brasil. No

fragmento a seguir, transcrito de Capão Pecado, percebe-se o uso de palavrões, gírias resultantes

de estrangeirismos, desobediência a normas básicas de concordância verbal, neologismos falados

por jovens ativos nos movimentos de intervenção cultural e musical como o hip hop e o grafite.

- É! O bar do Polícia é o point agora, cê tá ligado? Também, o lava-rápido lá de

perto da igreja fechou; lá dava umas duas mil pessoas, mano.

- O que pegava lá, Burgos, é que o som da equipe tinha uma puta qualidade, aqueles

manos da Thalentos são foda, além do equipamento eles agitam o pessoal pra

caramba.

- É, pode crê, eu vim lá da Funchalense agora, tava tomando umas brejas lá, com os

manos da Sabin. (FERRÉZ, 2013, p. 35)

As intensidades e tensões no interior de uma língua são as possibilidades além dos

limites da própria língua, suas potências sonoras, sintáticas e semânticas. O diálogo transcrito

acima, entre os personagens Zeca e Burgos, é a expressão da realidade sociocultural desses

personagens, moradores de Capão Redondo, um dos bairros mais pobres e violentos da

periferia de São Paulo. Os dois se encontram em um bar movimentado (point), para tomar

umas brejas (cervejas). Nesse bar, Zeca pensa em São Paulo, cidade cosmopolita, considerada

uma das mais badaladas do mundo, e compara a vida dos playboys com a que ele tinha.

No plano linguístico, o parágrafo seguinte apresenta um narrador heterodiegético cuja

língua não parece ser a de seus personagens.“Rael abriu os olhos lentamente, o sol que

entrava pelas frestas das tábuas irritava seus olhos, levantou e foi até a cozinha, onde sua mãe

estava preparando café, ela lhe perguntou algo, mas ele não ouviu direito...” (FERRÉZ, 2013,

p.36) Longe de buscar no narrador a pessoa do autor, porém não ignorando o fato de a língua

utilizada por este refletir-se na daquele, observa-se um abismo linguístico entre narrador e

personagens. Abismo semelhante ao do narrador de Vidas secas e o personagem Fabiano. O

pouco domínio sobre a linguagem formal ou até mesmo sobre a linguagem de maneira geral

talvez impossibilitasse o personagem Fabiano de narrar. Se Ferréz optasse por um narrador

autodiegético e atribuísse a Rael, Zeca ou a Burgos essa função, todo o romance seria escrito

com registro coloquial.

Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é a sua? Ou então não

conhecem mesmo mais a sua, ou não ainda, e conhecem mal a língua maior de que

são forçados a se servir? Problemas dos imigrados, e sobretudo de seus filhos.

Problemas das minorias. Problema de uma literatura menor, mas também para nós

todos: como arrancar de sua própria língua uma literatura menor, capaz de escavar a

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 44

linguagem, e de fazê-la escoar seguindo uma linha revolucionária? (DELEUZE e

GUATTARI, 2014, p.40)

Por mais que o texto de Deleuze e Guattari discorra sobre a obra de Kafka e de uma

realidade política, social e cultural bem diferente da de Ferréz, não é forçoso afirmar que os

que escrevem em um português diferente do prestigiado pelos círculos acadêmicos são ainda

classificados como uma literatura menor, não no sentido deleuziano do termo, mas “menor”

no plano estético da linguagem por meio da qual se expressam. Não fazem literatura. Ou

fazem o que se convencionou chamar de “literatura marginal”.

O professor Napoleão Mendes de Almeida já havia afirmado que a literatura brasileira

morrera com Machado de Assis em 1908, e que escritor é aquele que conhece o idioma, tem

erudição e cultura.

Certamente, o idioma de que fala Napoleão deveria ignorar as variantes regionais,

sociais e culturais, limitando-se à norma padrão. De acordo com Marcos Bagno, em

Preconceito linguístico, Napoleão se recusava a reconhecer Drummond como poeta por este

ter, em seu poema No meio do caminho, usado o verbo ter em vez de haver. Portanto o

preconceito de que trata o linguista em seu livro não se refere apenas aos usuários cotidianos

da língua, mas também aos que pretendem usá-la com fim literário.

O livro é comumente classificado como literatura marginal ou literatura de periferia.

Segundo Deleuze e Guattari, os critérios para a definição de literatura marginal, popular ou

proletária são muito difíceis e subjetivos enquanto não se passe pelo conceito mais objetivo

que é o de literatura menor. Para os filósofos é “a possibilidade de instaurar de dentro um

exercício menor de uma língua mesmo maior, que permite definir literatura popular ou

marginal.” (DELEUZE E GUATTARI, 2014, p. 39).

Mas marginal até quando? Nos anos 70, esse adjetivo era atribuído a uma literatura

praticada por autores – a maioria poetas – cujos textos estavam à margem do projeto

ideológico e financeiro do mercado editorial abalado pela censura da ditadura militar. Esses

poetas apresentavam uma literatura com proposta estética inovadora não apenas sob o ponto

de vista da linguagem, mas também pela forma de circulação. A literatura marginal composta

por Ferréz está além disso, pois, diferente da produzida por escritores oriundos em sua

maioria da classe média, as palavras que compõem a tessitura de Capão Pecado emergem de

um conjunto de vozes também marginalizadas. As partes do romance são abertas por textos

compostos por rappers amigos do autor.

Estar à margem dos bens materiais e culturais, dentre eles a universidade, bibliotecas e

livrarias é a realidade de moradores de bairros como Capão Redondo. Os produtos culturais

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 45

produzidos pelos moradores de regiões como essas são comumente recusados em ambientes

onde impera a cultura considerada de bom gosto: a “literatura maior”. A que quando

transgrede, apenas o faz no plano do conteúdo e da forma, porém linguisticamente se mantém

espelho do seguimento social de onde surge e que dita os parâmetros do que pode ser

considerado literatura, conceito frágil e até hoje objeto de acaloradas discussões em círculos

acadêmicos.

Meu nome é legião – romance o qual analisaremos adiante – também retrata a

realidade de um grupo socialmente excluído, porém a língua falada por seus personagens e

narradores não apresenta as variações e transgressões de Capão Pecado. Os marginalizados

do romance de Antunes estão na capital da língua portuguesa – Lisboa –, sua sintaxe de

concordância e de colocação, assim como seu léxico não têm a diversidade caracterizadora do

texto que ecoa de personagens como Rael e Burgos do romance de Ferréz.

O português ditado pelas gramáticas parece uma língua estrangeira para um número

grande de brasileiros que vivem numa língua que não é sua , porque ignora seu jeito de falar

e de se expressar. Fala oprimida dos que não têm acesso à cultura erudita e acadêmica das

universidades ganha no livro de Ferréz uma postura opressora dos círculos que ignoram o

terceiro mundismo linguístico dos moradores de áreas marginalizadas como Capão Redondo

(SP). Para Deleuze e Guattari, o uso transgressor que escritores e outros artistas podem fazer

da língua é uma saída para a linguagem, para a música, para a escrita. Esses autores devem

servir-se do polilinguismo de sua língua (2014).

Agenciamento e rizoma em Meu nome é legião

Meu nome é legião, romance publicado em 2007 pelo escritor português António Lobo

Antunes, conta a história de oito garotos entre 12 e 19 anos, que roubam dois carros e

praticam crimes em um bairro afastado de Lisboa. Os três primeiros capítulos são narrados

por Gusmão, policial em fim de carreira, como se fosse um relato policial. No entanto, outros

personagens – que têm algum tipo de relação com os criminosos – assumem também o papel

de narradores, e suas vozes se sobrepõem umas às outras transformando a narrativa num

mosaico polifônico e rizomático.

No começo do livro, tem-se a impressão de que Gusmão, metalinguisticamente,

assumirá a função de autor. Chega-se a acreditar que o romance seguirá a forma de um relato

policial e que o autor se valerá desse personagem para levar adiante seu projeto narrativo,

apagando-se sob o simulacro do narrador, como faz Clarice Lispector com seu Rodrigo S.M.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 46

em A hora da estrela. Porém a palavra é tomada por uma prostituta de cinquenta anos que é

amante de um dos garotos. E da prostituta a palavra é tomada pelo pai de outro menino e

depois pela irmã e a mãe de outro. Em vários trechos do romance não se sabe exatamente a

quem pertence os enunciados, pois o discurso de cada narrador é entrecortado pelas vozes e

discursos de outros micronarradores que emergem de suas lembranças, presentificando-se na

narrativa tal qual fantasmas, dificultando ao leitor, a identificação do narrador/autor que as fez

emergir. Dessa forma, por meio dos personagens, não se consegue facilmente buscar o

narrador que media seus discursos. Se Gusmão redige o inquérito policial, ele é o autor

ficcional deste texto. Porém o narrador faz a seguinte revelação a seu leitor:

desde que comecei a escrever se é que pode chamar-se escrever ao que faço, já

garanti ser uma voz que dita umas ocasiões tão depressa que não a acompanho e

outras silencio horas a fio e eu de bico no papel” (ANTUNES, 2007, p.122).

Talvez, neste ponto, personagem/narrador tangencie o escritor, que também afirma

não ser o autor do que escreve atribuindo isso a uma voz desconhecida.

A Lisboa retratada em Meu nome é legião é uma capital de imigrantes africanos e

mestiços, que sofrem com o racismo e a discriminação. Sem panfleto, Lobo Antunes, ou a voz

a que narrador/personagem/ autor se refere, por meio de arranjos poéticos como “os mestiços

não choram porque o mecanismo das lágrimas não nasceu com eles que vantagem, dividem

tripas no seu idioma de consoantes compridas”, denuncia como vive a população pobre e

periférica da capital portuguesa.

Meu nome é legião é o agenciamento por excelência. Não narrador, mas uma

multiplicidade deles, com vozes que se entrecruzam, se complementam, se contradizem ou se

repetem para contar a história dos garotos delinquentes e de seus crimes. Enunciados que

agem uns sobre os outros, ou corpos que agem uns sobre os outros para ser mais preciso em

terminologia deleuze-guattariana, peças da grande máquina que é o romance, cujas

engrenagem são, além dos personagens-narradores, seu autor, Lisboa, os problemas dos

imigrantes e miseráveis lisboetas.

Para Deleuze e Guattari “a enunciação literária a mais individual é um caso particular

de enunciação coletiva” (DELEUZE e GUATTARI, p. 152). Afirmar-se não ser ele o autor do

romance, mas que este resulta de vozes que lhe ditam o que escreve, coloca Lobo Antunes na

posição de um autor que se assume como parte de um agenciamento coletivo de enunciação e

não como senhor dos enunciados; ao ponto de o livro parecer um ser autônomo.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 47

Mesmo aquele que tem a infelicidade de nascer no país de uma grande literatura

deve escrever em sua língua como um judeu tcheco escreve em alemão, ou como um

uzbeque escreve em russo. Escrever como um cachorro que faz seu buraco, um rato

que faz sua toca. (Ibdem)

Assim é a escrita de Lobo Antunes, como a de um cachorro que cava seu buraco, nos

quais insere suas construções metafóricas e sintáticas inovadoras. Os enunciados do romance

em inúmeros trechos não se completam, porque o diálogo entre os personagens é sempre

entrecortado por lembranças, anacolutos, frases incompletas, dificuldades com a linguagem e

com a comunicação. Ler Meu nome é legião é como estar em uma sala com mais de dez

pessoas falando ao mesmo tempo.

São outras vozes que oiço, finados de antes do meu nascimento num português de

pretos porque somos pretos e não temos um lugar que nos aceite salvo figueiras

bravas e espinhos, se contasse das vozes ao meu marido por mais que se inclinasse

para o chão (e inclinar-se-ia para o chão coitado).

Não entendia senão o vento nas ervas (ANTUNES, 2007, p. 153)

No trecho acima, tem-se o depoimento da mãe de um dos garotos presos, moradora de

um bairro de imigrantes e portugueses negros na periferia de Lisboa. Um bairro, assim como

Capão Redondo, abandonado pelas políticas do Estado e vítima da violência policial. O que

aproxima o texto de Antunes do conceito de “Literatura menor” é o fato de o autor permitir

que seus personagens falem sem mediações, criando com isso uma língua totalmente

agramatical e assintática. Conteúdo e expressão são determinados sempre de forma inovadora,

já que a possibilidade de criar enunciados novos é uma característica da literatura menor. No

caso de Antunes, feito numa “língua maior” sem a diversidade linguística de Capão pecado.

Para Lobo Antunes, cada livro representa uma experiência nova com a escrita,

perseguindo formas e expressões diferentes ou aprofundando experiências de obras anteriores.

Segundo Deleuze, em Crítica e Clínica “A literatura está antes do lado do informe, ou

inacabamento (...) Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se

(...)”(DELEUZE, 2011, p. 11)

Quanto à recepção, Meu nome é legião não deve gerar rejeição no leitor brasileiro por

utilizar uma língua considerada vulgar por uma elite letrada (no trecho transcrito, há inclusive

uma construção mesoclítica). Para o leitor mediano, talvez pelo português com construções

comuns à sintaxe e semântica lusitanas. A todo um conjunto de leitores, independente do grau

de iniciação à leitura ou à Literatura, o romance apresenta grandes desafios devido a sua

elaboração formal, constituída de rizomas narrativos. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari

postulam que um rizoma conecta “cadeias semióticas, organização de poder, ocorrências que

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 48

remetem às artes, às ciências, às lutas sociais.” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.15). Os

agenciamentos do romance produzem uma obra rizomática cuja leitura implica a disposição

do leitor para se aventurar numa selva sem trilhas, para atuar como um cartógrafo, traçando

linhas de leitura e conectando discursos e signos para que a leitura e a compreensão do texto

sejam possíveis.

Considerações finais

Tanto Meu nome é legião quanto Capão pecado apresentam traços característicos do

que se conceitua como agenciamento e literatura menor. Para Deleuze, o verdadeiro filósofo é

o que inventa conceitos e essa é uma das funções da filosofia. Os conceitos criados pela

filosofia valem pela possibilidade de serem aplicados, adaptados e relidos em situações

diferentes daquelas em que se originaram. A filosofia de Deleuze e Guattari, por seu caráter

transgressor, assim como é a literatura de Lobo Antunes e Ferréz, permite a análise dessas

duas obras que, independentemente dos critérios de gosto ou das definições do que é ou não é

literatura, apresentam desafios para leitores, professores e críticos: o desafio de ler e analisar

obras cujos procedimentos de composição e expressão são resultado das experiências sociais,

políticas, culturais e estéticas de autores cuja escrita assim como a vida é um devir, uma

atividade inacabada, sujeita a mudanças e que não se rende ao ditames das instituições.

O enunciado se faz de acordo com determinadas regras e faz parte do que os filósofos

chamam de máquina. Os agenciamentos sociais (família, universidade, religião, empresa, etc.)

são totalmente territorializados. Uma literatura considerada menor será sempre a de uma

língua desterritorializada, uma literatura onde o interesse individual está ligado ao “imediato-

político” e o agenciamento de enunciação será sempre coletivo. É o que fizeram António

Lobo Antunes e Ferréz nos romances objetos deste estudo.

Referências

ANTUNES, António Lobo. Meu nome é legião. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 55ª ed. São Paulo: Edições

Loyola 2013.

DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34,

2011.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 49

DELEUZE e GUATTARI. Kafka:por uma literatura menor. 2ª ed. Tradução: Cintia Vieira da

Silva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

FERRÉZ. Capão Pecado. 1ª ed. São Paulo: Planeta, 2013.

ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Em

www.claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/agenciamento-deleuze. Acesso em 20 de

abril de 2015.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 50

O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM

ESTUDO SOBRE A METALINGUAGEM EM “LISBELA E O

PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS [Voltar para Sumário]

Adriano Siqueira Ramalho Portela 1

Osman Lins

Nascido em Vitória de Santo Antão, zona da mata pernambucana, Osman Lins é autor

de peças de teatro, contos, romances e ensaios. O romance “Avalovara” 2 (1973) é

considerado pelos pesquisadores e por seus leitores como a sua obra prima. Já no final da

vida, o vitoriense chegou a escrever direto para a mídia televisão, resultante dos “Casos

Especiais” 3, programa transmitido em 1978 pela Rede Globo. As narrativas foram: “A Ilha

no Espaço”, “Quem era Shirley Temple?” e “Marcha Fúnebre”. Depois vieram as adaptações;

em 1981 a TV Cultura exibiu “O Fiel e a Pedra” 4; Em 1993, a peça “Lisbela e o Prisioneiro”

– corpus do nosso estudo -, foi levada para a TV.

Lisbela e o Prisioneiro

A peça foi encenada pela primeira vez em 1961, no teatro Mesbla do Rio de Janeiro,

pela Companhia Tonia-Celi-Autran. O enredo se passa na cadeia pública de Vitória de Santo

Antão. Lisbela é filha do delegado, o Tenente Guedes, e noiva do advogado Noêmio. A jovem

se interessa por Leléu, uma mistura de conquistador com artista de circo. Na trama outros

personagens também ganham destaque, são eles: o soldado, corneteiro e apaixonado por fitas

1 Jornalista. Mestrando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. 2 O livro intercala oito narrativas que permeiam tempos e espaços distintos, tendo como ponto de partida uma

espiral e um quadrado. 3 A série de programas fez parte da programação da Rede Globo entre 10 de setembro de 1971 e 5 de dezembro

de 1995. No total foram 172 episódios. Diversos autores foram adaptados, como Machado de Assis, Graciliano

Ramos e Jorge Amado. 4 O romance foi adaptado por Jorge Andrade.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 51

de vídeo, Jaborandi5; o soldado Juvenal, o cabo Heliodor, o carcereiro Citonho, os presos

Testa-Seca e Paraíba, o vendedor de pássaros e amante da mulher de Raimundinho; e o

matador Frederido Evandro. O eixo central da peça está no triângulo amoroso entre Lisbela,

Noêmio e Leléu; o conflito: Leléu é preso por tentar conquistar Lisbela e perseguido por ter se

envolvido com a mulher do matador Evandro.

Lisbela e o prisioneiro é peça indispensável no conjunto dramatúrgico Osman Lins.

Escrita sob os cânones da tradição cômico-popular, confere espaço a essa faceta do

autor, cujas obras apresentam, na maioria, forte tom dramático. (DIAS, 2011, p. 20).

De acordo com Sandra Nitrini, o texto é uma comédia de caracteres e com uma

estrutura tradicional, “com exposição, desenvolvimento, falso clímax, clímax, desfecho de

situações vivenciadas por personagens nordestinos muito bem amarrados”. (NITRINI apud

LINS, 2011, p. 113).

Osman adaptado

“Nem o produto nem o processo de adaptação existem num vácuo: eles pertencem a

um contexto – um tempo, um lugar, uma sociedade cultural”. (HUTCHEON, 2013,

p. 17).

O cineasta pernambucano, Miguel Arraes de Alencar Filho6, é - podemos dizer -,

quase um personagem de “Lisbela”. Guel Arraes, como é conhecido, é um profissional que se

mostra interessado no cruzamento das linguagens. Em 1993 ele dirigiu uma série da Rede

Globo, chamada “Terça Nobre”, onde os programas eram adaptações dos clássicos da

literatura nacional. Uma delas foi, justamente, “Lisbela e o Prisioneiro”. Em 2000, Guel

retomou o texto do vitoriense, só que dessa vez, a adaptação foi para o teatro, três anos mais

tarde, os mesmos atores da peça seguiram com o diretor para o cinema. No roteiro, Arraes

teve o suporte dos cineastas Jorge Furtado e Pedro Cardoso, na direção musical, a parceria foi

com o pernambucano e também cineasta e dramaturgo João Falcão. O filme levou mais de

três milhões de espectadores pagantes ao cinema, ocupando o sétimo lugar no ranking7. Isso

remonta a reflexão de Virgínia Woolf, no livro Os filmes e a realidade: “O cinema tem ao seu

5 Na adaptação para o cinema, a personagem Lisbela é que é apaixonada por cinema. 6 Cineasta e diretor de televisão. Filho do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes. Atualmente é diretor de

programas de entretenimento da Rede Globo de Televisão. Ele também dirigiu “O auto da Compadecida”

(1999); “Caramuru – A invenção do Brasil” (2000); “Romance” (2008); e “O bem amado” (2010). 7 Dados da Ancine referentes ao ano 2003 (www.ancine.gov.br).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 52

alcance inúmeros símbolos para emoções que até hoje não encontramos expressão.” (1926, p.

309).

Diretor e equipe demonstram prezar pelo quesito intertextualidade, e o filme nos traz

um ícone em especial que finda por estabelecer o diálogo com o leitor e, posteriormente, com

o espectador, é a metalinguagem. Tanto Osman como Guel se utilizam dessa ferramenta em

seus trabalhos, tecendo um jogo de conhecimento e entretenimento.

Metalinguagem

“Metalinguagem é linguagem falando de linguagem” (1986, p. 32). Chalhub nos inicia

muito bem no tema, reforçando que todo enunciado que se referir à língua, linguagem e

termos relacionados é meditado metalinguístico, por exemplo: um filme que fala sobre filme,

uma canção que aborda outra canção, uma peça teatral que retrate outra peça. Neste estudo

vamos analisar as funções características do processo de comunicação com ênfase na função

metalingüística da linguagem em “Lisbela e o Prisioneiro”. O ponto de partida é o texto

original:

Lapiau – Se me lembro? Ora se! Peça formidável era aquela: “Meu Único

Progenitor”.

Leléu – E “A Paixão de Cristo”, rapaz. Aquilo é que era uma peça. Quarenta e dois

atos.

Lapiau – Quarenta e seis.

Jaborandi – Danou-se. Nem uma série.

(LINS, 2011, p. 45)

A primeira vista podemos até passar despercebido, mas parando para refletir,

compreendemos que “Lisbela” é um texto literário teatral e que, especificamente na citação

supracitada, está fazendo referência a outra peça de teatro. “Recentemente a especialização da

arte levou os artistas a dialogarem não com a realidade aparente das coisas, mas com a

realidade da própria imagem.” (SANT’ANNA, 1988, p. 8).

Na TV e, no cinema, principalmente, o uso da metalinguagem é mais presente, tendo

como alvo o envolvimento do espectador, despertando o seu interesse pela obra. Em “Lisbela

e o Prisioneiro” a diegese8 – tanto no produto veiculado na TV como nas telonas -, se dá,

diversas vezes, nos encontros dentro do cinema. É lá que eles assistem os filmes em preto e

8 Segundo João Batista de Brito, diegese é compreendida como “todo o universo fictício, temporal e

espacialmente concebido, manifestado ou implícito num filme; o que inclui, portanto, não só a sua narração,

como também os seus aspectos descritivos, subtendidos ou não” (1995, p.204).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 53

branco, namoram, brigam, tentam se resolver, e também é o local onde acontece o desfecho

da história. No episódio que foi ao ar na Rede Globo, Guel Arraes usou imagens do cinema

mudo e de seriados de TV dos anos 50. Em uma das cenas o tenente Guedes entrega armas

aos soldados com a finalidade deles capturarem Leléu, esse trecho é alternado com imagens

do filme “Carlitos em Fuga”; e assim o diretor foi costurando o enredo e desenvolvendo seu

processo criativo.

Os experimentos que ocorreram na TV foram retomados e aprimorados para o

cinema. A diferença é que, no caso do filme, ele não recorreu aos clássicos originais

do cinema. Guel e equipe preferiram criar novas inserções, paródias

cinematográficas, com atores diferentes do elenco, digamos assim, do filme

principal, Lisbela e o Prisioneiro, o que fez surtir um efeito extremamente

interessante de um filme dentro de outro filme. (FIGUÊIROA e FECHINE, 2008, p.

235).

O diretor leva para a TV e para o cinema uma crítica aqueles que só enxergam o

nordeste como uma terra seca e sem valor cultural, como um espaço sem cor, sem graça, onde

nada pode acontecer; por meio do humor ele apresenta um nordeste colorido, um tanto

surrealista, com permissividade para o teatral. Com essa releitura, o Nordeste passa a ser o

espaço diegético texto-filme, onde Guel resulta por romper fronteiras quando passa a dialogar

com a contemporaneidade, deixando suas personagens, mesmo estando na zona da mata,

adeptas de características urbanas.

No artefato metalinguagem, a crítica ganha corpo, mostrando que situações que

acontecem lá fora, como nas tramas de Hollywood, podem ocorrer no Brasil, e porque não no

nordeste. Arraes aproveita o humor crítico de Osman Lins e acrescenta seu arsenal de técnicas

para mostrar o filme dentro do filme, unido o cômico à análise, provocando e, ao mesmo

tempo, levando o distanciando entre espectador e objeto, “uma vez que a comicidade se dirige

a inteligência pura, e a avaliação crítica é procedimento de um teatro épico consciente”.

(BERGSON, 2004, p. 3).

Na TV ele aproveita todos os espaços e chega a brincar com a “passagem de bloco”9.

Na transição para o terceiro intervalo, por exemplo, surge a locução: “Não perca no próximo

bloco. A moça que virou cobra, o valente que fez o diabo chocar um ovo, a mulher que deu à

luz um satanás; e se for mentira, eu cegue.” (FIGUEIRÔA e FECHINE, 2008, p. 239). Com

essa estratégia o diretor consegue prender a atenção do telespectador e fazer com que ele não

disperse e espere a volta do break10

. Percebemos que os códigos passam a se relacionar, e o

9 Usado em programas de televisão, novelas e minisséries, a passagem de bloco é um formato de arte usada para

a transição entre o produto e o intervalo comercial. 10 Intervalo entre os programas de TV.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 54

off11

da passagem de bloco culmina por representar e informar que o próximo capítulo volta

em breve, ou seja, é o signo como signo de alguma outra coisa.

A metalinguagem é uma aposta antiga e que vem dando certo, a prova está em alguns

clássicos, como: “Oito e Meia” (1963), dirigido por Fellini. A película conta a história do

cineasta Guido Anselmi que está sem ideia para a realização do seu filme; ele acaba entrando

em crise, é internado e passa a misturar ficção com realidade. Dez anos depois estreia “A

Noite Americana”, de François Truffaut. O enredo mostra os bastidores de um set de

filmagem e uma tamanha confusão envolvendo atores, dublês e o diretor. E para encerrar a

nossa lista12

, numa coincidência de intervalos de dez anos, o filme “Zelig” (1983), de Woody

Allen. A obra é uma pseudo-documentário sobre Leonard Zelig, interpretado pelo próprio

Allen. O protagonista costumava modificar a aparência para agradar quem se aproximava

dele. Esses feitos, essa vontade de mostrar, de descodificar os signos calha com uma das

teorias de Robert Stam, quando ele diz que “o cinema é em si é um instrumento filosófico, um

gerador de conceitos que traduz o pensamento em termos áudio-visuais.” (2006, p. 25).

Os números, já citados anteriormente, mostram que “Lisbela” fora um sucesso de

bilheteria e isto vem provar que o filme conseguiu estabelecer uma identificação com o

público; essa é uma das inúmeras possibilidades oferecidas pela metalinguagem. Ana Lúcia

Andrade explica que ao longo da história do audiovisual, o cinema norte-americano percebeu

o encanto que poderia exercer no público ao tratar a si mesmo na telona.

Para atingir esse grau de cumplicidade com o público, o cinema primeiramente

retratou seu próprio ritual, em um jogo de reconhecimento em que o espectador

assistia ao que lhe era mais familiar até então, enquanto ia formando seu inventário

imagético. (ANDRADE, 1999, p. 65).

Em “Lisbela” essa empatia com o público vem estampada na primeira cena, onde a

mocinha e Douglas13

estão no cinema. O espectador se identifica com o casal procurando o

lugar certo para sentar, um local que não fique nem muito perto da tela nem muito longe e

sim, com brechas para que possam ver bem. Lisbela mostra-se fascinada pelo mundo do

cinema e vai contando para o noivo como procedem as cenas da comédia romântica que

assistem; Douglas aparenta ter bem menos conhecimento em relação à sétima arte e está ali

mesmo é para namorar. Quando a mocinha principia a contar as cenas, passa-se a ter uma

11 Voz do narrador usada para cobrir uma imagem. 12 Lista com uma quantidade suficiente de filmes com a temática metalingüística está disponível em:

<http://cinetoscopio.com.br/2013/06/20/11-filmes-de-metalinguagem-no-cinema/> 13 No texto original, Douglas é o advogado vegetariano, o Dr. Noêmio.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 55

interação com o espectador, o qual parece querer opinar, sugestionar. Ele acaba se

encontrando “dentro da narrativa”.

Lisbela – Eu adoro essa parte. A luz vai se apagando devagarzinho. O mundo lá fora

vai se apagando devagarzinho. Os olhos da gente vão se abrindo. Daqui a pouco a

gente não vai mais nem lembrar que tá aqui.

Douglas – É preto no branco.14

A narração em off, usada no especial para TV é aproveitada no cinema. A voz narra

trechos do filme em preto e branco, ao mesmo tempo atrelando aos momentos vividos por

Leléu e Lisbela. Outros elementos compõem essa intercalada, por exemplo, quando o vilão

Frederico Evandro aparece pela primeira vez, também aparece um vilão no filme que o casal

está assistindo; em seguida a narração volta e o processo metalinguístico continua. Em uma

das cenas, Frederico, ao chegar a casa, flagra sua mulher Inaura na cama com Leléu;

revoltado ele sai atirando e correndo para pegar o Dom Juan nordestino. No cinema o casal vê

o mocinho sendo perseguido pelo bandido. Entra o off: “Será que nosso herói vai partir para

o beleléu? Não perca no próximo episódio: as aventuras de um herói sabido contra o corno

matador”. (Transcrição do filme). Os enredos vão se cruzando, é como se a história que eles

assistem no cinema, fosse igualmente acontecendo na cidade onde estão.

Existem momentos em que a metalinguagem acontece em níveis variados, em uma

delas Lisbela está sozinha dentro do cinema, quando Leléu aparece; os dois, além de estarem

vivendo algo semelhante ao que acontece na película projetada, começam a conversar sobre

cinema e o contexto do diálogo se realiza na telona; quando eles estão falando sobre história

de amor, ao fundo o casal do filme vive momentos felizes.

Leléu – a senhora tem vontade de ser artista de cinema, é?

Lisbela – E meu filho, eu não sou nem americana pra ser artista.

Leléu – Minha filha, nunca ouviu falar em artista nacional, não?

Lisbela – Uma história de amor bonita mesmo, só nesses filmes.

Leléu – É? Quando a mocinha é nacional é bom que o beijo já vem traduzido.

Lisbela – Deixa de ser besta que eu não lhe dei essa ousadia. (Transcrição do filme Lisbela e o Prisioneiro).

Perto do desfecho da obra, a metalinguagem se repete. Lisbela havia terminado o

relacionamento com Douglas e estava no cinema esperando por Leléu. O “herói” chega ao

final do filme que a mocinha estava assistindo. Percebendo algo de estranho, ela antecipa a

sua fala:

14 Transcrição do filme “Lisbela e o Prisioneiro”. Transcrição nossa.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 56

“Veio dizer que vai embora. É igualzinho no cinema. A mocinha está ansiosa esperando o mocinho e finalmente

eles se reencontram. Ele vem se aproximando e ela acha que é para dar um beijo. Mas aí ela vê que o rosto dele

está preocupado demais para isso.” (Transcrição do filme Lisbela e o Prisioneiro).

Até na cena da cadeia o diálogo metalinguístico é desenvolvido. Depois do beijo,

Leléu questiona se aquele fora o beijo do casamento, ela nega e diz que foi o da despedida; o

herói pergunta se ela não sabe que todo filme de amor se acaba em beijo. “Sei. Mas já acabou

a luz do cinema. E agora vai começar a minha vida”. (Transcrição). No desenlace da história,

quando Leléu e Lisbela estão no caminhão, o diretor reforça ainda mais suas técnicas e coloca

de vez o espectador na história.

Lisbela – Mas agora eu me sinto num filme de verdade.

Leléu – É? Lisbela e o Prisioneiro. O nosso filme nunca vai ter fim.

Lisbela – Espera um pouquinho.

Leléu – Que foi?

Lisbela – É que o melhor do cinema é o jeito como termina.

Leléu – E como é isso, heim?

Lisbela – Adivinha?

Leléu – Com todo mundo olhando.

Lisbela – É só no começo. Depois o filme acaba.

Leléu – Então tá bom da gente se apressar, porque o povo já entendeu que ta

acabando e é capaz de começar a sair sem prestar mais atenção na gente.

Lisbela (olhando para câmera) – Mas talvez nessa sala tenha pelo menos um casal

apaixonado que vai assisitir até o finalzinho. E mesmo depois que o filme acabar,

eles vão ficar parados um tempão até o cinema esvaziar todinho. E aí vão se

mexendo devagar como se estivessem acordando depois de sonhar com a história da

gente.

Leléu – tomara que eles tenham gostado.

Após o beijo, o cenário passa a ser a sala de cinema e na tela surgem Leléu e Lisbela,

entra lettering:15

“Fim”; as pessoas vão saindo até sobrar um casal na sala. Os dois são os

últimos a sair, são eles, justamente, Leléu e Lisbela. Guel, por fim, acaba conseguindo a

identificação ainda maior de um público em particular, os casais apaixonados que frequentam

o cinema. E para fechar com ainda mais elementos metalinguísticos, João Falcão utiliza uma

música de sua autoria junto com André Moraes e gravada pela banda Cordel do Fogo

Encantado16

.

O amor é filme.

Eu sei pelo cheiro de menta e pipoca que dá quando a gente ama.

Eu sei porque eu sei muito bem como a cor da manhã fica.

Da felicidade, da dúvida, da dor de barriga.

É drama, aventura, mentira, comédia romântica.17

15 Texto que surge na tela. 16 Foi um grupo musical brasileiro fundado na cidade de Arcoverde, Pernambuco. 17 O amor é filme. Disponível em: <http://letras.mus.br/lirinha/238132/>

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 57

Para Betton18

, a música é uma atividade importantíssima no cinema, ela consegue unir

funções estéticas e psicológicas, aumentando a capacidade expressiva do filme, criando

coques afetivos que exaltam a afetividade.

Conclusão

Podemos, se não for ousadia da nossa parte, ultimar que a própria obra “Lisbela e o

Prisioneiro” - seja ela peça de teatro, especial para TV ou cinema -, é, por si só,

metalinguística. Falar em “Lisbela” é se reportar, automaticamente, a uma linguagem

discorrendo sobre outra linguagem. Osman, no livro Guerra Sem Testemunhas, em suas

indagações em relação à Indústria Cultural questionou: “poderá um romancista, um poeta,

levar-lhes contribuições, não porém a eles aderir, abandonando o livro.” (LINS, 1978, p. 5).

Talvez o nosso escritor tenha morrido sem a conclusão para a sua reflexão; mas, o fato é que,

sem abandonar o texto original, “Lisbela” invade a Indústria, aproveita todas as

oportunidades, e contribui para os processos da literatura, do teatro, do cinema e das pesquisas

acadêmicas, tornando este artigo, quem sabe, em um possível documento metalinguístico. E

como num palimpsesto, cada um vai escrevendo a sua “Lisbela e o Prisioneiro”.

Referências

ANDRADE, Ana Lúcia. O filme dentro do filme: a metalinguagem no cinema. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 1999.

BRITO, J. B. D. Imagens Amadas: ensaios de Crítica e teoria do cinema. São Paulo: Ateliê

Editorial, 1995.

CHALHUB, Samira. A metalinguagem. São Paulo: Ática, 2005.

BERGSON, Henri. O riso. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BETTON, G. Estética do Cinema. Tradução: Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes,

1987.

FALCÃO, João e MORAES, André. O amor é filme. Disponível em:

<http://letras.mus.br/lirinha/238132/> . Acesso em: 18 jun. 2011.

FIGUEIRÔA, Alexandre; FECHINE, Yvana. Guel Arraes: um inventor no audiovisual

brasileiro. Recife: CEPE, 2008.

18 BETTON, G. Estética do Cinema.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 58

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução: André Cechinel, 2º ed.

Florianópolis: UFSC, 2013.

LINS, Osman. Guerra Sem Testemunha. São Paulo: Martins, 1969.

LINS, Osman. Lisbela e o Prisioneiro. São Paulo: Planeta, 2011.

LISBELA e o prisioneiro. Direção de Guel Arraes. Rio de Janeiro. Globo Filmes, 2003. DVD:

son., color.

SANT’ANNA, A. R. d. Paródia e Paráfrase & Cia. 3 ed. São Paulo: Ática, 1988 (Série

Princípios; 1)

STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. New York

WOOLF, Virgínia. The movies and reality. New Republic, 1926.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 59

MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC

NOVEL À POESIA, IDENTIDADE DE GÊNERO EM

ANGÉLICA FREITAS [Voltar para Sumário]

Ágatha Costa Salcedo (UFAL)

Por compreender que o ser humano (seja ele artista ou não) é pertencente à cultura de seu

tempo e espaço, acho por bem ressaltar que a poesia de Angélica Freitas é marcada pelo contexto em

que a poeta está inscrita, não no sentido determinista, mas na compreensão de que sua poesia traz em

si a marca da existência no conturbado mundo contemporâneo (séc. XXI). Sua produção literária é

composta por dois livros de poesia – Rilke shake e Um útero é do tamanho de um punho, publicados

em 2007 e 2012, respectivamente – e Guadalupe – graphic novel publicada em 2012, em que assina o

roteiro e o cartunista Odyr é responsável pelas ilustrações.

Os temas abordados por Angélica Freitas são atuais, e se hoje encontram espaço de

locução, devem em parte ao percurso traçado por tantas outras mulheres que inseriram suas

personagens femininas e a representação (na literatura) das experiências e angústias

vivenciadas por mulheres. Em “A ficção brasileira no horizonte pós-moderno: recusa e

incorporação”, Tânia Pellegrini (2008) destaca que por volta dos anos de 1980 houve uma

crescente presença de novas temáticas relacionadas às experiências vividas nas grandes

cidades – naquele momento o tom de resistência à ditadura militar (1964-1985) havia iniciado

seu processo de arrefecimento.

A resistência à ditadura cede espaço à resistência a ideia hierárquica e ancestral

balizada pelo discurso cristão, masculino e branco. Assim como surgiam novos movimentos

sociais, pautados em bandeiras específicas (como a questão racial, a condição feminina, a

homossexualidade e a religião), surgiam, na literatura, novas vozes que representavam

espaços de locução para as novas formas de organização e pensamento.

Angélica Freitas é considerada uma das vozes mais significativas do feminismo na

literatura brasileira contemporânea, conseguindo aliar crítica à qualidade estética, não

perdendo em forma ao abordar questões que dizem respeito às mulheres contemporâneas.

Com traços típicos das produções pós-modernas, apresenta aos leitores e leitoras obras

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 60

marcadas por uma ironia inteligente, imersas em referências e numa apropriação do popular

que resultam na transmutação de seu contexto em parte integrante de sua produção literária.

Este trabalho propõe um caminho interpretativo para a graphic novel Guadalupe e

para o poema “mulher depois” (do livro Um útero é do tamanho de um punho), buscando

investigar a maneira como Angélica Freitas imprimiu em sua obra seu posicionamento acerca

da questão da identidade de gênero, seja em forma quanto em conteúdo.

O feminismo atual não traz um consenso no que diz respeito a questão das mulheres

transexuais1, bem como das travestis, alguns grupos que se reivindicam feministas afirmam

que tais pessoas devem ser atreladas às questões LGBT’s, não às questões ditas femininas,

enquanto outros grupos entendem que a identidade de gênero é essencial na compreensão do

ser mulher, e que não é o fato de ter nascido com uma genitália “masculina” que impedirá que

uma mulher trans2 se reconheça em sua identidade de gênero feminina e seja reconhecida

pelas demais mulheres na luta contra uma sociedade heteronormativa, sexista e excludente.

A medida em que constrói suas personagens femininas, Angélica Freitas desconstrói a

ideia determinista que associa identidade de gênero ao sexo de nascimento. Esta ruptura é

claramente percebida no poema “mulher depois”:

queridos pai e mãe

tô escrevendo da tailândia

é um país fascinante

tem até elefante

e umas praias bem bacanas

mas tô aqui por outras coisas

embora adore fazer turismo

pai, lembra quando você dizia

que eu parecia uma guria

e a mãe pedia: deixem disso?

pois agora eu virei mulher

me operei e virei mulher

não precisa me aceitar

não precisa nem me olhar

mas agora eu sou mulher

(FREITAS, 2012b, p.35)

1 A pessoa transexual é aquela que recorre à prática das transformações corporais para atender a seu desejo de

viver e ser identificada como pessoa do sexo oposto ao seu sexo biológico. A transexualidade é, nesse sentido,

uma condição sexual que, segundo a definição médica, é denominada é, nesse sentido, uma condição sexual que,

segundo definição médica, é denominada de transexualismo, transtorno de identidade sexual ou de identidade de

gênero (VENTURA, 2010,p.11). 2 A partir deste momento, utilizaremos o termo “mulher trans” para nos referirmos a mulheres transexuais.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 61

A autora se apropria de um tom epistolar, compondo seu poema a partir de

fragmentos/desmembramentos de uma possível correspondência (um e-mail, talvez) enviada

por uma mulher trans que acaba de fazer sua cirurgia de mudança de sexo em um dos países

que são referência em cirurgias do tipo, a Tailândia.

O título escolhido para o poema, “mulher depois”, indica o ponto de vista da autora,

que reconhece a construção social das mulheres – relembrando a famosa frase de Simone de

Beauvoir, que afirmou que “ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher” – incluindo nesta

construção as mudanças físicas (conseguidas por via cirúrgica) pelas quais uma mulher trans

passa. A autora rompe com a ideia normativa vigente na sociedade brasileira:

A concepção normativa expressa é que o normal é a coerência entre sexo-gênero,

implícita a compreensão de sexo e gênero a partir de aspectos biológicos, e que

quaisquer outras combinações que não sejam mulher/feminino, homem/masculino

são patológicas. Esse sistema sexo/gênero, que se fundamenta em uma base

biológica e na diferença sexual, estabelece, ainda, combinações entre seus elementos

a partir da matriz binária heterossexual que determina a complementaridade

“natural” dos sexos opostos e se converte em um sistema regulador da sexualidade

dos sujeitos (VENTURA, 2010, p.13)

Angélica Freitas assegura espaço de locução para esse grupo específico de mulheres,

trazendo para o público o ponto de vista de pessoas que normalmente se encontram à margem

na sociedade.

Reconhecemos em seu poema um traço característico do Brasil, em que para que uma

mulher trans seja reconhecida legalmente enquanto mulher, precisa ser diagnosticada como

indivíduo portador de transtorno de identidade de gênero, ou seja, precisa ser catalogada

enquanto “doente”, catalogação que permitirá passar por processos cirúrgicos, encarados por

muitas dessas mulheres como uma necessidade para que se alcance o reconhecimento de sua

identidade de gênero. Temos registrado o peso na normatividade, que encontra respaldo

jurídico para impor padrões, que cataloga tudo que dela diverge como patológico, tornando-se

apta a intervir, inclusive, na esfera privada dos indivíduos.

“mulher depois” possui destinatários (pai e mãe, representação da família tradicional,

base da sociedade atual), localização geográfica de quem o “escreve”, assim como traz

memórias que não deixam dúvidas de que se trata de um indivíduo que viveu em conflito com

a família (e a sociedade como um todo) por não corresponder ao comportamento esperado ao

sexo de seu nascimento (masculino).

Composto por três estrofes/momentos, a primeira com a ausência do eu lírico

enquanto ser de ação, em que se enfatiza as belezas de um país distante, a segunda destinada a

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 62

lembranças de opressão, em que a mulher trans surge como figura sem voz, oprimida pela

figura paterna (representação do jugo patriarcal e normativo), e o terceiro momento, em que

surge como única voz, afirmativa em sua identidade de gênero e condição feminina

construída, vinculada a mudança de sexo.

O verbo parecer (da segunda estrofe “parecia uma guria”), conjugado no pretérito

imperfeito, é confrontado pelo verbo virar, conjugado no pretérito perfeito (indicando uma

transformação finalizada, reforçada pelo verbo que o antecede, operar), seguido do afirmativo

do verbo ser no tempo presente (“mas agora eu sou mulher”).

Em Guadalupe (2012) temos uma personagem travesti, trata-se de Minerva, que no

auge de sua carreira com drag queen se viu obrigada a abandonar a vida noturna na casa de

shows Divina Perla para cuidar de sua sobrinha Guadalupe, criança de 10 anos abandonada

pelos pais. A história se desenrola quase em sua totalidade durante o dia em que a

protagonista, que dá nome a graphic novel, completa trinta anos, mesmo dia em que sua avó

Elvira (mãe de Minerva) morre ao colidir sua moto com uma quitanda. Em um dos primeiros

momentos, temos Guadalupe imersa em suas memórias infantis, como vemos abaixo:

(FREITAS, 2012a)

Temos o único momento em que Minerva faz uso de roupas e acessórios ditos

masculinos, ao se preparar para pedir empréstimo no banco, com o intuito de garantir

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 63

estabilidade financeira, agora que se percebe responsável por uma criança. Ironicamente, o

empréstimo é conseguido no momento em que o gerente do banco reconhece Minerva,

tecendo-lhe elogios e desejando-lhe boa sorte na fase que estava por começar, a abertura de

uma livraria (na qual tia e sobrinha trabalhariam juntas)

Angélica Freitas trabalha, sutilmente, mais uma vez a desconstrução de ideias

naturalizadas de funções socialmente atribuídas como sendo de responsabilidade do homem

ou da mulher. Ao ser perguntada se passaria a ser a mãe da garota, Minerva demonstra que a

forma como será chamada não restringirá ou modificará o cuidado a ser dispensado com a

sobrinha, nem moldará suas ações.

O nome escolhido para a personagem Minerva reforça a ideia desta enquanto

representação da desconstrução do binário masculino/feminino, tendo em vista que a deusa

romana que lhe inspirou o nome é conhecida tanto por estar relacionada a atividades tidas

como femininas como com atividades tidas como masculinas.

Guadalupe decide realizar o que havia prometido à avó, enterrá-la em sua terra natal, a

cidade de Oaxaca. Guadalupe e Minerva fecham as portas da Minerva livros e seguem de

furgão, da Cidade do México para Oaxaca, levando o corpo de Elvira. Inicia-se então uma

espécie de roadmovie trapalhão e nonsense em que as personagens passam por um processo

de autoconhecimento e tomam decisões sobre o caminho que darão as suas vidas após o

término daquela missão.

As lembranças de infância de Minerva ressurgem durante a viagem, em que alguns

segredos são revelados, como a sexualidade de sua mãe:

(FREITAS, 2012a)

Elvira era lésbica, havia sido obrigada pela família a se casar, tratada como uma

selvagem indomável surpreendentemente domada pelo jugo das relações matrimoniais. Na

sequência acima temos a revelação, a foto de Juanita, seu grande amor.

Minerva narra a vida em Oaxaca, e o machismo de seu pai que embora tivesse amantes

não admitiu a descoberta do caso de Elvira com Juanita, chegando a agredir a esposa

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 64

fisicamente. A figura paterna já se mostrara em seu machismo no momento em que descobriu

que seu filho era gay. Em meio ao toda a confusão, Mãe e filhos fogem da cidade e vão para a

capital do México.

Assim como “mulher depois” faz referência à Tailândia, Guadalupe também não se

passa no Brasil, é ambientado em terras mexicanas e se apropria de algo típico da cultura local

para ampliar suas possibilidades de discussão de gênero. Traz para a trama a experiência das

muxes, indivíduos (do sexo masculino) pertencentes comunidades de origem indígena (do

México) que se vestem de mulheres e possuem liberdade para constituir família tanto com

mulheres quanto com homens, além de transitarem pelos universos masculino e feminino.

(FREITAS, 2012a)

No meio da viagem, a dupla (sobrinha e tia) é ameaçada por forças do mal,

representadas por um vilão inábil que tenta a todo custo roubar a alma de Elvira para leva-la a

seu mestre. Esse vilão trapalhão mais parece uma releitura da personagem Malvado, do

desenho animado Ursinhos carinhosos, que nunca lograva êxito em suas investidas e nem

mesmo convencia o espectador de sua suposta maldade. É durante um embate entre o suposto

ladrão de almas e a dupla Guadalupe e Minerva que a história das muxes serve de inspiração

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 65

para Angélica Freitas, que concede mais algumas pitadas de desconstrução a sua personagem

travesti.

Ao ingerir cogumelos mágicos, Minerva se torna a Muxe maravilha, heroína

totalmente desvinculada dos padrões estéticos alardeados pelos quadrinhos de super-heróis,

inclusive da mulher-maravilha, em quem também é ironicamente inspirada. Ao contrário da

super-heroína de corpo exuberante, que mais parece ter sido desenhada para satisfazer fetiches

de leitores, a Muxe maravilha de Angélica Freitas é composta por traços masculinos somados

a5 trejeitos socialmente associados ao feminino, e que ao vencer o vilão trapalhão, permite

que este fuja após entrega-la um espelho mágico que permite a quem se olhe nele enxergar

seu próprio futuro.

O espelho, objeto comumente associado às questões estéticas ou como símbolo da

passagem do tempo (e sua irreversibilidade) nos corpos de homens e mulheres, associado

quase sempre ao tempo que passou, na graphic novel surge como uma possibilidade de

autoconhecimento e possibilidade de mudanças. A autora ao utilizar a simbologia do espelho,

subverte-a, permitindo a suas personagens enxergar seus futuros vislumbrados a partir da

ideia de permanência e estabilidade.

Ao se ver vinte anos depois (imagem que não é mostrada ao leitor), Minerva decide

mudar sua vida, o que se percebe com sua intenção de passar a loja de livros para Guadalupe,

a quem presenteia com o espelho destacando a possibilidade de alterar o futuro a partir de

ações. O objeto perde seu poder no momento em que Guadalupe resolve largar tudo e não

voltar para Cidade do México. Ao fim da trama, Guadalupe está sozinha, e algum lugar do

mundo, olhando o mar e jogando o espelho para longe.

O ato de Minerva e Guadalupe, que ao enxergarem seus possíveis futuros resolvem

colocar em práticas planos há muito guardados, e que após a constatação desta necessidade

acham por bem se livrar do espelho, reforçam a ideia de que Angélica Freitas, enquanto poeta,

reconhece a literatura como meio de afirmar tanto a construção do ser mulher como a

necessidade de se construir o próprio destino.

A liberdade feminina, e sua necessidade, é o tema central de Guadalupe, seja

abordando a questão das travestis, seja tratando das decisões impostas pela idade e que

requerem coragem, como Minerva com mais de 50 anos escolher recomeçar, ou Guadalupe,

que aos trinta nos se nega a casar e permanecer trabalhando com o que abomina e vivendo

numa cidade com a qual não se identifica, e como a de ambas em realizar o desejo de Elvira,

de voltar para a terra da qual foi expulsa, e para os braços da mulher que amou .

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A maneira como Angélica Freitas une seu posicionamento político e o faz parte

integrante de sua produção literária, reafirmam seu lugar enquanto voz feminina e feminista a

literatura brasileira. Com isso ganham os leitores e leitoras, que em meio a tantas tentativas

de invisibilização dos conflitos existentes na sociedade contemporânea podem ter diante de

seus olhos uma obra literária que traz consigo o potencial reflexivo característico de uma obra

de arte. Os formatos escolhidos pela autora (poesia e graphic novel) garantem, inclusive, que

a discussão sobre liberdade feminina e identidade de gênero chegue a espaços antes deixados

de lado por teóricas e artistas feministas.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Reato

Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

EISNER, Will. Narrativas gráficas. Trad. Leandro Luigi Del Manto. São Paulo: Devir, 2005.

FREITAS, Angélica. Guadalupe. São Paulo: Companhia das letras, 2012ª.

________. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012b.

GENEST, Émile; FÈRON, José; DESMURGER, Marguerite. As mais belas lendas da

mitologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MAGALHÃES, Belmira. História e representação literária: um caminho percorrido. In:

Revista Brasileira de Literatura Contemporânea. Rio de Janeiro: Abralic, 2002.

PELLEGRINI, Tânia. Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo:

Annablume; FAPESP, 2008.

TREVISAN, João. Devassos no paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2011.

VENTURA, Miriam. A transexualidade no tribunal: saúde e cidadania. Rio de Janeiro:

EdUERJ, 2010.

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DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINO-

APRENDIZAGEM [Voltar para Sumário]

Alaíde Marie Correia Barros (IFAL - Campus Maceió)

Nádia Mara da Silveira (IFAL - Campus Maceió)

Introdução

A memória é um recurso natural do ser humano, pois desde a infância informações

são armazenadas, constituindo uma base de dados que compreende as experiências vividas

pelo sujeito. Na verdade, tudo que nos é pouco significativo, que foi decorado, mas não

necessariamente aprendido, pode vir a ser esquecido ou deixado de lado, porém, aquilo que

nos é relevante, marcante, torna-se inesquecível, ou seja, é armazenado na nossa memória de

longa duração.

“A verdadeira essência da memória humana está no fato de os seres humanos serem

capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos.” (VYGOTSKI, 1991, p. 58). Assim

sendo, é notável que através das experiências cotidianas o ser humano pode evocar suas

lembranças quando em contato com um signo. Dessa forma, pode se imaginar similares que

não estão presentes e apenas remetem a um visualmente percebido ou em contato através de

quaisquer sentidos. Isso demonstra a importância da memória em simples ações rotineiras.

Interligando-se a memória, a linguagem torna possível o processamento de

informações captadas pelo indivíduo através do local em que este se insere. Na sala de aula,

há o constante estímulo para que inúmeros dados sejam captados pelos alunos e,

posteriormente, sejam utilizados no decorrer das disciplinas e exames. No entanto, é preciso

que demasiados assuntos sejam aprendidos e para isso, alguns alunos aplicam, algumas vezes

com excesso, o uso da memorização, comumente conhecida pela gíria “decoreba”.

No entanto, algumas disciplinas denominadas decorativas são de grande relevância

para a compreensão de assuntos abordados diariamente, desta forma, o estudante pouco

aproveita o conteúdo que lhe é apresentado, para posteriormente aplicá-lo, por acreditar que o

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 68

sistema de notas pode avaliar o seu grau de conhecimento, quando este, na verdade, muitas

vezes é superficial.

A reprodução de um antigo método de aprendizagem como a memorização de

conteúdo, que pouco dinamiza as formas de ensino, ocorre quando os professores não buscam

modernizar e realizar interações com os novos recursos tecnológicos que podem ser

desenvolvidos em sala de aula e melhorar o desempenho dos alunos. Porém, apesar da grande

importância da condução do professor, cabe ao aluno estar ciente de que no processo de

aprendizagem ele pode ser prejudicado, até mesmo futuramente, quando lhe for requerido

informações das quais ele não consolidou.

As escolas se apegam mais e mais obstinadamente à sua ideia equivocada de que a

educação e ensino são processos industriais, a serem projetadas e planejadas em

pequenos detalhes e então impostas em professores passivos e em seus ainda mais

passivos estudantes. (HOLT, 1982, p.2).1 Tradução minha.

Antigamente, a concepção que se tinha das escolas era muito rígida e, certamente,

em gerações anteriores, os alunos precisavam, de acordo com os professores, lembrar-se de

cada detalhe do conteúdo visto. Ainda que hoje essa rigidez tenha sido abolida das escolas

brasileiras, muito ainda se é cobrado dos alunos uma vez que a ideia de conhecimento, para

alguns professores, é a repetição de conteúdo para que se consiga um sucesso superficial.

Uma das principais mudanças que a escola sofreu refere-se à participação do aluno

em sala de aula uma vez que, na aprendizagem atual, o aluno é sujeito ativo, quando

anteriormente era passivo, pois apenas recebia as informações do professor, sem contestá-las

ou complementá-las.

Contudo, infelizmente, o processo de aprendizagem não está totalmente alterado para

a melhor compreensão e facilitação da aquisição de conhecimento, mantendo, ainda, a falsa

ideia de que para aprender faz-se necessário a prática de memorizar, uma ideia popular entre

diversos estudantes e também professores. E, para melhor compreensão e aprimoramento do

processo de ensino-aprendizagem, é preciso entender como a memorização pode influenciar

no aproveitamento escolar.

Metodologia

1 The schools cling more and more stubbornly to their mistaken idea that education and teaching are industrial

processes, to be designed and planned from above in the minutest detail and then imposed on passive teachers

and their even more passive students.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 69

Desse modo, pretende-se, através de um estudo exploratório, que possibilita “ao

investigador aumentar sua experiência em torno de determinado problema” (TRIVIÑOS,

1987, p. 109), investigar o fato de que apesar de hoje haver uma maior participação dos

estudantes na construção do conteúdo trabalhado em sala de aula, já que os professores estão

adquirindo novas metodologias, a fim de tornar seus alunos formadores de opiniões, capazes

de construir ou participar ativamente do processo de aprendizagem, ainda existem educadores

exigindo a decoração do conteúdo, como um recurso necessário para a promoção do aluno no

seu processo de ensino e aprendizagem. Visa-se, portanto, verificar se a decoração de

conteúdo gera aprendizagem nos alunos.

Assim sendo, a fim de realizarmos este estudo exploratório, torna-se necessário um

levantamento bibliográfico, que consiste, no “conjunto de materiais escritos/gravados,

mecânica ou eletronicamente, que contém informações já elaboradas e publicadas por outros

autores.” (SANTOS, 2002, p. 31).

Contudo, salienta-se, ainda, que o presente trabalho se apoia na área da Linguística

Aplicada, afinal, “Há uma preocupação cada vez maior em LA com a investigação de

problemas de uso da linguagem em contextos de ação ou em contextos institucionais, ou seja,

há um interesse pelo estudo das pessoas no mundo” (MOITA-LOPES, 1996, p. 123). Além do

que, a Linguística Aplicada permite a integração com outras áreas, como por exemplo, a

psicologia cognitiva, possibilitando um estudo sobre a decoração de conteúdo e sua relação

com a aprendizagem.

Discursão teórica

Nas escolas é comum a prática de decorar entre os alunos, devido a constante

cobrança com exames que, geralmente, ocorrem bimestralmente nos ensinos fundamental e

médio, e ainda, principalmente, para ingressar na faculdade, através do ENEM. É fato que

nenhum estudante conseguirá aplicar todos os assuntos vistos ao longo dos anos letivos, de

todas as disciplinas requeridas, por isso o recuso mais comum para obter um desempenho

satisfatório e uma nota dentro do padrão, é decorar fórmulas, assuntos e conceitos. Porém,

questiona-se, até que ponto a avaliação poderá de fato medir o conhecimento de cada aluno se

alguns arquivam temporariamente informações que acreditam ser dispensáveis depois de

aplicadas em provas.

Vários resquícios de antigas metodologias de ensino são perpetuados por alguns

professores que permitem que o estudo adquira um caráter decorativo e cansativo. Não se

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 70

tem, contudo, nenhum modo de classificar quais matérias deve ser ou não decoradas, ou de

que forma esse método pode afetar o aprendizado do aluno e até quando pode favorecê-lo.

Salienta-se que, a memória humana, tem a capacidade de adquirir, armazenar e

recuperar as informações que são recebidas diariamente por meio dos sentidos, por isso é que

podemos lembrar-nos de cheiros, faces, sequências numéricas e tantos outros dados que se

pode obter tanto diariamente quanto ao longo da vida. A linguagem, segundo LINDZEY;

HALL; THOMPSON (1977, p. 212) está ligada a memória, pois esta possibilita a

aprendizagem e o armazenamento de sons, palavras frases e até mesmo da gramática.

A percepção, que é definida como “processo de recepção, seleção, aquisição,

transformação e organização das informações fornecidas através dos nossos sentidos.”

(BARBER; LEGGE, 1976, p.11) é a primeira etapa para a consolidação da memória, que

implica na seleção para o armazenamento de dados.

Os especialistas acreditam que o hipocampo, juntamente com outra parte do cérebro

chamada de córtex frontal, é responsável por analisar essas diversas entradas

sensoriais e decidir se vale a pena lembrar-se delas. Se valerem a pena, elas podem

se tornar parte de sua memória de longo prazo. (MOHS, 2010, p. 4).

Deste modo, nem sempre pode se dizer que o cérebro armazena ou acessa tudo o que

se é percebido, mas apenas o que ele seleciona para lembrar. Esse processo de seleção prévia

é o que não nos permite lembrar todas as cenas de uma peça teatral, pois embora recebamos

as informações através dos nossos sentidos, nem todas podem ser acessadas.

Umas das divisões mais conhecidas são às memórias: primária e secundária, que são

também denominadas de curto e longo prazo, respectivamente. Elas dão prosseguimento ao

armazenamento sensorial, que faz uso da percepção, podendo ser visual, olfativa, tátil,

gustativa ou auditiva. A memória primária possui a duração de alguns poucos segundos, faz

contraste com a secundária devido a sua quantidade limitada de armazenamento.

A transformação gradual da memória primária em secundária torna possível o acesso

à informação por um tempo maior. Utilizando como exemplo um estudante que precisa

armazenar rapidamente informações e faz diversas repetições para tentar consolidá-las: “O

esquecimento instala-se infalivelmente se não se estuda regularmente: a memória não é um

gravador.” (LIEURY, 2001, p.90). Desde modo, é natural a transformação da memória a curto

para a de longo prazo, contudo não deve ser praticada a memorização excessiva como via de

facilitação de estudo.

Como apresenta Almeida (2002), a memorização pode ser usada como estratégia de

estudo para que o estudante que possui dificuldade em lembrar-se de um assunto possa

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 71

organizá-lo e, por meio de pistas, acessá-los quando precisar. Desta forma, a memorização é

vista como ajuda, não atrapalhará no decorrer do processo de ensino.

A consolidação da memória sucede a aquisição delas, quando isso ocorre a

informação é estabilizada. De acordo com a ocasião, alguns dados são mais suscetíveis a

serem armazenados. As informações que são captadas ao longo da vida ficam armazenadas na

memória, podem ser acessadas por estarem possivelmente disponíveis através do processo de

evocação, que “consiste em extrair da memória um item específico.” (LINDZEY, HALL;

THOMPSON, 1977, p.218). E, portanto, o esquecimento pode ocorrer devido uma falha nessa

busca de informação, algumas vezes por distração ou como Schacter (2002, p. 184) enfatiza:

Tem sido estabelecido que o esquecimento possa ocorrer rapidamente numa escala

de tempo ou segundos, ao em vez de minutos, horas ou dias. O esquecimento rápido

foi atribuído à operação de curto prazo ou do sistema de memória de trabalho.

O esquecimento acontece de forma natural e juntamente com outras características

torna o homem diferente da máquina, para Izquierdo (1989) nós esquecemos mais do que

recordamos e isso pode ser causado pelo tempo, podemos esquecer-nos de números

aprendidos no dia anterior e ainda lembrar-se de um fato marcante que ocorreu anos atrás.

A memorização é utilizada e estimulada desde a infância, já que esta é uma das

formas para “exercitar” a memória, sendo esta trabalhada tanto no ambiente escolar quanto no

familiar. Porém não se deve fazer o uso dela de forma exacerbada, pois poderá ser prejudicial

ao desempenho escolar do aluno e a confiança que ele estabelece no método decorativo, uma

vez que a memorização de conceitos não significa a aprendizagem deles.

Considerações Finais

No Brasil, a busca por uma educação de qualidade precisa ser determinada pela

relação família-escola, no entanto, segundo Ribeiro (1991), para os pais, a frequência que o

aluno vai a escola é mais importante do que a qualidade de ensino. Desse modo, para o aluno

estar presente, mesmo que não prestando atenção nas aulas, se torna, algumas vezes, uma

obrigação desinteressante, porém fundamental.

Pais e educadores priorizam a memorização como um recurso essencial para que a

aprendizagem ocorra, esquecendo-se de outros recursos predominantes que podem promover

a interação e possibilitar a aprendizagem, como a brincadeira, o jogo, o lúdico. Contudo, é

importante não condenar a prática da memorização, sendo ela possível de ser evocada e então

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 72

aplicada além de conceitos, como por exemplo, na resolução de uma questão. Afinal, como

foi dito anteriormente, ela nós é necessária desde a infância, portanto utilizada durante toda a

vida. Porém, a memorização pode assumir um aspecto cansativo para quem a utiliza, quando

muita exigida, e acaba sendo um desestímulo no ensino fundamental, tornando desinteressante

o processo de aquisição de informações.

Quando se fala em escolas, no nosso país, aparentemente, as que são privadas se

tornaram mais eficazes para a formação dos alunos que, posteriormente, irão ingressar na

faculdade. E, apesar de que a memorização seja um problema tanto em escolas públicas e

privadas, estamos em um círculo de problema muito maior na educação brasileira, já que: “O

único (e último) momento em que se tenta fazer uma avaliação do domínio cognitivo dos

alunos é por ocasião do vestibular aí se constata o seu baixo desempenho” (Ribeiro, 1991, p.

19). A mudança de didática estrutural e a atualização de métodos de ensino são da

responsabilidade das escolas fundamentais para melhor aproveitamento e aplicação de

métodos que possam ser aproveitados pelos estudantes.

Uma proposta para facilitar a aquisição e compreensão seria promover a interação

por meios de jogos, com o fim de estimular o estudante a se interessar pelo assunto

ocasionalmente trabalhado com e pelo professor. Além do que, a interação entre os

participantes promoveria um ambiente mais agradável para estudo. Afinal, os dois processos,

a assimilação e, posteriormente, a acomodação, conforme Piaget (1975) pode ocorrer de

forma mais simples e natural por meio de uma dinâmica.

E ainda, a ausência da memorização não é uma opção, pois ainda que ela seja

utilizada de forma antiquada pelos estudantes e professores, ela, como dito anteriormente, é

necessária desde a infância e quando aplicada nos estudos como alternativa e não como

indispensável, se torna um dos métodos auxiliares dos alunos no decorrer do processo de

aprendizagem sem que atrapalhe o mesmo.

Hoje, com todo o acesso a tecnologia e a programas que facilitam o dia a dia em sala

de aula, há recursos disponíveis que facilitam a aprendizagem; é importante deixar de

restringir os objetivos do ensino. Assim, torna-se de maior relevância que o estudante consiga

compreender o que está sendo aplicado em sala de aula e assumir uma postura crítica.

Referências

ALMEIDA, Leandro S. Facilitar a aprendizagem: ajudar os alunos a aprender e a pensar.

Psicologia Escolar e Educacional, 2002 Vol.6, n.2 155-165. Disponível em:

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 73

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572002000200006 Acesso

em: 04/05/15.

BARBER, Paul J. & LEGGE, David. Percepção e Informação. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

HOLT, John. How children learn. Revised Edition. Cambridge: Da Capo Press, 2009.

IZQUIERDO, Ivan. Memórias. Estudos Avançados, 1989, Vol.3, n.6. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141989000200006 Acesso

em: 02/03/15.

LIEURY, Alain. Memória e aproveitamento escolar. Edições Loyola, 2001.

LINDZEY, Gardner; HALL, Calvin S.;THOMPSON, Richard F. Psicologia. Editora

Guanabara Koogan S.A. Rio de Janeiro, 1977.

MOITA LOPES, Luiz Paulo. Oficina de Linguística Aplicada. Campinas: Mercado das

Letras, 1996.

PIAGET, Jean. O Nascimento da inteligência na criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar;

Brasília. INL, 1975.

RIBEIRO, Sérgio Costa. A pedagogia da repetência. Estud. av.[online], vol.5, n.12. 1991.

SANTOS, Antônio Raimundo. Metodologia Científica: a construção do conhecimento. 5 ed.

Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

SCHACTER, Daniel L. The seven sins of memory: How the mind forgets and remembers.

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VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. 4º ed. São Paulo, Martins Fontes, 1984.

TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa

qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1988.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 74

OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE

MATERNA1

[Voltar para Sumário]

Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH)

1. Introdução

Os estudos linguísticos das últimas décadas têm colocado em pauta muitas questões

em torno do ensino de línguas, principalmente relacionadas ao trabalho com os gêneros do

discurso que materializam as práticas sociais situadas. Além disso, novas práticas discursivas

decorrentes das tecnologias da informação estão atraindo os alunos à nova realidade social e,

consequentemente, à produção e utilização de novos gêneros discursivos próprios de

ambientes midiáticos, aqui denominados de gêneros discursivos digitais.

Diante disso, o presente artigo baseia-se nas considerações de Bakhtin (2000) acerca

dos gêneros do discurso, nos postulados de Marcushi (2005) com relação aos gêneros

emergentes e, ainda, nas ideias de letramento (KLEIMAM, 1995; TFOUNI, 1988; SOARES,

2002), letramento digital (SHEPHERD e SALIÉS, 2013), multiletramentos e multisemioses

(ROJO, 2013).

Objetiva-se com o estudo, desenvolver uma pesquisa quantitativa de coleta de dados,

ao mesmo tempo em que utilizamos a abordagem qualitativa para a interpretação dos dados,

configurando nossa pesquisa como quantitativo-qualitativa. Isso, para atender ao nosso

propósito de evidenciar quais os gêneros discursivos digitais que estão sendo usados pelos

alunos.

Diante disso, a nossa pesquisa torna-se relevante à medida que contribui tanto para as

teorias dos gêneros do discurso quanto para o campo da Linguística Aplicada.

A partir dessa abordagem, o artigo apresenta a seguinte divisão: i) na primeira seção,

apresentamos o nosso trabalho; ii) na segunda seção, apresentamos uma discussão teórica

1 Pesquisa realizada no curso de Pós-Graduação “Ensino e Aprendizagem de Línguas”, na Universidade Federal

do Rio Grande do Norte – CERES – Currais Novos/RN.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 75

sobre a significação dos gêneros do discurso e sua constituição, seguida de conceituações

sobre os gêneros discursivos digitais; iii) na terceira seção, expomos os procedimentos

metodológicos adotados para o desenvolvimento do estudo; iv) na quarta seção, são

apresentadas as análises dos dados coletados e os resultados da pesquisa; v) por fim, na quinta

seção, tecemos as conclusões alcançadas com o estudo.

2. Os gêneros do discurso e sua constituição

Bakhtin (2000) afirma que a utilização que fazemos da língua dá-se por meio de

enunciados orais e escritos que emanam de uma ou de outra esfera da atividade humana. Os

enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada esfera através da sua

construção temática, estilística e composicional. Cada esfera de utilização da língua elabora

seus tipos relativamente estáveis de enunciados, assim chamados de gêneros do discurso.

O surgimento dos gêneros do discurso se dá mediante a necessidade de uso da língua

em uma dada esfera social. Esta, por excelência, comporta um conjunto específico de gêneros

que vão modificando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se transforma e fica

mais complexa.

Com relação à caracterização dos gêneros, Bakhtin (2000, p. 281) faz uma distinção

entre gêneros primários e secundários, afirmando,

Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial existente entre os

gêneros do discurso primário (simples) e o gênero do discurso secundário

(complexo). O gênero secundário do discurso – o romance, o teatro, o discurso

científico, o discurso ideológico, etc. – aparecem em circunstância de uma

comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente

escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o seu processo de formação, esses

gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas

as espécies, que se constituíram em circunstância de uma comunicação verbal

espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros

secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular:

perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos

enunciados alheios [...] (Grifos do autor).

Essa distinção entre os gêneros primários e secundários, para o autor, é considerada de

grande importância, uma vez que a natureza do enunciado deve ser estudada por meio de uma

análise de ambos os gêneros, caso contrário, corre-se o risco de não entender os aspectos

essenciais do enunciado, ou seja, a inter-relação existente entre os dois gêneros, juntamente ao

seu processo histórico de formação.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 76

2.1 Os gêneros do discurso digitais na contemporaneidade

A plasticidade e dinamicidade da linguagem torna-se a maior responsável pelas

mudanças sociais, políticas e culturais geradas pela capacidade de criatividade do ser humano.

Essas transformações são decorrentes da necessidade de comunicação e do uso

particularmente acelerado de equipamentos tecnológicos e de novas Tecnologias de

Informação e Comunicação (TICs). Com essas mudanças, o uso da língua nas diversas esferas

sociais passa por um processo de adaptação e construção de novos gêneros para adequar-se a

esse novo contexto de uso da língua.

Nos ambientes virtuais, os gêneros surgem em função de um novo tipo de

comunicação “conhecida como Comunicação Mediada por computador (CMC) ou

Comunicação Eletrônica e desenvolve uma espécie de ‘discurso eletrônico’” (MARCUSCHI,

2005, p. 15). Esse fator é preexistente do uso acelerado das tecnologias computacionais nas

últimas décadas do século XX, uma vez que favoreceu, enormemente, ao uso da escrita

eletrônica, e consequentemente, o que o autor chama de “cultura letrada” (Ibid., p. 14),

“cultura eletrônica” (Ibid., p. 15) e “letramento digital” (Ibid., p. 15). O surgimento desses

novos gêneros possibilita a categorização do que chamamos de gêneros digitais, entendidos

como o uso de discursos eletrônicos que circulam nos ambientes virtuais, mediados pelo uso

das tecnologias digitais e ainda um fenômeno sócio-histórico situado de uso da linguagem.

Marcuschi (2005, p. 33) ao tratar sobre os gêneros em ambientes virtuais afirma que

eles se caracterizam pela sua interatividade de múltiplas semioses, pois

tendo em vista a possibilidade cada vez mais de inserção de elementos visuais no

texto (imagens, fotos) e sons (músicas e vozes) pode-se chegar a uma interação de

imagem, voz, música, e linguagem escrita numa integração de recursos

semiológicos.

Assim, do ponto de vista formal e estrutural, esses gêneros digitais podem ser

considerados mais envolventes para serem utilizados em sala de aula como recurso de ensino

de Língua Portuguesa. Será mais atrativo para o aluno, por exemplo, estudar um gênero que

trate sobre literatura com os recursos semióticos, do que ler esse mesmo gênero em um livro

didático, pois, de certa forma, esse novo gênero estudado no espaço digital, acaba sendo

distinto do gênero de texto comum estudado na escola, até mesmo por sua característica de

contemporaneidade.

Marcuschi (2005), em seu trabalho, apresenta uma lista dos gêneros digitais mais

conhecidos e estudados até então, assim denominados: E-mail; Chat em aberto (bate papo

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 77

virtual em aberto – room chat); Chat reservado (bate papo virtual reservado); Chat agendado

(bate papo agendado ICQ); Chat privado (bate papo virtual em salas privadas); Entrevista com

convidado; E-mail educacional (aula virtual); Aula chat (chat educacional); Vídeoconferência

interativa; Lista de discussão (mailing list); Endereço eletrônico; Weblog (blog; diários

virtuais).

Esses são apenas alguns gêneros digitais tratados por Marcuschi (2005, p. 29), como

“emergentes”. Essa categorização se dá, segundo o autor, por esses gêneros terem sido

emergidos nas três últimas décadas na mídia eletrônica, através da Comunicação Mediada

pelo Computador (CMC).

Nesse estudo, buscamos identificar os usos sociais não somente dos gêneros

apresentados pelo autor, mas, também de novos gêneros digitais que se fazem presentes

atualmente tanto no contexto escolar como fora dele e que são utilizados pelos alunos e pelo

professor.

3. Aspectos metodológicos

A metodologia usada para a identificação dos gêneros discursivos digitais conhecidos

e usados pelos alunos em sala de aula toma como base o método sociológico do Círculo de

Bakhtin, a considerar aspectos comunicativos sociais aliados aos gêneros do discurso na

interação verbal. Além disso, a análise considera também os gêneros emergentes nos

ambientes virtuais, assim posto por Marcuschi (2005), bem como as teorizações acerca dos

multiletramentos e as multissemioses apresentadas por Rojo (2013).

Assim sendo, o estudo baseia-se em uma análise de dados por meio de uma pesquisa

quantitativo-qualitativa, partindo de questionários direcionados aos alunos do 3º ano do

Ensino Médio de uma escola pública da cidade de Parelhas/RN. O questionário aborda

questões relativas aos usos dos gêneros digitais dentro da escola, a fim de identificar quais são

os gêneros que circulam nos ambientes virtuais mais conhecidos e usados pelos alunos dentro

do espaço educacional e a sua importância para o ensino e aprendizagem.

Respondidos os questionários, os resultados foram representados em forma de gráficos

e tabelas, interpretados tal qual está dado nos questionários e analisados com base nos

pressupostos teórico-metodológicos aqui apresentados.

4 Resultados da pesquisa

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 78

O uso das novas tecnologias tem permitido novas práticas de leitura e escrita, antes

feitas por meio do papel. Isso porque, os ambientes virtuais possibilitam não apenas a

interação com textos escritos, mas também a habilidade de construir sentido em textos

multimodais e multissemióticos (ROJO, 2013). Essa realidade se faz presente também no

contexto educacional, marcado principalmente pela necessidade de se adequar às novas

formas de interação, como percebemos nos resultados aqui apresentados.

De acordo com os dados obtidos na pesquisa realizada com a turma, os gêneros

digitais estão se tornando cada vez mais importantes para a aprendizagem escolar, e o seu uso

passa a ser uma alternativa de construção de conhecimento.

Inicialmente os alunos foram questionados quanto ao uso do computador, se tem

computador em casa ou o usa cotidianamente. 90% confirmaram o uso, tendo apenas 10%

uma posição diferente, conforme pode ser visto no gráfico 1:

Gráfico 1 – Acesso ao computador ou à internet cotidianamente.

Fonte: Autoria nossa.

Com esses dados, observamos que não estão todos os alunos imersos no mundo

digital, e consequentemente essa minoria não tem acesso aos gêneros digitais da mesma forma

que os demais alunos. Por outro lado, se 90% dos alunos estão envolvidos com o uso do

computador, essa maioria usa com frequência os gêneros digitais. Mas, será que essa maioria

é conhecedora do uso que faz dos gêneros digitais?

Ao perguntamos se eles já ouviram falar em gêneros digitais, obtivemos os seguintes

dados:

Gráfico 2: Conhecimento quanto aos gêneros digitais.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 79

Fonte: Autoria nossa.

Nessa questão, enquanto 70% confirmam conhecer os gêneros digitais, 30% dos

alunos afirmam não ter ouvido falar em gêneros digitais, embora, conforme visto no gráfico 1,

90% dizem usar ou ter computador em casa. Isso indica que, apesar usarem os gêneros

digitais no seu cotidiano, essa minoria de alunos não os reconhecem socialmente como

gêneros ou não entendem que já os usam.

Esse resultado, particularmente, aponta para a necessidade de incluir nas práticas

metodológicas escolares o trabalho com os gêneros digitais, uma vez que eles se multiplicam

a cada situação de interação, e são usados com mais frequência em função das tecnologias.

Ora, se nosso aluno, hoje, está conectado aos avanços tecnológicos e multimidiáticos, nada

melhor que aproveitar essa relação de proximidade para torná-lo conhecedor dos tipos de

enunciados que ele mesmo produz ou tem contanto constantemente.

Em outro momento, quando questionados sobre onde usavam os gêneros digitais – na

escola, no trabalho ou nos encontros com os amigos – os alunos afirmaram que:

Gráfico 3: Onde são usados os gêneros digitais?

Fonte: Autoria nossa.

Os lugares em que os gêneros digitais são mais usados pelos alunos é nos encontros

com os amigos, conforme afirmam 95% deles, sendo no trabalho quase não usados, apenas

por 10%, e na escola usados pela maioria, 70%.

Nesses ambientes, os gêneros livremente citados pelos alunos foram:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 80

Tabela 1: Gêneros usados pelos alunos em ambientes específicos.

Fonte: Autoria nossa.

Os gêneros digitais mencionados pelos alunos enquanto os mais usados no espaço

escolar foram vídeos, fotos e mensagens, cada um com 3 votos. Em seguida, temos os gêneros

pesquisa e texto, com 2 votos, e com apenas 1 voto os gêneros e-mail, slides, músicas,

torpedo e filme. Já no ambiente de trabalho, os alunos citaram apenas o gênero foto e

cadastro, tendo 1 voto para cada deles. Diferentemente de ambientes em que há encontros

com os amigos, pois nesses espaços os alunos citaram a música como o gênero mais usado, 8

votos, mensagens e fotos, 7 votos, vídeos, 5 votos, texto e conversa, 2 votos, e 1 voto para os

gêneros torpedo, imagem, chat, notícia, reportagem e áudio.

Essa escolha nos revela que, mesmo estando em um ambiente educacional, os alunos

mantêm comunicação com os amigos, fato facilitado pelo uso do celular na escola. Esses

gêneros também foram mencionados enquanto os mais usados nos encontros com os amigos,

como podemos perceber na tabela 1, sendo a música o gênero digital mais usado nesse

ambiente. A pouca ocorrência de gêneros digitais em ambientes, como no trabalho, dá-se pois

estamos lidando com alunos que ainda não alcançaram a maioridade, e consequentemente,

como está subentendido, a maioria deles não trabalha.

Partindo para ambientes mais específicos, os alunos foram solicitados a responder com

relação aos gêneros digitais em sala de aula, se o professor faz uso desses gêneros. Vejamos

os dados obtidos com base nos questionários, conforme o gráfico 4:

Gráfico 4: Os gêneros digitais em sala de aula.

Na escola No trabalho Nos encontros com os amigos

Vídeos 3 Fotos 1 Música 8

Fotos 3 Cadastro 1 Mensagem 7

Mensagens 3 Fotos 7

Pesquisa 2 Vídeos 5

Textos 2 Textos 2

E-mail 1 Conversa 2

Slides 1 Torpedo 1

Música 1 Imagem 1

Torpedos 1 Chat 1

Filme 1 Notícias 1

Reportagem 1

Áudio 1

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 81

Fonte: Autoria nossa.

De acordo com os dados do gráfico 4, apenas uma pequena parcela de alunos afirma

não usar os gêneros digitais em sala de aula, 5% deles, enquanto 95% confirmam o uso, e

apresentam as situações metodológicas vivenciadas na aula com esses gêneros. Vejamos na

tabela 2 a seguir:

Tabela 2: Situações de uso dos gêneros em sala de aula.

Situações em que os gêneros são usados em sala de aula

Assistir filmes 10

Ouvir músicas 2

Estudar textos 2

Assistir vídeos 2

Explicar o conteúdo 2

Preencher a lista de presença diária 2

Discutir notícias 1

Fonte: Autoria nossa.

Essas informações nos mostram que são vários os momentos em que os gêneros

digitais são usados pelo professor em sala de aula e que, mesmo com pouca expressividade,

eles estão sendo incluídos no ensino de língua materna, de modo especial ao gênero filme, este

enquanto o mais recorrente nas aulas de língua portuguesa, tendo ele 10 votos. Nas demais

situações mencionadas, os gêneros digitais são usados para ouvir músicas, estudar texto,

assistir vídeos, explicar o conteúdo e preencher a lista de presença, tendo estes 2 votos, e

com apenas 1 voto, o momento de discussão de notícias.

Os alunos foram questionados ainda quanto ao uso de alguns gêneros, pré-

estabelecidos, próprios da modalidade virtual, usados na sala de aula e fora dela.Vejamos os

gráficos a seguir:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 82

Gráfico 5: Gêneros digitas usados na escola

Blogs26%

Vídeos26%

E-mail20%

Sala de bate papo

8%

Torpedo8%

Mensagens Intantânea

5%

Fórun5%

Vídeo-conferência

2%

Fonte: Autoria nossa.

Nesse gráfico percebemos que os gêneros digitais mais usados na escola, enquanto

gêneros emergentes da cultura digital, conforme Marcuschi (2005), são os blogs e os vídeos,

sendo ambos 26% mais usados. Seguindo a ordem decrescente de uso, o e-mail foi o terceiro

gênero considerado mais usado, 20%, seguido do gênero sala de bate papo, com 8%, fotos e

mensagens, 5%, e com apenas 2% o gênero vídeoconferência.

Foi importante para a pesquisa, ainda, observar quais os gêneros próprios da

modalidade escrita que estão sendo usados na modalidade virtual, tanto na escola quanto fora

dela.

Gráfico 6: Gêneros usados na escola na modalidade virtual

Fonte: Autoria nossa.

A letra de música foi considerado o gênero da modalidade escrita mais usado na

escola na modalidade virtual, com 13%, seguido dos gêneros artigo de opinião, resenha de

livro, filme e fotos/imagens, todos com 12%. Além disso, em ordem decrescente de uso, temos

o gêneros gráfico, com 9%, a notícia, com 8%, a crônica, 7%, histórias em quadrinhos, carta

e propaganda, com 6%, a entrevista, com 5%, e a reportagem, com 4%.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 83

Quando perguntados sobre a preferência de gênero, digital ou impresso, para ler uma

notícia de jornal, os dados obtidos foram:

Gráfico 7: Preferência entre o gênero digital ou impresso.

Fonte: Autoria nossa.

Enquanto 10% dos alunos afirmam preferir ler uma notícia em um jornal impresso,

75% deles afirmam ser a notícia de jornal digital a favorita, e ainda justificam essa preferência

com enunciados do tipo: “É mais rápido e prático”; “Pela facilidade”; “Por facilitar a

interpretação”; É mais fácil e compacto, posso ler em qualquer lugar”; “Tenho mais

acesso”. Essas respostas são indícios do quanto os gêneros digitais são importantes como

recursos metodológicos para a prática de ensino do professor, bem como refletem as novas

formas de ler que são subjacentes às práticas de escrita da contemporaneidade.

Além disso, nas aulas de Língua Portuguesa, especificamente, para que a

aprendizagem aconteça, é imprescindível que as práticas de ensino estejam adequadas à

realidade dos alunos, às suas vivências e aos seus costumes. Esse tipo de prática visa

potencializar habilidades e competências do aluno para atuação social de forma mais efetiva,

garantindo-lhe sucesso nas interações mediadas pelos gêneros discursivos digitais com os

quais ele se depara no ambiente digital. Logo, o aluno que tem contato com esses gêneros na

escola estará mais apto, ou letrado digitalmente (SHEPHERD e SALIÉS, 2013), para agir

socialmente por meio deles.

Quando indagados sobre a importância dos gêneros digitais para o aprendizado e,

ainda, a contribuição desses gêneros em comparação aos gêneros impressos, os alunos

responderam que aqueles: “Facilitam o estudo de qualquer assunto”; “Torna a aula mais

interessante”; “São melhores, práticos e fáceis de usar”; “Ajuda no conhecimento de novos

gêneros usados no dia a dia”; “Proporciona sair da rotina”; “Ajuda a completar o que às

vezes faltam nos livros, jornais ou revistas”. Vejamos os dados quantificados no gráfico 12:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 84

Gráfico 12: Os gêneros digitais contribuem para o aprendizado?

Fonte: Autoria nossa.

85% dos alunos afirmaram que os gêneros digitais contribuem para no seu

aprendizado, ao passo 10% deles alegam que essa contribuição se dá em partes, resposta essa,

a qual subentende-se, que se não usados em um contexto de ensino específico os objetivos de

aprendizagem não serão alcançados.

Percebemos então, a partir das respostas que há uma multiplicidade de gêneros digitais

sendo usados e construídos em favor dos avanços tecnológicos. A inclusão desses gêneros

nas aulas de Língua Portuguesa se faz cada vez mais necessária e urgente de forma que os

alunos assumam uma posição de, além de usuários, conhecedores e reconhecedores dos

gêneros discursivos digitais existentes, bem como do seu uso e do próprio processo de

construção do gênero, tanto no que diz respeito a sua estrutura composicional, tema e estilo.

Os resultados nos revelam que alguns gêneros digitais estão sendo mais usados hoje na escola,

como é o caso do blog (gráfico 5), além de fotos, vídeos e mensagens (tabela 1).

5. Conclusão

Os resultados apresentados e discutidos nesse estudo serviram para compreendermos

que, hoje, inicialmente, a questão não é trabalhar as práticas de letramento (KLEIMAM,

1995; TFOUNI, 1988; SOARES, 2002) de um só gênero discursivo digital como se ele ainda

não fosse usado pela comunidade discente. Pelo contrário, é relevante estar atento a grande

diversidade de gêneros que surge em função das novas tecnologias e usá-los em sua

variedade, pois, como pudemos perceber, os alunos não usam apenas um gênero digital na

escola ou em outros ambientes sociais, eles estão usando vários deles ao mesmo tempo. Por

isso, aqui, não cabe destacarmos o mais usado pelos alunos, apenas podemos dizer que hoje,

nos contextos educacionais, especificamente na sala de aula, são usados frequentemente

gêneros como o blogs, a letra de música, fotos, vídeos e mensagens, a sala de bate papo,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 85

fotos/imagens, além do artigo de opinião e dos filmes, com mais frequência, porém sem

exclusividade.

Isso mostra que os alunos estão se tornando cada vez mais usuários de uma grande

quantidade de gêneros digitais, embora não tenham ainda o conhecimento pleno de questões

como nomenclatura, composicionalidade, assim como discutidas nas seções anteriores, claro,

salvo algumas exceções. Esse dado se justifica pela grande variedade de gêneros usados ao

mesmo tempo em uma só mídia, o computador.

Referências

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo:

Martins Fontes, 2000.

_______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (1934-1935). Trad.

Bernadini, et. al. 4. ed. São Paulo: Unesp, 1998.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. ______;

XAVIER, A. C. (orgs.). Hipertexto e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2005,

p. 13-67.

LIMA. M. B.; GRANDE, P. B. Diferentes formas de ser mulher na hipermídia. In: ROJO, R.

(org.). Escol@ concectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. p. 37-

58.

KLEIMAN, A. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: _______

(Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da

escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 15-61.

ROJO, R. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In: ______. (org.).

Escol@ concectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. p. 13- 36.

SHEPHERD, T.; SALIES, T. Linguística da Internet. São Paulo: Contexto, 2013.

SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educ. Soc.,

Campinas, Vol. 23, n. 81, 2002, p. 143-160. Disponível em:

<http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935>. Acesso em 18 de maio de 2014.

TFOUNI, L.V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 86

ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA

EXPERIÊNCIA DIDÁTICA COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI

SIMULADO [Voltar para Sumário]

Alberto Felix da Hora (UPE)1

Introdução

É evidente a necessidade e a relevância do trabalho com gêneros textuais orais nas

aulas de língua portuguesa na educação básica.

Não há o menor sentido linguístico em se atribuir maior importância ao ensino da

modalidade escrita ou da oral, pois nos comunicamos em situações de uso real, social e

cultural fazendo uso de ambas as modalidades da língua, numa concepção de língua como

prática social e histórica e um meio pelo qual os usuários da língua interagem uns com os

outros. Essa interação se dá por meio de textos que se manifestam linguisticamente na forma

de gêneros textuais diversos orais e escritos.

Quanto à necessidade de exercitarmos a nossa capacidade argumentativa por meio da

fala e da escrita, bem como da constância desse uso, Marcuschi (2005, p. 31) corrobora

“Sabemos que a argumentatividade é um aspecto essencial no uso da língua. Isso pode ser

treinado e analisado em suas formas peculiares de ocorrer na fala e na escrita”.

A oralidade deve ser abordada no ensino da língua portuguesa, constituindo, portanto,

um eixo que possibilite o trabalho com a linguagem, desenvolvendo nos alunos um domínio

linguístico capaz de exercer seu papel sociocomunicativo, via modalidade oral, nas diversas

situações de uso da linguagem dentro e fora do espaço escolar.

O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma experiência didática com o

gênero textual júri simulado, para trabalhar os domínios da oralidade e da argumentação oral

numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental. Para tanto, nos embasamos no Interacionismo

1 Mestrando do Profletras da UPE – Garanhuns. Especialista no Ensino de Língua Portuguesa. É docente de

Português Jurídico na Faculdade ASCES – Caruaru. É professor de Língua Portuguesa na Secretaria de

Educação Estadual de Pernambuco. Email: [email protected]

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 87

Sociodiscursivo (ISD) defendido por Bronckart (1999) por conceber a linguagem como

fenômeno indissociável da interação social, nas concepções de ensino de gêneros textuais

abordadas por Marcuschi (2005, 2008) e nos estudos de Koch (2011) e Pinto (2010) sobre

argumentação. O procedimento metodológico adotado foi uma sequência didática para o

ensino do gênero textual júri simulado conforme Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004).

As atividades pedagógicas, vivenciadas por meio da sequência didática com o júri

simulado, proporcionaram avanços no domínio linguístico discursivo dos discentes quanto ao

uso de argumentos por meio da oralidade.

O presente trabalho pretende detalhar como as atividades foram desenvolvidas,

pontuando, inclusive, as contribuições efetivadas na turma, como também as dificuldades

apresentadas.

Dessa forma, acreditamos que a experiência didática com o gênero júri simulado nas

aulas de Língua Portuguesa podem trazer diversas contribuições para o desenvolvimento oral

argumentativo dos discentes.

1. O ensino dos gêneros textuais

Tradicionalmente a palavra gêneros foi sempre utilizada pela retórica e pela teoria

literária a fim de caracterizar os gêneros clássicos, tais como: o lírico, o épico e o dramático,

ou até mesmo os gêneros modernos, como o romance e a novela, entre outros.

Essa noção ganhou importante extensão a partir das ideias defendidas por Bakhtin em

meados do século XX, que passa a incorporar a palavra gênero na referência aos textos usados

nas situações cotidianas de interação por meio da comunicação oral e verbal.

Schneuwly (2004, p. 25) resume desta forma o posicionamento Bakhtiniano:

cada esfera de troca social elabora tipos relativamente estáveis de

enunciados: os gêneros;

três elementos os caracterizam: conteúdo temático – estilo – construção

composicional;

a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática,

o conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor.

A partir da visão estabelecida por Bakhtin, percebe-se que os textos produzidos, orais ou

escritos, oferecem um conjunto de características relativamente estáveis, configurando-se em

diversos gêneros textuais, que podem ser caracterizados por três aspectos ou elementos

básicos: o tema, a estrutura e os usos específicos da língua.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 88

É perceptível a magnitude da proposta de adoção dos gêneros textuais como objeto de estudo

e ensino nas escolas, sobretudo, por nos possibilitar o uso das diversas formas de expressão

oral/escrita que circulam socialmente.

É perfeitamente possível elaborarmos construções informais e formais, textos coesos e

coerentes tanto na modalidade escrita quanto na oral.

Afirmar que a escrita é formal, complexa, enquanto a fala é informal e simples não é

suficiente, nem tampouco coerente linguisticamente, pois, como afirma (Koch 2012, p. 78),

“existe uma escrita informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se aproxima da

escrita, dependendo da situação comunicativa”.

Ora, se analisarmos do ponto de vista dos usos sociais da língua, fica perceptível que

língua falada e língua escrita não são responsáveis por domínios estanques ou dicotômicos.

Segundo Marcuschi (2008, p. 37), “Há práticas sociais mediadas preferencialmente pela

escrita e outras pela tradição oral (...) Oralidade e escrita são duas práticas sociais e não duas

propriedades de sociedades diversas”.

Cabe, portanto, aos docentes, nas atividades que visam desenvolver a capacidade de

uso linguístico dos seus alunos, oferecer ambas as modalidades reconhecendo a função social

e os usos dos gêneros textuais orais e escritos.

2. Oralidade em foco

O oral se ensina, mas não conseguiremos formar alunos competentes linguisticamente

em relação ao uso oral, enquanto as aulas apresentarem propostas genéricas de discussões nas

salas de aula. Quanto a esse aspecto Barbosa (2000, p. 154) aduz que:

Essas práticas acabam sendo pouco producentes (...) o que deveria estar em questão

são as diferentes formas de dizer, determinadas por diferentes situações

comunicativas (...) em vez de aulas que tematizem o falar ou a oralidade de uma

forma geral, pode-se e deve-se tomar os gêneros orais públicos como objetos de

ensino.

Para encontrar caminhos para ensiná-lo, vejamos o que os PCNs apontam em relação

ao processo de escuta de textos orais, espera-se que o aluno no Ensino Fundamental:

Amplie, progressivamente, o conjunto de conhecimentos discursivos, semânticos e

gramaticais envolvidos na construção dos sentidos do texto;

Reconheça a contribuição complementar dos elementos não verbais (gestos,

expressões faciais, postura corporal);

Utilize a linguagem escrita, quando for necessário, como apoio para registro,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 89

documentação e análise;

Amplie a capacidade de reconhecer as intenções do enunciador, sendo capaz de aderir

a ou recusar as posições ideológicas sustentadas em seu discurso. (PCNs, 1998, p.

49)

Dolz & Schneuwly (2004) destacam a relevância de também se considerar no trabalho

com gêneros orais - além dos meios linguísticos e prosódicos - os meios não-linguísticos da

comunicação oral (meios paralinguísticos, cinésicos, posição dos locutores, aspecto exterior e

disposição dos lugares).

A adoção de uma sequência didática com o gênero textual júri simulado oportuniza

aos docentes de Língua Portuguesa trabalharem tanto os recursos linguísticos da

argumentação quanto os meios não-linguísticos da comunicação oral. Os alunos vivenciando

as funções de juízes, julgadores, defensores e promotores, notadamente, utilizarão recursos

paralinguísticos (qualidade da voz, elocução), cinésicos (movimentos, gestos, olhares e

atitudes corporais diversas), posição dos locutores (ocupação de local adequado e espaço

pessoal), aspecto exterior (vestimentas adequadas) e disposição dos lugares (sala adequada,

iluminação, disposição das cadeiras e mesas).

A proposta de ensino das práticas de oralidade deve estimular os alunos a desenvolver

as capacidades de uso da língua em diferentes realidades e finalidades, levando-os a uma

reflexão mais sistemática sobre as práticas de linguagem e o planejamento e avaliação do

discurso oral.

3. Retórica e argumentação

O homem, como ser social, sempre esteve em contato com a natureza e também em

pleno relacionamento com os seus pares. Esse relacionamento social e linguístico entre os

homens fomenta a necessidade comunicativa e, por conseguinte, a comunicação com o intuito

de convencer o outro, a necessidade de argumentar para fazer valer o seu ponto de vista

acerca de um tema.

Na sociedade atual, cada vez mais, o indivíduo precisa se posicionar sobre temas

polêmicos, opinar, avaliar, fazer escolhas, julgar. E para isso, por meio do discurso, sempre

dotado de uma carga de intencionalidade, tenta fazer valer suas opiniões, com o propósito de

conduzir o interlocutor a compartilhar das suas convicções. Koch (2011, p. 17) afirma que “o

ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões,

constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia”.

Os primeiros estudos acerca da retórica surgem com Aristóteles (384-322a.C.) -

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 90

pensador e filósofo grego – na sua obra intitulada Retórica encontramos subsídios para

explicitar as teorias mais recentes sobre argumentação.

Ao discutir a retórica como forma de persuasão, Aristóteles buscou aplicar as técnicas

da retórica para a construção da noção de justiça, levando em conta que a noção de justiça não

existe, é construída.

Vejamos como Pinto (2010, p. 36) traduz a definição de retórica segundo Aristóteles,

“a retórica é um instrumento e pode ser usada a serviço tanto do bem quanto do mal,

importando assim a verossimilhança dos fatos”. O que se está querendo aqui afirmar é que a

Retórica argumenta para persuadir as pessoas a agirem no mundo, mas não é natural, é coisa

inventada, pois não existe na natureza.

A partir dos estudos retóricos de Aristóteles, há um alargamento no campo de atuação

da retórica, para além do espaço jurídico e filosófico, se fazendo presente em todas as

situações ou espaços em que se faz necessário convencer alguém.

A grande contribuição de Aristóteles foi demonstrar que o raciocínio jurídico não se dá

pela demonstração matemática e exata da noção de justiça. O conceito de justiça é, em certa

medida, uma invenção retórica que, partindo daquilo que a comunidade tem como valor justo,

pela argumentação é efetivada, o que pluraliza a noção de verdade e que permite nos valer do

dizer popular de que “cada caso é um caso”.

Em 1958 Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca lançam um livro que veio

representar um marco sobre o estudo da retórica “Tratado da argumentação: a nova retórica”.

A obra rompe com o conceito positivista e racional preconizado por Descartes, que

desconsiderava o verossímil como um possível critério a ser utilizado na argumentação. Os

autores resgatam a importância da verossimilhança e da dialética, contrapondo-as à

obrigatoriedade do raciocínio e da pura verdade. Sobre esse aspecto Pinto (2010, p. 44)

comenta:

Para Perelman & Olbrechts-Tyteca, a noção de evidência, no intuito de caracterizar

a razão, pode ser fundamental para a teoria da argumentação, mas deve ser entendida

numa escala proporcional e não deve ser decodificada como uma verdade absoluta.

A argumentação, para Perelman, está ligada a um tipo de ação discursiva, a qual

pretende conseguir a adesão do auditório, mas só por meio da linguagem. A persuasão e o

convencimento são elementos que devem atuar de forma paralela à argumentação. A

persuasão se dirige de forma particular a um auditório particular, já o convencimento se

estende, a partir do particular, a um auditório abstrato, universal, coerente com a regra de

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 91

justiça aceita pelo maior número possível de pessoas (valores universais), criando

jurisprudência.

Assim a Nova Retórica é mais que uma teoria da argumentação: trata-se, pois, de uma

análise crítica do Direito, na qual se constata a carga de elementos sociais subjetivos e

objetivos que fundamenta as decisões jurídicas, as quais são tópicas e marcadas por valores

sociais ante a norma jurídica. O Direito deve ser um parâmetro, cujo valor da solução trazida

pela argumentação deve estar em conformidade ao apontar uma resolução que não apenas está

de acordo com a lei, mas é razoável, aceitável, equitativa.

4. A sequência didática com o júri simulado

A pertinência do trabalho, nas aulas de português, com gêneros orais organizados a

partir de sequências didáticas, encontra fundamentação nas ideias de Dolz, Noverraz e

Schneuwly (2004) de que é possível ensinar os alunos a se expressarem oralmente em

situações públicas escolares e extraescolares.

Dolz & Schneuwly (2004, p. 97) definem sequência didática como “um conjunto de

atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral

ou escrito”.

Os representantes da Escola de Genebra defendem que a sequência didática pode

apresentar a seguinte organização:

Apresentação da situação: objetiva expor aos alunos um problema de comunicação bem

definido, além de preparar os conteúdos dos textos que serão produzidos.

Produção inicial: papel diagnóstico, verifica-se os conhecimentos prévios dos alunos, amplia-

se o repertório dos alunos a partir da aproximação deles com o gênero em estudo, inicia-se

atividades de oralidade nas aulas;

Módulos: divididos em seções, abordam as características da situação de produção, da

organização textual, dos aspectos linguístico-discursivos e dos meios não-linguísticos;

Produção final: visa verificar os avanços dos alunos durante o percurso do trabalho com a

sequência didática.

A experiência de trabalharmos oralidade e argumentação nas aulas de Língua

Portuguesa numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental começou com um levantamento

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 92

prévio sobre o que os alunos conheciam sobre o júri, após ouvi-los realizamos uma exposição

mais detalhada acerca do gênero em tela, destacamos os atores envolvidos, seus respectivos

papéis sociodiscursivos e os meios linguísticos e não-linguísticos presentes no domínio

jurídico. Finalizamos a aula informando que nas próximas atividades iriamos assistir a um

filme sobre julgamento, a fim de levá-los a compreender melhor o papel dos operadores do

direito e do júri popular. Desde o início, a perspectiva de atuar no júri simulado deixou-os

interessados.

Na aula seguinte apresentamos a temática do julgamento: O trabalho infantil. A

problematização a ser julgada: Permitir ou proibir o trabalho de um jovem de 12 anos como

fretista, aos sábados, na feira livre da cidade? Vale a pena destacar que essa atividade é muito

comum na cidade e no cotidiano dos jovens da escola. Tivemos a preocupação de indagá-los

sobre a problematização e ficou evidente que apenas 5% (dois alunos) dos discentes eram

contra o trabalho de jovens na feira livre da cidade, eles afirmaram que “lugar de criança é na

escola”. Já a maioria que se declarou a favor do frete, alegou questões financeiras e frases do

tipo “é melhor trabalhar do que roubar”, alguns fizeram uma ressalva “desde que não seja um

trabalho forçado”.

Na sequência apresentamos e debatemos o regulamento do júri, definimos que seria

melhor realizá-lo no fórum da cidade, por apresentar uma estrutura propícia ao evento,

inclusive procuramos conscientizá-los sobre a importância de gravar o evento para avaliarmos

posteriormente as nossas participações, além de guardarmos como uma lembrança da

atividade escolar. Os alunos concordaram com a proposta, só que em virtude da reforma do

fórum, realizamos o evento no auditório da Câmara de Vereadores da cidade por ter uma

estrutura física confortável e similar à do fórum.

No regulamento ficou estabelecido o local, a data e horário do evento, funções e

formação dos grupos (Juízes = 5 alunos; Promotores = 8 alunos; Defensores = 8 alunos e

Julgadores = 21 alunos). Aos juízes coube a organização do júri, elaboração de pauta, discurso

de abertura e condução do julgamento, cronometragem do tempo e da mediação dos

confrontos e discussões (o famoso protesto); os julgadores ficaram responsáveis pela decisão

final, na qual cada membro do júri popular deu seu voto, justificando o porquê de sua decisão

de acordo com o que foi apresentado e argumentado pela defesa e acusação; Aos promotores e

defensores coube a tarefa de apresentarem teses e argumentos convincentes a fim de persuadir

o júri popular, inclusive com a oitiva de testemunhas. O regulamento definiu o tempo de

atuação da acusação e da defesa, levando em consideração as seguintes etapas: Teses iniciais:

15 minutos para cada grupo; réplica: 10 minutos para cada grupo e tréplica de 5 minutos. Três

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 93

protestos por grupo. Cada protesto com duração máxima de 1 minuto, não sendo permitido

protestar durante as tréplicas.

Destinamos 2h/aulas para apresentar e explicar os critérios de avaliação. Para isso foi

entregue a cada participante uma planilha de avaliação contendo as expectativas de atuação

dos 4 grupos. Os juízes foram avaliados com base na elaboração do roteiro, saudação às

partes, contextualização do caso em julgamento, trabalho em equipe, cronometragem,

manutenção da ordem, tratamento isonômico às partes, segurança na aplicação das regras,

intervenção coerente nos protestos, vestimentas, postura corporal e linguagem adequada ao

evento. Os promotores e defensores foram avaliados com base na vestimenta, saudação às

partes, trabalho em grupo, contextualização do caso, organização e apresentação da tese,

linguagem adequada ao evento, capacidade de atrair a atenção da audiência, linguagem e

oralidade (postura, fala, entonação, gestos, movimentos, comunicação persuasiva), utilização

e exploração das testemunhas, uso da linguagem argumentativa para refutar e contra-

argumentar, utilização de exemplificações, perguntas retóricas, analogias e citações. Os

julgadores foram avaliados em função do comportamento adequado ao evento (atenção,

silêncio, não comunicação com os outros membros do júri popular, vestimentas), linguagem

adequada ao evento, capacidade linguística de explicar e justificar o voto, linguagem e

oralidade (fala – entonação – gestos).

Solicitamos dos alunos uma atividade em grupo. A realização de entrevistas gravadas

com personalidades da cidade escolhidas por eles, a fim de questioná-las sobre o que acham

do trabalho dos jovens na feira livre da cidade, aos sábados. Essa atividade contribuiu para a

ampliação do ponto de vista dos alunos sobre o tema do júri e ocupou 2h/aulas na sequência

didática.

Destinamos 3h/aulas para a sessão com o filme Tempo de Matar. Houve debate acerca

da temática abordada no filme, bem como o estudo da linguagem e postura adotadas pelos

operadores do direito. Apresentamos, na aula seguinte, um vídeo para o estudo da postura,

fala, entonação e da linguagem persuasiva. Destinamos, ainda, 2 h/aulas para pesquisas no

laboratório de informática sobre as leis e argumentos relacionados ao trabalho infantil,

inclusive criamos um grupo no Facebook (projeto júri simulado) para a interação dos

participantes durante a realização da sequência didática. Outra iniciativa interessante e que

rendeu bons resultados foi a participação colaborativa de um professor da escola com

formação em Direito (fez o papel de orientador da promotoria) e de um ex-aluno do colégio,

estudante de Direito (fez o papel de orientador da defensoria). Esses colaboradores reuniram-

se em 1h/aula com seus respectivos grupos para orientá-los acerca da atuação argumentativa,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 94

inclusive participaram do júri simulado e puderam apoiar e orientar os grupos nos intervalos

entre as teses iniciais, réplicas e tréplicas.

Destinamos 2h/aulas para uma apresentação em PowerPoint sobre o uso dos

operadores argumentativos nos textos escritos e orais.

Realizamos, uma semana antes do júri, visita prévia ao local do evento para

familiarizar os alunos com o espaço físico, locais específicos de atuação dos grupos e explicar

acerca da sequência do júri simulado. A culminância da sequência didática ocorreu com a

realização do júri simulado totalizando 18 h/aulas.

5. Resultados

Passemos, agora, a pontuar os aspectos mais significativos da performance

apresentada pelos grupos durante o júri simulado.

A atuação dos juízes foi satisfatória quanto ao trabalho em grupo, vestimentas,

cronometragem, isonomia no tratamento aos grupos, entonação e gestos, zelo pela

manutenção da ordem. Porém durante o protesto proferido pelos defensores nas teses iniciais

da promotoria os juízes não se pronunciaram (protesto aceito ou negado). Durante o tempo de

fala da defensoria nas teses iniciais, a defensora teve o seu turno de fala interrompido pelo

promotor, neste instante a atuação do juiz foi providencial ao tocar a sineta e advertir o

promotor “Se usa protesto!”. Outro aspecto positivo na atuação dos juízes foi sempre alertar

as partes sobre o tempo restante de fala “gostaria de avisar que a promotoria só tem mais um

minuto!”. Quanto a essa mensagem houve apenas um momento em que a fala do juiz ganhou

um tom de informalidade quando afirmou: “Quero avisar ao povo da defensoria que só falta 1

minuto!”. Porém o mesmo juiz no momento seguinte advertiu dizendo: “Quero informar à

parte da defensoria que só falta 1 minuto!”.

A atuação da promotoria foi marcada pelo argumento de que existem leis no país,

destaque para a Lei 8.069/1990, elas estão para proteger as crianças e os adolescentes, deram

ênfase ao argumento de que quem deve trabalhar para sustentar o menor é o adulto (pai e

mãe) e não o contrário. Exploraram, ainda, os riscos (exposição ao sol, peso e acidentes), e as

ações sociais do governo (Escola Aberta e o PETI). Dos 8 promotores, 4 utilizaram

parcialmente os recursos (entonação, movimentação, discurso persuasivo). Vejamos alguns

trechos da atuação da promotoria:

“como podemos observar as leis proíbem o trabalho de crianças...então e aí vamos rasgar as

leis?”; “Então como ele só pode trabalhar como aprendiz...não tem ninguém ensinando...além

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 95

do carro ser pesado...uns 40 quilos um jovem não tem condições de carregar de manhã no sol

quente...as vezes passando fome!”; “Por que que a mãe e o pai não vão trabalhar...se eles têm

um físico melhor.”; “Eu vou seguir na mesma tecla...será que eles (gesto na direção da

defensoria) queriam que os seus filhos trabalhassem na feira livre? Eu acho que não!”; “Pela

ordem Excelência! Nós vamos fazer primeiro as perguntas à testemunha da defensoria.”

Pergunta a testemunha da defesa “O lugar da criança é carregando frete na feira ou na

escola?”; “A testemunha da defesa falou que ele cursou a faculdade, fez estudos, e ele não

conhece outra pessoa que trabalhava no frete...e então ele não passa de uma exceção porque

na maioria dos casos quem trabalha no frete na feira mal conseguia terminar seus estudos!”.

A atuação da defensoria foi marcada pelo argumento de que vivemos num país de

desigualdades sociais, o trabalho do jovem na feira é digno, em nada atrapalha a sua atividade

estudantil, não é sistemático nem forçado e ainda garante uma ajuda financeira para o jovem

e/ou sua família. Todos os 8 defensores utilizaram muito bem os recursos (fala – entonação –

movimentação – linguagem persuasiva). Vejamos algumas passagens da atuação dos

defensores:

Protesto da defensoria: “A senhora está falando de criança de 12 anos, porém a Lei 8069/1990

afirma que com 12 anos completos estamos falando de adolescente.”; “Há mais de 80 anos

que a feira livre tem existência em nossa cidade e com ela surgiu o chamado frete. Segundo o

historiador, também professor de Língua Portuguesa, Ubiratan Ferreira de Carvalho, quando

criança ele presenciava esses jovens trabalhando não só como fretista, mas também em outras

funções”; “Até hoje nunca houve evidências ou dados de algum acidente ou morte de algum

desses jovens por trabalharem como fretista!”; “não é um trabalho forçado, não atrapalha nos

estudos, pois rebatendo também o que a promotoria falou, o programa Escola aberta ele é

aberto de manhã e à tarde...ele poderia trabalhar de manhã e ir ao projeto escola aberta à

tarde!”; “Vossa Excelência, eu gostaria de chamar nossa testemunha!”; “Bom senhores

julgadores...vejamos bem! Esse policial militar que na sua adolescência trabalhou no frete, e

pelo que foi dito, nunca lhe prejudicou...pelo contrário foi...lhe ajudou a ser mais responsável

e independente”; “Senhores julgadores, peço que reflitam um pouco! O que é mais nocivo ou

perigoso, esse jovem trabalhar e ganhar o seu dinheiro dignamente ou proibi-lo de fazer...e aí

ele roubar ou furtar?”; “o pobre vai trabalhar porque tem necessidade. Estamos falando aqui

de um mundo real onde existem muitas necessidades. O mundo ideal que a lei rege não é

esse!”; “Eu gostaria de reforçar um pouco a fala da Drª Defensora, só recebe o Bolsa Família

quem está estudando, portanto se o fretista está estudando ele vai receber, mas todos nós

sabemos que o bolsa família não dá pra sustentar o jovem e muitas vezes ele quer ter seu

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 96

próprio dinheiro para consumi-lo e não deseja pedi-lo a ninguém!”.

A atuação dos julgadores definiu o resultado do júri simulado com 18 votos a favor da

defensoria (liberação do trabalho do jovem de 12 anos, aos sábados, na feira livre da cidade) e

3 votos contrários. Os membros do júri popular apresentaram ótimo comportamento quanto à

atenção, silêncio, não comunicação entre os integrantes julgadores, porém apenas 6

integrantes demonstraram pleno desenvolvimento da capacidade linguística de explicar e

justificar o voto.

6. Considerações finais

O objetivo deste artigo foi apresentar uma experiência de sequência didática com o

gênero textual júri simulado numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental, proporcionando

um desempenho linguístico satisfatório quanto à oralidade e à argumentação oral dos

discentes.

É relevante destacar a necessidade de realizar, ao longo do ano letivo, mais de um júri,

para que haja um rodízio dos alunos em relação às funções desempenhadas. Notadamente a

sequência didática contribuiu para avanços significativos no domínio linguístico discursivo

dos discentes quanto ao uso de argumentos por meio da oralidade.

É importante, ainda, que os professores tenham a consciência da necessidade de gravar

os eventos relativos ao ensino do oral na escola, com o propósito de poder avaliar melhor os

desempenhos atingidos e redimensionar novas atividades de ensino por meio dos gêneros

orais.

Diante disso, percebemos que trabalhar os aspectos da oralidade e da argumentação

por meio de uma sequência didática com o júri simulado possibilita ao professor de Língua

Portuguesa um trabalho com inovação, criatividade e interatividade, capaz de contribuir para

a formação discursiva competente dos discentes.

Referências

BARBOSA, Jacqueline Peixoto. Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de língua

portuguesa: são os PCNs Praticáveis?. In: ROJO, Roxane (org.). A prática de linguagem em

sala de aula: praticando os PCNs. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2000.

BRASIL/MEC. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:

Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília, 1998.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 97

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 13. ed. São Paulo: Cortez,

2011.

________. A inter-ação pela linguagem. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2012.

MARCUSCHI, L. A. Oralidade e ensino de língua: uma questão pouco falada. In: DIONÍSIO,

Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora (org.). O livro didático de português: múltiplos

olhares. 3. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

________. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 4 ed. São Paulo: Cortez,

2008.

PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Práticas: política, jurídica e jornalística.

Lisboa: Quid Juris – Sociedade Editora, 2010.

SCHNEUWLY, Bernand; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas,

SP: Mercado de Letras, 2004.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 98

POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E

OUTROS GÊNEROS JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS

LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA [Voltar para Sumário]

Alberto Roiphe (UFS)

Introdução

O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), no âmbito do

curso de Letras-Português do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de

Sergipe, possui, desde 2014, um projeto intitulado “Leitura, Escrita e Autoria: o jornal em

sala de aula” e coordenado pelos professores Alberto Roiphe, responsável pela área de ensino

de literatura, Taysa Mércia dos Santos Souza Damaceno e Wilton James Bernando-Santos,

responsáveis pela área de ensino de língua portuguesa.

Os trabalhos realizados neste projeto ocorrem em duas etapas. A primeira se constitui

da orientação dos alunos de Letras quanto à sua atuação em sala de aula. A segunda etapa está

centrada na atuação, de fato, desses mesmos alunos em salas de aula do Ensino Médio da rede

pública de ensino do estado de Sergipe.

O que se pretende evidenciar, neste texto, é, justamente, de que maneira os alunos de

Letras são orientados a atuar em sala de aula, nos minicursos ministrados pelos três

coordenadores do projeto, destacando-se, como exemplo, um atividade desenvolvida durante

o minicurso de literatura “O jornal como mote: práticas de leitura e escrita literária”, a ponto

de se questionar: Em que medida procedimentos lúdicos podem contribuir para aulas de

literatura?

Os procedimentos e suas improváveis fontes

O minicurso de literatura “O jornal como mote: práticas de leitura e escrita literária”

teve como foco a relação entre gêneros jornalísticos e gêneros literários, de forma a

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 99

instrumentalizar os alunos de Letras à criação de atividades lúdicas sempre relacionando os

dois campos de produção.

Para tratar dos gêneros presentes no campo jornalístico, a referência teórica

motivadora ao desenvolvimento do minicurso foi o ensaio “Os gêneros do discurso”, de

Mikhail Bakhtin, no qual o teórico russo estabelece três categorias, a saber, para caracterizar

tal noção:

Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem.

Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão

multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a

unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de

enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse

ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições

específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo

(temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais,

fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção

composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a

construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e

são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da

comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada

campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de

enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. [grifos do autor]

(BAKHTIN, 2003, p. 261-262)

Considerando-se, portanto, as três categorias estabelecidas por Bakhtin, o tema, a

construção composicional e o estilo, é possível afirmar o jornal traz, como se sabe,

privilegiadamente, uma multiplicidade de gêneros.

O procedimento realizado, no âmbito do minicurso de literatura, teve como motivação a

convergência proposta por Manuel Bandeira (2009, p. 110), no seu conhecido “Poema tirado de uma

notícia de jornal”, no qual o autor modernista une, evidenciando já no título, o gênero que se

encontrará em seu texto, um “poema”, e o gênero que deu origem à sua criação “uma notícia

de jornal”.

Para a atividade desenvolvida no minicurso, cada um dos alunos de Letras recebeu um

envelope, contendo um gênero do campo jornalístico, como notícias, mapas, tabelas etc, e um

gênero do campo literário, um poema.

Em primeiro lugar, com os envelopes em mãos, os participantes foram convidados a

observar minuciosamente os gêneros jornalísticos e, da mesma forma que sugere a educadora

francesa Josette Jolibert (1992), em sua obra Former des enfants lecteurs et producteurs de

poèmes, para a criação de poemas a partir de cartões-postais, produziram descrições, contendo

os aspectos ali observados, utilizando-se, evidentemente, de adjetivos, frases nominais,

períodos curtos, estruturas comparativas e uma sucessão de percepções anunciadas a partir de

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 100

seus sentidos.

Em segundo lugar, aproveitando as anotações feitas nas descrições, os alunos

passaram a criar poemas que mantivessem a mesma estrutura do poema contido no envelope,

isto é, o poema criado por um aluno deveria conter as características rítmicas, lexicais,

sintáticas etc do poema encontrado no envelope.

É preciso lembrar que, para a montagem dos envelopes, foram escolhidos,

inicialmente, recortes contendo tanto os textos jornalísticos como os poemas em função da

abordagem temática. Sendo assim: para o poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar (2004,

162), que afirmando de início “O preço do feijão/não cabe no poema”, foi escolhida uma

tabela de cotação preços, que contém os valores do algodão, arroz, boi, café, cana-de-açúcar e

outros produtos; para o poema “Mapa”, de Mário Quintana (2013, p. 69-70), foi escolhido, no

jornal, um mapa meteorológico, acompanhado de uma legenda, incluindo as condições

climáticas em diversas regiões do Brasil; para o poema concreto “Velocidade”, de Ronaldo

Azeredo (1971, p. 25), foi escolhida uma fotografia também com uma legenda, mas, nesse

caso, em forma de lide. O conteúdo da fotografia mostrava três rapazes em suas bicicletas,

trafegando por calçadas esburacadas. Tais rapazes estão, diante dos buracos do chão, em

posições corpóreas que lembram, ironicamente, manobras de participantes de campeonatos de

bicicross.

Levando-se em conta as condições sugeridas para a criação dos poemas, caberia

acrescentar, nesse ponto da descrição da atividade, o que já alertava Nelly Novaes Coelho, em sua

obra O ensino de literatura, na metade dos anos 1960:

Lembramos, apenas, o perigo de cairmos na exageração, ao adotarmos, por exemplo,

o difundido “método da imitação”, recomendado por muitos pedagogos. Exageração

que poderá levar os alunos a uma “esterilização” interior, dando uma “forma” ao seu

pensamento e sufocando-lhe a inspiração. Sem dúvida, o processo de leitura e

comentário dos bons autores, seguido de uma reelaboração do tema, é bastante

proveitoso. Porém é preciso que não se chegue ao extremo de provocar na mente do

aluno o enraizamento de “ideia e frases feitas.” [grifos da autora] (COELHO, 1966,

p. 33-34)

Embora o procedimento de descrever um gênero jornalístico e transpor tal descrição

para a estrutura do poema possa lembrar a redação imitativa, é importante lembrar que a

passagem da leitura para a escrita pode se tornar um exercício do pensar sobre a

caracterização da sequência verbal e visual presentes em ambos os gêneros envolvidos na

atividade. Por esse motivo mesmo e, a fim de provocar alterações nas estruturas

composicionais entre as criações dos alunos de Letras e não manter as mesmas temáticas,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 101

durante a elaboração da atividade, foram montados envelopes, não só em função da

aproximação temática entre os gêneros jornalísticos e literários, mas também em função da

alternância entre os três temas apresentados, isto é, foram preparados envelopes contendo, por

exemplo, o poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar, e a imagem das bicicletas. Foram

preparados ainda envelopes incluindo um recortes com o poema “Mapa”, de Mário Quintana,

e com a tabela de cotação de preços, extraída do jornal. Enfim, uma oportunidade de se

perceber diferentes construções a partir de cada nova combinação entre um gênero literário e

um gênero jornalístico.

Dos recortes e às produções

Para a avaliação dessas produções, foram consideradas as especificidades da

linguagem poética, que trazem em si recursos como a sonoridade, o ritmo, as rimas, as

anáforas, dentro outros recursos relevantes.

O poema abaixo, tomado como exemplo de produção realizada para a atividade

proposta, é de autoria do estudante de Letras da UFS, Pedro Santos da Silva. Intitulado “Não

há água”, o texto do aluno foi elaborado a partir da descrição do um mapa meteorológico do

Brasil e do poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar (2004, 162).

NÃO HÁ ÁGUA

23° cabe em Teresina.

23° cabe em São Luiz (1930)

Ainda cabem nesse país!

22° em:

Salvador;

Natal;

Recife;

João Pessoa;

Cuiabá;

24° em Macapá.

Ainda cabe nesse poema

Boa Vista com insuportáveis 27°

Como também cabe

24° em Fortaleza.

– porque nesse poema, Senhores

Há espaço para “calor ou frio”

Só não cabe mais nesse poema

15° em São Paulo

Lá Senhores secas não há

São apenas alguns metros

Abaixo do nível do Mar...

Observando-se que, na poesia, a estrutura formal tem uma importância considerável,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 102

sobretudo porque está ligada diretamente ao sentido do poema, nota-se que, de forma geral, o

texto, distribuído em três estrofes, como ocorre com o original, expõe as variadas

temperaturas encontradas nas diversas regiões do país.

Essas evidências ressaltam, já de início, o caráter lúdico da criação do poema. Algo

que lembra o que afirma Johan Huizinga, em Homo ludens, quando mostra que a afinidade

entre a poesia e o jogo “se manifesta na própria estrutura da imaginação criadora” (1996, p.

147-148), considerando que “na elaboração de uma frase poética, no desenvolvimento de um

tema, na expressão de um estado de espírito há sempre a intervenção de um elemento lúdico”

(Idem, Ibidem, p. 148)

O jogo proposto pelo aluno, na sua criação, fica claro também, quando se percebe, a

seguir, que ele mantém, de certa forma, a estrutura do poema original, ao mesmo tempo em

que altera a sua temática.

NÃO HÁ VAGAS

O preço do feijão

não cabe no poema. O preço

do arroz

não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás

a luz o telefone

a sonegação

do leite

da carne

do açúcar

do pão

O funcionário público

não cabe no poema

com seu salário de fome

sua vida fechada

em arquivos.

Como não cabe no poema

o operário

que esmerila seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,

está fechado:

“não há vagas”

Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço

O poema, senhores,

não fede

nem cheira

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 103

Ferreira Gullar

Comparativamente, nota-se que o aluno alterou o título do poema “Não há vagas”, de

Ferreira Gullar, para “Não há água”, permitindo-se observar que, na relação entre o título e o

texto, construído a partir de um mapa meteorológico, como se afirmou acima, e repleto de

informações sobre as diversas temperaturas no Brasil, a água que falta é a água das chuvas.

Essa ideia se confirma, quando se encontra, na primeira estrofe, a enumeração de nomes de

capitais do país e suas correspondentes temperaturas, o que contribui para registrar o ritmo do

poema. O verbo “caber” tem seu sentido alterado daquele empregado no texto de Gullar, já

que nunca é precedido do advérbio “não”. Sendo assim, a brincadeira sugerida pelo aluno, é

que tudo cabe no poema. Esse atitude, em seu processo de criação, faz lembrar novamente

Johan Huizinga que, ao defender a tese de que o texto poético e o jogo apresentam elementos

comuns, afirmando a poesia não “possui apenas uma função estética ou só pode ser explicada

através da estética” (1996, p. 134).

Na segunda estrofe, a enumeração, e o ritmo, têm continuidade, mostrando que o

aluno transportou sem dificuldades a imagem do mapa, no sentido amplo do termo, de forma a manter

o sentido do verbo “caber” e, consequentemente, a coerência de seu poema, do qual parece oferecer

lições de linguagem.

Nos versos da terceira e última estrofe, o aluno altera significativamente a estrutura do

poema original, a fim de reforçar sua afirmação, já anunciada no título, de que “Não há água”.

Por isso, ressalta as possibilidades de alternâncias na temperatura, mostrando que “Há espaço

para ‘calor ou frio’, e, em seguida, finaliza o texto, explicando as circunstâncias climáticas de

São Paulo:

Só não cabe mais nesse poema

15° em São Paulo

Lá Senhores secas não há

São apenas alguns metros

Abaixo do nível do Mar...

Tal circunstância, entretanto, quando relacionada ao título do poema, exibe

ironicamente não somente a falta de chuvas, mas a consequência disso, a falta de água

potável, realidade atual da capital paulista, onde nem a paisagem seca, como afirma, traz a

água: São apenas alguns metros / Abaixo do nível do Mar...”.

Em outro poema desenvolvido, nesta mesma atividade, a partir de uma tabela de

cotações de preços, contendo os valores do algodão, arroz, boi, café, cana-de-açúcar e outros

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 104

produtos, e do poema “Mapa”, de Mário Quintana (2013, p. 69-70), o autor, Cássio Augusto

Nascimento Farias, respeita a estrutura do texto original, a ponto de manter alguns de seus

versos, ao mesmo tempo em que troca a palavra “mapa” pela palavra “cotação”, alterando

completamente outros valores do poema: os semânticos.

As cotações

Olho as cotações das cidades

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo

(É nem que fosse meu corpo!)

Sinto uma dor infinita

Dos preços médios do leite

Que jamais entenderei...

Há tanta coisa esquisita

Tanta nuança de preços

Há tanta cidade bonita

Nas cotações que não entenderei

(E há uma porcentagem engraçada

Que nem em sonhos sonhei...)

Quando entender, um dia desses,

Os dados somados das cotações

Nas confusões da economia,

Serei um pouco da loucura

somada, deliciosa

Que faz com que teus resultados

Pareçam mais um olhar

Suave mistério das mesas vazias

Cotações do meu desentender

(Desde já tanto tentar entender!)

E talvez da minha fome

Essa transposição da palavra “mapa” para a palavra “cotação”, por coerência, gera

outras alterações. Por isso, o nome da cidade onde o poeta viveu (ruas de Porto Alegre) vira

nome de produto (preços médios do leite) e as características da cidade (“esquina esquisita”,

“rua encantada”) viram características do produto e de sua comercialização (“coisa esquisita”,

“porcentagem engraçada”), como se pode confirmar, comparando-se o poema do aluno de

Letras ao poema de Quintana que deu origem ao exercício:

O MAPA

Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo...

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 105

(É nem que fosse meu corpo!)

Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita

Tanta nuança de paredes

Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,

Poeira ou folha levada

No vento da madrugada,

Serei um pouco do nada

Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar

Pareça mais um olhar

Suave mistério amoroso

Cidade de meu andar

(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

O que se torna curioso é que os versos mantidos nas duas estrofes iniciais de ambos os

poemas, por exemplo, permitem leituras com duplos sentidos. No poema do aluno, tem-se a

interpretação voltada para a cotação:

Olho as cotações das cidades

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo

(É nem que fosse meu corpo!)

No poema de Quintana, a interpretação se volta, evidentemente, para o mapa:

Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse meu corpo!)

O poema do aluno é finalizado, assim como havia acontecido no anterior, por uma

ironia marcada por termos como “confusões da economia”, “Serei um pouco da loucura /

somada, deliciosa”.

Na invenção do aluno, o que se manteria como anáfora na penúltima estrofe do poema

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 106

original, “Cidade de meu andar / (Deste já tão longo andar!)”, é descontruído e reconstruído,

pela brincadeira com as palavras “entender” e “desentender”:

Cotações do meu desentender

(Desde já tanto tentar entender!)

O último versão, então, dá ênfase à temática escolhida pelo aluno. Por isso, “repouso”

se transforma em “fome”: possibilidade lúdica e, criticamente, lúcida para o leitor sentir e

pensar por meio da linguagem poética.

Esses dois exemplos mostram que o procedimento proposto na atividade exige do

aluno uma análise do poema original para a construção de seu próprio poema, o que se

aproxima do que afirma Alfredo Bosi, em O ser e o tempo da poesia, quando diz que “a

análise descobre o poema” (2000, p. 37). Dessa forma, não é difícil observar que o aluno

estuda o poema original por meio da confecção de seu próprio poema. Não se pode esquecer

ainda que, por meio do procedimento proposto no minicurso, foram estudados também os

gêneros jornalísticos que serviram como fonte para a criação dos poemas.

Considerações finais

Os resultados preliminares dos procedimentos realizados durante o minicurso de

literatura, no âmbito do PIBID Letras-Português da UFS, mostram que o poema, um gênero,

geralmente, distante da Educação Básica em práticas de leitura e de escrita, como se

demonstrou, pode se tornar um objeto de estudo, justamente, por meio de exercícios de leitura

e de escrita. Para tanto, torna-se necessário o desenvolvimento de atividades que incentivem

os professores em formação e, consequentemente, seus alunos, ao trabalho específico com a

linguagem poética. Ficou evidente durante o minicurso que tais aproximações geram maior

interesse por meio de atividades lúdica, entretanto, o desdobramento dessas ações, em escolas

de rede pública de ensino do estado de Sergipe, por meio de exercícios propostos pelos alunos

de Letras da UFS é que poderão confirmar a consequência de trabalhos como esse com alunos

no Ensino Médio.

Referências

AZEREDO, Ronaldo. “Velocidade”. In: Revista de Cultura Vozes. Concretismo. Ano 1, 1971.

Page 110: New Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 107

BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira: poesia completa e prosa. 5ª ed. Rio de Janeiro:

Nova Aguilar, 2009.

BAKHTIN, Mikhail. “Os gêneros do discurso”. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação

verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 261-269.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

COELHO, Nelly Novaes. O ensino da literatura. São Paulo: FTD, 1966.

GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 14ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4ª ed. Tradução de João

Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1996.

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Hachette, 1992.

QUINTANA, Mário. Rua dos cataventos & outros poemas. Porto Alegre: LP&M, 2013.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 108

INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA

PRESSUPOSIÇÃO DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES” [Voltar para Sumário]

Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB)

Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB)

Introdução

As construções linguísticas, materializadas tanto na forma escrita quanto falada,

carregam consigo conteúdos semânticos que, em alguns casos, não estão explicitamente

revelados, mas implicitamente inseridos nas sentenças. De acordo com Ducrot (1987), o

pressuposto é um dos conteúdos implícitos que é descrito por meio do componente. Moura

(2006) se apropria desta classificação em relação à pressuposição, acrescentando apenas a

ideia de que, além da estrutura linguística (semântica), a pressuposição depende também do

contexto (conhecimento compartilhado entre os sujeitos participantes do discurso), contexto

este de natureza semântica. Para este estudo, nos utilizaremos da classificação apresentada por

Moura para a classificação da pressuposição.

Um gênero discursivo bastante relevante para a análise dos sentidos implícitos é o

gênero “frases”. Este se encontra em revistas populares, nas quais a edição dedica uma seção

especificamente para publicar as “frases” que foram ditas por pessoas públicas (artistas;

celebridades; políticos) durante a semana, caso a revista seja de circulação semanal.

O gênero “frases” é constituído da ‘fala’ do locutor/autor (pessoa pública), mais a

contextualização apresentada pelo editor da revista com a finalidade de situar o leitor de que

contexto, situação física, psicológica, a frase foi extraída. Ainda, em alguns casos, a revista

publica uma imagem da pessoa que fala.

Diante do exposto, pretendemos, com este estudo, descrever os sentidos pressupostos

presentes em três “frases” publicadas pela Revista Veja e, em seguida, observar se, a partir da

contextualização da fala, os pressupostos são mantidos, modificados e/ou anulados. Neste

sentido, verificaremos se a contextualização da edição das “frases” em análise comporta-se

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 109

como contexto dinâmico, tal qual é referido por Moura, uma vez que, para o autor, cada

sentença gera um novo contexto e este elimina ou não os contextos anteriormente aceitos.

O corpus para este trabalho foi selecionado de maneira aleatória. Inicialmente foram

selecionadas dezesseis “frases” publicadas pela Revista Veja durante três meses consecutivos.

Todas elas apresentavam informações pressupostas, no entanto, para este estudo escolhemos

apenas três delas.

Esta pesquisa é, portanto, de cunho qualitativo, a qual tem como principais

pressupostos teóricos os postulados de Ducrot (1987); Moura (2000); Pedrosa (2007; 2011),

entre outros.

1. Considerações teóricas

1.1 Uma breve discussão acerca da pressuposição

Para tratar da pressuposição, seguiremos, neste estudo, as abordagens apresentadas

pelo linguista Heronides Moura (2006), o qual trata deste fenômeno linguístico na interface

entre a semântica e a pragmática.

A partir de exemplos, Moura (idem) expõe dois níveis nas informações contidos nas

sentenças exemplificadas. O primeiro nível é o posto, e o segundo, o pressuposto. De acordo

com o autor supracitado, o posto é a informação contida no sentido literal de uma sentença, já

o pressuposto é a informação inferida da enunciação, “a aceitação de verdade do posto leva à

aceitação da verdade do pressuposto” (ibdem).

Ducrot (1987), precursor do estudo da pressuposição, admite que o pressuposto não

pertence ao enunciado da mesma maneira que o posto, mas ocorre de formas diferentes, no

entanto o posto é o que é afirmado enquanto que o pressuposto é o que é apresentado como

pertencendo ao domínio comum dos participantes do diálogo.

Percebemos, então, que Moura corrobora com Ducrot na diferenciação destes dois

níveis, uma vez que ambos afirmam que o posto é o que está dito, enquanto que o pressuposto

é a informação compartilhada entre os participantes do diálogo, informação esta interpretada a

partir de marcadas linguisticamente inseridas na sentença.

Para Moura (idem), a compreensão da pressuposição ocorre, se as proposições forem

aceitas tanto pelo falante quanto pelo ouvinte. A este fenômeno, o autor chama de

conhecimento compartilhado. Assim sendo, “a pressuposição deve ser parte do conhecimento

compartilhado dos interlocutores” (ibdem, p. 17).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 110

Além da marca linguística, existem alguns outros fatores que nos permitem confirmar

se de fato existe a pressuposição dentro de determinada sentença. Moura (idem), respaldando-

se em Ducrot (1987), apresenta o mecanismo de negação do posto para comprovação da

pressuposição, ou seja, a negação do posto não afeta a necessidade de aceitarmos como

verdade o pressuposto. Ao negar a “informação afirmada no posto, o pressuposto ainda

permanece válido” (ibdem, p. 16).

Na primeira versão sobre o estudo da pressuposição, Ducrot (idem) afirma que o

critério comprobatório de classificação da pressuposição é o de que no momento em que o

enunciado é submetido à negação ou à interrogação, os pressupostos continuam inalteráveis.

Ducrot reexamina este estudo e afirma que “quando não se pode transformar, negativamente

ou interrogativamente, um enunciado, pode-se encadear a partir dele” (ibdem, p. 38).

Moura não aborda o mecanismo do encadeamento proposto por Ducrot, mas, além dos

testes com a negação e interrogação, apresenta os testes com o uso do operador modal e do

verbo factivo. Desta forma, em qualquer que seja o caso duvidoso de pressuposição, basta

aplicar estes testes e a evidência de pressuposição se confirmará.

Em algumas sentenças, a existência de expressões já evidencia o implícito

pressuposto. Moura (idem) lista sete tipos de expressões que ativam a pressuposição, a saber:

a) Descrição definida (pressuposto de existência): “o uso de uma descrição definida

pressupõe a existência do ser a que ela se refere” (idem, p. 17).

b) Verbos factivos: lamentar; sentir; compreender; saber; adivinhar.

c) Verbos implicativos: conseguir; esquecer.

d) Verbos de mudança de estado: deixou de; parou de; começou a; iniciar em.

e) Verbos interativos: a ação já tinha acontecido anteriormente.

f) Expressões temporais: depois de; antes de.

g) Sentenças clivadas: “sentenças em que uma sentença simples é dividida em duas

orações a fim de destacar um certo constituinte da sentença” (ibdem, p. 21).

1.2 Refletindo sobre contexto

Diferentemente de Ducrot (1987), Moura (idem) afirma que a pressuposição depende

do contexto e não somente da estrutura semântica e, portanto, a pressuposição funciona a

partir de contextos compartilhados entre os participantes da conversação. Assim sendo, as

palavras e/ou expressões ativadoras de pressuposição impulsionam a informação

compartilhada favorecendo o fluxo conversacional. “A determinação ou não do pressuposto

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 111

de uma sentença depende do contexto conversacional e do conhecimento compartilhado dos

interlocutores” (ibdem, p. 23).

Desta feita, os participantes do discurso assumem como verdadeiros o conhecimento

compartilhado entre eles como também o contexto pelo qual a sentença está referida e daí

constata-se a pressuposição.

Em muitos casos, este contexto é modificado por meio da dinâmica conversacional, ou

seja, à medida que a conversação avança, pode acontecer de o contexto referido ser alterado

conjuntamente. A esta mudança do contexto, alterado pelo processamento da conversação,

Moura (idem) classifica de contexto dinâmico.

De acordo com Moura (idem, p. 46), “o contexto pode ser aumentado de duas

maneiras: (1) pela incorporação dos pressupostos das sentenças enunciadas; (2) pela

incorporação de informações novas contidas nas próprias sentenças enunciadas”. Diante da

inserção de novos contextos à conversação, os pressupostos, que inicialmente foram

comprovados, podem permanecer ou, até mesmo, serem eliminados.

Em alguns casos, acontece a eliminação da pressuposição a partir do uso de dois

conectivos, “e” e “ou”. Este processo é classificado de filtro. Mas, em algumas sentenças,

esses conectivos não filtram a pressuposição contida na sentença simples e ocorre a

permanência do pressuposto na sentença composta. Esta permanência é classificada de

projeção da pressuposição. (MOURA, 2006)

Além destes dois processos, ainda podemos citar os bloqueios e os furos. Os bloqueios

impedem a preservação dos pressupostos das sentenças simples e geralmente são ativados

pelos verbos de atitude proposicional (acreditar; querer; imaginar; sonhar; dizer; contar; falar;

retorquir), os furos preservam (deixam passar) esses processos evidenciados, em sua maioria,

por verbos factivos, operadores modais e a negação. (ibdem)

Mesmo diante da classificação destes processos anteriormente citados (filtros;

bloqueios; furos), os quais são compreendidos somente mediante entendimento semântico,

para a afirmação da pressuposição, valerá não somente esta classificação, mas,

principalmente, a definição do contexto, uma vez que, em alguns casos, a classificação

semântica não é suficiente para a compreensão da pressuposição.

No tópico seguinte, abordaremos algumas considerações a respeito do gênero “frases”,

gênero este que nos servirá de corpus para análise das pressuposições e do comportamento

destes implícitos mediante contextos dinâmicos.

1.3 Gênero “frases”

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 112

Discutindo sobre gêneros discursivos, Bakhtin (2010 [1992], p. 262) afirma que a

imensa quantidade de texto se justifica pelo fato de serem “inesgotáveis as possibilidades da

multiforme atividade humana” e que a cada esfera destas atividades e ações humanas é

integral um grande número de gêneros do discurso, sendo estes maleáveis e dinâmicos. Esta

diversidade textual cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e torna-se mais

complexo uma determinada esfera social.

No caso do nosso estudo, exploraremos a pressuposição em algumas “frases” que

estão publicadas na Revista Veja. Este gênero, assim como todos os demais, possui

características peculiares. É um gênero de tamanho curto, geralmente veiculado em jornais e

revistas. “Estruturalmente, compõe-se na ‘fala’ dos locutores/autores [...], mais o contexto

recuperado [...] do editor” (COSTA, 2009, p. 121).

As “frases” são sempre publicadas a partir de um recorte feito pela edição da revista

ou do jornal a partir de uma fala maior do locutor. Depois deste recorte, a edição situará o

leitor informando qual o contexto e a situação física, psicológica etc., pela qual a “frase” foi

extraída. Segundo Pedrosa (2007), as revistas sempre publicam este gênero com uma forma

padrão, primeiro a ‘fala’ escolhida e depois, logo abaixo da fala, a contextualização.

Para a autora (2007, p. 157), os contextos podem ser classificados de três formas:

contexto informativo (aquele contexto que traz apenas informações sobre a situação, sem que

esteja explícita a opinião do editor); contexto atrelado (aquele que não é suficiente para a

compreensão da fala tendo de recorrer ao contexto de “fala” anterior); e contexto

interpretativo ou tendencioso (aquele que identificamos explicitamente, através de marcas

linguísticas, a opinião do editor).

Segundo ela, é através do contexto que o leitor conhece a “fala” retextualizada.

No primeiro processo, o editor seleciona a ‘fala’ do locutor a partir de um evento

comunicativo mais amplo e a retextualiza segundo critérios bem subjetivos, pois

verificamos que as ‘falas’ não são transcritas, como o uso das aspas poderia sugerir,

mas retextualizadas segundo preferências lexicais, sintáticas, semânticas,

pragmáticas e ideológica do editor (PEDROSA, 2004, p. 2).

Então, “poderemos afirmar que só podemos tratar do gênero discursivo “frases”,

considerando-o em seu conjunto construtivo: ‘fala’ do locutor + contexto do editor”

(PEDROSA, 2007, p. 158). Portanto, é com base nesta constatação que analisaremos a

pressuposição contida em algumas “frases”, ou seja, consideraremos a fala do locutor como

também o contexto do editor.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 113

2. Análise do corpus

Conforme vimos anteriormente, o gênero “frases” é composto de duas partes e a

análise a seguir, visa descrever os pressupostos inseridos no gênero como um todo (fala +

contextualização), observando se esse apresenta sentenças compostas, analisando, em seguida,

se ao inserir novos contextos, a pressuposição inicial é anulada, alterada ou reiterada. Desta

maneira, observaremos se este fenômeno semântico pode ser considerado como característica

do gênero discursivo em estudo.

“Frase” 01:

“A classe C não tem medo de dar vexame.”

GABY AMARANTOS, a Beyocé do Pará,

rainha do movimento musical tecnomelody,

antes conhecido como tecnobrega.

A fala da “frase” acima pertence a uma cantora precursora de um novo movimento

musical, o qual se espalhou pelo restante do Brasil a partir da população de baixa renda do

Estado do Pará.

Essas informações do parágrafo anterior são informações que, possivelmente, estão

compartilhadas entre o enunciador e seus interlocutores. Com base na aceitação de verdade

deste conhecimento compartilhado, podemos considerar que há uma primeira informação

pressuposta nesse texto, ou seja, a pressuposição de que existe uma classe C. Ainda

conseguimos interpretar outra pressuposição na fala da cantora, a de que a classe C dá

vexame. Por já conter uma negação no posto, apliquemos, então, o teste da interrogação para

verificar a comprovação desses pressupostos:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 114

Posto: “A classe C não tem medo de dar vexame.”

Pp. 1: Existe uma classe C.

Pp. 2: A classe C dá vexame.

Int.: A classe C não tem medo de dar vexame?

Através do posto interrogado, comprovamos a existência dos dois pressupostos na fala

da personagem, pois estes implícitos se mantiveram inalterados mesmo com a interrogação do

posto.

Ao observar a contextualização da revista -“Gaby Amarantos, a Beyocé do Pará,

rainha do movimento musical tecnomelody, antes conhecido como tecnobrega”- percebemos

que nela não há informações pressupostas, e que todos os fatos informados apenas reforçam o

conhecimento compartilhado entre os participantes do discurso. Desta maneira, o novo

contexto não modificou e nem ratificou nenhuma da pressuposição inicial da fala da

personagem da “frase”.

“Frase” 02:

“Agora sou só família, trabalho

e eu mesma. Ando ocupada demais

para um namoro sério.”

PARIS HILTON, celebridade, depois de acabar com

o último namorado e antes de engatar com o próximo.

Na primeira sentença da fala da atriz Paris Hilton -“Agora sou só família, trabalho e eu

mesma.”- existe uma marca temporal “agora”, considerada, gramaticalmente, como um

advérbio, que aponta bem na linha do tempo, o momento referido pela atriz. Ao afirmar que

agora Paris Hilton é só família, trabalho e ela mesma, a atriz deixa uma informação

pressuposta, a de que antes ela não era só família, trabalho e ela mesma, ou seja, existia algo a

mais.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 115

Ao ler a segunda sentença -“Ando ocupada demais para um namoro sério.”- o novo

contexto nos informa que, o algo a mais implícito na primeira sentença, nos permite

interpretar que ela se referia a “um namoro sério”. Desta maneira, uma das outras coisas que

existiam em sua vida, além de família, trabalho e ela mesma, era a um “namoro sério”. Assim

sendo, por causa da segunda sentença proferida por Paris Hilton, percebemos que existe uma

intensificação da informação inicialmente pressuposta.

Com a contextualização da revista, ao afirmar -“Paris Hilton, celebridade, depois de

acabar com o último namorado”- este novo contexto confirma a interpretação da

pressuposição de que existia um namoro na vida da atriz e, portanto, confirmamos a

pressuposição dita inicialmente, a de que antes a Paris Hilton tinha um namoro e não só

família, trabalho e ela mesma.

Com a sequência da contextualização da revista, ao dizer -“e antes de engatar com o

próximo”– este novo contexto ainda confirma a pressuposição inicial, isto por causa da

expressão “e antes”, no entanto, argumentativamente, desfaz o que foi dito pela celebridade

ao afirmar que ela engatou um novo relacionamento. Passamos, portanto, a interpretar que a

atriz não é só família, trabalho e ela mesma, uma vez que, conforme a informação apresentada

pela revista, possivelmente ela tenha assumido outro relacionamento.

“Frase” 03:

“Esta é a festa mais sexy do mundo

no canal mais sexy do mundo.”

DR. ROBERT REY, o cirurgião plástico brasileiro que é sucesso em

Hollywood, falando do show trash Sexo a 3, que apresenta na RedeTV!

Na fala acima, podemos interpretar que alguns pressupostos são ativados a partir de

descrições definidas. No momento em que o enunciador afirma -“Esta é a festa”- deixa

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 116

pressupor a existência de algo, e, neste caso, pressupõe a existência de uma festa. Conforme

Moura (2006, p. 18), “esse tipo de pressuposição é chamado também de pressuposto de

existência”.

Consideramos, portanto, que a primeira pressuposição contida na fala do Dr. Robert

Rey é a de que existe uma festa. O segundo pressuposto de existência nesta frase é o de que

existe um canal.

Outras pressuposições podem ser interpretadas neste texto, por causa do uso da marca

linguística “mais”. Ao considerar que existe uma festa e esta é a mais sexy do mundo, a

palavra “mais” ativa o pressuposto de que existem outras festas que são sexy. Da mesma

forma acontece na segunda parte da sentença, quando o médico cirurgião afirma –“no canal

mais sexy do mundo”– a palavra “mais” aciona o pressuposto de que existem outros canais.

Para comprovação destas pressuposições, neguemos e interroguemos o posto e

verifiquemos a permanência dos pressupostos:

Posto: “Esta é a festa mais sexy do mundo no canal mais sexy do mundo.”

Pp. 1: Existe uma festa.

Pp. 2: Existe um canal.

Pp. 3: Existem outras festas que são sexy.

Pp. 4: Existem outros canais.

Neg.: Esta não é a festa mais sexy do mundo não é o canal mais sexy do mundo.

Int.: Esta é a festa mais sexy do mundo no canal mais sexy do mundo?

Comprovamos que, tanto com a negação do posto, quanto com a interrogação, os

quatros pressupostos continuam inalterados. Consideramos, portanto, que os quatros são

pressupostos contidos na fala da “frase”.

A contextualização da revista, nesta “frase”, ao dizer –“falando do show trash Sexo a

3”– ela classifica, nominalmente, a festa que havia sido referida pelo Dr. Rey em sua fala. Em

seguida, a contextualização também nomeia o canal pelo qual tinha se referido o médico

cirurgião plástico. Ao afirmar – “falando do show trash Sexo a 3, que apresenta na RedeTV!”

– a revista considera que o leitor possui o conhecimento de que a RedeTV é um canal de TV

brasileiro e, desta forma, confirma o pressuposto de que existe um canal.

Portanto, com a contextualização da revista, somente dois dos quatro pressupostos

foram confirmados: o pressuposto 1 - existe uma festa - e, depois do novo contexto,

consideramos que esta festa é chamada de Sexo a 3; e também reitera a pressuposição 2 -

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 117

existe um canal - e, a partir da contextualização, conhecemos que o canal referido é a

RedeTV. Os demais pressupostos contidos na fala do Dr. Rey, não foram anulados, alterados

e nem reiterados pela contextualização da revista.

Diante das três “frases” analisadas, consideramos que houve reiteração de pelo menos

um pressuposto em duas delas. Somente em uma “frase” observamos que a contextualização

anula o pressuposto ao ativar outro pressuposto e em apenas uma outra “frase” a

contextualização da revista não interferiu na pressuposição. Desta forma, no corpus analisado,

o novo contexto, inserido a partir da contextualização da revista, em sua maioria, ratificou os

pressupostos inseridos nas falas das celebridades, sendo a anulação e não interferência

ocorrida na minoria das “frases”.

3. Algumas considerações

Como pudemos observar, o gênero “frases” possui bastante relevância no que

concerne à análise dos implícitos pressupostos, uma vez que, a partir de marcas linguísticas,

faz-se possível interpretar todas as informações contidas nas falas das celebridades, mesmo

que estas não tenham sido inseridas de maneira proposital.

Com a análise deste gênero como um todo, ou seja, fala + contextualização,

comprovamos que, de fato, a contextualização da revista ativa novos contextos e este, em

muitos casos, interfere na pressuposição da fala, mesmo que esta interferência seja apenas

para ratificar a pressuposição.

Assim sendo, a análise do corpus atingiu nossas expectativas, pois, como proposto

inicialmente, descrevemos os pressupostos inseridos nas “frases”, aplicando os testes a fim de

possibilitar sua comprovação e, posteriormente, observamos o comportamento dos novos

contextos inseridos a partir da contextualização da revista, verificando se estes anulavam,

alteravam ou reiteravam os pressupostos contidos na fala das pessoas públicas.

Diante destas considerações, observamos que a contextualização ora interfere na

pressuposição, e ora não, nos revelando que, mesmo não sendo recorrente em todos os textos,

consideramos que o contexto dinâmico influência na compreensão e interpretação do texto

como um todo. A partir do novo contexto, novas informações são inseridas e estas permitem,

muitas vezes, maior clareza no entendimento do dito e não dito na fala da personagem.

Além disso, a análise do fenômeno da pressuposição, a partir da inserção de novos

contextos, tornou-se bastante relevante para este estudo, uma vez que o aparecimento de

novos contextos é uma característica intrínseca do gênero “frases” por causa de sua

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 118

construção composicional. A partir da contextualização da revista, as informações

pressupostas podem ser confirmadas ou anuladas permitindo a compreensão de que a

pressuposição discursiva pode ser considerada um fenômeno característico do gênero

estudado.

Sem dúvidas, o gênero em questão é riquíssimo para ser explorado no campo dos

estudos linguísticos, visto que este apresenta a seleção (recorte) das falas de celebridades;

inserem-se considerações da revista em relação às determinadas falas; e, ainda, escolhe-se

imagem ilustrativa da pessoa pública. Todos esses critérios são bastante relevantes para o

estudo em todas as áreas da Linguística e para o meio acadêmico.

Referências

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 119

A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA

NOVELA NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA

BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ ELÉTRICA [Voltar para Sumário]

Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES)

Em A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica, do escritor angolano

Ondjaki, acompanhamos as peripécias de um menino em busca do seu sonho, ganhar um

concurso nacional de estórias, cujo prêmio é uma sonhada bicicleta colorida.

Surpreendentemente, a novela infanto-juvenil não nos coloca atrás da bicicleta, um sonho

comum a muitas crianças. Vamos guiados pela voz do menino-narrador em busca de uma

ideia para escrever a sua estória. Vamos procurar o segredo nos bigodes do tio Rui, de onde

saem as boas ideias para as boas estórias.

O assunto é introduzido nas primeira páginas, ainda não numeradas, onde lemos um

breve diálogo entre o sobrinho que pede licença ao tio para “falar dos restos de letras que a tia

Alice tira do teu bigode à noite?” (ONDJAKI, 2012)1. Diálogo que é respondido também com

um bilhete, assinado pelo “Tio Manuel também Rui”. O paratexto, na orelha do livro, traz a

seguinte dedicatória do autor, Ondjaki, aos escritores Luís Bernardo Honwana, moçambicano,

e Manuel Rui, angolano: “o corpo deste texto é um abraço de amizade e de saudade”

(ONDJAKI, 2012). A filiação reclamada pelo autor, Ondjaki, às literaturas angolana e

africana é explicita. Na narrativa, associamos logo a dedicatória feita ao escritor angolano

Manuel Rui, ao personagem, “tio Manuel também Rui”, que atua, na trama, também como

escritor. Assim, expectativa e mistério introduzem a estória dessa novela infanto-juvenil.

É em torno da expectativa de situar a novela de Ondjaki dentro do sistema literário

angolano e do mistério desses “restos de letras” a cair do bigode do tio Rui que formulamos

nossa problemática. Concordamos com a interpretação da pesquisadora Inocência Mata que

entende certas narrativas angolanas contemporâneas como a “'escrita da nação', embora não

mais numa perspectiva nacionalista” (MATA, 2008, p. 75). Se sabemos que a temática

1 Todas as citações de A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica se referem à edição de 2012 e

serão indicadas a partir de agora apenas pelo número da página.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 120

nacional está presente na literatura angolana em diferentes épocas, é necessário situar em que

fase do relacionamento, entre a literatura e a nação, está a obra estudada. Para tanto, vamos

pelo caminho escolhido pelo menino-narrador, o da própria escrita. A partir da filiação à

literatura africana e, especificamente, à angolana, declarada na dedicatória, interrogamo-nos

sobre a representação ficcional da nação angolana. Procuramos entender como a língua escrita

se torna a expressão de uma língua nacional, tanto na língua literária do escritor Ondjaki,

quanto na língua que os personagens encenam nessa busca por uma estória. Finalmente,

discutiremos sobre como, no exercício da criação ficcional, se materializa o que Barthes

considera um “rumor da língua” (BARTHES, 1988).

Abordaremos a representação da nação proposta por Ondjaki apoiando-nos nas

reflexões da pesquisadora das literaturas africanas de língua portuguesa, Inocência Mata que

analisa a “escrita angolana pós-colonial” como “uma escrita de ruptura.” (MATA, 2008,

p.75). Entendemos que o corte com o passado colonial, expresso na literatura angolana

contemporânea, caracteriza-se pelo abandono dos temas relacionados a terra-mãe-Angola por

romper com uma escrita marcada pela utopia de uma nação, que valorizava uma essência

tipicamente angolana. No entanto, a nação independente do jugo colonial não é aquela tão

sonhada. Uma literatura da distopia aparece na pluma principalmente do escritor Pepetela,

marcando a cisão entre a “escritura da terra”, dos poetas da geração da revista Mensagem, e

“escrita da História”, referente à produção angolana pós-colonial. Essa “ruptura” de gerações

literárias se dá mais na abordagem literária das questões relativas à nação do que no assunto

em si. Ou seja, continua-se falando de Angola, do país e do povo, muitas vezes de forma

política, mas não mais de forma idealizada. É nessa linha que identificamos uma temática

nacional na novela em estudo, no intuito de compreender a relação de filiação d'A Bicicleta

ao trabalho do escritor Manuel Rui.

Essa “escrita da nação” traz referências explicitas ao contexto da guerra civil dos anos

80 e 90, como a falta de luz, indicada no subtítulo. Notamos que a guerra faz parte da vida dos

personagens quando o menino-narrador nos conta que “Era hora do noticiário e explicaram

coisas da nossa guerra, falaram também da falta de água e de uma falta de luz que também

poderia acontecer devido aos combates de Cambambe.” (p.43). Apesar da nota de esperança

expressa pelo tom infantil da estória, não há a utopia de outrora. Embora, eventualmente, a

obra permita uma interpretação por um viés ideológico, por exemplo, quando há denúncia de

situações precárias, o que prevalece no texto literário é a apropriação de um dado

acontecimento, contexto extra-textual (histórico ou atual), que se torna ambiente da estória. A

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 121

pesquisadora Tânia Pellegrini nos esclarece sobre a relação da arte literária com o real e

explica o realismo como:

um modo de representar as relações entre o social e o pessoal que não se limita a um

simples processo de registro e/ou descrição, pois sempre depende, para sua plena

elaboração, da apreensão das formas de percepção e de representação artística,

mutáveis ao longo da história. Nesse sentido, trata-se de um modo de compreensão

estética do mundo social que o representa em profundidade, e não uma forma de

representação presa apenas a aspectos aparentes ou a possibilidades dadas pela

linguagem em si. (PELLEGRINI, 2009, p.33).

Na trama d'A Bicicleta que tinha bigodes, Ondjaki elabora uma imbricação de

contextos, real e fictício, sugerindo uma espécie de mise en abyme, ou efeito de espelhamento,

onde ficção e realidade estão uma dentro da outra, ao infinito, num movimento em que a

literatura fala dela mesma e a obra se volta sobre seu próprio processo criativo. No geral, o

termo mise en abyme refere-se:

aos casos em que a obra representa no texto a leitura dele próprio ou a escritura dele

próprio. […] A representação pode propor o que é chamado de 'reduplicação

repetida', ou 'ao infinito', na qual o fragmento posto no procedimento de “mise en

abyme” comporta nele mesmo uma representação que entretém uma relação de

similitude com o todo. [...] Oferecendo ocasiões para uma reflexão metadiscursiva, a

obra pode refletir sobre o desenvolvimento complexo que é sua própria elaboração

[…]. Além da dimensão lúdica do processo de mise en abyme, destacamos sua

capacidade de produzir uma infinidade de “trompe-l'œil” […] e podemos dizer que

essas representações espetaculares são sintomáticas de períodos de crise da

representação, ou seja, de momentos onde a mimésis duvida de sua própria aptidão

de falar verdadeiramente do mundo, e se volta para o que toda representação

comporta de ilusão e de enganação. [...] [Essa estratégia de mise en abyme] usa de

procedimentos variados para se situar mais perto do gesto da criação literária,

apreendida no seu movimento de reflexibilidade de um texto que se torna

“metatexto”. (GEFEN, 2003, p. 211-212, tradução nossa).2

É nesse sentido, de um “metadiscurso”, de um “metatexto” e de uma “reduplicação

repetida” que lemos a referida dedicatória, na orelha do livro, ao escritor angolano Manuel

Rui. Nesse fragmento posto no procedimento de “mise en abyme”, o autor Ondjaki que, logo

2 “[...] on parlera « mise en abyme » pour caractériser tous les cas où une œuvre représente dans le texte sa

lecture ou son écriture […]. À la limite, la représentation peut proposer ce que l’on nomme réduplication

répétée, ou à l’infini, dans laquelle le fragment mis « en abyme » comporte lui-même une représentation ayant

cette relation de similitude avec le tout. […]. En offrant des occasions de réflexion métadiscursive, l’œuvre peut

réfléchir au cheminement complexe dont relève son élaboration […]. Par-delà sa dimension ludique, aptitude à

produire une infinité de « trompe-l’œil » […] on peut avancer que ces représentations spéculaires sont

symptomatiques de périodes de crise de la représentation, c’est-à-dire de moments où la mimèsis se met à douter

de son aptitude à parler véritablement du monde, pour se replier sur ce que toute représentation comporte

d’illusion et de mensonge. […] Jean Ricardou a montré dans les Problèmes du nouveau roman (1967) comment

ce courant littéraire avait usé de procédés variés de mise en abyme pour se situer au plus près du geste même de

la création littéraire, saisie comme dans son mouvement même par la réflexivité d’un texte devenu

« métatexte ».”

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 122

em seguida, coloca ênfase na sua função de escritor, se declara influenciado pelo mais velho:

“tu sabes: (quase) todos nós, dos anos 80, somos um pouco a ficção e a realidade do teu

Quem me dera ser onda”. Ou seja, na novela, quando Ondjaki reitera a estratégia ficcional

de seu mais velho, fazendo com que a sua ficção também encene questões do contexto sócio-

político angolano, assim como a novela de Manuel Rui, a obra se volta sobre ela mesma. Há

um movimento reflexivo no texto de Ondjaki que trata do fazer literário pela evocação do

escritor Manuel Rui, no paratexto, pela reiteração de sua estratégia, na trama, e pela

encenação da própria criação literária: ao transformar o escritor em personagem e ao usar o

narrador como investigador desse processo de criação literária encenada pelo tio Rui e, pelo

próprio narrador que escreve a sua estória.

Assim, o diálogo com o texto de Manuel Rui, também uma obra literária curta, instiga

a interpretação. Situamos ambos escritores – embora sejam de gerações, idades, diferentes –

no mesmo movimento literário angolano, analisado por Inocência Mata como a “escrita da

História”, o que implica uma relação da obra com o contexto sócio-político angolano.

É neste contexto, de reinterpretação de um corpo nacional que se apresenta

fracturado em termos de memórias que a ficção angolana tem sido expedita no

processo de cerzimento identitário: Pepetela, Boaventura Cardoso, Manuel Rui; mais

recentemente João Melo, Roderick Nehone, João Tala, Ismael Mateus, Ondjaki,

entre poucos outros.” (MATA, 2008, p. 81).

Identificamos, de fato, a permanecia da discussão sobre a identidade nacional

angolana, na novela de Ondjaki. O processo de criação literária, encenado na obra com o

personagem Manuel Rui, concretiza na escrita literária a língua nacional angolana pelo

movimento reflexivo da obra observado anteriormente. Observamos ainda, no processo de

encenação da escrita, a opção pelo sotaque angolano com a incorporação das letras

estrangeiras ao alfabeto português e de palavras locais, como veremos adiante. Por isso, a

figura do escritor Manuel Rui e do personagem em homenagem, o também escritor tio Rui, é

fundamental. O escritor é na estória, e para ela, o catalisador da abstração da língua, aquele

“que é escritor e inventa estórias e poemas que até chegam a outros países muito

internacionais.” (p.9).

Tio Rui é desde o início escolhido como “patrocinador” da empreitada de construção

da estória, que incluí ter a ideia, primeiro, e escrevê-la, em seguida. Há uma ênfase no

carácter inventivo da escrita de uma estória: “para ganhares tens de inventar uma estória.”

(p.11).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 123

- Tou masé3 a pensar que devíamos pedir patrocínio no tio Rui, aquele que escreve

bué4 de poemas.

- Isso não é batota5?

- Batota porquê?

- E as outras crianças?

- Quero lá saber, não tenho culpa que o tio Rui vive aqui na minha rua. Eles que

descubram também o escritor da rua deles. (p.11).

No diálogo acima, entre o narrador e o personagem adulto CamaradaMudo, o menino

elege o tio Rui como patrocinador oficial e legítimo da estória que ele quer escrever para

ganhar o concurso, porque o tio Rui é o escritor “minha rua”. Pedir essa ajuda ao escritor

profissional não invalidaria sua candidatura, já que as outras crianças também podem pedir

ajuda ao “escritor da rua deles”. Ao sugerir que existiria um escritor por rua em Luanda, tio

Rui se torna o representante de todos eles por atuar nessa trama. Da mesma forma, a estória

que está sendo contada é representativa, pois é a estória contada entre todas as outras de todas

as crianças que tentam ganhar o concurso. Nessa perspectiva, em que um caso individual

contribui para representar o coletivo, tio Rui sugere ao seu pupilo que escreva a estória dele:

“- Só sei que queria ganhar a bicicleta. Mas isso não é uma estória, é só uma vontade.” (p.

64), diz o sobrinho ao tio, pedindo uma ideia. Ao que o escritor responde: “- Essa é a tua

estória. Podias escrever sobre isso.” (p. 64).

Logo, se aderimos ao jogo sugerido pelo autor que implica uma relação entre o texto e

o contexto, é válida a analogia entre a escrita literária, representada na trama pela busca da

estória para ganhar o concurso, e a função da literatura no processo de escrita da história,

apontada por Inocência Mata. A estudiosa considera que “A actual produção [literária

angolana] persegue, e realiza, um 'inventário de diferenças e conflitos' para se insurgir contra

a privatização da História pelas sucessivas dominâncias” (MATA, 2008, p. 76). A literatura

atuaria, então, na democratização da história contando a estória de cada um, como tio Rui

ressalta: “essa é a tua estória” (grifo nosso). Nesse sentido, a busca do menino por uma ideia

para a estória do concurso representa a busca pela própria história, “contra a privatização da

História”.

Dessa forma, fica explícito que “Tio Manuel também Rui” estabelece uma relação

direta entre a escrita, ficcional e histórica, e a literatura angolana dentro da novela infanto-

juvenil A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica, quando é claro o jogo entre

ficção e realidade, num processo de auto-referenciação explicado pela mise en abyme. No

3 No glossário ao fim da obra, Masé: “Mas + é”. 4 “Bué: grande número ou quantidade”. 5 “Batota: qualquer forma de trapaça, falcatrua”.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 124

plano da escrita literária, para compreendermos a deferência do escritor mais novo ao mais

velho, destacaremos algumas características da escrita de Manuel Rui e do seu famoso Quem

me dera ser onda, analisado pela professora Maria Teresa Salgado (2011) à luz do conceito

de carnavalização bakhtiniana, de paródia e de realismo grotesco.

Sobre Manuel Rui, ressaltamos:

Como afirma Luiz Kandjimbo (1997), a ficção de Manuel Rui é marcada por um

realismo social que assegura ao escritor o manejo de instrumentos capazes de tornar

risíveis as situações enfocadas. O riso e a ironia são as armas com que esse escritor

angolano disseca o cotidiano das gentes simples ou critica o modo de vida dos mais

abastados. (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 46).

Escolhemos, pois, entender a novela de Ondjaki, no rastro da escrita de Manuel Rui,

de um “realismo social”, também como “a compreensão estética do mundo social”, no sentido

em que nos fala Pellegrini.

Nesse caminho, somos induzidos a nos questionar sobre a representação literária de

uma situação angolana mais ampla e percebemos em Ondjaki um tom irônico, que pode

provocar o riso por sua dose de ridículo, em certas cenas da novela, como no diálogo seguinte

acerca do atropelamento do sapo Raúl, irmão do sapo Fidel.

- Só uma coisa, camarada General.

- O que foi, camarada Rui?

- O camarada motorista deve sofrer uma atualização.

- Como assim? Uma multa?

- Não. Uma atualização nominal. O camarada motorista passa a ser chamado de Dez.

- Isso é que não – o GeneralDorminhoco ficou furioso. - Sapos não contam! Só

pessoas ou cães vacinados.

- Você está a dizer que um sapo chamado Raúl, irmão de um sapo chamado Fidel,

não conta para mudar o nome do seu motorista?

Nós, as crianças, rimos baixinho.

O GeneralDorminhoco foi obrigado a concordar e o motorista passou a chamar-se

Dez. (p. 25).

Nessa cena, os nomes próprios dos sapos Raúl e Fidel, o camarada General que é

GeneralDorminhoco e seu motorista, chamado Nove, que passa por uma atualização nominal,

são uma sátira ao formalismo dos regimes militares, em geral, mas também fazem referência

aos regimes de esquerda adotados em alguns países africanos após a independência, como foi

o caso em Angola. Assim, as referências a um contexto extraliterário são explícitas e várias.

A personagem Isaura, amiga do narrador, marca a outra filiação do escritor Ondjaki

em referência também declarada a uma personagem do escritor moçambicano Luís Bernardo

Honwana. Na Bicicleta, assim como no conto de Honwana, Nós matamos o Cão-Tinhoso,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 125

Isaura tem uma relação especial com os animais. Na novela angolana, ela é uma menina que

dá nome aos bichos do seu quintal de presidentes ou de pessoas “importantes”, em referência

ao contexto da história mundial recente. Estão presentes o gafanhoto SamoraMachel, a lesma

Senghor, o cachorro AmílcarCabral ou AmílcarCãobral, os também gafanhotos Mobutu e

Khadafi e ainda os papagaios, pai e filho, JãoPauloSegundo e JoãoPauloTerceiro e o gato

Gandhi, antes chamado de Tátecher6.

Os personagens humanos também recebem nomes significativos, como o

CamaradaMudo. Tudo escrito junto, com o “m” de mudo em letra maiúscula, mostrando que

substantivo e adjetivo compõem um nome próprio único. “Camarada” remete a forma de

tratamento utilizada pelo partido-governo socialista, não só de Angola. No caso, o Movimento

Pela Libertação de Angola (MPLA) chegou ao poder com o intuito de construir um país

socialista, de partido único e economia planificada, com a independência em 1975. O partido

está até hoje no poder com o presidente, engenheiro de formação, mas que já não é mais

camarada, Eduardo Santos que foi empossado pela primeira vez em 1979. Logo, um

CamaradaMudo, pelo designação de camarada remete ao contexto econômico e político de

Angola nas primeiras décadas do pós-independência. O adjetivo mudo, que acoplado ao

substantivo forma o nome próprio desse personagem, aparece mais como uma crítica ao

regime do que como uma característica do personagem, denunciando assim esse sistema que

falhou na construção da nação sonhada pelos poetas como o primeiro presidente angolano,

Agostinho Neto. Da mesma forma, não parece gratuito dar nomes de ditadores aos

gafanhotos, pragas em certas regiões africanas, assim como as ditaduras sanguinárias e

silenciadoras. Devemos, pois, atentar para produção de sentido na ficção, a partir das

referencias extraliterárias.

Interessante perceber, nesse contexto, como o status do escritor é visto pelas crianças,

quando o tio Rui vence a discussão anterior contra o GeneralDorminhoco, uma voz anônima

diz: “- Eu quando crescer também quero ser advogado e escritor. Assim nenhum general vai

querer me enganar – alguém falou.” (p. 26). Manuel Rui, autor de Quem me dera ser onda é,

6 Samora Machel: líder na luta de independência e primeiro presidente de Moçambique, socialista. Léopold

Sédar Senghor: poeta e escritor, desenvolveu o conceito de negritude de Aimé Césaire e foi o primeiro

presidente do Senegal, da independência em 1960 a 1980, também simpatizante do socialismo. Amílcar Cabral:

poeta e líder pela luta de independência da Guiné Bissau e do Cabo Verde, também teve participação no MPLA.

Khadafi: ditador da Líbia, deposto e morto em 2011, tinha sua própria filosofia de governo. Mobutu: um dos

governantes mais ricos do mundo, apoiado pelos EUA, deu o golpe militar que tirou do governo Patrice

Lumumba. O ditador Mobutu nomeou o antigo Gongo belga de Zaire. Atualmente, chama-se República

Democrática do Congo. João Paulo II: papa polonês de 1978 a 2005. Gandhi: líder pacifista na luta de

independência da Índia. Margaret Tatcher: primeira ministra do Reino Unido, de 1979 a 1990, conhecida como a

dama de ferro.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 126

de fato, escritor e advogado em Luanda. Mais uma vez, Ondjaki reforça o jogo entre ficção e

realidade na sua obra.

A aproximação com a novela de Manuel Rui se dá, assim, na manifestação literária de

um olhar crítico da realidade social e política de Angola. Além disso, em Ondjaki, as

situações infantis trazem para perto do leitor, numa primeira instância, um cotidiano lúdico,

marcado pela esperança, mesmo que infantil, mas sem a utopia de outrora. Mas não só, pois

aqui o lúdico da invenção infantil se transforma em crítica e denúncia social, como

observamos no trecho a seguir:

Ouvi os passos dos chinelos da Avó bem devagar, vi as primeiras luzes da manhã.

Um dia alguém disse que aquela era uma luz muito fresca, eu ria de ouvir essas

frases dos poetas, “luz fresca”, como a água da Avó regar as plantas verdes de

manhã, isso quando a água vinha. Se a água não viesse, a minha Avó, que é muito

engraçada, regava mesmo assim.

- Só de mangueira a fingir numa água que ainda está lá na barragem, Avó?

- Assim mesmo.

- Tipo que és do teatro dos jardineiros?

- Tipo – a Avó sorria, os gestos dela continuavam a abanar a mangueira sem água

nenhuma, só umas gotas sacudidas do dia anterior ou quê.

- Assim estás a regar como, Avó?

- A regar só. As plantas sabem.

A regar só. A Avó ficava bué de tempo a “regar só”. Mesmo deixava passar esse

tempo com se fosse uma demora de molhar. E olhava o céu num pedido de pingos.

(p. 39-40).

“A regar só”. A economia de palavras provoca um efeito lírico na cena, pois faz da

pequena expressão uma frase fértil de sentidos, aludindo a significados possíveis que trazem

esperança. Embora o gesto em si não provoque efeito algum, regar sem água não abastece as

plantas, ele enche a situação da falta de água de esperança ao se transformar numa espécie de

oração escondida, como confirma o menino-narrador, ao contar: “E olhava o céu num pedido

de pingos.” E ao perguntar: “- Pediste água dos céus, Avó, no tal camarada que abre as

torneiras?” (p. 40).

Ainda nessa cena, o humor do menino-narrador imprime um tom bem humorado à

narrativa, ao instigar o riso numa situação trágica de falta d'água. A narração expõe aspectos

cômicos do cotidiano, apontando para o fingimento óbvio, mas também para o fingimento

escondido na rotina, e denuncia, assim, o modo disfarçado de lidar com as práticas religiosas

tradicionais, muitas vezes, perseguidas pelos regimes dos generais e camaradas. Abusando do

que pode ser engraçado, o narrador ressalta com ironia a confusão de valores na época da

guerra civil, ao terminar dizendo que seria melhor que a Avó pedisse água à companhia de

abastecimento “na conta de seres mais-velha respeitada”, quando sabemos que “ser mais

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 127

velho” é um status colocado em xeque desde a época da colonização. Logo, a cena representa

com justeza o tom impresso ao longo da obra.

A novela encena certos costumes angolanos, valendo-se do passado recente do

período de guerra civil. A busca pela ideia para escrever a estória do concurso aparece como a

força motriz da trama e representa o processo criativo da escrita literária. “Escrever a estória,

com um bocadinho de esforço, talvez dois ou três podem conseguir, mas a ideia é como uma

raiz invisível que faz crescer a planta.” (p. 44). A literatura toma parte na escrita de uma

história ainda não registrada e mais democrática, ao encenar a própria escrita de uma estória

que referencia o contexto de construção da nação angolana.

Assim, para entendermos o lugar da escrita e da linguagem literária como

concretização de algo que é nacional, é fundamental atentarmos para o lugar ocupado pelo tio

Rui e pela própria escrita na trama. Tio Rui traz consigo, em seus bigodes, a escrita. Por seu

papel, ele é admirado pelas crianças que demonstram curiosidade e encantamento com a

profissão de escritor, aquele que tem ideias e escreve. A visão das letras caindo concretiza de

forma lúdica, para as crianças, o processo criativo: ter ideias, pensar, e escrevê-las,

comunicar. A escrita se materializa ao sair dos bigodes do mais velho, colocando o gesto da

criação literária mais próximo das crianças, dos leitores, e do próprio texto que fala dele

mesmo, como explicado anteriormente sobre a estratégia de mise en abyme.

A escova tocava e fazia acontecer uma espécie de brilho. O tio Rui parece que sorria

devagar, eu olhava a Isaura que olhava para eles e eu olhava de novo: na outra mão

dela, a tia Alice tinha uma pequena caixa de madeira, com desenhos que eu já vi

num museu qualquer, a caixa aberta ficava assim perto do queixo do tio Rui. Ela

esfregava os bigodes, soprava, esperava e aquilo acontecia: pequenas letras caíam do

bigode para a caixa, eram vogais de “a”, “e”, “i”, “o”, “u”, mas também sobras de

“k” e “w”, alguns “t” e dois “h”. Ela escovava e a caixa guardava aquelas letras

soltas. Parece que aquilo dava comichão, o tio Rui mexia os lábios, queria tocar no

bigode mas a tia Alice não deixava.

- Isso é mesmo possível ou é feitiço?

- Acho que é mesmo possível, o tio Rui tem bigodes de escritor – a Isaura falou

baixinho. (p. 48).

Nesse momento, a linguagem é percebida como algo material pelas crianças, quando

elas espreitam os “restos de letras” caindo do bigode do tio Rui. A abstração de uma língua

nacional se concretiza com a visão dessas letras caindo: “eram vogais” da língua portuguesa,

“mas também sobras de 'k' e 'w'”. Essas últimas, incorporadas ao alfabeto da língua

portuguesa e usadas na grafia de algumas palavras do português com sotaque angolano,

constroem a “nossa língua toda desportuguesa...”, segundo Ondjaki, na orelha do livro. E a

criação literária acontece.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 128

Considerações finais

Bakhtin associa à composição do gênero romance, o trabalho com uma língua nacional

única que é “estratificada” na e para a composição do romance. Ora, em certos romances

angolanos, que apresentam uma temática nacional, como n'A Bicicleta que tinha bigodes,

percebemos que essa estratificação atende não apenas à formação de um contexto social ou de

um personagem, como explica Bakhtin, mas associa a linguagem à formação de uma língua

nacional própria e diversificada. O sotaque português angolano, constituído por ks, ws etc

torna-se a língua nacional angolana formada com o sotaque das línguas africanas.

Essa língua nacional angolana torna-se rumorejante, no sentido de Roland Barthes, ao

incorporar em si as marcas das línguas africanas. No silêncio da escrita e da leitura, o “rumor

da língua” é introduzido pelos sinais gráficos, das letras que caem na caixa mágica e na

incorporação das palavras angolanas listadas no glossário. Mas é quando o mais velho dá

licença ao mais novo para nos contar a estória que podemos exemplificar o pensamento do

semiólogo e crítico literário. Respondendo à pergunta do sobrinho colocada no início da trama

e desse breve estudo, tio Rui diz: “Podes, com palavras pode-se mesmo traduzir a voz do

silêncio. Com bigodes e a fazer de guiador de uma bicicleta que desce para cima sem travões.

Podes, sim senhor, falar dos restos de letras que, felizmente, andamos a semear.”

Dessa forma, o rumor está concretizado na literatura como a tradução de uma “voz do

silêncio”, quando “uma bicicleta que desce para cima sem travões”. A língua se torna

rumorejante ao assumir “esse não-sentido que faria ouvir ao longe um sentido agora liberto de

todas as agressões de que o signo, formado na 'triste e selvagem história dos homens', é a

caixa de Pandora. É sem dúvida uma utopia; mas a utopia é que muitas vezes guia as

pesquisas de vanguarda.” (BARTHES, 1988, p. 94).

Para Barthes, a liberdade de sentido que um signo poderia assumir é uma utopia. No

entanto, é justamente a utopia que guia “as pesquisas de vanguarda”. Assim, “pesquisas de

vanguarda”, guiadas pela utopia, seriam capazes de libertar o sentido. A literatura, enquanto

forma de arte, faz essas “pesquisas de vanguarda” e liberta o sentido para “com palavras

traduzir a voz do silêncio”. Na estória d'A Bicicleta que tinha bigodes, o sonho e o desejo

guiam a escrita. O menino-narrador persegue as letras, a palavra, a linguagem e finalmente, a

escrita, imbuído do sonho de ganhar a bicicleta, para, ao libertar a escritura (BARTHES,

1998, p. 50), encontrar sua língua nacional.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 129

Percebemos, assim, na narrativa de Ondjaki, a encenação de um jogo de

representatividades. Primeiro, o mote da trama é a busca de uma ideia para a estória que deve

ganhar o concurso nacional. O concurso nacional elege a melhor estória, entre todas as outras,

e premia o ganhador com uma bicicleta nas cores da bandeira angolana. Em seguida, dentro e

fora da narrativa, temos um escritor, aquele que tem as ideias e escreve as estórias, escolhido

para representar todos os outros: o tio Rui da “minha rua” e o Manuel Rui, como o escritor

angolano, representante desta literatura. Finalmente, metaforização e metalinguagem ficam

claras na novela, quando os escritores, Manuel Rui e Ondjaki, se tornam personagens para

encenar a escrita: uma estória, a de uma rua, para representar todas as outras, de todas as

outras ruas, sendo escrita para falar da escrita e da literatura.

Logo, a novela infanto-juvenil de Ondjaki escreve, em língua nacional, a

representação literária da nação angolana. E age de forma democrática na literatura e na

históira, pois “Que eu saiba, ninguém é dono de migalhas nenhumas, e aquela caixa tinha só

restos de palavras, bocadinhos de sonhos, letras que nunca conseguiram ser palavras nem

mesmo frases de o tio Rui escrever os livros dele.” (p. 39).

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Unesp, 1993, p. 71-163.

BARTHES, Roland. O Rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

HONWANA, Luís Bernardo. Nós matámos o Cão-Tinhoso. Porto: Edições Afrontamento,

1998.

FONSECA, Maria Nazareth Soares; MOREIRA, Terezinha Taborda. Panorama das literaturas

africanas de língua portuguesa. In: Cadernos Cespuc de pesquisa, Belo Horizonte, PUC

Minas, n. 16, p. 13-69, set. 2007.

GEFEN, Alexandre (org.). La mimèsis. Paris: GF Flammarion, 2003.

MATA, Inocência. Narrando a nação: da retórica anticolonial à escrita da história. In:

PADILHA, Laura Cavalcante; RIBEIRO, Margarida Calafate. Lendo Angola. Lisboa: Edições

Afrontamento. 2008, p. 75-86.

ONDJAKI. A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica. Rio de Janeiro: Pallas,

2012.

PELLEGRINI, Tânia. Realismo: a persistência de um mundo hostil. In: Revista brasileira de

literatura comparada, n. 14, p. 11-36, 2009. Disponível em:

http://www.abralic.org.br/revista/2009/14/63/download. Acesso em 10 de julho de 2014.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 130

RUI, Manuel. Quem me dera ser onda. União dos Escritores Angolanos, 1989.

SALGADO, Maria Teresa. Carnavalizar é preciso: uma leitura da paródia em “Quem me dera

ser onda”. In: Mulemba, Rio de Janeiro, UFRJ, v. 1, n. 5. p. 67-78, dez. 2011. Disponível em:

http://setorlitafrica.letras.ufrj.br/mulemba/artigo.php?art=artigo_5_5.php

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 131

A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM

PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO [Voltar para Sumário]

Aline Peixoto Bezerra (UERN)

Introdução

O trabalho com a língua materna em sala de aula, conforme postulam os Parâmetros

Curriculares Nacionais (1998), deve ter como base o texto, o qual proporcionará ao aluno o

contato direto com as mais variadas situações concretas de uso da língua. O ensino da língua

esteve diretamente ligado ao tradicionalismo: uso do texto como pretexto para apresentar os

aspectos gramaticais, o ensino descontextualizado e distante da realidade dos alunos; na

atualidade, ainda conforme os PCNs (1998), as propostas de transformação das práticas de

ensino se consolidam no uso da linguagem, por conseguinte começa-se a levar em

consideração fatores que possibilitem ao alunado não só interagir diretamente com o objeto

estudado como questionar a realidade social em que está inserido.

Para tanto, tornaram-se objeto de estudo deste trabalho os textos produzidos pelos

alunos do 7º ano do Ensino Fundamental II durante as oficinas de leitura e produção de texto.

Fizemos um trabalho intervencionista com um grupo de 40 alunos do sétimo ano do Ensino

Fundamental II na Escola Estadual Centenário de Mossoró/RN. Para tanto, o nosso corpus é

constituído de um texto – histórias em quadrinhos – produzidos pelos alunos durante as

oficinas de produção textual; a coleta dos dados foi feita paulatinamente, durante 15

encontros, os quais tinham duração de duas horas e meia (referente a três hora/aula) no turno

vespertino de novembro a dezembro de 2014; esse espaço foi usado para a aplicação dos

questionários, realização das oficinas de produção de texto, aplicação das atividades de

retextualização e de reescrita textual. Escolhemos, por sua vez, analisar aleatoriamente uma

produção para que os resultados não tivessem interferências preestabelecidas. Trabalhamos

com apenas um texto em um universo de 20 em virtude do tempo e do espaço que este artigo

requer.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 132

Usamos metodologicamente o método qualitativo – interpretativo e intervencionista.

Para respaldar a pesquisa faremos uma abordagem bibliográfica dos principais estudiosos do

tema proposto, seguidamente, apresentaremos as oficinas e o passo a passo da intervenção

feita junta ao alunado. A última etapa tem caráter interpretativo – analisamos os textos finais

dos alunos. Dentre os vários gêneros com os quais lidamos no nosso cotidiano escolhemos

para trabalhar com o alunado as narrativas de aventura e a história em quadrinhos de modo

que possibilite ao aluno transitar entre esses dois gêneros retextualizando-os.

Há nas atividades de retextualização um aspecto importantíssimo a ser destacado, pois

para transmitirmos de uma modalidade textual para outra, segundo Marcuschi (2010),

devemos inevitavelmente passar pelo processo de compreensão dos textos, dos gêneros

retextualizados. Portanto, o processo de retextualização não é uma passagem suspostamente

artificial de um gênero em outro, mas um processo de conhecimento e compreensão

aprofundados acerca dos gêneros que passam pela transformação textual. Neste sentido,

escolhemos falar sobre a retextualização, pois consideramos que, ao retextualizar, o aluno

desenvolve várias habilidades textuais, entre elas, destacamos as atividades de leitura,

compreensão e escrita.

Por conseguinte, este trabalho surgiu das inquietações advindas do contexto da sala de

aula, em especial nas aulas de Língua Portuguesa, pois os alunos demonstravam dificuldades

em produzir textos, esquematizá-los, entendê-los. Diante dessa constatação, este trabalho

apresenta a seguinte questão de pesquisa: Qual o lugar da retextualização na sala de aula de

Língua Portuguesa como uma ferramenta eficaz às aulas de leitura e produção de texto?

O presente trabalho está dividido em três partes que estão assim constituídas: na

primeira parte fazemos um aparato teórico acerca das principais teorias linguísticas sobre os

gêneros textuais e os processos de retextualização, na segunda descrevemos a metodologia

utilizada para a coleta de dados, as etapas de produção, bem como os sujeitos envolvidos; na

terceira analisaremos o texto produzido pelos alunos em dupla.

A retextualização como essencial à leitura e produção de textos

Consideramos o trabalho com a retextualização uma atividade que conduz o alunado à

leitura, compreensão e produção de textos, de modo que lhes oportunizamos elaborações

textuais que vão além da tipologia clássica (narração, dissertação e descrição). Nos contextos

mais atuais, lidamos com a emergência da informação, com alunos mais dinâmicos, modernos

e ligados às novas tecnologias; com isso observamos que as práticas de ensino ligadas à

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 133

redação (dissertação) escolar, texto como pretexto para o ensino da gramática, já não

satisfazem a esse novo contexto social e educacional.

Nos gêneros textuais, dispomos de uma gama de possibilidades para um ensino mais

dinâmico e eficaz e, por meio desses, temos a retextualização, procedimento de grande valia,

que permite o trabalho com gêneros diversos que consiste em transmudar um texto em outro,

seja oral ou escrito. Mais precisamente, a retextualização configura-se, para Dell’Isola (2007,

p. 36), na “refacção ou a reescrita de um texto para outro, ou seja, trata-se de um processo de

transformação de uma modalidade textual em outra, envolvendo operações específicas de

acordo com o funcionamento da linguagem”. Logo, é a mudança do gênero, trata-se de um

processo minucioso, de muito rigor, no qual deverão ser levados em consideração vários

aspectos dos gêneros e, por isso, caracteriza-se como um trabalho relevante para as aulas de

língua materna.

Marcuschi (2010, p. 48) apresenta um quadro de possibilidades de retextualização: 1.

Fala → escrita; 2. Fala → Fala; 3. Escrita → Fala; 4. Escrita → Escrita. Para o autor,

retextualizar é rotineiro, pois já lidamos o tempo inteiro com essas reformulações na nossa

sociedade, no entanto, não se configuram como atividades mecânicas. E é a respeito da

retextualização, especificamente na modalidade da escrita para a escrita, que constituímos o

nosso trabalho intervencionista.

A retextualização tem se mostrado um excelente mecanismo para o trabalho com os

gêneros, pois a tarefa de transformar um texto escrito em outro demanda uma série de

atividades que levará o aluno a um processo pormenorizado dos textos em transformação;

nesse procedimento transformacional, o alunado, inevitavelmente, compreenderá as condições

de produção e recepção dos textos.

Com o recurso da retextualização, a elucidação do texto torna-se muito importante, um

dos primeiros objetivos a ser vislumbrado pelo leitor é o da compreensão textual, tendo em

vista que sem essa se compromete o desenvolvimento da atividade.

As atividades de retextualização englobam várias operações que favorecem o

trabalho com a produção de texto. Dentre elas, ressalta-se um aspecto de muita

importância que é a compreensão do que foi dito ou escrito para que se produza

outro texto. Para retextualizar, ou seja, para transpor de uma modalidade para outra

ou de um gênero para outro, é preciso, inevitavelmente, que seja entendido o que se

disse, ou quis dizer (...). Antes de qualquer atividade de retextualização, portanto,

ocorre a compreensão. (DELL’ISOLA, 2007, p.14).

Essa mesma questão importantíssima na retextualização – o processo da compreensão

– também é mencionada por Marcuschi (2010, p. 47), “pois para dizer de outro modo, em

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 134

outra modalidade ou em outro gênero o que foi dito ou escrito por alguém, devo

inevitavelmente compreender o que foi que esse alguém disse ou quis dizer”. Portanto, nessa

atividade de transformação textual, o aluno é instigado primeiro a compreender o texto base.

A manutenção do tema é outro ponto a ser preservado no durante o processo da

retextualização, “É importante observar que o gênero escrito, a partir do original, deve

manter, ainda que em parte, o conteúdo do texto lido”. (DELL’ISOLA, 2007, p. 46). Com

relação ao falseamento, Marcuschi (2010, p. 102) apregoa que é bastante comum, “trata-se de

uma espécie de acréscimo, não de um fenômeno linguístico e sim da falsidade dos

enunciados”, no entanto, o estudioso ainda destaca que alguns falseamentos no processo da

retextualização podem ser considerados muito mais como interpretação do texto base do que

mesmo como um falseamento.

Sem dúvidas, o trabalho com a retextualização é desafiador, entretanto, como explica

Dell’Isola (2007, p. 27), é uma atividade muito produtiva em sala de aula, leva os alunos a

pensarem (forma, função, elementos que caracterizam os gêneros, linguagem, veiculação,

dentre outros) sobre gêneros sugeridos pelo professor; destarte, “a retextualização não deve

ser vista como tarefa artificial que ocorre apenas em exercícios escolares, ao contrário, é fato

comum na vida diária. Ela pode ocorrer de maneira bastante diversificada”. A autora ilustra e

defende que o nosso alunado no dia a dia encontra-se diante de vários processos de

retextualização, com isso torna-se importante a mobilização da escola em começar a pensar na

eficiência das atividades envoltas com a retextualização; e justamente por ser familiar ao

aluno a inserção da retextualização é bem aceita por esse público, favorecendo as práticas

docentes durante todo o processo da retextualização.

O professor, por sua vez, deve orientar e acompanhar cada etapa da retextualização,

conduzir os alunos a refletirem sobre os gêneros que serão produtos da escrita. Destacamos a

importância da retextualização de gêneros escritos, uma vez que envolve o aluno na prática de

leitura, escrita e compreensão textual e, ainda, na mudança de um texto escrito em outro, com

o desafio de manter o sentido original e alterar o formato para o novo gênero retextualizado.

Essa importante atividade envolve aspectos complexos com relação ao estudo e compreensão

de texto; sem dúvidas, com um trabalho contínuo em sala de aula, os alunos terão mais

condições de refletir sobre o objeto estudado, sobre si e sobre a sociedade.

Nessa constante, mostraremos o resultado de um trabalho intervencionista feito numa

escola de ensino fundamental da rede pública de Mossoró/RN, nos próximos capítulos. E para

conduzir a nossa análise estamos no embasando nas teorias de Marcuschi (2010) e Dell’Isola

(2007).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 135

Fases e Sujeitos da Pesquisa

O público alvo da intervenção são alunos da rede pública de ensino, oriundos, em sua

maioria, da periferia da cidade. Na escola, encontrávamos alguns alunos com dificuldades

básicas de ler e escrever, medo de se socializar com os demais colegas, a ausência durante

semanas à escola. Mas, esses fatores não eram característica dominante, pois a escola era

muito reconhecida na cidade como organizada, rígida, pontual com a sua missão, há cinco

anos se destacava em primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica

(IDEB) municipal e, com isso, normalmente, os estudantes que a escolhiam eram aqueles que

estavam interessados em adquirir conhecimentos.

A escola, por sua vez, oferece um espaço físico muito bom, com salas de aula bem

iluminadas e ventiladas, carteiras em bom estado, quadro a lápis, materiais disponíveis –

como livros, folhas, tesoura etc. –, merenda, uma equipe pedagógica muito presente e disposta

a ajudar, tínhamos um auditório que estava em reforma, portanto, não havia como utilizá-lo

para a apresentação dos textos, assim, todas as oficinas e a culminância do projeto

aconteceram nas salas de aula da escola.

Para dar início à pesquisa, aplicamos um questionário com 40 (quarenta) alunos da

escola que escolhemos para efetivar o projeto com o objetivo de averiguarmos vários

elementos que seriam importantes antes de iniciarmos a intervenção, em especial, diagnosticar

o perfil dos alunos e também para nos auxiliar na escolha dos gêneros a serem

retextualizados. Logo após observação do questionário, fizemos a escolha dos gêneros

(narrativa de aventura e história em quadrinhos) e seguidamente iniciamos as oficinas com a

turma, as quais seguiram respectivamente a seguinte formatação:

Oficinas com o gênero narrativa de aventura

1. Os alunos foram motivados a trazer para a sala de aula narrativas de aventuras

(foi feito um trabalho socializador);

2. Foram apresentadas outras narrativas de aventuras para os alunos com o

objetivo de interpretá-las, discuti-las e aprofundar o conhecimento sobre o gênero;

3. Os alunos foram estimulados a produzir narrativas de aventura (essas histórias

poderiam fazer intertextualidades com os heróis da antiguidade como também com os

contemporâneos);

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 136

4. Os textos produzidos foram entregues à professora, que fez as devidas observações

necessárias para dar continuidade às atividades; destacamos que nesse momento os textos

também passaram pela reescrita textual.

Oficinas com o gênero história em quadrinhos (HQs)

1. Os alunos foram motivados a trazer para a sala de aula histórias em quadrinhos

(foi feito um trabalho socializador);

2. Socialização das histórias em quadrinhos lidas e comentadas pela turma;

3. Foram apresentadas outra HQs à turma com o objetivo de interpretá-las, ,

discuti-las e aprofundar o conhecimento sobre o gênero.

Retextualização:

1. Foi proposto um trabalho de transformação da narrativa inicialmente

produzida para uma história em quadrinhos;

2. A produção dos alunos foi analisada pela professora, a qual passou novamente

pelo processo de reescrita textual (a professora intermediou a formatação das falas, a estrutura

e disposição do texto final);

3. Por fim, foi feita a escrita final (retextualização) das HQs.

As produções de textos na sala de aula – análises das atividades de retextualização

O corpus desta pesquisa é constituído por uma HQ produzida pelos alunos do sétimo

ano do Ensino Fundamental, a escrita aconteceu no decorrer das oficinas dadas pela

professora intervencionista da turma. Nesta análise , de acordo com o que já mencionamos,

verificamos os processos apontados por Dell’Isola (2007): a Retextualização, a Identificação

e a conferência, nos textos retextualizados pelos alunos. Destacamos que esses fatores durante

a observação dos textos não são mostrados respectivamente. Apresentamos a definição destes

referendados em Dell’Isola (2007), vejamos:

Retextualização: escrita de um outro texto, orientada pela transformação de um

gênero em outro gênero; Conferência: verificação do atendimento às condições de

produção: o gênero textual escrito, a partir do original, deve manter, ainda que em

parte, o conteúdo do texto lido; Identificação, no novo texto, das características do

gênero – produto da retextualização. (DELL’ISOLA, 2007, p. 42).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 137

E com base nesses conceitos trazidos pela autora apontaremos nas produções textuais

dos alunos a efetivação ou não dos pontos mencionados, optamos por fazer recortes da HQ,

em virtude do seu tamanho. E para preservar a identidade dos alunos escolhemos mencionar

os autores como dupla 1 (D1). Os alunos escolheram escrever a Narrativa de aventura sobre

um dos mais clássicos personagens da literatura brasileira: Dom Quixote (personagem criado

por Miguel de Cervantes), o lendário Dom é o protagonista/herói da história que tem como

título Sancho o galo Dom Quixote e a galinha. Vejamos a narrativa:

Ao longo daquele dia, Dom Quixote viajou inclinado sobre a cabeça do seu cavalo, porque os ossos lhe

doíam tanto que não podia endireitar-se. Ao entardecer, apareceu na beira da estrada uma venda, que era o lugar

onde se hospedavam os viajantes, e então Sancho disse:

- Alegre-se, Senhor, que aí adiante vejo uma venda.

Dom Quixote levantou a cabeça, olhou ao longe e respondeu:

- Essa não é uma venda, mas um castelo.

Estou lhe dizendo, senhor, é uma venda.

- É um castelo!

- É uma venda.

- Um castelo.

Passaram nisso um tempão, sem que nem Dom Quixote nem Sancho Dessem o braço a torcer. Quando

chegaram a venda estavam abarrotados, mas assim mesmo o vendeiro arrumou um par de camas num palheiro

para que pudessem passar a noite. Antes de sair Sancho bebeu uma caixa de vinho e adormeceu que nem uma

pedra.

Em compensação, Dom Quixote continuou acordado durante muito tempo, porque havia começado a

pensar que naquele castelo viva uma linda princesa.

“Com certeza apaixonou-se por mim ao me ver chegar” dizia isso a si mesmo, “e essa noite virá

confessar-me o seu amor. Mas não posso a responder, porque meu coração pertence a Dulcínea”.

De tanto pensar, passou mais de três horas de olhos abertos que nem coruja.

De repente, ao bater a meia noite, ouviram-se passos além da porta do palheiro e Dom Quixote

murmurou: “aí meu Deus a princesa”.

Mas ao abrir a porta só o que ele viu foi uma simples e pequena galinha com uma simples coroa no

pescoço. Ele achou a coroa que a galinha tinha muito bonita e a partir dela ele se lembrou de Dulcínea.

Com carinho e voz mansa Dom Quixote chamou a galinha dizendo:

- Vem cá querida galinha...

Dom Quixote não pensou duas vezes e pulou em cima da galinha e ela aperreada fazia: cóco cóco có

Mas Dom Quixote de tanto tentar conseguiu segurar a galinha. Ao amanhecer Dom Quixote mandou

uma carta com uma coroa para Dulcineia; dias depois ela devolveu a coroa com uma carta dizendo que havia se

casado.

Certo dia Sancho saiu para alimentar o seu cavalo, e Dom Quixote ficou sozinho com a galinha, sem ter

o que fazer Dom Quixote resolveu falar com ela, no meio da conversa ele tropeçou e acabou caindo no chão

encostando sua boca no bico da galinha.

A galinha se transformou em uma princesa, mas devido o encanto ao invés de cabelos ela tinha penas,

Dom Quixote logo a pediu em casamento, mas ela disse que só aceitaria se casar se ele a beijasse novamente

para ela voltar a ser galinha. Ele aceitou a proposta e a beijou. Mas com o beijo os dois viraram galinha e galo.

Ao voltar Sancho encontrou a galinha e o galo, estranhou a situação, procurou Dom e logo percebeu o

que tinha acontecido. Sancho ficou com a galinha e o galo e juntos viveram felizes para sempre viajando pelo

mundo e conhecendo novos lugares.

Podemos perceber a intertextualidade do texto criado pela dupla 1, alunos de trezes

anos de idade, com partes da história do livro de Cervantes, sem dúvidas, com essa referência,

podemos afirmar que os alunos tiram proveito das oficinas, nas quais a professora

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 138

intervencionista leu trechos e comentou sobre a construção das narrativas com base na história

de Cervantes. Considerada um dos elementos da textualização, a intertextualidade, é o

fenômeno pelo qual, considera-se que em um texto está inserido ou faz referência a outro

texto seja para validar o que “o novo dito”, seja para levar o humor, ou mesmo criticar; o que

destacar-se é que o autor do texto lança mão de um texto ou conceito social existe para

re/formular o seu dito. Assim, “a intertextualidade é, pois, uma das propriedades constitutivas

de qualquer texto, ao lado da coesão, da coerência, da informatividade, entre outras”.

(ANTUNES 2009, p.164)

O texto, por sua vez, foi reconstruído e apresenta um final bem diferente da história do

livro, segue a formatação de uma narração e cumpre, impreterivelmente, ao que foi proposto:

criar uma Narrativa de aventura. Essa narrativa serviu de texto base para a retextualização em

HQ.

No tocante a produção final (HQ), averiguamos que se trata de uma efetivamente de

uma história em quadrinhos, pois o texto segue o formato em quadros sequenciados um após

o outro com imagens ilustrativas, balões, personagens, fatos sobrepostos entre si narrando

uma história ficcional coerente. Cereja e Magalhães (2007) apresentam o conceito de

quadrinhos como uma arte de sequências, com desenhos ilustrativos que são usados para

narrar uma história, “sempre que duas imagens são desenhadas uma após a outra, criando uma

sucessão de quadros, uma sequência gráfica, trata-se de uma história em quadrinhos”; à vista

disso identificamos no texto final características pertencentes às HQs em geral.

Vejamos como a D1 transformou essa narração em uma HQ, a dupla inicia o texto

com uma legenda na qual relata a viagem de Dom Quixote, a legenda é um recurso muito

usado nas histórias em quadrinhos, caracteriza-se por ser um texto relativamente pequeno que

serve para informar alguma coisa ou para ligar os quadrinhos entre si. Esse recurso foi

intensamente utilizado na história analisada, acreditamos que isso se deve ao fato de que o

texto base é uma narração com um narrador em terceira pessoa e possivelmente, os alunos

tiveram dificuldades de transpor o discurso indireto em direto, logo usaram o recurso para

deixar os quadrinhos interligados como também para deixar a história mais coerente. Mesmo

assim, conferimos na HQ a manutenção do tema colocado no texto base.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 139

Seguem a história em quadros com balões que é um dos elementos característicos dos

quadrinhos, os balões podem apresentar diversos formatos Cereja e Magalhães (2007)

apresentam alguns formatos que podemos seguir: balão-grito, balão-uníssono, balão-imagem,

balão-pensamento, balão-fala e outros. O balão-fala é o mais comum de todos, na HQ

observamos que é este tipo de balão que prevalece na produção. Destacamos dois balões

usados na história, o balão-grito e o balão-pensamento, pois observamos que a dupla

conseguiu compreender os elementos próprios da HQ colocando-os em prática. Ocorreu no

produto final da D1 a transformação de um gênero textual escrito em outro, portanto a

retextualização aconteceu efetivamente.

Na HQ também encontramos o uso de onomatopeias – as quais representam o som das

imagens e interjeições – expressões que indicam estados emotivos. Vejamos:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 140

A dupla também fez uso do recurso do balão-pensamento. Vejamos:

A HQ feita da D1 atende aos três critérios elencados por Dell’Isola (2007), portanto o

texto produzido pelos alunos com base na Narração Sancho o galo Dom Quixote e a galinha

apresenta-se como uma tarefa realizada com êxito. Nessa atividade os alunos demonstraram

talentos em escrever, desenhar, sintetizar o assunto, escolher os pontos mais relevantes para a

HQ, seleção da linguagem própria ao público alvo da história, escolha humorizada de recontar

uma história cânone na sociedade; dentre outras habilidades que sem dúvidas os alunos

desenvolveram durante a feitura do texto final e, concluem a HQ mantendo o assunto da

narrativa inicial.

No final da HQ encontramos a palavra fim, algo muito comum nas mais consagradas

histórias em quadros. Observemos:

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 141

Dessa forma, no decorrer da retextualização os alunos refletem acerca dos elementos

dos gêneros e, “em todas as etapas está prevista uma reflexão de como a sociedade produz e

consome textos de diversas naturezas. (...) Dessa forma, estarão estabelecendo relações

existentes entre a linguagem e as estruturas sociais”. (DELL’ISOLA, 2007, p. 81). O espaço

da retextualização, na sala de aula, se mostra como um recurso auxiliador no

desenvolvimento/aprimoramento de habilidades e competências dos alunos na escola e na

sociedade, o faz refletir o gênero, a produção em si, como também a sociedade e os meios de

produção desta.

A prática desafiante da retextualização leva o alunado não só ao conhecimento

sistemático da língua, mas também aos seus usos, de como os sujeitos manifestam a

língua/linguagem por meio de textos na sociedade. Estamos inserindo-os nas mais diversas

modalidades da língua, dos gêneros escritos ou mesmo orais – dependendo da condução e

escolha dos gêneros trabalhados durante um processo de retextualização na escola (um

professor pode, por exemplo, trabalhar com textos orais), ampliando a visão dos alunos sobre

as práticas sociais, re/significando as produções dos discursos/textos veiculados.

A retextualização na sala de aula como bem fala Dell’Isola(2007) é desafiante, e

trabalho com o gênero de forma mais participativa promoveu-nos exercitar e conhecer mais

sobre a língua/linguagem, por isso destacamos a relevância dessa atividade em sala de aula.

Não vamos furtar a responsabilidade da escola em promover o conhecimento, pois “para boa

parte das crianças e dos jovens brasileiros, a escola é o único espaço que pode proporcionar

acesso a textos escritos”. (PCN, 1998, p. 25). Portanto, cabe à escola propor atividades

didáticas de modo que venha oportunizar a construção do saber.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 142

Referências

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:

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CEREJA, William Roberto. MAGALHÃES, Thereza Cochar. 3.ed. reform. São Paulo: Atual,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 143

A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A

VARIÁVEL IDADE EM MACEIÓ - AL [Voltar para Sumário]

Almir Almeida de Oliveira (UFAL)

Introdução

Este trabalho tem como proposta refletir as correlações existentes entre a palatalização

das oclusivas alveolares [t] e [d] em contextos fonológicos seguintes à vogal anterior alta [i] e

a variável idade em Maceió, o que representa um fenômeno bastante característico dessa

região e se contrapõe, por exemplo, as palatalizações realizadas no Sul e Sudeste do Brasil,

que apresentam a oclusiva em posição precedente à vogal alta. Assim, e com base nas

orientações teóricas e metodológicas da Sociolinguística Variacionista (LABOV,

2008[1972]), busca-se entender os percursos históricos que tem sofrido este fenômeno

linguístico, uma vez que a maior frequência de sua realização por mais jovens ou por mais

velhos pode indicar que a variável linguística é sensível à idade e, consequentemente, estar

passando por um processo de extinção, estabilização ou expansão.

1. Sociolinguística Variacionista

Desde que a sociolinguística surgiu nos EUA, nos anos 1960, as discussões acerca da

variação da língua ganharam espaço, pois, por milênios as questões variáveis da língua

receberam unicamente um tratamento filosófico ou partiam de uma observação empírica sem

rigor científico. Em 1972, William Labov publica Padrões Sociolinguísticos, o que representa

a consolidação de um ramo da sociolinguística que trata dos fenômenos de variação e

mudança linguísticas. Resumindo uma série de pesquisas realizadas nos últimos anos, a obra

mostra que os processos de variação/mudança estão relacionados às questões de valor social,

o que lhe possibilita uma descrição quantitativa da variação linguística e social.

O estudo da variação linguística propõe uma relação biunívoca entre as variáveis

linguísticas (sintáticas, morfológicas, fonéticas, lexicais e discursivas) e as variáveis sociais

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 144

(idade, sexo, escolaridade, classe social, etc.) de modo a explicar como os fatores

sociais/externos interferem na produção linguística.

A partir da concorrência de variantes e da sobreposição de uma em relação à outra é

que se dá a mudança linguística. Desse modo, os termos mudança e variação

linguísticas estão estreitamente relacionados, pois “com o advento da Teoria da

Variação, evidencia-se que toda mudança na língua advém de uma variação, mas

nem toda variação implica mudança” (SANTOS & VITÓRIO, 2011, p. 19).

Labov (2008 [1972]) descreve dois tipos básicos de mudanças em função da classe

social: a vinda de baixo (change from below) e a vinda de cima (change from above). A

mudança vinda de baixo geralmente é introduzida pela classe social baixa e seus falantes a

desenvolvem abaixo do nível de consciência. Após essa variante atingir seu nível de

expansão, passa a ser uma regra para a comunidade de fala e todos os indivíduos devem

compartilhar as mesmas normas e atitudes em relação ao seu uso. Como esse processo inicia-

se com a classe menos favorecida, existe uma resistência da sociedade para aceitar a nova

variante porque transfere a ela o status da classe que a inicia. Já as mudanças vindas de cima

são introduzidas pela classe dominante, com nível pleno de consciência. Labov nesse sentido

explicita:

Se a mudança se origina no grupo de mais status socioeconômico, converte-se em

modelo de prestígio para todos os membros da comunidade. Outros grupos, na

medida em que mantêm contatos com os usuários desse modelo de prestígio, passam

então a adotar a forma modificada. (LABOV, 2008, p. 123).

Igualmente à variante vinda de baixo, recai também sobre a variante vinda de cima o

status de seus falantes, mas ao contrário da discriminação que ocorre com a primeira, a vinda

de cima é bem aceita na sociedade. A negociação ativa da relação de um indivíduo com as

estruturas sociais é que fornece os valores sociais de identidade. Fatores como sexo, origem,

ser brasileiro, argentino, etc. devem ser considerados como construções sociais.

O valor social (negativo ou positivo) resulta das relações do indivíduo com as

estruturas sociais que determinam o prestígio das variantes linguísticas e a identidade social

dos falantes e de suas comunidades de fala. É curioso observar que a identidade é bilateral,

pois ao mesmo tempo em que o indivíduo informante, a partir de suas escolhas linguísticas,

revela uma identidade individual de acordo com a comunidade de fala a qual pertence, define

os traços que podem identificar a mesma comunidade.

2. Comunidade de fala

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 145

O princípio laboviano de que a língua é um objeto de heterogeneidade ordenada, a

partir da homogeneização partidarizada pelas comunidades de fala impõe um tratamento de

análise que localiza especificamente as forças sociais condicionantes da variação linguística.

Numa comunidade de fala, a língua constitui-se pela complexa relação entre seus

elementos a partir da reconstituição de estágios anteriores e da combinação de

formas do passado com novas formas, condicionadas às dimensões sociais e

espaciais. Uma investigação que se propõe a identificar e a descrever as diferenças

de uma língua deverá atentar para as suas dimensões externas e internas e considerá-

las sua complexidade, dinamicidade e integração. (BUSSE, 2012, p. 91)1.

Desse modo, Labov (2008 [1972]) busca realizar análises correlativas entre os

aspectos linguísticos de algumas comunidades de fala, como as de Nova York ou da ilha de

Martha’s Vineyard, no intuito de identificar as forças sociais condicionantes dos processos

linguísticos. Para esse fim, ele relacionou as variáveis internas – os fenômenos linguísticos –

com as variáveis externas –, condicionantes sociais como sexo, idade, escolaridade, classe

social, profissão, etc. – o que lhe possibilitou traçar estatísticas de realização linguística de

cada comunidade de fala, bem como notar a força dos valores sociais atribuídos às diferentes

variantes linguísticas, condicionando, desta forma, as escolhas linguísticas dos falantes.

Como o objetivo da sociolinguística variacionista é estudar a língua em uso, a língua

livre de controles e que é usada casualmente – a língua vernácula –, o pesquisador deve

buscar dados da fala usual, ou não, – dependendo de seus objetivos de estudo – mas que

revelem os contrastes significativos das escolhas linguísticas, pois os falantes de uma

comunidade de fala compartilham traços linguísticos de valor diferentes dos outros grupos

sociais; apresentam uma frequência de comunicação entre si e têm as mesmas normas e

atitudes em relação à linguagem.

Dessa forma, se estabelece a identidade de uma comunidade de fala, bem como do

falante que nela está conscientemente inserido. Aliás, Labov (2008 [1972]) reconhece que em

nível de aquisição de linguagem há uma inconsciência por parte do falante que não escolhe

por se inserir em uma língua ou qualquer uma de suas variações, mas defende que este falante

tem consciência da comunidade de fala a qual participa e de seu prestígio social. “[...] os

mecanismos usuais da sociedade produziram diferenças sistemáticas entre certas instituições

ou pessoas, e que essas formas diferenciadas foram hierarquizadas em status ou prestígio por

acordo geral.” (LABOV, 2008, p. 64)

1 Todas as traduções apresentadas neste trabalho são de minha responsabilidade.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 146

Ao surgir uma nova variante linguística, ela entra em conflito com as que já estão em

uso e a partir de um julgamento de valor de prestígio dessa variante – embora esse possível

julgamento muitas vezes se dê inconscientemente pelo falante –, ela vai criar uma fricção

linguística no plano sincrônico da língua e pode provocar uma mudança linguística

perceptível com o decorrer do tempo. Mesmo que as mudanças linguísticas sejam apenas

percebidas em seus aspectos históricos, constante e diariamente tem-se uma verdadeira luta de

valores das variantes nos seus diferentes níveis. Não se tem como prever qual variante vai

prevalecer ou cair em desuso, mas pode-se observar que as formas que ganham prestígio

tendem a prevalecer.

Estas variações podem ser induzidas pelos os processos de assimilação ou

dissimilação, por analogia, empréstimo, fusão, contaminação, variação aleatória, ou

quaisquer outros processos em que o sistema linguístico interaja com as

características fisiológicas ou psicológicas do indivíduo. A maioria destas variações

ocorre apenas uma vez e se extinguem tão rapidamente quanto surgem. No entanto,

algumas são recorrentes e, em uma segunda etapa, podem ser imitadas mais ou

menos extensamente, e podem se difundir a ponto de formas novas entrarem em

contraste com as formas mais antigas num amplo espectro de uso. Por fim, numa

etapa posterior, uma ou outra das duas formas triunfa, e a regularidade é alcançada.

(LABOV, 2008, p. 19)

O surgimento de uma variante não depende, necessariamente, da inexistência de uma

outra equivalente, mas unicamente dos valores sociais que lhes são atribuídas. Assim, a

proposta de investigação da Sociolinguística Variacionista que surge a partir dos anos 1960,

nos EUA, busca explicar os fenômenos de variação e mudança linguísticas, relacionando os

aspectos linguísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e discursivos) com aspectos

sociais (idade, sexo, classe social, localidade, etc.) e o valor de prestígio que daí resulta e

impulsiona a variação.

É desse lugar, e assumindo este perfil sociolinguístico que realizo a coleta, a

interpretação e análise dos dados, buscando encontrar e explicar possíveis regularizações

linguísticas no processo de palatalização das oclusivas alveolares [d] e [t] no contexto

fonológico seguinte à vogal anterior alta [i] na fala de falantes nativos de Maceió.

3. As faces da variação

A Sociolinguística Variacionista é uma das mais importantes correntes linguísticas

surgidas no século passado, fortemente influenciada pelas teorias sociológicas busca explicar

de modo quantitativo e estatístico os fenômenos da variação linguística, até então tratadas

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 147

apenas como especulações, não havendo, por exemplo, nenhuma metodologia que desse conta

da volatilidade dos processos sociais de produção da língua. Inclusive, se se pode destacar

algum ponto marcante da sociolinguística laboviana, com certeza será sua organização

metodológica que relaciona os aspectos internos da língua com os fatores sociais externos.

Hoje, parece óbvia essa associação entre os recursos sociais e linguísticos para explicar os

fenômenos variáveis da língua, mas não era tão fácil pensar isto há quase cinquenta anos

atrás.

No entanto, o maior trabalho de Labov (2008 [1972]) não foi apenas relacionar

quantitativamente os aspectos internos da língua com fatores sociais – até porque apenas

números não dão uma explicação efetiva às questões basilares – mas notar que todos os dados

estatísticos resultantes dessa relativização social-linguística apontavam para o fator abstrato

da identidade: o prestígio. É justamente a partir da noção de prestígio, que está

intrinsecamente relacionado com a ideia abstrata de identidade, que se dá o jogo de valores

decisivos acerca do que permanece na língua e do que dela se extingue.

Foi isto que ficou evidente quando Labov (2008 [1972]) pesquisou os falantes nativos

de Martha’s Vineyard, onde notou que os que mantinham a alta centralização da vogal [a]

eram justamente as pessoas mais velhas e/ou aquelas que demonstravam um sentimento maior

de apego à ilha e se identificavam com ela.

Fica evidente que o significado imediato desse traço fonético é “vineyardense”.

Quando

o fato de que pertence à ilha: de que ele é um dos nativos a quem a ilha realmente

pertence. Nesse sentido, a centralização não é diferente de nenhum dos outros traços

subfonêmicos de outras regiões que são distinguidas por seu dialeto local. (LAVOV,

2008, p. 57)

De modo semelhante, a pesquisa também feita por Labov (2008 [1972)] com os

funcionários das lojas de departamento de Nova Iorque mostrou que a presença ou ausência

do [r] em final de palavras estava diretamente relacionada com o público a que a loja atendia,

se de classe alta, o funcionário produzia a variante de prestígio, se de classe trabalhadora, a

variante estigmatizada; o que sugere uma identificação do funcionário com aquela classe

social com a qual se relaciona – o que ele chamou de estilo. Um fato importante que ratifica

esta posição é a decisão de alguns trabalhadores de abrir mão de reivindicar aumento salarial

em função da garantia de permanência naquele local de prestígio. Pois, “alguns incidentes

refletem uma disposição dos vendedores a aceitar salários muito mais baixos da loja com

maior prestígio” (LABOV, 2008, p. 68)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 148

Sem dúvida, a percepção de prestígio e estigma que rodeia as variantes linguísticas

condiciona as escolhas do falante, dependendo do status social ao qual está almejando e do

grupo social ao qual compartilha traços de identificação pessoal. “Crer que há um modo

prestigioso de falar a própria língua implica, quando alguém pensa não possuir esse modo de

falar, tentar adquiri-lo” (CALVET, 2009, p. 77).

Não há como se fazer uma escala de identificação do sujeito com os grupos e práticas

sociais que estão ao seu redor, nem como determinar todas as relações de poder capazes de se

fazer presente em seu contexto diário, havendo apenas especulações teóricas que levam a

determinadas conclusões. Só se pode saber, por exemplo, se uma forma linguística é ou não

de prestígio por observar como os falantes agem em relação a ela, pois quando os falantes a

buscam é de prestígio, quando a evitam é estigmatizada, o que está diretamente relacionado à

noção de classe e valor social.

Se a mudança se origina no grupo de mais status socioeconômico, converte-se em

modelo de prestígio para todos os membros da comunidade. Outros grupos, na

medida em que mantêm contatos com os usuários desse modelo de prestígio, passam

então a adotar a forma modificada. (LABOV, 2008, p. 123)

A negociação ativa da relação de um indivíduo com as estruturas sociais é que fornece

os valores sociais de identidade, na medida em que essa negociação é sinalizada através da

linguagem e de outros meios semióticos. Fatores como origem, idade, profissão, escolaridade,

etc. devem ser considerados como construções sociais. Assim, os indivíduos devem ser vistos

como agentes inscritos em uma gama de práticas sociais através das quais eles constroem suas

identidades.

4. Variantes e variáveis

Para Labov, (1972) a língua é inerentemente heterogênea, o que significa dizer que ela

se realiza na e através da variação. A variação linguística é definida entre elementos variáveis

e variantes, sendo as variáveis tratadas sob um aspecto interno e externo, que dizem respeito,

respectivamente, ao conjunto de informações linguísticas que caracteriza uma regra e às

estratificações sociais, tais como idade, sexo, escolaridade, etc.

A palatalização das oclusivas alveolares se tornou variável na fala dos maceioenses em

contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta [i] quanto a realização da consoante

oclusiva em formas linguistas como

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 149

2 2:44), conservando

havendo a palatalização da consoante [t].

Desse modo, pretendo relacionar, de acordo com a metodologia variacionista, essas

regras variáveis contrapondo-as com o aspecto externo idade, a fim de identificar os valores

sociais que são estabelecidos a cada uma dessas variantes. Daí a necessidade de se trabalhar

com dados estatísticos quantitativos, de correlacionar as variantes linguísticas com os

aspectos da vida social dos informantes, pois desse modo se pode mensurar adequadamente as

forças que estão em jogo nos processos dinâmicos da língua.

Métodos estatísticos podem ser utilizadas para avaliar e comparar diferentes efeitos

de contexto, bem como para detectar e mensurar tendências ao longo do tempo. As

técnicas estatísticas também permitem que correlações sejam feitas entre as

características sociais e linguísticas. (TAGLIAMONTE, 2006, p. 73)

Para Labov (2008 [1972]), o modo mais simplificado de conceituar a variável

linguística é tê-la como duas ou mais formas de dizer a mesma coisa com o mesmo valor de

verdade. Ele se refere à capacidade alternativa que algumas formas linguísticas permitem,

como a alternância entre as formas palatalizada ou oclusiva da consoante [d], em

formal da língua, portando a mesma carga semântica, porém, duas formas linguísticas

distintas, seja quão menor essa distinção, jamais se tornarão idênticas e o fato de uma

sobressair à outra prova justamente isto, pois a forma vitoriosa prevalece porque carrega em

seu interior uma carga valorativa maior que a excluída, uma vez que “nenhuma mudança

acontece no vácuo social” (LABOV, 2008, p 21).

E é justamente para identificar essas forças valorativas sociais que atuam sobre as

variantes linguísticas e direcionam os processos de variação e mudança linguística que se

realiza a sociolinguística variacionista. A correlação quantitativa entre as variáveis

linguísticas e sociais coletadas a partir do uso real e efetivo da língua permite ao pesquisador

notar quais as forças sociais são atuantes no processo de variação linguística.

As variáveis externas são as responsáveis por carregarem os valores sociais que

condicionam as variáveis internas promovendo a variação e a possível mudança ou extinção

das formas variantes em jogo. Cada uma dessas variáveis externas deve fornecer informações

suficientes para revelar as origens da variação e em que direção está caminhando, pois é

2 O código se refere à escolaridade, idade e sexo.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 150

através da correlação de fatores sociais às regras linguísticas que o sociolinguista encontra as

regularidades de ocorrências e afere as circunstâncias e valores sociais que interferem na

produção linguística do informante.

A variável idade tem como utilidade, deste modo, aferir a disposição das variantes no

tempo, o que pode determinar se uma forma linguística está caminhando para estabilização,

sobreposição ou extinção. A variável idade pode ser analisada em tempo real, em que a coleta

de dados de se dá com os mesmos informantes nas mesmas condições contextuais em dois

momentos cronológicos distintos que devem ser separados por pelo menos vinte anos,

garantindo a mudança de uma faixa etária para outra, ou seja, uma coleta de dados com duas

décadas de distância da primeira, permite que o informante jovem já seja adulto, enquanto

também permite que o informante originalmente adulto já possa ser idoso.

A ideia é que, porque as noções básicas de sistema fonológico do falante foram

estabelecidas em sua juventude, quando ouvimos falantes que tem 75 anos de idade,

hoje temos uma ideia sobre como as normas da comunidade eram quando eles eram

crianças (70 anos atrás). Da mesma forma, quando ouvimos falantes que tem 45

anos de idade hoje, temos uma ideia sobre o que as normas comunitárias foram

quando eram crianças (40 anos atrás). E assim por diante. Desta maneira,

sociolinguistas modelam a passagem do tempo. (MEYERHOFF, 2006, p. 134)

Esta pesquisa pode demonstrar facilmente se uma variante está caindo em desuso ou

em está em expansão, pois se for constatado que as pessoas de maior faixa etária produzem

em maior número a variante de controle, isto indica que tal variante está caindo em desuso,

uma vez que as pessoas mais jovens a evitam; por outro lado se a variante de controle for

mais usada por jovens, pode indicar que ela está em expansão. Evidentemente, há o problema

ao se considerar a pesquisa em tempo aparente de se está lidando com pessoas diferentes, que

consequentemente podem ser afetadas de modos distintos pelas forças sociais.

5. Um objeto a se observar

No meu caso, por uma questão de praticidade, vou utilizar a pesquisa em tempo

aparente em que considero três faixas etárias de informantes nascidos e vividos em Maceió,

elas vão de 16 a 35 anos, de 36 a 55 anos e de 56 a 80 anos. Com isto, busco descobrir os

caminhos que a palatalização das oclusivas alveolares está tomando em Maceió, se em

processo de expansão, estabilização ou extinção.

Embora minha pesquisa de doutorado deva contar com informações de 48

pessoas estratificadas de acordo com idade, sexo e escolaridade, neste trabalho aqui faço

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 151

apenas um recorte a fim de analisar, nos dados, as ocorrências do processo de palatalização

das oclusivas alveolares em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta. Como ainda

estou em processo de coleta e transcrição de dados, tenho em mãos apenas 15 áudios a serem

analisados, sendo 5 áudios para cada faixa etária, que as nomeio como faixa A, a que vai de

16 a 35 anos, B, de 36 a 55 e C, 50 a 80 anos.

Os dados foram rodados no Goldvarb X a fim de verificar relevâncias e pesos relativos

das variáveis, tendo como variável dependente a palatalização da oclusiva alveolar, que a

codifico com número 1, em oposição a forma oclusiva 2. A idade recebe os códigos A, B e C

e sexo F e M, para feminino e masculino.

Pelo que pude perceber, todos os informantes desta análise produziram, ao menos em

algum momento da entrevista alguma forma palatalizada, embora essas realizações tenham

uma frequência de uso bastante variável, havendo um informante, por exemplo, (1EMAF) que

chegou a produzir em sua fala 42 formas lexicais em que as oclusivas alveolares [t] e [d] se

realizam após a vogal anterior alta [i], aparecendo apenas uma forma palatalizada

Desse modo, eu considero as formas oclusivas:

prestígio na Comunidade de fala de Maceió, em oposição a forma palatalizada:

[ rrega uma

marca social de estigma. Para isso, eu analiso 299 realizações de formas lexicais em que as

consoantes [t] e [d] são produzidas após a vogal anterior alta [i] produzidas por 15

informantes, sendo 7 mulheres e 8 homens.

Conforme pode-se verificar no gráfico abaixo há uma frequência de uso bem maior da

forma de prestígio, a oclusiva, em detrimento a forma palatalizada.

Gráfico1: uso total das variáveis Palatal e Oclusiva

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 152

Pelo gráfico acima, fica evidente a preferência dos informantes pela forma oclusiva,

mas será que isto sempre foi assim ou se pode perceber algum movimento de ascensão ou

decesso no decorrer do tempo? Procurando compreender como o uso dessa regra variável

presente na comunidade de fala maceioense tem se comportado diacronicamente, relaciono o

a variante de controle ao fator idade no Goldvarb X, o que trouxe tais resultados:

IDADE Realizações Percentual Peso relativo

A – 16 a 35 17 11.3 0.32

B – 36 a 55 31 47 0.76

C – 56 a 80 23 28.0 0.59 Tabela 1: contraposição de variante dependente com a variável idade

É bastante interessante observar na tabela como há uma oscilação entre as

diferentes idades, ficando a faixa B como a mais produtiva da palatalização das oclusivas

alveolares em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta, havendo uma diferença com

a faixa C não muito grande, mas com expressiva distância da faixa A. Ou seja, os dados

apontam para uma variante evitada pelas pessoas mais jovens e mais produzida pelos

informantes com mais de 36 anos. O que não pode ser suficiente para afirmar que há um

processo de extinção da variante, pois, como se pode ver, essa variante não foi tão produtiva

com os informantes da faixa C, o que pode evidenciar uma variante se comportando como

pêndulo, ora ganhando mais uso, ora sendo evitada, de qualquer forma o que está claro é que

os mais jovens evitam esta forma linguística, constatando-se um estigma da variante.

Este estigma da variante se torna mais proeminente quando confrontamos a variável

sexo, pois as mulheres apresentaram menor frequência de uso e consequentemente um menor

peso relativo que os homens.

SEXO Realizações Percentual Peso relativo

Masculino 36 30,3 0.59

Feminino 35 19,4 0.44 Tabela 2: contraposição da variante de controle com o sexo.

Ao se comparar as realizações, entre homens e mulheres, da palatalização das

oclusivas alveolares vê-se como ambos produziram um número bastante próximo de

palatalizações M=36 e F=35, mas quando se analisa essas produções considerando as

realizações de acordo com cada sexo se vê que a produção dos homens é mais proeminente,

chegando a ser produzido com mais de 30% de frequência nos homens, e com pouco menos

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 153

de 20% pelas mulheres, o que vai refletir no peso relativo da variante, apresentando um

número consideravelmente maior para os homens em relação às mulheres. De modo que esses

dados confirmam, dentro da teoria assumida, que a variante em estudo porta estigma social e é

conscientemente evitada pelas mulheres.

Tabela 3: contraposição das variáveis idade e sexo com a variante de controle

Ao intercruzar as variáveis idade e sexo a fim de verificar como esta percepção de

estigma da variante se faz presente nos informantes de diferentes idades, se confirmou que os

informantes mais jovens realmente utilizam em menor frequência a forma palatalizada da

oclusiva alveolar em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta e que as mulheres

mais jovens são as que menos produzem esta variante, enquanto os homens entre 36 e 55 anos

são os principais usuários desta forma linguística, o que confirma, teoricamente, que na

comunidade de fala analisada, esta forma linguística é percebida como marca de estigma e

conscientemente evitada.

6. Conclusão

Dessa forma, posso encerrar este trabalho afirmando, diante dos dados coletados e

analisados, que a palatalização das oclusivas alveolares [t] e [d] em contexto fonológico

seguinte à vogal anterior alta vem passando por um recorrente processo de estigmatização

social, comprovado pelos menores usos dessas formas pelos jovens e ainda mais pelas

mulheres jovens.

Evidentemente, esta análise é prematura e conta com uma pouca quantidade de

informações linguísticas, uma vez que foram apenas 15 áudios analisados, mas suficientes

para mostrar algumas tendências sociais destas variantes linguísticas na comunidade de fala

maceioense e como elas vem se comportando diacronicamente em relação a cada uma das

faixas etárias analisadas.

Conforme haja o progresso da pesquisa, novas informações devem ser acrescidas às

discussões sobre a palatalização das oclusivas alveolares na comunidade de fala maceioense,

Idade/Freq.uso

A B C

Feminino 7% 28% 42%

Masculino 13% 67% 15%

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 154

bem como suas pertinentes reflexões acerca dessas realizações linguísticas e dos caminhos

que este fenômeno vem percorrendo diacronicamente.

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TAGLIAMONTE, S. Analysing Sociolinguistic Variation. New York: Cambridge University

Press, 2007.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 155

UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE

REMANESCENTE QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS? [Voltar para Sumário]

Aluizio Lendl-Bezerra1(URCA/UERN)

Marcos Nonato de Oliveira2(UERN/CAMEAM)

Considerações iniciais

Muitos são os desafios impostos aos professores de língua portuguesa, este século de

mudanças trouxe com ele a necessidade de transformações das práticas linguísticas de sala de

aula, a quebra do tradicionalismo e o uso de novas metodologias para o ensino.

Nesta senda, este artigo se propõe a compreender as prática de ensino de produção de

texto de língua portuguesa na comunidade remanescente quilombola Lagoa dos Crioulos,

localizada na zona rural da cidade de Salitre, interior do estado do Ceará.

Essa trabalho é resultado da parte inicial do projeto de extensão ALT – Ampliando

Linguagem e Tecnologias, vinculado à Universidade Regional do Cariri em parceria com a

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, que tem como objetivo rever as práticas de

letramentos em escolas públicas e propor intervenções com base teórica nas metodologias de

ensino no ambiente citado.

Dessa forma, esta pesquisa está circunscrita ao estudo do texto na perspectiva da

coesão referencial, ainda tivemos como suporte metodológico a pesquisa-ação e a sequência

didática do Grupo de Genebra.

Assim, buscamos compreender as propostas de produção de texto a partir de uma

abordagem multimodal simples, neste caso, as histórias em quadrinho produzidas com lápis e

papel, sem auxílio de ferramentas digitais.

Gêneros Textuais e multimodalidade: breve consideração

1Professor da educação básica e do curso de Letras da Universidade Regional do Cariri e Mestrando em Letras

do Programam de Pós- graduação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus CAMEAM –

Pau dos Ferros/RN. 2 Professor Doutor vinculado ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio

Grande do Norte, Campus CAMEAM – Pau dos Ferros/RN.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 156

Entende-se por gênero textual os textos que são úteis para a comunicação no cotidiano.

Marcuschi (2008) nos alerta para a diferença entre tipo textual e gênero textual, onde o

primeiro “(...) caracteriza-se muito mais como sequências linguísticas” e englobam “(...)

cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,

descrição, injunção”. Entendido o que é tipo textual - a estrutura linguística a qual o texto se

enquadra -, gênero textual são os modelos de texto usado no ato pragmático, assim, podemos

diferenciar esses dois conceitos tão próximos.

A propósito, as histórias em quadrinhos – populares HQ’s – quanto ao tipo textual são

sequências narrativas que unem linguagem verbal e não verbal, enquadrando-se também nos

gêneros multimodais. Esse gênero costuma ser propagado em jornais impressos, livros

didáticos, avaliações externas e internet, para o público em geral – em específico.

O conjunto de elementos que compõem a sequência narrativa das histórias em

quadrinhos (balões, frases, imagens) reproduzem marcas da oralidade e fornecem dados ao

leitor para que se possa fazer a compreensão da história proposta. Esse gênero ajuda no

entendimento do contraste entre a fala e a escrita. A imagem desenhada é o elemento de base

das histórias em quadrinhos dispostas para o leitor através das vinhetas, que contam a

narrativa – ficcional ou real – obedecendo a uma ordem temporal. A linguagem visual (ou

icônica) está ligada à estética da HQ, como o formato dos quadrinhos, montagem das tirinhas,

gestos dos personagens, ideogramas e metáforas visuais (VERGUEIRO, 2006).

Esses recursos marcam visualmente a fala entre os personagens ou gestos através das

onomatopeias, por exemplo, que contribuem para que o leitor chegue a compreensão dessa

interação entre as linguagens, assim este uso combinado contribui para a comunicação

sociointerativa, usando imagens e palavras simultaneamente.

As histórias em quadrinhos são um dos primeiros gêneros que os leitores iniciantes

têm contato, mas ainda são vistas por docentes como uma “leitura fácil”, que, aos olhos dos

mesmos, não estimulam o pensamento crítico-reflexivo. Os alunos, ao trabalharem com o

gênero HQ em sala, tornam-se mais empolgados pelo simples fato de fazerem parte do seu

cotidiano. O leitor de histórias em quadrinhos é capaz de diferenciar os aspectos mais formais

ou informais da língua a partir dessa leitura, de fazer a associação do signo verbal e signo

visual com rapidez para compreender a história ali presente. Dionísio (2005) reafirma a ideia

de que,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 157

Todo professor tem convição de que imagens ajudam na aprendizagem, quer seja

como recurso para prender a atenção dos alunos, quer seja como portador de

informação complementar ao texto verbal (DIONÍSIO, 2005, p. 195).

Vergueiro (2006) aborda a importância da relação entre as palavras e imagens

dispostas nas histórias em quadrinhos, utilizando-se da argumentação de que juntas ampliam a

interação entre os códigos verbal e não verbal. Se fossem trabalhadas isoladas e não de forma

complementar, talvez não atingissem tal proficiência. Cabe ao docente avaliar os elementos

que envolvem o texto multimodal e o gênero HQ, visando a possibilidade de maior interação

dos alunos.

Sabemos que cada leitor traz consigo uma vivência e experiências diferentes e quando

ele adentra no texto, descobre a interação texto-leitor. A linguagem não verbal é de suma

importância por reforçarem esta ideia anterior e servir de base para a organização da

linguagem verbal. Apresenta-se assim, a concepção de letramento (SOARES, 2003), ação que

envolve o ensinar e aprender a leitura e escrita, no contexto de suas práticas sociais. Assim

seguindo o pensamento da autora podemos inferir que hoje se faz necessário educar os alunos

para que eles aprendam também a leitura visual, entender toda a estrutura que remete ao

entendimento do texto, destacando que o texto visual também é uma unidade carregada de

significação.

Perspectivas metodologicas para o ensino da multimodalidade

Essa sessão se inicia destacando que as práticas linguageiras são osprincipais

instrumentos de interação social, essa assertiva é destacada nas reflexões de Dolz &

Schneuwly (2014) e ilustra nossa forma de concepçãodo ensino da língua, compreendendo

que os eventos comunicativos são construído a partir do contato com os gêneros textuais que

nos circundam.

Assim, à escolha do nosso locus buscamos um ambiente que, a nosso ver, precisasse

de atenção mais específica, na busca de minimizar diferenças sociais que por ventura a

linguagem estivesse associada. Centrada primordialmente na resolução dos problemas em

contexto escola (Moita-Lopes, 1996), logo, configurando um enfoque aplicado em linguística.

A comunidade remanescente quilombola Lagoa do Crioulos localizada na zona rural

da cidade de Salitre, interior do estado do Ceará, é nosso ponto de partida. É uma comunidade

oficialmente reconhecida pela Fundação Cultural de Palmares. Entendemos por remanescente

quilombola na mesma observação de Treccani (2006),como um vestígio e resquício no

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 158

patamar histórico da identidade de negros, índios e mestiços. Logo, é uma comunidade com

história e cultura própria que foi transmitida geração-a-geração que hoje não constituem

apenas dessas raças, mas de muitas outras que se identificam com a cultura e a história.

É uma comunidade de meio porte, nela funciona a Escola de Ensino Fundamental João

Rodrigues da Fonseca, que é mantida pelo governo municipal. A estrutura física ainda não

segue um padrão desejável, as salas são quentes e pouco ventiladas – situação da maioria das

escolas municipais do estado do Ceará.

Como esse trabalho trata-se de uma pesquisa-ação e ainda está em fase inicial,

decidimos ter como nosso foco apenas a turma de nono (9º) ano do ensino fundamental II.

Esse turma é composta de trinta e dois (32) alunos, desse número, apenas quatorze (14) fazem

parte da comunidade, os demais alunos são das regiões circunvizinhas.

Para tanto, essa pesquisa parte de um processo observatório, acreditamos nesse

enfoque metodológico, pois ele nos permitiu ver o comportamento dos participantes a partir

de uma nova luz e, ainda, nos mostrou novos aspectos do contexto estudado. Justificamos

ainda à medida do entendimento de Damas e De Ketele (1985) que destacam que a

observação não é um processo com fim em si mesmo, mas a serviço de uma atividade mais

complexa. Como nossa abordagem é parte inicial para compreender um contexto que não é

nosso, mas que tem como foco uma atividade de intervenção ancorada naquilo que foi

anteriormente tido como objeto de análise. Logo, como processo de mobilização da nossa

atenção.

Nossas observações foram realizadas durante o período de quinze (15) dias. Para que

não houvesse resistência, entregamos um ofício para a coordenação escolar, ainda, para a

professora da turma explicando que as atividades realizadas na escola faziam parte de um

projeto de extensão vinculado a Universidade Regional do Cariri (URCA) e Universidade do

Estado do Rio Grande do Norte (UERN) que tinha como objetivo desenvolver atividade de

ensino e pesquisa na referida escola.

Nesta senda, os pesquisadores Schneuwlyet ali (2004) apresentam a sequência didática

como gênero discursivo, essa sequência foi adaptada, tendo em vista a necessidade de

desenvolver a capacidade comunicativa dos sujeitos, criando contextos de produções reais

para o desenvolvimento de letramentos múltiplos.

Os autores propõem uma sequência de módulos de ensino, ela se organiza em nossa

proposta da seguinte maneira:

Definição da

situação de

comunicação Modulo I Módulo II [...]

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 159

A ideia dessa sequência didática (adaptada) proposta pelos pesquisadores do Grupo de

Genebra é propor atividade de ensino sistemática, com o objetivo possibilitar um aprendizado

progressivo e a partir de práticas sociais e históricas de linguagem. Confrontados com esse

objetivo, o nosso surge com a necessidade de desenvolver práticas de leitura e produção de

textos que vinculem mais de um modo linguístico, que possibilite o contato com múltiplas

linguagens, com a complementação entre linguagens que são possibilitadas por textos que

relacionam linguagem verbal e não-verbal, ou seja, que surjam de uma perspectiva

multimodal de ensino.

Nessa mesma direção, elaboramos nesse trabalho apenas a parte inicial

dessasequência. Trata-se de dois momento (a) e (b), em (a) definição da situação de

comunicação, mostramos para os alunos que o trabalho seria desenvolvido em três (3) etapas.

Perguntamos o que eles achavam do gênero História em Quadrinho (HQ) e se eles já

produziram. Não nos foi surpresa que eles já conheciam, “tamanha a popularidade das

histórias em quadrinhos” (VERGUEIRO, 2014, p. 07), tão pouco a adesão rápida ao gênero.

Contudo, também não nos trouxe admiração quando os alunos relataram que não haviam

produzido HQs. Em (b) foi a solicitação da produção inicial, essa etapa tem como real

objetivo perceber o quanto os alunos conhecem do gênero e conhecer um pouco do que eles

pensam da comunidade local. Vale destaque a atenção e a vontade dos participantes de

produzir os HQs.

Os elementos citados acima são importantes para mostrar como nossa proposta foi

configurada, ainda deixa evidente que a sessão que se segue – Discussão e análise – tem como

foco os aspectos observados na aula de português e a produção inicial dos alunos.

Discussão e análise

Pensar em produção de textos é pensar que eles são produzidos por sujeitos em

processo de construção. Esse processo requer do professor práticas de ensino que possibilitem

o contato com as multiplicidades de formas de linguagens.

Produção

inicial Revisão I

Produção

final

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 160

Neste sentido, formos norteados pelo interesse de compreender como se desenvolve as

sequências de ensino que levam à produção de textos. Um olhar sobre o que acontece nas

práticas de sala de aula em uma comunidade remanescente quilombola.

Durante quinze (15) dias estivemos presente nas aula de português do 9º ano do ensino

fundamental II, esse passo foi importante para que nós pudéssemos reconhecer as práticas de

letramentos utilizadas pelo regente de sala.

Nessa perspectiva, observamos que não houve enfoque em nenhum tipo de texto

multimodal. As aulas ainda estavam vinculadas ao tradicionalismo e ligadas ao livro didático,

onde poucas vezes eram desenvolvidas atividades paralelas à ampliação do repertório

comunicativo dos alunos.

Destacamos, a necessidade de multiletramentos, tendo em vista que eles preparam os

alunos para situações comunicativas reais. Essa postura exige do professor mudanças para

uma atitude mais contemporânea para o ensino da escrita.

Essa proposta vem ampliar o conceito de ensino, principalmente ampliando a noção de

diversidade de semioses que doravante ocorreram em atividades em sala de aula.

Observemos a figura HQ 01 do aluno JRF:

Figura HQ 01.

No quadrinho (a) podemos observa a composição que é feita a partir do que é colocado

em destaque nos balões: “lagoa dos criolos e minha terra natal comunidade cheia de coisas

legais.” É clara a satisfação em ser um remanescente quilombola, é mostrado com orgulho

quando JRF diz ser sua terra natal.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 161

É evidente que na parte verbal do texto o aluno em nenhum momento faz referência às

questões do campo, isso só é entendido quando, no desenho, é construído a imagem de um boi

em uma espécie de curral e de um homem com um chapéu. Logo, desse conjunto, podemos

inferir que Lagoa dos Crioulos trata-se de uma comunidade rural. Essa assertiva só é possível

quando levamos em consideração as múltiplas linguagens contidas nas HQs. Quando

associamos um todo construído por coesão3responsável por atribuir sentindo ao texto.

A linguagem, assim, assumida em uma esfera de práticas sociais significativas

promove a materialidade multimodal desde um contexto informal até uma situação de

completa formalidade. Assim, os apoios na oralidade que constam nessas produções serão

abordado em módulos de ensino e propostas de revisão de textos no decorrer da pesquisa.

Tendo em vista que o nosso foco é construir com os aprendentes textos multimodais e que os

processos de composição verbal e composição visual, no que se relaciona a sua sintaxe.

Servem de análises para momentos posteriores.

Figura HQ

02.

A figura HQ 02trata-se de uma história popularmente conhecida no comunidade

quilombola, ressaltamos, com isso, que todo texto é formado dentro de determinado gênero

em função das intenções comunicativas.Podemos perceber que um boi foi transformado em

uma pedra – sendo encantado, conhecida como Pedra da Sereia.

Na imagem HQ 02 do aluno FRO também há a construção de uma forma de

referenciação4 entre o que é dito e o que é desenhado. Podemos observar que FRO faz uma

3 [...] coesão é, pois, uma relação semântica entre um elemento do texto e algum outro elemento crucial para sua

interpretação. (KOCK, p. 16, 2008) 4 Kallmeyer et al (apud KOCK, p. 34, 2008) falam que a referência tem sido usada [...] na trilha de Halliday,

significando a relação de sentido que se estabelece entre duas forma na superfície do textual.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 162

referência do que é enunciado verbalmente como: “vaqueiro”, “boi” e “pedra da sereia” com o

que é desenhado. Nesse sentido, o verbal e o visual se complementam na construção do

sentido, produzindo imagens da realidade. Essas representações são importantes, pois

compreender um texto é entrar em contato com todos os recursos utilizados na sua construção.

Considerações finais

A forte massificação no uso dos gêneros mais tradicionais na escola não propõe um

ensino de língua que esteja em acordo com os novos alunos deste século. Ainda a necessidade

de ser planejar aulas a partir de sequências de ensino bem estruturada e sistemática. Assim,

quando pensamos em desenvolver esse projeto, buscamos sequenciar as ações de sala de aula

em busca de uma aprendizagem satisfatória.

Acreditamos que a escola precisa ser cosmopolita na tentativa de aproximar os alunos

das atividades linguísticas em uso, bem como a gêneros que não são popularmente

encontrados nas escolas, mas que é possível de encontrar no uso cotidianos dos alunos,como é

o caso das histórias em quadrinhos.

Desse modo, essa pesquisa inicial buscou compreender as práticas de ensino em uma

comunidade com status diferenciado, na tentativa de desenvolver metodologias aparadas por

um suporte teórico e que fosse possível ser inserido da prática cotidiana do professor.

Em sequência, buscamos inserir os uso de estratégias textuais para a compreensão das

tirinhas produzidas, bem como justificar determinados acontecimentos ocorridos no texto, tal

como o apoio na oralidade.

Referências

DAMAS, M. J.; DE KETELE, J. M. (1985) Observar para Avaliar, Coimbra, Livraria

Almedina, 1985.

DIONÍSIO, A. P. Gêneros multimodais e multiletramentos, in KARWOSKI, A. M.;

GAYDECZKA, B; BRITO, K. S. (orgs.) Gêneros textuais: reflexões e ensino. São Paulo:

Parábola Editorial, 2005, 119 – 132.

DOLZ, J.; NOVERRAZ, M; SCHENEWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita:

apresentação de um procedimento, in: DOLZ, J.; SCHENEWLY, B. Gêneros orais e escritos

na escola. Trad. e Org.: R. Rojo e G. S. Cordeiro. Campinas. Mercado de Letras, 2004 [1998],

pp. 149 – 185.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 163

KOCK, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender os sentidos do texto. Segunda edição. São

Paulo. 2010.

MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gênero e compreensão. São Paulo:

Parábola Editorial, 2008.

SOARES, M. B. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2003[1995].

TRECCANI, G. D. Terras de quilombo: entraves do processo de titulação. Belém: Programa

Raízes, 2006.

VERGUEIRO, W. O uso do HQs no ensino. In:BARBOSA, A; RAMOS, P; VILELA, T.;

RAMA, A.; VERGUEIRO, W. (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de

aula. 4 ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 164

ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE

OS PERSONAGENS [Voltar para Sumário]

Amador Ribeiro Neto (UFPB)

Rafael Torres Correia Lima (UFPB)

O texto literário é um campo, complexo de sentido, em que há constante diálogo entre

os signos pertencentes a ele. Machado (2003) diz que, primeiramente, faz-se necessário

conhecer a linguagem como um conjunto, cujo objetivo é o de comunicar através de signos.

Lótman (1978), também semioticista, por sua vez afirma que a arte deve ser percebida como

linguagem pelo prévio fato de unir um emissor e um receptor. Dessa forma, a obra Budapeste,

de Chico Buarque, é um texto específico da arte literária que deve ser compreendida como

linguagem para que possamos interpretá-la por meio dos signos. Todos os elementos contidos

na obra têm importância significativa. Ao observarmos, por exemplo, a capa do romance

Budapeste, verificamos que o dorso do livro é composto por um título semelhante ao da capa,

chamado Budapest. Acreditamos que seja um “espelhamento imperfeito”. Definimos este

como um objeto que reflete ou representa algo de modo incompleto, defeituoso ou mesmo

inverso. No romance Budapeste, há diversas relações que remetem à questão dos “espelhos

imperfeitos”, como: José Costa – Zsoze Kósta; Vanda e Joaquinzinho – Kriska e Pisti. Neste

artigo, iremos verificar o movimento de reflexo entre os personagens presentes na obra.

A primeira relação (Costa – Kósta) é marcada por diferenças de identidades, que

classificamos em nacionais/linguísticas e compositivas; ou seja, apesar de ser uma única

pessoa, é possuidora de determinada identidade dependendo do lugar em que está situada. O

protagonista, desta maneira, perde o seu vínculo com o local de nascimento; está sempre

renascendo de acordo com a situação em que se encontra. O espelhamento pode “simboliza[r]

a sucessão de formas, a duração limitada e sempre mutável dos seres” (CHEVALIER, 2009,

p. 394). Costa, além de desprender-se nacionalmente, atravessa, constantemente, de um país

para outro; daí ocorrer sempre esta “sucessão de formas”, pois, em Budapeste, Costa

transforma-se em Kósta. No Rio de Janeiro, ele é marido de Vanda, falante da língua

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 165

portuguesa e prosador; em Budapeste, é namorado de Kriska, falante do húngaro e poeta.

Estes formatos se tornam alteráveis e restritos, porque dependem do local em que o

personagem esteja. Mas, estas mudanças nunca acontecem de modo que Costa/Kósta se sinta

confortável com a circunstância, já que “os atuais conflitos estão, com frequência,

concentrados nessas fronteiras, nas quais a identidade nacional é questionada e contestada”

(WOODWARD, 2009, p. 23). Em Budapeste, ele não atinge a pureza da língua húngara,

sucedendo de haver sempre um “sotaque” que anuncia o “acento estrangeiro”. Por outro lado,

no Brasil, ao retornar de Budapeste, Costa estranha o país de nascimento:

as pessoas que eu topava, por mais que rissem e balançassem os corpos, não me

pareciam afeitas ao ambiente. Às vezes eu as via como figurantes de um filme que

caminhassem para lá e para cá, ou pedalassem na ciclovia a mando do diretor. E as

patinadoras seriam profissionais, ganhariam cachê os moleques de rua, ao volante

dos carros estariam os dublês fazendo barbaridades na avenida. Acho que eu tinha

conservado uma lembrança fotográfica, e agora tudo o que se movia em cima dela

me dava a impressão de um artifício (...) mesmo o oceano, na minha memória,

estivera a ponto de se estagnar. (BUARQUE, 2003, p. 153-154, grifos nossos).

Reparemos como as imagens contempladas por ele estão fora de lugar. O narrador tem

a sensação de que a multidão que passa próximo a ele não está ligada ao ambiente, ou seja, é

como se estivesse numa terra estrangeira. Costa se encontra confuso neste lugar, como

localizado dentro de um “filme”, em que somente é capaz de memorizar representações

fotográficas de um país obsoleto, pois, agora, toda novidade, ou tudo que não é (re)conhecido

por ele, é simulação. Intrigante notar que a impressão que ele tem é a de que está em uma

criação artística, como se fizesse parte de um processo fictício; e não é a primeira vez que ele

se sente participando de uma atividade de criação. Quando Costa estava em um hotel, em

Budapeste, ele relata que “não me aborrecia caminhar assim num mapa, talvez porque sempre

tive a vaga sensação de ser eu também o mapa de uma pessoa” (BUARQUE, 2003, p. 56). O

fato de ele apresentar-se como um mapa, expressa uma ambiguidade, visto que este objeto é

uma reprodução gráfica. Adquire, assim, o sentido de que Costa se autodenomina “mapa” por

escrever biografias, isto é, construir graficamente a vida de uma pessoa; ao mesmo tempo em

que pode significar que ele seja esta pessoa representada graficamente. A partir desses

diferentes sentidos, podemos perceber como a identidade composicional do escritor anônimo

também possui o seu duplo.

No Brasil, Costa é ghost writer de biografias. Escreve, exclusivamente, narrativas.

Enquanto que em Budapeste, além de ser um escritor anônimo de prosa, passa a compor

poesia. Esta mudança pode ter sido ocasionada pelo fato de Costa espelhar ele mesmo

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 166

(Kósta), pois, segundo Chevalier (2009), o espelho é capaz de provocar uma imagem

invertida. No caso do protagonista, o inverso da prosa seria a poesia. Ele relata que “não sabia

escrever poesia, e todavia estava escrevendo um poema sobre andorinhas” (BUARQUE,

2003, p. 133). Acreditamos que pelo fato dele dominar com maior perfeição a língua nativa

(portuguesa), tornou-se um ser prolixo. Por outro lado, a língua magiar teria que ser escrita de

modo sucinto, uma vez que não a tinha totalmente no controle. Daí, como a poesia é expressa

mais concisamente que a prosa, ele somente consegue elaborá-la em uma língua estrangeira.

A relação entre Budapeste e Rio de Janeiro se insere diretamente neste contexto, pois naquela

cidade Costa não se incomodava com o silêncio, que pode atribuir à concisão da fala, por

exemplo, quando ele chega a Budapeste, entra em um táxi e fica “um minuto em silêncio

dentro do carro” (BUARQUE, 2003, p. 47, grifos nossos), ou quando encontra Kriska e

permanecem “cada qual com o seu silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, (...)

segui observando o seu silêncio, decerto mais profundo que o meu, e de algum modo mais

silencioso (...) eu imerso no silêncio dela” (BUARQUE, 2003, p. 61, grifos nossos). Há um

outro instante em que Costa afirma que “me apeguei àquele silêncio” (BUARQUE, 2003, p.

62, grifo nosso), além da sua relação com o Danúbio, “negro e silencioso” (BUARQUE,

2003, p. 70, grifo nosso). Todavia, no Rio de Janeiro e nos encontros anônimos, Costa tem

atitudes contrárias ao silêncio, este o incomoda constantemente, por exemplo, em sua casa, a

televisão fica continuamente ligada, principalmente quando Vanda não está presente, pois “ao

silêncio de Vanda não voltando, preferia tiroteio e ronco dos motores” (BUARQUE, 2003, p.

77); ou quando ele está em um encontro em Melbourne onde ele “fervia, falava, falava, teria

falado até o amanhecer se não desligassem a aparelhagem de som” (BUARQUE, 2003, p. 21,

grifos nossos). Estes contínuos deslocamentos pelos países realizados também podem ser

compreendidos como refletores desta dupla identidade, uma vez que “é a viagem em geral que

é tomada como metáfora do caráter necessariamente móvel da identidade (...), posicionando-

o, ainda que temporariamente, como o ‘outro’” (SILVA, 2009, p. 88). É mais um movimento

que determina Costa ser considerado um prosador em Budapeste e um poeta no Rio de

Janeiro, assumindo diferentes identidades.

O espelhamento manifesta-se, da mesma forma, no âmbito familiar do protagonista. A

família carioca e budapestense reflete-se uma à outra, tendo como intermediário José Costa.

Sobre a família carioca, Costa e Vanda são pessoas antagônicas. Por um lado, Costa

conserva-se no anonimato; por outro, Vanda dedica-se à busca pela fama. Ela,

constantemente, ofusca o marido. Quando Costa passa a viajar constantemente, e Vanda a

viver sem a presença do marido, ela ganha mais notoriedade no seu emprego. Vanda

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 167

fora transferida para São Paulo (...) porque o telejornal da noite era gerado em São

Paulo (...) e de segunda a sexta a Vanda ia ao ar em rede nacional. Era um upgrade

na carreira, disse ela, tanto assim que em Higienópolis todo mundo parava na rua,

chegava a ser chato. Disse que por outro lado adorava a efervescência cultural da

cidade, tinha ido a um catatau de exposições. Frequentava restaurantes magníficos

no fim da noite, de tarde malhava na academia. Sem contar que três vezes por

semana tinha fonoaudióloga, porque apresentara problemas de fadiga nas cordas

vocais. Pensava em alugar um apartamento, mas ao mesmo tempo se sentia mais

protegida num residence. Disse também que exigiu da gerência a troca do colchão, e

com isso estava melhor da coluna. (BUARQUE, 2003, p. 81).

Este “upgrade” significa que ela agora se tornou visível no seu ramo de trabalho, que

pode ser representado também por ter “clareado os cabelos, e esticara os cachos, e usava

rímel, pingentes nas orelhas, uma camisa de colarinho, um paletó de homem, com ombreiras”

(BUARQUE, 2003, p. 76, grifos nossos). O clareamento, que alude a um efeito de luzes, e o

esticamento, que Vanda fez em seu cabelo, vão de encontro com o “cabelo preso” do início da

obra. É como se ela estivesse se libertado de Costa e ligada a um outro momento da sua vida

pessoal e profissional. Quando estica os seus cabelos, podemos entender que ela conseguiu se

firmar no emprego, ou seja, que houve uma ascensão no seu emprego, devido a sua mudança

de visual. Prova disso, é que os cabelos adquiriram luzes, foram realçados. Os cachos, que

podem representar um enrolamento pessoal e profissional, passam a não mais existir. O rímel

nos olhos contrasta com a anterior sombra com que ela se maquiava. O rímel serve para

colorir os cílios. Vanda agora tinha cores, diferentemente do começo, em que ela possuía uma

sombra sem nenhuma cor, ou melhor, com uma cor escura. Também podemos entender que o

cílio é uma parte do corpo que serve para esconder os olhos e o rímel é útil para curvar os

cílios, dando destaque aos olhos ao invés de escondê-los. O pingente nas orelhas vai de

encontro com o colar de miçangas que ela usava. O pingente é um brinco que fica pendente na

orelha. O “pender” pode ser deduzido, no caso de Vanda, como uma pessoa que se tornou

decidida, realizada e determinada para aquela sua função. Da mesma forma, podemos pensar

nas “ombreiras” que, por ampliação de sentido, é entendido como uma entrada, servindo para

dar passagem, que em relação à Vanda, é marcada pela saída de um jornal local para o

ingresso em um jornal nacional.

Já Joaquinzinho é o filho de Costa e Vanda. Ele “ia completar cinco anos e não falava

nada, falava mamãe, babá, pipi” (BUARQUE, 2003, p. 30-31). Esta sua carência na fala

reflete a inexistência de voz que o ghost writer tem sobre os seus escritos. Chevalier (2009)

diz que os espelhos provocam a reflexão das ações dos homens. Com isto, percebemos que

Joaquinzinho se torna reflexo de Costa no sentido de que os dois não possuem opinião

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 168

manifesta. Aquele não estabelece nenhuma conversa com o pai, mesmo na insistência deste.

Por exemplo, quando está a procura da esposa e pergunta ao filho “cadê a mamãe?, cadê a

mamãe? Começou a chorar alto” (BUARQUE, 2003, p. 78). Entretanto, a criança imita o pai.

O narrador relata que

pela madrugada ele [Joaquinzinho] pegou a mania de balbuciar coisas sem nexo,

inventava sons irritantes, uns estalos nos cantos da boca; eu não tinha sossego nem

minha cama, me segurava, me mordia, finalmente estourei: cala a boca, pelo amor

de Deus! Calou, e a Vanda saiu em sua defesa: ele está só te imitando (BUARQUE,

2003, p. 31).

A realização da imitação demonstra que o filho é o espelho do pai, pois ele tenta

reproduzir fielmente o que Costa falava quando estava dormindo. Era como se Joaquinzinho

tentasse copiar o pai, e como este era um ghost writer que não se manifestava publicamente, o

filho também não se revelava abertamente. Contudo, são “espelhamentos imperfeitos”, pois a

privação de Costa sucedia pela escrita, não assumindo ostensivamente o que produzia, e o de

Joaquinzinho ocorre pela fala, que somente é articulada no colóquio entre ele e a mãe. A

própria empregada do casal já havia pronunciado que “bebê que se vê refletido no espelho

fica com a fala empatada” (BUARQUE, 2003, p. 32, grifos nossos). Entendendo que o

reflexo é a imagem do pai, a palavra “empatada” pode significar tanto “impedida” como

“igualitária”. Joaquinzinho tem dificuldades em se expressar, ou seja, a propriedade da fala é

um estorvo (impedida) para o garoto; assim como a apropriação da escrita é para Costa.

Nenhum dos dois se apodera publicamente da palavra.

Além disso, Costa transforma-se em um pai ausente, pois passa a morar em Budapeste

e quando retorna ao Rio de Janeiro o seu filho não o reconhece. Eles se encontram

casualmente em uma loja de sucos, onde Joaquinzinho estava acompanhado de outro jovem.

Costa conta que “eram jovens musculosos, de cabeças raspadas e abundantes tatuagens, um

com répteis que lhe subiam pelos braços, o outro com uma espécie de hieróglifos espalhados

no peito nu. Mastigavam sanduíches de boca aberta” (BUARQUE, 2003, p. 155, grifos

nossos). Reparemos que Joaquinzinho já não é mais uma criança. Este fato marca, de maneira

imperfeita, o tempo em que Costa esteve no país estrangeiro. A musculosidade dos jovens

pode representar, mais especificamente no filho de Costa, a força em superar situações

difíceis, como a ausência dos pais (visto que Vanda também era distante, pois trabalhava

como repórter de um jornal em São Paulo e estava sempre viajando). Daí a “cabeça raspada”

ter o sentido de que a memória (cabeça) fora suprimida (raspada), não havendo o

reconhecimento do pai, e a tatuagem seria a única coisa duradoura e permanente. Sendo que,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 169

em Joaquinzinho, o desenho no corpo, segundo Costa, é um hieróglifo, o que sugere uma

pessoa enigmática, ligando-o ao pai que, por ser um ghost writer, tem o seu trabalho como

algo obscuro. A tatuagem é um sinal que pode revelar o possuidor da mesma, mas o hieróglifo

traduz uma dificuldade em decifrar quem é este sujeito; talvez, por isto, Costa demora a

reconhecê-lo. Ademais, o espelhamento também está presente neste desenho marcado no

corpo, porque a figura reflete a ambiguidade que são os dois personagens, Joaquinzinho e o

seu pai. Eles têm características misteriosas e ocultas: um em relação à fala, o outro à escrita.

Além disso, a imagem é exposta em um “peito nu”, podendo demonstrar que o jovem está

desprovido, por isso a nudez, de qualquer sentimentalismo, pois o “peito” é onde está

localizado o coração, podendo ser entendido, simbolicamente, como o lugar das emoções. O

outro jovem, companheiro de Joaquinzinho, usufrui de uma tatuagem de réptil no braço,

significando que é um sujeito que tem uma personalidade rasteira, assim como o animal,

também podendo ser interpretado como um mau caráter. Como a imagem está no braço,

demonstra que ele produz poderosa influência em Joaquinzinho, talvez seja por isto que

ocorre a perseguição à Costa. Já no fato dos jovens estarem “mastigando um sanduíche de

boca aberta”, percebemos que a ação de “mastigar” significa a mesma coisa que “triturar” ou

“destruir”; o “sanduíche” é feito com duas fatias de pães e como Costa e Joaquinzinho são

personagens espelhados, podemos assimilá-los aos pães, cada um seria uma banda; na

mastigação de “boca aberta”, julgamos a “boca” tendo sentido de “início” e como ela está

“aberta”, pensamos que a abertura pode ser entendida como “receptivo a uma conversa” ou de

um “diálogo entre os dois”. Portanto, Joaquinzinho estaria destruindo qualquer princípio de

diálogo entre ele e o pai, ao comer o pão.

Como nem o garoto e nem Costa se identificam, os dois jovens resolvem perseguir o

ghost writer ao sair da loja e Joaquinzinho

veio andando com um cigarro na boca e me fez um sinal com os dedos, pedindo

fogo. Apalpei o bolso onde costumava levar cigarros, estava vazio, mas ele

continuava a avançar, praticamente se colou em mim. Era um palmo mais alto que

eu, meus olhos batiam no seu peito, e por instantes imaginei que poderia decifrar os

hieróglifos ali tatuados. Depois olhei os olhos com que me fitava, e eram os olhos

femininos, muito negros, eu conhecia aqueles olhos, Joaquinzinho. Sim, era meu

filho, e por pouco não pronunciei seu nome; se lhe sorrisse e abrisse os braços, se

lhe desse um abraço paternal, talvez ele não entendesse. (BUARQUE, 2003, p. 156-

157, grifos nossos).

Apenas neste momento é que Costa reconhece o filho. Esta identificação é feita por

meio do “olhar” de Joaquinzinho. O “olho”, aqui, representa o órgão de esclarecimento,

porém, segundo o protagonista, a revelação é apresentada somente para ele. Por outro lado,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 170

Costa põe em dúvida o fato de Joaquinzinho não reconhecê-lo, “talvez ele soubesse desde o

início que eu era o seu pai, e por isso me olhava daquele jeito” (BUARQUE, 2003, p. 157).

Por fim, eles acabam se separando e não conseguem mais se avistarem.

Conforme estamos defendendo, a família de Costa, no Brasil, é o “espelhamento

imperfeito” da família na Hungria. Assim sendo, Joaquinzinho equivale a Pisti e Vanda à

Kriska. Então, iremos, agora, verificar como a mãe e o seu filho budapestense estão

relacionados com Costa e seus respectivos espelhos brasileiros.

O narrador compara Pisti a Joaquinzinho, dizendo que “Pisti regulava com meu filho,

apesar de miúdo, e puxara a mãe no rosto largo com as maçãs saltadas, nos lábios finos, nos

cabelos escorridos porém negros, no tom imperativo” (BUARQUE, 2003, p. 65-66, grifos

nossos). O fato de ele “regular”, ou seja, harmonizar com Joaquinzinho, comprova a reflexão

que há entre eles, pois significa que são comparáveis, tendo características aproximadas, mas

não necessariamente semelhantes, o que indica possíveis diferenças. O tamanho reduzido de

Pisti dá a entender que é atento aos detalhes; as companhias de um “rosto largo”, dos “lábios

finos” e dos “cabelos escorridos” mostram que, além de ser amplamente (largura) ousado, tem

uma linguagem afiada e sem volteios, não é à toa que, constantemente, ofende Costa. A

negritude dos cabelos talvez denote que é um indivíduo complicado, até porque está associado

ao “tom imperativo”, demonstrando o caráter dominador. Outro vínculo que chama a atenção

é a paronimia das palavras “Pisti” e “Peste”. Se relacionarmos estes dois nomes e pensarmos

em “peste” como um signo brasileiro regionalizado, então, Pisti pode ser uma pessoa geradora

de problemas.

Diferentemente da amizade com seu filho, Costa tem uma convivência com Pisti mais

perturbadora. Constantemente, este quer rebaixar aquele, talvez com o intuito de mostrar a

passividade de Costa perante todas as circunstâncias. Por exemplo, quando Kriska ia preparar

a refeição, o garoto convidava o protagonista para jogar bola e “escalava-me como goleiro,

batia uma saraivada de pênaltis e apreciava que eu me atirasse no terreno pedregoso e

encharcado” (BUARQUE, 2003, p. 66). Outra atitude que demonstrava todo o desprezo que

Pisti sentia por Costa é a do riso. O garoto está incessantemente zombando da conduta do

outro. Quando Costa iniciou as aulas na casa de Kriska,

dia sim, dia não, o filho dela rondava por ali, mexia nas coisas, ria da minha cara,

não sossegava enquanto Kriska não o despachasse para a cama. Divertia-se, Pisti, ao

ver um homem grande olhando figuras em álbuns coloridos, um homem gago

aprendendo a falar guarda-chuva, gaiola, orelha, bicicleta (BUARQUE, 2003, p. 63,

grifos nossos).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 171

Pisti costumava ficar próximo de Costa, não com o objetivo de admirá-lo, mas para

desprezá-lo, diferentemente de Joaquinzinho que tentava imitar o pai. A distração do garoto

budapestense era menosprezar o ghost writer. Outros meios em que exprimia este desdém

eram com palavras grosseiras, com o intuito de mostra a improficuidade de Costa. Este chega

a Budapeste e fica hospedado na casa de Kriska, que o arruma um emprego. Para praticar o

seu domínio do magiar, ele passa a corrigir os exercícios de escola de Pisti. Entretanto,

quando Costa fala a palavra “középiskola”, o menino o recrimina, denominando-o de “idiota”

por pronunciar erroneamente. O signo “idiota” remete a alguém sem valor, revelando a

inutilidade de Costa para o filho de Kriska. Desse modo, o garoto se torna o “espelhamento

imperfeito” de Joaquinzinho, pois este é o filho de Costa, no Brasil, e aquele é uma espécie de

afilhado, em Budapeste. A diferença entre eles está, justamente, no trato em que é dado ao

protagonista, que é o intermediário.

O outro espelhamento, que destacamos, é entre Vanda e Kriska. O nome completo

desta é Fülemüle Krisztina. A palavra “fülemüle” é a mesma dada a uma ave migratória,

sendo que, no caso de Kriska, não havia mudanças de países e nem linguísticas; ela é uma

pessoa purista, como são percebidas pelas advertências comunicadas à Costa, quando o

ensinava a língua húngara: “para ajustar o ouvido ao novo idioma, era preciso renegar todos

os outros” (BUARQUE, 2003, p. 64) e “me recomendou evitar outros idiomas durante o

período letivo” (BUARQUE, 2003, p. 71). Após conhecer o ghost writer, Kriska passa por

transformações que eram acompanhadas de acordo com o progresso ou regresso do

aperfeiçoamento linguístico dele em Budapeste. O uso de determinado tipo ou privação da

roupa, por ela, é um dos meios que revela o seu relacionamento com o aprendizado de Costa.

A natureza do novo homem moderno, desnudo, talvez se mostre tão vaga e

misteriosa quanto a do velho homem, o homem vestido, talvez ainda mais vaga, pois

não haverá mais ilusões quanto a uma verdadeira identidade sob as máscaras.

Assim, juntamente com a comunidade e a sociedade, a própria individualidade pode

estar desmanchando no ar moderno (BERMAN, 2007, p. 136, grifos nossos).

A identidade de Kriska está interligada a de Kósta, quando este se encontra em

Budapeste. Ela age de acordo com o desenvolvimento linguístico dele e, quanto mais avanço,

menos roupa é usada por ela. Como eles estão intrinsecamente unidos, não há uma

individualidade a ser observada, mas ações comuns aos dois. Por exemplo, nos momentos em

que ele ascendia na língua magiar, Kriska se sentia mais a vontade para usar roupas curtas e

se despir, por outro lado, quando Costa não lembrava ou errava o idioma local, ela ficava mais

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 172

reservada. Portanto, o domínio da língua húngara significava a conquista de Kriska. O

narrador diz que nas aulas iniciais do idioma

me fazia passar sede, porque eu falava, água, água, água, água, sem acertar a

prosódia. Os pães de abóbora, um dia trouxe à sala uma fornada deles, passou-os

fumegantes sob o meu nariz e jogou tudo fora, porque eu não soube denominá-los.

Mas antes de fixar e de pronunciar direito as palavras de um idioma, é claro que a

gente já começa a distingui-las, capta seu sentido (...) e um dia descobri que Kriska

gostava de ser beijada no cangote. Aí ela tirou pela cabeça o vestido tipo maria-

mijona, não tinha nada por baixo, e fiquei desnorteado (BUARQUE, 2003, p. 45-

46, grifos nossos).

A façanha de já conseguir apreender o significado de algumas palavras, forneceu,

também, a capacidade de mostrar o gosto de Kriska em receber beijos. Consequentemente, a

roupa comprida deixou de pertencê-la, isto é, à medida que Costa desvendava a língua

estrangeira, Kriska é revelada, como é percebido no ato de desnudamento desta. Em outra

situação, em que os dois estão juntos, Costa receia falar algo que não seja a língua húngara,

visto que, provavelmente, esta conduta implicaria em uma mudança de atitude de Kriska. Ele

diz que “num movimento único tirou o vestido pela cabeça (...). Tive medo de, num arroubo,

puxá-la contra o peito e falar as coisas que eu só sabia falar na minha língua, enchendo seus

ouvidos de palavras indecorosas, quiçá africanas” (BUARQUE, 2003, p. 68). Notemos que as

palavras pertencentes à língua estrangeira seria uma obscenidade, agredindo moralmente

Kriska, que, possivelmente, recomporia. Ela costumava exibir-se a Costa que, para este, era

entendido e comparado com as imagens utilizadas nas aulas para apreender o idioma, pois ela

teria que ser observada e lida. O protagonista relata que “desconfio que o tempo inteiro estava

se mostrando, como nos álbuns me mostrava estrelas e cavalos, mas olhando Kriska em

movimento eu aprendia mais” (BUARQUE, 2003, p. 64). Costa a equipara a ilustrações.

Logo, é visível a conexão entre Kriska e o aprendizado húngaro. Permanecer ao lado dela

traduz preservar o vernáculo budapestino. “Um mês em Budapeste, na verdade, significava

um mês com Kriska, porque sem ela eu evitava me aventurar na cidade; receava perder, no

vozerio da cidade, o fio do idioma que vislumbrava pela sua voz” (BUARQUE, 2003, p. 64-

65, grifos nossos). Privar-se de Kriska denota a perda do idioma.

Depois de passar um bom tempo no Brasil, Costa decide retornar a Budapeste. Ao

chegar neste país, que enfrentava um forte inverno, ele procura por Kriska, mas ao interfonar

e não ser atendido, acaba desmaiando em frente a casa dela. Ao acordar,

despertei de pijama num divã, debaixo de cobertores, a cabeça enfaixada, olhei para

Kriska e tive um pouco de medo de seus lábios delgados. Desatei a falar da minha

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 173

penúria, da minha condição de sem-teto em Budapeste, me disse perseguido político

em meu país e repetidas vezes a ouvi suspirar. Mas era por causa do meu húngaro,

tão precocemente deteriorado, que ela se condoia. E me fez calar, magoada com

razão, porque o idioma assim desaprendido, para ela, devia ser como a branca pele

dela que eu teria esquecido tão depressa (BUARQUE, 2003, p. 122-123, grifos

nossos).

Não obstante Costa fantasiar algumas misérias, ela fica desgostosa pela fragilidade que

ele apresentava no domínio do húngaro. Reparemos que Kriska estava desgostosa porque o

esquecimento do idioma significava, consequentemente, o esquecimento dela mesma. Então,

mais uma vez, percebemos a relação direta entre ela e o idioma. Após este acontecimento,

Costa vive na despensa da casa. A palavra “despensa” tem uma ligação paronímica com

“dispensa”. Daí, existe a possibilidade de pensarmos que, devido ao descuido com a língua

húngara e, por conseguinte, com Kriska, Costa se torna uma pessoa dispensável. Ela abdicava

de falar com ele e, como a língua está relacionada à roupa da própria personagem, de

apresentar-se de maneira descomposta. Assim, “falar, quase não me falava, (...) da mesma

maneira que nem o cachecol despia na minha frente. (...) Daí que meu pobre húngaro (...) só

podia caducar” (BUARQUE, 2003, p. 123). Kriska, notando que ele estava prestes a perder

tudo que havia aprendido, resolve arranjá-lo um emprego. Com isto, Costa reaprende o

idioma magiar e a reconquista. Neste caso, ela, que andava recatada, agora “usava uma saia

bem curta (...) e tornara a me querer bem.” (BUARQUE, 2003, p. 127), significando que não

estava mais decepcionada.

Entendemos, a partir de todas as ações realizadas por Kriska, que ela crescia

juntamente com ele. Diferentemente de Vanda, que desejava chegar à fama independente do

seu marido, enquanto que Kriska acompanhava Costa no seu desenvolvimento e regressão.

Elas se tornam um “espelhamento imperfeito”, visto que uma é a mulher de Costa no Brasil e

a outra em Budapeste; são comparadas por ele em circunstâncias diferentes, por isso o

espelhamento, e é imperfeita por não terem objetivos iguais quando se trata do ghost writer,

ou seja, uma é oposta a outra em relação à Costa, que é o ponto de conexão entre as duas. Ele

fala que “deitei-me com Kriska, e para melhor abraçá-la me lembrei de Vanda” (BUARQUE,

2003, p. 68), como se fossem uma só. Quando estava no Rio de Janeiro, Costa conta que ao

lembrar que, antes de conhecer seu [de Kriska] corpo, chegara a suspeitar de

qualquer coisa errada nele, tão diferentes seus movimentos dos de Vanda. A não ser

quando andava de patins (...). Às vezes, (...) eu lhe sugeria que os calçasse; era uma

maneira de melhor (...) me recordar da Vanda (BUARQUE, 2003, p. 94).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 174

Portanto, nos dois momentos, Costa tenta assimilar uma mulher com a outra, fazendo

com que as duas fossem o espelho da outra.

Os espelhamentos não se encerram apenas entre os personagens. Existem, também,

entre os escritos de Costa e em meio ao próprio romance Budapeste. Todos os reflexos

possuem como intermediário o ghost writer, pois ele é a relação direta que há entre os

personagens. Tratando-se da primeira ligação (José Costa - Zsoze Kósta), vimos que “o

sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando

fragmentado; composto não de uma única identidade, mas de várias identidades, algumas

vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p. 12). Portanto, na obra estão

presentes questões de identidades referentes à nacionalidade e à composição escrita adotada

por Costa. Na simples mudança de nome há significados que abrangem toda a história do

personagem. Sobre a segunda comparação, colocaremos como Joaquinzinho – José Costa –

Pisti. Aqui, os dois garotos se relacionavam com o escritor de maneiras distintas; o primeiro,

por ser o filho, tenta refletir o próprio pai através de imitações imperfeitas da língua húngara e

do silêncio público, que se correspondia com os escritos anônimos de Costa, nunca sendo

pronunciado em público a não ser no próprio ocultamento; do outro lado existe Pisti, que não

era filho de Costa, porém tratado como tal, mas aquele repugnava este. Ele não tentava imitar

o ghost writer, mas humilhá-lo com deboches. Enquanto Joaquinzinho queria aproximar-se de

Costa, Pisti desejava afastá-lo. Na terceira descrição realizada, Vanda – José Costa – Kriska,

há em comum o fato de ser mulheres que Costa se relaciona, uma no Brasil e a outra em

Budapeste; a diferença entre elas é que o crescimento profissional e relacional de Vanda não

estava em simetria com o de Costa, ao passo que o de Kriska era progressivo com o dele.

Referências

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.

Tradução de Carlos Felipe Moisés; Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras,

2007.

BUARQUE, Chico Budapeste. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,

costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 23. ed. Tradução de Vera da Costa e Silva

et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Tradução de Tomaz Tadeu

da Silva; Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 175

LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.

MACHADO, Irene. Escola de Semiótica: a experiência de Tártu-Moscou para o estudo da

cultura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.

9. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:

HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos

Culturais. 9. ed. Organização de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 7-73.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 176

CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES

E ENSAIOS [Voltar para Sumário]

Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE)

“nenhuma música lhe era humanamente indiferente”

É comum no âmbito da crítica e da teoria literárias isolar um aspecto da obra de

determinado autor e analisá-lo de forma pontual a fim de melhor esmiuçar o tal aspecto desde

um ponto de vista relacional, seja com outra obra do mesmo autor ou com um outro conjunto

de obras que possam relacionar-se com a primeira, alvo maior da análise. É certo que muitas

vezes essa prática privilegia um método que acaba por negligenciar outras questões, também

importantes, do projeto literário de um escritor. Por outro lado, essa metodologia oferece

aportes mais densos e melhor embasados em teorias específicas. Há, entretanto, alguns temas

presentes em obras de determinados autores que são constitutivos de sua produção como um

todo, o que implica que tocar nesses assuntos leva a um comentário geral do projeto do autor.

O tema desse ensaio, acredito, é um desses motivos através dos quais se pode pensar todo um

conjunto de obras de um só autor através de um mote: trata-se das relações entre música e

literatura no projeto literário de Alejo Carpentier. Não se pretende, aqui, comentar a

tecnicidade da presença da música nos livros de Carpentier, haja vista a falta de ferramentas

da teoria musical por parte da autora deste ensaio. Pretende-se, isso sim, apontar alguns

momentos da literatura carpenteriana em que falar do texto é também falar de música. Nossa

intenção é dar destaque a algumas relações propostas pelo autor cubano entre os dois fazeres

artísticos, seja em forma de texto, em sua tessitura propriamente dita, seja como estrutura que

subjaz ou complementa o texto. Estarão presentes, neste ensaio, referências não apenas a

obras da ficção carpenteriana, mas também a textos teóricos e ensaísticos do autor.

Como é sabido, Alejo Carpentier é um autor cubano nascido nos primeiros alvores do

século XX. Filho de um arquiteto francês e uma professora russa, passou muitos anos de sua

vida transitando entre a América e a Europa, fatos que o lavaram ao plurilinguísmo, a uma

educação que não se restringia aos moldes europeus –apesar de baseada neles– e a uma

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 177

relação pouco trivial com várias culturas. No cenário literário, Carpentier é considerado um

dos precursores da novelística atual e um dos principais exponentes do romance hispano-

americano do século XX. O autor somou seus esforços aos daqueles que contribuíram para a

discussão em torno da ideia de América. Suas obras dialogam com ressonâncias históricas ou

literárias que de alguma forma tangenciam a temática ou fazem dela seu assunto principal. O

continente americano figura em seus textos como uma realidade maravilhosa, dotada de

privilégios estéticos extraordinários se comparados com os fornecidos pela Europa. Carpentier

tratou de assumir a experiência latino-americana em sua totalidade, “o mito passou a ser o

próprio real, compreendido na simultaneidade de suas perspectivas prováveis” (JOSEF, 1993,

p. 101); o autor procurou criar uma unidade entre os temas americanos e a cultura universal,

integrando as ciências e as artes no romance. A busca realizada é não apenas da própria

identidade, mas a de toda a Hispanoamérica.

Carpentier acreditava e propunha que todo escritor deveria conhecer pelo menos uma

arte paralela àquela que se dedica, pois isso enriqueceria seu mundo espiritual e sua produção

literária (DE VAN PRAAG, p. 225). A “arte paralela” escolhida pelo autor foi a música. Essa

escolha dificilmente pode ser considerada arbitrária: seu pai, além de arquiteto, fora músico

(violoncelista). Sua mãe também deixara uma veia musical como herança. Desde criança, o

garoto Alejo foi posto em contato com a primeira arte e, durante muito tempo, quis dedicar-se

a ela. Aos sete anos de idade já tocava ao piano prelúdios de Chopin. Antes de escolher a

carreira de escritor, sua ambição era tornar-se compositor. Além de dominar alguns

instrumentos, Carpentier também era especialista em teoria musical e isso se expressa em

vários – senão todos – de seus romances. Alguns títulos, inclusive, remetem diretamente a

esse viés tão caro ao autor: Concierto Barroco (1974), El arpa y la sombra (1979), La

consagración de la primavera (1978), La música en Cuba (1946) e Ése músico que llevo

dentro (2007) são alguns exemplos. Tanto na vida quanto na obra do autor cubano a música

ocupou um lugar privilegiado: Carpentier foi também crítico musical, organizador de

concertos musicais em Havana e testemunha das vanguardas artísticas de sua época durante

seu período de estadia na Europa (de cujo cenário intelectual nunca se desvinculou

totalmente). Carpentier advogava por uma união entre música e literatura que, por sua

afinidade, ofereceria ao escritor as condições suficientes para o desenvolvimento de sua

concepção vital (RUIZ BAÑOS, 1986, p. 65).

De acordo com Carlos Paz Barahona (2005, p. 73), “la música en la obra de Alejo

Carpentier se filtra por entre los espacios de la palabra, adquiriendo funciones complejas

dentro del texto”, e por isso mesmo é difícil precisar em qual de seus romances Carpentier dá

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 178

mais espaço aos temas musicais. Em alguns deles a música aparece como estrutura subjacente

ao enredo; em outros, ela compõe parte expressiva da temática desenvolvida. O que é certo é

que em todos seus romances é possível estabelecer alguma relação mais ou menos aparente

com o tema. Em Os passos perdidos (Los pasos perdidos, no original, publicado em 1953),

um dos romances mais expressivos e bem cotados do autor, o personagem principal é um

músico que trabalha numa grande cidade produzindo músicas comerciais. Frustrado com sua

rotina, decepcionado com sua vida pessoal e profissional, aceita um trabalho extra oferecido

por um antigo conhecido. Sua tarefa era viajar para a selva venezuelana, mais especificamente

nas altas extensões do rio Orinoco, e encontrar alguns instrumentos indígenas de origem

primitiva para compor um museu organológico da universidade em que trabalhava o colega

em questão. À medida que penetra e se integra aos labirintos da selva, a viagem se converte

em uma profunda reflexão sobre as etapas históricas mais significativas da América e sobre a

origem da música.

O personagem principal de Os passos perdidos, nos anos iniciais de sua formação de

musicólogo, criara a “teoria do mimetismo mágico-rítmico”, a qual supunha que o nascimento

da expressão rítmica primitiva se devia ao afã de arremedar o passo dos animais ou o canto

dos pássaros. É por causa dessa teoria que o convite é feito ao personagem e se empreende a

viagem. O contato com uma realidade bastante diferente da qual já se havia habituado, os

silêncios da floresta e os ruídos que se desdobravam destes e o posterior encontro dos

instrumentos procurados fizeram com que a teoria musical do personagem fosse diversas

vezes reformulada, até que sua versão definitiva se esboça a partir do que o personagem

chama de “grande revelação”: o nascimento da música lhe ocorrera através do som entoado

pela boca de um feiticeiro que afugenta os “mandatários da morte” do corpo de um homem

que morreu devido à picada de uma cobra. A cena é composta pelo corpo, as pessoas que só

observam e o feiticeiro. Este tange uma maraca e estabelece um diálogo com os tais

mandatários. Ocorre que nesse diálogo as vozes que se alternam não são apenas a do próprio

feiticeiro, mas também da entidade ali presente através da garganta do primeiro. “Entre

‘ambos’ hay diálogo, fricción, combate. De ese roce surgen trinos, portamentos,

contratempos. Las sílabas repetidas forman un ritmo. Las notas que aparecen entre dos trinos

forman una breve melodía. No es música aún, pero tampoco es ya palabra” (PEZZELLA,

2014, p. 206). Nas palavras do personagem:

Estou em morada de homens e devo respeitar seus Deuses... Mas então todos

começam a correr. Atrás de mim, sob uma massa de folhas penduradas nos ramos

que servem de teto, acabam de estender o corpo inchado e negro de um caçador

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 179

mordido por um crótalo. Frei Pedro diz que morreu há várias horas. No entanto, o

Feiticeiro começa a sacudir uma cabaça cheia de cascalho – único instrumento que

conhece essa gente – para tratar de afugentar os mandatários da Morte. Há um

silêncio ritual, preparador do ensalmo, que leva a expectativa dos que esperam por

seu apogeu. E na grande selva que se enche de espantos noturno, surge a Palavra.

Uma palavra que já é mais do que palavra. Uma palavra que imita a voz de quem

diz, e também a que se atribui ao espírito que possui o cadáver. Uma sai da garganta

do ensalmador; a outra, de seu ventre. Uma é grave e confusa como um subterrâneo

fervor de lava; a outra, de timbre médio, é colérica e destemperada. Alternam-se.

Respondem-se. Uma repreende quando a outra geme; a do ventre torna-se sarcasmo

quando a que surge da goela parece coagir. Há como que portamentos guturais,

prolongados em uivos; sílabas que de repente se repetem muito, chegando a criar um

ritmo; há trinados interrompidos de subido por quatro notas que são o embrião de

uma melodia. Mas vem em seguida o vibrar da língua entre os lábios, o ronco para

dentro, o arquejo em contratempo sobre a maraca. É algo situado muito além da

linguagem, e que, no entanto, está muito longe ainda do canto. Algo que ignora a

vocalização, mas já é algo mais que palavra. A ponto de se prolongar, parece

horrível, pavorosa, essa gritaria sobre o cadáver rodeado de cães mudos. Agora, o

Feiticeiro o encara, vocifera, golpeia com os calcanhares no chão, no mais

desgarrado de um furor imprecatório que já é a verdade profunda de toda tragédia –

intento primordial de luta contra as potências de aniquilamento que se atravessam

nos cálculos do homem. Trato de me manter fora disso, de guardar distâncias. E, no

entanto, não posso furtar-me à horrenda fascinação que essa cerimônia exerce sobre

mim... Ante a teimosia da Morte, que se nega a soltar sua presa, a Palavra, de

repente, abranda-se e desanima. Na boca do Feiticeiro, do órfico ensalmador,

estertora e cai, convulsivamente, o Treno – pois isto e não outra coisa é um treno -,

deixando-me deslumbrado pela revelação de que acabo de assistir ao Nascimento da

Música (CARPENTIER, 2009, p. 200)

A origem da música é um tema recorrente em Os passos perdidos e na obra de

Carpentier como um todo. Mas não se trata de qualquer música. Carpentier tenta abordar uma

música universal, uma que escapa ao olhar puramente ocidental ou europeu. O autor tentar

alcançar a Música primordial, comum a todos os homens. Existe uma constante tentativa de

universalização do particular, a constante mescla de culturas para alcançar a Cultura, a mescla

de músicas para chegar à Música. Essa proposta está em praticamente todas as suas obras,

mas talvez tenha especial desenvolvimento em La consagración de la primavera, a qual se

relaciona diretamente com um ballet de Stravinsky, A sagração da primavera. Nesse

romance, ritmos afro-cubanos contrapõem-se e mesclam-se com o eruditismo de Stravinsky,

corroborando para a teoria carpenteriana da universalidade da música. A ação começa ao final

da década de trinta do século passado, em um hospital de descanso dos feridos em brigadas

internacionais e culmina na Batalla de Playa Girón, fato histórico que comoveu Carpentier. O

próprio autor classifica La consagración de la primavera como seu romance mais longo e

ambicioso, por seu caráter político-revolucionário, que traz um novo olhar sobre a Revolução

Cubana.

Outro romance de Carpentier que traz a música como parte essencial é El acoso. Nesse

caso a música se manifesta não apenas como tema, mas como estrutura subjacente ao enredo.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 180

Trata-se de “um estudo psicológico dos efeitos do medo, causado pela perseguição, revolta e

injustiça. Durante os 46 minutos que dura a execução da Heróica de Beethoven, as

personagens culminam seu fatum” (JOSEF, 1986, p. 153, grifos da autora). Toda a estória se

desenrola num teatro enquanto é reproduzida a terceira sinfonia do famoso compositor. A

estória, assim como a música em questão, desenvolve-se em vários temas: um introdutório,

que se desenrola no ritmo rápido de um allegro, o qual, minutos depois, será reduzido ao

ritmo lento do adagio e crescerá, numa última parte, num andante animado. O uso que

Carpentier faz da música e a relação estrita que impõe confere ao romance uma nova

dimensão.

Em Concierto barroco também se apresenta um novo encontro entre a literatura

carpenteriana e a música. Dessa vez o relevo é dado à ópera e a relação que se estabelece, em

primeira instância, é com o compositor Vivaldi, que teria escrito a primeira ópera já conhecida

sobre a América. O livro problematiza essa questão, dado que a partitura completa da obra

vivaldiana não foi encontrada, como nos diz o romance de Carpentier. Em Concierto barroco

se vê “la convergencia de músicas diferentes en congregación de elementos, donde a la

música tradicional europea se une la diversidad instrumental americana, un nuevo tratamiento

del ritmo y la facilidad creadora de la improvisación” (BARAHONA, 2005, p. 78).

Como já dissemos, o conjunto dos romances carpenterianos pode ser relacionado à

música. José Antonio Sánchez Zamorano reforça essa opinião, quando diz que

La crítica, en repetidas ocasiones, ha puesto de manifiesto el hecho de que

Alejo Carpentier traslade a su narrativa ordenaciones y esquemas relacionados, en

principio, con el ámbito de la composición musical. Ya en su primer novela, Ecué-

Yamba-O (1933), se rastrean algunas transposiciones: la materia narrativa aparece

distribuida siguiendo ciertas simetrías, tendentes a cerrar la estructura – lo que

constituye uno de los principios básicos del arte musical -, y se usa la técnica de la

recurrencia temática – en música, variaciones sobre un tema-.

Sin entrar en repetidas discusiones sobre sus nombres, se puede llegar a

convenir que casi la totalidad de las obras posteriores de Carpentier se adapta a

estructuras de tipo musical. Así, se ha concebido El reino de este mundo (1949)

como una suite de ballet. Los pasos perdidos (1953) se ha puesto en relación con una

cantata. El acoso (1956) puede considerarse como sonata – o como sinfonía -. El

siglo de las luces (1962) se aproximaría al poema sinfónico. El recurso del método

(1974) y Concierto barroco (1974) se ajustarían, respectivamente, a las cualidades de

la ópera bufa y del “concerto grosso” (ZAMORANO, 2014, p. 327)

As conexões de Carpentier com a música não se expressam apenas, porém, em seus

romances, mas também em textos teóricos sobre o tema. O autor foi o primeiro a escrever, por

exemplo, uma história da música em Cuba, seu país natal, onde foi organizador de eventos

musicais. Em La música en Cuba traz um apanhado da história musical da ilha e suas inter-

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 181

relações com os acontecimentos culturais e sociais do país. Trata-se de um volume profundo,

de análise consistente que ainda hoje não foi superado. Escreveu também vários ensaios sobre

a música na América Latina, embora não se limitasse ao cenário americano.

Ése músico que llevo dentro, traduzido para o português do Brasil como O músico em

mim (2000), traz uma série de ensaios do autor, subdivididos em: a) Sobre compositores –

nesse espaço o autor traz um panorama de opiniões e contrapontos entre grandes nomes da

música do seu e de outros tempos, são comentados nomes canônicos, como Mozart e

Bethoven, Chopin e Wagner. Há um grande espaço para Stravinsky e Villa-Lobos, para

Mahler, Schumann, Puccini, Rossini, Debussy, entre vários outros; b) Intérpretes – nesse

apartado o autor se estende menos, traz alguns nomes, sempre relacionando-os aos

compositores a que davam vida; c) Musicologia – nessa parte estão reunidos vários textos de

opinião, resenhas, críticas musicais e ensaios sobre a música em geral (não só a erudita) os

quais traziam uma perspectiva teórica acurada. Aqui há espaço para a ópera, para sinfonias e

para o jazz; d) A música no teatro – a quarta parte se dedica, como o título tão claramente

indica, à música no teatro, com especial ênfase à ópera; e) Reflexões sobre a música – no

bloco de número cinco se condensam textos menos teóricos sobre a música, nos quais se

expressam problemas frequentes quanto ao tratamento do tema, quanto à profissionalização

do músico, sua relação com a juventude e uma série de questões variadas em torno da

atmosfera musical; f) Ensaios – à última parte do livro cabem apenas dois ensaios, um sobre o

folclorismo musical e outro intitulado “Música e emoção”.

Como se pode constatar, Carpentier deu espaço às mais variadas expressões da música

em suas obras e em sua trajetória artística: em seus romances, o conhecimento musical lhe

servia como subsídio para a estrutura da forma, como mote temático e como plano de fundo;

em seus ensaios, discursou sobre a música a partir de diversos matizes, gerando variadas

nuances, desde a mais teórica à mais reflexiva e desprendida de questões formais. A atuação

de Alejo Carpentier frente à Música reforça a frase de Jorge Luis Borges, a qual dizia que

“todas las artes propenden a la música, el arte en el que la forma es el fondo”1. Reforça

também a afirmação de Eduardo Rincón sobre Carpentier, em prólogo a O músico em mim:

“poderíamos dizer que nenhuma música lhe era humanamente indiferente”2. À guisa de

conclusão, repetimos as palavras de Sagrario Ruiz Baños (1986, p. 66) ao falar de Carpentier:

um homem que conheceu tão a fundo o mundo da música não podia deixar de ser sensível às

possibilidades expressivas que essa arte lhe oferecia e, assim, um grande conhecedor dos

1 Em “Notas sobre Walt Whitman”. 2 Em prólogo à edição brasileira de O músico em mim, p. 14.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 182

fenômenos musicais, elaborou uma construção literária em que ambas artes, Música e

Literatura inter-relacionadas, oferecem um monumento perdurável de representatividade

humana. Carpentier parece personificar à perfeição esse escritor que realiza a simbiose entre o

musical e o literário de forma coerente.

Referências

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una mirada desde la música. Disponível em <http://www.vinv.ucr.ac.cr/latindex/rfl-31-1/rfl-

31-1-06.pdf > Acesso em 20.jun.2014.

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México: Siglo XXI editores, 1998.

CARPENTIER, Alejo. O músico em mim. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

CARPENTIER, Alejo. Os passos perdidos. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

CHORNIK, Katia. Ideas evolucionistas en “Los orígenes de la música y la música

primitiva”: un ensayo inédito de Alejo Carpentier. Disponível em

<http://www7.uc.cl/musica/cita/Resonancias/26/Chornik.pdf> Acesso em 20.jun.2014.

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Disponível em <https://oak.ucc.nau.edu/nf4/pdfs/CarpentierFinal.pdf> Acesso em

20.jun.2014.

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hispano-americano contemporâneo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

JOSEF, Bella. Romance hispano-americano. São Paulo: Ática, 1986.

LEAL, Bartolomé. Memorialistas y viajeros. Alejo Carpentier: “Ese músico que llevo

dentro”. Disponível em

<http://www.mauroyberra.cl/contenido/Bartolome/columnaramona/archivos/Alejo%20Carpen

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PEZZELLA, Daniel. Significación de la música en “Los pasos perdidos”, de Alejo

Carpentier. Disponível em <http://www.cienciared.com.ar/ra/usr/10/177/hln2.pdf> Acesso em

20.jun.2014.

PRAAG, Jacqueline Chantraine de van. El acoso de Alejo Carpentier estructura y

expresividad. Disponível em <http://cvc.cervantes.es/literatura/aih/pdf/03/aih_03_1_026.pdf>

Acesso em 20.jun.2014.

RUIZ BAÑOS, Sagrario. La música como expresión humanística en una novela de Alejo

Carpentier: estructura fugada de “La consagración de la primavera”. Anales de Filología

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Hispánica. Vol. 2. 1986. Disponível em <http://revistas.um.es/analesfh/article/view/58831>

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enero 2012 [introducción y notas de Carlos Villanueva]. - Madrid: Fundación Juan March,

2012. Disponível em

<http://www.march.es/Recursos_Web/Culturales/Documentos/Conciertos/CC762.pdf>

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ZAMORANO, José Antonio Sánchez. “El siglo de las luces” una sonata de Alejo Carpentier.

Disponível em <http://institucional.us.es/revistas/philologia/5/art_24.pdf> Acesso em

20.jun.2014.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 184

PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A

FORMAÇÃO DE LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA

LEITURA DELEITE [Voltar para Sumário]

Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife)

Introdução

Ensinar a ler e escrever não é uma questão simples, garantir que todas os estudantes

tenham acesso aos conhecimentos necessários para garantir um processo de alfabetização e

avancem nas suas aprendizagens não tem sido uma tarefa fácil, porém possível.

Saber ler e escrever, fazer uso da leitura e da escrita de uma forma funcional nas

diferentes situações do cotidiano, na atualidade, são necessidades precípuas tanto para o

exercício da cidadania, no plano individual, quanto para a medida do nível de

desenvolvimento de uma nação, no nível sociocultural e político. Logo é dever do Estado

proporcionar, por meio da educação, o acesso de todos os cidadãos ao direito de aprender a ler

e escrever (MORTATTI, 2004, p. 15).

Nesse sentido a escola pode ser vista como um espaço importante para apresentar aos

alunos o universo do mundo da leitura e contribuir na formação de leitores autônomos

capazes de ler para: aprender a fazer algo, aprender assuntos do seu interesse, informar-se

sobre algum tema e ter prazer na leitura.

É possível perceber no cotidiano da escola que muitos avanços ocorreram em relação

ao trabalho com leitura na sala de aula, especialmente quanto à qualidade dos textos

disponibilizados para as crianças através dos Programas Federais (PNBE/ PNLD Obras

Complementares) Programas que promove o acesso à cultura e o incentivo à leitura por meio

da distribuição de acervos de obras literatura, com o proposito de atrair os estudantes para o

universo da literatura de forma lúdica. (BRASIL, 2012, p. 38)

No entanto, tem-se constatado que persiste um grande número de alunos com

dificuldade de entender o que leem, mesmo quando já estão em etapas mais avançadas de

escolarização. Os baixos resultados apresentados em compreensão leitora, nas provas

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 185

aplicadas em larga escala como Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB),

Sistema de Avaliação da Educação Básica de Pernambuco (SAEPE), Provinha Brasil, entre

outras, apontam a necessidade de um maior investimento no ensino desse objeto de

conhecimento.

O trabalho com leitura na sala de aula tem sido uma das temáticas abordadas no

PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, desenvolvido por meio de

parceria entre o MEC, universidades federais e secretarias de educação. O material elaborado

para subsidiar a formação dos professores tem entre outros objetivos levar os mesmos a

conhecerem os recursos didáticos distribuídos pelo MEC entre os quais (livros do PNBE e as

Obras Complementares aprovados no PNLD) e planejar situações didáticas em que tais livros

sejam usados.

A leitura-deleite, vem sendo discutida quanto à sua importância e possibilidade

pedagógica nas formações do PNAIC e tem passado a fazer parte da rotina da escola. E é

visando discutir acerca do desenvolvimento dessa atividade como uma estratégia na formação

de leitores no Ensino Fundamental que apresentaremos, neste artigo, um relato de experiência

realizado com sessenta e cinco alunos do primeiro ao quinto ano da escola Municipal Córrego

do Euclides, localizada no Córrego do Euclides, bairro do Recife – PE.

1. Um pouco mais de leitura

Alfabetizar para ser leitor, para se apropriar da escrita e da leitura de forma autônoma,

criativa, para experienciar a leitura e a escrita com seus múltiplos saberes é um grande

desafio. Os acervos disponibilizados através do PNBE, PNLD Obras Complementares e

Programa Manoel Bandeira de Leitores, têm oportunizado as crianças um convívio íntimo e

cotidiano com os livros, proporcionando um acesso privilegiado à cultura escrita,

apresentando-se, assim, como uma ferramenta poderosa no processo de letramento. Para

Soares (1998), o indivíduo letrado faz uso da escrita envolvendo-se em práticas sociais de

leitura e de escrita, respondendo adequadamente às demandas sociais.

Acreditamos que para formar indivíduos capazes de usar eficientemente a leitura é

necessário que a escola planeje o ensino da leitura e de estratégias adequadas a compreensão

textual, enquanto objeto de conhecimento, que possibilita a aquisição de novas aprendizagens.

Fazer uso de recursos, no cotidiano escolar, que contribua para fazer dos alunos bons

leitores é um grande desafio. Nesse sentido, defendemos que a escola seja um espaço onde a

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 186

leitura possa também ser deleite. Segundo o Aurélio “deleite” pode ser definido como “gozo

íntimo e suave – prazer intenso, pleno – delícia”. (AURÉLIO, 2001)

Acreditamos que ler por prazer é o que nos faz leitores de fato, ou seja, é o que nos

impulsiona a buscar mais e mais textos, é o que nos dar o direito de negar um texto, escolher

outro texto, enfim interagir com a leitura. Na escola, parece, muitas vezes, haver certa

desvinculação entre leitura e prazer.

Segundo Solé, (1998) diferentes pesquisas tem demonstrado que há pouca variação

nas atividades desenvolvidas no ensino da leitura nas salas de aula, que de maneira em geral,

giram em torno da leitura em voz alta pelos alunos, de um texto ou de fragmentos, enquanto

outros acompanham, de elaboração de perguntas relacionadas ao texto e ficha de trabalho com

aspectos de sintaxe morfológica, ortografia, vocabulário e eventualmente a compreensão da

leitura.

Na verdade, não defendemos que ler na escola seja sempre para deleite. No entanto, é

fundamental que possa ser, também, deleite, para que essa instituição passe a constituir-se, de

fato, como um espaço de formação de leitores. Assim, defendemos que o espaço escolar seja

palco para a de condução de projetos de leiturização em que o leitor seja encarado como um

agente ativo de construção de sentidos.

Para formar leitores, objetivo que vem sendo cada vez mais verbalizado no meio

educacional, será necessário desconstruir práticas onde o leitor não tem voz e o professor é o

único sujeito que conduz o processo, e reconstruir as concepções sobre texto e sobre leitura.

Em primeiro lugar, será preciso reintegrar as preocupações com o ensino das estratégias de

leitura e as preocupações com a formação do leitor.

Solé (1998) define as estratégias de leitura como procedimentos cognitivos e

metacognitivos complexos, já que implicam a capacidade de refletir e planejar nossa própria

atuação enquanto lemos. Nesse sentido planejar um ensino que garanta que os estudantes,

durante a realização da leitura de textos diversos consigam ativar os conhecimentos prévios,

realizar inferência, previsão/ levantar hipótese acerca do texto lido, pode contribui para a

formação de leitores autônomos.

Para isso, é preciso que a leitura seja uma prática constante nas atividades escolares, a

fim de que o aluno − leitor em formação − domine as habilidades de leitura acima referidas.

2. Relatando a experiência

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 187

Uma forma de tornar rotineiro o ato de ler na escola é a sugestão da “leitura deleite”:

sempre um livro é lido para os alunos, sempre há um cantinho disponível para que os alunos

mergulhem na leitura de livros diversificados. Pensando na formação de leitores que não só

sintam o desejo de ampliar os saberes e informações proporcionados pela leitura, mas que

também tenham prazer na leitura desenvolvemos durante o ano letivo de 2014 um projeto de

leitura com um grupo de 65 alunos de turmas do 1º ao 5º ano de uma Escola Pública da

Cidade do Recife. Durante esse período foram realizadas à leitura de diversos livros que

fazem parte do acervo da escola, construído com as obras do PNBE e PNLD Obras

Complementares, entre os quais destacaremos os livros abaixo.

Figura 1 - Capas dos livros lidos para os alunos durante os momentos de leitura deleite

No primeiro momento da atividade, antes da leitura, o livro era apresentado às

crianças buscando motivá-las a ouvir a história. No segundo momento a partir da leitura do

título buscávamos resgatar os conhecimentos e experiências prévias dos alunos sobre a

história, lançando questões que os levassem a refletir acerca do título. No terceiro momento a

leitura era realizada, em alguns dias pela professora em outros por algum aluno escolhido

previamente. Durante a leitura buscava-se desenvolver um entonação que prendesse à atenção

das crianças. Depois da leitura fazíamos a recapitulação oral da história, tentando fazer com

que as crianças compreendessem os principais acontecimentos, suas causas e consequências.

Considerações finais

As atividades realizadas no desenvolvimento do projeto e apresentadas neste texto

mostraram alguns aspectos importantes no que refere ao ensino inicial da leitura, levando em

consideração as discussões atuais acerca do tema.

Acreditamos que o ensino inicial da leitura deve garantir a interação significativa e

funcional da criança com a língua escrita. Isso implica que o texto escrito esteja presente de

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 188

forma relevante no cotidiano da sala de aula e que a criança seja envolvida em atividades

significativas de uso da leitura e da escrita no espaço escolar.

Defendemos que a estratégia da leitura deleite é um instrumento que pode contribuir

para formação de leitores, pois por meio dessa estratégia, as professoras podem estimular os

alunos a ler mais e a socializar suas leituras favorecendo assim, o contato com bons textos.

Ressaltamos, ainda, que a inserção da literatura em sala de aula não pode ser algo

ocasional, acidental e nem pode fazer parte de um preenchimento de tempo sem

intencionalidade. O professor precisa realizar atividades constantes, planejadas, em que os

estudantes tenham acesso ao texto literário e possam refletir coletivamente sobre tais textos.

Foi possível observar que os alunos, quando chamados a participar, de forma ativa,

mostram que têm capacidade de atuar em todo o processo de construção do conhecimento,

demonstrando que são criativos e, principalmente, que se percebem agentes no processo de

construção do conhecimento. Em todos os momentos foi possível perceber a interação das

crianças através do interesse em participar dos momentos de leitura.

Assim foi possível constatar o desenvolvimento dos alunos, o que demonstra que

embora algumas crianças apresentem dificuldades, como o caso de um aluno com deficiência

cognitiva, quando inseridos em atividades sistemáticas de ensino, com a intervenção adequada

dos professores, são capazes de avançar na aquisição dos conhecimentos.

Enfim a proposta de trabalho vivenciada a partir da exploração desses livros nos

mostra que muitas são as possibilidades, para que de forma prazerosa, sejam desenvolvidas

atividades significativas e desafiadoras que contribuam para construção de conhecimentos

acerca da leitura.

Acreditamos que um trabalho nesta perspectiva possa contribuir para a formação de

ouvintes ativos que se engajem na aventura de construir sentidos dos textos lidos pela

professora e futuramente tornem-se leitores ativos.

Referências

BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Formação do Professor

Alfabetizador – Caderno de Apresentação – Brasília – 2012.

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e Letramento. São Paulo: Unesp, 2004.

SOARES, Magda. Letramento um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,

1998.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 189

METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A

CIDADE DO RECIFE POR CARLOS PENA FILHO [Voltar para Sumário]

Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)

Este é o teu retrato feito

com tintas do teu verão

(Carlos Pena Filho)

O advento da cidade e a participação do poeta no centro desse debate proporcionaram o

registro de diferentes lugares de observação. Discorrendo sobre o tema, Nestor García

Canclini (1998) sugere um mapeamento desse olhar argumentando que o antropólogo chega à

cidade a pé, o sociólogo de carro, pela pista principal, e o comunicólogo de avião, cada um

deles construindo uma visão diferenciada e, por conseguinte, parcial do objeto observado.

Uma quarta e importante perspectiva seria tratada, ainda, por Canclini: aquela vivenciada pelo

historiador, cuja aquisição seria resultado não de uma entrada, mas de uma saída do ambiente

da cidade, partindo de seu centro antigo e seguindo em direção aos seus limites

contemporâneos. Cabe perguntar, portanto: quais poderiam ser as estratégias do poeta diante

dessa questão?

Na Modernidade, a situação do poeta urbano seria definida pelo sentido do

deslocamento: ao tomar conhecimento do seu não locus, o poeta da cidade se disporia na

condição de uma voz outra, a que o escritor mexicano Octavio Paz (1993) descreveria como

uma modulação indefinida, inconfundível, que se converte em diferença original. Já em

Charles Baudelaire, no final do século XIX, a expressão da tragédia do destino humano,

mesclada a uma visão mística do universo constituiria matéria para a poesia na cidade

ocidental moderna. Quase cem anos mais tarde, o poeta pernambucano Carlos Pena Filho

referenciaria, de forma laudatória, a empresa baudelaireana:

A CHARLES BAUDELAIRE

Carlos também

Embora sem

Flores nem aves

Vinho nem naves,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 190

Eu te remeto

Este soneto

Para saberes,

Se acaso o leres,

Que existe alguém

No mundo, cem

Anos após,

Que não vaiou

E nem magoou

Teu albatroz.

Em nossos dias, contudo, a experiência daquele flâneur que perambulava nas

metrópoles do início do século XX parece não ser mais possível. Para Micael Herschmann

(2000), é como se agora as cidades grandes tivessem se transformado “em um vídeo-clipe, ou

melhor, em uma montagem frenética de imagens descontínuas”, cabendo ao observador

atentar para o fato de que isso “não tem necessariamente um sinal negativo, ou implica uma

perda da experiência coletiva”. Ao contrário, poderá abrir espaço para um esforço de

compreensão da cidade além das “territorialidades exclusivas, bem definidas e/ou isoladas”,

em que o outro “já não é territorialmente distante ou alheio, mas parte constitutiva da cidade

que habitamos”.

Contemporâneo do Modernismo literário brasileiro, Carlos Pena Filho nasceu na cidade

do Recife em 17 de maio de 1929. Filho de pais portugueses realizou seus primeiros estudos

em terras lusitanas, complementando-os na cidade natal, onde também se diplomou advogado.

Publicou em 1952 O Tempo da Busca, seu primeiro livro de poesia, ao qual se seguiram

Memórias do Boi Serapião, A Vertigem Lúcida e Livro Geral, desaparecendo tragicamente

em 1960 na mesma cidade, vítima de um acidente de automóvel.

O ambiente urbano recifense encontrou no poeta um observador atento que tanto

descreveu com ironia e doçura a sua paisagem (Não é que somente em luas,/ o Recife farto

seja; é farto, também de igrejas), como realizou a crônica do cotidiano de sua gente mais

simples (Na cidade que amanhece/ vai a humilde tecelã/ para a fábrica onde tece/ o azul desta

manhã) ou a provocação às elites (...de brasileiros sabidos,/ portugueses sabidões/ que na vida

leram menos/ que o olho cego de Camões,/ mas que em patacas possuem/ muito mais que Ali

Babá/ e seus quarenta ladrões).

Para o sociólogo Gilberto Freyre (1999), em prefácio à edição póstuma de um dos livros

de Pena Filho, “de nenhum poeta do Brasil se pode dizer ter sido, mais do que ele, de sua

cidade, de sua província, de sua região, de sua tradição regional e, ao mesmo tempo, mais, a

seu modo, moderno”. Assim avaliado, o poeta Carlos Pena Filho foi, “tanto quanto Bandeira,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 191

quanto Cardozo, quanto Mauro Mota, quanto João Cabral, cantor por excelência do Recife:

cidade por ele mais amada do que por qualquer outro, poeta ou não-poeta”.

Em longo poema sobre o Recife, entretanto, Carlos Pena Filho revelaria textualmente

aqueles a quem identificaria como “os cantores da cidade”:

Hoje a cidade possui os seus cantores

que podem ser resumidos assim:

Manuel, João e Joaquim.

No Jardim Treze de Maio

Manuel vai ficar plantado

Para sempre e mais um dia

Sereno, bustificado,

Pois quem da terra se ausenta

Deve assim ser castigado...

Os versos que se sucedem, carregados de imagens recorrentes à poesia de Manuel

Bandeira, vão fluindo naturalmente, como um rio, em direção ao universo poético de João

Cabral de Melo Neto:

Água, lama, caranguejos,

Os peixes e as baronesas

E qualquer embarcação,

Está sempre e a todo instante

Lembrando o poeta João

Que leva o rio consigo

Como um cego leva um cão.

Mas vieram de longe as águas

Que aqui no Recife estão,

Já comeram areia e pedra

Lá bem perto do sertão

E é por isso, talvez,

Que escuras e tristes são.

Quase que num só fôlego, o poema de Carlos Pena Filho busca desenhar outro mapa da

cidade em cujos alicerces, fundados sobre a lama dos manguezais e cardozianamente

recobertos pela cor “púrpura de jambeiros” parecem querer sustentar, pedra a pedra e verso a

verso, o horizonte de “coqueiros roxos, azuis, verdes de mar” vislumbrado pelo poeta-

engenheiro Joaquim Cardozo em sua obra:

O poeta Joaquim que foi

Fazer uma estação de águas

Nos olhos do seu amor

E trouxe nos seus, acesos,

Os cajueiros em flor.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 192

Mas antes mesmo de prestar reverências a Bandeira, a Cabral e a Cardozo através de sua

poesia, Carlos Pena Filho já havia promovido, na abertura de seu Guia Prático da Cidade do

Recife, uma espécie de fundação física e poética da cidade:

No ponto onde o mar se extingue

E as areias se levantam

Cavaram seus alicerces

Na surda sombra da terra

E levantaram seus muros

Do frio sono das pedras.

Depois armaram seus flancos:

Trinta bandeiras azuis

Plantadas no litoral.

Hoje, serena, flutua,

Metade roubada ao mar,

Metade à imaginação,

Pois é do sonho dos homens

Que uma cidade se inventa.

O olhar do poeta possibilita aqui a visualização daquilo que Leandro Konder (1994)

definiria como a preocupação de descobrir uma resposta para a instituição da cidade a partir

de sua própria origem física, ressubstanciada no que ele chama de olhar poético e olhar

filosófico. O primeiro deles valeria como advertência para a recuperação, na cidade, de sua

própria humanidade. Humanidade esta que, no caso de Carlos Pena Filho, se desdobra

também numa re-geografia afetiva (Olinda é só para os olhos/ Não se apalpa, é só desejo./

Ninguém diz: é lá que eu moro./ Diz somente: é lá que eu vejo). Um olhar filosófico que não

coincidiria necessariamente, ainda em palavras de Leandro Konder, com um olhar poético,

mas que abarcaria aspectos mais abrangentes, para além daqueles que a síntese poética

pudesse situar. Nestes termos, num misto de sarcasmo e ternura, canta o poeta Carlos:

Na avenida Guararapes

O Recife vai marchando.

O bairro de Santo Antônio

Tanto se foi transformando

Que, agora, às cinco da tarde

Mais se assemelha a um festim,

Nas mesas do bar Savoy

O refrão tem sido assim:

São trinta copos de chopp

São trinta homens sentados

Trezentos desejos presos

Trinta mil sonhos frustrados.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 193

Ainda que versos como estes não engendrem automaticamente o sentido da cidadania, a

cidade passaria a ser, reiterando a afirmativa de Konder, o lugar onde melhor poderia ser

travada a luta pela efetivação desse exercício:

Mas não é só junto ao rio

Que o Recife está plantado,

Hoje a cidade se estende

Por sítios nunca pensados,

Dos subúrbios coloridos

Aos horizontes molhados.

Horizontes onde habitam

Homens de pouco falar

Noturnos como convém

À fúria grave do mar.

Amigo pessoal e estudioso da obra do poeta, ao referir-se ao Guia Prático da Cidade do

Recife, o escritor Edilberto Coutinho (1983) afirmou que Carlos Pena Filho foi “um poeta

político, interessado em cada aspecto da vida de sua cidade” e que essa obra é, “por vezes

uma representação exagerada, satírica e, portanto, crítica, da realidade; uma espécie de

autêntico ‘antiguia’, se pensarmos nos roteiros oficiais de atrações turísticas” posto que nela,

precisamente, o poeta Carlos “trata também do ‘povo marginal,/ escuro e anfíbio’ que habita

os mangues do Recife, (...) entre outros habitantes menos privilegiados de sua cidade”:

Recife, cruel cidade,

Águia sangrenta, leão.

Ingrata para os da terra,

boa para os que não.

amiga dos que a maltratam,

inimiga dos que não

Este é o teu retrato feito

com tintas do teu verão

e desmaiadas lembranças

do tempo em que também eras

noiva da revolução.

A aparentemente contraditória queixa do poeta, associando à cidade as figuras de “águia

sangrenta” e “leão”, da mesma forma que evoca nostalgicamente a imagem de uma “noiva da

revolução” talvez pudesse encontrar analogia no estereótipo do caráter rebelde de sua gente,

atribuído ao fato de vir o Recife colecionando, ao longo de sua história, uma trajetória de

insurgência civil frente às manobras das oligarquias que desde o advento das Capitanias

Hereditárias ocupam expressivo espaço no gerenciamento político da cidade e do Estado,

observável ainda em vários aspectos de suas manifestações culturais e perceptíveis inclusive

na literatura que produziu e produz. Talvez se pudesse estender esse esboço de compreensão

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 194

da cidade considerando as diversas convulsões sociais pelas quais passou, como a Guerra dos

Mascates, a Revolução Praieira ou a Revolução Pernambucana de 1817, chegando ao

desmonte político promovido pelas frentes populares ao conquistarem a prefeitura, no pleito

do ano 2.000, dissolvendo em votação direta a alternância no poder cristalizada pelos políticos

representantes das oligarquias rurais canavieiras em aliança com muitos de seus ex-opositores

históricos, feito que se manteve ao longo dessa primeira década do século XXI.

Quem sabe, pelo estudo da estrutura de suas festas de carnaval, referência poética para o

próprio Carlos Pena Filho. Também ele desenvolveu densa atividade como letrista de música

popular, como em A Mesma Rosa Amarela, poema composto para servir de letra a frevo-de-

bloco de Capiba, um dos mais importantes compositores pernambucanos do século XX,

parceiro de vários outros poetas e escritores. Re-formatada em ritmo de bossa-nova, gênero

emergente em todo o país na virada dos anos 50 para os 60, esta canção talvez constitua o

mais conhecido exemplo do Carlos Pena Filho letrista de música popular. Objeto de variados

registros fonográficos locais e nacionais a partir de 1960, ano de desaparecimento do poeta,

com destaque para aquele apresentado pela cantora e compositora Maysa, o sucesso de A

Mesma Rosa Amarela representaria ainda, juntamente com as outras parcerias musicais do

poeta com Capiba, um marco no diálogo entre literatura e música em Pernambuco, ampliando

o circuito de penetração da obra poética de Carlos Pena Filho:

Você tem quase tudo dela:

o mesmo perfume,

a mesma cor,

a mesma rosa amarela.

Só não tem o meu amor.

Mas, nestes dias de carnaval

para mim, você vai ser ela:

o mesmo perfume,

a mesma cor,

a mesma rosa amarela...

O carnaval do Recife preservaria, ao longo do século XX, muitos elementos

característicos de seus primórdios no século anterior, sobretudo no que diz respeito à

participação espontânea dos diversos segmentos sociais e à pluralidade das manifestações

culturais. Baseados na região portuária, local de fundação da cidade, e arregimentados por

corporações de trabalhadores em instituições conhecidas como clubes de rua, a grande

maioria existente até os dias atuais, várias entidades de classe desfilavam em cortejo pelas

vias públicas, promovendo entre si entusiasmada competição. Grupos de dançarinos

estrategicamente posicionados levavam ao fervo a multidão, fazendo o passo, ou seja,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 195

dançando o frevo ao som dos metais de bandas militares ou fanfarras arregimentadas para a

brincadeira.

Mais do que uma atividade alternativa de lazer em que se abria espaço para a livre

expressão e a crítica social, essa festa consistia, pelo seu tom dionisíaco, num contraponto ao

bem comportado entrudo, celebração carnavalesca introduzida no Brasil pela colonização

portuguesa e cultivada pelas elites da época, resguardadas em salões de festa e outras áreas

privadas. O clube carnavalesco dos “Vassourinhas”, por exemplo, fundado e conduzido

originalmente pelos trabalhadores da limpeza urbana, seria responsável pelo hino espontâneo

do carnaval da cidade, o Frevo dos Vassourinhas, bem como pela verdadeira catarse coletiva

que acomete os foliões já em seus primeiros acordes.

Talvez a problematização acerca de um caráter “rebelde” da cidade do Recife pudesse

ser orientada, ainda, a partir dos embates culturais e literários reivindicando a existência de

um surto modernista local e autônomo na década de 20 do século passado, chegando à

discussão, já posterior à presença física do poeta Carlos Pena Filho, de questões relacionadas

com uma cultura erudita brasileira baseada nas raízes nordestinas, onde os produtos artísticos

e literários traduziriam o cruzamento verificado entre o artesanato, a literatura de Cordel, as

manifestações populares e a cultura hegemônica. Nisto parecia estar fundado o pensamento

armorial, cujas bases estéticas foram defendidas por Ariano Suassuna em seu movimento

homônimo a partir de 1970, e sumariamente questionado pelo olhar proposto através do

Movimento Mangue, já nos anos 90.

A partir do levantamento de questões como as expostas acima é que a cidade do Recife,

a “águia sangrenta, leão” do poeta Carlos, talvez pudesse ser mais amplamente avaliada. A

propósito, o primeiro dos dois Manifestos Mangue, assinado por Fred Zero Quatro e Renato L

e publicado no início da década dos 90, dispõe de algumas idéias sinalizadoras para uma

possível re-significação da cidade:

Mangue - O Conceito

Estuário: parte de um rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas

margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou

subtropicais inundadas pelo movimento dos mares. Pela troca de matéria orgânica

entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais

produtivos do mundo (...)

Manguetown - A Cidade

A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após

a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade “maurícia” passou a

crescer desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição

dos seus manguezais. Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 196

de “progresso”, que elevou a cidade ao posto de metrópole do Nordeste, não tardou

a revelar sua fragilidade (...)

Mangue - A Cena

(...) Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da

cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar “um

circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede

mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena parabólica

enfiada na lama (...)

Essa atitude mangue, manifestada esteticamente a partir da música e com passagens

pela escultura, a pintura, o cinema, a moda, as artes cênicas e a literatura, representou mais do

que uma possibilidade de ressignificação da cidade que Carlos Pena Filho cantou. O próprio

poeta lançou mão de recurso extraliterários, como é o caso de sua já referida aproximação

com a música, em parceria com Capiba, ou o namoro constante com a pintura, metaforizado

através da insistente alusão às cores em seus versos (rosa amarela, subúrbios coloridos, verdes

intervalos), que se fundiam, inclusive, como em novas cores para novas palavras (verdágua,

ourazul, azulverde). A evocação do azul intenso do céu nordestino e o verde dos mares e dos

canaviais, entretanto, constituiriam as presenças mais recorrentes, através das quais o poeta

usa as "tintas do seu verão" para pintar, poeticamente, a cidade, a amada e a si próprio:

Então, pintei de azul os meus sapatos

por não poder de azul pintar as ruas,

depois, vesti meus gestos insensatos

e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente

e aprisionar no azul as coisas gratas,

enfim, nós derramamos simplesmente

azul sobre os vestidos e as gravatas.

Em seu já mencionado Livro de Carlos, Edilberto Coutinho afirma ser “a cor, entre elas

o azul, seguido do verde”, um elemento recorrente e fundamental dentro da obra de Carlos

Pena Filho. Uma estatística levantada pelo crítico Renato Carneiro Campos aponta para

quarenta como sendo o número de vezes em que a palavra azul aparece nos versos de Pena

Filho. Neles, lembra Coutinho, “a amada é bela e azul, assim como, num certo carnaval, se

viu o poeta dependurado nos cabelos azuis de fevereiro”. Sua linguagem, plena de oralidade e

essencialmente musical, tem sempre um forte apelo pictórico, visual, plástico, “como se ele

realmente às vezes pintasse com palavras”.

Ao pintar de azul seus versos e sapatos, o poeta Carlos revelaria também outros tons

dessa cidade do mangue, “onde a lama é a insurreição”, como afirmaria na

contemporaneidade um seu outro cantor, Chico Science. Ao depor sobre o conceito de

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 197

pluralidade usando a imagem de uma antena parabólica enfiada na lama como metáfora, a

movimentação mangue acabaria por perturbar a idéia de uniformidade de expressão e

comportamentos característicos da cidade que interpretações mais apressadas poderiam

sugerir, injetando “um pouco de energia na lama” e estimulando “o que ainda resta de

fertilidade nas veias do Recife”, conforme se fez registrar em seu primeiro manifesto. É o que

se pode verificar nesses fragmentos do olhar lançado por Chico Science sobre um Recife tão

próximo e ao mesmo tempo tão distante do poeta Carlos, em que “a cidade não pára, a cidade

só cresce/ o de cima, sobe/ e o de baixo, desce”, mas onde “eu me organizando, posso

desorganizar” ou “desorganizando, posso me organizar”, porque basta “um passo à frente/ e

você não está mais no mesmo lugar”.

Tanto o Recife de Chico, “onde estão os homens-caranguejo”, numa evocação ao

geógrafo pernambucano Josué de Castro, como a cidade de Carlos, de Manuel, de João, de

Joaquim, por “bela e azul e improcedente” parecem não renunciar “ao privilégio de ser bela e

azul” e permanecem, conforme anuncia a arquiteta paulistana Raquel Rolnik (1995),

“ocupando e conferindo um novo significado para um território” e “escrevendo um novo texto

(...) como se a cidade fosse um imenso alfabeto, com o qual se montam e desmontam palavras

e frases”.

Recife, a palavra, vem do árabe al-raçif e significa calçada, rua, caminho revestido de

pedras. Interpretadas mais livremente, tais definições encontram analogia no vocábulo tupi

paranampuca, ou paranambuca, isto é: pedra furada, quebra-mar, arrecife, enfim; palavra

que, aportuguesada, deu nome ao Estado do qual a cidade de Carlos veio a ser a capital. O

Recife assim, cidade, espaço de múltiplas convivências por onde o poeta trafega como

cidadão comum encontra também, através da poesia, substância para a sua própria

significação. Antimusa para alguns, “metade roubada ao mar, metade à imaginação”, fez-se

musa e cidade para o poeta Carlos, recifissignificada:

MARINHA

Tu nasceste no mundo do sargaço

Da gestação de búzios, nas areias.

Correm águas do mar em tuas veias,

Dormem peixes de prata em teu regaço.

Descobri tua origem, teu espaço,

Pelas canções marinhas que semeias

Por isso as tuas mãos são tão alheias,

Por isso o teu olhar é triste e baço.

Mas teu segredo é meu, ah não me digas

Onde é tua pousada, onde é teu porto

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 198

E onde moram sereias tão amigas.

Quem te ouvir, ficará sem teu conforto

Pois não entenderá essas cantigas

Que trouxeste do fundo do mar morto.

Referências

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade.

Tradução de Heloísa Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade

de São Paulo, 1998.

COUTINHO, Edilberto. O Livro de Carlos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.

FREYRE, Gilberto. Prefácio in PENA FILHO, Carlos. Livro Geral. Recife: Editora Liceu,

1999.

HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,

2000.

KONDER, Leandro. Um olhar filosófico sobre a cidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.

PAZ, Octavio. A outra voz. Tradução Wladyr Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993.

PENA FILHO, Carlos. Livro Geral. Recife: Editora Liceu, 1999.

ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense,1995.

ZERO QUATRO, Fred; L. Renato. Manifesto Mangue. Disponível na Internet:

www.hotlink.com.br/users/lucasm/cultura.htm Data de acesso: 2 jun 2000.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 199

DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO:

COMENTÁRIOS ONLINE NO FACEBOOK [Voltar para Sumário]

Ana Carolina A. de Barros (UFPE)

Introdução

Entendemos que as relações comunicativas são dadas mediante a palavra, em

construções textuais elaboradas e presentes em diferentes esferas sociais, mas também que

toda palavra é proferida de alguém para alguém. Ao mesmo tempo em que essa palavra busca

um destinatário, apresenta eco de outros já-ditos presentes na memória interdiscursiva de uma

comunidade “marcada” social e historicamente.

Considerando, para tanto, que também existe uma “realidade” de atualizações e (re)

significações é que este trabalho se constrói, pois partimos da ideia que há uma

heterogeneidade que é construída linguisticamente e que faz dessa rede, múltipla e

multifacetada, estar embebida em relações dialógicas, seja entre interlocutores ou entre

discursos, em situações reais de uso, configurando uma natureza que aponta para o irrepetível

em uma cadeia enunciativa não marcada por início e fim.

O trabalho aqui desenvolvido encontra-se organizado em três sessões: “Da

comunicação humana: aspectos da enunciação”; “Do diálogo entre interlocutores e

discursos”; “Gênero e circulação social: o interdiscursivo e o interlocutivo nos comentários

online no Facebook”, assim elaborado em uma tentativa de compreender como o processo

dialógico está intrinsecamente presente nas enunciações entre discursos e entre os

interlocutores. Para tanto, tomou-se como corpus analítico os quatro comentários online

postados na fan page da Época, em relação ao suicídio assistido da americana Brittany

Maynard, e como pressupostos teóricos recorreu-se a: Bakhtin (1997;2006) Benveniste

(1995;2005), Cunha (2000;2011), Flores (2012) e Santos (2013).

1 Da comunicação humana: os aspectos da enunciação

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 200

A comunicação humana dá-se mediante o verbo, a palavra, não existindo, porém, sem

considerar nas extremidades os interlocutores, aqueles que seriam, de maneira simplista, a

cargo de uma compreensão ainda que “rasteira”, o “autor” do discurso enunciado e o

“receptor” desse discurso, mesmo que situado no plano “imaginário” e do ideal, são

necessários e cruciais para que as instâncias das produções enunciativas, instauradas em

diferentes momentos, contextos, situações e historicamente constituídas, ganhem vida e

realizem-se no plano da linguagem, mediados por uma língua que diz e é utilizada por

enunciadores diversificados.

Por isso, é só pela e na linguagem que o homem institui-se como sujeito, veiculando

informações, criando visões de mundo e por ela sendo constituído, mas é através dela

também, permanentemente configurado pelos óculos sociais que demandam e possibilitam

certas realizações por meio das interações que convergem sempre em direção a um outro que

não eu, sendo esse, preenchido com papeis e cargas de valorativa significação, já que o meu

dizer dirige-se socialmente e estabelece constante interação com a palavra do(s) outro(s).

Considerando este quadro, começa-se a pensar em enunciação, em palavra, palavra

cheia de vida e, por isso, flexível, plástica, dinâmica e mutável; palavra que existe em

momento único, particular e no irrepetível da enunciação, em que o sujeito é considerado e

reconhecido, já que a enunciação é realizada ou configurada em momentos “reais”, ou seja,

em situações cotidianas de interlocução sob condições concretas, e indicando que a palavra

dita é sempre nova, e embora configure-se como a “mesma palavra”, já , no entanto, constitui-

se em uma outra instância de significação, pois o “aqui”, “agora” e “eu/tu” são únicos (cf.

BENVENISTE 1995; 2006).

Bakhtin, em seus estudos, enuncia dizendo que as palavras partem de um “um” para

“outro um”, o nosso interlocutor, e que, para tanto, é importante considerar uma série de

questões circundantes que podem tornar-se cruciais para que a enunciação seja significativa,

pois leva-se em conta que o importante já não é mais o somente dito, mas o porquê do dito.

Assim, também salienta que “toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo

fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui

justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte” (2006, p. 115).

É, pois, essa palavra enunciada que interessa, a palavra que se realiza e atualiza na

interlocução, atendendo a propósitos sociais mais imediatos e ao meio no qual emerge, esfera

fundamental para a configuração da enunciação, posto que ela não é desprendida do território

em que a faz fértil e no qual se anuncia.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 201

A enunciação é completamente dependente da situação social na qual está inserida, de

um meio social que a envolve e envolve o indivíduo; é fenômeno realizado entre

interlocutores quer reais quer potenciais, mas sempre necessários para a construção de uma

ponte em que de um lado está situado o “eu” e do outro lado um “tu” que tornam essa

realidade fundante para a força enunciativa.

Tal realidade dialógica é essencial para a linguagem, pois este diálogo, entendido

como todas as possibilidades de trocas verbais comunicativas que ocorrem nas interações, em

fluxo contínuo, múltiplo, no entanto, completo para aquela instância enunciativa, está em

evolução e é pertencente a um corpo socialmente constituído, e como bem ressaltou Bakhtin

(2006, p.130), “a estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A enunciação

como tal só se torna efetiva entre falantes”.

O sujeito desconsiderado por Saussure, quando nos referimos aos signos estudados em

uma cadeia que estabelece “exclusivamente” relações internas, assume aqui um papel de

relevância, pois entende-se a importância de considerar os elementos que estão fora da língua,

isto é, situados em uma exterioridade. O sujeito, agora salientado, não um sujeito

individualizado e limitado às suas próprias fronteiras, e sim, situado temporalmente e

pertencente a um quadro histórico-social-ideológico que torna possível a emersão de sentidos

em uma interlocução; não estando, porém, o sentido na palavra, ele é construído na relação

entre interlocutores, nos jogos possíveis, em uma “ação esperada”, em atitude de

responsividade que mostra um sujeito agente, mantenedor de uma relação com todos os

diálogos, discursos e caminhos possíveis que situam esse locutor em um fio, apontando para o

antes, já-dito, e para o depois, o novo.

É salutar dizer que esse aspecto do sentido, em Bakhtin, como afirmar Flores (2009,

p.154), se instaura sobre “uma tensão permanente entre a estabilidade do sistema e a

instabilidade da enunciação”, isto é, direciona para o fato do que consideramos consolidado

no signo, nas possibilidades do sistema ao qual recorremos linguisticamente, mas também ao

seu aspecto de flexibilidade, dependente da situação de enunciação, sugerindo, assim, que há

uma dimensão sendo tecida e/ou construída na própria interlocução.

Torna-se, então, importante compreender que a enunciação depende, para sua efetiva

constituição, de acordo com Benveniste (1995), de um “eu” que é construído em uma

relação de intersubjetividade com o “tu”, como também o fato de essas palavras nunca serem

as mesmas, posto que atualizadas por pertencerem a momentos/situações enunciativas

diferentes, ou é como Bakhtin salienta (2006),quando refere-se ao irrepetível e ao novo em

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 202

uma cadeia com outros enunciados que devem ser tomados em articulação com o que está

fora da língua para construção do “tema”, caracterizando-se pelo que é individual e único.

2 Do diálogo entre locutores e discursos

O enunciado na perspectiva bakhtiniana, como reflexo das relações interlocutivas que

se efetivam em situações concretas, não existe apenas enquanto um sistema invariável ou

rígido, que estaria em essência ligado à significação, ao intralinguístico, mas, sim, enquanto

uma zona de contato entre a realidade e a língua, ligado, pois, a instância de produção.

Não há, nesses termos, uma língua separada de um caráter idelogicamente construído,

isto é, uma língua dotada de neutralidade, posto que lidamos com uma realidade histórica e

social em que os dizeres estão intrinsecamente articulados a outros ditos em uma cadeia

dialogicamente constituída de enunciados, e que como o próprio Bakhtin (1997, p.292) aponta

“cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no

discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte.”, ou seja, mesmo que haja uma ação

responsiva retardada, em algum momento ou em algum grau serão encontradas ressonâncias

daquilo que foi compreendido quer através do que se ouve/diz quer através daquilo que se

lê/escreve.

Dessa maneira, compreende-se que a palavra do outro está inserida em graus

diferentes e plurais em todos os enunciados, formando cadeias dialógicas, não havendo, por

assim dizer, um enunciado que seja o gerador de todos os outros, como também não é

possível de maneira ampla determinar ou delimitar a finitude de tais enunciados.

Os interlocutores são, na verdade, participantes de esferas sociais e encontram-se

historicamente situados, dessa maneira, participam de um processo ocupando a condição de

agentes. Assim, a visão e o pensamento de Bakhtin direcionados à enunciação se revestem do

aspecto sociointeracional, pois, potencialmente, o sujeito é constituído e moldado nas relações

com os outros por meio da linguagem.

O dialogismo ou o dialógico, aqui entendido, poderia aproximar-se daquilo que Clark

& Holquist (1998, p.36) definem por diálogo como “o extensivo conjunto de condições que

são imediatamente moldadas em qualquer troca real entre duas pessoas, mas não exauridas em

semelhante intercâmbio”, ou seja, há sempre trocas que são efetuadas por interlocutores e

respostas que são dadas e se perpetuarão em outras realidades enunciativas que não findam na

corrente de enunciações, mas que atendem a possibilidades de respostas àquilo que foi ou

àquilo que será em outras relações de interlocução.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 203

Seria, então, o dialogismo próprio à linguagem humana, posto que ela configura-se

heterogênea, múltipla; é o “lugar” em que os discursos são construídos através dos discursos

dos outros como uma forma de herança passível de recuperação na comunidade da qual se faz

parte, pois somos sujeitos construídos na interação, na linguagem e revestidos por contextos.

Dentro desse quadro, daquilo que é estabelecido como primazia nos estudos de

Bakhtin e sua inclinação para uma heterogeneidade discursiva, entre aquilo que se diz,

instaurando-se também a esfera do “já-dito”, envolvendo a comunicação verbal humana, o

discurso seria construído sobre outros discursos, fundamentando-se nos dizeres de outros que

são (re)elaborados e ressignificados, entretanto, constitutivos de uma “memória discursiva”.

Poderíamos, assim, a partir do que se diz e do “já-dito”, elencar dois tipos de

construções dialógicas mais específicas: o dialogismo interlocutivo e o dialogismo

interdiscursivo. Segundo Cunha e Freitas (2009), essas duas “estruturações” dialógicas

refletem-se pelo caráter mesmo heterogêneo da linguagem, em que “o dialogismo

interdiscursivo se dá de forma marcada, através de ‘ilhas textuais’”, e o dialogismo

interlocutivo invocaria “a memória discursiva do leitor para outros eventos discursivos”. Dito

de outra maneira, há um processo que se volta em uma relação dialógica para o “já-dito” e

outro para um determinado interlocutor, real ou virtual, ao qual a minha enunciação é dirigida.

Essas palavras, os já-ditos, seriam “resultado” daquilo que foi construído no percurso

histórico, ideológico, social de uma comunidade, não são, portanto, neutras e nem se

encontram alojadas no seu potencial enquanto “sistema”, “estrutura”, ou seja, estão

embebidas do discurso do outro, do que é anterior. Já considerando o que se refere ao

interlocutivo, pode-se dizer que não há enunciação desprendida de um sujeito com o qual se

interage, isto é, a enunciação é destinada à alguém, assim como esse mesmo dizer é revestido

pela possibilidade de quem constitui o outro, em uma espécie de réplica, isto é, de uma atitude

responsiva em prol da compreensão, o que pode apontar para aquilo que Barthes (1978, apud

AUTHIER-REVUZ, p.9, 2011) pertinentemente marca :“ o homem falante [...] fala a escuta

que ele imagina para sua própria palavra”.

Bem se vê, então, que esses “dois dialogismos”, ou uma heterogeneidade na

linguagem, é constitutiva do próprio dizer, faz parte da natureza enunciativa que se revela

dialógica como condição, que reporta à uma memória e ao mesmo tempo instaura-se ou

institui-se na interação com o outro, com um interlocutor. Ao mesmo tempo mostra-se como

resposta ao “já-dito” e como previsão em resposta à compreensão do nosso outro interlocutivo

e que, mesmo mostrando-se distintas, podem estabelecer relações estreitas.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 204

3 Gênero e circulação social: o interdiscursivo e o interlocutivo nos comentários

online no Facebook

A comunicação humana realiza-se por meio enunciados que se configuram em

materialidades textuais, quer sejam orais ou escritos, em todas as dimensões e em diversas

instâncias das esferas discursivas. No entanto, tais organizações enunciativas são dadas

mediante os gêneros, compreendidos enquanto tipos relativamente estáveis de enunciados (cf.

BAKHTIN, 1997), pois eles passam por transformações ao longo do tempo, adaptando-se às

exigências históricas e comunicativas, porém mantêm a essência e os objetivos interacionais,

aquilo que permite aos falantes reconhecê-los e fazerem uso quando detentores de um

conhecimento sobre suas particularidades e funções.

Os gêneros constituem-se, assim, em entidades comunicativas pertencentes a práticas

sociais já estruturadas, isto é, culturalmente construídas, porém passíveis de dinamicidade,

conforme as necessidades e mudanças sócio-históricas. Dentro dessa dinâmica, escolhemos

para a análise os comentários online postados no Facebook, uma Rede Social. Eles, os

comentários, configuram-se como um constructo, pois socialmente elaborados e

compartilhados, isto é, são produtos socioculturalmente formados, e pertencem a uma

dinâmica interlocutiva atual que integra, agora, o uso em certos “Ambientes virtuais”.

O Facebook possibilitou a construção de um corpus interessante para demonstrar

como os diálogos entre os interlocutores e os diálogos entre discursos se efetivam nas práticas

enunciativas, ou seja, como os ditos estão ligados em uma cadeia discursiva através dos

comentários online.

Os comentários a serem analisados estavam inseridos dentro da esfera jornalísticas e

remetem a um momento discursivo especial. Compreende-se o “momento discursivo”, nas

palavras de Moirand (2007 apud CUNHA, 2011, p.122), como “a diversidade de produções

discursivas que surgem na mídia a propósito de algo que ocorreu no mundo e que se torna na

e pela mídia um acontecimento”.

Assim, o acontecimento eleito refere-se ao suicídio assistido1 da americana Brittany

Maynard, de 29 anos, em 1o

de novembro de 2014, que sofria de câncer no cérebro, em estado

terminal. A análise feita, baseia-se, como já dito, em comentários. Estes, porém, foram

1 Acontece quando paciente, em estágio terminal, não consegue concretizar sozinho seu desejo/vontade de

morrer, solicitando o auxílio a uma outra pessoa. A assistência ao suicídio é geralmente feita por prescrição

medicamentosa através de doses letais, por meio da indicação de uso da substância e de maneira indolor; a

administração, no entanto, é feita pelo próprio paciente.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 205

retirados da fan page da Época, no dia 03.11.14, quando a notícia foi vinculada. Abaixo, o

print da notícia.

Figura 1- Notícia na fan page da Época

(Fonte: Facebook – nov/2014)

Com a veiculação da notícia da morte da americana, Brittany, que optou por suicídio

assistido, muitos comentários foram publicados no Facebook como manifestação dos usuários

dessa Rede Social em relação ao fato. Partimos da ideia de que esses comentários na fan page

da Época, por serem enunciados, estão articulados e intrinsecamente relacionados como elos

que fazem parte de uma corrente discursiva contínua e formadora, assim, de uma grande rede.

Tomamos os pressupostos de Bakhtin para proceder às análises, dentro de um quadro

que se detém ao dialogismo interdiscursivo e ao interlocutivo, já que nessa teia, os discursos

remontam tanto a outros discursos previamente estabelecidos e presentes na memória de uma

determinada sociedade, como também tais discursos, por não acontecerem no vácuo,

direcionam-se a outros, nossos “outros comunicativos”, ou seja, estão indexados a um

interlocutor, real ou não, mas sempre “construído” em uma posição que suscitaria

responsividade.

Tomamos como amostra de análise, para “verificação” daquilo que acontece

efetivamente através dos comentários postados, quatro exemplares selecionados mais ou

menos aleatoriamente. Ao que se segue:

Figura 2- Comentário 1

(Fonte: Facebook- nov/2014)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 206

Considerando esse comentário, poderíamos observar que o que aí se mostra enunciado

é uma relação diretamente estabelecida entre interlocutores em uma atitude “imediatamente”

responsiva, quando o “autor” com comentário 1 manifesta-se ao dizer que “já começou o

contra e o favor”. Vê-se, dessa maneira, uma tentativa de complementação, confronto,

negação ou mesmo um não julgamento perante aquilo que foi vinculado, a morte assistida ou

suicídio assistido, e tal posicionamento parte em direção a um outro ou a muitos “outros”. No

final do comentário, seu “autor” acaba assumindo um posicionamento que efetivamente

gerará outras respostas, ao dizer “Que esteja melhor. Apenas isso. ”, abrindo prontamente

possibilidade para que sequências de respostas sejam dadas. Aqui, portanto, encontramos uma

ponte clara com aquilo que Bakhtin (1997; 2006) sustenta em seus estudos, ao dizer que nos

enunciados é que as relações dialógicas tornam-se possíveis, pois esses enunciados espalham-

se através de movimentos contínuos e sucessivos, apoiando-se, contudo, também em relações

historicamente situadas.

O comentário aqui assinalado, comentário 1, certamente funcionará como “gatilho”

para o surgimento de respostas que serão destinadas ao próprio comentário 1 ou a “outros”

comentários anteriormente publicados, pois ao emitir um juízo prenhe de valor, explicitando-o

através de suas escolhas, mais ou menos conscientes, falando de um determinado lugar,

deseja-se encontrar no outro também respostas, isto é, verificamos a partir dessa

responsividade a presença do dialogismo interlocutivo. Pela natureza dos comentários online

e seu abrigo, o Facebook, há uma estreita proximidade entre os pares, dada a dinâmica do

gênero, coincidindo como nos dizeres bakhtinianos em “ecos” em que “cedo ou tarde, o que

foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no

comportamento subsequente do ouvinte” (BAKHTIN, 1997, p.292), e como é passível de

verificação no comentário seguinte.

Figura 3- Comentário 2

(Fonte: Facebook- nov/2014)

No comentário 2 encontramos relações também com os já-ditos, não exclusivamente

com o posicionamento imediatamente anterior, mas sim, configurando-se como participante

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 207

ou mais um nó em uma eterna cadeia dialogal que se mostra estreitamente articulada e que,

por isso, está atrelado a uma série de discursos elaborados e (re)atualizados, pois como bem

salienta Bakhtin (ibidem p.414-415) “Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e

não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro

ilimitado)”. Observamos, então, que esse enunciado surge também em resposta a dizeres

anteriormente construídos, e organizado em uma espécie de breve narrativa, “pincela” uma

experiência pessoal e diretamente vivenciada. O interlocutor posiciona-se em relação à atitude

de Brittany Mayanard ao declarar que a disposição dela foi “uma decisão muito corajosa”,

agindo interlocutivamente, mas não só.

O “autor” do comentário 2 parece mostrar-se estrategicamente favorável à ação da

americana, configurando-o como um ato de bravura, o que sugeriria o seguinte: aquele que

comete suicídio assistido, pelas circunstâncias ou estado terminal, desde que dotado de

consciência, teria o direito em optar pelo suicídio. O “autor” ainda do comentário 2, inclinar-

se-ia, com certa adesão a essa prática, pois, segundo suas percepções: “a pessoa fica em uma

situação que ninguém jamais gostaria de ver [...] é terrível ficar em cima de uma cama”.

Poderíamos apontar, no comentário 2, também ressonância/consonância/eco a outros

discursos, como os das entidades defensoras do “direito à morte” ou mesmo do que

configuraria o discurso de dignidade e autonomia dos pacientes humanos que se encontram

em estado terminal, ou seja, encontramos também evidenciado o dialogismo interdiscursivo.

Há, sem dúvidas, a necessidade de os interlocutores ativarem uma memória discursiva que

contribuirá de maneira tal para os processos de significação.

O comentário 3 parece, então, reconhecer, de alguma forma, aquilo que estaria

presente na memória interdiscursiva, mediante as relações estabelecidas com o comentário 2,

por exemplo, quando enuncia, dizendo:

Figura 4 – Comentários 3 e 4

(Fonte: Facebook- dez/2014)

No comentário 3, observa-se uma atividade enunciativa bem marcada e com

posicionamento claramente definido: “suicídio não tem perdão, com certeza não foi pro reino

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 208

dos céus”, em resposta aos interlocutores com os quais está interagindo nesse contexto

discursivo, dialogismo interlocutivo, mas além disso, pois é também possível recuperar a base

“ideológica” de onde emergiria seu discurso. O “autor” do comentário 3 fundamenta-se, em

linhas gerais, a preceitos cristãos, configurando um exemplo de dialogismo interdiscursivo

quando se refere ao suicídio, pois a vida, para o cristianismo, é crida enquanto dádiva/presente

de Deus, posta nas mãos dos homens para que dela cuidem, cabendo, apenas a Deus, crido

também como “fonte da vida”, Aquele “quem tira a vida e a dá”.

O comentário 4, como em resposta mais “diretamente” ligada ao que é exposto pelo

comentário 3, mostra-se inconformado e constrói seu enunciado através de palavras repletas

de valor, ideologia e carga semântica, já que “sem acento apreciativo, não há palavra”

(BAKHTIN, 2006, p.136), fazendo-a dela viva. O comentário 4 também se liga a outros já-

ditos, retomando, certamente, palavras de outros nessa heterogeneidade e dinâmica

interlocutiva e, por isso, dialógica. Em atitude responsiva e mais imediata ao que exposto de

forma contundente pelo comentário 3, faz o autor do quarto comentário taxar o comentarista

3 de doente, manifestando-se interlocutivamente.

Além disso, e em certo grau, poderíamos verificar que o comentário 4 também ativa

um discurso de viés cristão quando enuncia o seguinte: “quem é digno de quê?..E dobre seus

joelhos, ore”, pois, de acordo com a tradição bíblica, diz-se que não são os humanos dignos de

coisa alguma, pois pelo pecado, destituídos estariam da glória de Deus. Assim, não há que se

julgar, recuperando, assim, relações dialógicas de ordem do interdiscurso.

O que percebemos, ainda que em breve análise, é que todo discurso encontra pontes

com discursos anteriores, discursos esses que fazem parte da memória de uma determinada

cultura ou de um determinado grupo social e que ecoam em outros dizeres, configurando-se

como um dialogismo interdiscursivo, mas não só, pois foi possível, de maneira mais explícita,

entender que esses ditos estão orientados ou orientam-se a alguém, configurando-se como

dialogismo interlocutivo.

Essas configurações dialógicas tornaram-se mais facilmente observáveis por meio dos

comentários online e nas possibilidades imanentes das réplicas. Com nossos interlocutores,

nossos outros, travamos sempre diálogos e formamos teias, colaboramos com a tessitura de

um fio ininterrupto no qual somos pontos da trama em um tecido discursivo e, por isso,

dialógico, pois inerente à linguagem humana é.

5 Considerações finais

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 209

Consideramos, neste artigo, os comentários online como fonte que auxiliaria a

“revelar” o dialogismo presente em diversas instâncias discursivas, pois ele é característico da

linguagem humana que se utiliza de um sistema completamente articulado e vinculado à

diversidade de práticas sociais interacionais. Essas são historicamente situadas e emergem

através dos já-ditos, em uma dinâmica que ao mesmo tempo em que se revela como resposta a

outros enunciados e funciona como gatilho para outras enunciações, situam-se em uma

memória discursiva, em que vozes de outros manifestam-se.

Passamos a verificar, através desses usos reais, mediante os comentários no Facebook,

um verdadeiro trânsito de vozes que ao circular, cruzam-se, gerando uma cadeia de

responsividade, marca da relação dialógica, em que fluxos resultantes de direções diversas

remetem para o antes e para o depois na construção enunciativa, favorecendo a morada das

marcas do socialmente constituído e elaborado, propiciando a formação de uma rede

discursiva ininterrupta em que essas vozes não são consensuais, mas mostram-se em

“verdades” quer através do dialogismo interlocutivo quer mediante o dialogismo

interdiscursivo, passível de verificação em comentários online, como os aqui selecionados a

partir de suas publicações, em uma dinâmica construídas pelo uso da linguagem.

Referências

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CUNHA, Dóris de Arruda C. da. A noção de gênero: algumas evidências e dificuldades.

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194f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Centro de Ciências Humanas e Letras,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 211

O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO

MÉDIO: O QUE DIZEM OS LIVROS DIDÁTICOS DE

LÍNGUA PORTUGUESA? [Voltar para Sumário]

Ana Cátia Silva de Lemos

Maria Margarete Fernandes de Sousa

Introdução

O ensino de gêneros no ensino brasileiro tem ganhado espaço, a partir das

concepções adotadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Esses

documentos pautam o ensino da língua materna e indicam o uso dos gêneros como um

meio para o desenvolvimento da competência textual dos alunos.

Com base nesse aspecto, os livros didáticos de língua portuguesa se apoiam no

uso dos gêneros como forma de tornar o aprendizado uma prática interativa e

contextualizada, como indicam os PCNs.

Para chegar ao conceito de gêneros, adotado pelos PCNs, é preciso investigar o

conceito de texto defendido por esse documento. Pois há uma relação deste com a

definição de gênero pregada.

Segundo os PCNs do ensino médio brasileiro, o texto é o resultado dos

“diálogos” que faz com as diversas situações que seus interlocutores vivenciam. Mas

precisamente seu sentido, segundo os Parâmetros, depende dessas relações:

O sentido de um texto e a significação de cada um de seus componentes

dependem [...] da relação entre sujeitos, construindo-se na produção e na

interpretação. Essa parece ser a condição mesma do sentido do discurso,

obrigando-nos a considerar não apenas a relação entre interlocutores, mas

também a desses sujeitos no meio social (p.44).

Nota-se que essa definição é “banhada” pelo conceito bakhtiniano de dialogismo

que norteia a concepção de gênero do teórico russo. Acreditamos que a definição de

texto adotada pelos documentos oficiais defende esse ponto de vista, pois

posteriormente patrocinará o conceito de gênero como formas materializadas dos textos,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 212

que constituem conjuntos caracterizados pela estrutura composicional, traços estilísticos

e aspectos sociais.

Ressaltamos que os documentos analisados neste trabalho referem-se aos PCNs

do ensino médio, pois é nesta etapa escolar que o ensino com gêneros é mais priorizado,

sobretudo devido ao Exame Nacional do Ensino Médio, que foca suas competências no

aprendizado a partir de práticas sociais do aluno.

O conceito de gêneros nos PCNs não adota um posicionamento sobre que

gêneros devem ser priorizados no ensino médio: gêneros textuais ou gêneros do

discurso? Comentamos esse aspecto, pois foi um dos problemas encontrados na

concepção de gêneros dos livros didáticos analisados.

Por isso, julgamos importante investigar a concepção de gêneros adotada e

ensinada pelos livros didáticos selecionados. Os livros analisados foram escolhidos a

partir do guia do Programa Nacional do Livro Didático – 2014 (PNLD-2014).

São, portanto, coleções modernas que já passaram pela avaliação inicial do

Ministério da Educação. Neste trabalho avaliamos as concepções de três livros de três

coleções diferentes. Analisamos os seguintes manuais:

1. Coleção Viva Português – Elizabeth Campos; Paula Marques Cardoso;

Sílvia Letícia de Andrade. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino médio);

2. Coleção Língua portuguesa: linguagem e interação – Carlos E. Faraco;

Francisco M. Moura; José H. Maruxo Jr. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino

médio);

3. Coleção Português Linguagens – William R. Cereja; Tereza C.

Magalhães. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino médio).

Escolhemos essas coleções por serem algumas das mais selecionadas em anos

anteriores do PNLD, foram ainda escolhidos apenas o volume um de cada coleção, pois

são nestes volumes que estão as informações e conceitos iniciais sobre gêneros.

Em nossa análise podemos observar que apenas uma das coleções refere-se à

gêneros textuais e as outras à gêneros do discurso, apesar de alguns autores não

demarcarem essa diferença, ela é ainda motivo de discussão no meio acadêmico. Nos

livros didáticos observamos que uma coleção não faz distinção entre essas abordagens

de gênero, podendo ocasionar uma dificuldade na apreensão do conceito.

Além disso, é possível perceber, nos conceitos apresentados, diversas “vozes” de

autores conceituados nos estudos sobre gêneros, tais como Swales, Bazerman e,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 213

obviamente, Bakhtin. Algumas vezes esses conceitos misturam essas teorias de tal

forma que a definição de gêneros fica comprometida.

Para que isso fique mais claro, é necessário explicar melhor as abordagens de

gênero que encontramos nos conceitos dos livros analisados, por isso abaixo listamos e

apresentamos algumas dessas teorias.

Teorias de gênero

Um dos autores que ressoam nas definições encontradas nos livros didáticos é

John M. Swales, o modelo que ele propõem para a análise de gêneros está galgado em

pressupostos linguísticos e nas práticas sociais que envolvem esses pressupostos, ou

seja, ele não considera apenas os aspectos linguísticos, mas também as influências do

ambiente social em que os gêneros estão inseridos.

A definição de gêneros que Swales (1990) vai utilizar está embasada em cinco

critérios de análise: classe de eventos comunicativos; propósito comunicativo;

prototipicidade; lógica própria dos gêneros; comunidade discursiva.

Segundo Hemas; Biasi-Rodrigues (2005), esses critérios são definidos da

seguinte forma:

“O gênero é uma classe de eventos comunicativos, sendo o evento uma situação

em que a linguagem verbal tem um papel significativo e indispensável (p.113)” Esse

evento é formado pelo participantes do discurso e têm relação direta com o ambiente em

que o discurso é produzido.

Um dos conceitos mais importantes para a teoria de Swales (1990) é a definição

de propósito comunicativo. Ainda segundo as mesmas autoras, “os gêneros têm a

função de realizar um objetivo ou objetivos”(HEMAS;BIASI-RODRIGUES, p.114)

apesar do autor reconhecer que os propósitos nem sempre estão explícitos nos textos, os

textos sempre apresentarão intenções que os identificarão em uma classe ou

comunidade.

O critério de prototipicidade para Swales (1990) considera que os gêneros têm

características comuns, como traços linguísticos ou sociais, por exemplo. A definição de

gêneros apresentada pelos PCNs, como vimos, aponta marcas textuais de

reconhecimento dos gêneros.

O quarto critério sustenta que os gêneros têm uma lógica própria que é

reconhecida pela comunidade que o utiliza. Ou seja, segundo Hemas; Biasi-Rodrigues

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 214

(2005, p.114) existem algumas convenções esperadas e manifestadas no gênero que são

realizadas em função de um propósito.

O quinto critério considera a terminologia criada pela comunidade discursiva

para um fim específico e próprio. Para Swales (1990), a análise de gêneros deve levar

em consideração o comportamento comunicativo dos membros, pois o nome dos

gêneros pode se manter estável, enquanto o gênero em si muda suas práticas sociais.

Para finalizar a caracterização da abordagem de Swales, é crucial apresentar o

conceito de comunidade discursiva, que norteia sua teoria. Segundo Hemas; Biasi-

Rodrigues (2005, p.115):

A noção de comunidade discursiva é empregada em relação ao ensino de

produção de texto como uma atividade social, realizada por comunidades que

têm convenções específicas e para as quais o discurso faz parte de seu

comportamento social.

Segunndo Swales (1990) a comunidade discursiva pode ser caracterizada pelos

seguintes critérios: Objetivos públicos em comum; Mecanismos de comunicação

próprios entre os membros da comunidade; Utilização dos mecanismos de comunicação

para prover a informação; Um conjunto de gêneros utilizado para realização específica

de seus objetivos; A existência de um léxico específico; Uma hierarquia nos membros

que estabelece conhecimento mais elaborado em uns do que em outros.

Outra teoria de gêneros que podemos observar nos conceitos dos livros didáticos

analisados foi o conceito de gênero como ação social de Charles Bazerman e Carolyn

Miller. Bazerman (2011) critica o conceito de Swales (1990), pois nesta abordagem o

gênero é visto de maneira resumida, em uma fórmula textual, para Bazerman e Miller o

gênero deve ser visto como ação social.

A teoria de Bazerman é muito influenciada pela teoria dos atos de fala de Austin,

por isso, seu foco é a interação na comunicação. Para Bazerman (2011), quando nos

comunicamos textualmente há sempre grande probabilidade de sermos mal

interpretados para diminuir essas possibilidades Bazerman acredita que estabelecemos

padrões comunicativos, que se tornam reconhecidos em nosso meio.

Assim, Bazerman (2011, p.32), estabelece que “As formas de comunicação

reconhecíveis e autorreforçadas emergem como gêneros”. Logo ele estabelece que:

Gêneros são [...] fatos sociais sobre tipos de atos de fala que as pessoas

podem realizar e sobre os modos como elas os realizam. Gêneros emergem

nos processos sociais em que as pessoas tentam compreender umas às outras

suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados

com vistas a seus propósitos práticos (2011, p.32)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 215

Dessa forma, Bazerman e os seguidores dessa corrente desprezam abordagens

genéricas que não consideram o aspecto social como um dos mais fortes na definição de

gêneros, visto que para eles não adianta definir os gêneros através de aspectos textuais e

desconsiderar o ambiente social em que eles foram gerados.

Assim como Bazerman (2011), Miller (1994b) acredita que os gêneros

dependem da interação que orienta as práticas comunicativas e sociais, tornando-as

mecanismos padronizadas em nosso cotidiano. Para a autora:

O indivíduo deve reproduzir noções padronizadas de outros, sejam eles outros

institucionais ou sociais, ao passo que a instituição, sociedade ou cultura tem de

oferecer estruturas pelas quais os indivíduos possam fazê-lo (MILLER, 1994b, p.72)

Assim, a autora reafirma que gênero não é uma prática estruturada, mas uma

ação social, pois é através dela que os indivíduos podem criar padrões por meio de suas

ações e práticas reconhecidas na sociedade.

Sem dúvidas os estudos de M. Bakhtin sobre os gêneros são referência nas

pesquisas até hoje. Por ter sido pioneiro nessa área Bakhtin se tornou mais do que

referência ou um ponto de partida, ele é essencial para a compreensão de outras teorias.

Um dos aspectos que se faz necessário explicar é justamente uma das questões

que motivou este artigo, quando se fala em gêneros eles são textuais ou discursivos?

Bakhtin (2000) apresenta os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de

enunciados.

Para Bakhtin (2000), o enunciado é a entidade concreta da comunicação, pois

está amparado em situações de aspectos sociais, nesse sentido o discurso para Bakhtin

representa a interação social e exemplo mais notório da comunicação humana. Logo, o

termo discurso, neste autor, não representa ideologia.

Talvez por isso Marcuschi (2008) diferencia esse termo caracterizando-o como:

“Do ponto de vista dos domínios, falamos em discurso jurídico, discurso jornalístico,

discurso religioso, etc., já que as atividades jurídica, jornalística ou religiosa não

abrangem um único gênero, mas dão origem a vários deles” (p.24).

Dessa forma, Bakhtin não objetiva construir definições fechadas sobre gêneros,

pois a única tipologia que cria é para definir gêneros primários e gêneros secundários.

Estes são os gêneros mais complexos que se utilizam dos gêneros mais simples para se

constituírem.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 216

A partir desses conceitos analisamos as definições de três manuais didáticos com

a intenção de avaliar como o conceito de gêneros é apresentado aos estudantes do

ensino médio.

Conceito de gêneros no ensino

A Coleção Viva Português (Elizabeth Campos; Paula Marques Cardoso; Sílvia

Letícia de Andrade) apresenta a noção de gêneros a partir do conceito de organização

que, conforme exposto, está presente nas concepções genéricas que consideram o

gênero sob a ótica do texto. Observemos como se dá essa conceituação no livro

didático:

Além disso, notamos que as autoras tratam dois gêneros distintos como

sinônimos, pois elas consideram que as tirinhas e a história em quadrinhos são o mesmo

gênero, quando sabemos que, dependendo da situação de comunicação, esses elementos

são gêneros distintos.

Podemos observar que há uma tentativa de definir os gêneros a partir das

características comuns que eles partilham, assim como Swales (1990) ao definir como

critério de gênero a prototipicidade. Apesar disso, a definição do livro prossegue com

características que podemos ligar a autores de correntes diferentes.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 217

Com esse trecho, observamos uma preocupação com os participantes da cena

enunciativa, fato que deve ter levado as autoras a definir gêneros sob a ótica do

discurso. No entanto, por terem se valido de características de ordem textual, podemos

encontrar um problema nessa definição: que teoria foi utilizada para a escolha do

conceito?

Além disso, as autoras classificam discurso como “um conjunto de elementos

que compõem um ato de comunicação”, sabemos que essa informação está incompleta,

pois para as teorias do discurso, ele é caracterizado como um ato representativo de uma

ideologia (PÊCHEUX,p.125).

O segundo livro analisado pertence à Coleção Língua portuguesa: linguagem e

interação – Carlos E. Faraco; Francisco M. Moura; José H. Maruxo Jr. Volume 1. Neste

exemplar, o gênero é imediatamente caracterizado como gênero do discurso.

É possível notar que, apesar de iniciar sua explicação com um título que

qualifica gênero ao discurso, os autores mencionam os objetivos das figuras

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 218

enunciativas, ou seja, mesmo ligado à enunciação, os gêneros têm uma propriedade

textual, relacionada ao propósito comunicativo.

Mesmo tendo, inicialmente, relacionado os gêneros ao discurso. Os autores

prosseguem sua definição e usam indistintamente os termos gênero textual e gêneros do

discurso.

O termo “esferas de circulação” nos remete ao conceito de comunidades

discursivas de Swales (1990). O termo pode fazer referência também às esferas

comunicativas, mencionadas por Bakhtin/Voloshinov (1981), no entanto as esferas

mencionadas por este autor estão vinculadas mais a critérios discursivos/ideológicos, o

que não necessariamente se assemelha aos exemplos do livro didático.

O terceiro manual analisado pertence à Coleção Português Linguagens –

William R. Cereja; Tereza C. Magalhães. Neste livro, observamos que os autores

optaram por definir gêneros com conceitos da abordagem sociorretórica, pois, além de

qualificar os gêneros como do texto, os autores fazem uma breve diferenciação entre

gêneros textuais e sequências textuais.

Julgamos pertinente essa distinção, uma vez que, na história da educação

brasileira, havia uma grande problemática em torno disso. Com esse exemplo,

observamos que as diferenças, em torno desses termos, podem está bem estabelecidas.

Para os autores dessa coleção, uma das características do gênero textual é “a(s)

sequência (s) textual (is) predominante (s)”, esse fato chamou nossa atenção, dado que

nas outras coleções nada foi mencionado a respeito.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 219

Notamos que conceitos importantes como propósito comunicativo são

retomados nessa definição, que também elenca as situações e os contextos como

características importantes na definição de gêneros. Ao prosseguir com a explicação os

autores citam, indiretamente, Bakhtin, ao mencionar “formas mais ou menos estáveis”.

É importante ressaltar que este manual procura definir gêneros, a partir do uso e

das diversas situações de comunicação que a sociedade nos apresenta, ele tenta também

conceituar gêneros por meio de critérios sociorretóricos, fato que julgamos como uma

estratégia didática no ensino, para que talvez os alunos se confiem em características

textuais no reconhecimento dessas práticas.

Nesse caso, é imprescindível o papel do professor pra esclarecer que sem o

aspecto social e as convenções culturais o gênero não poderia sequer existir, sendo

necessário, portanto, enfatizar a união dessas duas marcas.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 220

Considerações finais

A partir dos dados apresentados, acreditamos que a confusão terminológica que

existe no âmbito acadêmico sobre a definição de gêneros (do texto ou do discurso) é

reproduzida no meio escolar, de maneira ainda mais delicada, pois nesse ambiente

diversas teorias são mescladas, a fim de se obter um conceito de fácil apreensão.

Além disso, observamos que em nenhum dos manuais há indicações explícitas

sobre os teóricos que serviram de “inspiração” para suas definições, apesar de que para

um estudioso mediano do assunto será possível identificar as inferências, como

marcamos em nossa análise.

Julgamos que no ambiente acadêmico as pesquisas adaptam a terminologia mais

adequada para seus pontos de vista, no entanto, no meio escolar essa confusão em torno

da conceituação entre gêneros textuais ou discursivos pode gerar uma deficiência na

apreensão da definição de gêneros.

Acreditamos, portanto, que para tentar solucionar esse problema talvez fosse

necessário adotar, pelo menos, no ambiente escolar a terminologia de Gêneros,

simplificando e buscando definições mais claras e objetivas.

Referências

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HEMAS,B; BIASI-RODRIGUES, B. A proposta sociorretórica de John M. Swales

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 221

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 222

O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE

LÍNGUA NA CONTEMPORANEIDADE [Voltar para Sumário]

Ana Cláudia Soares de Paiva1 (UNICAP)

Discursões introdutórias

O século XX é marcado dentro dos estudos da linguagem por abordagens que

possibilitam olhares plurissignificativos acerca do fenômeno Língua. É sabido também da

larga ruptura que os estudos estruturalistas de Saussure provocam no modo de conceber a

língua. Segundo a concatenação de Saussure (MUSSALIM, 2009), a língua é constituída por

uma superfície bivalente, marcada por um viés social e por outro individual. Na concepção do

teórico suíço esses vieses não são opositores nem excludentes, mas são modulações que não

são possíveis de serem aglutinadas em um primeiro estudo de estruturação de um sistema

linguístico, fazendo-o, portanto, optar pela moldura social de língua compartilhada pelos

usuários.

A partir desse recorte, Saussure desenvolve uma conjuntura ideológica do signo, a

qual propaga um conceito de signo mediante uma ótica de representação direta de um dado

elemento. Segundo essa concepção, a língua é tida como ferramenta de transparência do ato

comunicativo, na qual o sujeito pode estruturalmente desenvolver uma mensagem, a qual

expressa para o outro a totalidade de sentido pretendido pelo enunciador. Dessa forma, a

língua é um instrumento objetivo, desarticulado da subjetividade do eu que enuncia,

requerendo apenas dos sujeitos o domínio e o compartilhamento do mesmo sistema, afim de

que o ato comunicativo seja entendível.

Segundo essa proposta saussuriana, observa-se que as principais análises eram

desenvolvidas tendo por prioridade revelar o conteúdo de uma sentença. Nesse momento,

nasce uma proposta estruturalista do conteúdo, em que a principal atenção recai sobre o

significado pleno do posto verbalmente. A língua como ferramenta social de comunicação,

1 Mestranda do curso de Ciência da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 223

conseguia mediante a proposta de Saussure, condensar as concretudes do mundo real sem

nenhuma interferência das relações sócio-cultural-ideológica que circundam o sujeito. Dessa

forma, a língua adquire o status de ferramenta autônoma e autossuficiente, pois é pela e

simplesmente arrumação lexical dentro de uma construção que é possível veicular dentro de

uma prática de comunicação um dito, cuja totalidade de sentido está exposto na sentença.

Ainda acerca desta língua completa e de significado objetivo, destacamos o que comenta

Mussalim (2009, p.69):

Tentemos entender a diferença. O que conta na concepção de comunicação

utilizada por Saussure é que os interlocutores tenham pleno controle sobre os

elementos pertinentes dos signos linguísticos mediante os quais se comunicam.

Espera-se, em outras palavras, que os falantes usem os signos linguísticos que

compõem suas mensagens de modo tal que se reconheçam nesses signos todos os

traços pertinentes que permitem identifica-los. Essa concepção de comunicação, que

é a própria concepção saussuriana, basta para distinguir língua e fala e para

estabelecer como a fala depende da língua, mas reduz de certo modo o processo de

interpretação a uma questão de discriminação dos signos que se transmitem, e nada

nos diz sobre o que acontece quando interpretamos (2009, p.69).

O dialogismo bakhtiniano revela a subjetividade da língua

O filosofo Russo, Mikhail Bakhtin, também tece suas investigações no campo da

linguagem em um período paralelo ao de Saussure, no entanto, o que marca os estudos

bakhtinianos é a forma como esse teórico se reporta em direção à língua. Em um cenário,

cujas abordagens filosóficas enxergavam a língua/gem como um instrumento externo ao

indivíduo, como uma ferramenta de uso totalmente previsível e calculável, florescer uma

abordagem que rompesse com esse padrão não era tarefa fácil. É diante dessa sistematização

enrijecida da língua, que Bakhtin e seu Círculo concentram atenção no campo da literatura.

Em suas abordagens dentro desse campo, o Círculo evidencia a incompletude da língua sob

uma ótica da estruturação. É nesse reconhecimento, que Bakhtin dirige seus estudos

considerando o indivíduo que atualiza a língua, bem como todo o entorno que circunde o

sujeito da linguagem.

Com esse novo enfoque, o filósofo Russo, apresenta para os estudiosos da linguagem

que a objetividade de Saussure não dava conta do posto em uma relação de discurso, pois

segundo Bakhtin, o dito materializado pela linguagem agrega as marcas de quem o diz, bem

como toda constituição sociocultural e axiológica que determinaram a postura de indivíduo

social. Dessa forma, estar em contato com um discurso não é apenas um processo de

compreensão da mensagem, mas um ato que é marcado por relações de poder, de escolhas, de

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 224

apreciações ideológicas entre outros, os quais determinam a estruturação do dito, bem como

os valores que são intencionados e diluídos em cada novo ato comunicativo.

Diante dessa percepção sobre a materialização linguística, Bakhtin apresenta alguns

eixos, os quais dão concretude ao seu pensamento. Nesse momento, chamamos a atenção para

dois dos seus eixos: o dialogismo e a responsividade.

Na contramão da voz unívoca do estruturalismo, o dialogismo revela que não é

possível construir uma mensagem desassociada das determinações sociais, pessoais e

estruturais. É nessa interação de constituintes que é possível validar uma prática discursiva

que seja funcional. Mediante tal consideração, observa-se que a prática linguageira não é um

ato objetivo e transparente, mas um ato de densas implicações, as quais só são desmistificadas

se forem considerados todos os determinantes que atravessam o eu discursivo. A partir dessa

desmistificação, Bakhtin evidência que a língua/gem é um ato que se estruturaliza a partir de

relações de subjetividade, o que determinará a sua opacidade.

Diante dessa subjetividade que atravessa o discurso, o sujeito interage com essa prática

tendo por âncora todos os princípios socioideológicos que o povoa, os quais interferiram na

maneira de compreensão e resposta do que lhe é apresentado. A essa resposta, acrescenta

Faraco:

Toda compreensão de um texto falado ou escrito, implica uma

responsividade, e consequentemente, em um juízo de valor. O que isto quer dizer é

que, ao se apropriar de um determinado texto, o leitor se posiciona em relação a ele,

por meio de atitudes distintas: pode concordar ou não, pode adaptá-lo, pode

acrescentar ou retirar informações, pode exaltá-lo. Ou seja, sua reação consiste numa

resposta, o que caracteriza uma ação responsiva (FARACO ,2006, p. 210)

Essa subjetividade dialógica está marcada no texto pela relação EU-TU-OUTRO, que

determina qual seja a prática de discurso. Segundo Bakhtin, todo discurso é sempre enunciado

tendo como respaldo um Tu, o qual estabelece um contínuo com o Eu, e nessa duplicidade

desenvolvem relações de compreensão, o que atribui ao discurso o potencial funcional e

válido em um dado momento da prática comunicativa. Esse princípio dialógico evidencia as

marcas que o Eu e o Tu enunciativo promovem em seus ditos, marcas que são recuperadas e

relacionadas às vozes outras que serviram de âncora para o posto desvelado no discurso. Tal

olhar sinaliza para um discurso que é sempre múltiplo de vozes, mesmo quando nenhuma

marca restringe ou explicita essa voz.

Da subjetividade pessoal a plurissignificação do signo

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 225

Segundo os estudos desenvolvidos por Bakhtin, é possível observar que o sujeito se

constitui socialmente através de percepções individuais, as quais são organizadas por meio da

linguagem. Diante desse reconhecimento particular do mundo, depreende-se da obra de

Bakhtin, a percepção que tal autor dá aos fatores externos (culturais sociais, geográficos e

econômicos) na configuração de cada indivíduo. O autor discute em seus estudos que esse

processo de constituição individual é interativo, e que se dá por vias plurais e por

acomodações particulares. Desse modo, o filósofo da linguagem mostra em terrenos da

objetividade que a construção compreensiva do dito não poderá ser total se desconsidera o

singular que tais construtos condensam da particularização pessoal. Diante dessa constatação

evidencia-se as fissuras da língua autônoma e sua ineficiência em dar conta do holístico que

povoa a construção de um dito.

Diante dessa percepção interativa evidenciada por Bakhtin entre Sujeito e Língua,

pode-se compreender que o estudioso considera a língua em uso pela ótica da enunciação, em

que cada construção tem um Tu particular, o qual interfere na forma como o Eu vai

desenvolver seu discurso, fazendo de cada dito, um novo, pois não se é possível manter o

mesmo valor semântico-ideológico, visto que cada sujeito tem uma visão de mundo e valor

diferenciada.

A partir desse princípio subjetivo que envolve a língua, o estudioso Russo, afirma que

esse processo é materializado no contato da construção com o sujeito, mediante um processo

de representação/refração, segundo esse princípio, cada construção produz um efeito dentro

do processo de comunicação social, pois cada indivíduo possui uma base ideológica própria,

particularizada pelas relações de mundo de cada um.

Isto quer dizer que a compreensão da palavra no seu sentido particular

depende da compreensão da palavra no seu sentido particular depende da

compreensão da orientação que é conferida a essa palavra por um contexto e uma

situação precisos. “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um

sentido ideológico ou vivencial”. As formas linguísticas vazias de ideologia são

apenas sinais da linguagem. Por outro lado, não há interlocutor abstrato, pois não

teríamos linguagem comum com tal interlocutor. (MARIA TEREZINHA, 2008, p.

184)

Mediante a compreensão de que cada sujeito desenvolve do signo um sentido novo,

observa-se que a ideia de signo saussuriano não dá conta dessa multiplicidade de sentidos,

pois como é constatável atualmente a palavra, o enunciado, o discurso desenvolve um

propósito e um sentido sempre novo a depender da funcionalidade pretendida, pois um

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 226

mesmo evento poderá conter vozes, as quais poderão ser reveladas por uns e desconhecidas

por outros, desencadeando sentidos múltiplos e efeitos também plurais.

Com essa multiplicidade de sentidos que a palavra pode apresentar a partir da situação

comunicativa e de seus atores discursivos, os estudos do Círculo sinalizam as relações

axiológicas que circundam o signo, visto que todo ato de dizer implica em um juízo por parte

do locutor. Ou seja, tudo o que é posto em funcionalidade por meio da linguagem agrega um

olhar particular e valorativo do mundo. Com esse novo enfoque em torno do signo, Bakhtin

propõe o conceito de Signo Ideológico. Conceptualização que serve de base para toda uma

teoria do Discurso.

O que une Bakhtin a uma teoria do Discurso?

A proposta de estudo do Círculo bakhtiniano é inovadora e de larga contribuição

acerca da composição e funcionalidade da língua. No entanto, suas ideias demoram a serem

conhecidas e postas em atividade dentro de uma concepção linguística por diversos fatores.

Os mais significativos, decorre de ser uma abordagem que nasce dentro de um campo

literário-filosófico, proposta em que não há uma concepção autoral particular, estudo que é

tentado ao emudecimento mediante o silenciamento dos estudiosos em um cenário de guerra

civil. Diante desses embates, a proposta de Bakhtin não ganha a mesma força que é veiculada

ao estruturalismo na primeira metade do século XX.

No entanto, paralelo aos estudos da objetividade linguística, outros olhares começaram

a ser postos sobre o fenômeno Língua, indagando e sinalizando para fatores que integram e

determinam essa atividade. A pluralidade de enfoques proporcionou conhecer o objeto de

maneira que contemple a sua totalidade, visualizando todos os princípios que agem e

determinam sua funcionalidade. Toda essa multiplicidade teórica serviu para tornar conhecido

a multifacetada Língua e o quanto esta precisa de uma proposta de estudo que dialogue todos

esses olhares e permita uma interação com a língua de modo que seus usuários compreendam

toda a sua dinamicidade e poder.

É nessa perspectiva de integração teórica, se assim podemos conceituar, que a análise

do discurso se propõe a estudar as práticas de interação comunicativa. É conhecido, que nos

seus primeiros anos esta abordagem não se diferenciou muito de uma proposta conteudista,

pois suas análises pouco apresentaram acerca da participação social, das relações de poder,

dos interesses subjetivos, das interferências situacionais e contextuais. No entanto, nas últimas

décadas do século XX a Análise do Discurso com um viés Crítico adquiriu um olhar mais

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 227

pontual acerca da atualização da língua. Nesse período, os estudos do discurso passaram a

considerar que os sujeitos constroem seus ditos a partir de uma continuidade de vozes que o

travessa e determina o seu posto em funcionamento dentro de uma atividade de comunicação.

A partir dessa ininterrupção que marca a continuidade do discurso, é possível perceber a

influência que a teoria dialógica bakhtiniana desenvolveu na construção das bases filosóficas

dessa abordagem teórica. Para Bakhtin, a língua é uma atividade e produto que se integra

dentro de cada novo uso e que este processo é sempre irrepetível, visto que o sujeito é a soma

de outros, os quais estão sempre marcados no seu discurso através de suas escolhas, de seus

posicionamentos, enfim, da própria maneira de atualização discursiva.

Ancorada nessa concepção filosófica, a Análise Crítica do Discurso entende que a

construção discursiva seja o resultado de uma atividade, de uma ação social, a qual dialoga os

constituintes subjetivos e objetivos de uma Língua e os dos sujeitos-colaboradores, em que

cuja interação promulga um ato discursivo, o qual é efetivado com uma finalidade

sociocomunicativa.

Sabido que a Análise do Discurso é constituída em duas vertentes, as quais se

encontram em alguns pontos e se distanciam em outros, priorizamos nesse artigo, a

abordagem anglo-saxã de van Dijk. Ao delimitarmos os caminhos da Análise Crítica do

Discurso, podemos ver, nas análises das atividades linguageira, o quanto a proposta do círculo

é válida e como esta é posta em exercício dentro das pluralidades de interação comunicativa

da sociedade do século XXI. Na proposta de van Dijk, é possível perceber como o conceito de

subjetividade, de valor, de refração e de dialogismo de Bakhtin dão sustentabilidade a sua

abordagem.

Van Dijk (2012) desenvolve uma abordagem centrada a partir da subjetividade do eu-

enunciante. O autor discute que não é o espaço sociocultural por si mesmo que determinará a

produção e a interpretação do discurso, mas como esses espaços são representados

mentalmente pela cognição individual de cada sujeito. Com essa nova maneira de perceber a

construção do contexto, constate-se que esse é dinâmico e subjetivo. Tais princípios são

possíveis não porque a cultura ou a sociedade muda, mas porque o sujeito está imerso nessas

práticas.

Mediante essa subjetividade mental do contexto, van Dijk (2012) discute que o mesmo

ato discursivo, proferido no mesmo grupo sociocultural produzirá efeitos e compreensões

diversas diversificas, visto que nenhum sujeito tem os mesmos modelos mentais. O autor

também chama a atenção a respeito desse conhecimento por parte do locutor, o que o leva a

produzir um ato discursivo mediante os possíveis modelos de contexto de seus interlocutores

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 228

e portanto produzir um discurso que seja compreendido de modo pleno ou aparente pelo

interlocutor, tal ação dar-se-á mediante a intenção de quem enuncia. A isso afirma van Dijk:

Embora na maioria das formas de discurso entre membros de uma mesma

comunidade os modelos mentais sejam suficientemente semelhantes para garantir o

sucesso da comunicação, convém ressaltar que os modelos mentais incorporam

necessariamente elementos pessoais que tornam únicas todas as produções e

interpretações – e portanto tornam possível o mal-entendido – mesmo quando eles

têm muitos elementos socialmente compartilhados. Vemos, portanto, que a

compreensão do discurso envolve a construção, controlada pelo contexto, de

modelos mentais baseados em inferências fundamentadas no conhecimento. (VAN

DIJK, 2012, p. 93)

Como foi possível depreender dessa abordagem, não é suficiente no processo de compreensão

e produção discursiva, que os sujeitos dominem apenas a língua enquanto estrutura, mas que

sejam capazes de interagir com os modelos episódicos que constituem seus modelos de

contexto para assim conseguir alcançar o que é preestabelecido no posto linguístico, visto que

muito do que é intencionado não está marcado por meio da palavra, mas sim, recuperável

através das estruturas subjetivas do contexto.

Considerações finais

Como se constatou ao longo desse estudo, a língua foi objeto de vários estudos ao

longo de um século. Estudos que propuseram sempre um olhar inovador e revelador acerca

desse objeto. Ao priorizarmos o enfoque bakhtiniano, pudemos perceber o quanto sua

proposta é ampla e como busca dar conta da funcionalidade da Língua em seu exercício. Ao

tentar estabelecer um elo entre a proposta do círculo e Análise Crítica do Discurso, observa-se

o quanto os eixos daquela (representação/refração, dialogismo, axiologia do signo,

subjetividade, multiplicidade de sentidos) são incorporados dentro de uma perspectiva

contemporânea de compreensão e funcionalidade da língua. Dessa maneira, é possível

concluir que a proposta de uma análise do discurso tem origem com os estudos de Bakhtin,

embora limitada aos textos literários e ultimamente difundida através de um enfoque mais

linguístico, mas mantendo toda a base filosófica herdada do filosofo Russo e seu Círculo.

Referencias

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 229

VAN DIJK, Teun A. 1943- Cognição, discurso e interação; (org. e apresentação de Ingedore

V. Koch). – 7. Ed. São Paulo: Contexto, 2011.

VAN DIJK, Teun A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradutor Rodolfo

Ilari. – São Paulo: Contexto, 2012.

ELICHIRIGOITY, M. (2008). A formação do sentido e da identidade na visão bakhtiniana.

Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 181-206, 2008.

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– São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

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MUSSALIM, Fernanda. Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos, volume 3/

Fernanda Mussalim, Anna Christina Bentes, Organizadoras – 4. ed. – São Paulo: Cortez,

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PIRES, V; TAMANINI-ADAMES, F. (2010). Desenvolvimento do conceito bakhtiniano de

polifonia. On-line. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es/ >. Acesso em 16

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 230

QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO

ESCOLAR: DESAFIOS DO TRABALHO COM A IMAGEM [Voltar para Sumário]

Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB)

Considerações iniciais

Para Dionísio (2005, p.3), os recentes avanços tecnológicos têm oportunizado o

surgimento de novas formas de interação que implicam na necessidade de revisão e ampliação

das interações humanas e de alguns conceitos no âmbito do processamento textual e das

práticas pedagógicas que lhe são decorrentes, uma vez que imagem e palavra mantêm relação

cada vez mais próxima, cada vez mais integrada. As imagens, na sociedade contemporânea,

passam a compor o sentido dos textos juntamente com a modalidade escrita, deixando de

apresentar caráter meramente ilustrativo, não sendo raro “os casos em que textos visuais são

responsáveis pela sistematização de informações não contidas no texto escrito” (DIONÍSIO,

2006 p.21).

Com as facilidades do avanço tecnológico, recebemos grande quantidade de

informação veiculada pelos diferentes meios de comunicação que se utilizam de várias

linguagens no processamento textual. Precisamos, pois, atribuir sentido a textos constituídos

por linguagens variadas consubstanciadas em palavras, imagens, cores, gestos, entre outros,

que se integram na construção do sentido do texto. Consequentemente, temos a necessidade

de uma formação com mais ênfase na modalidade visual, mais focada no letramento visual,

ou seja, na comunicação e na recepção de mensagens visuais.

Essa tendência cada vez mais orientada para o visual com o uso de múltiplas

modalidades é uma marca constante da sociedade contemporânea e, consequentemente, do

contexto escolar – em nossas salas de aula. Mas, até que ponto essas modalidades são

exploradas de fato pelo seu caráter multimodal ou são meros pretextos para o uso da

modalidade dominante, na sala de aula, ou seja, a linguística?

Sabemos que, apesar desse atual contexto da sociedade contemporânea e do uso

intensivo da imagem pelos alunos fora do ambiente escolar (cartazes, entretenimento,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 231

publicidade, por exemplo) ainda é bastante questionada a sistematização de seu uso para fins

pedagógicos.

É no âmbito da compreensão desse novo paradigma linguístico que nos propomos a

apresentar, nesse trabalho, uma reflexão sobre o trabalho com o texto imagético na sala de

aula de Língua Portuguesa. Para tanto, objetivamos identificar o posicionamento de uma

professora do Ensino Fundamental sobre os desafios encontrados no uso desses textos

(imagéticos) em sala de aula.

Os dados considerados, neste estudo, referem-se a respostas de uma entrevista

semiestruturada a partir de tópicos como: contribuição da imagem para o ensino de Língua

Portuguesa; escolha da imagem; objetivo da aula a partir da imagem; participação dos alunos;

presença da imagem no livro didático etc., tópicos que visam caracterizar as representações

sobre seu agir docente.

Sob a orientação teórico-metodológica da multimodalidade e do contexto visual, este

trabalho apresenta três seções além desta introdução. Primeiramente, é apresentada uma

caracterização geral do fenômeno da multimodalidade focalizando alguns conceitos que nos

ajudarão na análise dos dados. Em seguida, apresentamos informações sobre o contexto dos

dados apresentados, interpretamos os resultados e, então apresentamos algumas considerações

finais trazendo para a discussão a necessidade de se compreender de que modo o trabalho com

a imagem é visto ou representado em contexto escolar.

Multimodalidade

Falar em multimodalidade não é somente falar em múltiplos modos de transmitir

mensagem e conhecimento através de fotografia, pintura, desenhos, gráficos, etc. A

multimodalidade também está na língua/linguagem, como afirma Kress e Van Leeuwen:·.

Linguagem, por exemplo, é um modo semiótico porque pode se materializar

em fala ou escrita, e a escrita é um modo semiótico também, porque pode se

materializar como (uma mensagem) gravada em uma pedra, como caligrafia

em um certificado, como impressão em um papel, e todos esses meios

adicionam uma camada a mais de significado. (Kress & Van Leeweun,

2001)

Assim, todo texto pode ser multimodal, mesmo que só tenha texto escrito. O simples

destaque do título, os usos de diferentes tipos de letras, tamanho e cor tornam qualquer texto

escrito multimodal.

A noção de multimodalidade das formas de representação que compõem uma

mensagem foi introduzida por Kress & Van Leeuwen (1996) na área da Semiótica Social,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 232

buscando compreender todos os modos de representação no texto linguístico. Sendo assim os

autores propõem que se pense numa linguagem constituída como multimodal, em que o

sentido advenha da relação textual estabelecida entre os diferentes modos utilizados para sua

constituição e não que se pense isoladamente em cada um deles.

A multimodalidade encontra-se, portanto, nas múltiplas linguagens que utilizamos em

situações de comunicação. Quando falamos, por exemplo, utilizamos, além da fala, gestos,

movimentos corporais, entoações, etc. que vão ajudar a construir o sentido do texto que

estamos elaborando. Na escrita, a multimodalidade ocorre quando temos o texto escrito

incorporado a uma imagem ou outra linguagem visual, como desenhos, fotografias, gráficos,

cores, etc. Em relação à manifestação escrita, a própria disposição da escrita no papel já é

considerada visual, conforme acentua Descardeci (2002, p. 20-21) “em uma página, além do

código escrito, outras formas de representação como a diagramação da página (layout) a cor e

a qualidade do papel, o formato e a cor (ou cores) das letras, a formatação, etc. interferem na

mensagem a ser comunicada.”

Dessa forma, a perspectiva da multimodalidade revela que a prática da leitura e/ou

análise de textos não deve se pautar somente na mensagem escrita, pois esta constitui apenas

um elemento representacional que coexiste com uma série de outros, como a formatação, o

tipo de fonte, a presença de imagens, tabelas, etc. Estes recursos visuais também constituem

formas de expressão do conteúdo do texto e nos orientam na condução da leitura, fazendo-nos

enxergar que os sentidos somente serão reconstruídos pela leitura eficiente do conjunto dos

modos semióticos presentes no texto e não, apenas, com base em uma única modalidade.

O ensino como trabalho: o professor como trabalhador

Pensar em uma conceitualização para o termo trabalho implica aceitar as condições

sócio-históricas subjacentes ao conceito. Machado (2007), com o propósito de explicitar a

concepção de “trabalho do professor” faz uma acurada explanação do assunto, tomando como

ponto de partida os motivos de discutir essa noção, explorando em seguida os diferentes

significados atribuídos ao termo até chegar ao valor que tem essa expressão atualmente. Dessa

forma, com base em Bronckart (2004) e Machado (2007) apresentamos nossa reflexão acerca

da concepção de trabalho do professor. Antes, porém, uma definição do termo trabalho

apresentada por Bronckart (2004/2006) apud Machado (2007, p.78) que define trabalho

como:

[...] um tipo de atividade ou de prática. [...] um tipo de atividade própria da

espécie humana, que decorre do surgimento, desde o início da história da

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 233

humanidade, de formas de organização coletiva destinadas a assegurar a

sobrevivência econômica dos membros de um grupo: tarefas diversas são

distribuídas entre esses membros (o que se chama de divisão de trabalho);

assim, esses membros se vêem com papéis e responsabilidades específicas a

eles atribuídos, e a efetivação do controle dessa organização se traduz,

necessariamente, pelo estabelecimento de uma hierarquia.

Nesse mesmo texto, Machado (op.cit., p. 78), afirma que tal definição é insuficiente

para que se compreenda o trabalho do professor. O trabalho do professor só emerge como

objeto de estudos no final da década de 90. Foi nesse contexto que a abordagem ergonômica

passou a ser empregada, como “um instrumento adequado para enfocar a complexidade da

atividade educacional enquanto trabalho e o real funcionamento do professor enquanto

trabalhador” (MACHADO, 2007, p. 90).

Um dos problemas apresentados por Bronckart (2006, p.203-204) para definir a

prática do professor é a sua relativa opacidade, ou seja, “a dificuldade de descrevê-lo,

caracterizá-lo e, até mesmo, de simplesmente falar dele.” Frente a essa realidade, Machado

(2007, p.93) defende que

O trabalho docente, resumidamente, consiste em uma mobilização, pelo

professor, de seu ser integral, em diferentes situações – de planejamento, de

aula, de avaliação -, com o objetivo de criar um meio que possibilite aos

alunos a aprendizagem de um conjunto de conteúdos de sua disciplina e o

desenvolvimento de capacidades específicas relacionadas a esses conteúdos,

orientando-se por um projeto de ensino que lhe é prescrito por diferentes

instâncias superiores e com a utilização de instrumentos obtidos do meio

social e na interação com diferentes outros que, de forma direta ou indireta,

estão envolvidos na situação.

A partir deste fragmento que caracteriza o agir docente, nos chama atenção a primeira

parte da definição apresentada pela autora (em função de nossos objetivos, enfocaremos tais

aspectos neste artigo) que situa o professor no interior de sua disciplina como alguém que cria

meios para a aprendizagem de conteúdos e para o desenvolvimento de capacidades a eles

relacionadas.

Na análise dos dados, apresentaremos segmentos de respostas dadas por uma

professora do Ensino Fundamental com relação ao trabalho com o texto imagético em sala de

aula. Tais respostas referem-se ao trabalho interpretado pela própria professora que comenta o

seu trabalho. Desse modo, ao analisar esses segmentos podemos identificar representações

sobre o trabalho para que possamos melhor compreendê-lo.

Contexto de realização da entrevista

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 234

O texto proveniente da entrevista semiestruturada, teve como participantes, uma

professora do Ensino Fundamental (participante da pesquisa) e esta pesquisadora e foi

produzido no dia 07 de janeiro de 2013 com tempo de duração de aproximadamente 07

minutos na residência da própria professora que concedeu a entrevista.

Esta pesquisadora é estudante de segundo ano de Doutorado, com experiência no

ensino médio e também superior, estando no momento afastada de suas atividades

profissionais para realização do Doutorado. Em relação à participante da pesquisa, a

professora é recém - graduada em Letras, cursando, atualmente, Especialização em Língua

Portuguesa e atuando em uma Escola da Rede Privada, no Ensino Fundamental. A escolha da

participante deu-se devido ao contato que a pesquisadora já teve com ela em virtude de ter

sido sua professora ainda no Curso de Letras, quando teve conhecimento do seu trabalho

(mesmo sem ter concluído o curso, a aluna já ministrava aulas, regularmente) que

contemplava a utilização dos textos imagéticos em sala de aula.

No que diz respeito ao conteúdo temático, foi utilizado o tema “o trabalho com a

imagem em contexto escolar”.

Sobre as respostas da professora

A entrevista, embora composta por seis questões, (ver Apêndice I) apresentou muita

repetição de informações, fato este que creditamos a forma de estruturação. Ou seja,

estruturalmente organizamos a primeira questão com um caráter de tópico “maior” no qual

buscávamos informações variadas para termos uma visão geral das suas impressões sobre o

trabalho, objetivávamos que a professora falasse o mais naturalmente possível e de forma

ampla como de fato o fez. As demais questões propostas, porém, elaboradas de forma mais

específica tendo em vista informações mais pontuais, apresentaram, pois, uma repetição do

que já havia sido tematizado na pergunta de abertura.

Para fins de análise neste trabalho, tendo em vista o objetivo traçado, nos deteremos

apenas na observação de três questões. Vejamos segmentos da resposta dada à primeira

questão ao perguntarmos sobre o trabalho com a imagem e a contribuição deste para o

desenvolvimento linguístico dos alunos:

Ex 1: primeiramente é preciso que eu diga que ensino numa escola

particular... e há uma cobrança muito maior/.../é:: em relação a tudo... então

uma das exigências, é a utilização da imagem ... eles acreditam/

coordenação/supervisão/que assim estão trabalhando de maneira moderna...

atual...não só o texto verbal/certo? mas aí... em um momento ou outro...no

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 235

fim das contas acabam exigindo um estudo mais formal/tradicional...

conteudístico/ digamos assim... o que gera uma contradição...é prá trabalhar

mas não é importante como conteúdo...entende? tem que cobrar outras

coisas... então... me colocando como educadora dessa escola é um desafio

defender esse trabalho/.../ mas vejo que isso não é um problema dessa escola

conciliar essas contradições é sempre um problema para nós professores.

A partir da análise do exemplo 1 acima percebemos que a professora não responde

diretamente à pergunta feita. Na sua fala é possível identificar que há entraves de ordem

institucional e/ou pedagógica que dificultam ou não favorecem o efetivo trabalho com a

imagem. Um conjunto de mudanças precisa acontecer no ambiente educacional para que o

texto multimodal seja efetivamente explorado.

Observamos, no exemplo, alguns segmentos que são usados pela professora,

claramente, para justificar a situação de desconforto vivida por ela individualmente, o que ela

remete a uma insatisfação comum a todos os professores – conciliar essas contradições é

sempre um problema para nós professores. Logo, há um conhecimento compartilhado e

cristalizado na classe dos professores. Percebemos ainda uma sensação de rotina de algo

“institucionalizado”- a professora justifica o seu agir como uma forma de agir já realizado por

outros e também reapropriado por ela.

O discurso está organizado em torno do estabelecimento de orientações genéricas para

a realização das atividades a serem a trabalhadas com os textos imagéticos. Demonstra

também como a professora tem compreensão das diretrizes escolares como normas explícitas

para o seu trabalho (isto claro... dentro dos métodos estabelecidos pela instituição escolar).

Semelhante ao que foi analisado acima, no exemplo a seguir, a professora procura

assinalar uma prática baseada em um discurso generalizante, sem considerar, no entanto, as

particularidades locais de sua realidade. A utilização do “é preciso” denota que a professora

dá sua opinião utilizando-se do coletivo demonstrando um caminho que julga necessário para

todos os outros professores.

Ex. 2: a interpretação do texto imagético requer certa prática, tanto da parte

do educador quando do aluno é um processo lento e o aluno quer entender de

cara às vezes consegue mas nem sempre/ é preciso que agucemos a

curiosidade deles nessa prática e a gente vai tentando até ... enfim

“O aluno quer entender [...] e às vezes consegue, é preciso que agucemos a curiosidade

deles [...] e a gente vai tentando”. Esse segmento nos faz refletir com Freitas (2005) que

destaca o fato de o perfil do aluno atual ser diferenciado e ressalta a necessidade de melhorar

a formação inicial e continuada dos professores. Podemos perceber que há uma lacuna, o

aluno quer aprender e o professor tenta ensinar, está posto que lhe falta formação e

direcionamento para tal. Ainda que as teorias da multimodalidade e dos novos letramentos

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 236

não tenham feito parte de nossa formação inicial ou continuada, somos cobrados quanto a sua

inserção em nossas aulas.

Na segunda pergunta objetivávamos saber sobre o seu objetivo ao preparar uma aula

de leitura a partir de uma imagem. O fragmento a seguir é ilustrativo da resposta à essa

questão:

Ex. 3: então:: o objetivo principal é que o aluno perceba que o texto não está

só na palavra... que como diria Vigotsky a palavra sem sentido não pode ser

considerada palavra... assim é com o texto não verbal/ não é qualquer imagem/

não é qualquer desenho que o aluno interpreta por isso que se deve ter

cuidado... uma imagem jogada sem nenhum objetivo não vai ter sentido

algum pra aquele aluno

Novamente o discurso da professora parece estar deslocado do contexto real no qual

trabalha e relacionado com um modelo teórico que deve seguir. Pudemos observar a presença

de um discurso bastante objetivo e impessoal considerando de forma superficial o contexto

em que atua.

Utilizando-se de fontes enunciativas (como diria Vigotsky), a professora determina

vozes que direcionam sua formação ou sua prática funcionando como uma orientação sobre a

atividade a ser realizada. Embora percebamos que há pouca correlação entre o que é citado e o

que foi perguntado – objetivo de uma aula com a imagem.

O exemplo seguinte servirá para ilustrar a preocupação da professora em apropriar-se

do discurso de alguém como forma de justificar ou associar seu próprio modo de agir.

Ex.4: apesar de trabalhar muito com o texto imagético acredito que ainda não

consigo trabalhar de forma concreta esse tipo de texto/na verdade nem sei

porque / é... que muitas vezes acabo desviando o olhar para os conhecimentos

conteudísticos, é um processo longo... /.../ recentemente muitos estudiosos

estão privilegiando essa ferramenta na sala de aula... segundo eles a imagem

ativa uma função muito importante para o intelecto do jovem ou

adolescente/.../ quem sabe... pensar num trabalho que estimule os alunos a

desenvolver melhor suas capacidades cognitivas...

Semelhante ao Ex.3, há novamente uma referência a fontes enunciativas (muitos

estudiosos) que estão associadas a sua prática e/ou formação docente orientando ou servindo

como uma base teórica a ser considerada no trabalho com a imagem. Percebemos claramente

neste fragmento a ausência de uma formação específica para o trabalho com a imagem no

momento em que a professora usa “nem sei porque”, demonstra pouca propriedade sobre o

tema com o uso de expressões muito genéricas.

Considerações finais

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 237

É preciso que a escola trabalhe de fato,com outras formas de linguagem e a

diversidade cultural para desenvolver outros letramentos nos estudantes. Como a

multimodalidade já está inserida no cotidiano dos estudantes, o diferencial na escola será a

promoção da consciência crítica, como interagir socialmente por meio de tais conhecimentos

em diferentes contextos e com diferentes objetivos.

Com base nos resultados ora apresentados e de maneira limitada, haja vista não

contarmos com outros dados, constatamos que a concepção da professora sobre o trabalho

com a imagem é, na verdade, aquilo que é desejado ou teorizado sobre tal trabalho, isto é,

algo que a professora encara como um discurso ou uma orientação a ser seguida e que

generaliza como válido para todos, como uma afirmação de verdade absoluta, definida, sem

permitir contestação. Isso nos fez perceber a postura de uma professora passiva sempre

agindo em conformidade com um “padrão” a ser seguido.

Nesta perspectiva, nossos resultados confirmaram a relativa opacidade que permeia o

trabalho do professor. Isto porque, entre outras coisas, o professor como um trabalhador,

qualquer que seja a profissão, carrega consigo representações sociais (coletivas) que as

internaliza de forma particular, reconfigurando essas representações sempre que necessário. A

dificuldade da professora em se implicar no discurso, observada em nossos dados, pode

revelar traços constitutivos dessa representação social confirmando quão enigmática e opaca é

a prática do professor.

A nosso ver, compreender o agir docente pelo discurso do próprio docente é

fundamental, especialmente porque pode nos apontar elementos constitutivos do seu trabalho

difícil de ser identificado por outro observador, por outro lado, permitindo que se analise o

trabalho do professor de forma mais ampla e fundamentada, neste artigo, especificamente, que

repensemos as práticas de realização do texto imagético em sala de aula.

Referências:

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano.

Campinas: Mercado de Letras, 2006.

DESCARDECI, M. Ler o mundo: um olhar através da Semiótica Social. In: Educação

Temática Digital. Campinas, V.3, n.2, 2002, pp. 19-26.

DIONISIO, A. P. Gêneros Multimodais e Multiletramento. In:

KARWOSKI,A.M.GAYDCZKA, B e BRITO,K.S (orgs). Gêneros Textuais reflexões e

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 238

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FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Letramento Digital e Formação de Professores. In: 28ª

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Kress, G. & Van Leeuwen, T. Multimodal discourse: The modes and media of contemporary

communication. London: Arnold, 2001.

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MACHADO, Anna Rachel. Por uma concepção ampliada do trabalho do professor. In:

GUIMARÃES, Ana Maria de Matos et.al. O Interacionismo Sociodiscursivo: questões

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J.A. [et. all.] Reflexões sobre a língua portuguesa: uma abordagem multimodal. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2007.

APÊNDICE 1:

Entrevista

1. Fale sobre o seu trabalho com o texto imagético em sala de aula e como este pode

contribuir para o desenvolvimento linguístico dos alunos.

2. Mas exatamente qual é o seu objetivo ao preparar uma aula de leitura a partir de uma

imagem?

3. Como você avalia a participação/recepção dos alunos nessas aulas?

4. O que você entende/adota como pré- requisito para escolher uma imagem para ser

trabalhada com seus alunos? Baseada em que você faz sua escolha?

5. Como são exploradas (ou não) as imagens no livro didático em suas aulas? Há alguma

orientação no livro didático para a abordagem desse tipo de texto ( o imagético)?

6. Sente que faz um trabalho satisfatório com este tipo de texto ou não? Por quê?

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 239

A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO

GÊNERO CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL [Voltar para Sumário]

Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ)1

1. Introdução

A pesquisa em cognição traz um suporte importante para o professor no trabalho com

o texto de gêneros literários, pois inaugura uma possibilidade de colocar o sujeito educando e

sua subjetividade no centro dos estudos cognitivos. O suporte da cognição e, mais

recentemente da metacognição, revela um trabalho focado nas intersubjetividades, emoções e

sentimentos que o texto desperta no aluno leitor. Por acreditar que antigas concepções de

ensino e parâmetros curriculares limitavam o papel do aluno na escola e questionarem isto,

promovendo novas reflexões, é que novos estudos surgiram, na área de cognição, e passaram

a pesquisar novas possibilidades de trabalho na sala de aula que valorizassem a figura do

aluno, enquanto aprendiz , assim como entender de que forma o indivíduo constitui-se,

posiciona-se em uma determinada prática e, enquanto aprendiz, ressignifica seu discurso,

como afirma Gerhardt (2006).

De todas as competências culturais, ler é, sem dúvida, a mais valorizada na sociedade,

então, cabe à literatura tornar o mundo mais compreensível, transformando o aspecto da sua

materialidade em textos com os quais convivemos, sobretudo, na escola. De acordo com

Cosson (2006), o letramento feito com textos literários proporciona um modo privilegiado de

inserção no mundo da escrita, pois conduz ao domínio da palavra a partir dela mesma.

Com relação a esse posicionamento acima, Cosson (2006) comenta a importância do

letramento literário baseado em textos de gêneros literários na escola, assim, o letramento

literário precisa da escola para acontecer. Para Zilberman (2003), o professor, ao promover

um letramento literário de qualidade no aprendiz, dá o direito para que ele, o educando,

experimente o texto literário e vá muito além da leitura, mas também que possa se apropriar

1 Mestranda de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 240

da literatura, tendo dela a experiência literária.

Nas discussões sobre o caráter plural da leitura do texto de gêneros literários, muitos

autores demonstram que a literatura exige uma leitura diferenciada, ou seja, que é preciso um

olhar que vá além da decodificação da escrita ali registrada, um olhar de percepções

múltiplas, de trocas de impressões partilhadas que o texto literário promove no leitor. Então,

se a leitura do texto literário dissemina sentidos variados, sugerindo amplas relações

dialógicas do texto com o leitor, é preciso haver um processo que valorize a importância do

trabalho com o ensino do texto de gêneros literários na escola, no sentido de capacitar o

aluno, através de atividades que possibilitem a ele um constante letramento literário.

Se consideramos a escrita como um processo que cabe à escola desenvolver nos

alunos, validando as intensas e diversificadas semioses que são produzidas por eles nas aulas

de língua materna, reconhecemos, com isso, que diversos tipos de conhecimentos são

acionados quando se parte para o ato de escrever e estão diretamente associados ao contato

que o sujeito teve e tem durante toda a sua vida com atividades que exijam dele leitura e

prática da escrita. Segundo Dahlet (1994), mesmo os escritores proficientes e profissionais no

campo da escrita admitem que escrever é um ato que exige muito trabalho e dedicação, sendo

uma atividade complexa que implica em relacionar as consciências linguística, cognitiva e

social.

Partindo da reflexão acima, privilegiamos o trabalho com o gênero crônica escolar, a

fim de situar o aprendiz e delimitar para ele as características sócio-comunicativas que tornam

um texto aplicável a este gênero, ou seja, deixar claro para o aluno que faz-se uso de um

determinado gênero de texto na tentativa de atender às necessidades da situação e de se

cumprir as funções sociais a que se destina, que no caso do gênero crônica escolar, está ligado

ao entretenimento, ludismo, humor, dialogismo e reflexão subjetiva do narrador frente a uma

problemática do cotidiano.

2. A crônica “escolar” e o valor da leitura da literatura

A justificativa para a questão do estudo do gênero crônica escolar, apoia-se na escolha

que se deu a partir da análise de currículos seguidos pelas escolas públicas do ensino

fundamental, do sexto ao nono ano no Estado do RJ. Juntamente à análise dos currículos, se

deu o estudo de livros didáticos mais adotados nas escolas neste segmento de ensino, em que

o gênero textual de maior destaque que ali é reproduzido é a crônica. No entanto,

percebemos que o tipo de crônica transcrito nos livros didáticos são os de natureza escolar, de

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 241

autores referência na escrita desse gênero, como Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony, Luis

Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes, Rubem Braga, Moacyr Scliar, Paulo Mendes Campos,

Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, entre outros.

Caracterizamos esse tipo de crônica com o adjetivo “escolar”, pois elas se associam e

se assemelham pelas condições de produção e meios de circulação em que são apresentadas.

Se pensarmos nos dias de hoje, popularmente, somente o livro didático e alguns poucos

jornais veiculam esses textos chamados de crônica, que é um gênero fronteiriço, que oscila

entre jornalismo e literatura, ficção e história, prosa e poesia. Mas a característica

predominante nos textos do gênero crônica reproduzidos nos livros didáticos de ensino

fundamental é a marca de um finalidade didático-moralizante que apela para reflexões sobre a

natureza do ser humano, suas atitudes e comportamentos frente a um fato da rotina, cotidiano

e que suscita inclusive, uma espécie de entretenimento.

O gênero crônica, ao longo dos tempos veio se corporificando numa escala histórica

que vai do uso documental, do registro de viajantes da época das grandes descobertas

territoriais pelo mundo afora, até o registro jornalístico de fatos do dia a dia, seja social,

esportivo ou filosófico. Ou seja, do pragmatismo histórico de Fernão Lopes ao singelismo e

humor de Millôr Fernandes, a crônica veio assumindo um formato que hoje a democratiza,

através de sua produção nos meios digitais, em que qualquer um pode se habilitar a escrevê-la

e ousar em publicá-la nas redes sociais.

Os textos de crônica costumam ser leves, de fácil compreensão, pois a linguagem

empregada beira às vezes a informalidade típica das conversas do cotidiano de qualquer

pessoa. São simpáticas, bem apreciadas, de textos com começo-meio-e-fim, bastante propício

à leitura em ambiente escolar e tantas vezes humorísticas, engraçadas e sutis, tornando um

fato rotineiro algo de grande valor existencial, como bem exploram os narradores reflexivos

nas histórias de crônicas. Esse caráter da narração reflexiva nas crônicas aproximam-as até

mesmo do texto opinativo.

Os jovens, no ensino fundamental, leem Literatura a sua maneira e de acordo com as

possibilidades que lhes são oferecidas. Sabe-se que fora da escola, ocorrem escolhas muito

aleatórias pelos jovens, que selecionam livros a partir de uma capa, do que se lê entre seus

colegas, bem como do número de páginas. Observando essas escolhas feitas pelos jovens, fora

do ambiente escolar, consta-se, assim uma desordem própria da construção do repertório de

leitura dos adolescentes. A ausência de referências sobre o campo próprio da literatura e a

pouca experiência de leitura – não só de textos de gêneros literários – fazem com que os

jovens leitores se deixem in-

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 242

fluenciar por detalhes nem sempre importantes de certos tipos de leitura, não pertencentes à

Literatura, enquanto objeto de valor. No entanto, também não se pode descartar totalmente

aquilo que os jovens vêm se interessando como leitura, pois a recepção, a reprodução e a

circulação da literatura via público-leitor não podem ser estudadas como um fenômeno

isolado das outras produções culturais, sobretudo na contemporaneidade desse mundo digital

e globalizado.

Eco (1993) também ressalta o caráter da Literatura como bem simbólico e que deve-se

apropriar dela a fim de que haja uma proliferação ilimitada de leituras que a obra pode

suscitar. A partir dessa consideração de Eco (1993), nos reportamos à escola como um lugar

de compartilhamento de impressões sobre um texto lido, pois é no ambiente escolar que o

texto, bem escolhido pelo professor, pode favorecer uma experiência literária de grande valor

para os aprendizes. Também o mesmo texto, quando bem explorado por um trabalho que vise

não mais a superficialidade textual, mas a profundidade do discurso literário ali inserido e

registrado, ele passa a ter um efeito de que se espera da Literatura na escola, isto é, integrar o

aluno ao discurso literário, através do seu contato que se inicie na leitura, passe pela

compreensão daquela obra, a sua contextualização frente ao momento literário que se quer pôr

em estudo e ultrapasse os múltiplos sentidos que se dá ao texto literário.

Por meio da leitura do texto literário, o polo da leitura por se constituir num terreno

fluido e variável, a partir dela, origina-se a concretização de sentidos múltiplos, originados em

diferentes lugares e tempos. Nesse raciocínio, hoje, a noção de texto se amplia. Segundo

Barthes (1988), o texto hoje se dirige a um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se

contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original. Esse argumento utilizado por

Barthes (1988) vem a reformular o que já havia tratado Bakthin (1981), ao desenvolver o

conceito de polifonia, chamando a atenção para a dimensão dialógica do texto, apontou para

sua pluralidade discursiva, que vai além dos limites da estrutura interna de um texto de caráter

literário, estendendo-se à leitura e, em seguida, á sua recepção e compreensão literária.

Bakthin (1981) e Barthes (1988) ressaltam a importância das vozes que cruzam um

texto literário e suas múltiplas impressões de sentidos a ele conferido pelo leitor. Também na

sala de aula, as conferências múltiplas de sentido precisam ser apontadas ao texto, no trabalho

com a valorização da leitura conferida pelo aluno aprendiz. O objetivo perseguido nas práticas

escolares é o de formar leitores críticos, e, para tal fato, os próprios documentos oficiais

curriculares das últimas décadas, como os PCNs, tem demonstrado uma preocupação nesse

sentido de promover uma leitura com maior fruição e desempenho.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 243

Qualquer produção de linguagem situada, oral ou escrita pode ser considerada texto,

porém, a propriedade mais básica de todo texto é a sócio-comunicativa, porque diz respeito à

função que o texto cumpre num dado contexto social. O contexto sociocultural em que o texto

se insere determina a construção de seu sentido, uma vez que, além dos aspectos lógico-

semânticos, envolve também aspectos cognitivos, pois “é no partilhar de conhecimentos entre

os interlocutores que o texto passa a fazer sentido” (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1983).

Partindo da reflexão acima, privilegiamos o trabalho com o gênero crônica escolar, a fim

de situar o aprendiz e delimitar para ele as características sócio-comunicativas que tornam um

texto aplicável a este gênero, ou seja, deixar claro para o aluno que faz-se uso de um

determinado gênero de texto na tentativa de atender às necessidades da situação e de se

cumprir as funções sociais a que se destina, que no caso do gênero crônica escolar, está ligado

ao entretenimento, ludismo, humor, dialogismo e reflexão subjetiva do narrador frente a uma

problemática do cotidiano.

2.1 Como a literatura é reproduzida em documentos oficiais e currículos

O que se tem observado é que esses mesmos documentos oficiais curriculares

apresentam uma característica que lhes é comum, ou seja, o fato de querer impor às escolas de

nível fundamental, um trabalho muito automatizado e limitado com a leitura, pois quando

falam de proficiência, só levam em consideração o formatação do aluno para que ele tenha

desempenho favorável em avaliações externas que, no fundo, não aferem nada além da

compreensão superficial de um texto, que muitas das vezes nem é um texto de gênero

literário.

A prática escolar em relação à leitura literária tem sido a de dar ênfase às atividades de

metaleitura, como o estudo do texto e seus aspectos históricos-literários, caracterização de

estilo, deixando, assim, em segundo plano o trabalho mais importante que é a leitura em si do

texto literário. O fato é que os jovens, somente inseridos em atividades de metaleitura, não

serão motivados a ler de forma integral. As tarefas produzidas a partir da metaleitura são

necessárias na escola, entretanto, não podem ser somente o único recurso ao trabalhar com o

texto de gênero literário.

Nesse aspecto, as atividades de metaleitura, ainda que importantes na escola, somente

fazem o aluno aprendiz a refletir sobre alguns dos aspectos da escrita, como organização da

língua e fatores ligados à história e à estrutura dos textos literários. Embora seja difícil fazer

com que os alunos, ainda não leitores, realidade clara em nossas escolas hoje,se interessem até

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mesmo pelas tais atividades de metaleitura. Parece, portanto, extremamente urgente motivá-

los à leitura dos textos de gêneros literários, promovendo atividades que tenham para eles uma

finalidade clara e não exatamente escolar, por exemplo, que ele se reconheça como leitor, que

compartilhe com outros alunos e o próprio professor, suas impressões de leitura do texto,

evitando a leitura de obrigatoriedade; ler somente porque a escola pede, transformando a sua

leitura numa obrigação, perdendo, com isso, o caráter do prazer de ler.

2.2 A posição do aluno aprendiz frente ao texto literário e os estudos na área de

cognição

Ao ser trabalhado com diversidade de atividades, a leitura de um determinado gênero

literário na escola acaba direcionando o aluno-aprendiz para o desenvolvimento de uma

conduta muito mais responsável e crítica em relação ao texto literário, como construir um

saber sobre o próprio gênero, bem como levantar hipóteses de leitura, perceber características

discursivas intrínsecas a um determinado gênero e até mesmo estratégias narrativas. Há nessa

perspectiva uma concepção cognitiva do uso que se faz da leitura na escola.

Com o desenvolvimento das pesquisas em ciências cognitivas, nos anos 90, surge uma

nova análise do processo de ensino aprendizagem, pois se passou a dar ênfase ao caráter de

natureza social e educacional do ensino de línguas com as quais o aluno tem contato no

ambiente escolar.

Apoiado nessa visão, o ensino de línguas ultrapassa a ideia de que elas seriam somente

“produtos sociais da linguagem” (SAUSSURE, [1916] 2001), atribuindo a elas a dimensão de

construtos semióticos, atingidos por valores identificados nas intersubjetividades em que os

indivíduos se envolvem cotidianamente em suas vidas, conforme afirma Gerhardt (2013).

Assim, essa visão cognitiva muito mais ampliada e focada na subjetividade do aluno,

situa-o no centro do processo de ensino e aprendizagem. O pensamento cognitivo, ao validar

os processos de subjetivação e as semioses que esse aluno constroi e desenvolve, aponta para

novas práticas didáticas que valorizem e reconheçam o aluno como um aprendiz, sobretudo ao

ressaltar a importância de seus conhecimentos prévios.

Ainda, segundo a opinião de Gerhardt (2013), questões como normatividade

(característica inerente à instituição escolar, existente por uma convenção social-histórica),

comprometimento conjunto e situatividade assumem papeis consistentes no novo cenário

educacional, ao mensurar o que significa ser um aprendiz e o que as situações de

aprendizagem significam para esse aprendiz. De posse dessa reflexão, conclui-se que a escola

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 245

ainda prende-se a uma visão muito institucionalizada, e que ao longo do tempo promoveu,

com suas antigas práticas, uma espécie de silenciamento do aluno, porque não reconhecia as

potencialidades cognitivas com as quais esse indivíduo educando chegava à escola.

Se o objetivo é, pois, motivar o aluno, levando em consideração suas habilidades

cognitivas, despertar nele o gosto para a leitura do texto literário e criar um saber sobre a

literatura, é algo que cabe à escola. O papel do professor como mediador das atividades que se

direcionem à leitura, é tarefa que deve permear o contexto das práticas escolares de leitura

literária.

Entretanto, o que é normalmente reproduzido pelos livros didáticos de Língua

Portuguesa no ensino fundamental, é o trabalho fragmentado do texto literário, servindo

apenas de pretexto para análises gramaticais normativas e que não promovem nenhum tipo de

reflexão em relação a própria linguagem. E como a leitura, na sua integridade se perde, em

função da fragmentação do texto literário, também esse modelo anula, em grande parte, a

própria natureza da leitura do texto literário. No trecho abaixo, Chartier explicita alguns

aspectos sobre a leitura do texto literário:

não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo,

inscrição num espaço, relação consigo e com os outros e a materialidade, segundo a

qual o texto é dado ao leitor, que contribui largamente para modelar suas

expectativas, além de convidar à participação de outros públicos e incitar novos

usos. (CHARTIER, 1994. p.16).

As considerações feitas sobre a leitura do texto literário na escola apoia-se também na

dimensão plural acerca da diversidade escolar que cada comunidade é inserida, pois cada

escola apresenta uma realidade, cada grupo de alunos se insere num determinado contexto

social e possuem saberes prévios bem distintos. Portanto, fica claro que não é possível

desenvolver um trabalho eficiente com os textos do gênero literário, se não houver a

conscientização de que não é possível admitir que a simples atividade de leitura seja

considerada a atividade escolar de leitura literária.

Refletindo sobre o leitor e o espaço que lhe é conferido pela escola pública, Geraldi

(1985, p.87) afirma que “no microcosmo da sala de aula (...) talvez sejamos nós, professores,

o melhor informante para nossos alunos. Rodízios de livros entre alunos, bibliotecas de sala

de aula, biblioteca escolar, frequência a bibliotecas públicas são algumas das formas para

iniciar este circuito”.

Para a execução didática eficiente de tal tarefa, que é o trabalho com o texto do gênero

crônica, é preciso levar em consideração atividades relativas ao ensino desse gênero,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 246

considerando os saberes prévios dos alunos, de forma a dotá-los de uma melhor capacidade

escrita, inclusive, promovendo uma possível consciência autoral no aprendiz. Essas atividades

têm um caráter de reformulação qualitativa no ensino de um gênero, a crônica, bem como

apostam no protagonismo autoral, literário e metacognitivo do aluno.

3. O trabalho didático com o gênero crônica “escolar” e as estratégias metacognitivas

Devido a seu traço dissertativo, ensaístico e opinativo, muitas crônicas convidam o

leitor a um posicionamento crítico a partir da situação abordada na narrativa. E esse aspecto é

o que mais chama a atenção nos textos de crônica inseridos nos livros didáticos. Tirando o

aspecto de base interpretativa a que as questões dos livros se agarram e que são somente

superficiais no trabalho com a linguagem, aproveitar esses textos de crônica escolar em

atividades que suscitem o uso das habilidades cognitivas e metacognitivas do aluno aprendiz,

passa a ter um valor didático bem mais aplicável e consistente, pois insere o aluno no contexto

literário, discursivo e linguístico.

Não só a leitura da crônica escolar, nesta abordagem, se torna importante, mas também

colocar o aluno frente a esse texto, confrontar os saberes prévios e conhecimentos individuais

que cada aprendiz traz consigo, arranjar e reformular questões linguísticas e gramaticais. A

produção escrita de um texto no formato da crônica escolar é outra atividade didática

fundamental, quando o aprendiz percebe a importância da sua escrita, como uma prática

social, bem como ele na prática escrita, melhora seu desempenho. Outra condição necessária

que se deve explorar é fazer com que o aluno enxergue a atividade escrita como uma prática

que se faz necessária para toda a sua vida e que a melhor saída é trabalhar o seu convívio com

ela da forma mais natural possível.

É preciso mensurar para o aluno o valor da escrita, pois é uma das formas do indivíduo

se fazer notado enquanto sujeito ativo na sociedade. Os próprios estudos linguísticos mais

recentes apontam para uma nova metodologia de ensino que considera essencial ter a escrita

como uma prática constante, como afirma Moita Lopes (1994). Com isso, a escola assume um

papel importante na orientação do indivíduo para a prática da escrita, ao encarar a escrita

como um processo, pois escrever é um processo que envolve inúmeras fases. A visão da

linguística a esse respeito nos demonstra que

A escrita é uma ativdade que envolve várias tarefas, às vezes sequenciais, às vezes

simultâneas. Há também idas e vindas: começa-se uma tarefa e é preciso voltar a

uma etapa anterior ou avençar para um aspecto que seria posterior (GARCEZ,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 247

2002,P.14).

Assim sendo, o processo de escrita da crônica por parte do aprendiz engloba também

uma atividade cognitiva sequencial e o uso de estratégias metacognitivas na produção dessa

escrita, podem ser traduzidas em etapas de arranjar, rearrumar a linguagem e construir um

significado para seu texto, isto é, para que ele assuma a condição de ser inserido num dado

gênero, como a crônica escolar. Neste momento, o aprendiz põe em ação uma consciência

metalinguística acerca de sua escrita e esta também é considerada uma habilidade

metacognitiva, pois a atividade metalinguística aparece pelas atitudes reflexivas e

intencionais na construção do texto.

Logo, o trabalho com o texto do gênero crônica escolar, baseado no uso de estratégias

metacognitivas, torna o aprendiz capaz de produzir esse gênero, compreendido a partir de sua

intencionalidade discursiva, suas condições de produção e suas peculiaridades linguísticas que

o tornam um texto dessa natureza. Consequentemente a isso, a escola assume a sua condição

de ensino natural e realiza a tarefa de trabalhar a escrita do indivíduo como um processo

gradual, desmistificando assim, a velha ideia de que escrever é um dom.

Conclusão

Apresentamos neste artigo um estudo com base nas pesquisas da área da Cognição e

Metacognição, aplicado ao trabalho do professor, em sala de aula, com o gênero crônica

escolar, que, configurada nesse padrão seria, portanto, uma narrativa breve com pouca tensão,

um texto ligeiro (no sentido de rápida leitura). Outro ponto importante para se entender este

tipo de crônica, muito publicada em nossos livros didáticos de Língua Portuguesa no ensino

fundamental, é o fato de sugerir grande aproximação entre autor e público, pois, conforme

afirma Candido (1992), “fala de perto ao nosso modo de ser mais natural”.

Neste trabalho, refletiu-se ainda sobre o ensino da crônica enquanto gênero literário

escolar e a aplicabilidade de uma proposta de intervenção em sala de aula do ponto de vista

cognitivo e que leve em consideração o aluno enquanto aprendiz, detentor de uma

subjetividade. Assim, a proposta aqui apresentada traz o aluno para o centro do cenário

educacional, priorizando as suas identidades situadas, a fim de compreender as formas como

esses aprendizes constroem significados múltiplos em relação à leitura do texto literário e a

sua consequente produção escrita.

Em suma, apresentamos, neste artigo, os saber (es) do aluno sobre o gênero crônica,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 248

como esses saberes se constroem individual e coletivamente no ambiente escolar, bem como o

que esse gênero pode representar para esse aluno, sobretudo por ser um gênero muito comum,

previsto pelos currículos escolares do 9º ano do ensino fundamental.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 250

LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS

MANUSCRITOS DE SAUSSURE [Voltar para Sumário]

Ana Paula El-Jaick

É comum se responsabilizar Ferdinand de Saussure pela paternidade da ciência da

linguagem, a linguística. O mais intrigante, contudo, é que o DNA era atestado em corpo

textual alheio. Afinal de contas, é sabido que foram notas de alunos, feitas durante cursos que

Saussure professava em Genebra, que fizeram nascer o Curso de linguística geral1 – ou seja,

não foi de próprio punho que nasceu a obra que o fez notório entre seus pares, pois o CLG é

um livro escrito depois da morte do autor, por Charles Bally e Albert Sechehaye, em 1916, a

partir das referidas anotações. Desse modo, é evidente a dificuldade de recuperar o

pensamento de Saussure (quer dizer, é difícil recuperar o pensamento de qualquer autor, mas,

no caso dele, isso se torna ainda mais crítico). Porém, a publicação de material que se

encontrava restrito à consulta na Biblioteca pública e universitária de Genebra, material esse

que vem a ser um conjunto de manuscritos descobertos em 1996 na estufa do hotel da família

de Saussure nessa mesma cidade, faz renascer o autor.

Antes de começar qualquer análise acerca dos manuscritos de Saussure, quero ressaltar

a grande beleza desses textos devido a seu sopro confessional: Saussure escreve com uma

mão hesitante, transbordando dúvidas. Nos manuscritos, então, vemos o mestre genebrino

tateando através da complexidade do objeto que elegeu para investigar; vemos o linguista

expondo (à sua revelia, visto que esse não era um material para ser publicado) suas dúvidas a

seus discípulos. Encontramos, assim, um Saussure em busca das “verdades fundamentais” da

linguagem humana; um Saussure buscando argumentos para fixar um ponto de vista legítimo

sobre a linguagem.

Nos manuscritos, conforme teorizaram os prefaciadores Bouquet e Engler, Saussure

percorre três campos de saber: uma epistemologia para essa nova ciência que é a linguística;

uma reflexão prospectiva sobre a disciplina linguística a ser ministrada em cursos de

1 Doravante CLG.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 251

graduação; e (o ponto a que mais darei destaque neste meu escrito) uma especulação analítica

sobre a linguagem que o próprio Saussure chamou, por vezes, de filosófica (Bouquet; Engler,

2002, p.12).

Previno então meus leitores de que, se avisei sobre a dificuldade da reconstrução do

pensamento saussuriano, por outro lado devo dizer que a novidade trazida pelos manuscritos

pode, também, ser profícua para se ler um Saussure, digamos assim, “pós” estruturalista, isto

é, para se ver um autor a partir de novo ponto de vista segundo o qual este já percebia

questões sobre a linguagem humana que foram postas tempos depois de sua ideia de língua

como sistema de signos. Nesse sentido, vou aproximar Saussure de dois desses autores (pós-

modernos), J. Derrida e L. Wittgenstein, para mostrar um Saussure que parece ter reconhecido

uma linguística inessencial – ou, nos termos de autores ditos pós-estruturalistas, uma

linguística discursiva, uma linguística do acontecimento, uma ideia de linguagem como forma

de vida.

De fato, pretendo trazer elementos dos manuscritos para se pensar em lampejos de

formulação por uma linguística saussuriana do acontecimento (entendendo acontecimento

como uma possibilidade de fixar a linguagem de forma apriorística, posto que ela acontece no

ato de fala). Isso se dá quando Saussure procura corrigir alguma tentativa de se pensar o

sentido como podendo ser apriorístico e material. Em vez disso, o que Saussure afirma haver

é um sentido sem lastro essencial; afinal, um elemento só diz seu valor diante de outros

elementos de mesma ordem. Além disso (questão que foi ressaltada exaustivamente por um

dos maiores comentadores de seus manuscritos, Loïc Depecker (2012)), e mais importante:

Saussure enfatiza em seus escritos que o valor deve ser entendido, antes de tudo, como tendo

um caráter social.

Os valores estão, logo, na diferença das relações entre os signos, na différence das

significações estabelecidas pelas relações entre os signos, “mais a atribuição anterior de certas

significações a certos signos ou reciprocamente. Há, então, antes de tudo, valores

morfológicos: que não são ideias e também não são formas” (Saussure, 2002, p.31). Isso quer

dizer que, num certo sentido, os valores não existem – pois sequer eles são a forma, já que

eles só existem na relação com outras formas. O que há é negação: a diferença das “figuras

vocais” (que, no CLG, são definidas como “imagens acústicas”) somadas à différence dos

sentidos valorados no sistema linguístico:

Todo o estudo de uma língua como sistema, ou seja, de uma morfologia, se

resume, como se preferir, no estudo do emprego das formas ou no da representação

das ideias. O errado é pensar que há, em algum lugar, formas (que existem por si

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 252

mesmas, fora de seu emprego) ou, em algum lugar, ideias (que existem por si

mesmas, fora de sua representação) (Saussure, 2002, p.32).

Podemos dizer, então, que, para Saussure, a língua é diferença: a língua é um “oceano

de diferenças” – a essência da linguagem é negativa, diferencial. Propositadamente lancei

mão do termo francês différence aqui para estabelecer uma relação no mínimo instigante com

outro francês – que, a rigor, veio a desconstruir Saussure: o filósofo da desconstrução Jacques

Derrida. É conhecido o jogo de palavras que Derrida faz com différance/différence. Derrida

joga esse jogo com o intuito de mostrar como essa diferença só acontece e pode ser percebida

na escrita, uma vez que, na fala, ela desaparece (a pronúncia da expressão francesa é a mesma

nos dois casos). Ele propõe, dessa forma, um novo conceito de escrita a que ele chama de

grama ou différance:2 “A différance é o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de

diferenças, do espaçamento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros” (Derrida,

2001, p.33). A différance é o jogo das diferenças que faz com que um elemento sempre remeta

a outro e, assim, nada mais haja que diferenças e rastros de rastros [trace]. De acordo com o

próprio Derrida: “A différance não é nem uma palavra, nem um conceito” (Derrida apud

Stone, 2000, p.88) – e, ouso dizer, é um herdeiro daquilo que Saussure rabiscou em seus

manuscritos. Então, ousarei dizer mais: a diferença saussuriana se aproxima da errância

derridiana, posto que as formas-sentido, os valores são erráticos, flutuantes:

1º Um signo só existe em virtude de sua significação; 2º uma significação só existe

em virtude de seu signo; 3º signos e significações só existem em virtude da

diferença dos signos (Saussure, 2002, p.37).

O que há, de acordo com Saussure, é diferença de formas e diferenças de significações

– ou seja, “coisas já negativas em si mesmas” (Saussure, 2002, p.42). Como já disse

repetidamente, meu objetivo aqui é atentar para esse Saussure pós-estruturalista que já previa

a necessidade de se ater ao emprego (vou deliberadamente chamar de uso) das formas – para

só então ser possível o estudo de uma língua. Realmente, Saussure afirma não haver formas

que pairam “fora do seu emprego” – eu diria: fora do seu uso. Pensar que haveria formas

materiais é quase como pensar na realidade da quadratura do círculo.

Pensar a língua em seu uso aproxima Saussure das perspectivas da linguagem

ordinária, que busca discutir os problemas centrais da tradição filosófica através da análise da

linguagem comum. Entre tais perspectivas encontra-se a do assim chamado segundo

2 “Obviamente, não se trata de recorrer ao mesmo conceito de escrita e de inverter simplesmente a dissimetria

que colocamos em questão. Trata-se de produzir um novo conceito de escrita. Pode-se chamá-lo grama ou

différance” (Derrida, 2001, p.32).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 253

Wittgenstein. Essa aproximação se torna ainda mais palpável quando pegamos a afirmação de

Saussure de que a forma fora de seu emprego é vazia e a juntamos ao aforismo

wittgensteiniano segundo o qual a linguagem fora de uso é “quando a linguagem entra em

férias” (Investigações Filosóficas § 38).3

Pensar a língua em seu uso também pode aproximar Saussure daqueles que entendem

a linguagem como presença – ou seja, a língua existe na efemeridade da pronunciação,

quando abrimos a boca para falar (uma vez, duas vezes, quinhentas vezes...). A língua não é

um ente concreto – para Saussure, a língua é (Saussure, 2002, p.35). Não há uma essência

para além da aparência da língua – as expressões linguísticas valem no uso que se faz delas.

Admitir que o objeto estudado pelo linguista só pode ser definido em seu uso é

também admitir que a delimitação das unidades linguísticas têm fronteiras, limites plásticos,

móveis. A questão da delimitação, de fato, recorre nos manuscritos saussurianos. Saussure

pretende delimitar unidades linguísticas – mas, para tal, é preciso que essa unidade seja

significativa: a unidade linguística, diz Saussure, só pode ser determinada por sua

significação. Não obstante, a significação só se dá pela diferença: “É a diferença que torna

significativo, e é a significação que cria também as diferenças” (Saussure apud Depecker,

2012, p.74). Não obstante, para que a unidade linguística seja significativa, é preciso verificar

seu valor: “É o próprio valor que fará a delimitação; a unidade não é delimitada

fundamentalmente” (Saussure apud Depecker, 2012, p.74).

Admitir que o objeto estudado pelo linguista só pode ser definido em seu uso é

também admitir que é no plano discursivo que ocorrem todos os tipos possíveis de mudança

com a linguagem – tanto modificações no plano gramatical, quanto no plano fonético etc.

(Saussure, 2002, p.86). Nessas modificações também se incluem os neologismos, pois é

apenas se pensarmos na língua como uma linguagem discursiva – falada de improviso – que

se faz possível produzir formas novas.

É claro que podemos vislumbrar certa equivocidade de Saussure nesta formulação.

Assim, ao mesmo tempo em que podemos concluir que as entidades reconhecidas como

elementos da linguagem, simplesmente, não existem, por outro lado, em outras passagens,

esses elementos (conforme também está presente no CLG) são da ordem da mente –

significado e significante (traduzidos por “significação” e “signo”, Saussure, 2002, p.22) são

entidades presentes em nossa consciência. Nesse sentido, na seção “II. Antigos Item”,

Saussure escreve: “A frase só existe na fala, na língua discursiva, enquanto a palavra é uma

3 Doravante vou me referir à obra Investigações Filosóficas como IF.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 254

unidade que vive fora de todo discurso, no tesouro mental” (Saussure, 2002, p.105, grifo

nosso). Vemos que a segunda parte do seu desenvolvimento (ou seja, “enquanto a palavra é

uma unidade que vive fora de todo discurso, no tesouro mental”) parece contradizer a

discursividade que o linguista havia formulado anteriormente.

Para além dos sentidos contrários passíveis de serem interpretados aqui, entendo que o

interessante é vermos um Saussure que se coloca perguntas – antes de afirmar uma teoria da

linguagem. Na parte intitulada “Nota sobre o discurso”, Saussure faz uma afirmação e uma

pergunta numa mesma frase: “A língua só é criada em vista do discurso, mas o que separa o

discurso da língua ou o que, em dado momento, permite dizer que a língua entra em ação

como discurso?” (Saussure, 2002, p.237)

Ele próprio esboça uma resposta em que podemos vislumbrar o linguista pensando em

voz alta. Ele responde à sua própria pergunta afirmando que os conceitos estão revestidos de

uma forma linguística no sistema. Porém, há um jogo através do qual tais conceitos formarão

o DISCURSO – e aí vem a pergunta: qual é esse jogo (Saussure, 2002, p.237)?

A resposta de Saussure é que a língua não tem substância, não tem matéria. Daí que as

“entidades” linguísticas não têm um fundamento absoluto. As entidades linguísticas são, tão

somente, “LUGARES de diferença”. A linguagem não é essencial; nada nela é da ordem do

necessário. Antes, estamos no campo da antimatéria; estamos no campo das possibilidades.

Afinal de contas, como Saussure reconhece: a língua é um objeto por demais complexo.

Referências

BOUQUET, S; ENGLER, R. “Prefácio”. In: SAUSSURE, F. de. Escritos de Linguística

Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.

DEPECKER, L Compreender Saussure a partir dos manuscritos. Tradução de Maria Ferreira.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

DERRIDA, J. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

SAUSSURE, F. de. Escritos de Linguística Geral. Organizados e editados por Simon Bouquet

e Rudolf Engler. Tradução: Carlos Augusto Leuba Salum; Ana Lucia Franco. São Paulo:

Editora Cultrix, 2002.

______. Curso de linguística geral. São Paulo, Editora Cultrix, s/d [1916]

STONE, M. Wittgenstein on deconstruction. In: CHARY, Alice & READ, Rupert (Orgs.) The

new Wittgenstein. London: Routledge, 2000.

WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Tradução: José Carlos Bruni. São Paulo:

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 255

Abril Cultural, 1975 (Coleção Os Pensadores).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 256

DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN

BLIXEN E ELENA FERRANTE [Voltar para Sumário]

Ana Paula Raposo (UFMG)

Na realidade editorial contemporânea, basta se folhear um livro para perceber que o

texto não se apresenta sozinho, existem aparatos textuais que o cercam. Esses aparatos se

encontram dentro e fora do livro, como aponta o teórico da Literatura Gérard Genette, em sua

obra Paratextos editoriais. Genette faz distinção de paratextos peritextuais e epitextuais: os

peritextos encontram-se na obra e os epitextos encontram-se fora da obra – geralmente, em

algum tipo de suporte midiático.

Neste ensaio, tento refletir sobre a imagem de escritora de Karen Blixen, a partir dos

epitextos, considerando também os postulados da crítica biográfica.

A sedução do arquivo

Durante anos, a crítica literária se ocupou em buscar o significado único e finito de obras

literárias. Até que o leitor ganhasse espaço nos estudos literários, as diversas correntes de

teoria e crítica literárias buscavam o sentido do texto tal que o autor desejava. Acreditava-se

então que o escritor guardava o segredo da obra.

Com o desenvolvimento de outros pensamentos teóricos, a pesquisa nos arquivos

mostra-se eficiente e sedutora. Sedutora, pois remete à promessa de se achar a origem da obra

literária, de se alcançar a 'real' intenção do autor, de se encontrar a verdade da obra literária,

desvendar o segredo que o autor guarda. A pesquisa nos arquivos será eficiente à medida que

tomarmos o arquivo como uma figura epistemológica, intercambiando outras práticas

disciplinares, como a arquivística, por exemplo.1

Para não cair na armadilha de desvendar os segredos do autor, é preciso estar ciente de

que o discurso que se contrói a partir deles não é linear, como deseja a historiografia. Dois

conceitos iluminam o caminho contrário ao caminho do discurso histórico: o conceito de ruína

1 MARQUES. O arquivo literário como figura epistemológica, p. 15.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 257

de Walter Benjamin e o conceito de resto de Giorgio Agamben, pois “constituem-se em

potência crítica do arquivo, evidenciando a não coincidência entre os fatos literários, os

documentos e materiais do arquivo, e as interpretações que se fazem dele”.2

Essencialmente, a crítica biográfica propõe o mesmo olhar crítico aos arquivos, para

que se evite a famosa questão: “A arte imita a vida? Ou a vida a imita a arte?”. Sobretudo nos

estudos do gênero biográfico, em que as discussões perpassam também pelos polos da

realidade versus ficção.3

Finalmente, é importante destacar que a pesquisa nos arquivos e nas fontes primárias

promove a interdisciplinaridade, além de problematizar “categorias canônica dos estudos

literários, tais como: texto, obra, autor, valor estético universal [...]”.4 A investigação dos

paratextos perpassa igualmente por essas categorias, é pensando nelas que oriento este ensaio.

O epitexto

Na década de 1980, Gérard Genette escreve Palimpsestos: a literatura de segunda mão, livro

em que cunha o termo paratexto. Nesta obra, Genette afirma que os paratextos “fornecem ao

texto um aparato (variável) e por vezes um comentário”5 e que são “espaços privilegiados da

dimensão pragmática da obra, isto é, da sua ação sobre o leitor – espaço em particular do que

se nomeia sem dificuldade, a partir dos estudos de Philippe Lejeune sobre a autobiografia, o

contrato (ou pacto) genérico.”6

Mais tarde, ao desenvolver o termo em Paratextos editoriais, Genette define o

paratexto como “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus

leitores, e de maneira mais geral, ao público”,7 constituído de nome de autor, título, prefácio,

ilustrações, notícias de jornais, resenhas etc. Mas não se trata somente de um lugar de

transição – se trata também de um lugar de transação em que se permite ao autor e ao editor

fornecer ao leitor informação e interpretação para “uma melhor acolhida do texto” e para

“uma leitura mais pertinente”.8 Esses limiares do texto – que convidam o leitor a manusear,

folhear e finalmente ler – abordam instâncias que são discutidas pela crítica literária.

2 MARQUES. O que resta nos arquivos literários, p. 199. 3 SOUZA. A crítica biográfica, p. 19-20. 4 MARQUES. O arquivo literário como figura epistemológica, p. 20. 5 GENETTE. Palimpsestos: a literatura de segunda mão, p. 13. 6 GENETTE. Palimpsestos: a literatura de segunda mão, p. 14. (grifo do autor) 7 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 9. 8 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 10.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 258

Enquanto o peritexto editorial se ocupa dos paratextos no livro, o epitexto “não se

encontra anexado materialmente ao texto no mesmo volume, mas que circula de algum modo

ao ar livre, num espaço físico e social virtualmente ilimitado.”9 Basicamente, os epitextos

públicos são os meios de que o leitor usa para tomar conhecimento de um livro, “uma

entrevista do autor – quando não por meio de uma resenha num jornal ou de uma

recomendação boca a boca [...]”. Tendo em mente que o paratexto adiciona comentário ao

texto e ajuda na circulação da obra, o epitexto talvez seja a potência que mais atinge o

público.

É preciso reconhecer que além dos epitextos públicos (entrevistas, conversas, debates

e colóquios etc.) Genette coloca outros elementos epitextuais como epitextos privados. O que

os distingue é a intenção de publicação, pois em razão do caráter íntimo dos diários e das

correpondências, elas não têm como destinatário final o público.

No epitexto público, o autor dirige-se ao público, eventualmente por meio de um mediador; no

epitexto privado, dirige-se primeiramente a um confidente real, percebido como tal e cuja

personalidade influi nessa comunicação, chegando a modificar sua forma e conteúdo.10

Dessa forma, a principal diferença é o destinatário dos epitextos. Nos epitextos

públicos, o destinatário nem sempre é o leitor, mas o público do veículo de comunicação em

que se publica a entrevista, por exemplo. Genette chama atenção para os fragmentos deixados

pelo autor nestes epitextos públicos, fragmentos de informação que adicionam comentário ou

modos de interpretação da obra. Uma afirmação do autor me parece relevante:

[...] o epitexto é um conjunto cuja função paratextual não tem limites precisos, e no

qual o comentário da obra se difunde indefinidamente num discuso biográfico,

crítico ou outro, cuja relação com a obra é às vezes indireta e, no caso extremo,

indiscernível.11

Os fragmentos encontrados no peritexto em que há reflexões do próprio autor sobre a

literatura e sobre processo de composição são os pontos fundamentais de que se vale a

pesquisa na crítica biográfica.12

Eneida Maria de Souza reforça essa ideia e afirma que este

tipo de pesquisa “desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o

9 GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 303. 10 GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 327. 11 GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 305. 12 FREITAS. O escritor e seu ofício em busca da Teoria da Literatura, p. 190.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 259

feixe de relações culturais”13

, uma vez que a crítica biográfica está entre a teoria e a ficção,

documento e literatura.

Voltada aos aspectos editoriais, a teoria de Genette estima, por vezes, as circunstâncias

publicitárias. Destaco a entrevista, neste caso, colocada pelo autor como um “jogo social” em

que a necessidade de se “lançar” a obra ao público se torna presente. Por esta razão, as

entrevistas com autores têm caráter descritivo, há necessidade de se fazer leitura de partes da

obra, descrever o enredo etc. Assim, pelo mesmo motivo, é possível identificar “clichês

intercambiáveis, estoque de questões típicas para o qual rapidamente constituiu-se um estoque

de respostas típicas [...]”.14

Aos romancistas, se pergunta principalmente sobre os traços

biográficos da obra ou sobre a existência de chaves na obra, por exemplo.

Gostaria de salientar que, apesar do cunho editorial/publicitário que se tem na obra de

Gérard Genette, a matéria-prima é a mesma para os estudos da crítica biográfica. Essas fontes

primárias podem ser um meio de se investigar a literatura, problemas sociais, as ligações

externas da produção do escritor etc., como também podem intermediar a Teoria Literária e o

objeto de estudo. Se pensarmos no gênero da entrevista, as teóricas Eneida Maria de Souza e

Rachel Esteves Lima acreditam que, uma vez que ela está fora do espaço privado, como o da

correspondência, por exemplo, o entrevistado assume um aspecto “performático”, que

contribui para a imagem e os mitos da instância do escritor.15

A imagem do escritor

No começo do século XX, os formalistas russos tentaram afastar do texto literário

aspectos como o contexto histórico, social e biográfico de um autor com a intenção de, na

teoria literária, estudar o texto a partir de valores puramente estéticos. No final da década de

1960, Roland Barthes com "A morte do autor" e Michel Foucault com "O que é um autor?",

impulsionados pelo formalismo russo, colocam em discussão o conceito de sujeito/autor. O

desaparecimento do autor desdobrou-se em propostas de noções literárias como autor ideal,

autor-indivíduo, função-autor, autor como leitor, leitor como autor etc. No entanto,

posteriormente à publicação de “A morte do autor”, Roland Barthes reconhece “a presença do

autor não mais como ausente do texto, mas na condição de ator e de representante intelectual

13 SOUZA. Crítica cult, p. 111. 14 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 318. 15 LIMA. A Entrevista como gesto (auto) biográfico, p. 41.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 260

no meio acadêmico e social.”16

Barthes recorre à psicanálise lacaniana, à semiologia e ao

teatro de Brecht para identificar o autor como sujeito crítico.

A partir do momento em que um autor assume a personagem de escritor, isto é, “uma

identidade mitológica, fantasmática e midiática”17

, as imagens deste sujeito são construída a

partir de diversas leituras, anacrônicas ou sincrônicas, aí incluídas também as imagens dos

autores ausentes ou mortos. O ponto central aqui é o deslocamento do autor, da assinatura de

uma obra para o escritor, figura intelectual e agente cultural. O autor constroi sua imagem

partindo do imaginário de escritor.

Me parece interessante somar à questão da imagem do escritor o uso de pseudônimo

pelos escritores, baseando-me na discussão que Genette promove no capítulo “Nome de

autor”. Acreditando ser o pseudônimo um possível espaço de criação de um escritor, Genette

afirma: “Claro está que o pseudônimo é uma atividade poética, e algo como uma obra. Se

você sabe mudar de nome, sabe escrever.”18

Portanto, para Genette, o pseudônimo pode ser

um modo de reforçar a autenticidade do autor, para enfraquecer ou contestar sua imagem. O

pseudônimo também atiça a curiosidade do leitor e Genette cita o estudo de Jean Starobinski

sobre o pseudônimo de Stendhal: “quando um homem se mascara ou adota um pseudônimo,

sentimo-nos desafiados. Esse homem se recusa a nós. E, em contrapartida, queremos saber.”19

Genette ainda sugere que o uso do pseudônimo pode ser um modo de distinguir a figura do

autor da figura do homem privado.

A contadora de histórias

Isak Dinesen é pseudônimo de Karen Blixen, escritora dinamarquesa que produziu ao

longo de sua vida uma série de contos e um livro de memórias, Out of Africa, que tem origem

nos anos em que a autora viveu na África, de 1914 a 1931. Hannah Arendt dedica um capítulo

à Blixen no livro Homens em tempos sombrios e sem delongas explicita que a condição de

escritora nunca foi de fato um desejo dela: “Ela ‘outrora nunca quis ser uma escritora’, ‘tinha

um medo intuitivo de ficar presa’, e qualquer profissão, por designar invariavelmente um

papel definido na vida, seria uma armadilha, escudando-a contra as infinitas possibilidades da

própria vida.”20

Enquanto Ezra Pound clama “Make it new!”21

, Blixen declara ser “uma

16 SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 116. 17 SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 116. 18 GENETTE. Paratextos editoriais, p. 53. 19 STAROBINSKI. Stendhal pseudonyme. Citado por GENETTE. Paratextos editoriais, p. 49. 20 ARENDT. Homens em tempos sombrios, p. 87. 21 COMPAGNON. Os cinco paradoxos da modernidade, p. 9.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 261

contadora de histórias e nada mais”,22

adotando técnicas romanescas, o que dificulta que seja

enquadrada em escolas literárias.

A entrevista que desenrola os fios investigativos de Hannah Arendt foi publicada pela

coletânea The Paris Review Interviews Writers, em 1977. À época desta entrevista, todas as

obras mais importantes já tinham sido publicadas nos Estados Unidos e em alguns países da

Europa, principalmente as duas obras que a estabelecem como escritora renomada: Seven

Gothic Tales (Sete Histórias Góticas) e Out of Africa (A fazenda africana).23

Usarei da

mesma entrevista, de Eugene Walters, para desenrolar meus próprios fios investigativos.

O entrevistador, Eugene Walters, abre a entrevista citando as lendas que surgiram nos

Estados Unidos da América acerca da escritora:

Ela é na verdade um homem, ele é na verdade uma mulher, ‘Isak Dinesen’ é na

verdade uma colaboração de irmã e irmão, ‘Isak Dinesen’ veio aos EUA na década

de 1870, ela é parisiense, ele mora em Elsinore, ela fica geralmente em Londres, ela

é uma freira, ele é muito hospitaleiro e recebe jovens escritores, ela é dificíl de se

ver e vive reclusa, ela escreve em francês, não, em inglês, não, em dinamarquês...24

Percebo que a especulação do, até então, misterioso escritor, também é agravada

devido ao pseudônimo. Enquanto os EUA criavam hipóteses, a imprensa dinamarquesa

procurava descobrir quem era o escritor dinamarquês que se recusava em escrever na língua

nativa. Destaco duas objeções relativas à recusa: a primeira, a recusa à imagem pública, nos

EUA; e a segunda, a recusa à identidade nacional, na Dinamarca. No caso de Isak Dinesen,

acredito que essas duas objeções tenham um fator comum: a possibilidade de liberdade de

escrita. Além disso, o pseudônimo masculino corrobora esta ideia. Principalmente ao

relacionar a recepção da primeira obra mais conhecida, Seven Gothic Tales, na Dinamarca: a

autora recebeu duras críticas como perversa e pervertida. 25

As formas narrativas de Dinesen se assemelham às formas de narrativas orais e,

pessoalmente, este é um dos aspectos mais encantadores em sua obra26

. Isak Dinesen escreveu

majoritariamente short stories, gênero que, de acordo com Walter Benjamin, “se emancipou

da tradição oral [...], que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa

perfeita vem à luz do dia a partir das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas”

22 ARENDT. Homens em tempos sombrios, p. 88. 23 Seven Gothic Tales é publicada nos EUA em 1934 e Out of Africa em 1937. 24 WALTERS. Isak Dinesen, p. 4. (Tradução minha.) 25 THURMAN, A vida de Isak Dinesen, p. 295. 26 Conferir DINESEN, Isak. The Blank Page. In: GILBERT, Sandra M; GUBAR, Susan. The Norton anthology

of literature by women: the traditions in English. New York ; London: W. W. Norton, 1985.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 262

27. Toda a sua obra é influenciada pela contação de histórias e a autora muitas vezes é

chamada de “Sherazade dinamarquesa”. Em um de seus contos mais belos, é feita referência

às mil e uma noites: “Certamente, eu já contei muitas histórias, muito mais que mil e uma”.28

Na entrevista, Dinesen declara que:

Mas antes, eu aprendi como contar (grifo meu) estórias. Porque, veja só, eu tinha o

público perfeito. Os brancos não conseguem mais ouvir uma estória contada. Eles

ficam impacientes ou sonolentos. Mas os nativos têm um ouvido manso. Eu contava

estórias constantemente, de todos os tipos. E todos os tipos de bobagens. Eu dizia

“Era uma vez um homem que tinha um elefante de duas cabeças...” e aí eles ficavam

ansiosos para ouvir mais. “Mas Mem-Sahib, como ele encontrou o elefante e como

ele o alimentava?”. Eles amavam essas invenções. Eu os encantava fazendo rimas;

eles não têm rimas, sabe, nunca as tinham descoberto. Eu diria coisas como

“Wakamba na kula mamba” (“a tribo Wakamba come cobras”), o que na prosa os

teria enfurecido, mas os divertia na rima. Depois, eles diziam “Por favor, Mem-

Sahib, fale como a chuva!”, e então eu soube que eles gostavam, porque a chuva lá é

preciosa para nós.

Sirvo do ensaio de Walter Benjamin para elucidar a predileção pelas narrativas orais. Acredito

que esta predileção esteja vinculada à experiência e à vivência, aos moldes benjaminianos.

Em diversas passagens de Out of Africa, a narradora nos mostra a importância da contação de

histórias, do calor da lareira, dos ouvidos atentos e da experiência compartilhada neste

momento. Ser “uma contadora de histórias e nada mais”, é dar conselhos, é preservar a

memória, é ser humana.

Acredito piamente que, dentre os fatores analisados, Dinesen buscava enfraquecer sua

imagem de escritora, fugindo da responsabilidade de ser uma representante da cultura, uma

intelecual, criando sua imagem como uma ‘simples’ contadora de histórias. Paradoxalmente,

um contador de histórias carrega a responsabilidade da memória coletiva e cultural – logo,

pressuponho que a afirmação de Dinesen é um modo de se desviar da imagem ‘pedante’ de

escritora, mas assumindo as mesmas responsabilidades.

A outra contadora de histórias

Elena Ferrante é pseudônimo de uma escritora napolitana, que publicou na década de

1990 sua primeira obra. Após o sucesso da primeira obra, adaptada para o cinema italiano

ainda em 1990, a escritora passou mais de dez anos sem publicar outra obra, à espera de cair

no esquecimento. Não se sabe a idade da autora ou seu nome verdadeiro, e da mesma forma

27 BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, p. 221. 28 GILBERT; GUBAR. Isak Dinesen, p. 1391. (Tradução minha)

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que o pseudônimo masculino de Blixen gerou especulações, Ferrante tem gerado na grande

mídia especulações similares às da Dinamarquesa.

Outro ponto de contato entre as escritoras é o alcance mundial depois das publicações

em língua inglesa mas teve sucesso semelhante. Em 2012 foi publicada em inglês pela Europa

Editions. Enquanto a recepção italiana não tem dúvidas de que é um homem, julgando ser,

Domenico Starnone, o público americano tem certeza de ser uma mulher. O crítico literário

James Wood publicou no The New Yorker, uma resenha defendendo que “honestidade brutal”

na escrita de Ferrante é pertentencente a um feminino a que um homem dificilmente chegará.

Numa entrevista recente, no entanto, Ferrante admite ser uma mulher.

Como a dinamarquesa Blixen, mais do que escritora, Ferrante diz que se vê como uma

contadora de histórias, em outra entrevista, todas dadas por e-mail e por intermédio de seus

editores, a escritora diz que: “O que escrevo está cheio de referências a situações e

acontecimentos que são reais e verificáveis, mas organizados e reinventados como se nunca

tivesse acontecido”.

O editor italiano de Ferrante, negou a ideia de que, numa Itália obcecada por

celebridades, o anonimato de Ferrante foi uma inteligente jogada de relações públicas. Diz

ele: "Não ter um autor significa que ela não ir na TV, não vai a festivais, não coleta prêmios,

então você não pode entrar em sua neles, que tipo de estratégia de marketing é issa?”. Mas

para alguns teóricos, essa é uma grande estratégia, datando inclusive das primeiras tradições

de pseudônimos masculinos usados por escritoras na era vitoriana. Michel Foucault, em “O

que é um autor?”, já havia dito que “o anonimato literário não nos é suportável; nós não o

aceitamos senão a título de enigma”.

A teórica Catherine A. Judd expõe outro ponto de vista no ensaio “Male pseudonym

and Female Authority in Victorian England”. Com o advento do pós-estruturalismo e,

principalmente, das teorias de Michel Foucalt, Judd analisa o pseudônimo masculino a partir

da revisão de teorias literárias feministas, nos anos 1990. Esse movimento desloca o olhar da

situação social em que as escritoras se encontravam para a coragem de resistir ideologias

hegemônicas dentro do mercado literário. Desta forma, a autora argumenta que o uso do

pseudônimo é uma forma de manipulação e de criação de mito de autoria, um meio de ter

vantagem na carreira literária. A autora refuta, desta forma, três pontos disseminados por

teóritcas como Elaine Showalter, Susan Gubar e Sandra Gilbert. São eles: a) a crença que o

mercado literário era preconceituoso, sendo necessário o uso do pseudônimo masculino; b) a

necessidade de proteção da identidade, principalmente pela desaprovação da família de que a

mulher tenha uma carreira literária e c) o consenso iniciado no século XX de que o

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 264

pseudônimo marcava androgenia, para que a mulher se sentisse “masculinizada antes de pegar

na caneta ‘fálica’”.29

Não tenho dúvida de que o pseudônimo foi também uma estratégia editorial para

Karen Blixen, mas para Elena Ferrante ainda é cedo para dizer.

Referências

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29 JUDD. Male pseudonym and Female Authority in Victorian England, p. 251.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 266

O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A

ÓTICA DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA

ANÁLISE DA VOZ DO NARRADOR E DAS PERSONAGENS

EM CONTOS MODERNISTAS [Voltar para Sumário]

Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE)1

Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE)2

Introdução

O estudo científico da linguagem humana possui dois sustentáculos: o formalismo e o

funcionalismo. Para o eixo formalista, a língua é uma estrutura autônoma, fechada em si

mesmo; em oposição, o eixo funcionalista concebe a língua enquanto fenômeno social, sendo

influenciada por fatores pragmáticos. Trata-se, portanto, de um mesmo objeto de estudo

investigado sob lentes distintas.

A Linguística Sistêmico-Funcional faz parte da corrente funcionalista da linguagem.

Foi proposta pela Escola de Sidney por Michael K. A. Halliday e seguidores. Trata-se de um

quadro teórico-descritivo embasado no uso linguístico. Ou seja, para esta linha de

pensamento, a gramática da língua não é desprezada bem como os fatores externos a ela (tais

quais os diferentes contextos de uso). Assim, tal arcabouço teórico serve-nos para análise de

textos pertencentes aos mais variados gêneros através da qual nossa comunicação é

concretizada.

O presente artigo busca analisar contos brasileiros: “Um ladrão” de Graciliano Ramos

e “O ladrão” de Mário de Andrade, associando-os à teoria proposta por Labov (1972) que

propõe uma estrutura para a narrativa, baseada na oralidade. O objetivo é, pois, investigar tal

estrutura e sua relação com as escolhas léxico-gramaticais, inseridos no sistema de

transitividade proposto pela Linguística Sistêmico-Funcional.

1 Graduando em Letras (UPE Campus Mata Norte). Pesquisador do CELLUPE – Centro de Estudos Linguísticos

e Literários e do Projeto ‘Língua em Uso em diferentes contextos sociais’ (LINUS – CELLUPE). 2 Professora Ajunto da Universidade de Pernambuco, Campus Mata Norte. Líder do Grupo de Pesquisa –

Centros de Estudos Linguísticos e Literários da UPE(CELLUPE). Professora orientadora do Projeto ‘Língua em

Uso em diferentes contextos sociais’ e coordenadora do Laboratório de Língua em USO - LINUS.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 267

Assim, pretende-se investigar como as escolhas léxico-gramaticais representam o

narrador e as personagens nos contos em questão e qual a relação dessas representações com a

linguagem literária. Feito isso, nos é possível a identificação das atividades humanas

expressas no supracitado gênero literário e da realidade que se retrata na e pela linguagem,

afinal, é através da linguagem que falamos de nossas experiências, de pessoas, objetos,

abstrações, sentimentos e relações existentes em nosso mundo exterior e interior.

A Linguística Sistêmico-Funcional e Transitividade: estabelecendo conceitos

A Linguística Sistêmico-Funcional (doravante, LSF), é uma abordagem proposta por

Michael K. A. Halliday cujos estudos iniciaram-se na segunda metade do século XX, sob

influência das pesquisas antropológicas desenvolvidas por Malinowski, ainda no início do

referido século. Conforme lembram Fuzer e Cabral (2014, p. 17), foi a partir de tais

investigações que a concepção de língua enquanto manifestação cultural primária de um povo

passou a vigorar dentro dos estudos científicos da linguagem. Assim, evidenciou-se a

intrínseca relação entre língua e contextos de usos.

Fuzer e Cabral (2014, p. 19) explanam acerca da colocação dos “termos ‘sistêmico’ e

‘funcional’ que caracterizam essa abordagem.” Isso porque, para a LSF, a língua é uma

organização de sistemas interconectados cujas funções nos servem para a edificação de

significados, revelando o nosso mundo, seja ele externo (físico) ou interno (psicológico).

Cometemos – ao utilizar a língua – várias escolhas diante das probabilidades

oferecidas por tais sistemas linguísticos. No mais, é funcional porque “explica as estruturas

gramaticais em relação ao significado, às funções que a linguagem desempenha em textos.”

(Idem).

O privilégio dos estudos da LSF é, segundo Souza (2006, p. 37), com os “produtos

autênticos da interação social, aos quais ela [a LSF] chama de texto.” Afinal, Para Halliday &

Mathiessen (2004, p. 3):

When people speak or write, they produce text. The term ‘text’ refers to any instance

of language, in any medium, that makes sense to some one whok nows the language.

To a grammarian, text is a rich, many-faceted phenomenon that ‘means’ in many

different ways. It can be explored from many different points of view.3

3 As traduções são de minha responsabilidade: Quando as pessoas falam ou escrevem, produzem texto. O termo

"texto" refere-se a qualquer instância da linguagem, em qualquer meio, que faz sentido para alguém que conhece

a língua. Para um gramático, o texto é um fenômeno multifacetado e rico que "significa" de muitas formas

diferentes. Ele pode ser explorado a partir de muitos pontos de vista diversos.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 268

É importante ressalvar que, dentro dessa abordagem, um texto – seja ele oral ou escrito

– é inserido em dois contextos (cultural e situacional). Ou seja, é produto da interação entre os

contextos de usos:

O contexto de cultura é a soma de todos os significados possíveis de fazer sentido

em uma cultura particular. Dentro do contexto de cultura, falantes e ouvintes usam a

linguagem em contextos específicos, conhecidos na lingüística funcional como

contexto de situação. A combinação dos dois tipos de contexto resulta em

semelhanças e diferenças entre um texto e outro. Os textos que acompanham uma

compra de cereais não são os mesmos em uma cidade do interior e em uma capital,

por exemplo. (SOUZA, 2006, p. 37)

A LSF é, portanto, uma perspectiva teórico-descritiva gramatical que busca, por meio

de análises textuais, evidenciar como, onde, porque e para que o homem usa a língua e, sem

refutar o contexto no qual o sujeito falante está inserido.

Quando utilizamos a língua, realizamos, inconscientemente, três funções simultâneas,

conforme Halliday & Mathiessen (2004, p. 29-30): a ideacional, a interpessoal e a textual.

Isso significa dizer que toda língua natural, no quadro da teoria sistêmico-funcional, cumpre a

com a finalidade de traduzir toda a experiência do mundo humano (exterior ou interior).

Os citados teóricos afirmam que todas as línguas dedicam-se a esta função,

denominada ideacional. Por meio dela compreendemos a língua enquanto representação.

Subdivide-se em duas: experiencial, responsável pela materialização da representação do

mundo do sujeito falante; e lógica, cuja responsabilidade se dá através das “combinações de

grupos lexicais” (FUZER e CABRAL, 2014, p. 33).

O sistema de transitividade, à luz da LSF, encontra-se apregoado à metafunção

ideacional da linguagem. Diferentemente da noção de transitividade proposta pela Gramática

Tradicional, através da qual o verbo é caracterizado pela presença – ou não – de um

complemento, a transitividade, para as teorias desenvolvidas no campo da LSF, “constitui-se

como um recurso léxico-gramatical para representar ações e atividades, construídas na

gramática (...)”, conforme esclarece GOUVEIA (2009, p. 30).

Todas as experiências vivenciadas pelos seres humanos – seja ela de caráter

psicológico ou físico – só são transformadas em construções linguísticas devido ao sistema de

transitividade. É importante salientar que todas as atividades, atos ou estados que envolvem

estas experiências são organizadas, dentro do sistema linguístico, em seis tipos de processos:

materiais, mentais, relacionais, comportamentais, existenciais e verbais. Por razões espaciais,

apresento de forma breve os conceitos que os norteiam.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 269

Os processos materiais são responsáveis pela materialização das experiências de

mundo externo dos participantes – Ator e Meta. São os processos do fazer, do agir, isto é:

“dão conta de mudanças no mundo material que podem ser percepcionadas, comprovadas,

vistas.” (Ibdem, p. 31).

Os processos mentais explanam as experiências de mundo interno (psicológico),

indicando afeição, cognição, desejo ou percepção. Envolvem dois participantes –

Experienciador e Fenômeno.

Os processos relacionais são responsáveis por promover uma relação entre dois seres

que se diferem. Usamo-la para caracterizar esses seres de acordo com suas características.

Esse tipo de oração classifica-se em: intensivas, possessivas e circunstanciais. Todas se

subdividem em: atributivas e identificativas.

Os processos comportamentais são usados para definir o comportamento humano

fisiológico. Estão entre os materiais e os mentais. O participante é o Comportante, podendo

haver o Comportamento.

Quanto aos processos existenciais, estes são responsáveis por representar quaisquer

coisas que existam ou ocorram. O participante é chamado de Existente, podendo ser um

humano ou objeto ou até mesmo uma ação.

Os processos verbais, por fim, dão norte ao dizer humano, constituindo o discurso de

um indivíduo. Geralmente, envolvem quatro participantes: Dizente, Verbiagem, Receptor e

Alvo.

A estrutura da narrativa na visão laboviana

A estrutura da narrativa é outra base teórica utilizada nesta pesquisa. Desenvolvida por

Labov & Waletsky em 1967, a teoria discute sobre a estrutura das narrativas orais. O

propósito desta pesquisa é, pois, unificar tal abordagem, estudando a estrutura genérica do

conto literário moderno, com base nos citados teóricos. Afinal, sabe-se que há uma forte

ligação entre a oralidade e a ficção modernista brasileira.

Labov (1972, p. 354, grifo do autor) propõe um estudo aprofundado do que ele intitula

“narratives of personal experiencce, in which the speaker becomes deeply involved in

rehearsing or even reliving events of his past.”4. Ou seja, as narrativas de experiência pessoal

são compreendidas como um meio de resgatar eventos situados no passado do narrador.

4 Tradução: narrativas de experiência pessoal, nas quais o falante torna-se profundamente envolvido na narração

ou mesmo nos acontecimentos revividos de seu passado.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 270

De acordo com o autor, a experiência revivida se dá “by matching a verbal sequence

of clauses to the sequence of events which (its is inferred) actually occurred.” (Ibidem, p. 359-

360).5

No tocante à estrutura da narrativa, é de amplo conhecimento que não há um consenso

entre os estudiosos, como aponta Hanke (s/a, p. 118), na delimitação de aspectos obrigatórios

de um texto narrativo. Na concepção laboviana, porém, uma narrativa completa possui: a)

abstract; b) orientation; c) complicating action; d) evaluation; e) result or resolution; f) coda.

(Labov, 1972, p. 363). Em termos gerais, sintetiza-se assim a estrutura da narrativa:

Abstract (Resumo) “Do que se trata?”

Orientation (Orientação) “Quem? Como? Onde? Quando? O quê?”

Complication (Complicação) “O que aconteceu?”

Evaluation (Avaliação) “E daí?”

Result (Resultado) “Qual o desfecho?”

Coda “Então, o que aconteceu?”

Quadro 01: A estrutura da narrativa proposta por Labov e Waletsky (1967)

Análise e discussão dos resultados

Nesta seção encontram-se os resultados dos dados fornecidos através do programa

computacional WordSmith Tools: quantidade de processos e sua distribuição ao longo das

narrativas analisadas. Foram observadas as escolhas léxico-gramaticais que representam o

narrador e as personagens nos contos em questão e qual a relação dessas representações com a

linguagem literária contida nos textos modernistas.

As tabelas e os gráficos (ver Anexo) evidenciam com clareza algumas particularidades

dos textos analisados: “Um ladrão”, de Graciliano Ramos, e “O ladrão”, de Mário de Andrade

(doravante T1 e T2, respectivamente).

Um olhar atento às escolhas feitas pelos narradores de ambos os textos, ao tecerem

suas respectivas narrativas, revelam os processos materiais como, de um modo geral, os mais

recorrentes ao longo dos contos. Entretanto, a razão pela qual esse fenômeno ocorre é bastante

diferenciada, levando em conta as entrelinhas das narrativas.

No Resumo dos textos ocorre o seguinte: em T1, a maior frequência dos processos

materiais aponta para um narrador onisciente preocupado em mostrar ao leitor que um ladrão

5 Tradução: pela combinação de uma sequência verbal de orações com a sequência de acontecimentos (que se

infere) efetivamente ocorreram.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 271

precisa de habilidades para realizar seu ofício, deixando claro que o protagonista não as tem.

Estas habilidades, portanto, se materializam na linguagem por meio de processos responsáveis

pela tradução do mundo físico, do fazer humano: “acompanhar”, “aventurar-se”, “andar”,

“cometer”, “entrar”, “pisar” e “correr”.

Em T2, são os comportamentais que surgem com certa recorrência: isso nos faz crer

que o objetivo do narrador onisciente é enfatizar o desespero das pessoas ao tomarem

consciência de que algo errado estava acontecendo na vila onde ocorrem as ações da

narrativa, atribuindo-lhes comportamentos humanos e criando um suspense na trama,

envolvendo o leitor sem que este perceba.

Na Orientação, em T1, o resultado encontrado é coerente com o que se esperava

encontrar, pois é nesta seção da narrativa que o narrador apresentará as personagens, os

espaços e o tempo das ações. Assim, é por meio dos processos relacionais – os mais

recorrentes – como “havia sido”, “era”, “tinha” e “estava” que o narrador classifica, indica ou

caracteriza os participantes envolvidos na oração.

Além dos relacionais, os comportamentais e materiais exercem uma função importante

na Orientação do primeiro conto. Tais processos explicita o modo como o ladrão age diante

da situação em que se metera. Os exemplos típicos desses processos foram: “esconder”,

“escutar”, “fixar” e “enfeitar” (comportamentais); mas também “andar”, “passar” e “mexer”

(materiais).

Em T2, porém, o resultado foi diferente: os processos materiais, seguidos pelos

relacionais, se destacaram no que concerne à frequência no texto. Isso ocorre porque, à

medida que vão surgindo, as personagens estão em movimento, realizando algum ato: “(...)

porém da mesma direção do moço já chegavam mais dois homens correndo.” (ANDRADE,

s/a, p. 32, grifo meu). Esse fenômeno atribui ao texto de Mário de Andrade uma

particularidade: movimento. A quantidade de personagens é maior que o conto de Graciliano

Ramos, afinal, na ânsia de ajudar a capturar o ladrão, as personagens saem de suas casas,

assustadas, e são reveladas aos leitores.

A Complicação, em ambos os textos, apresenta uma maior concentração dos

processos. Nos dois casos, os materiais se sobressaem. Percebemos, com isso, o valor de tais

processos na constituição dos textos narrativos. Eles exercem extrema importância, afinal,

traduzem as ações das personagens, trazendo dinamicidade à narração.

Em T1, não poderia ser diferente: os processos materiais funcionam como a força

motriz catalisadora do desenrolar da narrativa. Porém, os comportamentais registraram uma

considerável ocorrência. Tal acontecimento denuncia a função primordial de tais processos

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 272

numa narrativa ficcional, “emprestando um traço comportamental” aos personagens

envolvidos. (FUZER e CABRAL, 2013, p. 78).

Com a mesma notoriedade surgem os processos mentais presentes na Complicação,

em T1: revelam a percepção, dentre outros fatores, que o ladrão possui do mundo ao seu

redor. O narrador nos mostra um personagem consciente de suas ações, dissecando suas

afeições, sues medos e desejos:

Encolheu-se mais, olhou a janela do prédio fronteiro, imaginou que por detrás da

janela alguém o espreitava (...). De repente sentiu grande medo, pareceu-lhe que o

observavam pela frente e pela retaguarda, achou-se impelido para dentro e para fora

do jardim, a rua encheu-se de emboscadas. (RAMOS, 1985, p. 24, grifo meu).

Porém na Complicação, em T2, há mais processos materiais, seguidos de mentais e

relacionais. Além disso, apresenta um significativo número de processos verbais que ajudam

o narrador durante verbalização das personagens. Processos como “dizer”, “contar”,

“perguntar”, “responder”, “insultar” e outros dessa natureza reforçam o discurso direto

presente na obra.

Os processos materiais mais recorrentes aqui foram: “correr”, “recuar”, “abrir”, “virar”

e “ir”. Eles reafirmam o caráter de agitação e alvoroço que acomete as personagens cujas

nuances psicológicas são pormenorizadas através dos processos mentais, sendo os mais

usados “ver”, “querer” e “saber”. Os processos existenciais aparecem aqui com mais

frequência do que no conto anterior. Os mais comuns são “haver” e “ter”. Estes cumprem a

função de representar a existência de algo, nesse caso, um suposto ladrão que amedronta a

vizinhança de uma vila.

Na Avaliação dos contos analisados, a distribuição dos processos diverge: em T1, os

materiais sucedidos pelos comportamentais, relacionais e mentais são os mais recorrentes; ao

passo que em T2, os materiais, seguidos pelos relacionais, mentais e comportamentais são os

mais frequentes.

É preciso ressalvar que os processos materiais, em ambos os contos, na Avaliação,

permanece como fio condutor. Revela a indispensável habilidade do narrador ao apresentar o

mundo marginalizado, esmiuçando-o através da linguagem. Outro ponto importante é que,

durante a Avaliação, o narrador busca responder à questão “por que a história foi contada?”,

“O que a narrativa em questão tem de extraordinária?” ou “Por que ele merece ser narrada?”.

Em T1, por exemplo, o narrador está sempre buscando enfatizar o quanto o

personagem central é despreparado, carente e solitário. Além disso, ele nos mostra a

cosmovisão do ladrão, apontando alguns valores sociais e religiosos do personagem. Para

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 273

isso, recorre aos processos comportamentais e relacionais. “Desconfiar”, “reconhecer”,

“ouvir” e “mastigar” são alguns dos exemplos de processos comportamentais; “ser”, “ter” e

“ficar” são exemplos dos relacionais que constroem o significado na Avaliação.

Na obra marioandradiana, em T2, a Avaliação ocorre por outro motivo: o narrador

onisciente procura caracterizar os vários personagens que compõem o conto. Atribuí-lhes

nuances, identifica-lhes em termos de espaço e tempo:

Chegava o entregador da “Noite”, batia, entrava. Ela fazia questão de não ter criada,

comia de pensão, tão rica! Vinha o mulato da marmita pois entrava! E depois diz-

que vivia sempre com doença chamando cada vez era um médico novo, que tinha

só... quinze? Dezesseis anos? entrava, ficava tempo lá dentro. O jornaleiro negava

zangado, que era só pra conversar, senhora boa, mas o entregadorzinho do pão dizia

nada, ficava se rindo, com sangue até nos olhos, de vergonha gostosa. (ANDRADE,

s/a, p. 39).

Isso significa dizer que os processos relacionais são, oportunamente, usados pelo

narrador. “Ser”, “ter” e “estar” foram os mais recorrentes.

No Resultado e Coda, o narrador finalizará sua narrativa. Os processos materiais,

portanto, são notórios. É preciso informar as ações finais: o que aconteceu e como terminou.

Para isso, o narrador recorre aos processos capazes de traduzir nossas ações externas. Em T1,

“girar”, “fazer” e “voltar” são alguns dos processos materiais encontrados.

Além desses, no conto de Graciliano Ramos (T1), destacam-se os processos mentais,

seguidos pelos comportamentais. O caráter psicológico do conto ganha ênfase no Resultado e

Coda. O personagem central é acometido por lembranças, sonhos e desejos tão intensos a

ponto de colocar tudo a perder. “Pensar”, “sentir” e “lembrar” traduzem as vivências internas

do ladrão.

Em T2, o Resultado e Coda apresentam – além dos materiais “trazer”, “ir” e “pegar” –

os processos comportamentais, sucedidos pelos relacionais, são importantes na tessitura

textual. O suposto ladrão que causara pânico nos moradores passa a ser uma dúvida. Escapa à

lente do narrador. O que resta são personagens que se veem presos a uma casual

confraternização. O narrador, portanto, apregoa-se a esta situação inusitada e revela-nos, por

meio da linguagem, usando os processos comportamentais – como, por exemplo, “rir”,

“reunir”, “despedir” e “olhar” – e relacionais – como “ter”, “ficar” e “estar”.

Em suma, a investigação do uso dos processos em contos modernistas revela a

imprescindível relação entre os processos materiais e textos narrativos. Evidenciou-se, porém,

que processos comportamentais, relacionais e mentais são igualmente indispensáveis a tais

textos, uma vez que corroboram para a edificação de significados.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 274

Considerações Finais

A partir da distribuição dos processos nos textos analisados, é possível afirmar que as

escolhas léxico-gramaticais evidenciam comprometimento social, típico do modernismo

brasileiro, presente nas obras. Se no texto de Graciliano o narrador nos revela o retrato da

sociedade dentro da casa esmiuçada pelo ladrão, o de Mário de Andrade revela-se nos espaços

sociais que norteiam a obra: a vila, os vizinhos, as casas, as personagens.

A análise dos contos ficcionais, sob a ótica da transitividade, à luz da LSF, nos permite

concluir que podemos ampliar nosso olhar diante dos fatos linguísticos e, dessa forma,

aprofundarmo-nos cada vez mais nos textos, buscando responder como, por que, para quê o

autor realizou uma determinada escolha léxico-gramatical, sem desprezar os diversos

contextos que levaram a sua produção.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 275

Anexos

Material Mental Comportamental Relacional Existencial Verbal Total

Resumo 07 - 03 04 - 01 15

Orientação 10 11 16 22 06 03 68

Complicação 189 60 79 29 08 05 370

Avaliação 72 31 50 39 06 08 206

Resultado 36 13 08 02 01 01 61

Coda 02 02 - 01 - 02 5

Quadro 01: Distribuição dos processos no conto "Um ladrão" de Graciliano Ramos

Material Mental Comportamental Relacional Existencial Verbal Total

Resumo 03 01 04 01 - - 09

Orientação 22 01 04 12 - 01 40

Complicação 164 50 31 48 11 19 323

Avaliação 44 24 22 30 06 11 137

Resultado 30 06 12 09 - 02 59

Coda 03 - 01 02 - - 06

Quadro 02: Distribuição dos processos no conto "O ladrão" de Mário de Andrade

Gráfico 01: Distribuição dos processos no conto "Um ladrão" de Graciliano Ramos

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 276

Gráfico 02: Distribuição dos processos no conto “O ladrão” de Mário de Andrade

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 277

GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO?

CONTRADIÇÕES, DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO,

RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO SOBRE

EDUARDO CAMPOS [Voltar para Sumário]

André Cavalcante1 (UFPE)

1. Situando a discussão

Em 2014, no Brasil, estávamos voltando a nossa atenção às eleições

presidenciais, os presidenciáveis, debates políticos, alianças políticas, etc, que

desencadeariam no futuro da nação. Porém, no dia 13 de Setembro desse mesmo

ano morre tragicamente, em um acidente aéreo, o então presidenciável Eduardo

Campos, ex-governador do estado de Pernambuco. Muito se foi falado sobre esse

fato, notícias em telejornais, jornais virtuais e impressos, além também do

surgimento de muitos discursos nas redes sociais. Tais discursos perdura(ra)m um

longo tempo e por ter ocorrido muito próximo das eleições e também por se tratar

de alguém que almejava ser presidente e “não desistir do Brasil2” esses discursos

sobre Campos são dificilmente desvinculados dos dizeres sobre as eleições

passadas.

Hoje, se digitarmos seu nome no buscador Google, encontramos

cerca de 57 milhões de resultados, além das páginas do Facebook e Twitter.

Nesses textos, tsão encontradas diversos sentidos, sobre um Eduardo político,

sobre um herói ou até mesmo um “novo Eduardo”, discursivizado algum tempo

após a sua morte.3 Não pretendo, neste trabalho, falar sobre o sujeito empírico

nem sobre discursos de determinados órgãos ou personalidades brasileiras, mas as

1 Mestrando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE. É integrante do

Núcleo de Estudos em Práticas de Linguagem e Espaço Virtual (NEPLEV), também da UFPE e Bolsista

da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE). 2 Aqui parafraseio um dos slogans de Campos durante a fase que era um dos presidenciáveis. 3 Bem próximo da morte desse político, observei a repetição sobre um Eduardo Herói, que aparentemente

todas essas matérias diziam o mesmo e que a partir de um determinado tempo, a partir das contradições

inerentes à prática discursiva, esses dizeres sobre Campos ficaram mais diversificados. Nas análises,

aprofundarei esse tema.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 278

discursivizações sobre o ex-governador de Pernambuco quando do período

eleitoral de 2014. Focando nesses dizeres sobre esse sujeito, observarei

a construção discursiva que alça Eduardo Campos à herói, mas também outros

sentidos, contra/desidentificações, resistências a um sentido dominante, assim

como o funcionamento das noções Resistência e Memória, como são vistas na

Análise do Discurso de linha Pecheutiana. Portanto, faz-se necessário, explanar

brevemente sobre a teoria que nos dá suporte teórico-metodológico para esse

pesquisa.

2. Teorizações em torno da teoria materialista do discurso

O lugar teórico de onde falo, a AD, desde sua fundação, na França, por

Michel Pêcheux (1969), propõe uma nova forma de perceber a linguagem e traz

ao centro de suas discussões algumas noções deixadas de lado a partir do corte

saussureano: sujeito, sentido e história.

Uma vez que o paradigma dominante da época era o estruturalismo, essa

perspectiva teórica pretendia analisar a linguagem por outro viés que não a análise

conteudística, assim, o discurso torna-se o objeto de estudo dos analistas do

discurso. Portanto, para romper com os estudos acerca da linguagem na década de

60 do século passado, Pêcheux [1969 (2014, p. 79)] critica o modelo “reacional”,

representado pelo behaviorismo e ao modelo “informacional”, de Jakobson, e

define o discurso com “efeito de sentidos” (ib. idem, p. 81) entre interlocutores.

Visto que a ideologia que interpela os indivíduos em sujeitos do seu discurso, é

inevitável produzir discurso sem estar afetado por ela. É a ideologia que produz os

efeitos “lapalissade”, as evidências subjetivas e de sentido.

A evidência que constitui o sujeito é de base ideológica (via teoria

marxista) e inconsciente (psicanálise lacaniana). Através dos esquecimentos 1 e 2,

dos quais Pêcheux (1975 [2010, p. 161-162]) teoriza, o sujeito pensa ser origem

do seu dizer e que só existe uma forma de linearizar esse discurso. Essas são

ilusões necessárias para a prática discursiva, para tanto, também é produzida

impressão que o sentido é unívoco. Assim, a AD propõe que sujeito e sentido se

constituem mutuamente. Orlandi (2013) discutindo as bases da AD diz que

A ideologia [...] não é vista como um conjunto de

representações, como visão de mundo ou como ocultação da

realidade. Não há aliás realidade sem ideologia. Enquanto

prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação

necessária do sujeito com a língua e com a história para que

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 279

haja sentido. E como não há relação termo-a-termo entre

linguagem/mundo/pensamento essa relação torna-se possível

porque a ideologia intervém com seu modo de funcionamento

imaginário. São assim que as imagens que permitem que as

palavras “colem” com as coisas. Por outro lado [...] é também a

ideologia que faz com que haja sujeitos. O efeito ideológico

elementar é a constituição do sujeito. Pela interpelação

ideológica do indivíduo em sujeito inaugura-se a

discursividade. Por seu lado, a interpelação do indivíduo em

sujeito pela ideologia traz necessariamente o apagamento da

inscrição da língua na história para que ela signifique

produzindo efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a

impressão do sujeito ser a origem do que diz. Efeitos que

trabalham, ambos, a ilusão da transparência da linguagem. No

entanto, nem a linguagem, nem os sentidos nem os sujeitos são

transparentes: eles têm sua materialidade e se constituem em

processos em que a língua, a história e a ideologia concorrem

conjuntamente. (ORLANDI, 2013, p. 48)

Portanto, é a ideologia que guia toda a teoria do discurso, interpelando os

indivíduos à sujeitos e produzindo a impressão de sentido-lá, sentido posto.

Afetado por ela (a ideologia) é que ocorrem as discursivizações, mas para tanto é

necessário que os sujeitos inscrevam seus discursos em um domínio de saber, uma

Formação discursiva (FD), sendo ela “o que pode e deve ser dito” em uma

determinada conjuntura. (PÊCHEUX, 1975 [1990, P. 27]) A inscrição do dizer em

uma FD pode ocorre através de três tomadas de posição diferentes. Quais sejam:

A identificação plena (o bom sujeito): Quando há uma correspondência entre

o sujeito enunciador e a forma-sujeito da FD, o sujeito universal da FD, que

regula os dizeres que pertencem a esse domínio de saber; (PÊCHEUX, 1975

[2010 p.199])

A contra-identificação (o mau sujeito): ocorre quando “o sujeito da

enunciação ‘se volta’ contra o sujeito universal” (Idem, ibidem, p.199).

Ocorrendo, portanto, um questionamento, distanciamento, do sujeito

enunciador da Forma-Sujeito (Idem, ibidem. p. 199-200)

A desidentificação: nesta tomada de posição, o sujeito desidentifica-se

com a FD que estava inscrito para identificar-se com outra FD. Pêcheux diz

que não há dessassujeitamento, pois não há “fim das ideologias” (Idem, ibidem,

p.201).

Assim, o sujeito já, inconscientemente, produz sentidos que não são mais

permitidos na FD de onde ele enunciava anteriormente. No percurso da teoria,

essas noções foram revistas pelo próprio autor em uma fase de reconfiguração da

teoria. Na próxima sessão retornaremos à essa questão.

Nesse trabalho, iremos analisar, como já dito, como ecoam alguns sentidos

nos discursos sobre4 Campos, através da memória, assim como as tomadas de

posição e resistências dos sujeitos nas discursividades encontradas na rede. Uma

vez que foi apresentada brevemente nossa posição teórica, partiremos para

4 Aqui penso o “discurso sobre”, conforme Mariani. Irei apresentar essa noção nas análises.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 280

análise, lugar onde também teorizaremos outras noções que guiarão nossa

pesquisa.

3. O discurso sobre um herói ou a heroicização (temporária) ?

As discursividades que se materializam na rede surgem e desaparecem

com grande facilidade, e com pouco tempo outro assunto é o mais comentado do

momento. Por isso, nosso corpus está inserido numa temporalidade específica e

coincide com o período eleitoral para presidente do Brasil. Observaremos, como

já dissemos, o discursos sobre Eduardo Campos e as formas de se

contra/des/identificar com esses discursos, assim como o funcionamento da

memória nesses discursos e as possibilidades de resistência aos sentido dominante

sobre um (não)herói.

O discurso sobre foi trabalhado por Mariani em sua tese de doutoramento,

segundo a autora, eles

são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos,

portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da

memória. Os discursos sobre são discursos intermediários, pois

ao falarem de um discurso de (discurso-origem), situam-se

entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral,

representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo

de transmissão de conhecimentos, já que ao falar sobre transita

na co-relação entre o narrar, descrever um acontecimento

singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes

já reconhecidos pelo interlocutor [...] contribui na constituição

do imaginário social e na cristalização da memória do passado

bem como na constituição da memória do futuro. (MARIANI,

1996, p. 64)

No trabalho de Mariani, o corpus de análise são discursos jornalísticos

sobre o comunismo, que eram “autorizados” por uma instituição, situando o leitor

em relação aquele discurso, sedimentando uma memória do passado e do futuro,

cristalizando os sentidos sobre esse dizer. Em nosso trabalho, os discursos em que

tem Campos como herói, cujo efeito-fundador5 são os dizeres sobre ele, após sua

morte. Por um determinado tempo esses discursos apresentavam uma univocidade

5 Estamos chamando de efeito fundador as dicursivações produzidas a partir da acidente aéreo que

ocasionou a morte do Eduardo Campos, observando-o como um marco para os dizeres discursivizados a

partir de então. Aqui retomo a noção de discurso/ efeito fundador trabalhado por ORLANDI(1993),

porém, esse efeito não instaura efetivamente novos sentidos, mas reorganiza-os no fio do discurso como

um ponto de referência.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 281

de sentidos, provocados por uma repetibilidade de dizeres.

Nas sequências discursivas (SD) 1 e 2, traremos recortes de matérias sobre

esses discursos.

SD1. Eduardo Campos é enterrado aos gritos de "guerreiro do povo brasileiro"6

SD2.Mais de cem horas após o acidente aéreo que resultou na morte de Eduardo

Campos e de mais seis pessoas, o corpo do ex-governador de Pernambuco foi

enterrado há pouco ao lado do avô, Miguel Arraes, no Cemitério de Santo

Amaro, em uma sepultura simples, sem luxo, rodeada apenas de flores e placas de

mármore com identificação. Fogos de artifício e gritos de "Eduardo, guerreiro

do povo brasileiro" marcaram o encerramento da cerimônia. 7

Em SD1, título de uma matéria de um site, trazendo o discurso do outro

através das aspas, marca o olhar de alguns sujeitos em relação ao político

pernambucano, as identificações com seu discurso e muitas vezes uma filiação

àquela redes de sentidos produzidas por esse sujeito. Tal fato chamou a atenção da

grande mídia que cobriu várias matérias a esse respeito, muitos outros políticos

estavam presentes na cerimônia e a partir da morte dele, muitos discursos foram

produzidos, sobretudo, nas redes sociais. Muitos lastimosos e outros produzindo

sentidos outros, apagados pelo uníssono que ainda ecoava e produzia sentidos:

“Eduardo, Guerreiro do povo brasileiro.”. Esses discursos iam se repetindo, se

repetindo, até produzir um efeito de sentido único, mas que se ligava também a

outra memória, como em SD2.

SD2, além de ser produzida dentro de uma mesma formação discursiva

que SD1, FD18, repetindo também os gritos produzidos no velório de Campos,

como se fosse dizeres importantes a serem divulgados naquela época, também traz

6 Outras matérias de mesmo funcionamento. Eduardo Campos recebe em funeral homenagem de

'um guerreiro'postado em 18/08/2014 00:12 / atualizado em 18/08/2014 07:30 e Sob gritos de

"guerreiro do povo brasileiro", corpo de Campos é enterrado da

http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-08/sob-gritos-de-guerreiro-do-povo-brasileiro-

campos-e-enterrado-no-recife em 17/08/2014 18h55

http://jovempan.uol.com.br/noticias/brasil/politica/eleicoes2014/eduardo-campos-e-enterrado-aos-

gritos-de-guerreiro-do-povo-brasileiro.html 17/08/2014 18h43 - Atualizado em 17/08/2014 19h06 7 Recorte extraído de http://jovempan.uol.com.br/noticias/brasil/politica/eleicoes2014/eduardo-campos-e-

enterrado-aos-gritos-de-guerreiro-do-povo-brasileiro.html 17/08/2014 18h43 - Atualizado em

17/08/2014 19h06 8 Aqui, de forma metodológica, estamos chamando FD1 os sentidos produzidos sobre Eduardo Campos como herói.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 282

o nome do avô “Miguel Arraes”, evocando a memória do parentesco entre os dois

pernambucanos.

É importante distinguir memória da noção de interdiscurso, ambas

trabalhadas na AD, para tanto, traremos Indursky, refletindo sobre esses temas,

aponta:

A reflexão sobre memória sempre esteve presente no quadro da Teoria

da Análise do Discurso, muito embora, nos textos fundadores, esta

nomeação ainda não tivesse tido lugar. Pensava-se sobre memória,

mas sob outras designações, como, por exemplo, repetição, pré-

construído, discurso transverso, interdiscurso. Estas noções foram

formuladas no âmbito da Teoria da Análise do Discurso e encontram-

se reunidas em Semântica e Discurso (Pêcheux 1975[1988]). Todas

remetem, de uma forma ou de outra, à noção de memória. Mais

exatamente, trata-se de diferentes funcionamentos discursivos através

dos quais a memória se materializa no discurso. Portanto, a memória já tinha sido trabalhada em Les Vérités de la Palice

9,

porém pensada através do funcionamento de outras noções, ainda, para a mesma

autora, (idem, p. 70-71)

uma característica essencial da noção de memória tal como ela é

convocada pela AD: o sujeito, ao produzir seu discurso, o realiza sob

o regime de repetibilidade, mas o faz afetado pelo esquecimento, na

crença de ser a origem daquele saber. Por conseguinte, a memória de

que se ocupa a AD não é de natureza cognitiva, nem psicologizante. A

memória, neste domínio de conhecimento, é social. E é a noção de

regularização que dá conta desta memória. [...] se há repetição é

porque há retomada / regularização de sentidos que vão constituir uma

memória que é social, mesmo que esta se apresente ao sujeito do

discurso revestida da ordem do não-sabido. São discursos em

circulação, urdidos em linguagem e tramados pelo tecido sócio-

histórico, que são retomados, repetidos, regularizados.

Assim, pela repetibilidade de sentidos vindos do interdiscurso, eles são

regularizados no fio do discurso, constituindo uma memória social, sentidos são

retomados, a fim de constituir um imaginário cristalizado sobre algo, como

sempre estivesse presente. Podemos ver a memória do parentesco de Eduardo

Campos com Miguel materializada textualmente nos discursos sobre esse político,

Campos, na SD2 “enterrado há pouco ao lado do avô, Miguel Arraes”. Na

SD3, essa mesma memória é trazida, porém de forma imagética e verbal.

9 Tradução brasileira: “Semântica e Discurso”.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 283

SD3.

10

Aqui se trata de uma homenagem encontrada em diversas cidades de

Pernambuco em que há a fotografia do avô e do neto, ambos ex-governadores de

Pernambuco. Nessa SD, a posição das fotografias provoca uma impressão de

continuidade, como se um seguisse plenamente o passo dos outros, um sucedendo

o outro11

, e mesmo que eles tenha falecido, “os sonhos não morrem jamais”,

dando mais ima vez um efeito de que há algo a ser continuado, um sonho. Ainda

conforme Indursky, “se a memória discursiva se refere aos enunciados que se

inscrevem em uma FD, isto significa que ela diz respeito não a todos os sentidos,

como é o caso do interdiscurso, mas aos sentidos autorizados pela Forma-sujeito

no âmbito de uma formação discursiva” então, esses dizeres fazem parte do que se

pode/deve dizer na FD1. Quando um dizer não se inscreve em um domínio de

saber, a forma-sujeito não dá conta mais de regular todos aqueles saberes que

deveriam/poderiam ser enunciados, consistindo em outra tomada de posição, a

desidentificação, dessa maneira, esse sujeito-enunciador já se identificou

(inconscientemente!) com outra FD e sua respetiva forma-sujeito, como

percebemos em SD4.

SD4. Me assusta muito um cara como Eduardo Campos tornar-se mártir

politico agora... Muitos Brasileiros, principalmente os nordestinos, demonstram

uma grave incoerência no tratamento desta tragédia. Falando de politica e

10Imagem encontrada no Google imagens a partir da chave “Outdoor Eduardo Campos”. 11 Não é difícil encontrar eleitores que associam a figura de um ao outro, como se fossem semelhantes,

ambos heróis.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 284

administração publica, Pernambuco é um estado jogado as traças! Fora a orla e

poucos metros em entorno das avenidas praianas, que também não é nada além do

mínimo, medíocre e sujo, Pernambuco não tem nada! É um estado lindo por

natureza, porém carece de tudo! Não tem um serviço descente! Não tem

segurança, não tem educação, não tem saúde, não tem transporte, não tem

saneamento, nada.

Se você acha que em são Paulo tudo é ruim, pergunta pra quem morou lá como é

que funciona. Enfim: Também sinto muito pelas vidas que se perdem de maneira

tão trágica e entendo a repercussão, claro, devido a ilustre vitima: O

presidenciável Eduardo Campos. Mas, menos, menos... Bem menos Brasil... Não

se iluda meu povo. Guerreiro mesmo é você!

Neste comentário, comentário da matéria da SD2, além do sujeito

inscrever seu dizer em outra FD, a FD2, onde outros sentidos são permitidos,

sentidos que negam a imagem de Eduardo Campos como herói, percebemos

também a resistência, pois havia nesse restrito tempo, anterior a algumas notícias

sobre (possíveis) improbidades políticas de Campos surgirem, poucos resistências,

nas redes, à construção discursiva de heroicização desse político. Ao inscrever o

discurso em outra FD, há uma

possibilidade de, ao se dizer outras palavras no lugar daquelas

prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos já esperados. É

resignificar processos interpretativos já existentes, seja dizendo

uma palavra por outra, seja incorporando o non sens, ou

simplesmente dizendo nada. (MARIANI, 1996, p. 24)

Os sentidos dominantes próximo do fatal acidente aéreo, repetiam sentidos

de um herói memorável, assim como o avô, Arraes. Os sentidos mais esperados

eram os que ratificavam esses dizeres, porém, outras discursividades rompiam

com esses dizeres, dizendo: “Me assusta muito um cara como Eduardo

Campos tornar-se mártir politico agora...” Ou, “Pernambuco não tem... um

serviço que preste.” Portanto, não se deveria iludir-se pois, “guerreiro é você

mesmo”. Essas marcas linguísticas, materializam sentidos outros e, como dito,

resistências, possíveis pelos furos/brechas na língua. Para Pêcheux,

Apreender até seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual

supõe reconhecer que não ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas,

“uma palavra por outra” é a definição de metáfora, mas é também o

ponto em que o ritual se estilhaça no lapso (e o mínimo que se pode

dizer é que os exemplos são abundantes, seja na cerimônia religiosa, no

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 285

processo jurídico, na lição pedagógica ou no discurso político...). (Idem,

ibidem, p.278)

Essas falhas na interpelação e a impossibilidade de uma forma-sujeito

homogênea, fazem Pêcheux produzir algumas retificações no percurso da teoria,

observando que as resistências ocorrem na/pela língua, através das “quebras de

rituais”, pelo “questionamento de uma ordem”, etc. (PÊCHEUX, 1990, p.17) Para

tanto, necessita-se duas coisas: “ousar se revoltar” e “ousar pensar por si mesmo”

(PÊCHEUX, 2009, p.281)

4. Tentativa de um efeito-fecho

Observamos, então, que um fato, em termos discursivos, pode ser

interpretado como efeito fundador, podendo produzir diferentes filiações de

sentidos. Assim,

O fundador busca a notoriedade e a possibilidade de criar um

lugar na história, um lugar particular. Lugar que rompe no fio

da história, um lugar particular. Lugar que rompe no fio da

história para reorganizar os gestos de interpretação.

(ORLANDI, 1993, p. 16).

Portanto, o acidente aéreo em que estavam envolvidos o ex-governador

pernambucano e outras pessoas foi marco histórico que pôde reorganizar vários

dizeres sobre esse político. Reorganizando os gestos de interpretação e de práticas

discursiva sobre o sujeito Campos. Porém, esses dizeres não podem ser

considerados novos, pois já estava inserido no interdiscurso e através da memória

é que eles foram regularizados no discurso.

Analiticamente, mobilizei duas FDs, em que alguns sujeitos estavam mais

identificados com a FD1 e outros com a FD2, sendo elas hetoregêneas, mas

antagônicas. Assim, ao inscrever seus dizeres nessas FDs, os sujeitos tinham uma

tomada de posição diferente, identificação, contra-identificação e

desidentificação. Nessas últimas maneiras de se relacionar com uma FD, é onde

podem ocorrer as resistências aos sentidos dominantes.

Alçar Campos a posição de herói, mesmo que por um

determinado tempo, é uma construção discursiva em que se foi necessário a ilusão

de sentido único, regularização da memória no dizer, não sendo possível escapar

das resistências e contradições inerentes ao discurso.

5. Referências

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 287

POESIA E MITO EM LUCILA NOGUEIRA [Voltar para Sumário]

André Cervinskis (UFPE)

O processo de personificação lírica desenvolvido por Lucila Nogueira inclui recursos

dramáticos monologais que navegam desde a atmosfera clássica a um contexto de

performance pós-moderna. Esse artigo analisará a voz mitológica e performática na lírica pós-

moderna de Lucila Nogueira, especialmente em seus livros Ilaiana (1997), Imilce (2000),

Amaya(2001) A Quarta Forma do Delírio (2002) e Estocolmo (2004).Se os três primeiros

tratam da raiz mítica da península ibérica, a partir tanto da Dama de Elche como da mulher

espanhola de Aníbal Barca, Imilce, e também da ficcionalizada galega ligada à ancestralidade

da autora, os dois últimos cuidam da mitologia celta e escandinava, igualmente a partir de

figuras femininas como a druidesa Veleda e a Völva rainha do lago Mälaren.

Voz e performance se conjugam para a enunciação mítico-feminista da autora, sendo

sua personalidade traço fundamental da sua poesia, muito especialmente nos livros analisados.

A autora segue a trajetória Oretania / Levante / Galiza / Bretanha / Escandinávia proposta

como fio condutor de busca da origem étnica e artística de Lucila Nogueira através das

figurações femininas alegóricas de que se utiliza na formação de vozes ancestrais e

contemporâneas a delinear a condição da mulher em várias épocas em confronto com o

arquétipo feminino vital matriarcal de diversas culturas, na busca obsessiva de uma geografia

mítica de si mesma.

Nesse sentido, percebemos também a forte questão de gênero que permeia toda esta

obra, quando a mulher é a protagonista de uma narrativa lírica em que a figura masculina é o

mito determinante, no caso, Aníbal Barca. Lucila usa como matéria-prima de sua obra o

universo feminino, em meio às guerras, do contexto da expansão romana, negando-o, já que

empresta vozes a essas mulheres que, em suas sociedades, não gozavam de nenhum tipo de

autonomia, muito menos a chancela da cidadania. Ela posiciona-se contra o Estado,

representado pelo Império Romano, e contra as guerras impetradas pelos homens, que rouba

das mulheres seus maridos e filhos, deixando-as numa situação de desamparo, num mundo

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dominado pelo patriarcalismo. Seu discurso de Lucila constitui um contraponto à mudez

feminina do mundo clássico. Assim, ela retoma a tradição ocidental, pela via do desacordo

com o contexto ideológico romano e, pelo endosso textual, reatualiza a dicção grega em sua

obra.

A autora, Lucila Nogueira publicou mais de dezessete livros de poesia. Tem, entre

seus títulos mais conhecidos, Almenara (1979), com o qual ganhou seu primeiro prêmio

literário Manuel Bandeira, Governo do Estado de Pernambuco, 1978, premiação que obteria

novamente em 1986 com o livro, Quasar (1987). Seu livro Zinganares (1998) foi publicado

em Lisboa. Sobre este livro, foi elaborada e defendida uma dissertação na PUC-RS, pela

mestra Adriane Hoffmann. Foi escritora residente em Saint-Nazaire, França, em 1999, quando

escreveu o livro A quarta forma do delírio (2001). Ao lermos suas obras, percebemos a

influência inegável de diferentes culturas como elementos importantes em seu processo de

criação.

No caso específico desses livros, o discurso poético se sustenta a partir da

formulação mítica que desdobra a voz lírica em alegorias que passam a conviver como

estátuas vivas com o universo dos leitores desse fantástico imaginário da autora carioca

radicada no Recife. A linguagem poética, expressa por um uso seqüencial de unidades

submetidas a poucos paradigmas, insiste na representação dos mesmos elementos emotivos,

os quais se intensificam pelo espelhamento interno também do significante. A mimese interna

e ao aprofundamento da interiorização são especificações linguísticas e psicológicas

peculiares ao gênero lírico. A função poética da linguagem, que projeta o princípio de

equivalência do eixo da contiguidade, mostra que a estrutura do poema é uma das formas de

representação da existência, segundo José Guilherme Merquior (apud HOFFMAN, 2001, p.

23). O discurso narrativo-literário em Lucila Nogueira dá-se a partir do mito. Corroborando

essas assertivas e alargando um pouco o quadro lingüístico de performance e teatralização da

voz, Glusberg (1987) afirma que “a performance se perde na densidade do significado do

signo e se conserva o significante”. De fato, os pesquisadores têm se esforçado, sobretudo os

pesquisadores semiológicos, para detectar o sentido da performance.

Assim, o livro Imilce (2000), na verdade um poema em 4 vozes é um canto de

tristeza e desencontro das mulheres e filhos dos soldados que vão às guerras, em todas as

épocas. Fala também dos conflitos políticos que encadeiam tragédias humanas, como em

todas as guerras. As personagens são o próprio Aníbal, a sua mãe, seu filho e Imilce, esposa

dele. Interessante que somente os amantes têm seus nomes revelados. Como se a autora

quisesse destacar mesmo a dor e o dilema das mulheres que amam e esperam a volta dos

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 289

amados. As estrofes simetrizadas em torno do eixo vertical possibilitam ao leitor uma leitura

dupla, pois há a possibilidade de lerem-se os versos por inteiro, como normalmente se

procede, ou primeiro a sua metade esquerda e depois a metade direita.

Nesse livro, como que situando o enredo, a autora cita toda a extensão do Império

Romano e de Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha,

Cástulo, Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante; e mesmo os povos antigos:

romanos, mouros, gregos, são freqüentes no texto. Cada lugar demonstrando o poderio do

Império Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o

domínio praticamente universal do Império Romano na antigüidade. Todo o texto, segundo

Durand (1989, p. 148), contém de forma subjacente, um mito. Imilce não possui nem de

forma subjacente, mas de forma emergente. Percebemos a referências às mitologias judaico-

cristã (ao pé do Líbano/ os homens de púrpura/ sidônios do deserto/ Canaã/ muros de Jericó)

e greco-romana (cabeleira de Vênus e Verbena - p. 48); mas há referências a outras

específicas, como a ibérica, dos ciganos mesmo de épocas específicas, como a inquisição e as

cruzadas: minha mãe viu fogueiras no caminho (...) e disse na loucura: inquisidores; viu

soldados diferentes (...) lutando/ contra os mouros do oriente/ e disse na loucura:/ são

cruzadas (NOGUEIRA, 2000). Imilce é poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em

que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me

seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna

e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre as águas; eu desejava o mundo como um círio

ardendo); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio [...]; e os altares

acesos na comédia dos deuses; ... levando em cada mão um candelabro [...] era dia e era

noite/ e a chama acesa; minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos... ;... não vive sem azeite

tanto fogo;... que minha mãe jogou dentro do fogo... (NOGUEIRA, 2000). O fogo de

Prometeu que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia

judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação: eles

sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário); [..].cavalguei/ minha

fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais [...]; leões crucificados de Cartago

(NOGUEIRA, 2000).

Como que situando o enredo, a autora cita toda a extensão do Império Romano e de

Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha, Cástulo,

Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante; e mesmo os povos antigos: romanos,

mouros, gregos, são freqüentes no texto. Cada lugar demonstrando o poderio do Império

Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o domínio

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 290

praticamente universal do Império Romano na antigüidade. Desse modo, Imilce é poesia de

fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao

fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é

um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre

as águas; eu desejava o mundo como um círio ardendo); (voz do filho de Aníbal): os filhos

são as cinzas de um naufrágio [...]; e os altares acesos na comédia dos deuses; ... levando em

cada mão um candelabro [...] era dia e era noite/ e a chama acesa; minha mãe/ viu fogueiras

nos caminhos... ;... não vive sem azeite tanto fogo;... que minha mãe jogou dentro do fogo...

(NOGUEIRA, 2000). O fogo de Prometeu que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses

do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para

rituais de purificação: eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário);

[..].cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais [...]; leões

crucificados de Cartago (NOGUEIRA, 2000).

Por sua vez, Amaya (2001) é um dos livros da teatralogia ibérica, que inclui Imilce

(2000) e Ilaiana (1997). Nele, a escritora realiza um diálogo intercultural a partir de suas

raízes galeo-lusitanas. Em Amaya (2001) a autora, impressionada na vida real com a

descoberta de seu sangue galego, parte ao reconhecimento mítico e geográfico de si mesma.

Faz o percurso ao contrário de seus ancestrais, no rumo que vai do norte de Portugal à cidade

de Padrón, passando por outros sítios como Sanxenxo, Combarro, Finisterra. Imerge na

cultura galega cercada pela paisagem dos hórreos e eucaliptos que sempre povoaram seus

sonhos de infância, procura vivenciar o histórico e o psicológico da imigração dupla : da

Galiza a Portugal, da Lusitânia ao Brasil. Recorre à figura real de Teresa Susabila, que se

funde literariamente com a ficcionalizada Amaya, cuja personificação a autora chega a ponto

de incorporar bordando esse nome em seu casaco de uso diário.

Ilaiana - Enigmas de Elche, publicado em 1997, é um livro composto por quarenta

poemas, que relaciona aspectos temáticos, formais e epigráficos à origem histórica do título

da obra. Os versos são distribuídos em quatro quadras decassílabas e um dístico ao final.

Esses dois últimos versos que inauguram e concluem o poema, completando sua estrutura

cíclica e regressando à matriz temática (“A Dama de Elche”, mito da deusa-sacerdotisa da

região da Galícia, Espanha). Ilaiana (1997), que completa junto com Imilce (2000),

Ainadamar (1996) e Amaya (2001) a denominada tetralogia ibérica, em que a autora recorre

a mitos e temas culturais luso-hispânicos, trata do mito da “Dama de Elche”, deusa-

sacerdotisa do período pré-espanhol (celta). Com influências de mitos semelhantes, “em

pedra talhada ou policromada, ricamente vestida e adornada, ostentando uma toucada – suas

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tranças?, elaboradíssima, ela tem o olhar fixo na eternidade. Preservada desde sua milenária

existência, anônima ela e anônimo o seu criador. Pergunta a voz poética: fui a deusa e o

touro subterrâneo/ Inanna Astarte Isis ou Cibele/ Uni Tanit fui Juno ou fui Demeter/ que

nome me chamavam os iberos? (NOGUEIRA, 1997). Dessa forma, a voz da Dama de Elche

perpassa toda obra, assumindo identidades múltiplas, traduzindo em versos o

interculturalismo de sua obra:

E eu contemplei atônita o semblante/ da moça igual à dama na estação/ desceu em

frente às águas de Alicante/ império de tartéssicas visões./ Mulher sacrificada na

pirâmide/virgem sacerdotisa que foi mãe/ nômade – proletária – navegante/ que céu

te despencou na corda vã? Grego ou cartiginês esse semblante/no trem com seus

dois filhos pela mão/grega cartaginesa ou babilônica são de Creta ou da Síria essas

feições? (Poema IV)[...] Foi aqui que eu plantei um CANDELABRO/ de Chipre e o

consagrei à luz da lua/ meu pente de marfim veio de Samos/ e os fóceos esculpiram

minhas tranças (Poema VIII) (NOGUEIRA, 1997, p. 18.22)

Mas a autora tem consciência plena de sua identidade, mesmo imiscuindo-se em

inúmeras culturas, como demonstram esses versos: Esta ilha de ferro é meu RECIFE/ com

seus guanches atlantes e tupis/ esta ilha é meu corpo e meu abismo/ meu poder de sonhar e

de existir (NOGUEIRA, 1997, p. 25)

Já A Quarta Forma do Delírio (2003) trata dos mitos celtas da Bretanha, como os

da Távola Redonda, Rei Artur e o Santo Graal. Resultado de uma residência artística realizada

pela autora em Saint-Nazaire (França), em 1999. Região anteriormente dominada pelos celtas,

o Norte da França, juntamente com a Ilha da Grã-Bretanha, desenvolveu toda uma cultura

miscigenada, com elementos pagãos e cristãos, resultado da incursão do cristianismo em

terras dos chamados “povos bárbaros’ na Idade Média. Com sensibilidade aguçada, a autora

vai perceber tais influências, visíveis nos seguintes versos: (Esta era a escada dos druidas/ e

eu sou a Veleda a druidesa/ meu canto tem poder/ de dissolver tempestade/ guardiãs do

santuário de Teutates/ ninfa celta/ sacerdotisa armoricana/ imagem de Bretanha (Fala de

Veleda); Ouve o canto da druida/solitária/ tu estás sob a minha/ proteção/ visão que eu

atraí/armoricana/ eu me chamo Merlin/ o Encantador (Fala de Merlin) (NOGUEIRA, 2003,

p. 41.44). Pois, como afirma Lourival Holanda na orelha deste livro:

Lucila cruza – no sentido fecundo – caminhos reais que agora dão uma outra

gravidade à memória de seu imaginário poético. O impacto da praia rochosa de Saint

Marc. Os caminhos imemoriais por onde nossas lembranças se cruzam: os índios

brasileiros que por ali Montaigne recebeu. Hoje, é Lucila recebendo os eflúvios

poéticos de celtas, de Carnac, da beleza bárbara da Bretanha.

(NOGUEIRA, 2003 – orelha)

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Finalmente, Estocolmo (2004) vem representar o fechamento do ciclo Mítico

Performático, a partir de falas deambulatórias pelas ruas da capital sueca, que dialogam com

vários tempos e personagens do século XVIII, culturas arcaicas desde os livros de Odin sobre

as quais paira a alegoria da volva, figura emblemática que se confunde com a própria poesia

em seu uso de sibilas para profetizar. Ao mesmo tempo, verifica-se que é um porto de

chegada da autora, em sua odisséia pessoal, integrada nesse ano à comunidade sueca pelo

nascimento de seu neto Alexander. A filha e neta de portugueses e galegos que se torna mãe e

avó, no percurso de volta dos vikings que são referenciados em todo o livro, inclusive em suas

vestimentas e visual punk pós-moderno.

Assim, podemos dizer que o discurso narrativo-literário em Lucila Nogueira dá-se a

partir do mito. Corroborando essas assertivas e alargando um pouco o quadro lingüístico de

performance e teatralização da voz, Glusberg (1987) afirma que “a performance se perde na

densidade do significado do signo e se conserva o significante”. De fato, os pesquisadores têm

se esforçado, sobretudo os pesquisadores semiológicos, para detectar o sentido da

performance.

As vozes femininas, sejam elas celtas, galegas ou escandinavas se transpõem para os

livros de maneira tanto figurativa (metáforas e metonímias) quanto temáticas (vozes de mitos

ancestrais que ecoam no inconsciente coletivo). O fundamental é que esta passagem do

semântico para uma espécie de estado vital do significante, tal como a aparição de novos

signos, seja adotada em várias religiões e mitos de iniciação (GLUSBERG, 1987), ambos

bastante fortes em Lucila Nogueira. Já para Zaul Zumthor, autor canadense que aprofundou o

conceito de performance para a cultura e especialmente a literatura, afirma que, se houvesse

uma ciência da voz, ela não estaria centralizada em uma única forma de conhecimento, pois

deveria abranger, em princípio, a fonética e a fonologia, além da antropologia, da História e

da psicologia da profundidade. Em seu estudo, o teórico refere-se à voz do ser humano real, e

não à do discurso, uma vez que o texto literário é uma voz que está dentro de um suporte

escrito, portanto mediado ele já é uma representação.

Diretamente vinculada à voz poética, a performance é uma ação oral-auditiva pela qual a

mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, no tempo presente, em que o

locutor assume voz, expressão e presença corporal (física), enquanto o destinatário, que não é

passivo, também se inclui como presença corporal dentro da performance.

A lírica de Lucila Nogueira, reverberando o eco ancestral de mitos, enseja-se nesse

panorama. Os cinco livros selecionados para o estudo desse artigo são repletos de elementos

identitários tão diversos quanto a cultura ibero-galego-celta-escandinava. Embora plenamente

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 293

enraizada no Brasil, suas inúmeras viagens a outros países ajudaram-na na concepção poética

das vozes mitológicas das culturas tão diversas que hoje convivem local e globalmente,

constituindo-se numa verdadeira geografia mítica pós-moderna.

Referências

ACADEMIA BRASILIRA DE LETRAS. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. São

Paulo: Cia. Ed. Nacional, 2008.

CERVINSKIS, André. De Imilce a Medellín: a poesia de Lucila Nogueira. Olinda: Livro

rápido, 2008.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Presença, 1989.

FIORIN, José Luiz. Elementos da Análise do Discurso. Sâo Paulo: Contexto, 2005.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

HOFFMAN, Adriane Ester. A Moderna Lírica Mitológica em Lucila Nogueira. Olinda: Livro

Rápido, 2007.

MATTELART, Armand & NEVEU, Érik. Introdução as Estudos Culturais. São Paulo:

Parábola, 2004.

MIELIETINSKI. E. M. A poética do mito. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

NOGUEIRA, Lucila. Amaya. Recife: Bagaço, 2001.

_______. Ilaiana. Recife: Cia. Pacífica, 1997.

_______. Imilce. Recife: Cia Pacífica, 2000.

_______. A Quarta Forma do Delírio. 2ª. Edição, Recife: Bagaço, 2003.

_______. Estocolmo, Recife : Ed.Livro Rápido, 2004.

GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.

REIS, Carlos. Fundamentos y técnicas del análisis literario. Madrid, Ed. Gredos, 1981.

SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1986.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Ed. HUCITEC, 1997.

_______. Performance, Recepção, Leitura. Trad.: Gerusa Pires Ferreira & Sueli Fenericli.

São Paulo: Ed. HUCITEC, 2000.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 294

O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES

E VALORES: UMA ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO

JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO CAMPOS NO

PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE [Voltar para Sumário]

Andre Cordeiro dos Santos (UFPE)1

1. Iniciando o diálogo

Toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma,

contém sempre, com maior ou menor nitidez, a

indicação de um acordo ou de um desacordo com

alguma coisa.

(Bakhtin, 2006, p. 109)

Nesse excerto, Bakhtin nos diz que toda enunciação efetivada comporta uma posição

valorativa do enunciador em relação ao objeto de enunciação e, consequentemente, já que

para o filósofo a enunciação é a unidade da comunicação real, que a linguagem carrega

sempre consigo posições avaliativas do sujeito. Nesse sentido, sempre que há uso de

linguagem, há posições valorativas que se constituem a partir de relações dialógicas. Portanto,

olhar a linguagem, nessa perspectiva, requer levar em consideração os valores que se fazem

constituintes dela.

As relações dialógicas, no entender dos integrantes do chamado Círculo de Bakhtin2,

dizem respeito a relações de sentido que se instauram na instância de discurso por meio de

diálogos que ocorrem dentro da enunciação, envolvendo diferentes aspectos que se fazem

determinantes de sentido. Esse diálogo é determinado, segundo Bakhtin (1993, p. 71), pelos

momentos básicos da constituição da linguagem que são o eu-para-mim, o eu-para-o-outro e

o outro-para-mim. Esses momentos constituem a base arquitetônica do pensamento

bakhtiniano que se foca principalmente no caráter dialógico da linguagem e este caráter

perpassa todos outros: o social, o histórico e axiológico.

1 E-mail: [email protected] 2 Grupo de estudiosos russos composto por Bakhtin, Volochinov, Medvedev e outros.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 295

Tomamos esses momentos dialógicos, apontados por Bakhtin, nos quais se põem em

diálogo e conflito locutores, discursos, valores, contextos, etc., que são definidores de

sentidos de enunciações, e, que fazem da enunciação eventos únicos, como pressupostos para

esse trabalho. Assim, procedemos a análise do fenômeno de mudança da constituição da

imagem do ex-governador do estado de Pernambuco e pleiteante a presidente do Brasil,

Eduardo Campos, no período pós-morte em relação ao período anterior a sua morte,

observado no jornal Diário de Pernambuco on-line.

Para tanto, adotamos a perspectiva da Análise Dialógica dos Discursos (ADD),

buscando reconstruir os fios dialógicos que dão sustentação aos dizeres e, consequentemente,

às imagens do político nas notícias do jornal, atentando para os momentos determinantes dos

valores na (e da) linguagem citados acima. Nesse intuito, trazemos à discussão os conceitos

basilares da ADD que se mostram necessário a esse empreendimento e, após isso, analisamos

as duas notícias. Passemos aos conceitos base da análise.

2. Alguns elementos conceituais do diálogo

Os integrantes do Círculo de Bakhtin, por tomarem o enunciado como base para o

estudo da linguagem e considerá-lo como evento único e irrepetível, buscaram evidenciar a

linguagem como resulto da interação de diferentes elementos. Em um desses estudos, no texto

Que é a linguagem?, Volochinov (2013 [1926], p. 141) propõe que “a linguagem [...] é o

produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto a

organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou”, ou seja, a linguagem

mantém um diálogo com as condições sócio-político-econômicas.

Sendo assim, a linguagem está diretamente ligada e determinada pelo social e estudá-

la requer, antes de tudo, o reconhecimento dessa ligação. Adotando essa perspectiva,

iniciamos essa discussão trazendo à tona o que Bakhtin entende por esferas discursivas,

acreditando que esse conceito é relevante no entendimento do fenômeno que nos propusemos

a analisar, já que a compreensão dos gêneros do discurso passa pela compreensão das esferas

discursivas.

Para o Bakhtin (1997, pp. 227-326), as esferas discursivas são constituídas por

determinado grupo de pessoas que compartilha entre si práticas sócias/discursivas e um dado

ambiente social. Segundo ele, esse grupo utiliza determinadas práticas discursivas que se

fazem necessárias para a interação entre seus indivíduos e, assim, por compartilharem o

mesmo ambiente social, acabam por ter necessidades comunicativas semelhantes, em

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 296

condições, também, semelhantes, e isso gera a criação de formas linguísticas mais ou menos

padronizadas – ou “enunciados relativamente estáveis”, nas palavras de Bakhtin – que

cumprem determinadas funções comunicativas do ambiente social. São essas formas

linguísticas, que evidenciam ainda mais a relação de diálogo entre linguagem e sociedade, que

Bakhtin chamou de “gêneros do discurso”.

Os gêneros do discurso estão presentes em todas as esferas da comunicação humana,

pois sempre que fala, um sujeito se serve deles, obedecendo, mesmo que involuntariamente, a

determinadas “regras” de funcionamento dessas “formas de linguagem”. Além disso, sendo os

gêneros do discurso formas relativamente estáveis de enunciados, a posição valorativa que

compõe o enunciado da comunicação efetiva é, também, inerente aos gêneros, não havendo

nenhum gênero do discurso que se excetue da carga axiológica que acompanha a linguagem,

por mais que se busque atingir um ponto de neutralidade.

Em contrapartida a isso, temos algumas esferas da comunicação humana que utilizam

de certos gêneros do discurso que buscam atingir essa neutralidade, se eximindo das posições

valorativas, é o caso, por exemplo, da esfera jornalística, com as notícias que se propõem ser

unicamente um meio de transmissão de informações. No entanto, percebemos que não é bem

assim, pois mesmo nesses casos em que a “forma” de linguagem se propõe neutra, ela traz

consigo uma carga avaliativa em relação ao objeto do discurso que se evidencia a partir da

investigação dos seus fios dialógicos.

Vistas a isso, se a notícia, apesar de se propor neutra, não o é. A partir dela podem se

revelar valores que trabalham para a construção de discursos que se revelam em posição de

acordo ou desacordo com o objeto de enunciação. Desse jogo de valores que se instaura na

enunciação emergem imagens construídas como produto de um diálogo que reflete e refrata as

ideologias que circulam na esfera discursiva na qual a prática enunciativa se deu, nas palavras

de Bakhtin (2006, p. 31) “cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de

orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira”.

Essa posição axiológica, que se mostra nos enunciados da comunicação real, no

entanto, pode não ser sempre semelhante dentro de uma esfera discursiva, posto que o

enunciado como evento único é sempre fruto de um diálogo singular, assim, também, as

posições axiológicas serão únicas em cada enunciado, podendo, a posição de um sujeito

distanciar-se de uma posição anteriormente assumida com o decorrer do tempo. Vemos,

assim, que o sujeito é ponto nodal para a compreensão desse fenômeno, por isso, mais a

frente, nos deteremos nessa questão.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 297

Nesse sentido, entendendo o enunciado como fruto de um diálogo único, acreditamos

que captar os valores, ou as avaliações, em relação ao objeto do discurso requer que se

investigue os fios dialógicos que dão sustentação aos dizeres. Cabe, pois, ressaltar que a base

arquitetônica mostrada acima resume de forma sumária o caráter dialógico da linguagem

(dialogismo amplo). Essa base se evidencia e pode ser percebida nos gêneros discursivos

através da orientação social, para o outro; da presença de diferentes vozes sociais que

dialogam ou se conflitam; da materialização do enunciado enquanto elo entre os já-ditos e a

presunção de respostas; da adequação ao contexto enunciativo; e das marcas axiológicas do

sujeito em relação ao objeto da enunciação.

Tomaremos essas formas de diálogo como ponto de partida para as análises desse

artigo. Antes, porém, acreditamos que seja relevante fazer algumas considerações sobre

sujeito.

3. Do sujeito do diálogo

Falar de sujeito dentro da perspectiva bakhtiniana de estudo da linguagem é algo que

requer atenção, posto que o sujeito não foi teorizado dentro dos estudos desenvolvidos pelo

Círculo. Nesse sentido, Segundo Teixeira (2006, p. 229), a visão sobre sujeito de Bakhtin

“emerge e se sustenta na enunciação, entendida como um processo em que o eu se institui

através do outro e como outro do outro, sendo pela inter-relação entre dialogismo e alteridade

que se pode tentar cerca a subjetividade em Bakhtin”. Desse modo, o sujeito, assim como o

enunciado, é fruto de um diálogo único em cada momento discursivo.

Partindo dessa visão, Dahlet (1997, p. 77 apud TEIXEIRA, 2006, p. 229) considera

que “o dialogismo bakhtiniano se fundamenta na negação da possibilidade de conhecer o

sujeito fora do discurso que ele produz” e Teixeira (ibidem) completa dizendo que esse é o

motivo pelo qual não há uma teoria do sujeito enquanto objeto, mas, sim, “uma teoria da

linguagem fundada na idéia de que a interação verbal é o modo de ser social dos indivíduos”.

Ou seja, para Bakhtin, não há sujeito sem linguagem.

Com isso, se servindo de pensamento de Dahlet (1997, p. 60) a respeito do sujeito

bakhtiniano, Teixeira (idem, p. 230) afirma que

Bakhtin relança a problemática do sujeito em uma concepção dinâmica de

enunciação, como produto de uma voz na outra, em que a significação é produzida

em direções diferentes, sob as pressões de um dialogismo que remete a ancoragem

do sujeito à realidade do discurso, entendido como uma ‘construção híbrida’,

(in)acabada, por vozes em concorrência e sentidos em conflitos” (grifos do autor)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 298

É nesse sentido, que a compreensão do sujeito se faz relevante para a compreensão dos

valores que são inculcados nas palavras na interação verbal por meio de enunciações. O

diálogo de vozes e valores que se opera na linguagem, se opera a partir de um sujeito que se

institui pela linguagem e, por isso, é visto, assim como o enunciado, como evento.

4. Foco no diálogo

Nesta seção, iremos analisar as notícias a respeito do candidato Eduardo Campos do

jornal citado acima, a fim de buscar reconstruir os fios dialógicos que dão sustentação aos

dizeres, mostrando que esse diálogo que se instaura como único em cada momento discursivo

faz emergir imagens diferente do candidato no período pré e pós morte, sendo a sua morte um

fator determinante para a exaltação de sua imagem. Para isso, observaremos as questões

ideológicas que se evidenciam nos textos, levando em consideração o sujeito da enunciação,

visto que esse é o ser a partir do qual se refletem e refratam essas questões ideológicas, ainda

que o sujeito em uma das notícias não esteja identificado, uma vez que, a notícia é assinada

pelo próprio Jornal. Sabemos que mesmo nesse caso em que o sujeito não está identificado,

ele é peça chave, já que é a partir dele que o diálogo se instaura na enunciação e no caso que

trazemos a análise não seria diferente. Passemos à notícia.

Figura 1: Notícia do Diário de Pernambuco on-line anterior a morte de Eduardo Campos

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 299

Fonte: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2014/07/08/interna_politica,514877/aliados-de-armando-

gostam-de-declaracoes-acidas-de-campos.shtml

Para contextualizar um pouco a notícia, convém situar o contexto, ainda que de forma

sumária, que gerou a notícia acima. No ano de 2014, Eduardo Campos se lançou como

candidato a presidência do Brasil pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Como era um

candidato não muito conhecido, precisava angariar votos Brasil a fora para buscar a eleição e,

por isso, participou de comícios com seus aliados. Nesse ínterim, Campos buscou mostrar

suas propostas de governo apoiando-se no discurso de que o governo do momento era falho e

que, por isso, não deveria ser mantido, sendo ele uma melhor opção para o Brasil.

Desse quadro surge a notícia: Eduardo Campos, em ato político com seu “afilhado”

Paulo Câmara, teria dado declarações “ácidas” e, segundo os candidatos da oposição, esses

“comentários contraditórios e desrespeitosos” seriam um “sinal de desespero” do candidato.

Ainda, segundo a notícia, para o deputado federal Sílvio Costa, Eduardo “não foi feliz em

suas declarações”, pois teria chegado a chamar seus próprios aliados de “parasitas do poder” o

que seria, para Costa, um “sinal de desespero da frente popular”.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 300

Como defendido por Bakhtin, toda enunciação comporta uma posição axiológica e na

notícia acima não é diferente, já que a notícia se caracteriza como um tipo relativamente

estável de enunciado. Na notícia, percebemos um discurso de oposição a Eduardo Campos,

que é caracterizado através das críticas tecidas ao candidato – candidato em desespero, que

proferira comentários desrespeitosos e contraditórios e que desrespeita seus próprios aliados.

Dessa forma, ainda que a notícia atribua as críticas à oposição, um discurso, na perspectiva

bakhtiniana, sempre é proferido por um sujeito que, enquanto tal, reflete e refrata as

ideologias da sua esfera de comunicação, que se constitui na linguagem enquanto evento e

que trava diálogos com outras vozes, assim, esse discurso também é o discurso do sujeito

representado pelo jornal.

A notícia é um discurso do sujeito do jornal3 em relação ao objeto da enunciação,

ainda que dialogue diretamente com discursos outros, pois ele é resulto do diálogo e conflito

de vozes (discursos) da oposição e do próprio sujeito do jornal, pois como lembra Bakhtin

(1998, p. 86) toda enunciação encontra o seu objeto sobre o crivo de outrem, pois o objeto já

está também sobre a tônica do outro, por isso, por ser orientado para o objeto, o discurso

penetra um meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos outros, ou seja, “ele (o

discurso) entrelaça com eles (discursos outros) em interações complexas, fundindo-se com

uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros”.

Desse modo, se mostra o diálogo entre as vozes de oposição e do próprio jornal,

evidenciando o dialogismo que é inerente à linguagem e, sendo tomado como momento base

da notícia e determinante de todos os seus valores. Esse diálogo trabalha para a construção de

uma posição axiológica que se instaurou e trabalha para a construção de Eduardo Campos

como um político de discurso contraditório, desrespeitoso com seus próprios aliado e em

desespero o que o caracterizaria como um candidato inapto a assumir o cargo ao qual se

propunha a assumir: presidente do Brasil.

Analisemos agora uma notícia do período pós-morte de Eduardo Campos afim de

mostrar que sua morte foi determinante no diálogo que se instaura no enunciado em questão,

resultando numa imagem do candidato diversa da anterior. Passemos a notícia:

Figura 2: Notícia do Diário de Pernambuco on-line posterior a morte de Eduardo Campos

3 Usamos sujeito do jornal porque o texto, embora tenha um autor, este não foi identificado, sendo assinado pelo

próprio jornal.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 301

Fonte: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2014/08/14/interna_politica,522601/eduardo-campos-

aliava-programas-sociais-e-a-visao-de-mercado.shtml

Antes, de procedermos a análise, faremos uma descrição sumária do contexto geral no

qual foi produzido o texto. Em treze de agosto de 2014, Eduardo Campos foi vítima de um

acidente fatal, o avião no qual ele se deslocava para cumprir compromissos políticos caiu e

todos os tripulantes vieram a óbito. Após esse evento, os discursos que circularam a respeito

de Eduardo Campos foram discursos que exaltavam sua trajetória política e que o mostravam

enquanto um candidato que tinha uma proposta consistente de Brasil, como podemos ver no

texto acima. Assim, essa notícia, posterior a morte de Eduardo Campos, e o discurso que se

apresenta por meio dela são completamente diferentes do que se mostrou no texto anterior.

No texto, assinado por Paulo Silva Pinto, há a caracterização de Eduardo como um

político que conseguia unir em seu projeto de governo uma visão de mercado, que agradava

os empresários, e os programas sociais, exemplo seria o passe livre para os estudantes, o que

agradava também a população que se beneficiaria desse tipo de programa. Desse modo, o

autor da notícia compara Eduardo Campos ao ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da

Silva em seu primeiro mandato, pois, segundo o autor, aquele, assim como este, era “um

político de esquerda, defensor de programas sociais e ao mesmo tempo alinhado com o

mercado”.

Desse modo, a imagem que se evidencia do candidato é de um político ideal, vistas ao

fato de se esperar que um presidente consiga desenvolver e trabalhar em prol de todos os

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 302

setores da sociedade. Percebemos um diálogo que trabalha para a construção dessa imagem

como fruto de ideologias socialmente difundidas: o discurso da esquerda politica; discurso do

bom político; discurso a respeito do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e etc. Desse

diálogo e conflito de vozes é que emerge a posição valorativa que se evidencia do autor em

relação ao objeto de enunciação, como defende Bakhtin (1998) ao dizer que os valores que se

mostram pela linguagem são frutos de um diálogo e conflito de vozes (discursos).

Assim, podemos dizer que a imagem, que outrora fora constituída, de um político em

desespero, com comentários controversos e ácidos foi substituída por uma imagem de um

político com proposta consistente de Brasil, isso como resultado do diálogo único que se

instaurou na enunciação.

Nesse momento enunciativo, é, também, inegável que a morte de Campos interferiu na

forma como a constituição de sua imagem política se deu, pois é uma prática social comum

exaltar a imagem de alguém após sua morte, lembrando apenas os pontos memoráveis de sua

trajetória. Essa voz (discurso de exaltação pós-morte) foi determinante para a construção do

diálogo que se instaurou por meio do enunciado em questão, sendo determinante de valores na

relação do eu (autor-sujeito) com o outro (Eduardo Campos).

Isso evidencia que, assim como defende Bakhtin (2003) os momentos que compõem a

base arquitetônica da linguagem são determinantes dos valores que estão presentes na

linguagem e que, assim como lembra Bakhtin (2006), em um enunciado sempre haverá a

indicação, ainda que velada, de um acordo ou desacordo em relação ao objeto de discurso.

5. Considerações finais

A partir da adoção da perspectiva bakhtiniana de estudos da linguagem que se detém

principalmente ao carácter dialógico como base para qualquer investigação dos fenômenos da

linguagem, vimos que a linguagem sempre se mostra como uma zona de diálogo e conflito

entre diferentes vozes e que esse diálogo é único em cada evento enunciativo. Vimos também

que as posições axiológicas assumidas podem mudar quase que completamente com o tempo,

em decorrência da inserção de alguma voz (discurso) que interfira diretamente no diálogo; e,

vimos que o sujeito e o ser que se mostra como evento, se constituindo em cada momento

enunciativo e sob influência diretas das ideologias das esferas discursivas da qual faz parte,

sendo esse ser elemento diretamente determinante da imagem do objeto de enunciação.

No caso analisado, percebemos que a morte de Eduardo Campos interferiu diretamente

na constituição jornalística de sua imagem pelo Diário de Pernambuco on-line: de político em

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 303

desespero a político com proposta consistente de governo. Essa mudança discursiva se mostra

como resultado de diálogos e conflitos complexos entre vozes que ocorrem na (e pela)

linguagem, e que refletem e refratam as ideologias de esferas discursivas por meio de um

sujeito. Em adição a isso, a sua morte fez com que se exaltasse os fatos memoráveis na

trajetória de Eduardo Campos.

Convém ressaltar que esta análise é apenas parte de uma pesquisa maior e representa

os primeiros gestos analíticos empreendidos na tentativa de sua compreensão. No entanto,

essas primeiras análises mostraram que houve mudança nos valores que se encontram nas

notícias, como fruto de diálogo e conflito de vozes, e isso ocasionou a mudança na imagem

constituída pelo jornal do político: o político que antes de sua morte era caraterizado como um

político em desespero, após sua morte, é caracterizado como um político que tinha uma

proposta consistente de Brasil.

A análise desse fenômeno confirma, assim como defendem os integrantes do Círculo

de Bakhtin, que a linguagem carrega sempre uma posição axiológica de um sujeito em relação

ao seu objeto de enunciação, resultando em um gesto, ainda que velado, de acordo ou

desacordo com esse objeto. E que esse gesto de (des)acordo pode ser mudado sob

interferência de fatores que compõem o diálogo único de cada enunciação. Por isso,

concluímos que qualquer empreendimento de tentativa de compreensão da linguagem deve ter

em conta todos os fatores que determinam os valores que são-lhe inerentes.

Referências

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão

Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de Michael Holquist e Vadim

Liapunov (“Toward a philosophy of the act”), publicada em Austin: University of Texas

Press, 1993.

_______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Tradução de Maria

Ermantina Galvão G. Pereira.

_______. O discurso no romance, In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética. São

Paulo: Editora Unesp, 1998, pp. 71-210.

_______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec (10ª. ed.), [1979], 2006.

TEIXEIRA, Marlene. O outro no um: reflexões sobre a concepção bakhtiniana de sujeito. In:

FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. Vinte ensaios sobre Mikhial Bakhtin. Petrópolis,

RJ: Vozes, 2006, pp. 227 – 234.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 304

VOLOCHINOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João

editores, [1926], 2013. Tradução: João Wanderley Geraldi.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 305

O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA:

UM OLHAR PARA A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR

DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º ANO DO ENSINO

FUNDAMENTAL [Voltar para Sumário]

Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG)

Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG)

Introdução

A partir do contato com algumas escolas localizadas no município de Garanhuns foi

constatado, no cotidiano escolar, que há a leitura de textos literários. Normalmente, estas

leituras são realizadas pelo professor, assim como a escolha do material a ser lido. Ao

evidenciar tais fatos, nos indagamos quais os critérios adotados pelos professores Educação

Infantil e do 1º ano do Ensino do Ensino Fundamental para a escolha dos livros de literatura

infantil e de que forma esses critérios utilizados podem favorecer o letramento literário dos

educandos.

Consideramos o quanto é importante criar situações que induzam aos leitores a

interagir com o maior número possível de gêneros discursivos, pois este trabalho favorece a

formação profissional e desempenho como sujeito livre, ativo e social. No entanto, focaremos

nos gêneros literários, uma vez que estes, quando possuem um texto de qualidade, estimulam

o hábito da leitura, induzindo o leitor a explorar a realidade que o cerca de maneira

diferenciada, desenvolvendo sua imaginação criadora e ampliando significativamente o seu

universo cultural. Diante disto, realizaremos uma reflexão a respeito dos critérios de escolha

do livro literário lido em sala de aula. A partir do levantamento destes critérios, analisamos a

natureza dos mesmos buscando verificar em que esta escolha favorece a ampliação do

letramento literário dos educandos; verificamos também se estes critérios mudaram da

Educação Infantil para o 1º ano do Ensino Fundamental.

As escolhas docentes em relação ao livro de literatura trabalhado em sala

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 306

Para desempenhar bem o papel de leitor experiente e mediador, torna-se necessário

que o professor estabeleça os seus critérios para a escolha do livro de literatura a ser

explorado em sala de aula. Esse livro deve ser de qualidade e favorecer um bom trabalho de

compreensão textual.

Compreende-se que os primeiros livros contribuem significativamente, e são

determinantes quanto à iniciação literária contribuindo na aquisição de conhecimentos os

quais a escola trabalha. Sendo, por tanto, de extrema relevância que o processo de seleção

destes livros passe pelo clivo de um olhar criterioso por parte do professor, uma vez que esse

profissional também tem responsabilidades na formação de sujeitos leitores.

Brandão e Rosa (2010) elencam ao menos três critérios que podem ser adotados pelos

professores para a escolha do livro literário: O primeiro nos remete às afinidades estéticas do

professor; o segundo tem a ver com as preferências demonstradas pelas crianças e o terceiro

ao conhecimento do acervo, ao qual os estudantes tem acesso, seja dentro ou fora do ambiente

escolar.

Metodologia

O trabalho realizado possui natureza qualitativa. A pesquisa qualitativa, segundo

Richardson, et al (2008) “pode ser caracterizada como a tentativa de uma compreensão

detalhada de significados e características situacionais apresentadas pelos entrevistados, em

lugar da produção de medidas quantitativas de características ou comportamentos (p. 90)”.

Desta maneira não possuímos resultados padronizados. Realizamos uma reflexão com base na

escuta dos depoimentos docentes.

O estudo foi desenvolvido no município de Garanhuns, no qual foram selecionadas

três escolas públicas. Estas instituições de ensino foram sugeridas pela Secretaria de Educação

Municipal e possuíam ao menos um professor da categoria pesquisada (professores da

Educação Infantil e/ ou do 1º primeiro ano do Ensino Fundamental I).

O primeiro critério de seleção dos sujeitos da pesquisa consistiu em identificar, através

de uma conversa informal, aqueles que desenvolviam um trabalho com a literatura infantil.

Assim, foram selecionados cinco professores da Educação Infantil e cinco professores do 1º

ano do Ensino Fundamental que alegaram trabalhar em sala de aula a leitura de livros

literários.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 307

Aos sujeitos pesquisados não foi exigido a incorporação ao quadro efetivo da escola,

apenas a condição de ser regente da sala de aula em questão.

ETAPA QUE

ENSINA

FORMAÇÃO TEMPO DE

ENSINO

PROFª 1 Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.

Pós em psicopedagogia.

7 anos

PROFª 2 Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.

Pós em psicopedagogia.

7 anos

PROFª 3 Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.

Pós em psicopedagogia.

13 anos

PROFª 4 Educação Infantil Curso de Licenciatura em Língua

Portuguesa. Pós graduação em

Língua Portuguesa (relatou algo

sobre contos de fadas)

14 anos

PROFª 5 Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.

Cursando a pós graduação.

17 anos

PROFª 6 1º Ano Curso de Licenciatura em Pedagogia.

Pós- graduação em supervisão

pedagógica.

13 anos

PROFª 7 1º Ano Graduação em Língua Portuguesa.

Pós-graduação em psicopedagogia.

08 anos

PROFª 8 1º Ano Magistério. 28 anos

PROFª 9 1º Ano Curso de Licenciatura em Pedagogia. 10 anos

PROFª 10 1º Ano Curso de Licenciatura em Pedagogia.

Pós-graduação em administração

escolar e gestão pedagógica

10 anos

Foi empregada para coleta de dados a entrevista semiestruturada. Conforme Lakatos e

Marconi (2010), a entrevista é definida como: “[...] encontro entre duas pessoas, a fim de que

uma delas obtenha informações a respeito de determinado assunto, mediante a conversação de

natureza profissional” (p.178). Aos entrevistados foram esclarecidos somente os objetivos da

pesquisa e o roteiro da entrevista.

ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

• De que maneira você busca promover o acesso à literatura infantil aos seus

alunos?

• Você tem fácil acesso aos livros de literatura? Justifique sua resposta.

• Em caso de resposta negativa em relação à questão anterior, perguntar: A escola

não disponibiliza um acervo de livros de literatura, por que eles não chegaram ou por

que estão guardados? Justifique sua resposta.

• Com que frequência você ler livros de literatura infantil para seus alunos?

• Você considera essa frequência de uso boa ou gostaria de promover um maior

acesso aos livros? Justifique sua resposta.

• Quais critérios você geralmente utiliza para escolher os livros que leva para a

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 308

sala? Por que você usa esse(s) critérios e não outros?

• Relate uma situação de leitura de um livro de literatura realizada em sala,

detalhando desde o momento em que você escolheu o livro até o momento em que

você trabalhou em sala (não esqueça de dizer qual o livro escolhido). Após a resposta

perguntar: Qual critério você adotou nessa ocasião? Você conseguiu pensar antes em

como seria esse momento de leitura ou teve que resolver na hora como iria fazer, o que

iria explorar com os alunos?

As informações coletadas através dessa primeira seção de entrevistas foram tratadas à

luz da metodologia de análise de dados qualitativos denominada análise de conteúdo

(BARDIN, 2002), pois a consideramos uma via possível para a revelação (reconstrução) do

sentido dos nossos achados. Assim a análise de conteúdo se refere a:

[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando, por

procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,

obter indicadores quantitativos ou não, que permitam a inferência de conhecimentos

relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) das mensagens.

(BARDIN, 2002, p. 160)

Uma das características, portanto, que define essa abordagem é a busca do

entendimento da comunicação entre os homens, apoiando-se no (re) conhecimento do

conteúdo das mensagens.

Resultados

Para a análise dos depoimentos docentes, nos apoiamos nos possíveis critérios para

escolha do livro de literatura apontados por Brandão e Rosa (2010). Realizamos a leitura das

entrevistas, buscando identificar se as docentes mencionavam tais critérios e quais outros, não

destacados pelas citadas autoras, haviam aparecido nos depoimentos de nossas professoras.

A partir dessa análise foi possível identificar cinco critérios. Alguns destes mais

mencionados que outros, como podemos evidenciar no quadro abaixo:

Quadro nº 2

Critérios elencados pelas professoras da Educação Infantil e do 1º ano do Ensino

Fundamental.

Critérios mencionados Professoras

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

1) As afinidades estéticas do

professor

X

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 309

2) As preferências

demonstradas pelas crianças

X X X X X X X X X X

3) Conhecimento do acervo X X X X X X X

4) Preocupação social no que

tange ao desenvolvimento de

valores

X X X

5) Diretrizes estabelecidas pela

Secretaria de Educação

Municipal.

X X X

Como pode ser visto houve uma variedade de critérios e estes se remetiam a aspectos

diferentes: ora o foco era na criança ora no conhecimento do professor ou nas orientações

oficiais para o seu fazer pedagógico. Também notamos que as professoras citavam critérios

diferentes ao mesmo tempo.

Abordaremos cada um desses critérios mencionados, apontando os mais recorrentes.

Apresentaremos alguns fragmentos das entrevistas realizadas, buscando melhor esclarecer

estes critérios e compreender as escolhas docentes com relação ao livro literário.

1) As afinidades estéticas dos professores

O primeiro critério abordado por Brandão e Rosa (2010) – As afinidades estéticas do

professor – leva em consideração as próprias exigências estéticas do professor. Este critério

considera a obra como um todo, isto é, o texto, as imagens, que despertam sensações e

produzem efeitos no momento da leitura. Apenas por uma professora. Vejamos abaixo:

Professora 6, do 1º ano do Ensino Fundamental:

Até eu mesma gosto de estar apreciando esses livros. Gosto muito de ler estes livros. Então

assim, esses livros. Eu sinto que eles percebem o meu gosto pela leitura, no dia a dia e eu vou

descobrindo com eles assim o agradável dessas leituras, os motivando, depois eles pedem: -

Professora deixa eu olhar, deixa eu olhar! É uma briga na sala, para depois cada um

manusear pessoalmente.

O depoimento da docente demonstra entusiasmo com relação à leitura. Como a própria

fala revela, esse entusiasmo reflete diretamente nos ouvintes que se mostram ansiosos para

manusear o livro e desfrutar de sua leitura.

Assim, reconhecemos que a professora 6 considera essencial à prática docente a

mediação da leitura, tendo como propósito a formação de novos leitores. Concebemos,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 310

portanto, que à medida que o leitor, melhor dizendo, que o professor leitor aprimora e

desenvolve suas estratégias de leitura, este também aperfeiçoa suas escolhas estéticas, de

modo que os livros escolhidos irão se adequar aos seus padrões eruditos estéticos.

Ao compartilhar suas afinidades estéticas, o professor acaba auxiliando no

desenvolvimento da sensibilidade das crianças.

2) As preferências demonstradas pelas crianças

Conforme mencionado acima, o segundo critério abordado por Brandão e Rosa (2010)

são as preferências demonstradas pelas crianças. Este critério leva em consideração a opinião

dos ouvintes, neste caso as crianças. Existe, portanto, uma preocupação em tornar o momento

de leitura agradável. Todas as professoras da nossa pesquisa percebiam bem a importância de

levar em consideração os interesses infantis na hora de selecionar o livro. Observaremos nos

depoimentos a seguir que, ao optar por este critério, a leitura se tornava mais interativa e,

consequentemente, mais proveitosa, facilitando a formação de leitores.

Este critério, como pode ser visto no Quadro nº 2, foi o mais citado pelas professoras

participantes desta pesquisa, visto que todas elas evidenciaram, ao menos uma vez em seus

depoimentos, a preocupação em tornar o momento de leitura agradável para os seus discentes.

Vejamos um dos depoimentos:

Professora 4 da Educação Infantil:

Eu adequo a história a o contexto deles e a faixa etária. A gente sabe que cada livro tem a

faixa etária adequada né?! Livros muito longos, ai se for muito longo eu divido a história, se

o livro for curtinho a história pequenininha com bichinhos porque eles estão na fase de livros

com bichinhos né?! História de animais que é o que chama a atenção. Com crianças que tem

um contexto de acordo com o deles, ai eu escolho assim. Geralmente a maior parte dos livros

que eu li até agora foram de animais, historinhas de bichinhos porque é o que chama mais

atenção.

A docente expõe claramente sua preocupação, seu critério de escolha do livro literário.

Em suas escolhas prevalece a leitura de histórias, porque estas “chamam” a atenção das

crianças, ou seja, existe o intuito de que o momento de leitura seja agradável para os seus

alunos. Ao observar a fala da professora 2, também da Educação infantil, encontramos mais

uma característica deste segundo critério – As preferencias demonstradas pelas crianças. Para

identificar as preferências dos seus discentes, as professoras expõem os mesmos ao acervo

escolar, como bem sugeriu Brandão e Rosa (2010):

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 311

Professora 2 da Educação Infantil:

Eu procuro sempre deixar eles à vontade na sala para escolherem que material eles querem

manusear, seja livros, seja revista e tem lá um armário, não tem portas o armário e os livros

ficam lá sempre, sempre a disposição deles. Então, entre uma atividade e outra sempre têm

aqueles que terminam a atividade com mais facilidade. Terminou a atividade: - Tia, posso

olhar uma revista? – Tia, posso olhar um livro? - Pode! Ficam bem à vontade.

Ao adotar esta atitude a professora proporciona uma maior interatividade das crianças

com os livros e aproxima os discentes do mundo literário, os auxiliando no desenvolvimento

de seus próprios critérios de escolha. Assim, ela pode identificar, através destes momentos, o

interesse demonstrado com relação a determinadas temáticas, bem como autores e gêneros

literários. Constatamos esta atitude, também no depoimento da professora 8 do 1 ano:

Eu me reúno com eles, e vou escolhendo aqueles que eles gostam mais, os de mais fácil

compreensão é o que a gente trás.[...] Porque tem que elevar informação para eles né, de

literatura que geralmente é esquecida né, geralmente, a gente conta, contava mais outras

histórias. Hoje não! A literatura tá inserida em sala de aula.

Através do depoimento da professora 8, constatamos uma preocupação em escutar a

opinião das crianças, utilizando estes momentos para obter e oferecer informações,

entendendo a importância de exercício do seu papel de mediadora literária.

No depoimento da professora 2, da Educação Infantil, também é exposto a

preocupação em identificar as preferências dos discentes como forma de estimular e

desenvolver o gosto pela leitura. Ao relatar como era realizada a escolha do livro literário,

perguntamos a docente os motivos que a levaram a adotar este critério:

Professora 2 Educação Infantil:

Acho que facilita para o aluno, como ele ainda não lê, eles se interessam muito por essa

parte visual do livro, pela parte tátil também. Aqueles livros que produzem sensações, que

estimulem os outros sentidos, não só a audição. Livros que eles possam tocar e sentir outra

textura, aqueles livrinhos musicais, aqueles livros grandes eles gostam muito. Quando você

chega com aquele livro enorme: - Que livrão! Eu acho que isso estimula muito eles.

Conclui-se que os livros que despertam um maior interesse a faixa etária assistida na

Educação Infantil são os que contemplam a necessidade de compreender o mundo. “Logo,

terão muito mais sentido para as crianças desta idade livros de borracha (infláveis e coloridos)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 312

ou livros de pano (macios e bem costurados) que possam, por exemplo, ser manuseados pela

própria criança [...]” (KAERCHER, 2001, p.84).

3) Conhecimento do acervo a que os estudantes têm acesso (na escola ou fora dela)

O terceiro critério apontado por Brandão e Rosa (2010) é o conhecimento do acervo a

que os estudantes têm acesso (na escola ou fora dela). As autoras remetem-se aos Programas

Nacionais como PNBE – Programa Nacional Biblioteca na Escola, que tem distribuído uma

grande diversidade de livros de literatura para as escolas. Estes precisam ser conhecidos para

serem melhores utilizados no contexto escolar. É preciso que, nas formações continuadas, os

professores tenham acesso direto ao que chega à escola como material de leitura, podendo

avaliar e estabelecer os seus critérios em relação ao acervo disponível.

Com relação ao município de Garanhuns, em nossa pesquisa, evidenciamos a forte

referência ao PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, principalmente, por

parte das professoras do 1 ano. Várias docentes mencionaram o acervo disponibilizado para a

escola pelo programa e afirmaram conhecer os livros que compõe tal acervo. No entanto, ao

relatar o título de alguns livros utilizados nos momentos de contação de histórias, foi possível

identificar que o acervo, ao qual as docentes estavam se referindo advém do Programa obras

complementares na escola.

Estas Obras Complementares visam auxiliar a prática docente, principalmente, no que

diz respeito ao processo de alfabetização na perspectiva do letramento, e consequentemente a

ampliação cultural das crianças.

A seguir um dos depoimentos que se remete ao conhecimento desse acervo para a

tomada de decisão sobre qual livro trabalhar:

Professora 8 (1º ano)

O acervo do PNAIC dá essa liberdade da gente emprestar, mas são trinta livros, na verdade

eu tô com 48, vou retificar, a gente ganhou uma caixa com trinta e depois a prefeitura

disponibilizou outro acervo com mais 18 ai eu tô com 48, só que assim são textos longos, tem

alguns que são textos longos como eu tô com o primeiro ano eu creio que o ideal, seria

melhor textos mais curtos, que ai estimularia ainda mais a vontade deles, deixaria eles ainda

mais seguros uma quantidade menor de texto a ser lido.

Segundo Brandão (2006), o conhecimento do acervo disponível a escola, por parte do

professor, pode se caracterizar como uma importante estratégia para que os discentes tenha

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 313

acesso a um variado repertório de gêneros literários. Identificamos claramente o terceiro

critério no trecho abaixo, no depoimento da Professora 3, da Educação Infantil:

Agora, eu acho assim, que o acervo para a educação infantil, o que vem para as escolas,

deveria ser melhor, às vezes vem livros assim que eu acho de auto- entendimento, assim é

complicado para eles entenderem. Aí, esses que vem assim, eu sempre vou deixando para lá,

eu faço uma seleção não é?! Mas os que vêm mesmo assim para a escola, eu acho que

deveria para Educação Infantil ser livros de outra qualidade. Porque vem assim, tanto vem

para o Fundamental como vem para a Educação Infantil, tudo igual, né?! E deveria ser

selecionado, mas o professor faz esse trabalho. Acredito que todo professor ele seleciona o

que é melhor para a sua turma.

Como comenta a professora, o professor tem a responsabilidade de selecionar este

material, assim como avaliá-lo e escolhê-los antes mesmo de chegar na escola. Através do

depoimento evidenciamos o conhecimento da professora em relação ao acervo escolar, mas

também uma insatisfação com relação ao mesmo.

4) Preocupação social no que tange ao desenvolvimento de valores

O quarto critério – Preocupação social no que tange ao desenvolvimento de valores – foi

estabelecido a partir do depoimento de três das professoras pesquisadas, como podemos

evidenciar no quadro 2, sendo duas delas da Educação Infantil e uma do

1º ano do Ensino Fundamental. Este critério remete a função social da escola. Professora 4,

Educação Infantil:

Com relação à literatura que aborda temas de valores sociais, como relatado

anteriormente, Teberosky e Colomer (2003) alertam que os precisamos ter cuidado quanto ao

excesso destas leituras na sala de aula. Elas classificam esses livros como “livros

prescritivos”.

Porque na minha sala eles estão muito desobedientes e a gente sabe que contos de

fadas, desde que sugiram, foram inventados, criados pra tipo moldar as pessoas e

não era para crianças, era para adultos né. Ai como eles estão desobedientes, a pes-

soa fala eles não tão obedecendo na escola nem tão obedecendo em casa porque as

mães vem relatar. Ai eu contei a história de Chapeuzinho justamente para enfatizar

na hora a obediência, que precisa obedecer. Uma questão de moldar através da

história. (risos)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 314

Considerando esta questão, Brandão e Rosa (2010) comentam que se corre o risco de ler

textos pouco atrativos para as crianças, mal escritos e que não despertem emoções, a

sensibilidade infantil, podendo ainda excluir obras clássicas que abordam sentimentos

humanos fundamentais.

5) Diretrizes estabelecidas pela secretaria de educação municipal

O quinto critério – Diretrizes estabelecidas pela Secretaria de Educação Municipal –

também foi construído a partir das entrevistas realizadas. A Secretaria Municipal realizou a

implantação de um projeto, que abrange da Educação Infantil ao 5º ano do Ensino

Fundamental. Este projeto intitulado “Despertar” foi estabelecido em todas as escolas

públicas de responsabilidade municipal.

O projeto “Despertar” determina uma rotina a ser seguida. Todo o projeto circunda

sobre temas geradores quinzenais, os quais devem ser vivenciados em sala de aula. Assim,

cabia a todas as entrevistadas a aplicação deste projeto durante todo o ano letivo.

A partir das entrevistas foi possível levantar alguns temas geradores trabalhados no

projeto. Vejamos o relato da Professora 5, da Educação Infantil:

[...]Tem dois temas, tipo... É... Teve a história de Garanhuns, tem é sobre bulling, essas

coisas . Então a gente procura histórias que falem alguma coisa alguma coisa a respeito

daquele tema que a gente tá trabalhando na quinzena, é por quinzena cada tema. A gente

trabalha fazendo isso.

Farias e Dias (2007) expõem que “As secretarias não têm o papel de elaborar

propostas pedagógicas, mas a responsabilidade de contribuir, subsidiando tanto as IEI1

públicas quanto as privadas de seu sistema nessa elaboração.” (p. 27). Assim, cabe às

secretarias o acompanhamento, a supervisão, bem como a avaliação do processo de

elaboração e implementação das propostas, de maneira a identificar necessidades e

desenvolvendo estratégias que possibilitem o avanço e a melhoria destas propostas.

No depoimento da Professora 10, do 1º ano, também identificamos a preocupação em

seguir as diretrizes do referido projeto:

Bem, o tema gerador tem que ser vivido, ele tem que ser aprofundado na sala, então o ideal é

que a gente não fique só fixado no cartaz que a gente leva. [...] E também relacionado com o

1 IEI – Instituições de Educação Infantil.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 315

tema gerador, como a gente não vai encontrar 15 dias livros sempre que tenha haver com

aquele tema ai eu vou intercalando.

Como pode ser visto, as professoras de certa forma ficam presas ao tema gerador e

como precisam seguir o projeto acabam, por vezes, utilizando como único critério de escolha

dos livros a serem oferecidos aos alunos, o fato destes tratarem algo sobre o tema da

quinzena.

Acreditamos que esse critério de escolha é limitador e pode não favorecer a ampliação

do letramento literário dos alunos. Os professores podem, ao se prenderem no tema,

esquecerem de observar outras questões importantes, tais como a qualidade dos textos e os

interesses dos alunos.

Por fim, nos parece que a leitura no 1º ano do Ensino Fundamental está muito mais

associada à exploração dos conteúdos estabelecidos para tal ano de escolaridade, ou seja, a

proposição de atividade de alfabetização, do que necessariamente a uma preocupação com a

formação de leitores ativos.

Com relação às professoras da Educação Infantil, identificamos uma maior

preocupação em tornar o momento de leitura o mais lúdico possível, fato que se dá porque a

prática da Educação Infantil está muito mais associada ao lúdico, entendendo-se que a

aprendizagem pode se dá através da brincadeira.

Referências

BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002.

BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa. A leitura de textos

literários na sala de aula: é conversando que a gente se entende. In: PAIVA, Aparecida;

MACIEL, Francisca; COSSON; Rildo. (Orgs). Literatura: Ensino Fundamental. Coleção

Explorando o Ensino; v. 20. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação

Básica, 2010.

BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa. Entrando na roda: as

histórias na Educação Infantil. In: BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland

de Sousa. (Orgs). Ler e escrever na Educação Infantil: discutindo práticas pedagógicas. Belo

Horizonte: Autêntica, 2010. (Língua Portuguesa na Escola; 2).

BRANDÃO. Ana Carolina Perrusi O ensino da compreensão e a formação do leitor:

explorando as estratégias de leitura. In: BARBOSA, Maria Lúcia Ferreira de Figueiredo;

SOUZA, Ivane Pedrosa de (Orgs). Práticas de leitura no Ensino Fundamental. Belo

Horizonte: Autêntica, 2006.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 316

FARIA, Vitória Líbia Barreto de; DIAS, Fátima Regina Teixeira Salles. Currículo na

Educação Infantil: diálogo com os demais elementos da Proposta Pedagógica. – São Paulo:

Scipione, 2007.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas,2009.

LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia

científica, 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.

RICHARDSON, Roberto Jarry, et al. Pesquisa social: métodos e técnicas, 3ª ed.São Paulo:

Atlas, 2008.

TEBEROSKY, Ana; COLOMER, Teresa. Aprender a ler e a escrever – Uma proposta

construtivista. Trad.: MACHADO, Ana Maria Neto. – Porto Alegre: Artmed, 2003.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 317

PEDRAS SOBRE RIOS: O LUGAR DO CORPO EM

RAKUSHISHA DE ADRIANA LISBOA [Voltar para Sumário]

Anne Louise Dias (PósLit/TEL/UnB)

Pensar o contemporâneo na literatura brasileira se presentifica como a tentativa de

lidar com uma urgência do escritor brasileiro em se relacionar com a realidade histórica,

muito embora ele reconheça a dificuldade de sua tarefa. Para Schøllhammer (2011), a

insistência do presente temporal, a “agoridade” com a qual se relaciona a literatura brasileira

fragmenta a produção contemporânea em diversos rumos, frutos de diferentes formas de

questionamentos da consciência história. Costumeiramente polarizadas, duas vertentes

surgiriam, uma primeira ligada a brutalidade do realismo marginal, e uma segunda que

“aposta na procura da epifania” (SCHØLLHAMMER, 2011, p.15), no mergulho do cotidiano

subjetivo. A oposição entre duas estéticas literárias é, entretanto, reducionista, e a literatura

que hoje trata de problemas sociais não exclui a dimensão pessoal e íntima, ao mesmo tempo

que a experiência subjetiva não ignora a turbulência do contexto social e global.

Por entre o embate estético, parece surgir na literatura brasileira um redesenho de

fronteiras e a mobilidade sobremoderna, a qual se referira Marc Augé, adentra suas

narrativas. Zilá Bernd (2007), aliás, anteriormente apontou e discutiu como a mobilidade

cultural caracteriza o imaginário das Américas, em particular a América Latina, uma

mobilidade tal que abre espaço para a aproximação de culturas através de processos

transculturais. O florescimento de inúmeros romances memorialistas e depoimentos

consistem, no Brasil, uma larga produção de biografias e relatos de estrangeiros que pleiteiam

suas vivências de deslocamento geográfico e cultural. O histórico brasileiro de imigração

permitiria que nossa literatura se preocupe com as diversas facetas do homem em contraste

com o outro, e o que se poderia chamar de literatura de imigração emparelha-se também com

a aproximação cultural com o Oriente, muito embora sejam esparsos os exemplos de versos

ou prosas que representem etnias orientais. Segundo o levantamento de Chiarelli1, poderíamos

1 Apud TAVARES, Zulmira Ribeiro. O puro amarelo do verão: “O japonês dos olhos redondos”.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 318

citar Oswald de Andrade e Mário de Andrade, os poetas Haroldo de Campos e Paulo

Leminski, e, na prosa contemporânea, Bernardo Carvalho e, finalmente, Adriana Lisboa.

Nascida no Rio de Janeiro, Adriana Lisboa escreve Rakushisha em 2007, obra fruto de

uma bolsa pesquisa da Fundação Japão. O romance entrecortado por fragmentos narrados

tanto em primeira quanto terceira pessoa mescla diferentes tempos e espaços desvelando

paulatinamente as histórias de Celina e Haruki. O encontro entre os dois protagonistas, não

por acaso em um metrô, faz surgir em meio ao contraste entre Brasil e Japão as memórias

túrgidas de um passado que se recusa a ser esquecido.

É a viagem ao Japão que os une e os põe em contato não apenas com a existência do

desconhecido, representado pela língua e os costumes japoneses, mas também com seus lados

mais íntimos. Muito pode ser dito sobre Haruki no que se refere à responsabilidade que sua

aparência japonesa atribui. Sem saber falar japonês e completamente afastado da cultura

nipônica, Haruki assume o papel de japonês no Brasil e de brasileiro quando no Japão.

Duplamente desterritorializado, ele se sente um corpo estranho (LISBOA, 2014, p. 20) dentro

da Embaixada do Japão. Para nós, no entanto, o choque cultural de Haruki com suas raízes

japonesas não se dará somente pelo seu entre-lugar identitário, mas fusionar-se-á às

escavações mnemônicas presentes em Rakushisha.

O romance de Adriana Lisboa faz do deslocamento Brasil-Japão o assunto e o mote de

seu enredo. É a quebra do cotidiano, o descolamento do chão que propulsionam os

acontecimentos de Rakushisha. É de nosso interesse, portanto, buscar quais implicações a

narrativa de viagem aporta a fim de acompanharmos a construção do sentido da experiência

subjetiva que, em Rakushisha, parte de um entrelaçamento imperfeito entre corpo, alma e

memória, e de um continuum entre passado, presente e futuro.

Por entre os fragmentos que documentam e desvelam as histórias de Celina e Haruki,

estão os escritos de Bashō, importante poeta japonês do período Edo no Japão. Como afirma

Cury (2012), esses fragmentos “mesclam-se na mesma busca, no mesmo caminho de

reconhecimento identitário do narrador, a produtividade das sendas propostas por Bashō”. O

livro de haicais serve ainda como um guia da narrativa: Haruki decide ir ao país de seus

ancestrais porque foi convidado a criar os desenhos de uma edição traduzida que sairia no

Brasil; Celina conhece Haruki porque ela se interessa pela quase comovente figura do japonês

que lia poesias japonesas – embora ele não soubesse ler em japonês - sozinho dentro do metrô

do Rio de Janeiro. Ademais, o livro sela o reencontro de Haruki com sua antiga amante

Yukiko – a então tradutora dos poemas – e se torna a bússola de Celina durante sua estadia

em Kyoto, que decide refazer o itinerário de Bashō.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 319

A introdução da poesia japonesa na narrativa de Rakushisha revela o quão importante

é o vasculhamento do passado. Os trechos do diário de Bashō, também relatos de uma

viagem, são extratos de sentimentos e memórias do poeta. O íntimo de seus relatos transborda

por sobre as próprias recordações de Celina e Haruki constituindo um romance consciente de

si, no qual o deambular de seus personagens representa o próprio desenvolver da narrativa.

Por entre as ruas labirínticas de Kyoto, para Celina, e Tóquio, para Haruki, vão se

materializando experiências passadas; o caminhar dos personagens se transforma aqui como

um longo processo de apropriação do sistema topográfico, nos termos de Michel Certeau, que

busca não apenas o reconhecimento físico das ruas, mas a criação de um espaço de

enunciação. A definição desse espaço é essencial para o desenrolar do romance e serve como

resposta aos sentimentos oblíquos e turvos de ambos os personagens, ambos perdedores e

perdidos – Haruki, porque perdeu sua amante; Celina, porque perdeu sua filha.

O ato da viagem repentina ao Japão, curiosa decisão que leva Haruki a se perguntar

“se ela [Celina] fugia, se corria, se acorria, se acudia, se esquecia, se lembrava, se fechava

os olhos, se os abria” (LISBOA, 2014, p.77), é, em verdade, o primeiro indício de um exílio

pessoal voluntário que, embora tenha tido supostamente o objetivo de fugir do passado, surge

como oportunidade de redefinição. As redes da cidade desconhecida, excludente ainda com

seus cinco sistemas de escrita distintos, vão pouco a pouco construindo as histórias múltiplas

dos protagonistas e desvelando seus fragmentos de trajetórias. Na lojinha de papel, tudo

começa, “comprei o caderno. O caderno se tornou um diário” (LISBOA, 2014, p.35). Celina

escolhe um pequeno manual de turistas para guiar seus passeios, e é com ele que ela percorre

ruas, lojas, pontos turísticos, reconhecendo sua própria história em rostos e muros

desconhecidos.

Como seria possível que se sentisse em casa ali, se não entendia nem mesmo as

inscrições nas placas ao seu redor? Se não tirava sentido das palavras ditas ao seu

redor?

Mas era uma casa. Era uma casa segura. Não havia o que temer em Kyoto, na

solidão que tinha em Kyoto, aquela afável solidão acompanhada. (LISBOA, 2014,

p.57)

Ultrapassado o abismo entre a clandestinidade primeira e a criação e consequente aceitação do

Japão como um espaço privado e amparador, uma casa segura, as imagens da cidade vão

trazendo à tona o que Celina não esperava lembrar.

O caminhar, afirma ainda Certeau, é ter falta de lugar, é o processo indefinido de estar

ausente e à procura de um próprio. Todo o romance de Adriana Lisboa parece fixar-se em

uma intuição singular de movimento. A importância à qual Celina atribui aos pés,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 320

mencionados quase obsessivamente ao longo da narrativa, sugere ainda uma concepção do

andar que ultrapassa o sistema físico-motor e refere-se ao um movimento cinético no qual a

carne – no caso específico do romance, os pés - é capaz de tornar o corpo presente no mundo:

Um dia Celina se deu conta de que o que mais lhe importava em seu corpo eram os

pés. Onde seus pés estivessem no momento estaria sua alma, ou como quer que se

chamasse, ela pensava, aquela parte do corpo que sempre ameaçava exceder o

próprio corpo. (LISBOA, 2014, p.29)

Quase como um esquema perfeito do que Merleau-Ponty afirmou ao estudar o espaço do

corpo, percebemos em Rakushisha que o corpo se caracteriza como uma condição de

possibilidade de percepção do estar no mundo, que se entrelaça à alma, ao intangível, e que se

complica e implica por entre vísceras:

Supõe-se que os músculos se encontrem todos no lugar, e os ossos por baixo deles, e

as sinapses transmitindo a intenção – a intenção não, a determinação, a ordem do

cérebro. Esse déspota. [...] Posso ir bem devagar, o meu devagar, porque estou

sozinha. Posso escolher o ritmo da minha dificuldade de caminhar, o ritmo do peso

das minhas pernas. (LISBOA, 2014, p.13)

A percepção do corpo e de seus componentes vai lentamente atrelando o lado material dos

músculos e dos ossos ao ato intáctil do viver – relação intermediada pelo cérebro, que, ainda

segundo Merleau-Ponty, constrói e encena o espaço do mundo. Ao centrar seu romance na

imagem dos pés, tanto em sua acepção literal quanto metáfora de viagens e do deslocamento

por entre as ruas, Adriana Lisboa poria em jogo uma personagem que, através do corpo,

confronta o mundo, seu passado, e também se faz parte dele. É por isso, talvez, que Celina

não compreenda como as japonesas costumavam equilibrar-se com seus tamancos geta e

conseguiam “caminhar daquele modo, com dezessete centímetros de distância entre sua pele

e o chão” (LISBOA, 2014, p.59). O corpo, a carne, inúmeras vezes colocados em posição

dicotômica à pureza da alma, deixa de ser visto como maquinaria e passar a ser analisado em

todas suas instâncias. Para Lisboa, existe uma espécie de justaposição de todos os campos do

corpo, e os pés sobre pés figuram uma metáfora adequada para o romance; uma metáfora que

propõe estabelecer e reunir no corpo feminino (com Celina, e também com Yukiko, a amante

de Haruki) o centro de toda a experiência do eu. A partir de uma percepção tríplice do

esquema corporal o corpo adquire três modos de representação, tal qual teorizara Bergson, a

carne, a imagem do corpo e o cérebro; os três de funcionamento diverso, mas

interdependentes.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 321

Dentro de uma narrativa de viagem é provável que pareça contraditória a necessidade

de colar-se ao solo, de manter-se ligada a uma estrutura fixa e imutável. Entretanto, a obra de

Adriana Lisboa é construída sobre um alicerce de pequenas e importantes dicotomias que,

longe de serem paradoxais, são complementares entre si. Se Celina deseja a união entre corpo

e chão, ela também não consegue superar a cisão imperfeita entre corpo e alma, instâncias

que, em Rakushisha, sobrepõe uma a outra. A interferência do que Celina considera alma é

também um peso, mas

Não era um peso de ossos, músculos, vísceras, gordura. Era um peso de peso. De

essência. A balança podia dizer 49 quilos: a balança não entendia nada de peso. Ali

dentro do estômago estavam pelo menos tantos outros, multiplicados por dez, por

cem. (LISBOA, 2014, p. 117)

Celina exibe um tipo de sensibilidade moderna, na qual o passado funciona como um fardo

para o presente e para o futuro. Mais do que isso, o peso do corpo permitia a reminiscência

contínua, pois se faz absolutamente, fisicamente presente, ao mesmo tempo em que

impossibilita a imagem do futuro. “O futuro não existia mais. O passado sim, embora fosse

esfumaçado e móvel. Mas o futuro não” (LIBSOA, 2014, p.29). Ironicamente, o passado é

movediço, o futuro imutável.

Longe de ser relicário, o passado é, em Rakushisha, um interventor. Ele se habilita a

transformar a viagem de Celina e Haruki, e moldado em memória, aparece em momentos

oportunos que engatilham uma ação de mão dupla: a memória é evocada pelo espaço da

narrativa, mas torna-se, em si, também lugar de enunciação e é capaz de mudar a forma pela

qual Celina e Haruki enxergam seus arredores. As bicicletas japonesas fazem Celina lembrar-

se simultaneamente de seu ex-marido e sua filha; Haruki, por outro lado, vê em Kyoto as

implicações da morte de seu pai e do fim de seu romance extraconjugal. É somente a partir

dessas considerações que os protagonistas do romance de Adriana Lisboa são capazes de

caminhar em direção a uma certa absolvição do passado.

Notemos, portanto, que corpo e cidade – por que não o corpo da cidade? –

possibilitam, em Rakushisha, o espaço do eu. Por um lado, o Japão oferece para os

personagens da trama a possibilidade de um caminho em branco, um canvas vazio que vai se

preenchendo concomitantemente das manchas do passado e dos temores do futuro. É por isso

que no primeiro dia de estadia de Haruki,

Ele dormia, na primeira tarde nesta cidade. Naquele momento não era de ninguém,

não era sequer de si mesmo, ele era antes uma reconstrução. Um romance. Uma

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 322

ficção por detrás dos olhos fechados. Havia uma dor guardada em algum lugar?

(LISBOA, 2014, p.69)

Erige-se ali a oportunidade da reinvenção, que se deseja atrelar ao próprio fazer narrativo.

O corpo dos personagens, por outro lado, não é exposto como uma tábua rasa, mas

está pleno. Encarnação de experiências passadas, o corpo carrega o que a alma sofre. E é por

isso que o toque, talvez tão mais do que a cidade, revira e faz ressurgir dentro da narrativa o

que nunca havia sido esquecido pela memória individual dos protagonistas. Embora Adriana

Lisboa tenha permitido pequenos indícios ao longo da trama sobre o que realmente teria

acontecido com a filha de Celina, o início da revelação última surge como pancada, como dor.

Ao preparar café, Celina esquece-se de checar a temperatura da chaleira e crava sua mão no

ferro quente. O intermédio é tão importante que existe uma demarcação 24 de junho, após a

queimadura (LISBOA, 2014, p.128) no diário de Celina. Demarcação justa, pois

Esse é o meu grande engodo. Minha dor é minha: marca na pele, feito a vermelhidão

da queimadura. Existe como uma visita na sala de estar. A dor, senhorinha sentada

no canto do sofá. (LISBOA, 2014, p.128)

É a marca vermelha na pele, o ardor quente da dor que faz com que Celina comece a

explicitamente contar como se deu o acidente de carro que matou sua filha, acidente causado

pelo próprio ex-marido. A memória é aqui mediatizada pelo corpo, e do corpo far-se-á surgir

as respostas.

O mesmo ocorre, aliás, durante a contemplação do corpo de Yukiko, a amante de

Haruki. Enquanto Celina imagina como deve ser a tradutora japonesa dos poemas, é a partir

de imagens corpóreas aparentemente insignificantes pelas quais ela vai re-montando a

presença de Yukiko. Aqui o corpo imaginado cria uma ponte, enquanto ele é marcado a ferro

pelas experiências passadas, essas marcas se tornam signos e supõem a existência atual de

cada um dos personagens. Não é, portanto, surpreendente perceber que Celina recria Yukiko

também através de uma imagem da dor, de mordidas de um cão que, talvez como Celina e

Haruki, só sabia viver mordendo.

Haruki, ele próprio, também se questiona sobre os limites do corpo ao implantar as

coisas do espírito dentro de cada uma de suas células:

Era possível fazer essa divisão entre as coisas do corpo e as do espírito, ou ambas

estavam (eroticamente) imbricadas, como a linha melódica de uma fuga? Mas o

espírito, Haruki pensava, morava nas células nervosas, e o corpo era substância

volátil, como álcool – apenas demorava um pouco mais para se volatilizar.

(LISBOA, 2014, p.78-79)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 323

A volatilidade do corpo poderia aqui imbuir um símbolo de morte, perfeitamente aceitável

dentro da narrativa, porém parece trazer consigo uma outra significância, tão importante

quanto. Não são raras as vezes em que Haruki não enxerga o corpo físico de Celina, mas a vê

como um holograma a ser recuperado (LISBOA, 2014, p.38), um fantasma.

A mulher já tinha nome. Celina. E, coerentemente com esse nome, parecia mesmo

alguma coisa volátil a Haruki. Talvez por dentro ela não tivesse ossos nem músculos

nem vísceras, mas ar. Um pedaço de céu recoberto pela fina epiderme humana. Um

pedaço de céu quase humano. Por fora, ela era o sorriso mais triste que ele tinha

visto nos últimos tempos. (LISBOA, 2014, p.25, grifo nosso)

A recorrência do adjetivo volátil associado à percepção do corpo de Celina não pode

ser ignorada, principalmente quando à luz das reflexões de Haruki, que transforma o corpo

como arcabouço da alma. Ousaríamos ir além e afirmar ainda que Haruki utiliza alma como

termo interdependente e semanticamente sinônimo à memória. Imbricada por entre células, é

a memória que pesa, que consome, que fragiliza.

A assinalação do erótico, também recorrente no romance, não é, ainda, sem propósito.

Enquanto carne e espírito se cruzam, a sexualidade é posta como o intermédio do eu – mas

um eu que se direciona ao outro e o contato entre corpos é também fonte da rememoração:

Sexo era outra coisa. Celina podia correr todos os riscos. Podia fechar os olhos.

Podia titubear e não saber onde estava, se no chão, se nas nuvens. Podia sentir, como

quem fura a onda gelada do mar, as mãos de Marco no seu corpo, pela primeira vez.

(LISBOA, 2014, p.45)

As memórias ligadas à sexualidade de Celina possuem importante papel ao longo da

narrativa. Elas existem na hesitação de Celina em tocar Haruki – e vice-versa -, na constante

recusa do ato por medo de trazer à tona a lembrança das mãos em si. No fim, o que Celina

procura escapar é o que a própria Adriana Lisboa nomeia memória do tato (LISBOA, 2014,

p.93). Uma memória que surge do tato, tal qual acontecera com a chaleira quente. Essa

memória encarnada permite, então, que Celina e Haruki reajam ao presente baseados em suas

ações passadas. É interessante notar que, em um certo momento da narrativa Celina tinha

dúvidas de que ainda soubesse andar de bicicleta. Aquele mito de se tratar de algo que nunca

se esquece não passava disso: mito. Quase tudo era passível de ser esquecido. (LISBOA,

2014, p.172); ela teme ter esquecido o pedalar, mas, mais a frente, vemos que ela anda

naturalmente de bicicleta, sem sequer notar. No corpo reside informações passadas e, posto

como centro de toda ação, ele é capaz de lembrar e modificar o presente. Adriana Lisboa

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 324

representa a matéria enquanto coabitação de forças múltiplas, lugar e filosofia materializada.

O corpo sabe ser feliz por conta própria. O corpo prescinde dessas bobagens da alma.

(LISBOA, 2014, p.139)

Essa multiplicidade se reuniria justamente no intuito de uma reconstrução da

existência em frangalhos. A ficção a qual se submete Celina e Haruki é um exercício de

retomada do passado, é um olhar que percorre estradas antigas e que ousa tocar na dor

esquecida. “Você ia ficar feliz, velho. Cutucar o passado com a ponta do dedo do pé. Para

constatar sua imobilidade?” (LISBOA, 2014, p.76), pergunta Haruki a seu pai já falecido.

Mas o cutucar do passado não é, em Rakushisha, mera contemplação. Parece-nos que, ao falar

da origem de seu sobrenome, Haruki revela a ideia central do romance de Adriana Lisboa.

Herança deixada por Ishikawa pai: a ideia frágil de um rio corrente sobre as pedras

silenciosas, passando, apenas, em meio a um mundo de sonhos.

Haruki sabia que um rio falava de dúvidas. Nunca se atinha a si mesmo. Nunca se

cristalizava na pedra que o acolhia. Ao mesmo tempo, a pedra, que parecia eterna, ia

se gastando e se deslocando da maneira mais contundente de todas – sem alarde,

sem aviso. (LISBOA, 2014, p.49)

A metáfora criada a partir de pedras e rios pela autora delineia e representa com

sutileza o cotidiano de seus personagens: imersos em dúvidas sobre o futuro, eles se veem

presos às pequenas pedras, aparentemente imutáveis, do passado e vão se descobrindo

correnteza. De inspiração quase heraclitiana, o trecho parece desdobrar o paralelo essencial

que Adriana Lisboa desenha com ele; que passado, presente e futuro se unem em um rio

corrente cujas pedras não mais tão silenciosas vão sofrendo a influência dessa singular

trajetória. O passado desloca sob a pressão das vivências futuras. Longe de ser, entretanto,

uma narrativa de superação, Rakushisha se impõe como uma tentativa de conciliação dos

personagens com suas histórias.

A sobreposição entre passado e presente, tão proeminente em Rakushisha, é portanto

uma mescla entre sombras passadas e desejos futuros, ambos inalcançáveis, mas circunscritos

dentro de uma irrefreável linha de progressão. O corpo, basilar nesse processo, seria o produto

de suas próprias fantasias2, objeto de recriação e ser recriador, e, uma vez unido ao processo

de rememoração, ele não seria um simples reservatório de memórias, mas uma totalidade das

disposições das personagens em relação tanto ao passado quanto ao futuro. A infusão entre a

matéria e as lembranças faz o corpo passar por um processo no qual ele suporta uma

2 FOUCAULT, M. O corpo utópico. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopico-

texto-inedito-de-michel-foucault

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 325

memorialização que se mantém constantemente viva e transforma a existência em um

cenotáfio.

Tal qual a viagem, a narrativa de Rakushisha se propõe não como uma revelação

última – a menção ao acidente da filha de Celina sequer é inesperada para o leitor atento –

mas como um processo de caminhada. Como Celina e Haruki, o leitor descobre por entre as

linhas da cidade e as mágoas do passado o que já havia sido anunciado logo ao início do

romance:

Agora não dá tempo de te contar como aconteceu. E ainda não sei se andar equivale

a lembrar, se equivale a esquecer, e qual das duas coisas é o meu remédio, se

nenhuma delas, se nenhuma opção existe e se andar é o mal e o remédio, o veneno

que tece a morte e a droga que traz a cura. [...] Seja como for. É só colocar um pé

depois do outro. (LISBOA, 2014, pág.12)

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SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 326

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Page 330: New Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada

III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 327

A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE

PORTUGAL NO CORPO DO LIVRO E DO VELHO: UM

ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS, DE

VALTER HUGO MÃE [Voltar para Sumário]

Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI)

1. Considerações iniciais

O romance A máquina de fazer espanhóis (2011) do escritor afro-lusitano Valter Hugo

Mãe tem como narrador-personagem o barbeiro Sr. Silva de oitenta e quatro anos. Sr. Silva ao

perder sua esposa é colocado pela filha no asilo Lar da Feliz Idade, portanto além de sofrer

muito com a perda da esposa a qual dividiu quase toda a sua vida o idoso se sente abandonado

pelos filhos, é neste momento de perda e exílio da vida social que Sr. Silva passará a olhar e

analisar seu passado, bem como atentar para sua fraqueza no tempo do salazarismo.

Mister frisar que a memória individual do Sr. Silva ganhará uma dimensão coletiva,

uma vez que o acontecimento histórico traumático da ditadura foi vivido por sua geração que

agora se encontra no asilo, esses velhos são os protagonistas da História (esta mesma com H

maiúsculo), agora cabe pelo exercício de narrar-se quebrar o silêncio que tanto esteve

presente no Estado Novo.

Um ressentimento ronda a velhice do idoso, o de não ter lutado contra o longo regime

ditatorial instalado em Portugal em que as liberdades eram nenhuma. É na sua estadia do asilo

que descobre pela primeira vez o que é amizade, em meio aos seus amigos surge a ideia de

escrever um livro, sonho este que vinha desde décadas anteriores em que queria tornar-se

escritor.

Deste modo, o livro que temos em mãos é o livro de memórias do Sr. Silva, escrito em

primeira pessoa, de discurso indireto livre, sintaxe e entonações peculiares que acompanham

o ritmo do fluir da sua memória. Neste caso podemos dizer que A máquina de fazer espanhóis

(2011) se trata de uma autobiografia do Sr. Silva, em que contará em dois tempos que se

confluem, o passado ditatorial e o presente em que Portugal faz parte da União Europeia.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 328

Didaticamente o trabalho divide-se em dois pontos, o primeiro ponto analisaremos

como o corpo do idoso, a letra de seus escritos e a história se interligam com a política, a voz

e a memória. Para isso a noção de biopolítica, oralização da literatura e memória guiaram a

análise, atribuindo-se à vivência de Sr. Silva uma ampla dimensão sobre a época do Estado

Novo e contemporaneidade portuguesa.

O último e segundo ponto está centrado na oralização da literatura na obra, a

explicação deste termo e como ele aponta para novos olhares e caminhos teóricos sobre a

literatura atual, neste trabalho ela adquire o caráter de biopotência, instância que possui certa

força de vida e impulsiona a existência em meio aos poderes que se instalam sobre as

liberdades humanas.

A escrita destas análises aponta para as possibilidades de tecnologias da escrita que

neste caso está intrinsecamente ligado à memória e política, uma vida socius que visa a

relação de alteridade e construção de si, ou seja, uma correlação entre igualdade e

singularidade. Ao passo que Sr. Silva juntamente com os outros velhos vão rescrever

pontualmente, sob nova perspectiva, uma nova história crítica de Portugal, sendo

ironicamente a partir dos que não tem mais espaço e força na sociedade.

2. Corpo, letra e história ou política, voz e memória do barbeiro Sr. Silva

Falar sobre o corpo do velho, sua escrita e sua história é apontar para aspectos

biopolíticos do seu lugar, da sua voz e da sua memória, assim sendo, a dimensão da escrita do

Sr. Silva acaba por desenhar uma força ou potência que vai de encontro ao seu lugar ocupado

socialmente. Para isso, dividimos este ponto em três questões que se entrecruzam e se

dissolvem quando pensamos a escrita do barbeiro Sr. Silva, são estes: 1) corpo e política; 2) a

letra e a voz e 3) história e memória.

Começar pelo corpo afetado pelas forças do mundo é essencial, Sr. Silva que inicia

suas memórias com a reclamação sobre a fraqueza de seu corpo velho, mas que a cada falha e

ruga marcadas trazem um aprendizado pela vida e suas experiências, diz: “eu era apenas um

olhar, um modo de ver. e nessa altura tudo me escapava das mãos. eu a querer que fizesse

cuidado, mas nada me obedecia porque anda correspondia à lógica ilusória da minha cabeça”

(MÃE, 2011, p. 111) O corpo do idoso se configura como se fosse um corpo desgovernado,

sem mais o comando das ações voluntárias de antes, podemos verificar bem ao ler:

um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas

quando, na verdade, estamos a desaprende-las, e faz todo o sentido que assim seja

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 329

para que afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a

inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as

alegrias e no resultado da conta é bem-visto que a cabeça dos velhos se destitua da

razão para que, tão de frente à mortem não entremos em pânico (MÃE, 2011, p. 33)

Sendo o corpo uma estrutura material e senciente que escolhe se é ou não afetado

pelos múltiplos estímulos que o atinge, o corpo acaba sendo antes de qualquer coisa o

encontro com outros corpos, tocar objetos e pessoas, relacionar-se com os outros é um ato

político na obra.

No totalitarismo, através do medo, as pessoas não podem entrar em contato efetivo

umas com as outras, embora por outro lado a sensibilidade do período traga um

aprofundamento nestas poucas relações. Escolher com quem eu converso e em quem acredito

é uma forma de estrategicamente burlar tais regimes, deste modo, Sr. Silva não teve amigo até

o momento do asilo.

A capacidade de se abrir ao novo é limitada no Estado Novo, o corpo é então de certa

impotência frente ao sofrimento, em momento último de sua vida é que o narrador idoso

aproveita para experimentar o que é a amizade e “com o tempo, começava a falar e criar afeto

pelos outros” (MÃE, 2011, p. 27), compreender o que é amar pessoas sem laços sanguíneos,

uma vez que se dedicou tanto à família, um dos ideais da tríade salazarista (junta à Deus e

pátria), como se o espírito de comunidade fosse útil até certo ponto, o de fortalecer o

nacionalismo e enfraquecer a força da união popular contra a política que imperava.

Percebemos em A máquina de fazer espanhóis (2011) que o corpo fala, cada uma de

suas rugas falam, pois marcam fatos da vida de Sr. Silva que serão rememorados pelo estado

que se encontra sua estrutura física e o tempo que a talhou.

Os pesadelos do idoso que acaba por compor-se uma matéria impalpável do indizível,

traz como elemento simbólico um abutre que ronda suas noites querendo devorá-lo, o abutre é

a materialização do seu remorso e covardia durante a vida, a de ser parte do rebanho calado

do regime e o de entregar a única possibilidade de amizade na época à PIDE (Polícia

Internacional e de Defesa do Estado) para fazer parte do número de desaparecidos

portugueses torturados e mortos.

Aos poucos o pesadelo com o abutre não vai se tornando mais assustador e

inconveniente, ao passo que o espantoso não o espanta mais, ele passa a compreender seus

sentimentos e a ave não mais o arranca pedaços, mas sim sobrevoa pacífica e

harmoniosamente seu ser. Aos poucos Sr. Silva vai encontrando lugares para colocar seu

passado e a explicação pelo instinto de sobrevivência do período são justificados pela

responsabilidade com seu filhos e esposa, embora a dor fosse grande, como pode-se ler:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 330

éramos todos livres de pensar as coisas mais atrozes. isso não nos impedia de sermos

vistos pela sociedade como bons homens e de sairmos à rua dignos como os

melhores pais de família, um homem havia de ser medido pelos seus atos, pouco

importando se dentro de casa era feito daquela mariquice de acreditar em deus ou da

macheza cretina de se ligar aos malfeitores, estejam eles escudados numa igreja ou

num governo. éramos por igual todos cidadãos da mesma coisa. a andar para a frente

com os instintos de sobrevivência a postos como antenas. eis a emissão certa, a

propaganda que não podíamos dispensar, sobreviver, segurarmo-nos, e aos nossos, e

abrir caminho até morte dentro. essa é que era a essência possível da felicidade,

aguentar enquanto desse (MÃE, 2011, p. 118)

Ironicamente o idoso vai traçando o perfil dos homens da época, criticando a

hipocrisia em que se inseria nas relações sociais. Sabe-se que a dor do Sr. Silva é uma dor

coletiva sentida politicamente pelos portugueses, o tempo que surge como potência

reconfigura o medo em dor pelos sofrimentos vividos coletivamente, e mais, coloca essa dor

ligada à esperança.

A dor aqui está em outro plano que não o do corpo, mas sim na consciência geral das

pessoas, como na fala de Silva da Europa, outro personagem idoso do asilo diz: “eu sou

daqueles a quem a vida doeu e, mais cedo me possa estender a descansar, mais feliz me

ponho” (MÃE, 2011, p. 15), fala esta que pode ser atribuída a qualquer um indivíduo presente

no asilo.

A relação com si mesmo e a relação com os outros faz Sr. Silva reconciliar com a

solidão e a sociabilidade formas de externalizar a fala presa e contida pelo trauma, ganhando

esta singularidade de voz uma sensibilidade coletiva marcada por índices de lembranças e

esquecimentos sobre o dado momento histórico que acaba por ficcionalizar-se em meio às

vivências de Sr. Silva e dos portugueses.

A memória elabora da também pelo seu revés o esquecimento traz na vida atual do Sr.

Silva a História do povo português também na atual situação, a de dificuldade econômica, que

assentou no pós ditadura e na entrada de Portugal na União Europeia. Em dois tempos,

passado e presente, os testemunhos e falas dos idosos do asilo metaforicamente representam a

geração responsável por narrar o indizível de uma época visando a não repetição da

tragicidade anterior. Sobre o medo e o perigo do fascismo reminiscente ele pensam:

colega silva, ainda está cá dentro, é muito difícil tirarmos das ideias a educação que

nos deram de crianças. podemos ser todos inteligentes como super-homens, adultos

feitos à maneira e pensantes livremente, mas a educação que nos dão em crianças

tem amarras para a vida inteira e, discretamente, aqui e acolá os tiques fascistas hão

de vir ao de cima. (MÃE, 2011, p. 91)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 331

Contudo, percebe-se uma bifurcação no discurso, o de que alguns idosos denunciam a

ditadura, e outros já a defendem de forma saudosista em prol de uma ordem das coisas. O

perigo reside aí para Sr. Silva, no fascismo dos bons homens, que devido a educação

portuguesa todos carregam uma vontade estranha de ordenar as coisas, residindo o perigo da

falta das liberdades.

O corpo como elemento político, a letra como materialização de uma voz até o

momento silenciada, a memória como repositório histórico singular, são os três motivos

analíticos encontrados na obra de Valter Hugo Mãe, tendências contemporâneas atreladas à

metaficção historiográfica (Linda Hutcheon), que acaba por reescrever ficcionalmente a

história a luz de um homem ordinário como o barbeiro Sr. Silva, a voz dos muitos e comuns

que ecoam criticamente sobre determinado acontecimento.

Por fim, encontra-se na materialidade dos escritos do barbeiro uma vontade de

potência peculiar, a de resolver aspectos dolorosos de sua vida até o momento abafados e

escondidos, e o de contar sobre um mal coletivo em direção ao andamento adequado dos

direitos humanos e da comunidade. Então, Sr. Silva representa a voz dos portugueses que

temem o retorno do regime totalitário no país, aspecto que vem se alastrando pela Europa e de

forma nostálgica surge como esperança em meio ao caos político contemporâneo.

3. Oralização da literatura em A máquina de fazer espanhóis

Oralização da literatura ou oralização das técnicas de escrita, é uma ideia que aparece

em uma entrevista com Édouard Glissant, segundo Justino (2013), em Introdução à uma

poética da diversidade (2006) e, esta ideia é retomada por Jean Derive (2010) que defende tal

ideia no âmbito da literatura africana, que utiliza a oralidade como tática política.

Neste caso, é necessária a diferenciação entre oralidade e oralização. A primeira está

para a memória coletiva, a segunda está relacionada à hibridação e ruptura da escrita, como

diz Justino: ela tem um aspecto imaginário, cultural, semiótico em toda amplitude; e um

aspecto, diria, maquínico, tecnológico (2013, p. 16). Deste modo, a oralização que se conecta

ao passado de forma distinta, com aspecto de presentificação e criticidade e não de nostalgia

em relação ao passado.

A oralização se situa no contexto da escrita, como uma ponte entre a fala como

elemento presente da escrita, ao passo que ela é de produção simbólica, imagética. Em A

máquina de fazer espanhóis a escrita aparece como recipiente da voz que é a memória

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 332

localizada no legível e no visível, pois Sr. Silva cria uma entonação própria que nasce a partir

da dicção e sintaxe nascidas das vivências que vem desaguar finalmente no asilo.

Característica marcante na literatura atual é o aspecto de conversa que ganha a matéria

escrita, em que com determinada leveza assuntos profundos são tratados, essa tendência

caracteriza de certo modo a oralização da literatura, como podemos ler no trecho abaixo as

marcações orais na escrita ganha uma configuração distinta em que o presente é dilatado na

fala está confluindo com a avaliação sobre a história oficial fundando uma história alternativa:

como se o corpo dele fosse um poço profundo e ele estivesse longínquo a tentar

chegar cá acima. subitamente suspira. um suspiro muito fraco, muito triste, e deve

ser como se sente respirar subido dessa profundeza. parece que está agarrado por

dentro do corpo. eu levantei-me algumas vezes. acendi aqui o candeeirinho e fui vê-

lo ao pé. Eu juro que o homem quase se mexeu. a intensidade do seu olhar era de tal

modo que eu sabia que fazia um esforço para me dizer algo. e eu ainda lhe disse

umas quantas vezes que estava tudo bem, que ele devia sossegar, que estava tudo

bem. (MÃE, 2011, p. 125)

A oralização é uma estratégia utilizada pelo nosso personagem comum, o barbeiro e

idoso que potencializa sua escrita com sua memória grávida do contemporâneo, do presente,

que vive e não precisamente do passado que já não pertence mais a ninguém a não ser como

formulação discursiva, por isso a oralização não é estática, está de acordo com as mudanças e

caminhar do tempo, em outras palavras, com o devir.

Assim sendo, a oralização da literatura se delineia como novo arranjo da escrita,

aqueles que acabam aparecendo através do modo se subjetivação do personagem, em

específico do Sr. Silva agindo contra os dispositivos normativos e além disto irrompendo

elementos fantásticos e linguagem peculiar proveniente do cárcere no asilo e da velhice.

A presença da morte e ausência de liberdade faz com que o idoso conjure forças e um

dos métodos encontrados é pela escrita, esta que se assoma com o estado de ascese a que

chega o Sr. Silva, uma vez que rememorar é uma forma de atingir determinado nível de

resolução das suas questões interiores.

Com a forte memória afetiva da esposa e da ditadura em sua vida o idoso ao longo da

narrativa vai se desprendendo delas e chegando a um estágio de elucidação de seus anseios e

desejos. No momento do Estado Novo ele era gado, fazia parte de uma massa de gente que

tinha a liberdade tolhida e uma vida que se fosse ser analisada não valia ser vivida, a não ser

que com os artifícios criados pelo próprio governo, como o futebol, a Igreja, a arte, que

auxiliava a cegueira da multidão.

O avesso de tudo o que ele não pode fazer e contar é a memória, ela é a potência, a

linha de fuga o momento de reterritorialização. É quando o homem ordinário consegue

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 333

apropriar-se da linguagem criticamente e realizar uma ranhura na história. Daí a reinvenção

da noção do humano que mesmo em meio a banalidade do mal dos tempos totalitários

conseguiu traçar outro caminho em meio a cruel medida do biopoder.

A oralização da escrita está totalmente ligada ao corpo e suas pulsões, as criações

imagéticas sobre seus sentimentos acabam por originar “a dobra do corpo sobre si mesmo e

acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários” (GUATARRI, 1992, p. 153),

em que a memória simbolicamente adquire um aspecto simbólico, a exemplo dos abutres de

seus pesadelos noturnos que representa o remorso e a consciência sobrecarregada do idoso.

Sobre o corpo e sua ligação com a escrita tem-se a noção da inelutável modalidade do

visível de que fala Didi-Huberman, em que “a visão se choca sempre com o inelutável volume

dos corpos humanos” (1994, p. 30), em meio à multidão de singularidades e explica o autor

dialogando com Joyce que o corpo é o objeto primeiro de todo conhecimento e de toda

visibilidade, o corpo é uma espécie de receptáculo orgânico em que sai e reentra sensações.

Deste modo, o corpo, o livro e a memória são três objetos constituintes da oralização

da literatura em A máquina de fazer espanhóis (2011). Operam essa tríade no que se entende

por novo e necessária maneira de escrita e subjetivação, não deixando de lado a natureza

individual e peculiar da memória e cosmovisão a ela atrelada. A respeito da ligação entre

corpo, escrita e política lê-se:

O que liga a supradeterminação do conceito de escrita ao pensamento de ligação

comunitária. O conceito de escrita é político porque é o conceito de um ato sujeito a

um desdobramento e a uma disjunção essenciais. Escrever é o ato que,

aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que

realiza: uma relação na mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela

prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com os outros corpos com os quais

ele forma uma comunidade; dessa comunidade com a sua própria alma

(RANCIÈRE, 1995, p. 7)

Oralizar é tornar a escrita fecunda e viva em relação ao momento presente. É

encapsular momentaneamente uma vontade à revelia das difíceis situações vividas e mais,

tornar a fala um recurso extensivo da memória carregada de poder contra as injustiças e

desumanizações acometidas no período ditatorial. Portanto, o corpo, a fala e a memória de Sr.

Silva canalizam uma forma de empenho em buscar um lugar para seu ressentimento e espera.

Então, estudar essa propensão da literatura contemporânea é estender seu lugar de

atuação para outros discursos, como o da política e história, por exemplo. A memória de Sr.

Silva constitui uma interpelação ao modo de se olhar para o passado, colocando o presente

como meta a se organizar baseado em experienciações diversas.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 334

4. Considerações finais

Refletir sobre a condição de oralização da literatura é compreender os novos caminhos

e tecnologias da escrita, e esta configuração em A máquina de fazer espanhóis (2011) está

interligada ao uso crítico da memória. Por isso a necessidade em se falar do corpo do velho e

sua ligação política, falar da escrita quanto voz que agora conta o indizível e por último

discorrer sobre a memória e história, para assim abrir o caminho de discussão da oralização da

escrita e sua potência dentro da literatura contemporânea.

Usar a língua de modo potente em que constrói novas perspectivas sobre o passado e

presente de Portugal é o que constitui o cerne da oralização da literatura, artífice do narrador

Sr. Silva que tem o intuito de combater e esclarecer determinados pontos da sua vida e

paralelamente da coletividade de portugueses que viveram a mesma falta de autonomia.

Contar aos personagens secundários e futuros o que viveu no período ditatorial é o

objetivo do protagonista Sr. Silva, ir contra o fascismo iminente que já faz parte das

sociedades e transpor outra visão sobre o passado que antes não poderia ser externalizada.

Ora, momento melhor que o da liberdade que a velhice traz e o desgoverno do corpo que

juntos acabam por tecer um modo específico de se falar sobre o medo e a dor vividos.

A narrativa do barbeiro se dispõe contra qualquer tipo de saudosismo pela época árdua

e violenta em que os portugueses só trabalhavam, iam à missa e assistiam aos jogos de

futebol. Uma violência ao mesmo tempo silenciosa e falante, tal qual a letra e pulsão de

escrita do Sr. Silva, que em meio à mudez e ao dito expõe sua identidade sem medo da falta

de proteção que só a coragem da verdade e a aproximação da morte carregam.

O exemplo de Sr. Silva, este personagem tão bem construído por Mãe, deve ser

seguido, pois ao avesso do abismo e vazio que se instala em sua vida ele fabrica novos modos

de se superar a passagem difícil da sua vida. E múltiplas questões surgiram e algumas lacunas

ficaram, a necessidade do ponto final surge pela necessidade do fim deste texto, mas não das

discussões em torno dos aspectos abordados.

Referências

GUATARRI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e

Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992.

HUBERMAN, Didi. A inelutável cisão do ver. Trad. Paulo Neves. In: O que vemos, o que nos

olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 335

JUSTINO, Luciano Barbosa. Devir-brasil: oralização da literatura. In: Pontos de

Interrogação, v. 3, n.1, jan./jul. 2013, p. 11-21. Disponível em: <<

http://poscritica.uneb.br/revistaponti/arquivos/volume3-

n1/Luciano_Barbosa_Justino_REVISTAPONTI_VOL_3_N1.pdf >> Acesso em 14 de março

de 2015.

MÃE, Valter Hugo. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

RANCIÈRE, Jacques. O corpo e a letra. In: Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete. Rio

de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 7-102.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 336

O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE

A OBRA A HORA DA ESTRELA [Voltar para Sumário]

Antonia Gerlania Viana Medeiros1 (UERN)

Roniê Rodrigues da Silva2 (UERN)

O fragmento que descreve o momento em que Macabéa se olha no espelho serve como

apresentação e reconhecimento da personagem para o leitor, pois até então Rodrigo tinha dito

somente os seus argumentos para falar ou não da moça, porém, foi ao narrar a quase demissão

da jovem e a sua face em frente ao objeto que reflete, que passamos a saber como a nordestina

veio para essa cidade feita toda contra ela, o Rio de Janeiro.

Clarice Lispector consegue, por meio da sua linguagem metafórica, do narrador que

também é personagem e das imagens que delineiam em sua obra e na mente do leitor, falar de

uma “sociedade técnica”3, do contraponto de uma ideologia burguesa e da migração do

nordestino ao grande centro urbano do Brasil. A autora nos oferece um “espelho baço e

escurecido”, mas capaz de refletir uma crítica social nítida e coesa pelo o contexto que os

personagens viviam.

Instigados com a imagem que tentamos enxergar de Macabéa no espelho e diante do

primeiro rebaixamento sofrido pela personagem na narrativa, analisaremos os reflexos do

contexto social e da condição dos personagens na obra A hora da estrela, recorrendo aos

trechos do texto literário que narram esse momento, ao significado simbólico que o espelho

proporciona na cena escolhida e, principalmente, as características da escrita de Clarice

Lispector.

Segundo Nunes (1995), a obra A hora da estrela é constituída por três histórias, a

primeira conta sobre Macabéa, a segunda fala do narrador Rodrigo e a terceira é sobre a

própria narrativa. O autor identifica a elaboração da narrativa e a construção da personagem,

1 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), do Mestrado Acadêmico em Letras do

CAMEAM/UERN. 2 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), do Mestrado Acadêmico em Letras do

CAMEAM/UERN. 3 Termo empregado pela própria Clarice Lispector na obra, “Nem se dava conta que vivia numa sociedade

técnica onde ela era um parafuso dispensável” (LISPECTOR, 1995, p. 44)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 337

como um jogo de identidade. Nunes (1995, p. 169) nos lembra que o narrador da obra é

Clarice Lispector, “e Clarice Lispector é Macabéa tanto quanto Flauber foi Madame Bovary

[...] Clarice Lispector se exibe, quase sem disfarce, ao lado de Macabéa [...] A escritora se

inventa ao inventar a personagem. Está diante dela como de si mesma”. Clarice escreve a

história de Rodrigo que narra a história de Macabéa.

Essa relação autor, herói e obra é discutida por Bakhtin (1997), que diz que o autor

está inserido em um contexto e conhece e faz a criação verbal de maneira artística, o criador

da obra tem uma visão excedente em relação ao herói e toda a história. No decorrer da

narrativa percebemos o quanto o narrador criado por Clarice Lispector conhece toda a

história, tanto que na terceira página do romance Rodrigo S. M. revela “experimentarei contra

os meus hábitos uma história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e de

chuva” (LISPECTOR, 1995, p. 27), ou seja, ele já adianta o final da história.

O romance é um dos gêneros onde podemos perceber com mais veemência essa

relação entre autor, personagem e obra, pois atenta-se a detalhes que se referem não somente

ao contexto que a narrativa enfatiza, mas ao do autor também. Watt (1990) trata em sua obra

Ascensão do romance sobre como esse gênero sofreu influências e aponta que o realismo foi

um dos propositores dessa mudança, ressaltando que o realismo não faz referência a uma

doutrina filosófica ou literária, mas a procedimentos narrativos que definiram o gênero

romance.

Um dos pontos enfatizados por Watt (1990), sobre as particularidades que o realismo

proporcionou ao romance, temos a importância dos nomes dos personagens na narrativa,

segundo o autor “os nomes próprios têm exatamente a mesma função na vida social: são a

expressão verbal da identidade particular de cada indivíduo. Na literatura, contudo, foi o

romance que estabeleceu essa função” (WATT, 1990, p. 19). Então, na obra clariciana

encontramos uma personagem cujo nome nos suscita várias indagações, inclusive para

entender o nome, “– Macabéa. – Maca – o que? – Bea, foi ela obrigada a completar. – Me

desculpe mas até parece doença, doença de pele” (LISPECTOR, 1995, p. 59). Além do mais,

a escolha do nome Macabéa, por Clarice Lispector, indica a intenção da autora em apresentar

a sua personagem como um indivíduo particular, característica dos romancistas ao escolherem

o nome, de acordo com Watt (1990).

A personagem principal da narrativa de Rodrigo é uma moça de dezenove anos, tola

“às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem a menos a

olham” (LISPECTOR, 1995, p. 30). O próprio Rodrigo S. M. descreve Macabéa como uma

“imagem feia”, como podemos observar nesses trechos: “[...] é o seguinte: ela (Macabéa)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 338

como uma cadela vadia era teleguida exclusivamente por si mesma” (LISPECTOR, 1995, p.

32), “a sua cara é estreita e amarela como se ela já tivesse morrido” (LISPECTOR, 1995, p.

39), tinha “o corpo cariado” (LISPECTOR, 1995, p.51). Além de expor a “feiura” da moça, o

narrador ainda afirma que ela era “incompetente para a vida” (LISPECTOR, 1995, p. 39).

Deparar-nos com a situação da personagem, depois de ter sido enfatizada várias vezes

pelo narrador por sua falta de beleza e “de jeito”, sendo quase demitida pelo chefe da firma,

ratifica, por meio dos argumentos do senhor Raimundo Silveira, a despreparação que

Macabéa tinha para (sobre)viver a atmosfera industrial e capitalista que pairava na sociedade.

avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara

de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade que só ia manter no emprego Glória,

sua colega, porque quanto a ela, errava demais na datilografia, além de sujar

invariavelmente o papel. Isso disse ele. Quanto à moça, achou que se deve por

respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosa a seu escondidamente amado

chefe:

- Me desculpe o aborrecimento. (LISPECTOR, 1995, pp. 39-40)

O senhor Raimundo é o primeiro personagem a rebaixar Macabéa, caso não

consideremos a maneira como o narrador Rodrigo caracteriza a moça no início da narrativa. O

ato de ser brutal no jeito que fala e demite a datilógrafa, reflete a posição que cada um

ocupava naquela firma, ele como o empregador (chefe) e ela como a empregada (datilógrafa)

passiva. Apesar de que, como a própria obra apresenta no decorrer da história, Macabéa era

um sujeito passivo em quaisquer condições de sua vida.

Medeiros (2009) analisou como a obra A hora da estrela é marcada pela estética do

feio e por características grotescas, entre elas, principalmente, o rebaixamento dos

personagens. O conceito do grotesco na literatura é colocado como aquele que a sua

comicidade e aspecto da sátira ficaram percebíveis nas obras literárias, principalmente pelo

aspecto do “feio”, do “rebaixamento” e do “cômico”. É compreensível o porquê de o grotesco

parecer “monstruoso”, “horrível” e “disforme”, pois ele é o oposto da estética do belo, nele o

que prevalece não é a beleza externa, mas a descrição diferenciada de um ser que gera

comicidade e “rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e

do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado espiritual, ideal e abstrato”

(BAKHTIN, 1996, p. 17).

Quando falamos em rebaixamento estamos mencionando os estudos de Bakhtin (1996)

e a análise de Medeiros (2009), este último nos mostra o rebaixamento dos personagens na

obra objeto de análise. Não nos deteremos como esse rebaixamento atinge todos os

personagens, porém na própria narrativa a maneira como o narrador e os demais personagens

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 339

se descrevem e se comportam nos mostram que de fato essa característica do grotesco está na

narrativa.

A informação dada entre parêntese no trecho literário, que diz que Macabéa provocava

a brutalidade com “a sua cara de tola, rosto que pedia tapa” demonstra como a personagem é

colocada no posto de responsável por ser quase demitida, assim como por ser tão passiva

naquele momento. A atitude que a moça teve diante da situação foi pedir desculpas pelo

aborrecimento causado ao chefe, feito isso não para defender a si ou ao seu emprego, mas

porque achava que era respeitoso dizer algo depois de tudo o que ouviu.

Macabéa se mostra como uma empregada desqualificada para o seu serviço, pois o

seu chefe a culpa por errar as palavras na datilografia e por sujar os papeis. Observe que é

retirado da personagem, com essa fala do senhor Raimundo, o único “título” que a

aproximava da dignidade de ser gente, que era ser datilógrafa. “Por ser ignorante era obrigada

na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera o curso ralo de como

bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade; era enfim datilógrafa” (LISPECTOR,

1995, p. 29). Entretanto, não podemos julgar a moça por isso, afinal ela só tinha até o terceiro

ano primário, o que justifica o fato da jovem não aceitar que na linguagem duas consoantes

ficassem juntas em uma palavra. Por falta de conhecimento sobre a língua e a vida, é que

Macabéa errava, ou melhor dizendo, não acertava.

Souza (2006, p. 110) coloca que Macabéa representa o humano de forma caricatural e

hiperbólica, ao mesmo tempo que é desenhada como a negação do humano, “Macabéa,

dessemelhante no conjunto, separada dos homens pela barreira da arte, é convincente pelo

detalhe, enquanto resposta estética a indagações humanas”. São nas características isoladas da

personagem que reconhecemos o sujeito como ser social, é tão irreal que uma pessoa possa

ser assim, tal qual Macabéa, no entanto, ela, com o seu jeito e ações, se aproxima tanto do

real, aos olhos do leitor. De acordo com Lukács (2000, p. 60) o gênero romance “busca

descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”, ou seja, Lispector consegue,

por meio da sua narrativa, refletir sobre a sociedade.

Na realidade, não eram somente as palavras escritas que faltavam no vocabulário de

Macabéa, a fala também. Ela não sabia o que dizer, como e quando falar. A linguagem não

era algo plenamente dominado pela moça, ela somente repetia o que seu chefe mandava

escrever ou o que ela escutava no rádio-relógio. Na ocasião de ouvir o seu chefe proferir que

iria manter somente Glória na firma e que, consequentemente, isso significava que ela estava

demitida, a jovem disse “me desculpe pelo aborrecimento”, surpreendendo senhor Raimundo

com tal discurso.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 340

O senhor Raimundo Silveira – que a essa altura já lhe havia virado as costas –

voltou-se um pouco surpreendido com a inesperada delicadeza e alguma coisa na

cara quase sorridente da datilógrafa o fez dizer com menos grosseria na voz, embora

a contragosto:

- Bem, a despedida pode não ser para já, é capaz até de demorar um pouco.

(LISPECTOR, 1995, p. 40)

Atentemo-nos para o jogo nas palavras feitas por Rodrigo S. M. ao dizer que o chefe,

naquele momento, já tinha virado as costas para a moça, o que não indica só a posição

corporal do personagem, mas também sugere que ele não teria se importado com o que seria

da moça, o que aquela menina órfã iria fazer naquela cidade, qual outro emprego ela poderia

conseguir no mercado de trabalho, sendo ela tão despreparada? Macabéa, dar-se a entender na

obra, era uma mão de obra barata, mais uma nordestina que chegava ao sudeste na esperança,

dela e da tia, de viver melhor do que era em Alagoas, no entanto, nem sobre isso a

personagem pensa, faz-se entender almejar.

Então, Macabéa escuta do seu chefe que talvez não seja demitida, agora era ela que se

surpreendia com as palavras de seu Raimundo, mesmo que elas tenham sido ditas a

“contragosto”, pois recebia novamente a sua dignidade, voltava a ser datilógrafa, a ter um

emprego na “sociedade técnica” que ela fazia parte, mesmo sem ser consciente do que seria

essa sociedade.

Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava

atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e

rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o

espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua

existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada

pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de

papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem. (LISPECTOR,

1995, p. 40)

Passado o episódio de demissão e readmissão do emprego, Macabéa se dirige ao

banheiro, ainda atordoada com o que aconteceu e se olha no espelho. Mas nesse trajeto da

personagem visualizar o espelho, o narrador diz que ela “olhou-se maquinalmente ao

espelho”. Vejamos que esse olhar maquinal que Rodrigo S. M. faz referência pode ser

entendido pelo gesto repetido e comum, ao chegar no banheiro e se olhar um espelho, típico

das mulheres; como também pode ser entendido como uma crítica social que o narrador faz a

posição ocupada por Macabéa naquela firma, afinal, ela era apenas “um parafuso dispensável”

(LISPECTOR, 1995, p. 44), comparando-a com uma “máquina” daquela firma, daquela

sociedade moderna e técnica.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 341

Além disso, o narrador compara Macabéa a pia que é imunda, rachada e ainda cheia de

cabelos, evidenciando a “pobreza” que era vida de Macabéa, pois ela era “feia”, “suja” e

“rebaixada” a uma pia imunda. Ela e a pia pareciam existir com a finalidade de receber

passivamente o que os outros “despejavam”, como foi ao ouvir tudo o que senhor Raimundo

Silveira falou. A pia como recipiente de limpar as impurezas, é maculada com a sujeira dos

outros, enquanto que, a moça, sempre ouvia o que os outros tinham a “despejar”, bem como

sempre estava como a pia, suja.

Ao se olhar no espelho “baço e escurecido” Macabéa não viu sua imagem refletida, é

quando o narrador, que tudo sabe e tudo ver, questiona “Sumira por acaso a sua existência

física?” (LISPECTOR, 1995, p. 40). Ao fazer tal indagação sobre Macabéa, a narrativa nos

põe a prova se realmente é possível existir alguém tal qual a moça nordestina. A presença do

espelho nesse momento em que a personagem tenta se acalmar, tendo em vista estar atordoada

pelo o que ouviu do seu chefe, e se reconhecer na imagem que deveria refletir no espelho,

incentiva-nos a abordar também nessa análise, um pouco sobre o significado simbólico desse

objeto.

Chevallier e Gheerbrant (2009, p. 393), em Dicionários de símbolos, colocam que o

espelho, enquanto superfície que reflete, é “o suporte de um simbolismo extremamente rico

dentro da ordem do conhecimento”, ou seja, tal objeto pode proporcionar inúmeras

interpretações, pois além de tudo ele é revelador. Ainda acrescentam que “o espelho é, com

efeito, símbolo da sabedoria e do conhecimento, sendo o espelho coberto de pó aquele do

espírito obscurecido pela ignorância” (CHEVALLIER e GHEERBRANT, 2009, p. 394). O

espelho que Macabéa se olha está “baço e escurecido”, é como se a personagem por não saber

quem de fato era ela, sente a dificuldade de se enxergar, de se reconhecer. A sua existência

física não sumiu, como é questionado, mas a sua “ignorância obscurece” a visão de Macabéa

e não permite que veja o seu próprio reflexo.

Quando Macabéa consegue realmente se ver, ela enxerga “a cara toda deformada pelo

espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão”

(LISPECTOR, 1995, p. 40), a personagem visualiza quase que uma caricatura do que ela é, “o

aspecto numinoso do espelho, isto é, o terror que inspira o conhecimento de si”

(CHEVALLIER e GHEERBRANT, 2009, p. 396), é como se o espelho fosse um instrumento

da psique, segundo os autores, e a própria Macabéa criou essa imagem dela mesmo. A

personagem vê o reflexo do espelho nela e não o reflexo dela no espelho, por isso é que ela se

olha e pensa “tão jovem e já com ferrugem” (LISPECTOR, 1995, p. 40), as marcas que

embaçam o espelho também estão nela, fazem parte do meio que ela vive.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 342

Macabeá é, na realidade, um reflexo da sociedade. De acordo com Chevallier e

Gheerbrant (2009, p. 395), “o homem enquanto espelho reflete a beleza ou a feiúra”, e a

personagem demonstra implicitamente um pouco dos sujeitos e da sociedade, transcendendo

tempo e lugar. O que é visto por Macabéa reflete a sociedade, o como somos vistos por uma

modernidade que o tempo nos obriga viver. Souza (2006, p. 117) analisa bem essa questão

humana e social abordada em seu trabalho sobre a obra A hora da estrela, quando diz que,

Macabéa tem um trabalho, talvez para lembrar o leitor, pelo intricado caminho da

ficção, que existe todo um contingente humano obrigado aos serviços mecânicos,

dos quais esses homens retiram apenas um soldo miserável e nenhum prazer,

nenhum conhecimento, nada que lhes dê a consciência de que são seres que

contribuem para fazer o mundo avançar em determinada direção.

A datilógrafa é só mais uma pessoa sujeita a abastecer a economia com o seu trabalho,

a garantir que a máquina que é a sociedade continue em movimento, mesmo sendo a

personagem um “parafuso dispensável”. Clarice Lispector ao escrever que a sua personagem

se enxerga com um nariz de palhaço, traz à tona, de maneira implícita, como a personagem

era tola e rebaixada ao cômico. Apesar de que Macabéa provoca o riso dos demais

personagens que tanto quanto ela fazem parte da narrativa para mostrarmos quem e como são

os sujeitos da sociedade técnica, são “os palhaços” para aqueles que detém o poder.

Foi Macabéa quem se olhou no espelho, mas por meio dela conseguimos ver os

reflexos sociais que Clarice quis apontar nos demais personagens nessa narrativa, pois a

imagem de Macabéa no espelho, é o reflexo daquela sociedade. Temos Olímpico, namorado

de Macabéa, que veio ao Rio de Janeiro após assassinar um homem, consegue um emprego

que nem ele mesmo sabe a utilidade, troca a namorada por sua amiga Glória, porque ela tem

uma posição social melhor do que a nordestina e no final, segundo as próprias palavras do

narrador, “no futuro, que eu não digo nesta história, não é que ele terminou mesmo deputado?

E obrigando os outros a chamarem-no de doutor” (LISPECTOR, 1995, p. 63), ironizando os

tipos de políticos que elegemos.

Sobre Glória, Souza (2006, p. 99) diz que a “loura oxigenada, cabelos crespos em

amarelo-ovo, um estardalhaço de existir, no dizer de Rodrigo, é a menos miserável na galeria

dos desvalidos de A hora da estrela”, isso porque além de trabalhar na mesma firma que

Macabéa e ter um namorado, ela mora na rua “General não-sei-o-quê”, é pertencente de um

“terceira classe burguesa havia no entanto o morno conforto de quem gasta todo o dinheiro

em comida” (LISPECTOR, 1995, p. 83), mas mesmo assim não deixava de ser mais um

reflexo da “sociedade técnica”.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 343

O médico, que não tem nome só função, e a cartomante Madame Carlota são

personagens periféricos que surgem na narrativa para, o primeiro - anular ainda mais Macabéa

e mostrar o descaso e descompromisso da sua profissão e, a cartomante – trazer para narrativa

um pouco de esperança para a Macabéa. No entanto, como coloca Souza (2006, p. 98) “essas

personagens representam segmentos recortados da sociedade que transforma seres humanos

em mercadoria”, pois basta analisarmos o comportamento do médico diante da sua profissão,

mostrando-nos que a sua prática na medicina é baseada no dinheiro e não ao atendimento dos

pacientes. Enquanto que madame Carlota apresenta, além de uma miséria moral, por ter sido

prostituta, cafetina e agora cartomante, essa sua sequência de funções só demonstram o que a

“sociedade pode fazer com o ser humano quando ele não serve mais como força de trabalho”

(SOUZA, 2006, p. 99).

Os personagens que dão vida e movimento a narrativa de Clarice Lispector, desde o

narrador Rodrigo, senhor Raimundo, os que agora analisamos e, principalmente, Macabéa

revelam o quanto a autora utilizou da sua melhor arma, a palavra, para nos mostrar como a

sociedade é e como ela utiliza dos que nela vivem. A escrita, para aqueles que a leem, pode

ser considerada um pouco “baça e escurecida”, assim como o espelho estava para Macabéa,

mas é com essa consciência de reconhecimento que analisamos como Clarice Lispector

consegue na obra A hora da estrela falar sobre a sociedade tão implicitamente e

explicitamente ao mesmo tempo.

Ainda sobre a maneira de Clarice Lispector escrever, Kadota (1997, p. 138) diz que na

obra A hora da estrela a experiência textual é “corroída” pela linguagem, e é marcada pela

inquietação social, segundo a estudiosa, a narrativa “inegavelmente indica o social”,

mostrando-nos que a escrita de Lispector percorre o social e não somente o intimista e o

subjetivo. Poderíamos ler a narrativa e simplesmente afirmar e atender ao pedido do narrador

quando ele disse,

De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a

criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela

porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve

por causa da esvoaçada magreza. (LISPECTOR, 1995, p. 33)

Não tomamos somente Macabéa para o nosso cuidado, mas junto com a personagem

olhamo-nos no espelho e identificamos o reflexo da crítica social na obra clariciana.

Analisamos como aquele momento em que Macabéa é quase demitida e a sua ida ao banheiro

é uma das partes que a autora nos mostra, por trás das personagens e da história, como de fato

é a sociedade. Salientemos, que desse episódio na firma é que conhecemos a história da

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 344

personagem nordestina, nessa ocasião de reconhecimento de Macabéa ao se olhar no espelho

é também para nós leitores o ato de conhecimento da moça, pois é quando sabemos quem é

ela, de onde veio e mora, o que faz, enfim, somos apresentados “pessoalmente” a Macabéa.

Portanto, vimos os reflexos do contexto social e da condição dos personagens

na obra A hora da estrela, ressaltando a crítica a “sociedade técnica”, o significado simbólico

que o espelho proporciona nos trechos analisados e as características da escrita de Lispector.

A maneira como a narrativa foi construída com os seus personagens, permitiu-nos uma

posição privilegiada para, mesmo com o “espelho baço e escurecido”, enxergamos como a

autora trata sobre o social em sua obra. Macabéa era só mais uma nordestina entre tantas, mas

nesse romance conseguiu destaque e vez ao grito, ela foi o reflexo da sociedade naquele

espelho.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

_______. A cultura popular da Idade Média e o renascimento: contexto de François Rabelais.

Trad. Yara F. Vieira. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1996.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 345

O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA

CONCEPÇÃO DE ESCRITA INTERACIONAL [Voltar para Sumário]

Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN)

Introdução

As discussões relacionadas a necessidade de se melhorar a qualidade da educação no

país, travadas nas últimas décadas, mantêm como foco o ensino de Língua Portuguesa-LP. No

Ensino Fundamental, o ponto de convergência dessa discussão aponta, principalmente, para o

eixo da leitura e da escrita, conforme afirma os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de

Língua Portuguesa do ensino fundamental do 6º ao 9º ano, (1996, p. 19).

As dificuldades que os alunos desse nível de ensino apresentam em compreender o

que leem e de se fazer compreendidos quando produzem textos escritos é uma evidência do

fracasso no ensino dessa disciplina, principalmente no desenvolvimento das capacidades

leitoras e escritoras dos alunos. Tendo em vista essa realidade é que constantemente

professores e pesquisadores da área da Linguística se empenham em buscar estratégias

teóricas e práticas que possam superar essa deficiência.

No que se refere ao ensino de produção de textos, inicialmente, é necessário que se

compreenda a complexidade que envolve o ato de escrever. Pois, além do domínio de

diversos conhecimentos como o linguístico, o enciclopédico, o interacional e o textual

necessários à construção de textos em qualquer que seja a modalidade, ainda há que se

considerar todas as características peculiares a situação de produção dos discursos construídos

na modalidade escrita da língua. Dentre estas, podemos considerar a ausência do leitor no

momento em que o texto está sendo produzido como um dos elementos que mais contribuem

para a dificuldade que circunda esse processo. A falta de interação instantânea entre autor-

leitor, que não é possível nos textos escritos, requer do autor um maior cuidado durante o

processo de elaboração do texto.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 346

A queixa mais comum entre os professores de LP em relação ao fracasso do ensino

aprendizagem da produção de textos é a desmotivação dos alunos no momento de atender as

atividades de produção textual que são propostas em sala de aula. Quem convive nesse

ambiente sabe da veracidade do que é alegado por esses profissionais. Há, de fato, uma

resistência por parte dos alunos em produzir textos. Porém, este fato torna-se contraditório

quando se observa que estes mesmos alunos que se mostram avessos a produzir textos em sala

de aula escrevem a todo instante em outros ambientes sem sentir nenhum pesar em fazer isso.

Os “bilhetinhos” que eles usam para se comunicar durante as aulas, as perguntas e respostas

aos “questionários coletivos” que eles mesmos produzem, as postagens escritas nas diversas

redes sociais, as listas de compras que fazem em casa, os e-mails que enviam a parentes e

amigos são apenas alguns exemplos de como os alunos gostam de escrever.

Dada essas duas realidades, contraditórias entre si no que se refere ao gosto do aluno

pela escrita, o propósito inicial deste artigo é analisa-las à luz de algumas das diversas

concepções de escrita a fim de apresentar uma resposta sobre o que causa tanta desmotivação

aos alunos na hora de escrever na sala de aula e que, por fim, torna as aulas de produção de

texto tão improdutivas. Em seguida, através da apresentação de um exemplo de prática de

letramento trabalhada em uma sala de aula, este artigo busca atender a um último propósito

que é o de mostrar estratégias de ensino de produção de texto que, de fato, contribuam para o

desenvolvimento de um aluno produtor de textos.

Para tanto, usaremos como respaldo teórico, principalmente, os estudos de Passarelli,

(2004 e 2012) e os de Koch e Elias (2009), que tratam, respectivamente, do ensino de

produção de texto sob a perspectiva da escrita processual e da escrita como atividade

interativa.

1. O que é a escrita para a escola? E para o aluno?

A forma como os alunos reagem às situações cotidianas que demandam o uso da

escrita e a maneira como se comportam diante das propostas de produção de texto na sala de

aula deixam transparecer a ideia de que escrever tem significados diferenciados para a escola

e para os alunos.

Nas aulas de produção de textos, o ensino dos conhecimentos gramaticais, ortográficos

e lexicais, ainda são colocados como prioritários. Desse modo, a ideia de escrita que é posta

para o aluno é a de que escrever bem é saber as regras da gramática, ter um vocabulário amplo

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 347

e saber grafar bem as palavras. Subjacente a essa ação pedagógica está a concepção de escrita

que mantém como foco a língua.

Para Koch e Elias, conceber a escrita desta forma, mantendo a língua como foco,

implica perceber o texto como um produto construído apenas por elementos de natureza

linguística cuja compreensão requer do leitor apenas o domínio desses mesmos elementos.

Visto desse modo, todo texto é objetivo, não sendo possível haver mais de uma interpretação

para o mesmo, uma vez que o seu sentido encontra-se apenas no código linguístico utilizado

(2009, p. 33).

Embora os conhecimentos linguísticos sejam indispensáveis à construção de textos, sozinhos

eles não dão conta de um processo tão complexo como esse. Pois, como dito anteriormente,

produzir textos demanda o domínio e a ativação muitos outros conhecimentos e estratégias

por parte do autor.

Essa compreensão de escrita acaba por orientar, não só o ensino mas também a

avaliação que é feita dos textos, conforme afirma Passarelli:

Temos assistido a procedimentos de rotina calcados em moldes de ensino que têm

como base a gramática normativa, tanto para o ensino de produção de textos como

para sua avaliação. Os estudos metalinguísticos roubam a cena de episódios de

produção de textos: protagonizam atividades voltadas a temas referentes ao que mais

fácil e acomodadamente se detecta na superfície textual. (PASSARELLI, 2012, p.

91).

Assim, os alunos são obrigados a escrever textos em que a obediência as regras da

língua deve ser a principal preocupação, uma vez que serão avaliados a partir desse

parâmetro. Por fim, produzir texto na escola resume-se a escrever seguindo um padrão de

correção linguística para ser avaliado pelo professor e atribuído uma nota proporcional ao

número de acertos ou de erros.

Uma ação pedagógica calcada por esses moldes está muito aquém do que se espera da

escola em relação ao letramento do aluno, uma vez que, segundo os PCN de LP, cabe a essa

instituição garantir que ao longo do ensino fundamental “cada aluno se torne capaz de

interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão,

de produzir textos eficazes nas mais variadas situações” (BRASIL, 1996, p. 21).

No dia a dia, a escrita dos alunos adquire outras dimensões. O propósito deixa de ser a

avaliação do professor e passa a ser o de comunicar, de estabelecer uma interação com um

leitor real. A preocupação maior, neste caso, deixa de ser a de obedecer a regras gramaticais,

ortográficas e lexicais e passa a ser a utilização de conhecimentos e estratégias adequadas

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 348

para que as suas intenções se tornem mais compreensivas para o leitor. Nessa forma de

conceber a escrita o foco está na interação autor-leitor e o texto é “considerado um evento

comunicativo para o qual concorrem aspectos linguísticos, cognitivos, sociais e interacionais”

(BEAUGRANDE apud KOCH e ELIAS, 2009, p. 33). Bem diferente de como é visto e

tratado pela escola.

Aproximar as produções textuais que são feitas na escola daquelas que os alunos

praticam no dia a dia deles, é uma alternativa que parece bem positiva para que se supere o

fracasso que ao longo dos anos tem marcado o ensino de LP. Dessa forma, seria necessário

rever as antigas práticas pedagógicas voltadas para o ensino e produção de texto e pensa-las

de maneira que o seu ensino tomasse como ponto de partida a compreensão de escrita dos

próprios alunos. Embora as experiências que eles trazem sobre a escrita sejam cotidianas e

informais a escola poderá partir delas e expandir para contextos mais formais. Como diz

Passarelli (2012), a escola precisa aproveitar a predisposição dos alunos para escrever.

Produzir textos com o propósito, meramente, de ser avaliado por um professor,

referente, somente, ao emprego correto das normas linguísticas, como já foi posto

anteriormente, não estimula nenhum pouco o aluno a escrever. Tampouco oferece condições

para que o aluno se torne competente linguisticamente para interagir por meio da linguagem

em diferentes contextos, como se espera do ensino de LP.

A aproximação que se propõe, relacionando a escrita de sala de aula com o uso que é

feito dela em ambientes extraescolares, fazendo com que os alunos percebam algum sentido

naquilo que é ensinado na escola, como condição essencial para se mudar o ensino de LP,

requer uma mudança nas estratégias didático-pedagógicas adotadas em sala de aula que

deverão ser orientadas, sobretudo, por uma concepção de escrita diferente das que orientam

essas práticas improdutivas que aí estão, que, por sua vez, consideram o texto acabado, pronto

como objeto de avaliação. Essa visão que ora se tem, tanto de texto como de escrita descarta

todo o processo pelo qual o texto passa até chegar ao produto final. De acordo com Oliveira

(2010), “ O professor que vê a escrita apenas como produto tende a dificultar o

desenvolvimento da competência redacional dos alunos por não ajudá-los a se

conscientizarem que a escrita requer planejamento” (OLIVEIRA, 2010, p. 120).

Nos novos paradigmas de ensino de LP que se propõe, é preciso que o ensino e

avaliação da escrita tenha como base teórica a concepção de escrita como uma atividade

interativa que ocorre em função de um leitor e que se dá por meio de um processo que é

realizado por etapas. Vista desse modo, a escrita, incidirá uma mudança bastante significativa

sobre a forma como será ensinada e avaliada na sala de aula.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 349

Partindo dessa perspectiva, as atividades de produção de texto deverão sempre levar

em consideração que:

A escrita é um trabalho no qual o sujeito tem algo a dizer e o faz sempre em relação

a um outro (o seu interlocutor/leitor) com um certo propósito. Em razão do objeto

pretendido (para que escrever?), do interlocutor/leitor (para quem escrever?), do

quadro espacio-temporal (onde? Quando?) e do suporte de veiculação, o produtor

elabora um projeto de dizer e desenvolve esse projeto, recorrendo a estratégias

linguísticas, textuais, pragmáticas, cognitivas, discursivas e interacionais, vendo e

revendo, no próprio percurso da atividade, a sua produção (KOCH e ELIAS, 2009,

p. 36).

Daí as orientações para que o ensino de LP se dê a partir dos gêneros textuais.

Abandonando de vez o modelo de outrora que se baseava nas tipologias narrativas,

dissertativas e descritivas. Haja vista a materialidade dos gêneros textuais, usá-los como ponto

de partida para o ensino de línguas parece atender bem aos interesses dessa área. E para que

fique mais claro o entendimento sobre eles a definição dada por Antunes (2010), poderá

ajudar: “os gêneros é que constituem textos empíricos, é que constituem textos reais em

circulação [...] realizam-se com propósitos comunicativos determinados e facilmente

reconhecíveis pela comunidade em que circulam” (ANTUNES,2010, p. 72).

Como os gêneros textuais existem em uma quantidade quase que incalculável, no

momento de escolhe-los para trabalhar em sala de aula a prioridade deverá ser dada àqueles

que têm maior importância para o uso social do aluno ou o que melhor atender ao propósito

comunicativo do momento.

Outro aspecto a ser observado no ensino de produção de texto é a compreensão de que

um texto é o resultado de uma série de etapas e que a qualidade do produto final depende da

atenção que é dada a cada uma delas. E isto precisa ficar bem claro para o aluno, tanto quais

são os procedimentos específicos de cada uma delas como a importância de que elas sejam

cumpridas (PASSARELLI, 2004 e 2012). Levar os alunos à essa consciência poderá aliviá-los

dos pesares que ato de escrever provoca.

2. A escrita interativa: um processo que se realiza em etapas

As considerações apresentadas até aqui incidiram, basicamente, sobre a utilização da

escrita que feita pela escola e a que é feita pelos alunos em suas atividades cotidianas. Isso

tudo no sentido de se chegar a uma compreensão dos fatores que estão ligados ao fracasso do

ensino de produção de textos. O modo como a escrita é praticada nas duas situações deixou

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 350

claro que em cada uma delas subjaz concepções de escrita diferenciadas. Dessas concepções

analisadas a que pareceu mais adequada para subsidiar um ensino de produção de textos que

seja comprometido com o desenvolvimento da competência linguística do aluno foi a

concepção de escrita interacional.

Assim, neste item será abordado o resumo de uma proposta de produção de texto

realizada à luz dessa teoria. Essa proposta parte de duas premissas consideradas como base

em um ensino de produção de textos que se propõe a ser produtivo: a de que a escrita é uma

atividade interativa e a outra, que ela se realiza em etapas.

O entendimento de que o ato de escrever requer a utilização de diversos

conhecimentos e estratégias é muito importante no momento do professor planejar as suas

ações porque fará com que ele eleja apenas alguns aspectos para ser abordado de cada vez.

Essa seleção será favorável ao professor na hora da avaliação dos textos e ao aluno que terá

menos elementos com que se preocupar no ato da produção. Na proposta que será apresentada

os aspectos avaliados, foram, apenas, a qualidade dos argumentos e a organização deles

dentro do texto.

O contexto que motivou a atividade de produção de texto em questão foi um projeto

desenvolvido na escola sobre a temática a indisciplina na escola. No decorrer desse projeto,

foram criadas algumas regras e reforçadas outas já existentes, totalizando dez quesitos aos

quais os alunos teriam que obedecer enquanto estivessem nas dependências dessa instituição.

Dentre esses quesitos, o que causou maior descontentamento entre os estudantes foi a

proibição do uso do celular na sala de aula. Porém, a insatisfação não foi genérica. Os alunos

passaram a dividir opiniões sobre a aplicação dessa regra. Enquanto uns se colocaram a favor

achando que a proibição era favorável ao aprendizado deles, outros se colocaram contra

achando que a escola estava sendo demasiadamente radical. Diante dessa polêmica, os alunos

do 8º ano foram convidados a expressar suas opiniões sobre o assunto.

No primeiro momento da atividade foram colocadas as razões que levaram a escola a

proibir o uso do celular na sala de aula. Em seguida, os alunos tiveram a oportunidade de

expressar suas opiniões sobre o assunto colocando os porquês de estarem contra ou a favor da

medida em questão. Após esse momento, foram informados de que suas opiniões seriam

expressas em forma de texto escrito que deveriam ser postos nos murais da escola e que

apenas um deles seria publicado no blog da própria instituição. Foi esclarecido, ainda, que

essa atividade seria iniciada na aula do dia seguinte e que seria interessante a leitura de

materiais que versassem sobre o assunto para que assim se sentissem mais seguros das

opiniões que iriam defender.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 351

Na etapa seguinte foi discutido qual seria o propósito comunicativo do texto. Ficou

esclarecido, então, que a finalidade dessa escrita seria cada um defender o seu ponto de vista

sobre a questão da positividade ou negatividade do uso do celular na sala de aula procurando

ser persuasivo o suficiente para convencer, da sua opinião, aqueles que mantinham opinião

contrária. A consistência dos argumentos e a organização destes no desenvolvimento do texto

foi colocada como pontos centrais a serem avaliados. Esclareceu-se ainda que, uma vez que

seriam postos nos murais da escola e, pelo menos um deles, publicados no blog, todos os

alunos e funcionários da escola teriam acesso à leitura desses textos. Feitas essas

considerações, os alunos foram levados a chegar a uma conclusão a respeito de qual gênero

textual seria o mais adequado a construção do texto, tendo em vista os elementos

anteriormente discutidos. O artigo de opinião foi o gênero escolhido. Assim, considerando

que “a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática, o conjunto

dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor” (SCHNEUWLY, 2004, p.

23), o gênero escolhido, o artigo de opinião, foi bem pertinente.

Todo gênero textual possui uma forma preestabelecida que deve ser conhecida por

quem deseja utilizá-lo. Os gêneros que circulam em esferas mais formais e que não fazem

parte do cotidiano dos alunos, como é o caso do artigo de opinião, precisam de que seus

aspectos estruturais e estilísticos sejam ensinados na escola. Então, nesta etapa da proposta,

foi trabalhada as questões referentes a composição de um artigo de opinião. É importante

ressaltar que a dedicação a esse aspecto composicional se dá em virtude do conhecimento que

a turma possui a esse respeito. Sabendo que não existe gêneros que sejam mais adequados a

uma série/ano do que a outra, todos podem ser trabalhados em todas as séries, o que deve se

adequar é a profundidade que será dada a sua abordagem. É indicado que o professor, antes de

orientar a produção de um texto em um determinado gênero, sonde os conhecimentos prévio

que os aluno já possuem sobre ele.

A etapa seguinte foi o momento em que a primeira versão do texto começou a ser

escrita. É, geralmente, a hora mais tensa para os alunos. É quando eles começam a sentir as

reais dificuldades do ato de escrever. Nesse momento, o escritor, mesmo inconsciente, lança

mão dos diversos conhecimentos que adquiriu ao longo da sua vida escolar e doméstica. São

os conhecimentos que foram referenciados na parte inicial deste artigo, aos quais Koch e

Elias, (2009) chamam de conhecimento linguístico, conhecimento enciclopédico,

conhecimento de texto e conhecimentos interacionais. Embora a avaliação do gênero em

construção não tenha como foco especificamente nenhum desses conhecimentos, a qualidade

argumentativa inevitavelmente dependerá do bom uso de todos eles. Koch e Elias (2009, p.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 352

37) ressaltam a importância dos conhecimentos ortográficos no processo de produção de

textos e no alcance do propósito pretendido. De acordo com essas autoras, dentro de uma

concepção de escrita que tem como foco a interação:

Obedecer às normas ortográficas é um recurso que contribui para a elaboração de

uma imagem positiva daquele que escreve, porque, dentre outros motivos,

demonstra: i) atitude colaborativa do escritor no sentido de evitar problemas no

plano da comunicação; ii) atenção e consideração dispensadas ao leitor. (KOCH e

ELIAS, 2009, p. 37).

Uma ação pedagógica orientada pela concepção de escrita interacional não ignora, no

ensino e avaliação de produção de textos, a utilização adequada dos elementos linguísticos de

acordo com as regras da língua, porém não coloca esses aspectos gramaticais como foco dessa

ação, como ocorre com práticas orientadas por outras concepções.

Os outros conhecimentos mencionados contribuem igualmente para a elaboração do

texto. Como o próprio nome deixa claro, os conhecimentos interacionais se referem a natureza

da própria escrita, já que que o ato de escrever pressupõe uma interação. Conforme esclarece

Koch e Elias (2009, p. 44), esses conhecimentos nada mais são do que estruturas cognitivas

relacionadas as práticas interacionais. A atuação desses conhecimentos no momento da escrita

faz com que o autor selecione as estratégias que sejam mais adequadas para que a sua

intenção chegue ao leitor. No caso do conhecimento enciclopédico, é ele que vai garantir que

o escritor terá sobre o que discorrer quando estiver escrevendo. Assim, ele precisará ter um

certo repertório de informações adquiridas através de fontes variadas como leituras,

conversas, escutas e vivências. Desse modo, os alunos que produziram os textos sobre o uso

do celular na sala de aula posicionando-se sobre essa ser uma prática positiva ou negativa,

precisariam necessariamente saber o que é um celular e quais são as funções básicas e

acessória deste aparelho para poder julgar se o uso dele em sala de aula é prejudicial ou não

ao aprendizado do aluno, além de ter noção sobre o que são direitos e deveres da escola e do

aluno. Ao escrever, qualquer coisa que seja, o produtor já tem ideia do formato que terá o seu

texto. O escritor sabe qual o modelo de um bilhete, de uma lista de compras, por exemplo.

Quando o texto que vai produzir não lhe é comum ele precisa adquirir conhecimento sobre a

forma como se estrutura um texto dessa natureza. Esse tipo de conhecimento Koch e Elias

(2009), chamam de conhecimento de texto.

Considerando o roteiro proposto por Passarelli (2004), para ensinar o processo da

escrita, que prevê quatro etapas, nesta ordem: planejamento; tradução de ideias em palavras;

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 353

revisão e editoração, neste primeiro momento da proposta em questão, as duas primeiras

etapas foram cumpridas.

Concluída a primeira versão do texto, os alunos foram orientados a formar duplas para

a realização de uma atividade que consistia em cada um ler o texto do outro e procurar

identificar o ponto de vista que estava sendo defendido e os argumentos utilizados para

defende-lo. Feito isso, desfizeram-se as duplas e cada aluno foi analisar se o que o colega

entendeu como ponto de vista e argumentos, eram, de fato, compatíveis com as intenções que

tinha no ato da produção. Havendo compatibilidade ou não, a orientação, neste momento, era

para que o aluno visse aspectos que precisariam e os que poderiam ser melhorados no texto no

sentido de torna-lo mais claro, coerente e organizado. Terminada essa etapa, que Passarelli

(2004) chama de revisão, os textos foram recolhidos para serem analisados pela professora,

que faria as interferências cabíveis de acordo com os critérios que haviam sido estabelecidos

para a avaliação. Então, usando a avaliação não segundo critérios quantitativos, no sentido de

atribuir uma nota, mas usando no sentido de reorganizar suas práticas pedagógicas tendo em

vista a melhoria da aprendizagem do aluno, foram observados os pontos selecionados para a

avaliação, que como já foram mencionados, eram relativos a qualidade dos argumentos. A

partir dessa análise, os alunos foram orientados a fazer mais leituras relacionadas ao tema

sobre o qual estavam escrevendo, foram trabalhadas, também, a questão da organização dos

argumentos dentro do texto e o emprego dos operadores argumentativos.

A etapa final dessa proposta, que Passarelli (2004) denomina de editoração, foi o

momento em que os alunos “passaram a limpo” o texto fazendo os devidos “acabamentos” a

fim deixa-lo no formato necessário para tornar-se um texto público.

3. Considerações finais

O ensino e a aprendizagem de LP, segundo os PCN, é resultante da articulação de três

variáveis que são o aluno, a língua e o ensino. Dentro desta tríade, cada um desses elementos

representa um papel. O aluno é o sujeito da ação de aprender; a língua, o objeto do

conhecimento, e por último o ensino, que promove a mediação entre os dois anteriores. Se o

resultado do ensino e aprendizagem dessa disciplina não está sendo o esperado é porque não

está havendo uma articulação entre essas variáveis. E não está mesmo. O ensino,

materializado por meio de práticas pedagógicas não tem conseguido tornar viável o acesso do

aluno à língua.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 354

Uma mudança no sentido, de fazer com que o aluno domine os conhecimentos e

estratégias necessários a uma utilização satisfatória da língua nos diferenciados contextos

sociais, depende, basicamente, de uma modificação na forma de aborda-la em sala de aula.

A proposta de produção de texto que este artigo trouxe não teve a pretensão apenas de

ser um relato de uma prática, mas, sobretudo de se apresentar como uma sugestão de atividade

que poderá ser aplicada em qualquer turma e por qualquer professor. O que não se pode

perder de vista é que o ensino da escrita ou do texto tem que partir de situações concretas e

representar usos reais de linguagem, tem que se considerar a complexidade desse processo e

que não existe texto pronto, o que existe são apenas versões melhoradas. E, por fim, que a

avaliação que se faz da escrita seja menos voltada para a nota do aluno e mais voltada para a

orientar as práticas didáticas do professor.

4. Referências

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(Coord.) A pesquisa e o ensino em língua portuguesa sob diferentes olhares. São Paulo:

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escola. Trad. Roxane Rojo. Campinas: Mercado das Letras, 2004.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 355

INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO

SELVAGEM [Voltar para Sumário]

Antonielle Menezes Souza (UFS)

Marcio Carvalho da Silva (UFS)

Perto do coração selvagem é o romance inaugural da escritora Clarice Lispector,

sendo um dos mais importantes de sua carreira, livro extremamente elogiado pelos críticos de

sua época, denominando-o como a melhor novela escrita por uma mulher. Movido por uma

alta carga de densidade psicológica onde a autora aborda de maneira bastante complexa os

conflitos internos da personagem principal chamada Joana. Além de apresentar uma inédita

forma descontinua de narração e uma inovadora expressão verbal que levou o romance a obter

uma força poética imensamente relevante, característica que marca profundamente o

panorama da ficção brasileira da década de 40.

A referida obra é divida em duas partes, a primeira os capítulos se alternam entre a

Joana criança e a Joana mulher onde nos são expostos fatos e situações diárias, assim como

seus questionamentos, inseguranças, interrogações a respeito da existência humana e seus

conflitos cotidianos. Já na segunda parte do livro a autora nos apresenta a personagem Joana

em sua fase adulta repleta de questionamos, insatisfações e meditações altamente reflexivas a

cerca do seu cotidiano do mundo adulto e patriarcal.

É mister frisar a similaridade e estreitamento das técnicas abordadas e apresentadas

pela escritora Clarice Lispector com as da Virgínia Woolf e do James Joyce, quanto a

densidade psicológica empregada na narrativa. Apresenta, para a época, com sua nova

expressão verbal, a estreante aproximara-se, também, dos grandes transgressores, da até então

rotina literária, Mário de Andrade, com Macunaíma, e Oswald de Andrade, com Memórias de

João Miramar, onde obtiveram êxito ao expandir o domínio de palavras sobre regiões

complexas e inexprimíveis, ou seja, fazer ficção a partir do conhecimento do mundo e das

ideias.

A partir desse âmago mimético são construídos vários romances e contos da escritora

Clarice Lispector, sendo a experiência interior o seu primeiro plano, e mais intenso, de arte e

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 356

criação literária fatores fundamentais para o estudo proposto em questão, visto que o romance

Perto do Coração Selvagem acentua-se, generosamente, pelo viés introspectivo-reflexivo.

Clarice Lispector é indiscutivelmente uma das escritoras mais relevantes da Geração

de 45 no Brasil. Geração essa que despontou na poesia representada na obra de João Cabral de

Melo Neto, quando o seu processo de criação buscou “lapidar a palavra”, buscando a

expressão exata ao fazer do poema um exercício de denúncia das agruras sociais, a exemplo

de A educação pela pedra.

Além da poesia, a produção da prosa no período ocorreu de forma extremamente

fecunda, tendo como representantes Clarice Lispector e Lygia Fagundes Teles com uma densa

narrativa psicológica ao sondarem o mais íntimo das personagens, vasculhando as

profundezas da mente humana e suas angústias, medos e sentimentos. Ainda nesse período,

outro expoente na prosa foi representado pela reinvenção da linguagem, que mesmo sua

narrativa sendo ambientada no esmo do espaço do Sertão, desponta pelo exemplo de

universalismo das temáticas abordadas.

Possuidora de uma vasta e rica obra literária com características marcantes,

personagens densos e inadaptados ao mundo. Lispector nos apresenta uma escrita

completamente afastada das técnicas do romance tradicional. Promoveu a quebra da fronteira

entre a voz da narradora e dos personagens, construindo assim narrativas interiorizadas,

introspectivas. Com uma personalidade demasiadamente singular e intrigante, reconhecia o

valor do mistério e do silêncio. Dessa maneira, com sua áurea inatingível tentava

insistentemente compreender e traduzir a alma humana.

Na narrativa Perto do coração selvagem, o objeto do nosso atual estudo, a escritora

nos expõe uma personagem e uma alta densidade psicológica, demonstrando-nos fluxos de

consciência, e inquietações de sua vida interior, ou seja, os conflitos de natureza psicológica.

Notamos uma narrativa que oras mergulha no passado, em outros momentos no presente,

partindo sempre do fio condutor de sua memória.

Desse modo, notamos que a estreante inova ao apresentar uma escrita emergida à alta

densidade psicológica e ao arquitetá-la a subjetividade com tamanha maestria. É interessante

observar na narrativa Perto do coração selvagem mediante a ótica do professor Benedito

Nunes que:

[...] na obra de estreia de Clarice Lispector, acima de leve trama que ainda

acompanha uma ação romanesca já francamente interiorizada, a rede dos “pequenos

incidentes separados” que Virginia Wolf tanto valorizou e que fazem da sua maneira

de narrar uma convergência de momentos de vida vários e dispersos. Ora, o que liga

o romance de Clarice Lispector a esses autores é menos uma técnica ou

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 357

procedimento particular do que os processos comuns – o monólogo interior, a

digressão, a fragmentação dos episódios -, que sintonizam com o modo de apreensão

artística da realidade na ficção moderna, cujo centro mimétrico é a consciência

individual enquanto corrente de estados ou de vivências. (NUNES, 1995, p.13)

Notamos, então, que na referida obra uma necessidade intensa de investigar as

camadas mais densas da consciência e da inconsciência humana na procura, talvez, de

compreender o sentido da existência. Percebemos uma significativa proximidade dessa

narrativa com os estudos junguianos, visto que a ficcionista tenta dissecar a alma humana,

assim como, os conflitos mais íntimos.

Para a teoria junguiana tanto a palavra quanto a fala podem expressar o que se deseja

comunicar, visto que a linguagem é repleta de símbolos que muitas vezes são associados a

sinais e imagens que não são necessariamente descritivos. Para Jung:

O que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos

pode ser familiar na vida cotidiana, embora possua conotações especiais além do seu

significado evidente e convencional. Implica numa coisa vaga, desconhecida ou

oculta para nós. (JUNG, 2008, p.18)

Dessa maneira, a palavra, linguagem ou uma imagem é simbólica e implicará, segundo

as teorias junguianas, significados muito além dos imediatos. Logo, observamos que quando a

mente explora um símbolo ela, segundo Jung “é conduzida a ideias que estão fora do alcance

de nossa razão”.

Desse modo, através de uma aparente linguagem simples, a escritora mergulha no

amago do ser humano, mais precisamente da personagem Joana, revelando assim uma

permanente preocupação em alcançar a verdade escondida na aparente simplicidade das

palavras. É relevante verificar que na obra ficcional Perto do coração selvagem, acontece um

discurso direto alternado ao indireto, em inúmeros trechos, sobretudo na parte final do

romance, transformando-o constantemente em um monólogo onde a personagem ficcional

busca o autoconhecimento.

Observa-se a significativa e relevante contribuição da obra de Clarice Lispector na

literatura, sobretudo na produção de romances introspectivos, raridade entre nossa produção

literária. Grande exemplo dessa produção literária dar-se-á através da obra Perto do coração

selvagem, onde solicitará do leitor um preparo e bom conhecimento psicológico, já que em

um primeiro contato com a obra, observamos que a mesma causa certo estranhamento e

dificuldade na compreensão. Superada essa primeira etapa, é possível conhecer uma escrita

indefinível, uma mistura de prosa, confissão, discursos e reflexões internas.

Para Antônio Candido, a obra Perto do coração selvagem é:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 358

“[...] uma tentativa impressionante para levar nossa língua canhestra a domínios

pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para

o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um

instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar nos labirintos mais

retorcidos da mente.” (CÂNDIDO, 1970, p.126)

Desse modo, e a partir da leitura, e consequente reflexão a respeito da observação de

Antônio Candido, notamos que após esse âmago mimético são construídos vários romances e

tantos outros contos da escritora Clarice Lispector, sendo a experiência interior o seu primeiro

plano de arte e criação literária.

A prosa é bastante densa e discorre a partir da experiência interior da personagem

Joana que ainda menina é muito inquieta e questionadora, e enquanto mulher se apresenta no

decorrer da trama uma pessoa confusa e indecisa. Encontramos, também, indiscutivelmente, a

minúcia das descrições das múltiplas experiências psíquicas e de uma constante oscilação e

modificação interior uma tentativa constante de equilíbrio entre o ego e o “si-mesmo”. Porém,

para Jung “não importa até onde o homem estenda os seus sentidos, sempre haverá um limite

à sua percepção consciente”.

Dessa maneira, Jung nos apresenta as dificuldades encontradas pela mente humana

para obter a profunda percepção dessa parte obscura, não tão aparente, que é o nosso

inconsciente. Assim, notamos uma Joana perdida em um labirinto de memórias e autoanalise

em busca sempre o equilíbrio, a compreensão de suas atitudes e o reflexo delas em si mesma e

no outro.

Percebemos, dessa maneira, que a personagem transcende do plano psicológico para o

metafísico investigando e refletindo sobre a sua verdadeira essência.

Isso não é matéria de fácil compreensão, mas é preciso entendê-la se quisermos

conhecer mais a respeito da mente humana. O homem, como podemos perceber ao

refletirmos um instante, numa percebe plenamente uma coisa ou a entende por

completo. Ele pode ver, ouvir, tocar e provar. Mas a que distancia pode ser, quão

acuramente consegue ouvir, o quando lhe significa aquilo em que toca e o que

prova, tudo isso depende do numero e da capacidade dos seus sentidos. (JUNG,

2008. p.21)

Assim, observamos nítida e claramente que a percepção do ser humano limita-se

diretamente ao mundo à sua volta e às experiências adquiridas ao longo de sua trajetória.

Joana é definitivamente umas das personagens mais sensitivas e introspectivas da Clarice, e é

interessante observar que de modo geral, a noção de subjetividade privada, embasada na

distinção moderna entre público e privado, foi adulterada nos últimos quatro séculos, na

passagem do Renascentismo para a modernidade.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 359

No entanto, o sujeito da modernidade, centrado e soberano, já que se vê questionado

de certo modo desde sua constituição [...] Não é por acaso que justamente aí surge a

ideia e um sujeito descentrado. É o momento da conceitualização de outra

concepção de aparelho psíquico com Freud, que irá operar uma subversão do tópos

subjetivo, calcado na tríade eu/consciência/racionalidade. (HOMEM, 2012, p.67)

O sujeito moderno, como acontece com a personagem Joana, compõe-se nessa

passagem devido à própria magnitude da crise nas estruturas vigentes, sendo o Renascimento

sua inevitável ampliação de horizontes, onde propicia a sensação de perda de referências,

anteriormente revestidas na estruturação hierarquizada e divinizada da realidade.

No desenrolar da narrativa, mais precisamente, desde o princípio dela, percebemos que

o desejo “inconsciente” de encontrar a sua personalidade a fim de domar e, por fim, se libertar

do coração selvagem preenche por completo o ser de Joana, situação que se converteu em um

problema real ao ser intensificado na fase adulta. Visto que essa personalidade não fora

cultivada, e sim negligenciada inteiramente na infância, dificultado, assim, o seu

desenvolvimento, onde percebemos, segundo Jung, que:

“Ao chegar à idade escolar, a criança começa a fase de estruturação de seu ego e de

adaptação ao mundo exterior. Essa fase traz em geral um bom número de choques e

de embates dolorosos. Ao mesmo tempo, algumas crianças nessa época começaram

a sentir-se muito diferentes das outras, esse sentimento de singularidade acarreta

uma certa tristeza, que faz parte da solidão de muitos jovens. As imperfeições do

mundo e o mal que existe dentro e fora de nós, tornam-se problemas conscientes; a

criança precisa enfrentar impulsos interiores prementes (e ainda não

compreendidos), além das exigências do mundo exterior”. (JUNG, 2008, p. 218)

Notamos os conflitos de compreensão do meio social e as inquietações intimas da

personagem na narrativa ficcional em vários momentos. O mais significativo, dentre eles,

acontece na cena em que Joana, ainda menina, questiona a sua professora acerca do que se

conseguiria quando se fica feliz. “O que é que se consegue quando se fica feliz?” (Perto do

coração selvagem, p.29). A atitude deixa a professora totalmente desconcertada em classe e

sem respostas para aquela pequena garota. Observamos, dessa maneira, que “a personalidade

já existe em germe na criança, mas só se desenvolverá aos poucos por meio da vida e no

decurso da vida. Sem determinação, inteireza e maturidade não há personalidade.” (JUNG,

1993, p. 176).

Percebemos assim, a personagem Joana pré-disposta a uma determinada situação

cotidiana onde o universo da condição feminina de mulher e esposa, da relação do “eu” e o

“outro”, das falsidades humanas e da própria linguagem, sendo esta a única forma de

comunicação com o mundo como posturas constantemente questionadas. A realidade da

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 360

personagem é regida por meio de sua consciência individual, que originam monólogos

interiores, digressões e algumas fragmentações de episódios. Notamos no fragmento a seguir:

É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer.

Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não

exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.

(Perto do coração selvagem, 1998, p. 21)

É mister salientar que nota-se claramente dois fragmentos do livro Perto do coração

selvagem, tanto em Joana Criança, quanto na adulta a presença real do arquétipo da mulher

selvagem, definido Pinkola da seguinte maneira:

Quando a mulher consulta sua própria natureza dual, ela está cumprindo o processo

de olhar, examinar e sondar o material que está para além do consciente, sendo,

portanto, muitas vezes surpreendente no seu conteúdo e no seu tratamento, e quase

sempre de imenso valor. (PINKOLA, 1994, p 164)

Outro fragmento teórico da psicóloga juguiana Clarissa Pinkola que reforçaria a

presença real do arquétipo da mulher selvagem desde os primeiros estágios da infância da

personagem Joana na narrativa ficcional clariciana, segue:

Qualquer um que seja íntimo de uma Mulher Selvagem está de fato na presença de

duas mulheres: um ser exterior e uma criatura interior, uma que habita o mundo

terreno, e outra que vive num mundo não tão previsível. O ser exterior vive à luz do

dia e é observado com facilidade. Muitas vezes é uma pessoa pragmática, aculturada

e muito humana. Já a criatura costuma chegar à superfície vindo de muito longe e

com frequência aparece e desaparece rapidamente, embora sempre deixe uma

sensação: algo de surpreendente, original e sagaz. (PINKOLA, 1994, p 164)

É neste panorama de dualidades que encontramos Joana, personagem ficcional, em

constante conflito buscando constantemente um realinhamento do ego com a sua totalidade do

self em uma retomada do processo de individuação. Citado por Jung da seguinte maneira:

O verdadeiro processo de individuação – isto é, a harmonização do consciente com o

nosso próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou self – em geral começa

infligindo uma lesão à personalidade, acompanhada do consequente sofrimento.

Esse choque inicial é uma espécie de “apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido

como tal. (JUNG, 2008, p 219)

Na segunda metade do livro, mais precisamente no final da narrativa, Joana mitigada

de sentimentos é arrastada ao adultério onde busca, neste momento, o autoconhecimento e o

encontro com o seu self, promove, assim, um envolvimento em vários questionamentos acerca

da vida e da morte, do bem e do mal, do amor e ódio. Neste momento final Joana obtém êxito

ao culminar o processo de individuação, sendo ele, para Jung: O homem só se torna um ser

integrado, tranquilo e feliz quando (e só então) o seu processo de individuação está realizado.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 361

Quando consciente e inconsciente aprender a conviver em paz completando-se um ao outro.

(JUNG, 2008, p 213)

A sincronização ocorrida através de tais eventos psíquicos internos e externos onde o

arquétipo se aproxima e ocorrem momentos de passagens, mudanças, transições, sofrimentos,

dificuldades, provocam em Joana o renascimento e florescimento de si mesma “ela própria

nascendo sobre a terra asfixiada, dividindo-se em milhares de partículas vivas, plenas de seu

pensamento, de sua força, de sua inconsciência... Atravessando a limpidez sem névoas

lentamente, andando, voando...” (Perto do Coração Selvagem, p.192).

É neste momento em que a personagem Joana se desfaz de todas as cascas do passado

revigorando-se mediante suas dores, onde se fortifica utilizando os detritos deixados o longo

do caminho como adubo para que renasça como uma árvore frondosa. Para Cirlot, no

dicionário dos símbolos (1984, p. 99) “a árvore representa, no sentido mais amplo, a vida do

cosmo, sua densidade, crescimento, proliferação, geração e regeneração”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta perspectiva do universo do imaginário coletivo estabeleceremos um diálogo

entre o objeto de pesquisa e a problemática proposta, onde será possível vislumbrar na

narrativa o arquétipo da mulher selvagem a fim de esculpir da melhor maneira as questões da

alma feminina. Desse modo, é possível verificar a significativa importância do estudo para o

despertar da psique e do seu conhecimento, estes que norteiam às mulheres a interagir em

sociedade, logo o seu retorno ao introspectivo.

É relevante observar que se torna presente no romance Perto do Coração Selvagem, o

autoconhecimento sendo este o caminho para promover as necessárias quebras de padrões

comportamentais que embaraçam o processo de individuação da personagem fictícia Joana.

Notamos que o caminho de Joana dentro da narrativa, segue uma dinâmica,

aparentemente, descontinuada e desconexa, absolutamente assimétrico e incoerente sempre

em busca do seu Self.

Dessa maneira é notável e perceptível que o estudo e analise da obra Perto do coração

selvagem pela vertente junguiana associada à mitocrítica abrirá uma nova senda para a nossa

literatura, consoante a mimese centrada a consciência individual como maneira artística da

realidade. Assim, consideramos que o estudo mais aprofundado da referida obra contribuirá

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 362

para ampliar a compreensão no campo das narrativas introspectivas da literatura associadas

aos recursos psicanalíticos, mitológicos e imaginários.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antônio. No raiar de Clarice Lispector. In: Vários escritos. São Paulo, Duas

Cidades, 1970.

CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário dos símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984.

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1937.

DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo

da mulher selvagem. Tradução de Waldés Barcelos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

HOMEM, Maria Lucia. No limiar do silencia e da letra: traços da autoria feminina em

Clarice Lispector. São Paulo: Boitempo; Edusp, 2012.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009.

______.Estudos psiquiátricos. Tradução: Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes,

1993.

______.O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

______.Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2008.

______.Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009.

LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 7. ed. São Paulo: Atlas,

2010.

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MIELIENTINSKI, E.M. A poética do mito. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

NUNES, Benedito. O drama da linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo:

Editora Ática, 1995.

SHARP, D. Léxico Junguiano: Um Manual de Termos e Conceitos. 5. ed. São Paulo: Editora

Cultrix, 1997.

TURCHI, Maria Zaira. Literatura e antropologia do imaginário. Brasília: Universidade de

Brasília (UnB), 2003.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 363

O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS

DISCURSIVAS [Voltar para Sumário]

Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)1

Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)2

1. Língua, linguagem e gramática — perspectivas do ensino de língua escrita

As discussões em torno do ensino de língua materna, especificamente sobre as

estratégias e os métodos adequados que devem ser utilizados nos processos de ensino-

aprendizagem de Língua Portuguesa (LP), têm ocupado o centro das reflexões linguísticas nas

últimas décadas no Brasil. Um recorte pertinente dessa discussão é constituído pelas questões

que tratam dos aspectos do uso de recursos de língua escrita como forma de expressão da

linguagem.

As reflexões começam, por exemplo, quando se fazem pergunats tais como: Que

gramática ensinar? Ensinar gramática é o mesmo que ensinar língua? Aspectos da oralidade

devem ser tomados como temas de aula de LP? Como trabalhar fala, leitura e produção de

texto em sala de aula? Todas essas perguntas começaram a ser respondidas a partir da

elaboração e divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), que, entre muitas

outras coisas, apontam os caminhos que o ensino de LP deve percorrer na educação básica

para evitar o “fracasso” do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita. A distinção entre

escrita alfabética e linguagem escrita é o centro de uma aprendizagem significativa da escrita,

quer do modus scripsendi (a maneira como se processa a escrita), quer do modus operandi (a

maneira como se configura o escrito).

1 Mestrando pelo programa PROFLETRAS – UFAL. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira

pela Universidade de São Paulo / Academia Alagoana de Letras (UNICID/AAL). Graduado em Letras pela

Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor substituto de Língua Latina na Universidade Federal de

Alagoas (2004 - 2206). Professor de Língua Latina e Língua Portuguesa na Faculdade de Formação de

Professores de Penedo (2003 - 2007). Professor de Língua Latina, Linguística e Língua Portuguesa na

Universidade Estadual de Alagoas (2009 - 2015). Professor do quadro de professores da Secretaria Estadual de

Educação de Alagoas (SEED) e do quadro da Secretaria Municipal de Educação de Maceió (SEMED). 2 Mestranda em Educação Brasileira – PPGE/CEDU/UFAL – Linha e Grupo de Pesquisa: Educação e

Linguagem. Professora do Instituto Federal de Alagoas (IFAL).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 364

A pertinente diferença entre as habilidades de grafar o texto escrito e a competência

para redigi-lo aponta as distinções entres esses dois processos que desfazem a crença de que a

capacidade de escrever esteja relacionada ao domínio do processo alfabético. É sobre essa

distinção que os PCN’s fundamentam-se, conforme o texto abaixo.

A compreensão atual da relação entre a aquisição das capacidades de redigir e grafar

rompe com a crença arraigada de que o domínio do bê-á-bá seja pré-requisito para o

início do ensino e nos mostra que esses dois processos de aprendizagem podem e

devem ocorrer de forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um

conhecimento de natureza notacional: a escrita alfabética; o outro se refere à

aprendizagem da linguagem que se usa para escrever. (PCN, 1997, p. 27).

No entanto, para essa discussão, a perspectiva de reflexão sobre a atividade de

escrever orienta-se pela análise das competências e domínios do código escrito, visto

enquanto resultado de processos que se fixam por usos circunscritos no tempo como, por

exemplo, a passagem de uma ortografia mais etimológica para uma mais fonêmica. As

reflexões também são guiadas pela análise do código escrito enquanto resultado de

convenções que justificam e orientam, por exemplo, a utilização de notações léxicas e de

sinais de pontuação.

Nesse sentido, as dificuldades em torno do ensino-aprendizagem do código escrito

apontam sempre na direção de fazer com que os alunos compreendam, durante todo o

processo de aquisição e desenvolvimento da escrita, que escrever requer habilidades e

competências específicas e distintas das que se utilizam na organização e elaboração da fala.

Por essa razão, ao longo do processo de aprendizagem, escreventes devem entender que a

escrita é “um espaço de convenções, um artefato elaborado de maneira consciente e, por isso

mesmo, submetido a um dirigismo deliberado”. (MARTIN, 2006, p. 53). O estudo das

manifestações de língua escrita, desconsiderando, no entanto, situações concretas de

interação, leva à abordagem de aspectos tangenciais do papel e da função da língua escrita.

2. Língua e linguagem — concepções da gramática normativa

Quando se fala no ensino de gramática, ou quando se pensa em obras de referência no

tratamento e apresentação de “regras” e de taxonomias gramaticais, tem-se em mente autores

como Napoleão Mendes de Almeida com sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa,

que em 2009 chegou à 46º edição com mais de meio milhão de exemplares vendidos. Celso

Cunha & Cintra são nomes também bastante lembrados pela obra Nova Gramática do

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 365

Português Contemporâneo. Não menos relevante é Rocha Lima com a Gramática Normativa

da Língua Portuguesa, inclusive, importante personagem, junto com Celso Cunha, na

formulação do anteprojeto de simplificação e unificação da Nomenclatura Gramatical

Brasileira (1958).

Essa lista de autores de referência, no que diz respeito à elaboração de compêndios

gramaticais, encerra-se com Evanildo Bechara, sem dúvida, o mais conhecido

contemporaneamente entre estudantes de LP por sua Moderna Gramática Portuguesa, que em

2009 teve publicada sua 37º edição. Há muitos outros autores de compêndios gramaticais, os

citados aqui, no entanto, são representativos e fundamentais para as reflexões que se

pretendem apresentar.

Num primeiro momento, o interesse é analisar e refletir sobre as concepções de língua

e linguagem que são utilizadas por esses autores em suas gramáticas. A importância dessas

considerações para este trabalho reside no fato de serem essas obras — basicamente, mas não

exclusivamente — responsáveis pelos substratos conceituais encontrados nos materiais

didáticos de língua portuguesa do ensino básico (fundamental e médio). As concepções

encontradas nessas obras dizem muito sobre a forma de perceber a relação entre língua e

linguagem que fundamentam as definições, as classificações e as tipologias apresentadas no

estudo de LP nas escolas brasileiras. Na Gramática Metódica da Língua Portuguesa, por

exemplo, Almeida (1994) categoricamente explicita que a linguagem constitui-se como “dom

comum de todos os homens, nem todos eles se comunicam pelas mesmas palavras”. Essa é

uma definição que se insere dentro de uma perspectiva de linguagem como um sistema de

signos abstratos cuja função é a manifestação do pensamento e que deve encontrar respaldo

na realidade. Segundo Almeida,

Como todos os outros animais, nós agimos; mas, à diferença deles, manifestamos e

externamos nossa ação, mediante o dom que nos é próprio, a linguagem, que outra

coisa não é senão a propriedade que temos de, por meio de palavras, comunicar-nos

entre nós, exteriorizando o nosso pensamento (...). (ALMEIDA 1994, p. 17).

Essa concepção de linguagem influencia, consequentemente, toda a perspectiva de

ensino-aprendizagem de língua e de gramática, que, não obstante, passa a ser vista,

hermeticamente, como um conjunto de fatos e fenômenos disponibilizado pela própria

“natureza social” na qual o usuário da língua está habitualmente inserido. Nessa mesma base

de concepção, mas já com uma inclinação a ver a língua como um fenômeno social, Cunha &

Cintra definem língua como um sistema de sinais, quando afirma que

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 366

Língua é um sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos. Expressão da

consciência de uma coletividade, a LÍNGUA é o meio por que ela concebe o mundo

que a cerca e sobre ele age. Utilização social da faculdade da linguagem, criação da

sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução,

paralela à do organismo social que criou. (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 1)

Embora aponte para o aspecto social e mutável da língua, a definição acima

permanece presa à ideia de que a linguagem é um fenômeno de natureza abstrata,

manifestação da consciência: um ser de razão. Essa é uma maneira de perceber a língua —

aspecto concreto da linguagem — como consequência da atividade humana, como

instrumento da razão ou da racionalidade; não como força geradora e constituidora do

conhecimento. De modo geral, as perspectivas que orientam o entendimento de língua(gem)

nos compêndios de gramática, entendem-na como um instrumental periférico que manifesta

analogicamente realidades imateriais: o pensamento. Por essa razão, os manuais desembocam

em apresentações de estruturas fechadas e enquadradas em definições, regras e taxonomias.

Apesar de ter lampejos de uma concepção interacionista, a definição de Cunha &

Cintra aponta para uma relação unilateral do uso da linguagem, em que a mudança que se

verifica na língua é consequência de transformações da sociedade que cria a língua. Não se

afasta dessa percepção, a definição que diz que a “LÍNGUA é um sistema: um conjunto

organizado e opositivo de relações, adotado por determinada sociedade para permitir o

exercício entre os homens” (LIMA, 1992, p. 5).

Esses três autores, que estiveram presentes durante muito anos — direta ou

indiretamente — na formação escolar dos estudante de LP, revelam-se presos a uma

concepção de língua(gem) estruturalista, que é, por sua vez, um desdobramento da ideia de

sistema (um todo organizado) que se presta à análise. Em consonância com essa perspectiva,

Bechara em sua Moderna Gramática Portuguesa identifica a natureza da linguagem como

“sistema de signos simbólicos”; a sua percepção é mais significativa porque ele representa um

gramático contemporâneo e profundamente inserido nas questões e discussões promovidas

pelos estudos linguísticos das últimas décadas.

“Entende-se por linguagem qualquer sistema de signos simbólicos empregados na

intercomunicação social para expressar e comunicar ideias e sentimentos, isto é, conteúdos da

consciência”. (BECHARA, 2003, p. 28). Embora Bechara traga a ideia de intercomunicação

social em sua definição — nesse sentido, percebe-se a influência de perspectivas linguísticas

—, ele enxerga a língua como um sistema de signo em cuja construção de sentido

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 367

circunscreve-se nos limites das estruturas que são estabilizadas no próprio fenômeno

linguístico.

A pertinência de Bechara, na forma como define a linguagem, evidencia-se na maneira

como categoriza suas manifestações. Sobre isso, o teórico salienta que “a linguagem,

entendida como atividade humana de falar, apresenta cinco dimensões universais: criatividade

(ou enérgeia), materialidade, semanticidade, alteridade e historicidade”. (Idem). Dessas cinco

categorias, interessa para este trabalho aquilo que Bechara denomina de alteridade, que

consiste em entender que o “significar é originalmente e sempre um ‘ser com outros’, próprio

da natureza político-social do homem, de indivíduos que são homens juntos a outros e, por

exemplo, como falantes e ouvintes, são sempre co-falantes e co-ouvintes” (ibidem). Nesse

posicionamento, pode-se enxergar uma postura, em relação à natureza da linguagem, mais

próxima de uma perspectiva interacionista, que concebe a natureza da linguagem como

resultante das práticas sociais de seus usuários.

Embora Bechara não chegue a tanto, demonstra reconhecer a presença das relações

sociointeracionistas nos fenômenos da linguagem. Quanto a não ir além — ao cerne da

abordagem interacionista ou a de qualquer outra que compreenda a natureza da linguagem per

se —, percebe-se que não vai porque não parece ser seu objetivo.

3. A escrita — espaço de convenções

Uma abordagem moderna do estudo da linguagem na direção da modalidade escrita da

língua precisa partir do entendimento de que esta é resultante de convenções, mas não no

sentido de ela ser resultado de elaborações arbitrárias sem causas e motivações linguísticas

pertinentes e identificadoras da própria natureza da linguagem. De fato, na escrita encontram-

se manifestações da realidade social em que ela se insere e que contribui para a mútua

formação e transformação na relação escrita-sociedade-escrita.

Esse processo de atualização é possível porque a escrita constitui-se de modo

autônomo e consistente — enquanto código com natureza particular e individualizante —

como artefato social e justifica-se in tempore (no momento do uso). Ela é artifício (arte +

ofício), que imita o natural, isto é, algo resultante de uma elaboração humana motivada por

necessidades sociais, mas que tem sua identidade, sua essência, que a distingue

substancialmente daquela que é imitada. É óbvio que não se pode negar a anterioridade da

modalidade oral, “o código gráfico é uma criação em segundo nível (...).”. (MARTIN, 2006,

p. 53). Ainda segundo Martin,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 368

“O código gráfico é também um artefato pelo uso que dele se faz. Onde o oral flui

de maneira natural (com maior ou menor falta de habilidade...), o escrito solicita

constantemente a função epiliguística. No momento em que é produzido, o sinal

gráfico é logo percebido como um sinal, como um espaço de correções

(...)”.(MARTIN, 2006, p. 54).

Nesse sentido, a escrita aproxima-se da fala como uma modalidade de língua com vida

própria, mas se submetendo aos mais diversos processos de estruturação, transformação e

normatização. A aproximação entre o oral e o escrito não se dá enquanto este é

desdobramento daquele, as distinções entre escrita e fala permitem dizer que o código gráfico

não é uma transcrição do oral, as distinções são tão verdadeiras e diversas que permitem

“encarar a possibilidade de tornar autônomos os dois usos, como duas línguas diferentes que

partilham o mesmo nome (...). Uma tal posição tem a vantagem de romper com a ingenuidade

da ideia, de pura transcrição” (ACHARD, 2006, p. 65).

Naturalmente que falar em normatização, ao tratar de oralidade, é combater em

batalhas vencidas, uma vez que é consenso que a fala não se presta à regularizações ou

normatizações, mas a perspectiva é entendê-las como princípios linguísticos que mantêm,

conservam e identificam a natureza ôntica da língua enquanto manifestação do idioma. “É,

assim, lícito reportá-los [domínios oral e escrito] a uma mesma norma abstrata, isto é,

considerá-los como dois subdomínios de uma mesma língua” (ibidem).

A essência distintiva requerida pela escrita em relação à fala fundamenta-se na

percepção de que a escrita não é uma notação fonológica, não se constitui, necessariamente,

de fonogramas. As diferenças entre escrita e fala dão-se, sobretudo, nos níveis

morfossintáticos e prosódicos; em que as estratégias da escrita são mais prolixas, no caso da

morfossintaxe; absolutamente particular (sui generis) no caso da prosódia, uma vez que a

expressão escrita traz a presença de marcas de pontuação, que só existe na expressão escrita.

Isso possibilita deduzir que a escrita é uma outra língua substancialmente diferente da fala.

Para Achard,

“O fosso [entre escrita e fala] torna-se um rio quando nos interessamos pela

organização geral da cadeia significante. Como no escrito, a organização em frases

tem seu modo de fechamento, e como vem acompanhada de uma organização em

sintagmas bem delimitados, é mais do que uma norma externa. No oral, pelo

contrário, uma tal organização quase só pode ser observada em circunstâncias de

escrito oralizado”. (ACHARD, 2006, p. 66).

Pode-se ir mais longe nessa reflexão, se se entender que a formação do constructo

gramatical prende-se, essencialmente, à natureza da língua escrita, isto é, quando se fala em

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 369

normatização, faz-se referência à exteriorização ou à materialização de princípios linguísticos

da língua escrita. O transbordamento para o domínio da fala dá-se por processos ou

procedimentos análogos. Nesse sentido, “há, portanto, um evidente interesse em abordar o

estudo da língua oral abstendo-se de fazer referência a uma tradição gramatical que (...), em

linguística, se apresenta mais como preconceito do que como experiência acumulada”

(ibidem).

“Experiência acumulada” é o que se verifica quando se aborda, por exemplo, o

ensino-aprendizagem de LP a partir do conhecimento sistemático dos princípios linguísticos e

dos aspectos estruturais da língua. Quando alguém, ao dizer (ou escrever) a palavra “calção”,

faz referência a algo específico que, objetivamente, não tem relação com a ideia contida na

palavra “calça” e, em outra situação, usa o sufixo –ão para apenas adicionar uma noção

acidental (flexão), apontando o aumentativo (extensão) de um mesmo referencial semântico

como, por exemplo, na palavra “dedão”; evidencia-se a manifestação de domínios linguísticos

inerentes à estrutura linguística e assimilados naturalmente pelo usuário da língua.

A diferença de sentido e de aplicabilidade do elemento mórfico (o sufixo –ão), antes

de ser apresentada como um fenômeno resultante de relações normativas da língua, deve ser

refletida como um processo natural de um conhecimento adquirido com a prática e com o uso

social da linguagem. Num segundo momento, em situações específicas e especiais de

reflexão, podem-se estabelecer relações significativas e distinguidoras de seus usos e suas

aplicabilidades. Isto é, dizer que, em alguns casos, os sufixos podem promover um processo

de derivação — quando imprimem mudança de significado —, ou promover um processo de

flexão apenas, se conservar o núcleo semântico da palavra.

Explicitar esse processo, considerando os princípios linguísticos, não é normatizar o

uso dos sufixos, é, antes de tudo, descrever o funcionamento de princípios identificadores dos

fenômenos linguísticos e de efeitos fonológicos, morfológicos, sintáticos ou semânticos que

eles promovem. A escrita é um espaço de convenções, isto é, um ambiente de comunicação

em que os fenômenos linguísticos materializam-se de forma regulada por relações

sistemáticas e significativas que são aceitas, compartilhadas e, quando necessário,

transformadas.

A escrita vista como manifestação de língua distinta da fala gera inquietações

linguísticas, pois desfaz a perspectiva de que escrita e fala formem um continuum com as

mesmas possibilidades de formulação linguística e de manifestação social. Suas diferenças,

porém, não lhes conferem primazia nem maior ou menor grau de importância, pois “se há

alguma anterioridade entre fala e escrita isso se deve a aspectos cronológicos”.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 370

(MARCUSCHI, 2005, p. 26). No entanto, se fossem um continuum, os processos de aquisição

e de desenvolvimento das habilidades e competências que lhes circundam deveriam

manifestar-se de forma semelhante, isto é, a aquisição da escrita, por exemplo, deveria ter

qualquer coisa de espontâneo e, de alguma forma, apresentar-se como uma extensão da

aquisição e do desenvolvimento da fala.

Como proposta de equacionar o problema em torno da compreensão da escrita como

uma forma da língua essencialmente distinta da fala, pode-se ponderar e refletir a questão a

partir daquilo que Catach (2006) chama de plurissistemas, em que, considerando os conceitos

saussurianos de signo – significado – significante, propõe-se analisar se, na passagem da fala

para a escrita, verificam-se mudanças referencias (de significado), acidentais (de significante),

ou sígnicas (de essencialidade) —, ou tudo isso junto. Nesse sentido, vale a pena pensar

sobre que competências um falante adquire e/ou desenvolve ao se tornar um escrevente.

4. Marcas de pontuação — singularidade da escrita

Tradicionalmente, estabelece-se uma correspondência direta entre os fenômenos da

fala e suas representações gráficas na escrita. Essa necessidade sempre esteve presente porque

sempre se achou que para “escrever ou recitar, declamar ou cantar era preciso observar o

silêncio, que separa as expressões que formam um discurso; bem como, o tempo de respiração

durante a leitura”. (GRIMAREST apud CATACH, 1996, p. 35). No que diz respeito à

utilização dos sinais de pontuação, essa transposição de valores significativos da fala para a

expressão escrita é imperativa, porque se entende que “conexo com o problema ortográfico é

o da pontuação”. (HOUAISS, 1983, p. 90). Pode-se ir muito além dessa perspectiva

normativa no que diz respeito aos sinais de pontuação, pois as marcas de pontuação são aquilo

que há de mais singular na modalidade escrita, pensar em pontuação é, necessariamente, fazer

referência à expressão escrita.

5. A constituição das marcas de pontuação — do textual ao discursivo

Não se questiona que a relação e a influência da fala na estruturação e organização da

escrita devem-se, ao menos a princípio, à própria história de formação da escrita que ganhou

existência na perspectiva de ser falada, ou seja, originariamente os textos escritos eram

produzidos para serem lidos em voz alta.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 371

Vale lembrar que os gregos — sistematizadores da escrita — não conheciam a leitura

silenciosa, “e o leitor de um texto falava as palavras em voz alta, mesmo quando estava lendo

sozinho”. (TRASK, 2008, p. 232). Em razão disso, durante o processo de formação da escrita

grega, passou-se a acrescentar marcas (sinais) que fizessem o leitor lembrar (no momento da

leitura) onde se deveria fazer uma pausa ou elevar o tom de voz.

Esse aspecto histórico é uma das razões que fizeram com que a escrita sempre fosse

vista como uma materialização de aspectos da fala sem nenhum sentido lógico-gramatical,

indicando que a pontuação não passava “meramente de uma transmutação histórica de

aspectos oriundos da fala que se teriam, sistematicamente, reanalisado e recodificado,

dissociando-se de sua base generativa”. (MACHADO FILHO, 2004, p. 24).

Fica claro que as marcas de pontuação — até como parte do processo de formação e

desenvolvimento da escrita — caracterizam-se como uma tentativa de representação de

aspectos da fala. Mas “esse pressuposto teórico, além de bastante questionável, corre o risco

de enganar, pois deixa acreditar que o escrito compartilha parâmetros similares com o oral,

quando não parâmetros do próprio oral”. (DAHLET, 2006, p.24). A partir dessa observação, é

preciso considerar que o uso de sinais de pontuação tem motivações próprias e fundamentos

fincados na estruturação de aspectos textuais e/ou discursivos da própria escrita.

Modernamente, pode-se dizer que a existência das marcas de pontuação é de natureza

sintática e exprime também aspectos melódicos e entoacionais, enxergá-las assim não

interfere na sua legitimidade, embora esses aspectos não possam ser utilizados como critérios

absolutos de aplicabilidade.

Une unité syntaxique doit être comprise comme associant à la fois une suite de mots

(aspect constructif), un message (aspect actuel), une substance et une forme

intonatives (mélodie expressive e aspect intonatif) et un sens (contenu de message,

résultant de l’ensemble des données précédents). (CATACH, 1996, p. 48)

No entanto, o sistema de pontuação não pode ser visto apenas a partir da sintaxe da

frase e das relações que existem entre termos ou palavras de uma frase, muito menos pelos

efeito imprimem ao processo de leitura. A pontuação, que se aplica e a um texto, justifica-se

quando este é tomado como um todo, como uma grande unidade de sentidos e intenções. As

expressões (frases e orações, períodos e parágrafos) mantêm uma relação de imbricação, por

isso se dizem respeito e se articulam de forma discursiva.

Infelizmente, essa compreensão das marcas de pontuação — como verdadeiros signos

linguísticos autônomos — não perpassa as abordagens em aulas de LP e o que se vê, de modo

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 372

geral, é a apresentação desses sinais como algo de relações superficiais e essencialmente

convencionais que servem apenas para atender à elaboração sintática e para orientar a leitura.

O estudo e o ensino das marcas de pontuação, sobretudo, no ensino fundamental — período

em que o processo de aquisição e desenvolvimento da escrita é mais intenso e significativo —

precisam ser introduzidos de forma, metodologicamente, mais elaborada e relacionada com

seus usos concretos. Nesse sentido, faz necessário refletir sobre as formas e os métodos de

abordagem que possibilitem — respeitando-se as fases de desenvolvimento cognitivo dos

estudantes — uma aprendizagem das marcas de pontuação que considere o que é pertinente

na construção dos sentidos do que é escrito (dito).

O que dever ser tomado como objetivo, no que diz respeito ao tratamento dado às

marcas de pontuação, é que elas devem ser vistas — assim como todo signo linguístico

presentes no texto — como recursos preenchidos de sentido e de intencionalidades. Os

estudantes precisam desde cedo serem orientados a compreenderem que as marcas de

pontuação expressam muito mais que delimitações morfossintáticas e orientações ritmo-

melódicas. Como usuários da escrita, os alunos devem ser apresentados à carga comunicativa

inerente aos sinais de pontuação; reconhecendo que algumas, por exemplo, indicam,

necessariamente, intenções discursivas, que sua presença no texto não se justifica (dentro de

um raciocínio lógico-gramatical) por aspectos morfossintáticos e/ou rítmico-melódicos.

Isso é o que deve ser sublinhado quando os alunos (independentemente da fase de

escolaridade) estão diante de marcas de pontuação como as aspas, os parênteses ou os

travessões, que apontam uma intervenção no processo de leitura e, principalmente, de

compreensão daquilo que está sendo dito de outra ordem — sentidos pertencentes à esfera do

discursivo. A potencialidade comunicativa dessas marcas pode ser analisada no exemplo

abaixo, em que se perceberá, claramente, a mudança de postura enunciativa marcada pela

intercalação entre travessões.

No fragmento acima, pode se ter uma demonstração dos princípios de análise

linguística em que se fundamentam as motivações de escrita deste trabalho, que defende,

como forma de organização e de aplicabilidade das marcas de pontuação, a existência de duas

categorias básicas desses sinais: as marcas de pontuação sintáticas e as marcas de pontuação

discursivas. O papel linguístico destas últimas seria promover um “desengate enunciativo”

“A metrópole que menosprezou, sujou e soterrou seus cursos d’água agora quer — e precisa —

recuperá-los” (revista superinteressante, março de 2015, p. 60)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 373

(DAHLET, 2006, p. 51), em que a expressão intercalada manifesta-se claramente ser de outra

ordem discursiva em relação ao que está fora dos travessões.

Uma abordagem de estudo e de ensino das marcas de pontuação, como elemento

constituidor do texto e da textualidade, deve considerá-las sob a perspectiva de suas funções

discursivas, que revelam aspectos importantes na construção de sentido daquilo que está

escrito. Isto é, as marcas de pontuação apresentam funções multifacetadas que, diferentemente

da preocupação inicial de aponta recursos da fala ou aspectos organizacionais da estrutura

textual, intencionam materializar aquilo que não se verbalizar.

Referências

ACHARD, P. A especificidade do escrito é de ordem linguística o discursiva? In: Nina

Catach (Org.). Para uma teoria da língua escrita (coleção múltiplas escritas). São Paulo:

Ática, 2006.

ALMEIDA, Napoleão M. Gramática metódica da língua portuguesa. 39° edição. São Paulo:

Saraiva, 1994.

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37 º edição rev. e ampl. Rio de

Janeiro: Lucerna, 2003.

CATACH, Nina. La punctuation: histoire et systeme (que sais-je). 2ª ed. Paris: Universitaires

de France, 1994.

CATACH, Nina. 2006.

CUNHA, Celso & CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo.

5ª ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.

DAHLET, Véronique. As (man)obras da pontuação: usos e significações. São Paulo:

Associação Editorial Humanitas, 2006.

HOUAISS, Antonio. Elementos de bibliografia. São Paulo: Hucitec, 1983.

ROCHA LIMA, Carlos H. Gramática normativa da língua portuguesa. 31° ed. Rio de

Janeiro: José Olympio, 1992.

MACHADO FILHO, Américo V. Lopes. A pontuação em manuscritos medievais

portugueses. Salvador: EDUFBA, 2004.

MARCUSCHI, Luiz A. Da fala para a escrita. São Paulo: Cortez, 2005

MARTIN, R. O escrito como espaço de convenções. In: Nina Catach (Org.). Para uma teoria

da língua escrita (coleção múltiplas escritas). São Paulo: Ática, 2006.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 374

PCNs, 1997. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf > Acesso em: 24 jan. 2015.

TRASK, R. L. Dicionário de linguagem e linguística (tradução ILARI, Rodolfo). 2ª ed. São

Paulo: Contexto, 2008.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 375

O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA [Voltar para Sumário]

Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL)

Pode haver futuramente quem veja no ano de 2014 algo de emblemático para a história

recente do Brasil. Ao menos se trata de um ano que ensejou diversas expectativas: a

realização em seu solo de uma Copa do Mundo de futebol amplamente contestada — o ano

anterior havia sido fértil em manifestações ferozmente contrárias à sua realização —, eleições

gerais que dariam continuidade a uma era de intensificação dos ânimos ao tratar do tema1.

E eis que entre os meses de março e abril deste mesmo ano o escritor André

Sant’Anna lançava seu mais recente livro de contos, O Brasil é bom. Grande parte da

compilação é composta, em verdade, por textos publicados anteriormente, sob encomenda, em

coletâneas temáticas, com uma ou outra modificação. É o caso, por exemplo, de “Use sempre

camisinha”, que já havia saído na coletânea 35 segredos para chegar a lugar nenhum:

literatura de baixo-ajuda, na qual o gênero que ganhou notoriedade nas mãos de Dale

Carnegie e Augusto Cury é macerado por vários escritores. Segundo o próprio Sant’Anna,

apenas um dos textos constantes de O Brasil é bom não saiu sobre encomenda2.

Nosso interesse em pesquisar as reflexões sobre nacionalidade e a condição nacional

empreendidas em nossa literatura nos levaram a voltar os olhos para a obra de André

Sant’Anna, a princípio fixando-se em seu romance O Paraíso é bem bacana, de 2007. Ao

lançarmos um olhar mais panorâmico sobre o conjunto de sua obra, pudemos perceber que o

tema Brasil e seus “penduricalhos” é abordado progressivamente. Ao vermos que, desde o

título, esta (não tão) nova obra trazia a reflexão sobre o Brasil num plano mais destacado,

resolvemos incluí-la em nossa pesquisa. Outro item que nos chamou a atenção foram os

1 Segundo Carlos Guilheme Mota e Adriana Lopez, “[n]as eleições de outubro [de 2014], esse quadro tornar-se-

ia mais nítido, com o país rachado ao meio” (2015, p. 1055) 2 Em entrevista a André Maleronka, ele esclarece essa relação entre escrita e as encomendas:

Quando eu tô com a ideia na cabeça, mas tô sem tempo, eu fico esperando uma

encomenda (rindo). Aí eu pensei nas histórias, vou fazendo as histórias e fechei

nessas cinco. Acabei a história da revolução [sic] no finalzinho, assim, pra ter mais

uma. Foi a única que foi feita sem ser por uma encomenda (2014).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 376

recursos humorísticos empreendidos nessa reflexão, e por isso resolvemos trazer algo deles à

tona.

Segundo Jan Bremmer e Herman Roodenburg,

[d]e Freud e Bergson a Mary Douglas, psicólogos, filósofos, sociólogos e

antropólogos têm se empenhado em encontrar uma teoria abrangente para o humor e

o riso. Uma falha comum a todas estas tentativas é o pressuposto tácito de que existe

algo como uma ontologia do humor, que humor e riso são transculturais e

anistóricos. Contudo, o riso é um fenômeno tão determinado pela cultura quanto o

humor” (2000, p. 15-16, grifo dos autores).

Parece-nos ponto pacífico, portanto, que elaborar “universais do humor e do riso” é uma

empreitada com grandes probabilidades de fracassar. No entanto, alguns conceitos clássicos

nos podem servir para esta análise: Henri Bergson, em O riso, reconhece o caráter social da

comicidade — “[s]e nos sentíssemos isolados seríamos privados do cómico” (BERGSON,

1993, p. 19) — mas generaliza como elemento comum às coisas risíveis certo automatismo:

“[o] que há de risível [...] é uma certa rigidez do mecânico onde deveria haver a maleabilidade

atenta e a viva flexibilidade da pessoa humana” (BERGSON, 1993, p. 22, grifo do autor).

Uma estratégia lúdica visível em praticamente toda a obra de André Sant’Anna é a

repetição como estilização (às vezes) exagerada de cacoetes linguístico-retórico-ideológicos

da fala informal de diversos grupos sociais brasileiros (ou estrangeiros, quando o Brasil é

objeto de suas reflexões). De fato, a repetição é observada como fenômeno, se não exclusivo

dos usos coloquiais do português brasileiro, pelo menos são mais frequentes:

As repetições não são exclusivas de linguagem oral, mas sua especificidade está no

seu grau de frequência e tipicidade. [...] [Observam-se também] torneios

pleonásticos típicos da língua falada, que podemos classificar como repetições de

conteúdo com forma diversa. Na língua falada, por exemplo, são normais estruturas

e informações circulares, ao passo que na língua escrita os temas e remas se

sucedem numa forma progressiva” (URBANO, 2000, p. 120-121).

E a repetição como elemento risível não escapa à observação de Bergson:

Aproximemo-nos ainda mais da imagem da mola que se encolhe, se distende e torna

a encolher. Tiremos dela o essencial. Vamos obter um dos processos mais usuais da

comédia clássica: a repetição” (BERGSON, 1993, p. 60, grifo do autor).

Talvez o traço mais destacado da repetição estilizada na obra de André Sant’Anna seja

a recusa aos termos ou expressões anafóricas que nos servem a um ideal de coesão formal.

Com isso, frequentemente termos que já foram mencionados anteriormente são

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 377

“remencionados” na íntegra, sem serem referidos por pronomes ou outras expressões que

apontariam para o termo supracitado3. Este recurso estilístico é observável desde sua primeira

obra publicada em livro, Amor:

Aquela rua escura e aquelas pessoas cruzando.

Uma rodoviária cheia daquelas pessoas e todas aquelas pessoas.

Uma rodoviária lá na Europa e todos aqueles europeus com seus problemas

europeus naqueles filmes europeus. Franceses.

[...]

Aquele cantor cantando. (SANT’ANNA, 2001, p. 24).

Em Sexo, sua segunda obra, a repetição como indicação de mecanicidade aparecerá de

forma mais evidente, ao descrever as ações repetitivas das personagens (sobretudo os “Jovens

Executivos”), que parecem ter saído de uma “linha de montagem”:

O Jovem Executivo de Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas e sua

Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol, entraram na casa dos pais da Noiva Loura,

Bronzeada Pelo Sol, Do Jovem Executivo de Gravata Vinho Com Listras Diagonais

Alaranjadas.

O Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos e sua Noiva Loura,

Bronzeada Pelo Sol, entraram na casa dos pais da Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol,

Do Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos (SANT’ANNA,

2007b, p. 243).

Na edição portuguesa de Amor — uma vez que a primeira edição, de curtíssima

tiragem, logo se esgotou — e em Inverdades, Sant’Anna acrescentou a sua obra narrativas

mais curtas, até surgir o contexto apropriado para a escrita de seu primeiro — e até então

único — romance:

O Paraíso é bem bacana, na verdade, foi o último projeto muito planejado, [no

estilo] vou escrever um romance. Coincidiu que eu fiquei doente: fiquei seis meses

internado no hospital por causa de pancreatite aguda. Aí saí do hospital e ainda tive

um ano de recuperação. Tive dificuldade, eu não conseguia atravessar a rua sozinho,

tive encefalite. Então, eu tinha a coisa mais sagrada para um escritor, que é tempo.

Ficava em casa, tinha muito tempo para escrever: consegui escrever um romance de

500 páginas. De lá para cá, você tem que ir se adequando. [...] [F]oi uma

encomenda da Companhia das Letras: eles estavam fazendo uma coleção que acabou

não vingando, mas era uma coleção de livros safados; assim, livros que tinham a ver

com sexo, alguma coisa. Chegou a sair o livro do Rubem Fonseca, saiu o do Henry

Miller (SANT’ANNA, 2014).

Em O Paraíso é bem bacana, a relação entre humor e reflexão sobre o país aparece na

trajetória da personagem principal, o adolescente Manoel dos Anjos (Mané), jogador de

futebol de Ubatuba que é transferido do time local para o Santos e de lá para o Hertha

3 Como, por exemplo, a expressão “termo supracitado” que acabamos de usar agora.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 378

Berliner Sport-Club, sediado na capital alemã. No clube da Vila Belmiro, Mané, por ter

dezessete anos, ser negro, subnutrido, de origem humilde e goleador, tem sua trajetória

inevitavelmente comparada à do maior craque já revelado naquela cidade: Edson Arantes do

Nascimento, o Pelé. No entanto, o jovem acaba vivenciando vários episódios constrangedores

e gerando estranhamento nos colegas e nas demais pessoas ao seu redor devido ao seu

comportamento excêntrico e a sua escandalosa idiotice, pressagiada por seu apelido: como

substantivo comum, a palavra “mané” significa tolo, idiota:

“Tá vendo? Fala igual retardado.”

“E aí, Mané? Você é igual o Pelé?”

“...”

“É ou não é? Os cara tão perguntando na televisão.”

“É ou não é? Fala, Mané!”

“...”

“Você é igual que jogador?”

“É o Pelé, é?”

“Renato Gaúcho.”

“?”

“?”

“?”

“?”

“?”

“?”

Rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá

rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá

rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá... (SANT’ANNA,

2007, p. 235).

A condição física, o talento futebolístico e o fato de jogar no Santos fazem com que se

despeje em Mané a expectativa de ser o novo Pelé. No entanto, sua estultícia, sua paixão pelo

Fluminense Football Club e o desejo de ser como o Renato Gaúcho, que é branco, é vista com

uma cruel gargalhada de desprezo pelos seus colegas. O riso aqui (a cuja perversidade o leitor

se vê inevitavelmente levado a aderir) se motiva pela falta de consciência de Mané a respeito

de como o mundo à sua volta funciona. Sua deficiência intelectual e social o leva a agir

“mecanicamente” e a interpretar o mundo em função de sua estupidez. Essa estupidez, aliada

à tensão entre o desejo de transar e a timidez debilitante, o leva a converter-se ao islamismo,

na esperança de, uma ver morto em nome da fé maometana, ir direto ao Paraíso e desfrutar da

eterna companhia de setenta e duas esposas virgens.

O choque cultural causado por essa noção de Paraíso além-tumba tão estranha a olhos

ocidentais, por sua não negação da carnalidade no pós-vida, gera também um efeito

humorístico, ainda que pautado numa noção hierárquica Ocidente/Oriente, cultura/natureza.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 379

Claro que para construir esse Paraíso “bem bacana”, Mané coleta e mistura as fontes mais

inusitadas: revistas masculinas, filmes pornográficos, traduções equivocadas do Alcorão.

E todo esse repertório o faz cometer um ato terrorista malsucedido: no hospital,

desacordado, com o rosto desfigurado, sem os membros e sem o pênis, Mané imagina-se um

“marte do Alá” priápico e feliz da vida, com os rios de vinho que não embebeda, a brisa que

refresca o mártir e as setenta e duas consortes.

Muecke observa que

as áreas de interesse que mais prontamente geram ironia são, pela mesma razão, as

áreas em que se investe mais capital emocional: religião, amor, moralidade, política

e história. A razão é, naturalmente, que tais áreas se caracterizam por elementos

inerentemente contraditórios: fé e fato, carne e espírito, emoção e razão, eu e o

outro, dever-ser e ser, teoria e prática, liberdade e necessidade (1995, p. 76).

Daí o potencial humorístico e, ao mesmo tempo, a delicadeza de mexer num vespeiro, uma

vez que tais itens mexem bastante com as suscetibilidades das pessoas que vivenciam essas

instâncias.

Quando uma pessoa se converte ao Islã, ela pode adotar um nome muçulmano, de

preferência se o nome antigo remete a uma palavra negativa ou à adoração a algum outro

Deus ou outro ser que não Alá. Mané é, então, “rebatizado” por seu companheiro do time de

juniores do Hertha, o alemão Hassan. Depois de discussão em mímicas e palavras

mutuamente não compreendidas em português e alemão, Mané recebeu simplesmente o nome

do Profeta, chamando-se, a partir de então, Muhammad Mané. O desleixo de deixar o nome

do Mensageiro de Alá próximo ao termo que pode significar tolo traz de igual modo um

componente lúdico, não apenas pelas razões que Muecke menciona e que estão citadas acima,

mas também porque o desleixo seria uma manifestação da mecanicidade que Bergson aponta

como critério para o cômico.

No plano da linguagem, a hiperanáfora que torna o texto de André Sant’Anna

facilmente identificável faz-se presente sobretudo nas falas de dois dos vários narradores que

dividem o espaço do romance para contar a história desventurosa de Muhammad Mané: um,

não identificado com nenhuma das personagens principais da história (o qual, por sinal, é

quem abre o romance):

O Mané podia ter dado uma porrada bem no meio da cara daquele gordinho filho-

da-puta.

Mas não.

O Mané ficou rodando em volta do gordinho filho-da-puta, olhando para os lados,

esperando que algum filho-da-puta logo apartasse a briga.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 380

Mas não.

Eles eram todos uns filhos-da-puta e queriam ver um filho-da-puta batendo no outro.

O Mané ainda não sabia que eram todos uns filhos-da-puta.

O Mané não tinha motivo para bater no gordinho filho-da-puta.

O Mané não sabia que o gordinho filho-da-puta tinha motivo para bater nele, no

Mané. (SANT’ANNA, 2007a, p. 7)

O outro é o próprio Mané, que compartilha conosco seu enlevo ao vivenciar as delícias (pra

ele) eternais:

É setenta e duas. E elas vêm vindo, tudo limpinhas, muito bonitas, e elas têm tanto

amor ni mim e gosta tanto de mim e me ama tanto e agora é tão bom que eu tô

sentindo tudo tão bem, tudo tão cheirosas, e elas vai ficando tudo pelada, bem

devagarinho, bem assim que nem filme que passa na televisão sábado de noite, com

aqueles biquíni tudo meio cor-de-rosa e com aqueles negócio peludo e cor-de-rosa e

vão tirando as parte de cima e fica com os peito, uns peitão todo cor-de-rosa e cheio

assim que parece que vai estourar e tem aqueles véu que nem naquela novela que

tinha os Marrocos que é de onde vem o Abud. [...]Agora eu sei que ficou valendo a

pena de verdade, que é setenta e duas mesmo e que elas faz tudo que eu gosto pra

mim e vão ficar fazendo sempre, tudo o que eu gosto de fazer com as mulher. E elas

depois vão falar coisas boa e engraçadas pra gente ficar rindo, tudo amigo e fazendo

essas coisa de sex (SANT’ANNA, 2007a, p. 9, 11)

A fala desarticulada, exageradamente repetitiva e repleta de barbarismos gera um efeito

humorístico controverso, uma vez que também pode facilmente incorrer no dualismo

natureza/cultura. Luciene Azevedo elabora a questão da seguinte maneira:

A voz narrativa assume também a função de um ventríloquo que se apropria das

falas do senso comum e expõe os preconceitos latentes.

Os riscos são claros: a negatividade da apropriação crítica pode resultar apenas em

rebeldia e desprezo, e a mímesis desconstrutiva pode descambar para a

cumplicidade, mas é característico da performance o equilíbrio precário entre a

crítica (quase moralista) e a reiteração de muitos preconceitos e estereótipos,

entrelugar que é condição de possibilidade de sua existência. (AZEVEDO, 2007, p.

86).

Ela ainda chama a atenção, ao se deter sobre O Paraíso é bem bacana, para os “resquícios

naturalistas e pendores moralistas que atravessam a narrativa de André Sant’Anna (e não

apenas nesse livro) (AZEVEDO, 2007, p. 88). No entanto, praticamente nenhum dos vários

narradores de O Paraíso é bem bacana usa a norma padrão do português brasileiro. Ela

aparece em itálico, como uma forma de indicar que naquele momento, aquela personagem

está falando em alemão (país onde se passa grande parte da trama).

Por fim, outro elemento que traz certa comicidade é a subversão dos diversos

conceitos de senso comum elaborados sobre o Brasil: em O Paraíso é bem bacana, chamam a

atenção os elaborados pelos não brasileiros a respeito do Brasil, como a enfermeira Ute: que

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 381

tem que cuidar de Mané mesmo odiando muçulmanos terroristas como ele: “Alguns

exemplos: a enfermeira Ute, que trabalha no quarto do hospital onde Mané está internado:

“Vocês são tão divertidos. Brasilien, samba, lambada, schöne Männer, Fussball!”

(SANT’ANNA, 2007a, p. 13, grifo do autor); Mechthild, a jovem alemã de dreadlocks e alta

desinibição sexual, que no Paraíso de Muhammad Mané é conhecida como Crêidi:

Você já fez amor com alemão? Alemão não sabe fazer amor. Agora eu só faço amor

com africanos e sul-americanos do Brasil. Negros. Existe essa história do tamanho

do pênis dos negros, mas não é isso que importa. É o modo de ser deles, o espírito

tropical, o sorriso. [...] O nome dele é Mané, Muhammad Mané. Eu nunca tinha

visto brasileiro turco antes, nem árabe, nem terrorista (SANT’ANNA, 2007a, p. 64,

grifo do autor).

Em O Brasil é bom, são os brasileiros, quase sempre de classe média, que passam a

refletir sobre si mesmos e sobre seu ideal de país. Os discursos das personagens costumam

basear-se num ideal questionável de superioridade brasílica:

Eu sou bom. Eu sou bom porque eu sou brasileiro. Os brasileiros não desistem

nunca. Os brasileiros sabem viver com alegria, mesmo tendo que enfrentar extremas

dificuldades. Os brasileiros são bonitos. A mulher brasileira é a melhor mulher que

existe. A mulher brasileira é a melhor mulher que existe porque a mulher brasileira

faz sexo muito bem e tem bumbum. (SANT’ANNA, 2014, p. 38).

Ou basear-se num discurso de elogio da violência de Estado como solução para determinados

problemas do país:

A culpa é toda do direitos humanos, que vem aqui se meter no Brasil e não cuida dos

problemas deles mesmo, desses países que se acha. Porque lá todo mundo faz o que

quer, faz terrorismo, fuma drogas, anda pelado com os seios de fora e até faz sexo

com homens do mesmo sexo (SANT’ANNA, 2014, p. 21)

Ora, não tem como homem fazer sexo com homem de sexo diferente. Esse falso lapsus

linguae é um recurso através do qual André Sant’Anna desqualificará os narradores que

empreendem esses discursos, como maneira de refletir sobre o “brasileiro médio”,

ideologicamente conservador, cuja opinião passou a se fazer ouvir mais nos últimos anos. Ao

fazê-los falar platitudes, atos falhos, barbarismos ou anacronismos, ele demonstra que essas

personagens sequer refletem a respeito do que falam. No entanto, é um tipo de ironia que

talvez não atinja aqueles que na vida real comunguem dessas crenças, uma vez que não se

verão parecidos com esse narrador. A ironia aqui é uma via de mão única, apontando para um

sentido que ocupa, na ficção sant’anniana, um posto axiológico hierarquicamente superior:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 382

“[e]mbora o sentido pretendido não seja diretamente expresso, uma verdade é afirmada, há

uma mensagem a compreender, o que pode significar uma ideologia a exaltar ou defender”

(DUARTE, 2006, p. 31). O ironista aqui arrisca a credibilidade em nome da certeza de que

algo vai errado e, por isso, precisa ser consertado. Ou pelo menos é preciso reclamar.

Referências

AZEVEDO, Luciene. Representação e performance na literatura contemporânea. Aletria:

Revista de estudos de Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.

16, jul./dez. 2007, p. 80-93. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publica

coes_pgs/Aletria%2016/06-Luciene-Azevedo.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2014.

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cómico. 2. ed. Tradução de

Guilherme de Castilho. Lisboa: Guimarães, 1993.

BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman. Introdução: humor e história. In: ______. Uma

história cultural do humor. Tradução de Cynthia Azevedo e Paulo Soares. Rio de Janeiro:

Record, 2000, p. 13-25.

DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: PUC Minas; São

Paulo: Alameda, 2006.

MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. 4. ed.

São Paulo: 34, 2015.

MUECKE, D. C. Ironia e o irônico. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo:

Perspectiva, 1995.

SANT’ANNA, André. Amor e outras histórias. Lisboa: Cotovia, 2001.

______. André Sant’Anna. Vice, São Paulo, 2 dez. 2014. Entrevista concedida a André

Maleronka. Disponível em: <http://www.vice.com/pt_br/read/andre-santanna-linguagem-

preconceito>. Acesso em: 3 mai. 2015.

______. O Brasil é bom. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

______. O Paraíso é bem bacana. São Paulo: Companhia das Letras, 2007a.

______, André. Sexo e amizade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007b.

URBANO, Hudinilson. Oralidade na literatura: o caso Rubem Fonseca. São Paulo: Cortez,

2000.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 383

A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA

IRREVERÊNCIA [Voltar para Sumário]

Arturo Gouveia (UFPB)

1. O perfil da personagem

No romance A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro, o enredo é a

transcrição de um manuscrito deixado na casa do autor, logo que se dissemina a notícia de

que ele foi incumbido por uma editora a escrever um livro sobre a luxúria (Ribeiro, 1999). A

distinção entre a autoria do texto, pertencente a uma mulher que não se identifica nitidamente

(apenas as iniciais CLB) ou ao autor empírico, cria uma ambiguidade cuja resolução acaba

pendendo para a primeira alternativa. No caso, se o romance é rigorosamente a transcrição do

material, pode-se afirmar que não há intervenção alguma do autor, nem este cria um narrador

próprio, cedendo espaço absoluto para a voz feminina depoente. A menos que se lance a

hipótese de a voz feminina ser, ela mesma, uma criação do autor, a responsabilidade pelos

conteúdos e pela forma da composição é dessa primeira voz frente à qual o autor não

estabelece nenhuma mediação artística. Nesse sentido literal, o romance nem sequer seria uma

expressão artística, porque a ficcionalidade estaria afastada de um material que não passaria

de documento.

Mas sabe-se que essa aparência de pura empiria, à margem de pretensões estéticas, é

uma das estratégias usadas por narradores ou autores que querem delegar a responsabilidade

dos escritos a outrem, quando essa transferência já é uma forma de demonstrar a parcialidade

da intervenção de uma segunda voz que, aparentemente, se deixa camuflar por uma primeira

voz, que passa a dominar o foco narrativo.

Nessa medida, a identificação dos fatos passa necessariamente pela identificação da

voz narrativa, tal como exposta no material. E um fato crucial no texto é que a narradora-

personagem não tem uma meta definida no presente, a não ser livrar-se em definitivo do

moralismo que tanto combatera no passado: “Ainda me restam alguns penduricalhos desse

legado imbecilóide, de que tenho de me livrar antes de morrer”. (Ribeiro, 1999: 15)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 384

Quanto ao seu passado, há algo semelhante: ela sempre se empenha em cometer

transgressões morais, com comportamentos sexuais que vão desde mínimas ousadias de

menina até os gestos mais esdrúxulos e radicalmente reprováveis. Como exemplo do que seria

sua aspiração máxima, ela comenta sobre o que lera sobre a moral da Roma antiga, para criar

um contraste com o moralismo atual:

“Em Roma antiga, houve um tempo em que as noivas acariciavam a glande de

Príapo, ou se sentavam nela. Pelo que eu li, a glande mais usada, a glande pública,

por assim dizer, devia ser uma verdadeira poltrona”. (Ribeiro, 1999: 14)

Mas tudo o que a personagem diz romper e transgredir ocorre em ambiente privado.

Ela não se envolve em nenhuma questão social, não tem nenhum projeto, nenhuma causa,

nada que a ligue às instituições em relação direta e objetiva. Ela se diz empenhada em lutas

contra toda forma de hipocrisia social, principalmente as formas de retração do uso livre do

corpo, mas nunca transforma esse ideal em ação prática para além de quatro paredes. Em

função disso, confessa a satisfação de praticar o incorreto em espaço fechado:

“(...) a hipocrisia da época era mais agressiva, dava muito gosto a quem desfiava

seus mandamentos, acaba resultando num grande prazer, a transgressão era mais

satisfatória, melhor para o ego”. (Ribeiro, 1999: 33)

Apesar de seus propósitos de ruptura, ela sempre atua na clandestinidade, a exemplo

do que faz com o tio Afonso, em fazenda distanciada e quando as pessoas não estão presentes.

Com essas ações escondidas, pois, segregadas de um embate visível, sua postura reproduz o

próprio sistema condenado e mostra-se infrutífera para a conquista social de valores não-

hipócritas. Quando o tempo de sua experiência passa pelo regime militar, por exemplo, as

menções ao golpe e à ditadura são muito rápidas: ela não tem interesse em nada além de suas

aspirações individualistas, narcisistas e, como assume em alguns momentos, sádicas:

“Considero meu sadismo psicológico muito mais interessante, inclusive porque é

seletivo, é um prato feito para analistas. Exemplo desse meu noivo, muitos

exemplos, exemplo do tio Afonso, o pior de todos. Tenho certeza de que contribuí

substancialmente para o enfarte dele. Ele não valia de nada, de qualquer jeito, comia

a mulher do irmão, minha mãe (...) nunca fui a epítome da hipocrisia. Não, desculpa

esfarrapada, não convence. Estou aberta à crítica, eu mesma já pensei muito nisso,

de certa forma vivo pensando. Não acho nada demais o sujeito comer a mulher do

irmão, mas não concordo em que o irmão de meu pai tivesse comido a mulher do

irmão, meu pai. Neuroses. Por mais que me desgoste, sou obrigada a admitir.

Traumas da infância”. (Ribeiro, 1999: 82-83)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 385

Ela evita qualquer compromisso que venha a tomar-lhe um tempo individual quase

todo dedicado ao sexo. Inspira-se em exemplos dos mais esdrúxulos, subversivos e não-

aceitos socialmente, como a experiência da amiga Norma Lúcia, que busca todo tipo de

prazer, desde assistir à devoração de um pequeno animal por uma cobra até experiências com

animais de porte superior:

“Norma Lúcia não se aguentava de excitação diante desse espetáculo e se

masturbava horas seguidas. Muitíssimo mais tarada do que eu, incomparavelmente,

chegava a acariciar longamente os paus dos cavalos dela, com os olhos fechados e

quase em transe. E adorava ver cavalos trepando também”. (Ribeiro, 1999: 50)

Tomando Norma Lúcia como modelo ideal de vida, a personagem, contudo, sempre

age na relação fechada, individual ou grupal, sem propagação para além desses limites. Seu

discurso de transgressão e subversão, assim, só é coerente em seu âmbito particular – uma

negação prática de todo o seu ideal de mulher amoral.

2. O grau de problematicidade da protagonista

Conforme a visão de Lukács, o romance é um gênero moderno a cuja composição é

inerente a presença de duas naturezas incompatíveis, impassíveis de convergência, por causa

dos interesses que movem cada uma: a impossibilidade de reconciliação entre as partes é um

distintivo da representação simbólica do conflito histórico entre as aspirações individuais e a

irredutibilidade do mundo objetivo (Lukács, 2000). A subjetividade, sobretudo em suas

expressões mais alternativas às convenções, é rigorosamente negada e combatida por um

mundo objetivo absolutamente insensível a transformações. A primeira natureza, situada no

indivíduo, é abordada por Lukács como o locus de valores autênticos que questionam o

estabelecido e procuram superar os limites existentes no mundo moderno, no qual a reificação

tende a triunfar sobre todas as coisas e os sentimentos, submetendo a fracasso qualquer

tentativa de alteridade. A segunda natureza é esse espaço em que se insere, de forma

problemática e inquietante, essa primeira natureza não reconhecida e hostilizada pelo

conjunto das instituições petrificadas no mundo objetivo. A relação de divergência e mútua

incompreensão entre as duas naturezas potencializa toda a ação como componente substancial

do gênero. Os desejos subjetivos do herói, que funcionam como uma antítese em choque com

o sistema vivido, têm um movimento pendular que vai da manutenção dessa

incompatibilidade, em luta e resistência permanentes, até a integração parcial da subjetividade

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 386

às instituições objetivas, sem renúncia à autenticidade dos valores. Lukács, embasado em

pressupostos hegelianos, dá ênfase ao que a filosofia chama de primado da subjetividade,

elegendo como categoria central a interioridade do personagem. Mas a segunda natureza é

essencial à avaliação da permanência dos valores autênticos na prática do personagem. A

segunda natureza renega-se a absorver qualquer valor proveniente do personagem, uma vez

que a reificação da objetividade é imune a reflexões capazes de averiguar possibilidades de

mudança, inviabilizando diálogos progressistas. A primeira natureza, mesmo nessa absorção

necessária ao mínimo de equilíbrio social, não se sujeita a experiências que venham a

distorcer e deformar sua concepção de mundo.

Mas já é possível identificar, em muitos romances do século vinte (ou talvez de antes,

como As ilusões perdidas, de Balzac), uma perda significativa, em alguns casos a extinção,

desses valores autênticos dos personagens, apesar de eles continuarem sendo problemáticos.

Lukács demarca uma linha de ação em que o personagem se apresenta com tais valores e os

mantém, ainda que, em um certo grau, faça concessões ao mundo externo, como é típico do

personagem da maturidade viril. Em romances do século vinte, é possível constatar que

certos personagens, desde sua origem, não têm sequer esses valores. Eles têm valores, mas

não autênticos, o que faz deles uma reprodução passiva do próprio sistema que os oprime. Em

Cidade de Deus, de Paulo Lins, por exemplo, os personagens da boca de fumo e da linha de

montagem da droga, os bichos soltos e seus colaboradores, não demonstram nenhuma

oposição autêntica ao sistema capitalista, muito menos ideal de enfrentamento e superação –

eles são reificados desde sua origem, desde sua “carreira profissional”, de aviõezinhos a

senhores da droga. Não se trata de perder valores autênticos, como é a preocupação de

Lukács, mas de nunca os possuir ou procurar aspirar a eles. Nesses casos extremos, sequer se

pode falar de perda – perda esta que ainda poderia instigar o herói a uma busca por sua

reabilitação ou pela recuperação de seus princípios. Em casos assim, a segunda natureza é tão

enraizada nos personagens, que não se pode delinear nenhum gesto que irrompa originalmente

deles. É como se a primeira natureza, anulada pela segunda, não mais existisse como força

composicional do gênero, em termos de uma dialética capaz de dar prosseguimento a uma

ação potencialmente transformadora. Em termos adornianos, no que respeita à falência do

ideal do romance como epopeia burguesa, o triunfo da epopeia negativa reside nessas

condições de inércia da primeira natureza, reduzindo o personagem a pensamentos isolados,

enfermidades (loucura, por exemplo), ou simplesmente dominando-o e utilizando-o como

uma expansão subjetiva do sistema. (Adorno, 2003)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 387

No caso do romance de João Ubaldo Ribeiro, a dificuldade de classificação da

personagem está na forma como ela se comporta frente ao mundo externo. A personagem

parece não enfrentar uma “segunda natureza”. Na tradição romanesca, ou a segunda natureza

é um forte empecilho externo, objetivo e intransponível (Dom Quixote, de Cervantes), o que

se traduz em excesso de ações, ou está interiorizada como repressão e angústia pelo

personagem, o que se traduz no excesso de monólogos (A educação sentimental, de Flaubert).

O herói é problemático quando sua natureza (a primeira) revela uma subjetividade

prejudicada por um mundo externo desinteressado na assimilação de valores autênticos. Mas

esse conflito objetifica-se em ação nítida, de efeito negativo, ou mesmo em uma forma de

pensamento que tem algum desdobramento prático, a exemplo da visibilidade da loucura ou

da retração do personagem. No romance de João Ubaldo Ribeiro, a personagem não tem a

interioridade interrompida por nenhuma intervenção externa. Mesmo a morte do seu homem

mais sexualmente amado e gozado, o irmão Rodolfo, não a retrai, levando-a sempre em busca

de novas experiências de prazer, em escala crescente e desafios megalomaníacos aos outros e

a si mesma. Ela se demonstra resolvida, com a mente “dogmatizada” pela defesa de uma

sexualidade absolutamente livre, e lhe restaria apenas o mundo externo para enfrentamento.

Mas esse enfrentamento não ocorre. O conflito, na concepção hegeliana que fundamenta a

argumentação de Lukács, é necessário para que haja uma dinâmica na ação. Mas é justamente

essa dinâmica que falta à composição do enredo. No caso, o depoimento da narradora parece

suprimir esse componente imprescindível à forma romance, subordinando-o a comentários

críticos sobre as formas sociais de dissimulação de ações desejadas por todos e hipocritamente

proibidas:

“Em relação a irmão, posso dar meu testemunho pessoal, eu comi muito Rodolfo,

meu irmão mais velho, até ele morrer a gente se comia, sempre achamos isso muito

natural. Evidente que é natural, a maior parte das pessoas passa pelo menos uma fase

de tesão no irmão ou na irmã, só que a reprime em recalques medonhos. Nós não.

Norma Lúcia também não. Muita gente também não”. (Ribeiro, 1999: 53)

O impacto nulo de suas ações, do ponto de vista social, descaracteriza a

problematicidade da personagem no que concerne a uma ação exemplar (positiva ou negativa)

ou à irradiação de comportamentos não-reificados. Será que a problematicidade da

personagem estaria transferida para a relação depoimento/recepção, já na velhice? Sua busca

de exteriorização e embate social estaria, afinal, na relação entre a publicação do relato e os

efeitos morais derivados daí? Ela, como mulher, desenvolve uma habilidade de manipular os

homens, não se sujeitando, pois, a uma posição de personagem hostilizada ou com desejos

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 388

não realizados. Mas seria a publicação do relato, já na velhice, a evidenciação final de sua

conduta, residindo aí o caráter conflitivo de sua ação?

3. Um suposto Bildungsroman do sexo

A personagem, já em idade avançada, mostra seu passado inteiramente movido por

uma busca incessante de prazer sexual, para além das regras familiares, porém sempre de

forma velada. É o que ocorre desde a pré-adolescência, com o irmão Rodolfo, passando

depois pela intimidade com o negro Domingos, o tio Afonso, os dois noivos, entre outros. Ela

relata inúmeros casos com namorados, professores e outros amantes. Tomando a amiga

Norma Lúcia como paradigma inquestionável para suas ações, considera a si mesma e a

amiga como pertencentes a famílias de classe média, com uma certa tendência para a vida de

“porra-louca”, o que parece justificar, do ponto de vista moral, suas opções obsessivas.

Mas, apesar de sua procura por experiências radicais de prazer (posições não

convencionais, sexo coletivo, sexo animalesco, incesto, o gozo “por todos os buracos” etc.), a

narradora se mantém como personagem rasa – uma situação paradoxal frente ao que seria

uma aprendizagem ou uma formação em termos de domínio sexual. A isso corresponde,

estruturalmente, a predominância de sumários narrativos, em detrimento de focalizações

cênicas diretas. Não há nenhuma peripécia significativa na ação/rememoração da personagem.

Há um conjunto de experiências que tendem a delinear graus mais elevados de ousadia no uso

do corpo, mas nada que venha à tona como provocação e exemplo negativo a contrariar a

moral dominante, no que respeita a repercussões pragmáticas das atitudes. É preciso

desmistificar as pretensões de originalidade, autenticidade e ousadia da luxúria da

personagem, na medida em que tudo morre onde nasce, sem projeções efetivamente mais

arriscadas, sem risco de ameaças e reações violentas por parte de conservadores e retrógrados.

4. Algumas reflexões metalinguísticas

O romance apresenta uma divisão entre dois espaços: de um lado, os relatos de

rememoração, quase sem nenhuma cena direta; de outro, uma certa reflexão metalinguística,

que convém aqui comentar.

A questão da autoria impõe ao leitor uma interpretação a respeito da autenticidade e,

ao mesmo tempo, da camuflação da voz depoente, o que leva a uma suposição de dupla

autoria. A confusão entre o depoimento do autor, no prefácio, a autora dos manuscritos,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 389

ambos situados no mundo real, e a ficcionalidade do fato anunciado pelo autor, gera essa

incompletude que não se resolve ao longo da leitura. No caso, o autor permanece no plano

empírico, enquanto a autora já é uma categoria inerente à criação literária. Este

entrecruzamento de situações é elaborado de forma consciente, não uma acidentalidade, pois

compromete toda a lógica interna da composição do romance.

Outras tendências metalinguísticas da obra revelam-se nos comentários que a

personagem faz de sua carreira acadêmica, geralmente depreciando o mundo intelectual como

chato, redundante e velado sob aparência de grandeza. Segundo ela, toda a aparente

complexidade do discurso acadêmico, sobretudo nas ciências humanas, é um hermetismo

calculado para esconder incompetências. Com tais reservas céticas, ela deprecia, em ataques

rasos, ressentidos e espalhafatosos, pensadores como Lacan e obras radicais da modernidade.

As reflexões dela sobre a ininteligibilidade de Lacan e da intelectualidade francesa, por

exemplo, são extensivas à literatura do século vinte. Constituem uma poética contra as

técnicas herméticas de narrativa, como o fluxo da consciência. A adoção de uma linguagem

acessível corresponde a essa tomada de posição contra as modalidades narrativas mais

consagradas e inovadoras do século vinte, marcadas propositalmente pela secundarização do

enredo. Tal tendência é muito presente na década de setenta, no romance brasileiro, como

Zero, de Loyola Brandão, Avalovara, de Osman Lins, Fluxo-floema, de Hilda Hilst, e, do

próprio João Ubaldo Ribeiro, Sargento Getúlio. O propósito da narradora é o oposto, a

começar pela opção deliberada por pornografia e pela condenação aos eufemismos

linguísticos que sublimam ou distorcem expressões populares relativas a intimidades. Há

momentos de fluxo da consciência da narradora, mas muito simplificados, sem intenção de

sintagmas sincopados e fragmentação que venham a afetar a apreensão imediata do relato.

Em meio à predominância quase absoluta da rememoração das aventuras sexuais, há

exceções muito diluídas. Exceções que, conforme nos ensina Auerbach, devem apresentar

algum significado na leitura inversa ao exame da dominante do texto (Auerbach, 1987). Trata-

se de momentos da adolescência, da vida acadêmica em Los Angeles, do golpe militar de 64 –

tudo diminuído, como se não tivesse relevância alguma face às rememorações das

experiências sexuais. Percebe-se, nessa extrema desproporção de temas, a revogação da vida

comum do dia-a-dia, como se esta não passasse de uma vida vegetativa, indigna de figurar

num depoimento marcante e provocador. A leitura seletiva do passado restringe-se

exclusivamente ao que parece apelativo e distintivo de uma personalidade sádica e luxuriosa,

como se experiências não-sexuais não fizessem parte da existência. Trata-se, para usar outro

conceito de Lukács, da essencialização da contingência, porém sem efeitos satíricos (Lukács,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 390

2009). A personagem, em seu relato estritamente limitado a experiências íntimas

extravagantes, leva muito a sério, como propósito único de vida, essa conversão da exceção

em regra. O capítulo em que ela descreve suas práticas com o irmão Rodolfo é bem

representativo da enorme desigualdade entre lembranças sexuais e lembranças de coisas

simples: o que não é sexual reduz-se a umas poucas linhas.

Há outras declarações da narradora que são extensivas à literatura. A personagem não

parece ter nenhuma enfermidade psíquica, mas se autodenomina de “sádica seletiva”, sem o

menor constrangimento. Qual a relação entre a felicidade alcançada pela personagem e a

felicidade prevista no misticismo budista? A investigação do sentido irônico dessa relação

também é demonstrativa do grau de consciência do narrador no que respeita à elaboração e ao

controle do que se elenca para a ficcionalidade.

Em outra perspectiva de trabalho, seria preciso pesquisar sobre o Nirvana, no sentido

budista, e averiguar o significado disso retraduzido no título do depoimento (do sonho

proléptico da personagem aos excessos de prática sexual que, ao contrário do budismo,

elegem a vida carnal como fonte suprema de prazer e satisfação). Isso talvez possibilitasse

uma melhor compreensão do real das inversões do romance. O sentido da realização

alcançada no budismo prevê uma vida de absoluta diluição da individualidade e do egoísmo

em um “átomo primitivo” de onde tudo proveio. No caso, a descaracterização absoluta da

matéria é indispensável ao alcance da felicidade, não mais atribulada pelo sofrimento

resultante de desejos inquietantes. A casa dos budas ditosos tem um adjetivo relativo à

felicidade, mas desde o início os budas são descritos, em sua presença onírica, como seres que

se satisfazem sexualmente. Assim, a presença do corpo não apenas faz uma leitura distorcida

e avessa da placidez budista, como denuncia a mais recôndita instância psíquica da

personagem – o inconsciente – inteiramente dominada pela avidez sexual.

Essa obsessão pansexual estabelece e defende uma espécie de Nirvana do baixo-

corporal, com o intuito de liberar tudo o que foi reprimido e recalcado pela moral dominante

ao longo da história e justificar a existência unicamente por essa vida. Mas, como já apontado,

esse intuito radical não se expande socialmente, mantendo-se sempre às escondidas, o que

ainda revela, ironicamente, a presença de mecanismos repressivos em comportamentos

aparentemente libertos. Nessa medida, é a segunda natureza que isola a personagem e a

pressiona a hábitos retraídos, ainda que ela se sinta realizada nesse estado privado de exceção.

O enfoque dessa contradição é uma das marcas de qualidade do romance.

Referências

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 391

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. Notas de literatura I.

São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.

AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. São

Paulo: Perspectiva, 1987. (Estudos, 2)

LUKÁCS, György. Arte e sociedade: escritos estéticos (1932-1967). Rio de Janeiro: Editora

UFRJ, 2009.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. (Coleção

Espírito Crítico)

RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. São Paulo: Objetiva, 1999.

Page 395: New Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da … · 2020. 10. 3. · Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade Associada

Nas fronteiras da linguagem ǀ 392

A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS

DE VIRGINIA WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA

LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE EMPODERAMENTO DA

AUTORIA FEMININA

[Voltar para Sumário]

Asenati Araújo de Melo (UNEB) 1

Juliana C. Salvadori (UNEB) 2

Mesmo uma mulher com um grande pendor para a literatura

fora levada a crer que escrever um livro significava ser

ridícula, e até mesmo mostrar-se perturbada.

(Woolf, 1922 p. 80)

1. Introdução

A proposta desse trabalho é observar como Virginia Woolf (VW), escritora inglesa

modernista, busca em seus ensaios, mais especificamente em Um teto todo seu, construir um

feminino autoral em meio as constrições de sua época, colocando em xeque as fronteiras entre

escrita e a leitura, o literário e a crítica.

A representação do feminino pela/na literatura tem sido tema de múltiplas discussões

da crítica e da teoria literária e feminista, como também da própria literatura, pautada pelos

aportes teóricos que os estudos culturais e pós-coloniais têm trazido à baila desde a década de

1960. Nesta linha, busca-se compreender como a literatura tem tanto refletido quanto

moldado um feminino idealizado, isto é constituído a mulher como indivíduo a partir do

século XIX, assim como suas funções/ papeis, como leitora e escritora, entre outros, para a

construção de uma identidade própria, sujeito social, político e simbólico (literário). Deste

1 Graduanda do 5º semestre em Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado

da Bahia, Campus IV, Jacobina. Pesquisadora voluntária no Programa Institucional de Bolsas para Iniciação

Científica Entrando no bosque: mapeamento e formação de redes de leitura.Membro do grupo de pesquisa

Desleituras em série: da tradução como transcriação, adaptação, refração, diáspora

(dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1792517921828602). 2 Professora Assistente da Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado da

Bahia, Campus IV, Jacobina. Professora Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e mestre

em Inglês e Literaturas pela UFSC. Coordenadora do projeto de pesquisa e extensão Entrando no bosque:

mapeamento e formação de redes de leitura. Líder do grupo de pesquisa Desleituras em série: da tradução como

transcriação, adaptação, refração, diáspora (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/179251792182 8602).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 393

modo, busca-se mapear as representações de feminino e sua relação com os papeis de leitura e

escritora que VW tece em seus ensaios, particularmente, assim como a repercussão disto nas

representações que seus leitores constroem sobre a obra da escritora.

É com base nessa representação e recepção contemporânea de Virginia Woolf que essa

pesquisa irá se desenvolver, focalizando no diálogo que a autora estabelece entre escritor (a)

/leitor (a); mais especificamente em seus ensaios, os quais centram-se na representação da

mulher e a posição das mesmas como artistas dentro de uma sociedade patriarcal. Neste jogo

de espelhamentos – literatura que reflete/representa/molda a vida que reflete/representa/molda

a arte, busca-se compreender como a escritora constrói sua identidade como autora a partir de

sua experiência como leitora. Dito de outro modo, busca-se compreender como Virginia

Woolf, "constrói” esse feminino autoral colocando em xeque a escrita e a leitura, o literário e

a crítica. O corpus selecionado será Um teto todo seu, dentre o qual, a autora, oferece

minibiografias de autoras e personagens mulher.

2. Tradição literária e a autoria feminina

A produção literária encontra-se inerentemente interligada a condição de gênero:

assim como Natalia Helena Wiechmann, em seu artigo sobre A crítica literária feminista e a

autoria feminina, podemos afirmar que a escrita é um ato criador e criativo. Para explicar

essa relação entre criador e gênero observaremos que a análise da tradição literária dar-se-á a

partir da paridade entre a autoria e a paternidade. Bailando através da cultura Ocidental,

podemos observar o estabelecimento de uma hierarquia entre os gêneros -Deus representação

masculina, cria o homem e tudo que existe no cosmo; da criação do homem Ele concebe a

mulher. Trazendo essa analogia para a criação literária, Gilbert e Gubar (1984), citados por

Wiechmann em seu trabalho, destacam que:

Na cultura patriarcal ocidental, por conseqüência, o autor do texto é um pai, um

progenitor, um patriarca estético cuja pena é um instrumento de poder generativo

como seu pênis. Além do mais, o poder de sua pena, como o poder de seu pênis, não

é apenas a capacidade de gerar a vida, mas o poder de criarn uma posteridade […].

(GILBERT; GUBAR apud WIECHMANN, p.6) (Tradução minha)3

3 No original: “In patriarchal Western culture, therefore, the text’s author is a father, a progenitor, a procreator,

an aesthetic patriarch whose pen is an instrument of generative power like his penis. More, his pen’s power, like

his penis’s power, is not just the ability to generate life but the power to create a posterity.” In: GILBERT,

Sandra; GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth-century Literary

Imagination. 2. ed. Londres: Yale University Press, 1984.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 394

Gilbert e Gubar ressaltam que a caneta, o instrumento associado à produção literária,

pode ser vista como a representação do falo. Dito isso, observamos que, partindo do ponto de

vista Criador, o poder criador através do intelecto faz parte da capacidade masculina,

relacionando a capacidade criadora feminina apenas a geração por meio do histero – o útero,

poder gerador/criador inferior ao intelectual porque físico. É válido ressaltar que até o século

XIX as mulheres pouco escreviam - ou pouco circulava sua produção – pelo fato da escrita

ser considerada como prática intelectual superior. Assim, o empoderamento autoral é restrito

ao homem, excluindo a mulher da possibilidade de criação artística e reduzindo-a a sua

capacidade a geração da vida por intermédio do útero: o poder criativo do papel/ escrita é do

homem. Essa identificação da mulher à maternidade é geralmente figurada na imagem da

mulher anjo/ Madonna. Essa representação angelical é retomada por Virginia Woolf em Um

teto todo seu (1990) publicado como A Room of One’s own em 1929, na qual define a mulher

de sua época como “subjugada” ao título “anjo do lar”, bem como a retratação do desejo de

superioridade masculino no que diz respeito ao Criador e o Criativo:

[...] É bastante evidente que, mesmo no século XIX, a mulher não era incentivada a

ser artista. Pelo contrário, era tratada com arrogância, esbofeteada, submetida a

sermões e admoestada. Sua mente deve ter sofrido tensões, e sua vitalidade foi

reduzida pela necessidade de opor-se a isso, de desmentir aquilo. Pois aí, mais uma

vez, entramos no âmbito daquele complexo masculino muito interessante e obscuro

que teve tanta influência no movimento feminista, daquele desejo arraigado não

tanto de que ela seja inferior, mas de que ele seja superior [...] (WOOLF,1990 p.

68).

Dessa forma, podemos observar que, para a mulher ser artista, mais especificamente

escritora até o século XIX, seria necessário que as mesmas escapassem de tais representações,

e superassem a ideia patriarcal sobre criação e superioridades masculinas, pois, como afirma

Woolf,[...] “Mas é óbvio que os valores das mulheres diferem, com freqüência, dos que foram

estabelecidos pelo outro sexo; isso decerto acontece. E, no entanto, são os valores masculinos

que prevalecem.” (1990 p. 91)

3. O Ensaio de Woolf e o feminino autoral

Como ensaísta, Virginia Woolf abordou insistentemente as questões femininas, não

especificamente as feministas – se formos considerar o termo no sentido político que foi

criado a partir dos anos 60 como movimento político e social sistematizado, p que seria uma

anacronia. De modo geral, a abordagem de VW esteve restritamente ligada ao direito a

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 395

capacidade intelectual e criadora no meio artístico, político e social bem, isto é, o

reconhecimento da capacidade intelectual para representação do mundo presente no feminino.

Em Um teto todo seu (1990), uma de suas obras ensaísticas, VW pontua a posição que

a mulher ocupa na sociedade do mesmo modo que aborda os obstáculos e restrições da mulher

como escritora. Nesta, VW afirma que:

Faça o que fizer, uma mulher não consegue encontrar nelas a fonte de vida eterna

que os críticos lhe garantem estar ali, não é apenas que eles celebrem virtudes

masculinas, imponham valores masculinos e descrevam o mundo dos homens; é que

a emoção de que esses livros estão permeados é incompreensível para uma mulher.

(WOOLF,1990 p. 124)

Nesse trecho VW discute sobre as obras mais renomadas, os ditos clássicos universais,

mas que, segundo a escritora, caem em ouvidos surdos: ela questiona que a “virilidade”

tornou-se consciente de si mesma, ou seja, os homens estão escrevendo a partir de suas

necessidades e de seu próprio intuito – essa universalidade, portanto, diz respeito à

experiência do masculino. Por ser essencialmente masculina, as mulheres que “ousam”

vivenciar a escrita como ato Criativo são estereotipadas como monstruosas – porque ousam se

apoderar/portar o falo/caneta. Acerca disso, Woolf pondera:

Que se pudesse encontrar algumas mulheres com essa disposição de ânimo no

século XVI era obviamente impossível. Basta pensar nos túmulos elisabetanos, com

todas aquelas crianças ajoelhadas, de mãos unidas, e em sua morte prematura, e ver

sua casa de cômodos escuros e abarrotados, para perceber que nenhuma mulher

poderia ter escrito poesia naquela época. O que se esperaria descobrir seria que,

talvez bem mais tarde, alguma grande dama tirasse proveito de sua relativa liberdade

e conforto para publicar algo com seu nome e arriscar-se a ser considerada um

monstro. (WOOLF,1990 p. 73)

Em outras palavras, é necessária coragem para transgredir o paralelo estabelecido

entre o mundo doméstico e o artístico e ter a ousadia para escrever. Ainda em consonância

com VW, “até mesmo uma mulher com um grande pendor para a literatura fora levada a crer

que escrever um livro significava ser ridícula, e até mesmo mostrar-se perturbada”.

(WOOLF,1990 p. 80).

É importante observar que Um teto todo seu (1990) é um ensaio cuidadosamente

estruturado, induzindo-nos a pensar a característica/estilo da escrita que VW escreve. Ela

chama a nossa atenção para uma de suas principais características estética “a representação

pluripessoal da consciência”, a que se refere Auerbach (1971) no seu famoso ensaio sobre a

escritora, intitulado “The brown stocking” (apud OLIVEIRA, 2013, p. 27). Essa característica

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 396

da escrita de Wolf, na obra ensaística citada, se incorpora na escolha de uma personagem para

narrativizar suas considerações/reflexões:

Assim, ali estava eu (chamem-me Mary Beton, Mary Seton, Mary Carmichael ou o

nome que lhes aprouver — isso não tem a menor importância), sentada à margem de

um rio há uma ou duas semanas, gozando a amena temperatura de outubro, perdida

em cogitações. (WOOLF,1990 p. 9)

Dessa forma, Woolf correlaciona a vida ficcional da personagem aos discursos do

“real’’ sobre o feminino nesse jogo de ficção e realidade. Em seu trabalho sobre A

representação feminina na obra de Virginia Woolf: Um diálogo entre o projeto político e o

estético, Oliveira, (2013) aborda essa voz narrativa no ensaio de VW, a partir da qual

apresenta seu principal argumento:

[...] A perspectiva da narradora parte do macro contexto, ou seja, da arquitetura

patriarcal da cidade de Londres (a universidade, a biblioteca e o museu), para o

micro contexto, os espaços vazios nos livros de história. Assim, o micro contexto

reflete o macro contexto e vice-versa. Ao perceber que o acesso a determinados

espaços lhe é negado, ou mesmo no pobre jantar que é servido para as mulheres, em

comparação com o jantar servido aos homens em Cambridge, Woolf estabelece o

argumento principal de seu ensaio: a mulher precisa de independência econômica e

de certa privacidade para escrever (OLIVEIRA, 2013 p. 27)

Quando Woolf afirma que a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se

pretende escrever ficção, a autora/escritora, de fato, destaca que a mulher precisa de

condições/ suportes que favoreçam tanto sua criatividade quanto sua liberdade para exercer

sua capacidade intelectual de forma criativa, sem as restrições comumente impostas aos seus

interesses.

4 O mundo das escritoras em Um teto todo seu

Como já foi mencionada, a obra ensaística de VW gira basicamente em torno da

(auto)afirmação de que toda escritora/criadora precisa ter “um teto todo seu” e 500 mil libras

por ano: esse foco na questão econômica é central para se pensar a constituição da

mulher/escritora como um indivíduo livre, emancipado de sua submissão à vida doméstica:

E, como se queixaria tão veementemente Miss Nightingale — "As mulheres nunca

dispõem de meia hora. . . que possam chamar de sua" —, ela era sempre

interrompida. Mesmo assim, seria mais fácil escrever ali prosa e ficção do que

escrever poesia ou uma peça. Exige-se menos concentração. (WOOLF,1990 p. 83)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 397

Woolf observa que a ficção, por ser uma “uma narrativa literária que menos exigia

concentração” (OLIVEIRA, 2013 p. 58), fez-se a forma mais convencional de escrita entre as

mulheres, pois, além de não haver um espaço que pudessem chamar de “seu” não dispunham

de um tempo restritamente “seu”; o romance, portanto, pela sua forma, era maleável e exigia

menos concentração. Dentre as mais variadas personagens de Um teto todo seu, podemos

destacar Judith Shakespeare, a famosa irmã de Shakespeare, personagem essa que devido às

imposições da época não teria a mesma oportunidade de Shakespeare:

[...] Enquanto isso, sua extraordinariamente bem dotada irmã, suponhamos,

permanecia em casa. Era tão audaciosa, tão imaginativa, tão ansiosa por ver o

mundo quanto ele. Mas não foi mandada à escola. Não teve oportunidade de

aprender gramática e lógica, quanto menos ler Horácio e Virgílio. Pegava um livro

de vez em quando, talvez algum do irmão, e lia algumas páginas. Mas nessas

ocasiões, os pais entravam e lhe diziam que fosse remendar as meias ou cuidar do

guisado e que não andasse no mundo da lua com livros e papéis. Com certeza,

falavam-lhe com firmeza, porém bondosamente, pois eram pessoas abastadas que

conheciam as condições de vida para uma mulher e amavam a filha. (WOOLF, 1990

p. 59-60)

Desconhecida de algum relato da escrita feminina na época de Shakespeare, Woolf

insere Judith como forma de representação as mulheres de dado período afirmando que

mesmo que ela tivesse tanta imaginação e audácia quanto seu irmão ela teria sido privada de

aprender a gramática ou conhecer Virgílio, sendo submetida a lidar apenas com os afazeres

domésticos. Tão talentosa quanto Shakespeare, suas tentativas em apropriar-se da cultura

escrita e dos fazeres criativos/intelectuais, seriam coibidas, levando-a ao desespero até

suicidar-se. Acordando com Woolf concluímos que:

É mais ou menos assim que se daria a história, penso eu, se uma mulher na época de

Shakespeare tivesse tido a genialidade de Shakespeare. De minha parte, porém,

concordo com o falecido bispo, se bispo ele era: nem pensar que alguma mulher da

época de Shakespeare tivesse o gênio de Shakespeare. Isso porque um gênio como o

de Shakespeare não nasce entre pessoas trabalhadoras, sem instrução e humildes.

Não nasceu na Inglaterra entre os saxões e os bretões. Não nasce hoje nas classes

operárias. Como poderia então ter nascido entre mulheres, cujo trabalho começava,

de acordo com o professor Trevelyan, quase antes de largarem as bonecas, que eram

forçadas a ele por seus pais e presas a ele por todo o poder da lei e dos costumes?

(WOOLF, 1990 p.61).

Percebe-se que o argumento de Woolf é amplo e continuamente reforça a questão

econômica e seu papel na constituição de um indivíduo livre: não poderia haver um

Shakespeare feminino naquele tempo, como não pode haver hoje, entre a classe trabalhadora,

porque estes não eram/são livres para poder se concentrar – considerando energia e tempo –

em atividades criativas. Desse modo, VW entrevê a liberdade feminina através da própria

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 398

“caneta”, que trará além de um teto todo seu, quinhentos mil libras por ano. Woolf citado por

Oliveira (2013) em seu trabalho sobre a representação feminina, afirma que:

Admitindo-se que a mulher da classe média tem agora algum lazer, alguma

educação, e alguma liberdade para investigar o mundo em que ela vive, não será

nesta geração ou na próxima que ela vai ter ajustado a sua posição ou dado uma

clara conta de seus poderes. "Eu tenho os sentimentos de uma mulher", diz

Bathsheba em Longe da Multidão, "mas eu tenho apenas a linguagem dos homens."

A partir desse dilema levantam-se confusões infinitas e complicações. (WOOLF

apud OLIVEIRA, 2013, tradução minha)4

Woolf, neste trecho, constata que não seria em sua geração ou na próxima, que a

mulher iria ter ajustado a sua posição e o seu empoderamento, pois, como vimos durante a

análise, era/é preciso de tempo para que se pudesse forjar na língua uma dicção feminina –

mesmo que a mulher se apodere da caneta, a linguagem ainda é a dos homens, isto é, a

representação ainda é masculina.

Considerações Finais

Iniciemos essas considerações finais por ressaltar a escolha do objeto – não os

romances ou obras ficcionais de Woolf, mas o ensaio Um teto todo seu, parte integrante de

um projeto de pesquisa maior, que pretende mapear a obra ensaística da escritora traduzida no

Brasil. Adorno (2003), em sua defesa do ensaio, aponta-nos o fascínio que o ensaio exerceu

nos românticos e exerce nos escritores-críticos justamente por seu caráter de fragmento, ruína,

na qual se inscreve e se abre o infinito leque de possibilidades interpretativas: ao elidir as

fronteiras entre forma e conteúdo, fundo e forma, o ensaio se aproxima da arte – embora

Adorno (2003) não aceite o pressuposto de que ele possa, também, ser arte. Segundo o autor,

então, esse apreço pelo detalhe, pelo fragmento é uma opção ética, de exercício da humildade

contra o desejo totalizador de se “esgotar” um texto. É essa própria forma do ensaio seu

grande trunfo, uma vez que guarda a memória do processo da escrita, isto é, não procura

apagar o árduo processo de tessitura no qual os conceitos se entrelaçam no próprio fazer da

experiência intelectual. Essa “memória” conservada pela forma apresenta uma outra lógica, a

da coordenação, não a da subordinação. Esse exercício de interpretação e escrita, logo, seria

4No original: “Granted that the woman of the middle class has now some leisure, some education, and some

liberty to investigate the world in which she lives, it will not be in this generation or in the next that she will have

adjusted her position or given a clear account of her powers. ‘I have the feelings of a woman,’ says Bathsheba in

Far from the Madding Crowd, ‘but I have only the language of men.” From that dilemma arise infinite

confusions and complications” (WOOLF apud Oliveira, 2013)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 399

uma escolha por uma ainda que não aparente coerência. Penso que a bela defesa de Adorno

(2003) diz do ensaio e de sua proposta epistemológica:

O ensaio, porém, não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito. Em

vez de alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa, seus

esforços ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem

vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram. (...) Ele não começa

com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe

ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer:

ocupa, desse modo, um lugar entre os despropósitos. Seus conceitos não são

construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último.

Suas interpretações não são filologicamente rígidas e ponderadas, são por princípio

superinterpretações, segundo o veredicto já automatizado daquele intelecto vigilante

que se põe a serviço da estupidez como cão-de-guarda contra o espírito. (ADORNO,

2003, 16-17)

Não por acaso, o ensaio ocupa papel relevante na produção de Woolf, espaço

retomando a temática acerca da ocupação/ superioridade masculina dos espaços de

representação simbólica e a transição, entrelugar, entre os papeis de leitora e escritora.

Rompendo com os modelos impostos, Woolf através de sua escrita, visa propor uma voz e

escrita toda sua, uma outra dicção, não masculina, em contrapartida ao discurso

falologocêntrico imposto no discurso literário: “[e]la coloca-nos frente à essa complexa

realidade e percebemos que apenas falar de gênero não soluciona nossos problemas, que são

tão múltiplos, mas leva-nos a reflexões e questionamentos [...]” (OLIVEIRA, 2013 p. 237). A

relevância de Woolf na contemporaneidade repercute na sua defesa do empoderamento

feminino pela via do simbólico, pelo apoderar-se da própria “caneta”, enfatizando sua

autonomia e individualidade – sua voz.

Referências

ADORNO, Theodor W. “O ensaio como forma”. In: Notas de literatura I. São Paulo: Duas

Cidades; Ed. 34, 2003. p. 15-45.

AUERBACH, E. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:

Perspectiva, 1971.

BRANDÃO, Izabel F. O.Virginia Woolf and the Essay under Feminist Eyes. Alagoas, 2013.

In: <http://www.litcult.net/revistamulheres_vol3.php?id=228>. Acesso em: 30 abril 2015.

OLIVEIRA, Maria Aparecida de.A representação feminina na obra de Virginia Woolf: um

diálogo entre o projeto político e o estético. UNESP – SP. 2013. In:

<http://base.repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/103691/oliveira_ma_dr_arafcl.pdf?s

equence=1>. Acesso em: 30 abril 2015

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 400

WIECHMANN, Natalia Helena. A crítica literária feminista e a autoria feminina. Vocábulo:

Revista de Letras e linguagens midiáticas.

In:http://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/vocabulo/pdf/natalia.pdf. Acesso

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WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Círculo do Livro, 1990.

In:<http://brasil.indymedia.org/media/2007/11/402799.pdf> Acesso em:28 abril 2015.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 401

USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE

ESTUDANTES DE GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS

PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA COMUNICAÇÃO

VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS? [Voltar para Sumário]

Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Amanda Cavalcante de Oliveira Lêdo (UFPE)

Introdução

A língua, artefato dinâmico, complexo, heterogêneo e variável (BAGNO, 2007), é

objeto de diferentes representações entre seus usuários, que a utilizam nas distintas práticas de

linguagem de que participam. Os diferentes usos que os falantes/escritores fazem da língua

estão imbuídos de valores e julgamentos sociais e adquirem status diferenciados que, muitas

vezes, são transferidos para os próprios usuários.

É amplamente reconhecido que, com o advento da internet, as práticas de leitura e

escrita se modificaram sensivelmente, tendo em vista os novos recursos permitidos pelo meio

eletrônico. A comunicação via internet, em especial no âmbito das redes sociais digitais, nas

quais os jovens figuram como protagonistas e usuários centrais, muitas vezes lança mão de

uma linguagem característica, conhecida como “linguagem da internet” ou “internetês”, que,

por se afastar significativamente do padrão gráfico da língua, tem sido objeto de intensas

discussões, tanto no âmbito acadêmico como na mídia e na sociedade em geral. Assim, a

comunicação ocorrida através das mídias digitais, a exemplo daquela mediada por

dispositivos móveis tais como smartphones e tablets, frequentemente inclui práticas de

escrita mais flexíveis que são estigmatizadas por se afastarem do modelo de grafia “correta”.

Diante do exposto, este estudo teve como objetivo investigar as concepções de alunos

de dois cursos de graduação a respeito de suas próprias práticas de escrita mediadas por

dispositivos móveis conectados à internet, a partir da análise das respostas desses estudantes a

um questionário sobre como usam/veem a escrita nesses suportes.

Na tentativa de alcançar seus propósitos, o artigo está organizado da seguinte maneira:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 402

primeiro, abordamos as noções de língua, variação linguística e internetês que assumimos,

relacionando esses conceitos com as práticas de escrita mediadas pelas tecnologias digitais

móveis. Finalmente, apresentamos nossa análise das respostas dos estudantes, concluindo com

a discussão dos resultados nas considerações finais.

1. Língua e variação

Conforme Marcuschi (2008, p. 59), a língua pode ser vista a partir de diferentes

concepções: (a) como forma ou estrutura; (b) como instrumento de comunicação; (c) como

atividade cognitiva; (d) como atividade sociointerativa situada. Neste trabalho, partimos da

concepção de língua como atividade sociointerativa situada, assumindo que ela se constitui

como fenômeno histórico e cultural, como atividade sociocognitiva e como lugar de interação

social (MARCUSCHI, 2008).

Nesse sentido, a língua é também marcada pela heterogeneidade e constituída por um

conjunto de variedades, igualmente legítimas do ponto de vista linguístico, mas às quais são

atribuídos diferentes status do ponto de vista social. Essas variedades são utilizadas pelos

sujeitos em distintas situações de comunicação, de acordo com os diferentes contextos de

produção (quem são os interlocutores, qual o grau de formalidade, qual o gênero de texto

etc.). Dessa forma, a língua se apresenta como um organismo vivo e intrinsecamente

dinâmico, flexível e variável (BAGNO, 2007; 2014).

Um dos conceitos associados às variedades linguísticas é o de norma padrão, que

consiste em um ideal de língua representado por um conjunto de regras prescrito pela

gramática normativa. O conjunto de usos que mais se aproxima da norma padrão constitui a

norma culta1, que é formada pelas variedades urbanas de prestígio e “designa o conjunto de

fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações

mais monitoradas de fala e escrita” (FARACO, 2008, p. 73). Essa variedade recebe grande

valorização social e representa um instrumento de poder e status para os usuários que a

utilizam, como também um fator de exclusão e preconceito contra aqueles que não a

dominam. A supervalorização da norma padrão contribui para a disseminação de valores

1 Embora encontremos na literatura os termos norma padrão e norma culta como sinônimos, nesse trabalho

assumimos, com Bagno (2007), que a primeira noção corresponde a um modelo idealizado e ideologizado e a

segunda diz respeito a usos concretos/reais da língua. Além disso, concordamos com Faraco (2008) em que,

apesar de fazermos referência a uma norma culta (no singular), o que de fato ocorre é uma diversidade de

manifestações linguísticas que acarreta diferentes realizações da linguagem urbana culta. O estudioso também

defende a importância de se distinguir a norma culta falada da norma culta escrita. Tais reflexões sugerem ser

mais adequado pensar em “normas cultas”.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 403

autoritários e discriminatórios. Ela se torna elemento determinante da hegemonia e do

controle de um grupo de prestígio, se transformando em fator de exclusão sociocultural

(MONTEAGUDO, 2011).

A escola figura como um dos principais agentes de valorização, disseminação e

manutenção da ideologia da norma padrão. No contexto escolar, prevalece o discurso de

exaltação da norma, em detrimento das demais variedades, embora recentemente tenha

ocorrido a inserção do tema da variação linguística no currículo, até por força dos PCN.

Contudo, o tratamento dado à questão da variação ainda é incipiente e, muitas vezes,

estereotipado e preconceituoso, na medida em que a variação é tratada como um problema e

não como uma característica inerente à língua2.

A instituição escolar parece tentar se isolar das práticas sociocomunicativas

estabelecidas em outras instâncias, a exemplo das práticas de linguagem que acontecem

através das tecnologias digitais e que utilizam o internetês, sustentando que se utilize a norma

padrão sempre, sob o risco de o falante sofrer graves consequências pela sua infração: ser

julgado e discriminado por seu comportamento linguístico.

1.2. Imaginário social: variação linguística na oralidade e na escrita

Faraco (2011) destaca o poder que têm as imagens e significados que envolvem a

língua e compõem o imaginário social na construção do prestígio da norma padrão e da norma

culta diante das demais variedades linguísticas. Dentre as falácias que constituem esse

imaginário destacamos: (i) associação de língua (apenas) com a modalidade escrita e (ii) a

crença de que a escrita é homogênea.

O primeiro aspecto se relaciona, historicamente, com a eleição pelos estudiosos gregos

de um ideal de língua baseado na consagrada escrita literária clássica. É nesse contexto que

está a origem da gramática tradicional ou normativa, cujas regras têm o intuito de preservar a

maneira mais “correta”, “bela” e “culta” de utilização da língua (BAGNO, 2012). A língua,

nessa concepção, seria representada pela escrita, na medida em que essa modalidade

transportaria a língua do plano abstrato para uma realidade palpável (BAGNO, 2011).

Nesse processo de “corporificação”, a escrita perde o status de mera representação e

passa a ser concebida como a própria língua, a língua concreta (quando na verdade é uma das

modalidades em que ela se apresenta). Com isso, no senso comum, há a transferência das

2 Recomendamos a leitura de Bagno (2013) para uma discussão dos problemas relativos à abordagem da

variação linguística pelos livros didáticos de língua portuguesa.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 404

características dessa modalidade para a língua, ou seja, as pessoas passam a associar os

aspectos típicos de determinado modelo de escrita à língua, como se esta fosse monolítica. Tal

fato também está relacionado à dicotomia entre as duas modalidades da língua: a fala

(considerada desorganizada, informal, desregrada, popular) e a escrita (considerada

organizada, formal, regrada, culta). Se, como lembra Faraco (2011), tradicionalmente se faz

uma estreita vinculação entre “língua escrita” e norma padrão, isso significa que em geral se

toma a “língua oral” (fala) como lugar de variação linguística e a escrita como

intrinsecamente homogênea. Contudo, é importante ressaltar que, como modalidade semiótica

ou forma de representação da língua, a escrita efetivamente se manifesta em diferentes

variedades linguísticas, desde as mais valorizadas, como a norma culta, até aquelas que

recebem estigma social, a exemplo do internetês, do qual trataremos a seguir.

2. Língua(gem) da internet? Considerações sobre o internetês

No ambiente eletrônico, a leitura e a escrita são atividades fundamentais, visto que na

maior parte do tempo, a navegação nos sites requer que os usuários leiam e escrevam com

frequência. As práticas de leitura e escrita em questão se realizam por meio de diversos

gêneros textuais, provenientes das diferentes esferas sociais, aspecto que evidencia como a

linguagem utilizada na internet é igualmente múltipla, tanto do ponto de vista dos recursos

textuais, discursivos e semióticos como das variedades linguísticas. Dessa forma, é possível,

dependendo do gênero, encontrar a utilização de variedades mais ou menos prestigiadas na

rede, embora alguns trabalhos façam referência à “linguagem da internet”, como se fosse

única e homogênea (BEZERRA, 2013).

A fim de evitar generalizações e considerando que não existe uma linguagem única,

mas sim linguagens da/na internet (BEZERRA, 2013), ressaltamos que quando nos referirmos

à “linguagem da internet” ou “internetês”, estamos tratando das práticas

comunicativas/discursivas realizadas em contextos informais em determinados gêneros de

textos, presentes especialmente em sites de relacionamento, blogs e serviços de bate-papo

(chats). Ademais, essas práticas são responsáveis pela formação e manutenção das inúmeras

redes sociais que se constituem em torno desses recursos.

O internetês tem sido descrito como uma “forma grafolinguística” utilizada

tipicamente em textos encontrados em chats, blogs e outros mecanismos mediadores de redes

sociais (KOMESU; TENANI, 2009). Dentre suas principais características, costuma-se citar a

prática frequente da abreviação, a supressão ou acréscimo (repetição) de sinais de pontuação,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 405

a omissão de acentos gráficos, a troca, o acréscimo (inclusive repetição) ou a omissão de

letras. Parcialmente, pelo menos, trata-se de uma escrita simplificada ou reduzida, que parece

se orientar mais fortemente pelo princípio da economia, tendo em vista especialmente a

velocidade da interação.

No presente trabalho, o internetês é tomado como uma variedade linguística no

sentido sociolinguístico do termo (ARAÚJO, 2007), “uma nova, mas não absolutamente

inédita, variedade escrita de uso da língua portuguesa, que se constitui paralelamente à escrita

e à ortografia oficial do português brasileiro” (BEZERRA, 2013, p. 3). Essa variedade,

contudo, é desprestigiada socialmente e, muitas vezes, demonizada pelos discursos escolar e

midiático, responsabilizada por estimular os estudantes a “escreverem errado”. A valorização

das variedades cultas, em detrimento das variedades populares e do internetês (mais ligada ao

aspecto etário), encontra respaldo em discursos sobre a “preservação” da língua portuguesa,

sendo possível detectar preconceito linguístico contra o internetês inclusive da parte de

estudiosos da linguagem (FERREIRA; SHEPHERD, 2011). Dessa forma, o internetês é

constantemente confrontado com o ideal de escrita que é cobrado na escola e o não

reconhecimento dessa variedade leva à preocupação com a “degradação” da língua.

Dentre os recentes trabalhos que têm investigado o internetês, destacamos o de

Bezerra (2013), no qual o autor analisa os sentidos construídos pelo discurso acadêmico a

respeito das práticas de linguagem da/na internet, constatando como a “linguagem da internet”

é, muitas vezes, estigmatizada. Os estudos de Galli (2008), a respeito do imaginário sobre a

escrita a partir da análise de comunidades do Orkut, e de Bezerra (2014), sobre o

normativismo linguístico em páginas do Facebook, também verificam o enraizamento dos

discursos sobre preservação da língua na crítica do uso do internetês e constatam que,

contraditoriamente, os mesmos usuários que “defendem” a língua e pregam a escrita “correta”

transgridem tais normas quando escrevem. Tais exemplos permitem concluir que há

necessidade de mais pesquisas que contribuam para compreender com maior profundidade a

escrita realizada em suportes digitais e desconstruam os preconceitos contra os usos

linguísticos emergentes da/na internet.

4. Concepções dos estudantes sobre a escrita em dispositivos móveis

A fim de observar as concepções de língua escrita e seus usos em dispositivos móveis,

convidamos alunos de dois cursos de graduação, Licenciatura em Letras e Bacharelado em

Direito, de diferentes Universidades, para responder a um questionário com perguntas abertas

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 406

a respeito de suas práticas de escrita nesses suportes. O corpus que analisamos corresponde às

respostas de 20 estudantes, sendo 10 do 4º período de Licenciatura em Letras e 10 do 1º

período de Direito, durante o 2º semestre de 2014. Esses alunos cursaram ou estavam

cursando pelo menos uma disciplina em que se abordava a língua sob o ponto de vista de sua

heterogeneidade e variabilidade. Em nossa análise, discutimos as concepções de língua e

escrita subjacentes às respostas dos estudantes

4.1. Frequência de uso e preferências

Sobre a frequência com que os estudantes utilizam dispositivos eletrônicos como

smartphones e tablets para se comunicar, especialmente com amigos e familiares, no dia a

dia, cerca de 80% dos entrevistados afirmam que utilizam com muita frequência,

demonstrando que essas tecnologias fazem parte do cotidiano da maioria. Também segundo

os estudantes, os aplicativos que mais usam para participar de redes sociais através de

dispositivos móveis são o Whatsapp e o Facebook. Questionados sobre como avaliavam a

importância desses dispositivos e aplicativos para suas atividades diárias, a maioria dos

estudantes respondeu que eles são muito importantes e muito úteis, porque facilitam a

comunicação no seu dia a dia, e seu uso não se restringe a entretenimento, mas, segundo os

estudantes, é também essencial para a resolução de questões relacionadas a estudo e trabalho.

Considerando a diversidade de pessoas e propósitos com os quais os estudantes

utilizam esses dispositivos (comunicação com familiares, com amigos, com chefes, colegas de

faculdade, colegas de trabalho, enfim, pessoas com diferentes graus de instrução, diferentes

relações e proximidade com o estudante), é possível supor que sejam igualmente múltiplas as

formas como devem utilizar a língua. No entanto, como vamos perceber, ao menos

idealmente, para boa parte deles prevalece a preocupação em escrever de maneira “correta”.

4.2. Os estudantes e o “cuidado” com a língua

Em outra questão, quisemos saber se eles consideravam necessário ter algum cuidado

com o uso da língua portuguesa na comunicação por smartphones ou tablets e por quê. A

maioria deles (60%) respondeu que sim, que é necessário ter o devido cuidado com a escrita

ao usar esses dispositivos. Dentre as justificativas apresentadas, são recorrentes as ideias de

que: (i) o uso “incorreto” da língua passa a imagem de falta de conhecimento sobre ela; (ii)

como o uso desses meios e do internetês influencia o modo como escrevemos, devemos ter

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 407

cuidado para não escrever “errado” em uma situação formal; (iii) devemos escrever

“corretamente” para que a mensagem seja entendida.

É possível perceber, nas respostas dos estudantes, crenças provenientes do senso

comum, tais como o pensamento de que a norma padrão deve prevalecer em todas as

situações de que o usuário participar, especialmente na modalidade escrita; e que utilizar o

internetês influenciaria os estudantes a escreverem “errado” em outras situações. Tais aspectos

contrariam a noção de que o usuário da língua é capaz de adequar as diferentes variedades que

conhece às necessidades da situação comunicativa. Também constatamos a ideia de que, se a

escrita não estiver de acordo com a norma padrão, a compreensão não será possível, não será

comunicação em português (o internetês é frequentemente descrito como uma “nova língua”).

Entretanto, percebemos que a compreensão pode ser prejudicada (mas não impossibilitada)

apenas nos casos em que o usuário não adquiriu minimamente algum letramento nas práticas

digitais, o que não ocorre com os estudantes em questão, dada a frequência de uso dos

dispositivos móveis que afirmam manter.

Nessa questão, uma justificativa chamou nossa atenção: um estudante de Letras afirma

que todos devem ter cuidado com a língua portuguesa ao usar dispositivos móveis, mas

especialmente se for aluno desse curso, visto que se escrever “errado” será mais criticado.

Esse comentário revela a cobrança social sofrida pelo estudante de Letras para que “preze

pela língua”, ou seja, a expectativa de que sempre use a língua “corretamente”, o que significa

de acordo com a norma padrão. Podemos considerar que isso revela o quanto o estudante se

sente constrangido a utilizar essa norma em todas as situações. Ressalte-se que, em geral, tal

cobrança não é estendida com igual intensidade a qualquer pessoa que faça um curso superior.

Tal aspecto se relaciona com o imaginário social de que os estudantes de Letras, professores

de língua em formação, “dominam” (ou precisam “dominar”) a norma padrão.

Ainda sobre a necessidade de cuidado com o uso da língua portuguesa em dispositivos

móveis, 20% dos estudantes responderam que não e 20% responderam que depende,

apresentando justificativas similares para os dois pontos de vista. Dentre elas, é recorrente a

ideia de que a língua deve se adequar ao ambiente/situação/interlocutor. Tal pensamento está

relacionado ao reconhecimento de que há diferentes formas de se comunicar (variedades) e de

que essas formas devem ser usadas adequadamente, de acordo com as necessidades

comunicativas. É possível que essa ideia seja proveniente do contato dos estudantes com

disciplinas que enfatizem o ponto de vista descritivo/científico da língua.

Outro comentário defende que a preocupação em “seguir as regras gramaticais” (isto é,

a norma padrão) depende de, por exemplo, se a escrita fica disponível para a visualização

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 408

pública, para a exposição de si possibilitada pelas tecnologias digitais. Assim, seria

admissível, por exemplo, não “seguir as regras gramaticais” em uma mensagem de texto

(SMS) privada, mas não seria recomendável fazer isso em um comentário público no

Facebook. Percebe-se que há a preocupação do usuário em não criar uma imagem negativa de

si, associada a determinados usos da língua, menos prestigiados.

4.3. Avaliação dos usos da língua em dispositivos móveis

A respeito de como avaliam a maneira como a maioria das pessoas (conhecidas deles

ou não) utiliza a língua portuguesa ao usar dispositivos móveis para comunicação, parte dos

estudantes respondeu que a maioria das pessoas escreve com displicência, de forma errada,

com muitas abreviações e erros de concordância, com “uso excessivo do ‘internetês’ ou de

gírias”. Já outra parte avalia que as pessoas escrevem de maneira informal, “normal” e de

forma compreensível. No exemplo 01, apresentamos alguns comentários dos estudantes sobre

essa questão:

Exemplo 01: Avaliação dos estudantes sobre o uso da língua em dispositivos móveis

Estudante A: [Essa escrita é] Diferente de uma escrita formal, pois a linguagem utilizada nesses meios procura

ser a mais rápida e estratégica possível.

Estudante B: Eu particularmente não os julgo conscientemente, mas de alguma maneira tenho preconceito ou

ate me afasto de individuos que não se adequaram ao uso da língua em nivel basico por exemplo e tiveram

condições pra isso. Logo, por assumir isso, mesmo que no subconsciente, avalio como uma desconstrução da

língua, a forma como ela é usada.

Com base no exemplo, podemos perceber que existem diferentes graus de aceitação

das práticas de linguagem emergentes na internet e diferentes pontos de vista na avaliação que

se faz dessa escrita, que variam desde assumir que ela é adequada ao meio digital até a

depreciação dos usuários que a utilizam e se afastam da norma padrão (apesar de o próprio

estudante dispensar o uso do acento gráfico, tal qual acontece, de maneira geral, no internetês

que ele critica): o estudante A considera o internetês uma variedade adequada a situações

informais, que atende a uma demanda de escrita “rápida e estratégica” própria da

comunicação através desses dispositivos. Já o estudante B assume ter uma atitude

preconceituosa com as pessoas que não utilizam a língua “em um nível basico”, mas que a

“desconstroem”, posicionamento que defende a soberania da prescrição normativa da língua.

O julgamento depreciativo das atividades linguageiras menos prestigiadas esteve presente em

mais de um comentário e frequentemente foi transferido para os usuários, na imagem que o

estudante faz de si mesmo e do outro, baseados na sua (in)competência linguística. Além

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 409

disso, nota-se o impacto do preconceito linguístico nas relações sociais, na forma de exclusão

(“ate me afasto de individuos que não se adequaram ao uso da língua em nivel basico”).

Em outra questão, perguntamos também como esses estudantes avaliam a própria

maneira como usam a língua através dos dispositivos móveis. De maneira geral, dentre as

respostas mais recorrentes estão que eles consideram que: (i) usam a língua de maneira eficaz

(mas não esclarecem o que significa isso); (ii) escrevem de maneira informal; (iii) depende da

pessoa com quem estão conversando; (iv) procuram escrever respeitando a gramática, mas às

vezes têm preguiça de escrever frases longas ou querem demonstrar sentimentos (por

exemplo, utilizando “kkkk” para indicar risos); (v) tentam escrever da melhor forma possível,

a qual está associada a objetividade, clareza e obediência às regras ortográficas/gramaticais.

Assim, a autoavaliação dos estudantes sugere que a maioria se preocupa em escrever

seguindo as regras da gramática normativa, ainda que, eventualmente, por preguiça ou outra

razão, faça uso do internetês. Aparentemente, os estudantes percebem que existem diferentes

formas de falar e escrever e parecem transitar entre essas variedades conscientemente. Ainda

sobre essa questão, destacamos no exemplo 02 alguns comentários dos estudantes:

Exemplo 02: Avaliação dos estudantes sobre como utilizam a escrita em dispositivos móveis

Estudante C: Entre amigos abrevio as palavras, e quando preciso escrever de forma correta, fico me

perguntando qual a forma certa.

Estudante D: Tento não utilizar alguns termos como “concerteza” para não trazer isso para outras situações.

Em seu argumento, o estudante C considera que a abreviação de palavras que utiliza

quando interage em uma situação de baixa formalidade interfere em seu desempenho quando

necessita escrever segundo a norma padrão, na medida em que fica em dúvida sobre qual a

forma correta. No entanto, acreditamos que, provavelmente, a dúvida sobre a grafia da palavra

é anterior ou independente do uso do internetês e não em sua decorrência. Se, por exemplo, o

estudante escreve na internet “pq” (e isso é suficiente naquela situação), mas quando precisa

escrever segundo a norma padrão fica em dúvida sobre usar “por que”, “porque” “porquê” ou

“por quê”, esse problema é fruto do desconhecimento da regra gramatical pertinente e não

influência do internetês.

Já o estudante D afirma que em sua escrita através dos dispositivos móveis procura

evitar termos como “concerteza”. Nesse caso, parece que há uma confusão bastante comum

entre as pessoas e recorrente nas respostas dos estudantes entre o que seria a escrita típica da

internet (o internetês) e a escrita de outras variedades linguísticas na internet ou fora dela, ou

seja, confundem problemas de ortografia com internetês. Ao considerar que a grafia de

“concerteza” faz parte do internetês, o estudante não leva em conta que ela acontece com

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 410

frequência em suportes convencionais de escrita com ou sem relação com a internet.

Embora não seja, ao que tudo indica, responsável pelo surgimento de formas como

“concerteza”, o que a internet fez foi conferir maior visibilidade a problemas de aquisição da

grafia oficial que antes ficariam mais restritos a situações específicas de escrita. Esse fato,

antes de ser avaliado primordialmente como algo negativo, pode ser visto como uma

contribuição para um diagnóstico mais exato sobre desafios específicos para o ensino de

aquisição da escrita.

Considerações finais

Nosso objetivo, neste artigo, foi refletir sobre as concepções de alunos de graduação

sobre as práticas de escrita que realizam através de dispositivos móveis. Através da análise

das respostas dos estudantes a um questionário sobre como esses estudantes usam/veem a

língua quando se comunicam por meio de smartphones e tablets, buscamos investigar o

imaginário construído em torno da língua e da escrita.

Foi possível perceber que as tecnologias representadas pelos dispositivos móveis estão

presentes no cotidiano desses estudantes e que sua frequência de uso é acentuada. Entretanto,

como vimos, a maioria dos estudantes considerou ser necessário ter cuidado com a escrita,

apontando a necessidade de “escrever corretamente” nesses suportes, apesar de alguns

também mencionarem a adequação (à situação, ao meio, ao interlocutor) como fator decisivo

para a escolha de como utilizar a língua. Embora os estudantes fossem provenientes de

diferentes cursos superiores, de maneira geral suas respostas foram bastante próximas, exceto

quando alguns estudantes de Letras fizeram referência à expectativa social de que eles

deveriam sempre utilizar a língua “corretamente” devido à cobrança social que recebem em

decorrência do seu curso.

Foi recorrente nas respostas dos estudantes a identificação do valor social atribuído às

variedades linguísticas, juízos que são transferidos para o falante, julgando-o mais positiva ou

negativamente, bem como a preocupação diante da projeção da imagem de si e do outro

através do uso da língua. Acreditamos que os estudantes, assim como os usuários em geral,

têm uma concepção idealizada da própria escrita, seja por considerarem que ela está livre dos

problemas que encontram na escrita dos outros ou, ao contrário, por acharem que não sabem

escrever corretamente. Um desdobramento futuro da reflexão aqui apresentada seria observar

empiricamente as práticas de escrita realizadas efetivamente por esses estudantes em

dispositivos móveis.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 411

O internetês foi frequentemente associado ou confundido com problemas formais

como a ortografia (“concerteza”), a ausência de concordância e a pontuação. O internetês,

embora mais associado a uma faixa etária do que a uma classe social como é o caso das

variedades linguísticas mais estigmatizadas, entretanto compartilha com essas variedades

populares o estigma do “erro” e da não obediência às “regras gramaticais” (isto é, à norma

padrão, tomada como a única norma dotada de regras e de gramática).

Assim, de maneira geral, os posicionamentos estão polarizados basicamente em dois

pontos de vista: por um lado, os estudantes reproduzem o discurso escolar de hegemonia da

norma padrão e preocupação com a preservação da língua, sendo esse o ponto de vista mais

recorrente e, por outro, estão conscientes de que há usos mais ou menos adequados a cada

situação e ambiente. Nesse sentido, ora o internetês (especialmente, em relação à abreviação

das palavras) figura como um problema que deve ser evitado, sob o risco de influenciar a

escrita em situações formais, ora aparece como variedade justificada em virtude da

necessidade de rapidez na escrita ou do alto grau de informalidade, entre outras razões.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 412

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 413

O MEDO E A FÚRIA ― MOVIMENTOS DE UMA POÉTICA

DA PARTICIPAÇÃO [Voltar para Sumário]

Bianca Campello Rodrigues Costa (UFPE)

Bruno Eduardo da Rocha Brito (UFPE)

A palavra medo está carregada de tanta vergonha

que a escondemos. Enterramos no mais profundo de

nós o medo que nos domina as entranhas

(G. Delpierre)

O projeto artístico do escritor pernambucano Wellington de Melo tem se destacado

pela abordagem das experiências configuradoras da contemporaneidade, como a relação entre

o homem, realidade e virtualidade, assunto de seu [desvirtual provisório] (poesia, 2008), os

movimentos sociais e sua manipulação política, a homofobia e a pedofilia, alguns dos temas

de Estrangeiro no labirinto (romance, 2013). Dada essa característica, destaca-se entre seus

títulos o desafio auto-imposto pelo poeta de cantar o medo, decisão tomada em O peso do

medo: 30 poemas em fúria (2010). Afinal, mais que uma experiência humana atemporal,

trans-histórica, o medo, como lembra-nos Bauman (2008, p. 9), é uma sensação instintiva

primordial que os humanos dividem com as mais diferentes espécies do reino animal.

É a resolução dada pelo poeta a esse desafio que pretendemos evidenciar nesse estudo.

Para tanto, fundamentamo-nos em três questionamentos. O primeiro é: como se representou

historicamente o medo em literatura? O segundo é: há algo na vivência do medo que constitua

uma experiência identificável como uma forma contemporânea de sentir medo? O último,

consequência do questionamento anterior: havendo um medo específico da

contemporaneidade, que formas artísticas o poeta considerou como aquelas capazes de

expressar essa especificidade? As respostas a essas três indagações, esperamos, esclarecerão

o papel de O peso do medo na poética que seu autor vem erigindo, fundamentando tanto

novas leituras que visem a exploração desse livro como as que se debrucem sobre as demais

produções do escritor.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 414

Comecemos, então, pelo lugar do medo na literatura. A primeira constatação que

fazemos a esse respeito vem do título da abertura do estudo de Jean Delumeau (2009) sobre a

história do medo no Ocidente. Há um silêncio sobre o medo. E esse silêncio, alerta-nos o

historiador, é profundamente político. Da Era Clássica à Idade Moderna o medo foi

confundido com covardia, um sentimento de almas pusilânimes, indignas e incapazes de

ocupar as posições de liderança ― e, consequentemente, de exercer direitos privilegiados.

Fruto e fonte dessa interpretação da experiência humana, a arte representou essa

perspectiva exaltando a valentia e silenciando a representação dos temores. No domínio da

literatura, a coragem é o motor central da poesia épica, considerada elevada, das novelas de

cavalaria e dos romances históricos que a seguiram. Já o medo foi rotineiramente deformado

na covardia característica do vilão, palavra aqui usada em toda extensão da ambiguidade:

vilão-antagonista e vilão-homem da vila, homem comum.

Acrescentamos a essas observações, extraídas de Delumeau (2009), duas informações

importantes. A primeira ressalta que tanto já na era clássica, mas principalmente no período

entre o século XIV e o século XVIII, focalizado pelo historiador, vigoraram poéticas erigidas

ou digeridas dentro de normas hierarquizadoras. Ocorria nos gêneros literários aquilo que

ocorria na organização social dos homens: uma hierarquização que dividia o nobre do vil.

Nesse contexto, havia dois espaços artísticos para representar o medo, ambos inferiores. Num

o medo, deturpado em covardia e superstição, foi alvo da ridicularização que condena os

vícios, papel da comédia, da farsa, da sátira, do travestimento e da charge1. No outro, dá-se

legitimidade à representação do medo porque se representa a única forma de medo

desvinculada do estigma da covardia na sociedade europeia observada por Delumeau: o medo

da danação espiritual pelo pecado, representado pela poesia lírica de temática religiosa.

A segunda observação destaca uma presença oblíqua do medo na literatura clássica e

na literatura da sociedade aristocrática estudada por Delumeau: a do medo como efeito, já

previsto por Aristóteles no conceito de catarse. Aqui o medo se faz presença não como tópico,

mas como fonte de prazer psíquico que educa moralmente. Aqui justapomos à tragédia ática a

tragédia elizabetana e o romance gótico do século XVIII.

A constatação de que o medo foi recalcado pela arte pela sua íntima vinculação com a

estratificação dos regimes aristocráticos poderia sugerir que a suplantação desse modelo

social resultou em uma literatura mais aberta à representação dos medos humanos. No

1 O travestimento, transposição estilística que inverte as significações da obra original, e a charge, inversão do

texto original no campo da composição dos personagens e da ação, são conceitos desenvolvidos longamente por

Genette (2010).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 415

entanto, o advento da sociedade burguesa não foi mais receptivo ao medo. Assim foi porque

ideologicamente a divisão entre homens nobres e homens vis, fundamentada em princípios

diferentes, persistiu durante todo o século XIX. Em certo tempo, sua premissa foi a confiança

absoluta no gênio criador dos românticos, reflexo do entendimento de que alguns homens

eram seres de alma mais nobre que outros, sendo-lhes superiores por seus valores e

sensibilidades. Subsequentemente, na época da confiança absoluta na ciência, embora

igualados os homens por sua condição instintiva e animal, diferentes modalidades de

superioridade foram construídas, destacadamente aquelas proporcionadas pelo domínio da

ciência e aquelas erigidas pela aplicação perversa de ideias dessa mesma ciência: a que

hierarquizou os homens em raças superiores e inferiores e cujos resultados políticos extremos

marcaram a história do século XX. Não é a toa que uma das maiores tragédias humanas

modernas tenha se dado, como caracteriza Bauman (2008, p. 21), citando Jacques Attali,, pela

arrogância humana e seu desconhecimento do medo, e que tenha ocorrido justamente no

momento em que expirava a sociedade burguesa erigida nas bases do Positivismo: o naufrágio

do RMS Titanic.

Seguindo tal raciocínio, é possível que tenhamos encontrado o principal motivo para

que o medo tenha recebido maior atenção artística justamente quando se anuncia a falência

das ideias que sustentaram a sociedade ocidental do século XIX. Foi a partir da insurreição à

arte burguesa e às poéticas normativas das vanguardas que o medo efetivamente ingressou no

rol de temas da arte, tanto fazendo parte da psique dos personagens com os quais o público

relaciona-se empaticamente como sendo cantado em todas as suas manifestações pela poesia

lírica. A demolição das hierarquias de gênero e de temas foi capaz de elevar a angústia

existencial e os medos do cotidiano ― o medo da impotência, o medo da violência, o medo da

sujeição aos outros homens, o medo do isolamento ― a motivo de algumas das grandes obras

artísticas do século, como O grito, Guernica e A metamorfose. No acervo artístico brasileiro,

é Drummond quem canoniza a representação do sentimento em seu Congresso Internacional

do Medo.

Desenvolvido tal panorama, podemos iniciar a resposta das duas primeiras perguntas.

A representação do medo como uma emoção humana legítima, apesar da universalidade e

atemporalidade da experiência, é um fenômeno artístico recente. Tão recente, que,

considerando-se os paradigmas da história da arte, o cânone das letras nacionais, o poema de

Drummond, ainda pode ser considerado, em certos termos, contemporâneo. Tais termos, no

entanto, parecem-nos inadequados, visto que, embora a realização drummondiana tenha o

vigor da trans-historicidade das grandes obras artísticas, sua vinculação a um contexto

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 416

histórico específico, o da II Guerra Mundial, não deixa de cercar o medo drummondiano de

certa contingência irrelevante para a poesia de Wellington de Melo, produzida sessenta e

cinco anos mais tarde.

Aqui é importante um esclarecimento. A contingência da II Guerra é que é irrelevante

para a poesia de Wellington de Melo. O cânone drummondiano não só não é irrelevante como

ganha o espaço em dois poemas, o gabinete e um espelho. O primeiro é centrado justamente

na negação do medo drummondiano, caracterizado como aristocrático, partidário, de eventos

longínquos, de causas grandiosas, identificável. O medo identificado por Melo como sendo

seu medo, portanto, é o medo da coletividade da massa, apartidário, do cotidiano, das causas

banais e sem identidade. É um “medinho sem-vergonha” (2010, p. 40), e “medíocre”: o medo

da violência urbana, o “medo da bala”.

Portanto, há algo de especificamente contemporâneo na experiência do medo e, por

isso, algo que apenas a contemporaneidade literária poderia representar. Para Bauman (2008),

essa especificidade deve-se à liquidez de todas as certezas, de todas as seguranças que

caracteriza nosso momento histórico. Liga-se, também, a uma cultura que lucra com o medo,

que o explora e o divulga para alavancar a circulação da economia. A liquidez do futuro e da

felicidade do futuro alavancou, por exemplo, o uso cotidiano do crédito bancário, sob a forma

de cartões de crédito e de empréstimos consignados, uma cultura de vida a crédito que se opõe

à cultura da poupança (BAUMAN: 2008, p. 17) que caracterizou as práticas sociais até a

década de 1980. A consequência maior dessa liquidez para a experiência de medo da

contemporaneidade é a impossibilidade de redenção: os medos hodiernos “são incuráveis e,

na verdade, inextirpáveis: chegaram para ficar - podem ser suspensos ou esquecidos

(reprimidos) por algum tempo, mas não exorcizados” (BAUMAN, 2008, p. 43). E essa

incapacidade de exorcismo do medo é representada temática e estruturalmente por Melo em

sua obra. Em arte poética, texto de abertura do livro, que funciona como uma espécie de

proposição autônoma da poesia em desenvolver uma anti-épica, uma odisseia às avessas, não

heroica, o eu lírico (a própria poesia pós-moderna) estabelece que a empreitada de percorrer

os meandros do medo é vazia: o livro é “silêncio pó (...) máscara que se arrasta” (MELO,

2010, p. 14) e “abismo” (Ibid., p. 15). Em art r rog rio, poema que finaliza o volume, “não

acaba” repete-se em onze dos setenta e nove versos que realizam a capitulação ao tema ―

capitulação que se efetiva, num movimento derradeiro, ao mostrar que o ponto de chegada

dessa anti-odisseia, o “livros / de ventre / morto” é o mesmo da partida, “morto ventre de

livros”.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 417

Tendo respondido às duas primeiras indagações, cremos que de modo satisfatório,

daremos sequência ao terceiro questionamento: que formas artísticas são responsáveis pela

expressão do medo contemporâneo na perspectiva estética de Wellington de Melo? Sem a

pretensão de um estudo exaustivo, dado o caráter breve deste ensaio, abordaremos alguns

pontos que consideramos fundamentais.

O primeiro ponto que se destaca no conjunto do livro é a provocação ao leitor para a

construção do ritmo. Para Octavio Paz (2012, p. 58), o ritmo é a alma do discurso poético, a

estrutura organizadora de sua identidade e, mais que medida, “é visão de mundo” (Ibid., p.

66). Um ritmo confortável, estruturado de modo que a repetição dos padrões sonoros torne-se

previsível, seria característico de épocas em que há uma relação harmônica entre o homem e o

tempo. Já o ritmo dissoluto, que rompe padrões, torna imprevisível o rumo da organização

poética, é característico ou de épocas em que a vivência do tempo incorpora a noção de

velocidade e avanço ou de épocas menos confiantes no futuro. Não à toa é o ritmo do jazz e o

da poesia de verso livre do início do século XX.

Os ritmos dos poemas de O peso do medo não se encaixam nem no signo da

constância nem no da dissolução. Isso se deve a dois recursos: a ausência de versos na

estruturação de vinte e nove dos trinta textos e da organização das palavras nos textos. O

poeta usa largamente a elipse de forma a demolir a maior parte dos nexos hierárquicos entre

as palavras e prescinde de qualquer pontuação. Aqui está a primeira forma de participação

poética do livro: a participação do leitor na construção do poema. Se é uma obviedade

absoluta que a literatura só se realiza como leitura, como ação do leitor, é igualmente patente

que a maior parte dos escritores procura prevenir-se do poder dessa leitura, tentando

assegurar-se, pelos mais diversos expedientes, que a atividade do leitor seja controlada. O ato

da leitura de literatura costuma ser hierarquizado: o autor é o destemido que pega em armas

na luta contra as palavras, enquanto o leitor é alma pusilânime governada pelo bravo. Ao fazer

da poesia personagem que invoca sua persona literária para dar voz ao medo da

contemporaneidade, Wellington de Melo intui que o poeta e o leitor são iguais, homens

amarelos e medrosos, sendo incabível a quem escreve determinar como se lê aquilo que se lê,

sendo esse como o tudo da poesia.

Exemplifiquemos a questão com um estudo de caso. Em “o para-brisa” a sequência

“desaba sobre o para-brisa a tempestade o peso do medo afoga enfim o plástico sobre o para-

brisa desabam o caos o sol ramalhetes de pássaros acorrentados” pode ser organizada, entre

muitas outras possibilidades, das seguintes maneiras:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 418

1) desaba sobre o para-brisa a tempestade / o peso do medo afoga enfim o plástico / sobre o

para-brisa desabam / o caos o sol ramalhetes / de pássaros acorrentados

2) desaba / sobre o para-brisa / a tempestade / o peso do medo / afoga enfim / o plástico sobre o

para-brisa / desabam / o caos / o sol / ramalhetes de pássaros / acorrentados

A organização das palavras no ato da leitura, privilegiando a oração, no primeiro caso,

privilegiando o sintagma, no segundo, cria diferentes ritmos e diferentes relações sintático-

semânticas. Na primeira possibilidade, um objeto representado metonimicamente pela

substância de que é feito, o plástico, parece estar isolado na paisagem; já na segunda, esse

objeto é levado ao para-brisa pela tempestade.

O confronto entre a constância e a dissolução do ritmo ao longo do livro pode ser

observada como a materialização mesma do campo de batalha que o medo – e a fúria que ele

engendra – estabelece dentro da linguagem, sobretudo a situação em que o medo se encontra

dentro da sociedade pós-moderna: aqui, o conforto e o bem-estar residem no anseio por

liberdade – liberdade essa que só pode ser alcançada dentro de um estado rigoroso de ordem e

fronteiras bem-definidas, facilmente abaláveis pelos movimentos tectônicos do exterior.

Wellington oferece em seu texto a “liberdade” de versos fluidos despidos que qualquer traço

de pontuação, o que gera no leitor a necessidade de “ordenar”, à sua maneira, o ritmo mutante

dos versos para que sua recepção seja alcançada. Essa suspensão do poema entre o constante e

o dissoluto, entre ordem e caos, delineia estruturalmente a dinâmica temática da obra em si:

um equilíbrio paranóico (como se isso fosse possível) entre a repulsa ao medo e o abraço ao

mesmo medo.

Essa dinâmica que o medo oferece à vida banal é refletida na própria estruturação da

obra em si. Dividida em três partes, “o medo a fúria a alcova”, “o medo a fúria o gabinete” e

“o medo a fúria a rua”, o poeta executa um movimento oposto a uma fuga esperada: ao invés

de buscar refúgio da ameaça externa à ordem ensimesmando-se, consolando-se na intimidade

que um quarto sobre o qual apenas ele pode exercer influência, em O peso do medo ele inicia

a sua jornada de dentro para fora, da alcova para a rua, como se seus medos mais íntimos se

sublimassem para o abstrato medo cotidiano e compartilhável.

A primeira parte, “a alcova”, remete imediatamente à parte mais íntima do lar, o

espaço mais interno e, consequentemente, de acesso exclusivo à família. Aqui vê-se o uso

constante da primeira pessoa do possessivo – o poeta assume e compreende, a cada poema, o

“meu” medo, a “minha” fúria, seus próprios pequenos terrores e indignações, e que tratam de

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 419

tudo o que é inalienavemente seu: seu corpo, sua casa, seu filho, sua criação. O exemplo

máximo aqui é, não surpreendentemente, o poema que leva seu nome, “Wellington de Melo”:

não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago não se faz

com pena do amigo ou de seus alfarrábios não se faz culpando fúria de crítico

frustrado engolindo medo de ser culpado serás funcionário cinza de iniciativa

privada terás alguns belos fins de semana na praia e um ponto zero meio usado uma

vidinha classe média e uns poucos amigos sinceros (...) teu filho encaixotará teus

livros não vendidos num sábado funerário e te esquecerão não serás grande poeta

não não não (2010, p. 16)

Na segunda parte, “o gabinete”, o poeta se torna um observador, medindo e

confrontando seu medo com o de novos interlocutores que surgem nos poemas em

dedicatórias, epígrafes e menções, como o já mencionado contraponto entre os medos de

Wellingon de Melo e Carlos Drummond de Andrade em “um espelho”. As duas partes

possuem dois poemas análogos que esclarecem essa posição entre um “eu” e um “outro”:

“dois tygres” e “um cordeiro”, em clara referência a William Blake e suas Canções de

Inocência e Canções de Experiência. Em “dois tygres”, na Alcova, a Experiência do poeta,

que se desenvolve em sua relação com o “outro”, é personificada pelos tigres da Fúria e do

Medo: para não esquecer quem sou eu pesei minha experiência e plantei dois tygres em

minha retina (2010, p. 31). Já no Gabinete entra em cena “um cordeiro”. Nesse espaço de

confronto a inocência, que representa o “eu” do poeta, é destroçado pelos mesmos dois tygres

plantados pela experiência, ou o desejo de sobreviver ao tal “outro” que permeia essa segunda

parte do livro: para não esquecer quem sou eu pesei minha inocência eu procurei em meu baú

em vão meu cordeiro dos tygres devoram o cordeiro (2010, p. 44). Na cruel representação

especular dos dois terços do livro, o medo do inocente alimenta a fúria do experiente – que

não deixam de ser o mesmo cordeiro: o outro, o mesmo.

Quando o medo desce para a rua, na parte final, o confronto é deflagrado: na cidade,

“eu” e “tu” se tornam “nós” e “eles” e já não há distinção, uma vez que todos mergulham na

mesma turba, o mesmo organismo multicelular regido por ambos medo e fúria, prismados em

caos, em pânico. A paranóia estampada do “contacorpos” que atira ao cidadão, de hora em

hora, o pavor real e imediato de uma violência burra e cega e impessoal que destrói,

deliberadamente, o cordeiro e os dois tygres. Por fim, no poema “Art r Rog rio”, análogo ao

“Wellington de Melo” do começo do livro, a fúria parece arrefecer, e o texto tona pela

primeira vez no livro um formato reconhecível de versos e estrofes, como se agora o poeta

estivesse plenamente consciente do medo e em uma espécie de paz contemplativa, como se

resignado (embora suas últimas palavras, como já mencionadas, repitam as primeiras palavras

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 420

do primeiro poema, permitindo assim que a serpente morda sua própria cauda e o ciclo se

restabeleça, como o movimento cíclico do tempo platônico repetindo os mesmos astros do

céu). Ao alcançar a rua, Wellington se resigna, ou o medo cumpre sua função de alimentar a

fúria e restaurar o equilíbrio exigido pelo constante estado de alerta, de liberdade vigiada, de

segurança asséptica contra o estranho exterior, que tensiona o cidadão pós-moderno e que,

consequentemente, define quem ele é?

O medo é uma força complexa a exercer pressão sobre o cidadão, e mantém uma

origem exógena, irradiada daquele espaço alheio que se mostra como uma nódoa na tessitura

de normalidade, constância e padronização higiênica do mundo esperado. O medo gera a

fúria, a fúria gera o ódio: tal energia irradiará, assim, do objeto receptor do medo em direção –

a quem? A fúria, aqui, acaba por não achar um objeto de atração concreto, mas sim o próprio

medo, o que colabora e muito para o estabelecimento da fúria banal, mesquinha, beirando o

rotineiro e o entediante, longe da grandiosa boba atômica de Drummond: o medo e a fúria do

homem pós-moderno, do homem-consumidor, como Bauman o define, surgem bem definidos

em “minha fúria” (2010, p. 27):

(...) essa fúria bronca pesada essa fúria jornal nacional essa fúria top 10 fúria

sulanca-caruaru fúria brechó-cabeça fúria cocaína-daslu fúria terceiro de magistério

fúria ementa teoria três fúria trote de medicina fúria afogados da USP fúria

mendigos carbonizados no altar do senhor fúria emiliano zapata fúria beira mar fúria

papa doc fúria no penteado dos alternativos classe média fúria nas narinas brancas

dos porraloucas classe a é minha fúria crack na veia fúria legalize já é minha fúria

maconha-de-grife é minha fúria-glamour fúria chimbinha fúria maria gadú todos

contra todos (...)

Fúria, na realidade, contra medos que são apenas simulacros do que é realmente

temível: assim Wellington assume para si a posição do cidadão pós-moderno, temeroso (e

consequentemente furioso) contra tudo aquilo que perturbe a normalidade e o status quo, tudo

aquilo que possa causar um ruído à sua liberdade pessoal. Aqui se estampa a reação (de medo

e fúria) classe-média contra medos e fúrias alheias que não lhe dizem repseito – mas parecem

se forçar, pressurosamente: o incômodo da classe A, seja ela pequeno-burguesa ou hipster, ou

mesmo o medo que permeia o mundo real e que invade a normalidade por meio da televisão.

O terror representado por François “Papa Doc” Duvalier, sanguinário ditador do Haiti nas

décadas de 60 e 70, transmuta-se no fantasma de um terror pasteurizado que os telejornais

contrabandeiam para o lar casado-com-três-filhos-e-um-seminovo-na-vaga-do-

estacionamento, significando nada.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 421

Dessa forma, o peso do medo: 30 poemas em fúria compõe, sob a forma de um

mosaico, o retrato de uma sociedade que, deliberada e espontaneamente, nutre-se do medo

não com o objetivo de uma evolução e sobrevivência instintivos, ou como o estigma de

fraqueza e covardia condizente com períodos mais nobres e heróicos da humanidade – mas

sim, como um distintivo de orgulho culpado, como o combustível para manter permanência e

estabilidade em tempos pós-modernos, de identidades solidificadas e que, ao mesmo tempo,

têm ojeriza a tal solidificação – essa negação à solidez identitária não estaria ilustrada, nos

poemas de Wellington de Melo, na supressão de vogais nos diversos nomes próprios que

surgem ao longo da obra (com a sonora exceção de seu próprio nome?). Parafraseando a

leitura que Slavoj Zizek faz sobre o paradoxo lacaniano “se Deus está morto, nada é

permitido”, pode-se admitir que, na pós-modernidade, enquanto houver o Medo, toda a Fúria

é permitida.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 422

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 423

ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE

SOCIOINTERACIONISTA [Voltar para Sumário]

Bruna Bandeira (UFPE)

Introdução

Na área da Linguística, a despeito de avanços teóricos acerca de uma nova concepção

de linguagem — a sociointeracionista, que toma a linguagem como prática social e discursiva

realizada entre sujeitos em contextos sócio-históricos específicos —, é lugar-comum a crítica

de que o ensino de análise linguística (AL)1 no Brasil permanece ligado a uma tradição que

concebe a linguagem como expressão de pensamento e a língua como sistema.

Não refutando nem corroborando tal crítica e considerando que se vive hoje um

momento de transição no ensino de língua portuguesa (LP), este artigo pretende verificar em

que medida as gramáticas escolares têm avançado no sentido de considerar a linguagem — e

consequentemente o uso da língua — como um processo de interação e construção

permanente de sentidos. Para isso, buscou-se analisar a Gramática Reflexiva, volume único,

de William Roberto Cereja e Thereza Cochar — uma das gramáticas escolares para o Ensino

Médio (EM) mais vendidas no País —, em sua primeira (1999) e quarta e última edição

(2013).

O foco de análise deste artigo são as seções Semântica e interação (da primeira

edição) e sua correspondente Semântica e discurso (da última edição), que aparecem ao final

dos capítulos O modelo morfossintático – o sujeito e o predicado, Termos ligados ao verbo:

objeto direto, objeto indireto, adjunto adverbial, Termos ligados ao nome: adjunto adnominal

e complemento nominal e Termos ligados ao nome: aposto e vocativo. A escolha pela

morfossintaxe e, dentro dela, pelo estudo dos termos da oração2 deve-se ao fato de que este é

1 O termo análise linguística foi cunhado por João Wanderley Geraldi, aparecendo pela primeira vez em 1981 no

texto Subsídios metodológicos para o ensino de língua portuguesa. Trata-se de uma inovação não apenas

terminológica, mas também metodológica. 2 Reconhecemos que termos da oração é uma expressão típica da gramática normativa, de cunho estruturalista,

mas seguiremos usando-a por falta de outra equivalente.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 424

um assunto em que normalmente os alunos demonstram certa dificuldade e que pode

facilmente ser problematizado à luz de uma perspectiva sociointeracionista.

Como este artigo parte do pressuposto de que a obra objeto de sua análise trata a

morfossintaxe diferentemente de gramáticas mais tradicionais, cabe aqui explicar que

abordagem estas vêm dando e como ela pode ser problematizada. A chamada gramática

normativa3 costuma propor uma hierarquia dos termos da oração. Assim, toma como “termos

essenciais”, por exemplo, o sujeito e o predicado. Como se explica, então, que possa haver

uma “oração sem sujeito” se este é um “termo essencial”? Seguindo essa hierarquização,

seriam “termos integrantes” os complementos verbais (objeto direto e objeto indireto) e

nominais e o agente da passiva e “termos acessórios” os adjuntos verbais e nominais, o aposto

e o vocativo. Mas por que chamar de “acessório” um termo como o adjunto adverbial ou o

aposto, que muitas vezes carreiam as informações mais importantes do ponto de vista da

intencionalidade do enunciador?

Percebe-se, portanto, o quanto essa hierarquia apenas faz sentido do ponto de vista

estrutural da gramática normativa. No discurso, essa “lógica” se perde. Ao analisar o ensino

de LP sob a perspectiva sociointeracionista, este artigo considera essenciais as contribuições

dos estudos que veem a língua como algo dinâmico, refletindo a relação instável entre a

estrutura e os sentido(s) que ela é capaz de construir.

A difícil superação do tradicional no ensino de análise linguística

Atualmente pode-se dizer que a grande maioria dos docentes de LP em atividade no

Brasil já teve algum tipo de contato com a ciência linguística, já que esta possui mais de cinco

décadas de existência. Mas então, se os professores já conhecem as novas teorias linguísticas

que colocam a interação e o processo de enunciação como centrais, por que permanece tão

difícil superar o tradicional ensino focado na gramática normativa ou descritiva?

Primeiramente, é importante ressaltar que se está falando de práticas seculares já

cristalizadas. Sabe-se o quanto a gramática normativa exerceu um papel de importante

embasamento nessa disciplina, acarretando um ensino focado na estrutura e, mais ainda, em

uma estrutura dada como definitiva e indigna de reflexão.

3 Esclarecimentos acerca dos tipos de gramática considerados relevantes para este artigo serão dados mais

adiante. Por enquanto, cabe esclarecer que os critérios de tipificação das gramáticas são diversos e que, ainda

dentro do mesmo critério, alguns autores divergem quando consideram, por exemplo, normativa tanto a

gramática prescritiva quanto a descritiva.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 425

Em segundo lugar, cumpre destacar que o sistema de ensino está fortemente enraizado

nessa tradição e, muito provavelmente, sozinho, o recém-formado professor se sente

intimidado para afrontar práticas já enraizadas. Entre os estudiosos da Linguística, há os mais

radicais, que defendem o abandono total do ensino da gramática e sua substituição por

“estudos da linguagem”, e os que questionam o rigor dos preceitos da gramática normativa e a

forma como ela vem sendo estudada, mas não a rejeitam por completo e geralmente abordam

uma perspectiva semântica, textual ou discursiva da língua. Assim, até agora o que se vê na

maioria das escolas não é exatamente uma mudança da prática pedagógica em ensino de LP, e

sim alterações pontuais na abordagem de alguns conteúdos gramaticais já estudados por esses

linguistas.

Uma rápida análise tanto de documentos orientadores — a exemplo das Orientações

Curriculares para o Ensino Médio (OCEM, 2006) e do Guia de Livros Didáticos do Programa

Nacional do Livro Didático (PNLD, 2012) — quanto de livros didáticos de LP recentemente

publicados é capaz de demonstrar a tendência de um ensino de gramática contextualizado e

centrado no texto. Mas de que forma isso tem sido feito em muitas escolas? Cereja oferece

uma resposta bastante convincente a esse questionamento: “O que se notava, e ainda se nota

hoje, é o uso do texto como mero pretexto para o tradicional ensino da gramática da frase. [...]

O texto, como unidade de sentido ou como discurso, é completamente esquecido” (CEREJA,

2002, p. 156).

Mesmo entre os livros que fogem a essa prática, são poucos os que aproveitam a

oportunidade de relacionar a AL com as possibilidades de leitura, analisando como a língua é

utilizada em todas as suas dimensões para construir sentido(s) no texto. Ao seguir a

perspectiva sociointeracionista, o ensino de LP dá um “passo a mais” procurando

instrumentalizar o estudante para interagir eficientemente nas suas práticas discursivas:

Se os estudos de linguagem a partir de textos representam um avanço significativo

em relação à gramática normativa, a abordagem enunciativa representa um passo a

mais, uma vez que, além de examinar as escolhas lingüísticas responsáveis pela

construção de sentido, examina também os elementos externos ao texto, que [...]

interagem com os elementos internos e participam da construção de sentido global

do texto. (CEREJA, 2002, p. 159)

Algumas propostas de trabalho nesse sentido foram e vêm sendo desenvolvidas como

as de João Wanderley Geraldi e Luiz Carlos Travaglia.

Geraldi e Travaglia: duas propostas sociointeracionistas de ensino de AL

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 426

Para elaborar sua proposta de trabalho para o eixo de AL, o professor e pesquisador

João Wanderley Geraldi reflete sobre três tipos de atividades, que resumidamente poderiam

ser assim definidas: a atividade linguística remete à atividade da linguagem propriamente

dita, ou seja, aos usos que fazemos da língua nas circunstâncias cotidianas de comunicação; a

atividade epilinguística refere-se à capacidade que todo falante tem de, com a linguagem,

operar sobre ela, de maneira consciente ou não, fazendo retomadas, avaliando os recursos

expressivos de que se utiliza, realizando escolhas, corrigindo estruturas, etc.; e as atividades

metalinguísticas são as atividades que refletem, de modo consciente e sistemático, sobre a

linguagem, resultando em teorias e taxonomias. Entretanto, não se trata de uma distinção

classificatória de fenômenos linguísticos, afinal essas três atividades são realizadas

concomitantemente e devem ser consideradas no ensino de LP.

Para Geraldi (1997), a linguagem é entendida como uma sistematização aberta de

“recursos expressivos” cuja concretude significativa se dá na singularidade dos

acontecimentos interativos. Por isso, refletir sobre os próprios recursos utilizados é uma

constante em cada processo, ainda que isso se dê de maneira inconsciente. Feitas essas

ressalvas, o pesquisador embasa sua proposta no texto do aluno, tomando-o como “ponto de

partida e de chegada”.4 Considerando que, com a linguagem, falamos não só sobre o mundo,

mas também sobre o modo como falamos do mundo e que o estudante chega à escola já

dominando uma variedade de sua língua materna, qual seja sua gramática internalizada,

centrar o ensino na produção de textos é dar a palavra ao aluno e deixá-lo apontar que

caminhos deverão ser trilhados no aprofundamento da sua compreensão tanto dos fatos de que

fala quanto das estratégias que utiliza. Tal trabalho daria conta de processos e fenômenos

enunciativos, e não apenas de ordem estrutural.

Na verdade, o que o autor propõe é que as atividades epilinguísticas realizadas

intuitivamente pelos alunos sejam a ponte para a sistematização metalinguística. Ao comparar

diferentes formas de escrever textos, os alunos compreendem a existência de diversas

configurações textuais e variedades linguísticas e, no confronto destas, aprendem novas

configurações e processam a construção de nova variedade padrão. Depois dessas reflexões,

voltar aos textos dos alunos e fazê-los reescrevê-los não significa partir dos erros para mostrar

os acertos, mas antes partir do erro para a autocorreção e ampliação do saber. Nesse sentido,

a gramática seria usada como suporte, conforme explica o autor:

4 Como Geraldi analisa os três eixos de ensino de LP, propõe que o trabalho integral se inicie com o texto do

aluno, passe por leituras complementares e volte ao texto inicial do aluno para um trabalho de AL.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 427

Penso as atividades epilingüísticas como condição para a busca significativa de

outras reflexões sobre a linguagem. Note-se, pois, que não estou banindo das salas

de aulas as gramáticas (tradicionais ou não), mas considerando-as fontes de procura

de outras reflexões sobre as questões que nos ocupam nas atividades epilingüísticas.

(GERALDI, 1997, pp. 191-192)

Já o também professor e pesquisador Luiz Carlos Travaglia formula sua proposta

igualmente embasada na perspectiva sociointeracionista da linguagem, encarando o texto

como um conjunto de pistas que funcionam como instruções para o estabelecimento de

efeito(s) de sentido em uma determinada interação comunicativa. Dessa forma, considera que

o objetivo principal do ensino de língua materna é desenvolver a competência comunicativa

dos alunos e, para isso, defende um “ensino produtivo”, a fim de que eles adquiram novas

habilidades linguísticas. Travaglia não descarta o ensino descritivo e prescritivo da língua,

mas acredita que ele deva ter seu lugar redimensionado na sala de aula. Para ele, mais

importante do que ditar regras ou partir do uso da língua para estabelecê-las é refletir sobre a

linguagem.

A diferenciação que o autor faz de quatro tipos de gramática é fundamental para

compreender sua proposta. A gramática de uso (1) seria aquela não consciente, implícita e

ligada à gramática internalizada do falante. Para o ensino, ela seria útil nas atividades que

buscam desenvolver o uso automático das unidades, das regras e dos princípios da língua,

além dos recursos das suas diferentes variedades, mas sem que estes sejam explicitados

metalinguisticamente. Serviriam para esse fim exercícios estruturais, qualquer atividade de

produção e compreensão de texto, exercícios de vocabulário e atividades com variedades

linguísticas.

A gramática reflexiva (2) seria aquela que surge da reflexão com base tanto no

conhecimento intuitivo dos mecanismos da língua que o aluno já domina quanto no trabalho

com os conhecimentos linguísticos que ele ainda não domina. Para esse fim, haveria dois

tipos de exercícios: os que levam o aluno a explicitar fatos da estrutura e do funcionamento da

língua (em vez de dar a teoria gramatical pronta para o aluno, construir atividades que o

levem a redescobrir o que as ciências linguísticas já deram a conhecer) e os que focam nos

efeitos de sentido que os elementos da língua são capazes de produzir na interlocução. O autor

faz uma ressalva quanto ao primeiro tipo de exercícios: “Não há evidência de que o

conhecimento sobre esses aspectos mais estruturais da língua (dados por meio de várias

metodologias) tenha levado ao desenvolvimento da competência comunicativa”

(TRAVAGLIA, 2009, pp. 143-144). Esses exercícios serviriam como recurso auxiliar para

levar o aluno a conhecer a instituição social que é a língua, ensinando-o a pensar. O mais

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 428

importante, tendo em vista o objetivo de desenvolver a competência comunicativa dos alunos,

seria, portanto, o segundo tipo de atividades.

Já a gramática teórica (3) seria a gramática explícita, uma sistematização teórica sobre

a língua e os conhecimentos que se tem dela por meio de uma metalinguagem apropriada e

ditada por teorias e modelos das ciências linguísticas. Esta não deve ser confundida com a

gramática normativa, que tem mais um caráter de legislação do que de descrição. O

pesquisador não descarta o uso dessa gramática nas aulas de LP, mas defende que ela não seja

um fim em si mesma. O objetivo dessa sistematização seria munir o aluno das ferramentas

que lhe facilitem pensar cientificamente, desenvolvendo as habilidades de observação,

raciocínio, levantamento de hipóteses e argumentação. Para trabalhar com essa gramática, o

professor, além de ter bom-senso para selecionar as informações teóricas pertinentes, deve ter

espírito crítico, e não querer passar teorias prontas e acabadas, muitas vezes problemáticas,

aos aprendizes.

Finalmente a gramática normativa (4), como gramática do bom uso da variedade culta

e padrão da língua, também deve ser considerada no ensino/aprendizagem, mas, assim como a

teórica, não como um fim em si mesma e, ademais, com os seguintes cuidados: deixando

claro (i) que esta é apenas uma das variedades; (ii) que considerar esta como a única

variedade correta cria preconceitos de toda espécie e ignora os usos orais da língua; (iii) que é

importante conhecê-la para usá-la quando se tem que atender a normas sociais de uso em

situações formais; (iv) que os recursos ensinados são uma qualidade ou um problema não em

si mesmos, mas conforme o uso que o interlocutor faz deles na situação interativa específica.

Enfim, de forma resumida, o que o autor propõe é que:

o ensino da gramática seja basicamente voltado para uma gramática de uso e para

uma gramática reflexiva, com o auxílio de um pouco de gramática teórica e

normativa, mas tendo sempre em mente a questão da interação numa situação

específica de comunicação e ainda [que] o que faz da sequência linguística um texto

é exatamente a possibilidade de estabelecer um efeito de sentido para o texto como

um todo. (TRAVAGLIA, 2009, p. 108)

No entanto, como ele mesmo ressalta, os quatro tipos de gramática podem ou não ser

utilizados em um mesmo conteúdo para uma mesma turma em qualquer nível de ensino. O

que deve determinar isso é o conteúdo trabalhado, as condições dos alunos, o objetivo do

ensino, o tempo disponível e outros fatores que o professor julgar conveniente.

Análise da Gramática Reflexiva: construindo sentido(s) no e para o ensino

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 429

Diferentemente de gramáticas escolares tradicionais, a Gramática Reflexiva, desde sua

primeira edição, não fala em hierarquia entre os termos oracionais, tampouco usa as

denominações termos integrantes para os complementos verbais (objeto direto e objeto

indireto) e nominais e o agente da passiva e termos acessórios para os adjuntos verbais e

nominais, o aposto e o vocativo5. Em vez disso, destaca o sujeito e predicado colocando-os

logo no primeiro capítulo e chama a atenção para o elemento a que os demais termos se

ligam: se a um nome ou a um verbo.

Em toda abertura de capítulo, a Gramática Reflexiva (e o próprio título sugere isso)

parte de atividades que levam o aluno a tirar conclusões que irão ajudá-lo a construir os

conceitos. Trata-se do primeiro tipo de exercício da gramática reflexiva de Travaglia, que,

como dito acima, em vez de dar a teoria gramatical pronta para o aluno, constrói atividades

que o levam a redescobrir o que as ciências linguísticas já deram a conhecer. O foco desta

análise, no entanto, relaciona-se ao segundo tipo de exercício da gramática reflexiva de

Travaglia: os que se centram nos efeitos de sentido que os elementos da língua são capazes de

produzir na interlocução. Mais especificamente, serão analisados alguns exercícios desse tipo

presentes nas seções Semântica e interação (na primeira edição) e sua correspondente

Semântica e discurso (na última edição).

No capítulo O modelo morfossintático – o sujeito e o predicado, a seção Semântica e

interação da primeira edição da gramática traz uma tirinha de Dik Browne que mostra a

interação entre Eddie Sortudo e Hagar, em que o primeiro personagem fala “Veja! Posso

chutar minha cabeça! Aposto que você não pode!” e gesticula colocando os próprios pés na

cabeça, ao que o segundo personagem responde “Ah, é?!” e chuta a cabeça de seu

interlocutor. O primeiro quesito, ao elucidar o contexto de interação entre os personagens e a

intenção comunicativa de Eddie Sortudo, induz o aluno a perceber que o predicado implícito

da segunda oração (“chutar sua própria cabeça”) gerou uma ambiguidade, na qual o humor da

tira se constitui. Assim, o aluno consegue facilmente identificar o efeito de sentido do texto e

relacioná-lo ao objeto de estudo (predicado).

Já a seção Semântica e discurso da última edição traz uma notícia retirada da revista

Veja intitulada “Sopa de plástico” do Pacífico aumentou 100 vezes em 40 anos. As questões

sobre esse texto levam o aluno a perceber que nem sempre o sujeito é o agente da ação verbal

5 Embora a denominação termos essenciais para o sujeito e o predicado não seja usada na divisão dos capítulos,

ela aparece apenas na primeira edição e de maneira quase aleatória tanto na explicação que os autores dão a esses

termos quanto nos enunciados de alguns exercícios.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 430

e dos fatos e que a escolha pela omissão ou explicitação dos responsáveis por essa ação é

também uma forma de “manipular” o efeito de sentido do texto. A letra “b” do terceiro

quesito pergunta: “Na notícia lida, qual é o efeito da escolha pela omissão ou explicitação dos

responsáveis pela ação verbal?”. Para respondê-la, o aluno precisa voltar às questões

anteriores e perceber que, quando a ação é negativa (poluir o Pacífico), a escolha da revista é

omitir o ser humano como agente e colocar como sujeito as expressões “sopa de plástico”,

“acúmulo de plástico” e “enorme redemoinho de lixo plástico”, fazendo parecer que a

responsabilidade pelo aumento do lixo não é de ninguém; já quando a ação verbal é positiva

(mostrar, revelar, alertar para descobertas científicas), o texto opta por colocar cientistas e

pesquisas como sujeitos, valorizando esses estudiosos e conferindo maior credibilidade à

notícia.

No capítulo Termos ligados ao verbo: objeto direto, objeto indireto, adjunto

adverbial, Cereja e Cochar optam por colocar o adjunto adverbial como termo ligado ao verbo

embora façam a ressalva de que “Os adjuntos adverbiais de intensidade, além de acompanhar

o verbo, podem acompanhar substantivos, adjetivos e advérbios” (CEREJA E COCHAR,

1999, p. 225).

A seção Semântica e interação da primeira edição da gramática traz a história em

quadrinhos As férias de Peteca, de Glauco, que é formada por uma sequência em que os

quatro primeiros quadrinhos mostram a personagem principal, Peteca, em alguma capital do

Brasil, acompanhada de um garoto. As legendas dizem: “Em Salvador, fiquei com o

Rodolfinho! / Em Porto Alegre, com o Fredinho! / Em Floripa, eu fiquei com o Paulinho! /

No Rio, fiquei com o Rubinho!”. O último quadro surpreende com a imagem de um garoto

em cima de um edifício sozinho e uivando “Aúúúúú”. A legenda diz: “E o Bodi Pit, meu

namorado, ficou em Sampa, tadinho!”. Os exercícios referentes a esse texto focam nos

adjuntos adverbiais que indicam os lugares por onde Peteca passou; nos diferentes sentidos

que o verbo ficar assume dependendo de sua predicação; no uso do diminutivo nos nomes

próprios em função de objeto indireto nos quatro primeiros quadrinhos e no não uso deste no

último quadrinho; e na intenção de Peteca ao empregar aí a variedade linguística “tadinho”.

Além de usar a linguagem do jovem, esse exercício reflete sobre como as variedades

linguísticas reconstroem sentidos usuais (no caso, do verbo ficar) e sobre como o uso do grau

dos substantivos e adjetivos está relacionado não apenas ao tamanho ou à intensidade do

referente, mas também à marcação de intenções do locutor (no caso, mostrar simpatia, afeição

ou intimidade nos nomes próprios dos garotos com quem Peteca ficou ou dó, pena e ironia no

uso de “tadinho”).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 431

Já na seção Semântica e discurso da última edição da gramática traz o poema Morte de

Clarice Lispector, de Ferreira Gullar. O primeiro exercício e as letras iniciais do segundo,

mais estruturais, questionam sobre referente, função sintática, transitividade de verbos e

reconhecimento do sujeito. O questionamento sobre o porquê de o sujeito do verbo enterrar

não está explícito no verso “Enquanto te enterravam no cemitério judeu”, embora não use a

expressão intenção e os tipos de sujeito ainda não tenham sido apresentados, exige que o

aluno perceba que não há o interesse do enunciador em saber nem dizer quem enterrava a

escritora Clarice Lispector, por isso opta pelo sujeito indeterminado. Somente na letra “c” do

segundo quesito aparece mais claramente uma pergunta sobre a relação da estrutura com o

sentido do poema: “Que relação semântica é estabelecida no poema entre o sujeito da forma

verbal mostravam, o eu lírico e o restante do mundo?”. Referindo-se ao trecho do poema “as

pedras, as nuvens e as árvores / no vento / mostravam alegremente / que não dependem de

nós”, essa pergunta faz o aluno recuperar o sujeito “as pedras, as nuvens e as árvores”, pensar

na situação em que o eu lírico parece ter produzido o enunciado — por ocasião da sua ida ao

enterro de Clarice Lispector — e estabelecer uma relação de tudo isso com o mundo em que

vive. Assim, espera-se que ele chegue à conclusão de que se estabelece aí uma relação de

independência, pois a morte de uma pessoa e a tristeza de outra não impedem a alegria do

mundo. Ao relacionar os tópicos trabalhados a elementos contextuais do mundo que cerca o

aluno, a Gramática Reflexiva permite que se estabeleçam, em sala de aula, discussões ricas

sobre possíveis interpretações e opiniões dos alunos.

Com relação ao capítulo Termos ligados ao nome: adjunto adnominal e complemento

nominal, a seção Semântica e interação da primeira edição traz um anúncio da Honda

publicado na revista Caras e que é formado por duas partes: a primeira mostra o seguinte

texto na frente da imagem do Parthenon, na Grécia: “Há 250 anos na Grécia antiga nasceu

Hermes. Deus do vento, da velocidade e da liberdade. O único deus do Olimpo que não tinha

templo. Porque, como tinha asas nos pés, Hermes nunca parava em casa. Na Grécia nasceu o

desejo de liberdade. Nós só acrescentamos as cilindradas”. A segunda parte, com uma

imagem de um pé alado em grandes proporções, diz: “A mitologia grega explica o seu desejo

de vento, liberdade e velocidade”. O primeiro quesito explora a diferenciação semântica das

funções sintáticas em estudo no contexto específico desse anúncio. Assim, o aluno teria que

reconhecer que, em “Deus do vento, da velocidade e da liberdade”, as expressões destacadas

são adj. adn. porque cumprem a função de especificar, dar atributos a “Deus” e que, em

“desejo de vento, liberdade e velocidade”, as expressões em itálico são CN porque são alvo

do desejo. Tal exercício é importante porque faz o aluno perceber, em situações concretas de

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 432

uso, as diferentes funções dos termos estudados relacionando-as aos sentidos que constroem.

Os demais exercícios levam os estudantes a ativar seus conhecimentos prévios ao terem que:

reconhecer que o homem sempre teve, segundo o anúncio, desejo de voar; identificar o

público-alvo do anúncio, os consumidores de motocicleta, que, em geral, apreciam a

velocidade, a liberdade e o vento; elencar os prováveis valores explorados como estratégia

para persuadir o interlocutor: liberdade, independência, autonomia, autossuficiência.

Na seção Semântica e interação da última edição da gramática, aparece um anúncio da

Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) publicado na revista Gol, que,

mostrando a imagem de uma esteira de raio-x no aeroporto com uma bandeja cheia de

medalhas e outros objetos pessoais, como chaves, caneta, moeda e celular, traz o texto

“Patrocinar o judô brasileiro é ter a certeza de duas coisas: que nossos atletas vão lutar nas

maiores competições do mundo. E que não vão voltar de mãos vazias”. O primeiro exercício

pede que o aluno identifique o anunciante e o público-alvo. O segundo explora a

diferenciação semântica das funções sintáticas em estudo no contexto desse anúncio. O

terceiro, destacando as certezas que o locutor tem, solicita que o aluno identifique os adj. adv.

que correspondem às circunstâncias em que ocorrerão as ações indicadas nas construções

verbais vão lutar e não vão voltar. O exercício segue perguntando sobre os adj. adn. que

especificam ou conferem atributo aos núcleos dos adj. adv. (“as, maiores, do mundo”/“as,

vazias”) e que sentido atribuem ao desempenho dos judocas brasileiros (o de que eles se

classificam entre os maiores do mundo). Esse exercício, além de revisar um termo já estudado

(adj. adv.), mostra que o adj. adn. pode estar presente em qualquer termo cujo núcleo seja um

nome e que sua função será a de especificar ou conferir atributos a esse nome. Finalmente o

último exercício pede que o aluno examine o conteúdo da bandeja na imagem e pergunta que

relação há entre a parte verbal e não verbal do anúncio, mostrando que ambas as linguagens se

complementam para construir o sentido global do texto.

No capítulo Termos ligados ao nome: aposto e vocativo, a seção Semântica e

interação da primeira edição traz uma charge de Adail et. alli que mostra duas mulheres

sentadas conversando, sendo que uma delas, descalça, carrega um bebê no colo e diz à sua

interlocutora: “Ah, minha filha, aqui nessa casa nunca faltou nada: meningite, escorbuto,

mononucleose, rubéola, coccideose, cólera, esquistossomose, sífilis, chagas, virose, amebas,

disenteria, brucelose...”. Os exercícios exploram o reconhecimento da classe gramatical e do

valor semântico da palavra “Ah”, a identificação do aposto e do vocativo, o campo semântico

dos substantivos que compõem o aposto, o significado do pronome indefinido nada no

enunciado e a explicação do humor da charge, nessa ordem. Portanto, somente depois de

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 433

responder a todas as perguntas, o aluno fica munido de informações e reflexões suficientes

para concluir que o humor reside na quebra de expectativa do leitor. Interessante é destacar

que o pronome indefinido nada, nesse contexto, significa seu oposto quando, depois dele,

vêm enumeradas “várias” doenças, corroborando a visão de que somente o ensino estrutural

(focado em nomenclaturas e classificações) não dá conta das inúmeras possibilidades de uso e

significado dos termos.

A seção Semântica e interação da última edição apresenta o poema Os confidentes (I),

de José Paulo Paes. Os dois primeiros exercícios focam na identificação do interlocutor do eu

lírico e sua função sintática (vocativo), no reconhecimento do emprego de expressões em

referência a Vila Rica, no papel semântico e na função dessas expressões (aposto), nessa

ordem. Ou seja, somente após fazer o aluno perceber o papel que desempenham (sua função)

e o valor semântico dos termos vocativo e aposto, os exercícios pedem sua nomenclatura. O

último exercício faz o aluno notar que algumas estrofes do poema cantam a vileza dos

habitantes de Vila Rica, enquanto outras descrevem a riqueza dessa cidade; o faz associar o

tema tratado ao fato histórico Inconfidência Mineira; e finalmente pede que ele troque ideias

com os colegas para concluir qual a função sintática do último verso “Vila Rica vil e rica”,

que resume todo o poema. Para este último questionamento, há duas possibilidades de

resposta dependendo da interpretação do poema: “Vila Rica vil e rica” pode ser um vocativo

servindo como interlocutor do eu lírico; ou, considerando-se o verbo ser subentendido —

“Vila Rica, (és) vil e rica” —, Vila Rica seria o sujeito e vil e rica, o predicativo do sujeito.

Considerações finais

Tendo-se em conta o lícito reconhecimento de que o ensino de LP precisa de

mudanças; de que se deve refletir cientificamente sobre a linguagem para “construir, e não

reproduzir conhecimentos”, como diz Geraldi; de que o que se deve buscar é o

“desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos”, para usar as palavras de

Travaglia, podemos perceber que alguns caminhos já começaram a ser apontados.

Se o texto é único como enunciado, mas múltiplo enquanto possibilidade aberta de

atribuição de sentidos; se a escola deve garantir o exercício de uso amplo da linguagem no seu

espaço; e se há um interesse em renovar o ensino de LP, modificando, diversificando e

ampliando o ponto de vista sobre seu objeto de estudo, exercícios como os analisados neste

artigo — que priorizam a função dos termos estudados para somente depois chegarem às suas

nomenclaturas; que mostram a forma (o estilo do autor) reforçando o conteúdo; que convidam

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 434

o aluno a ser copartícipe do processo de construção de sentido(s) para o texto; que associam

os recursos linguísticos à sua capacidade de potencializar significados em uma situação

específica de interação; que refletem sobre como as variedades linguísticas reconstroem

sentidos usuais; que exigem que os alunos recuperem (ou criem) a situação em que

provavelmente os textos analisados foram enunciados; que mostram como a colocação dos

termos na frase não é aleatória, mas depende da intenção do locutor; que exploram a relação

“função sintática x sentido”; que relacionam os aspectos textuais aos contextuais; que

remetem ao conhecimento de mundo do estudante; que pedem justificativas semânticas para

um fato sintático; que dão margem a interessantes debates em sala de aula — parecem ser um

bom começo.

Referências

CEREJA, William Roberto. Ensino de Língua Portuguesa: entre a tradição e a enunciação. In:

HENRIQUES, C. C.; PEREIRA, M. T. G. (orgs.). Língua e transdisciplinaridade: rumos,

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GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 435

AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO

BARUSCO NA CPI DA PETROBRAS [Voltar para Sumário]

Brwnno Gabryel de Araújo Silva

Rosilene Felix Mamedes

Introdução

Este artigo tem como objetivo analisar o depoimento dePedro Barusco ( ex-gerente da

PETROBRAS), na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) , em 10 de março de 2015.

Neste depoimento podemos perceber as várias vozes discursivas presentes nos enunciados e,

como a interação verbal apresenta-se de forma dialógica neste discurso.

Para este trabalho nos deteremos em fragmentos que têm como sujeitos da enunciação

o depoente Pedro Barusco, o Presidente da mesa e o Relator da CPI. Para isso, buscaremos

compreender o processo da enunciação a partir da óptica dialógica de Bakhtin em que a

linguagem é processada a partir de vários discursos, dialogando com o contexto enunciativo

refletindo e refratandodiscursos, que se materializam apenas e somente na enunciação

linguística.

Como marco teórico abordaremos as contribuições de Bakhtin, no que tange à noção

de sujeito discursivo, interação dialógica, responsividade entre os envolvidos na enunciação.

Como corpus para a nossa análise utilizaremos alguns fragmentos do depoimento de Pedro

Barusco, mais precisamente os fragmentos e as inconsistências na limitação do período em

que iniciou os repasses de propinas na PETROBRAS.

Para desenvolver este artigo elegemos como objetivo geral investigar como se

processa a interação argumentativa entre os sujeitos envolvidos (Pedro Barusco e os

parlamentares que fazem a sabatina na CPI da PETROBRAS. Os objetivos específicos serão:

Transcrever fragmentos do depoimento para análises discursiva; Capturar os discursos dos

sujeitos envolvidos na situação enunciativa e seus posicionamentos ideológicos partidários ou

não; Compreender como se processa a dialogicidade no processo enunciativo.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 436

Como percurso metodológico primeiramente optamos portranscrever o depoimento e,

em seguida delimitar os fragmentos para as nossas análises. Após este primeiro momento,

elegemos as categorias de análises epor último, confrontamos as nossas análises com as

categorias da análise dialógica de Bakhtin.

Tendo em vista a necessidade de constantes leituras e reflexões sobre interação verbal,

discurso e sujeitos, optamos pela teoria do dialogismo e interação verbal, alicerçando nosso

do aporte teórico, em Bakhtin e suas contribuições linguísticas.

Um olhar teórico

A linguagem e sua relação com o social teve espaço a partir da publicação de

Marxismo e filosofia da linguagem de Bakhtin/Volochinov, em 1929. Nesta obra podemos

encontrar, dentre outras questões, a teoria da linguagem sob a ótica da interação verbal em

que os discursos acontecem em situações concretas a partir de contextos situacionais e de

interações dialógicas. Ao delimitar a linguagem como objeto de estudo específico, Bakhtin

observa que os estudos linguísticos foram orientados durante décadas por duas correntes

principais, o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. Dentre os conceitos-chaves de

Bakhtin, nos deteremos neste artigo a discutir os princípios da interação e do dialogismo a

partir do depoimento de Pedro Barusco, na CPI da lava-jato. No subjetivismo idealista o

indivíduo é autônomo e possui o poder de criar, partindo do interior para o exterior, assim, a

linguagem está situada no ato da fala, de modo que nesta perspectiva a interação na

linguagem é totalmente anulada. Já no objetivismo abstrato “é o domínio da estrutura

linguística sobre o sujeito”1, neste prisma a língua é acabada, dentro de si mesma.

Nesta óptica, os estudos da linguagem e do discurso alicerçados em Bakhtin têm uma

variedade de adequações, “porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório do

discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um

determinado campo”. (BAKHTIN, p. 262, 2006)

A palavra enquanto signo ideológico traz um caráter social impregnada de sentidos,

atribuindo aos sujeitos discursivos múltiplas possibilidades enunciativas. Sendo assim, “ as

palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as

relações sociais em todos os domínios”. (BAKHTIN, p. 42, 2006)

Desta forma, se perfaz presente tal adequação ao cenário jurídico, onde o discurso,

composto sempre por acusação e defesa, ambos na busca da aceitação de uma tese, finca-se

1 Revista Eletrônica do netlli, Vol: 2, 2013.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 437

em outros discursos das mais distintas esferas sociais, por meio de interações

sociodiscursivas, baseando-se em interações enunciativas. .

Assim, para Bakhtin (p. 123, 2006),

A verdadeira substância da língua é constituída, pelo fenômeno social da interação

verbal, realizada por meio da enunciação ou das enunciações. A interação verbal

constitui assim a realidade fundamental da língua.

Desta maneira, para o autor a língua (gem) passa a ser concebida como algo

essencialmente social, ou seja, a língua como faculdade humana só efetiva-se em momentos

reais de enunciação a partir de momentos de trocas dialógicas.

A partir da reflexão bakhtiniana sobre a linguagem, esta passou a ser vista como lugar

de interação social, sendo parte desta dialogicidade: as condições do discurso e as esferas

sociais que se inserem o enunciado. Da mesma forma, é de fundamental relevância a relação

entre o Eu e o Tu (outros), assim, para falar em discurso ou sujeito sob a óptica de Bakhtin é

necessário, antes de mais nada, levar em consideração as condições discursivas existentes.

Desse modo, os discursos estão sempre entrelaçados por outros discursos, pelo que espero do

outro, pelo que o outro agrega aos nossos discursos, sendo a dialogicidade uma cadeia de

interação que perpassa o diálogo apenas de complementação, como afirmaBakhtin “ a

palavra é prenhe de respostas...” Para ele a língua é “fenômeno social da interação verbal,

realizada através da enunciação ...” (BAKHTIN, 1929, p. 127). Sendo assim, na esfera

jurídica não é diferente, o discurso é moldado por um estilo próprio já que é uma das esferas

sociais, em que se insurge o contexto social somado ao uso concreto da língua, numa busca,

em que o meio de comunicação e a enunciação são essenciais para o alcance da interação

verbal, ora estudada no presente artigo. Observemos ainda, que na seara jurídica tal interação

e compreensão são imprescindíveis para criação de um contexto responsivo entre os

participantes.

Desta forma, a verdade perseguida é extraída através da interação verbal observada

entre os sujeitos enunciativos,em que o aspecto dialógico linguístico faz-se presente nas

colheitas de declarações, seja daquele que se encontra denunciado (réu- testemunha do caso

da CPI), no caso, o Srº Pedro Barusco, que tem a obrigação de externalizar a verdade. Nestes

enunciados é observada a diferença cultural, ideológica e intelectual existente entre as

testemunhas que instruem determinados processos judiciais, interagindo com o discursoe

contribuindo com o processo a partir de suas declarações.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 438

Diferentemente de Saussure, que optou pelo estudo da língua, concebendo os signos

como arbitrários, para Bakhtin, os signos são criados em ambientes sociais e estão

relacionados com o social. Em outras palavras:

Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e

refrata uma outra. Ele pode distorcer esta realidade, ser-lhe fiel ou apreendê-la de

um ponto de vista específico (BAKHTIN, 2006, p. 32).

Para o autor, o “signo” não é mais visto como algo inerte, estático, não mais abstrato;

a língua (gem) é dialética, viva e dinâmica. Para ele, “tudo que é ideológico possui um

significado e remete a algo situado fora de si mesmo” (BAKHTIN, 2006,p.32). Outro

conceito abordado por Bakhtin é a noção de consciência que é impregnada do conteúdo

ideológico. Em outras palavras, tudo que é ideológico é um signo. Ainda, sob esses princípios,

os signos estão intrinsecamente atrelados ao mundo exterior e tudo que os cercam. Desse

modo, em Bakhtin, o sujeito, o “eu”, relaciona-se com o “outro” por meio da interação social.

Essa relação social, também chamada de relação dialógica do eu-tu, apontada por Bakhtin.

Para Bakhtin (2006, p.16), a palavra é por excelência impregnada de ideologia, sendo

a responsável pelo registro das variantes sociais. Assim, se a língua é determinada por

ideologia/consciência, o pensamento é condicionado pela linguagem e modelado pela

ideologia. Para o autor um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural e social),

sendo assim, ele reflete e refrata outra realidade, que lhe é exterior.

Desse modo, a palavra é provida de supremacia dialógica, sendo “o modo mais puro e

sensível da relação social” (BAKHTIN, 2006, p.36). Assim, na dialogicidade, à medida que a

palavra é pronunciada pelo enunciador, ela sofrerá transformações realizadas a partir do meio

social em que esse enunciado está sendo emitido, logo, o seu valor ideológico também será

modificado.

A partir desse prisma percebemos que o meio social é de suma importância, para as

discursões sobre linguagem, tendo em vista que é exatamente neste âmbito em que a fala

(linguagem) sofre interferência de aspectos externos no gênero, que neste caso, destacamos o

depoimento como estrutura textual, com linguagem dialógica em que ao mesmotempo em que

o depoente faz as suas declarações, ele dialogo com o discurso no momento exato da

interrogação, bem como com os sujeitos envolvido no discurso, e ainda há o ato dialógica da

memória do ato enunciativo em questão.

“[...]a diversidade desses gêneros é determinada pelo fato de que eles são diferentes

em função da situação, da posição social e das relações pessoais de reciprocidade

entre os participantes da comunicação”. (BAKHTIN, p. 283, 2006)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 439

Neste caso, podemos perceber que o tom discursivo, entendido aqui, como o ato da

fala, marcará não apenas a enunciação, como a forma de dizer, como dizer, e principalmente

demarcará a posição do sujeito discursivo. Em outras palavras, a partir dessa perspectiva

dialógica da palavra, a teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos coloca o texto/enunciado

discursivo como fator social, sendo cada vez menos propícia à individualidade da linguagem,

com exceção do gênero do discurso que exige uma forma padronizada em muitas

modalidades, como, por exemplo, os documentos oficiais de ordem militar. O autor ainda

acrescenta que os sinais individuais não fazem parte do plano discursivo “os enunciados e

seus tipos são, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a história da

sociedade e a história da linguagem”. (BAKHTIN, 2006, p. 268).

A linguagem vista nessa perspectiva mostra-se como lugar de interação entre sujeitos,

estabelecendo entre eles relações de dialogicidade que favorecem o a interação discursiva

entre o Eu-Outrem. Assim para a análise do discurso jurídico, nos respaldaremos na terceira

concepção da linguagem, a qual possui uma maior relevância dentro das propostas dos

enunciados linguísticos, já que, nela, a língua é concebida como um fenômeno interacionista,

e a linguagem é entendida como um fenômeno dialógico passível de flexibilidade. Desta

forma, a linguagem é um fenômeno interacional em que os indivíduos se comunicam a partir

de determinadas escolhas linguísticas, tendo como foco a produção de discursos que

dependerá sempre do meio em que este será pronunciado. Ou seja, os discursos sofrerão

sempre influência do falante e do meio que este se insere, além da situação sócio-

comunicativa em que o discurso será produzido. Por este motivo, em todas as esferas sociais

comunicativas há um discurso próprio, que é moldado pelo meio, pelas ações externas a ele,

pelas ações individuais dos sujeitos,e pela própria condição enunciativa que exige discursos

mais ou menos formais, adequados às situações. Desse modo, no contexto sociodiscursivo

jurídico não é diferente, pois há uma estrutura fixa, com uma linguagem específica que

precisa ser seguida. Assim, na escolha do nosso corpus temos dois textos, que seguem a

estrutura fixa de dois gêneros distintos, porém seguindo a mesma esfera social, que é a

jurídica.

A respeito do domínio da estrutura enunciativa do gênero Bakhtin (1992, p.302)

afirma que:

“as formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do

discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência

conjuntamente. (...) Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 440

falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por

palavras). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a

organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às

formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas

primeiras palavras pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (extensão

aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim,

ou seja, desde o inicio, somos sensível a todo discursivo que, em seguida, no

processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do

discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no

processo fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a

comunicação verbal seria quase impossível.”

Segundo o autora linguagem reflete e refrata o social. Consequentemente, Bakhtin

atribui ao texto um patamar que passa a ser visto como um objeto concreto, partindo do uso

real que o falante faz da enunciação e do discurso como um todo.

Marcuschi (2008, p. 76) aponta que o texto é resultado de uma ação linguística cujas

fronteiras são em geral definidas por seus vínculos com o mundo no qual ele surge e funciona.

Para o autor, o texto é um tecido estruturado, uma entidade significativa, de comunicação e

um artefato sócio-histórico. O autor, ao retomar a teoria de Bakhtin sobre refração da

linguagem, por analogia, diz que o texto “refrata” o mundo que o “reordena e o reconstrói”.

Assim, o texto só fará sentido dentro de um contexto social, já que ele é o reflexo de uma ação

conjunta, sendo sempre passível de modificações, pois um texto nunca está acabado, o falante

sempre poderá reconstruí-lo, atribuindo-lhe um novo significado e reordenando-o de acordo

com o contexto enunciativo.

Assim, como afirma Bakhtin:

“a relação orgânica e indissolúvel dos gêneros se revela nitidamente também na

questão dos estilos de linguagem ou funcionais. No fundo, os estilos de linguagem

ou funcionais não são outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da

atividade humana e da comunicação2”(2006, p.266.)

Na citação acima, o autor afirma que os gêneros possuem características

“indissolúveis”, portanto o estilo está relacionado não apenas com o gênero, mas com as

condições estruturais e sociais por ele, estabelecidas. Assim, em nosso corpuspodemos

apontar que os discursos estão entrelaçados por várias outras vozes, que interferem

A seguir nos deteremos a fazer as análises do nosso corpus a partir da óptica da

interação verbal edo discurso apontados em Estética da Criação Verbal e Filosofia da

Linguagem de Bakhtin.

2Grifo nosso.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 441

Análise de dados: o discurso político-jurídico e linguagem

Para corpus do nosso artigo, escolhemos um auto de qualificação e interrogatório em

que tem como objetivo qualificar e descrever o objeto da acusação. Como forma de analisar o

corpus, iremos transcrevê-lo fragmento do discurso, para posterior análises.

Fragmento 1: PEDRO BARUSCO: Então vou falar um pouquinho da trajetória para chegar nesse

momento. Eu ingressei na Petrobras em 79 por concurso público. E sou engenheiro

naval de formação acadêmica, e eu fui, eu inicialmente optei, depois do curso de

formação, eu optei por trabalhar no centro de pesquisas. Onde eu fiquei por 15

anos.[...]. E no departamento de exploração e produção eu cheguei até gerente de

produção interino. Subi mais um grau na carreira. Fiquei interino durante uns seis

meses. E em 2003 eu fui convidado pra ser gerente executivo de engenharia na

diretoria de serviços.

No primeiro fragmento, podemos perceber a preocupação do depoente em se colocar

como um profissional qualificado, livre se suspeitas para indicações a cargos políticos, uma

vez que, segundo o depoente o seu cargo foi conseguido com esmero e qualificação

profissional. Ao final deste fragmento o Sr Pedro Barusco, afirma que “em 2003 eu fui

convidado pra ser gerente executivo de engenharia na diretoria de serviços.”A partir deste modo,

destacamos alguns fragmento que o depoente ao ser indagado, há a presença de distorções nas suas

afirmações, demonstrando oscilações nas suas afirmações e reiterações discursivas.

Ao longo da explanação do ex-gerente da PETROBRAS, nos deteremos neste

trabalho, a analisaras inconsistências do seu discurso em delimitar o período temporal do

início de quando começou a receber a propina. Vamos analisar o fragmento abaixo:

Fragmento 2:

PEDRO BARUSCO: Como faz parte do meu termo de colaboração, né? Eu

iniciei a receber a propina em 97/98, não é? Foi uma iniciativa pessoal minha

junto com o representante da empresa. Eu descrevo no meu depoimento esta

trajetória. E vou reiterar o que está dito no depoimento, né? Agora de uma forma

mais ampla, como vossa excelência mencionou, em contato com outras pessoas

da Petrobras, de uma forma mais institucionalizada foi a partir de 2004. 2003…

2004… eu não sei precisar exatamente a data, foi mais a partir dali.

RELATOR : Quer dizer que do ano de 97, quando você afirma que começou a

receber estes ilícitos, você era o único que recebia? Só…

...

PEDRO BARUSCO: Olha sobre esta questão existe uma investigação em

curso. Eu sou investigado. Então, eu até assim selecionei esta parte aqui do meu

depoimento. Eu acho que vou me deter ao depoimento. Eu não vou aprofundar

estas questões que estão no meu depoimento por está ocorrendo uma

investigação. Então, é… eu reitero o que eu já falei no depoimento da minha

colaboração com a justiça

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 442

No fragmento 2, observa-se que o Relator indaga o depoente sobre suas participações

na corrupção da Petrobras, buscando compreender o contexto histórico da gênese deste

fraude. Neste primeiro momento, o depoente se exime da reposta, alegando que isso já consta

do depoimento. Entretanto, mesmo demonstradoa fragilidade discursiva perante à veracidade

da sua resposta, claramente apresentada pelo modalizador “eu acho”, ao final do fragmento, o

depoente retoma a fala do Relator e confirma a afirmação que tudo começou em 97/98. Como

podemos ver em “Então, é… eu reitero o queeu já falei no depoimento da minha colaboração

com a justiça”

Ainda, sobre o fragmento destacamos o uso do “então, é...” como forma conclusiva, e

de modo que o sujeito do discurso mostra-se concordar com o que está sendo indagado,

entretanto, como valor semântico-discursivopercebemos que o sujeito encontra-se um tanto

perturbado com as indagações.

Fragmento 3: PEDRO BARUSCO: Agora nós estamos nos remetendo a um outro assunto,

que é a questão de sondas. Isto é fato. O serviço de perfuração na Petrobras, ele

sempre foi realizado por empresas de perfuração, muitas delas estrangeiras, mas

existem algumas brasileiras, e a Petrobras sempre contratou estas sondas. [...] E

o serviço de sondagem sempre foi dominado por estas empresas. Até o ponto, eu

acho que foi mais ou menos em mil. Não, 2007/2008. Até o ponto que, com a

crescente demanda, chegou uma demanda na diretoria executiva pra contratar se

eu não me engano. Se não estou errando com a memória. Dezoito sondas ao

mesmo tempo. Foi aí que isto chamou atenção. Porque até então as sondas

eram colocadas homeopaticamente...

Eu acho que ainda era a presidente Dilma a ministra de minas e energia. E

houve ação natural, ou uma ação contrária tentando fazer estas sondas no Brasil.

E isto foi a criação da Sete Brasil.

No fragmento 3, destacamos expressões modalizadoras “eu acho” e o “até então” como

formas imprecisas, deixando margens de dúvidas no seu discursos, mas no segundo caso, percebe-se o

oSr Pedro Barsuco, mais uma vez retoma o período histórico anterior a data que ele afirma.

Desta forma,o “sujeito discursivo” coloca o seu enunciado de forma dialógica não apenas com

as suas memórias e com a responsividade ideológica da linguagem, mas de modo que o “ eu acho”,

faz com o sujeito seja eximido na veracidade do seu discurso, gerando assim,

margens de dúvidas. Aqui, temos o caráter das modalidades discursivas, em que o marcador discursivo

marca o posicionamento do sujeito.

Após longo período do depoimento, o Relator mais uma vez retomao período em que

se iniciou as propinas na PETROBRAS, afirmado que estava em suas mãos a versão que foi

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 443

exposta pela mídia, e que era preciso o depoente, Sr Paulo Barusco se posicionar sobre o

assunto de forma oficial. Vejamos os fragmentosretirados do discurso.

Fragmento 4: RELATOR : Mas em relação, ainda voltando, às propinas recebidas em 97 ou

98 da empresa holandesa SBM, você reafirma que já naquele período estava

recebendo recursos ilegais dos contratas dos quais vossa senhoria fazia a

intermediação?

PEDRO BARUSCO: Não… olha… eu vou reiterar o meu depoimento…

RELATOR : Não, mas o que ocorre é o seguinte que o que temos é uma versão.

A versão não dar… porque não é um documento que chegou às nossas mãos

aqui oficialmente. É uma versão que está distribuída na mídia. A pergunta é se

você reafirma isto como verdade.

PEDRO BARUSCO : Ué, eu reafirmo. Está escrito aqui. Eu reafirmo. É a

minha versão. É a minha verdade. É o que aconteceu.

Nos fragmentos acima o Relator retoma o período que se iniciou as propinas recebidas

pelo Ex-gerente da PETOBRAS, Pedro Barusco, e afirma a necessidade de um

posicionamento oficial. O ex-gerente, por sua vez,reitera o seu depoimento, ou seja, afirma

com o seguinte fragmento “Ué, eu reafirmo. Está escrito aqui. Eu reafirmo. É a minha versão. É a

minha verdade. É o que aconteceu.”

Neste momento, da enunciação concordamos com Bakhtin, quando aborda a situação

social da enunciação, tendo vista, que mesmo havendo uma série de inconsistências em seu

discurso, que ora afirma um momento histórico, ora remota a período anteriores a era PT, o

que podemos afirmar é que essas inconsistências podem ter sido geradas ou por pressão

psicológica, causada pela própria estrutura enunciativa, em que o sujeito se sente acuado, ou

o sujeito ao tentar esquivar-se ou apontar culpados demonstra fragilidade e inconsistência nas

suas declarações, e por isso há lacunas e falhas enunciativas.

A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam

completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio interior, a estrutura

da enunciação. Na verdade, qualquer que seja a enunciação considerada [...],

é certo que ela, na sua totalidade, é socialmente dirigida. (BAKHTIN, p.

113)

Fragmento 5

PEDRO BARUSCO: Não, eu já falei, eu comecei em 97/98. Uma atitude isolada,

né? Já detalhei até onde eu poderia detalhar sob já a investigação. E a partir de 2003

e 2004, houve uma fase onde estava institucionalizada este recebimento de propina,

tá? Eu só sei isto. Eu não sei mais nada. Eu não sei dizer quem participou. Quem

participou. Quem não participou.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 444

Para finalizar a nossa análise, buscamos um fragmento em que oex-gerente , Paulo

Barusco, retoma o período anterior, a era LULA (PT) , entretanto, diz que nesse período ele

era o sujeito (ativo) no processo das propinas de maneira individual, ou seja, aqui, o depoente

inocenta o partido do PSDB, representado aqui, pelo Ex-Presidente Fernando Henrique

Cardoso, e diz que de forma institucionalizada foi apenas após o PT na Presidência.

Considerações finais

Este artigo buscou discutir a importância da interação verbal, na esfera jurídica, a

partir da óptica de Bakhtin. Compreendemos que o quão é relevante a discussão sobre

linguagem, e como esta pode alternar-se e adaptarem-se nos mais diferentes contextos sociais.

Percebemos que ao analisar o nosso corpus encontramos inúmeras vozes intra ou

extra-discursiva, concordando com o que Bakhtin vai chamar de polifonia discursiva, assim,

há duas formas de dialogismo;Em nosso corpus temos a presença de várias vozes, sejam de

cunho políticos partidários, orientações políticas-ideológicas, diálogos com a responsividade

discursiva seja no âmbito temporal, ou com os discurso que é muito mais amplo, do que o

diálogo entre face a face.

Desse modo, para este trabalho analisamos a interação verbale o dialogismo

bakhtiniano em um corpus jurídico, buscando confrontar a situação comunicativa com a

dialogicidade discursiva, tanto nos aspectos endofóricos ( intra-textual) como no exofóricos (

extra-textual), aqui neste segundo aspecto é o que procuramos nos deter, pois nele, há relações

com discursos externos, retomadas de situações etc. Aqui, o diálogo perpassa o aspecto micro,

e concebe a linguagem como um fator social, sendo capaz de “refletir” e “refratar”. Por isso,

enxergamos este trabalho com um ponto de partida para discussões posteriores, de modo que

possamos compreender o discurso jurídico não apenas como algo estático, fixo, ou formal

(como estãodisseminado), mas como um discurso, regido por regras, com estilo próprio, mas

que contempla o fenômeno discursivo da interação verbal, apontado por Bakhtin.

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MARTELOTA, Mário Eduardo. (org). Manual de linguística. 1 ed., 1 reimpressão. São

Paulo: Contexto, 2008.

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A PERSONAGEM LIA DE MELO, DO ROMANCE AS

MENINAS, DE LYGIA FAGUNDES TELLES, COMO

RESISTÊNCIA FEMININA À DITADURA MILITAR

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Caio Victor Lima Cavalcanti Leite (UPE)

Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)

Introdução

Quando se estuda a Literatura Brasileira escrita em meados das décadas de 60 e 70 do

século XX, é preciso ter consciência de que, embora ajam muitos literatos ativos, poucos

foram os que exprimiram o contexto social e político em voga no Brasil da época. As duas

décadas citadas atravessam um delicado momento no que concerne ao viés político e social,

com a instauração da ditadura civil-militar1, reverberando um sentimento de angústia por

conta da dura repressão. Essa mesma repressão atinge os movimentos artísticos que acabam

por ter sua liberdade restringida.

Foi nesse contexto que Lygia Fagundes Telles, romancista brasileira, deu vida à obra

As Meninas (1973), talvez seu romance mais emblemático. Nasce em 1973, época de forte

repressão, com o intuito (não muito explícito) de tocar nas feridas da sociedade daquele

período, entre essas, a denúncia ao regime ditatorial vigente. Trazendo três personagens

principais e femininas que personificam os perfis sociais daquele contexto, Telles enfrenta a

repressão e acaba por ser uma porta-voz, não apenas dos movimentos de contestação ao

momento político, mas também de movimentos como o Feminismo. Como diz, Candido,

o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir

a sua originalidade (que o delimita e especifica entre todos), mas alguém

desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo

profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores.

(CANDIDO, 2011, p. 84)

1 Segundo Fausto (1995), a ditadura militar surge em 1964 e vai até o ano de 1984. Considerada uma coalizão

civil-militar, implanta um novo regime político financiado pela burguesia tendo como pano de fundo as Forças

Armadas. O autoritarismo era marca do novo regime o que acabou por gerar uma grande repressão dentro das

várias camadas sociais.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 447

O presente artigo divide-se em dois tópicos, o primeiro que traz conceitos que

fundamentam a posterior análise (literatura e sociedade); o segundo que possibilita

compreender a aplicação desses conceitos no decorrer da narrativa; além da inserção de outros

conceitos (gênero e feminismo) para que se concretize a análise requerida. Dentre os autores

referidos neste trabalho, tem-se Candido (2011); Moreira Alves (1981); Pitanguy (1981);

Zinani (2013); entre outros que colaboram nas várias concepções abordadas dentro de cada

temática.

2. Literatura e sociedade

A literatura, constituindo-se como um fenômeno artístico, é classificada pela crítica

sociológica como sendo um sistema simbólico de comunicação inter-humana. Ou seja, está

presente no contexto social e acaba por falar sobre/para a sociedade. Essa relação literatura-

sociedade vem sendo desenvolvida desde os primórdios da civilização, até mesmo com a

literatura oral.

“Neste ponto, surge uma pergunta: qual a influência exercida pelo meio social sobre a

obra de arte? Digamos que ela deve ser imediatamente completada por outra: qual a

influência exercida pela obra de arte sobre o meio?” (CANDIDO, 1965, p. 24). Ao levantar

esses questionamentos, abre-se uma discussão a respeito do papel da literatura na sociedade e,

ao mesmo tempo, da forma como sociedade é transposta para a literatura.

Segundo Candido (1965) o sociólogo moderno considera que a arte “depende da ação

de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz

sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção de mundo, ou

reforçando neles o sentimento dos valores sociais.” (CANDIDO, 1965, p. 30)

Desta forma, o meio exerce uma certa influência sobre a obra, porém, nos últimos

anos, os estudos sociológicos sobre a arte têm se voltado para a obra e sua área de influência

e intersecção. Candido (1965) explicita “este dinamismo da obra, que esculpe na sociedade as

suas esferas de influência, cria o seu público, modificando o comportamento dos grupos e

definindo relações entre os homens”. (CANDIDO, 1965, p. 85)

Observando que, se dentro de um romance ficcional há a inclusão de “fatos reais”,

deve-se estar atento ao fato de que as ações ali realizadas existem e se tornam vivas a partir

do momento em que o leitor as interpreta e os correlaciona com o meio em que vive.

A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos. [...] A personagem é um

ser fictício [...] Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais

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nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através

da personagem, que é a concretização deste (CANDIDO, 2006, p. 52).

Logo, a literatura vai ser realizada a partir do momento que lida pelo público e cria

neste novas interpretações a respeito de si e da sociedade como um todo. Não é papel da

literatura falar sobre a sociedade, entretanto, ela acaba por atingir certos objetivos que

sucedem a intencionalidade do autor tornando-se, assim, a porta-voz de um determinado

grupo social que enxerga nela uma completa e importante representação.

3. A personagem Lia de Melo como representação feminina na luta contra a ditadura

militar

O romance As Meninas aborda em seu enredo o contexto político-social da ditadura

civil-militar vivenciado no Brasil em meados dos anos 70. A autora traz como representação

do perfil social da época três personagens protagonistas: Lorena Vaz, Lia de Melo e Ana

Clara. Por ter uma narrativa que oscila entre as três personagens e seus fluxos de consciência,

a autora nos faz conhecer e traçar um perfil de cada uma. Enquanto Lorena surge como

personificação da burguesia, acomodada, Ana Clara é apresentada como alguém que é mais

um reflexo do meio ao ser colocada como uma garota problemática, viciada em drogas e com

futuro duvidoso. É com a personagem Lia de Melo que percebe-se um tom de denúncia mais

direta àquele contexto político-social. Lia é estudante de Ciências Sociais e é simpatizante do

Partido Comunista, logo, ela procura denunciar a burguesia alienada e combater a repressão

causada pela ditadura. Além disso, namora um guerrilheiro que foi preso e lhe descreve

detalhes da tortura que sofreu em cárcere.

Telles faz parte de um grupo de escritores de ficção que se dedicou a denunciar o

sistema de repressão ocasionado pela ditadura. Com as várias restrições políticas, vieram

aquelas relacionadas aos livros publicados na época, logo

É interessante destacar que os dois primeiros livros a tratar da tortura tenham sido

obras de ficção, de autores já àquela época renomados. Certamente, isso se deu

pelas restrições políticas, ou seja, censura, que provavelmente seriam mais fortes em

relação aos livros de não-ficção. (MAUÉS, 2011, p. 53)

Por ter sido uma das primeiras obras a tratar da questão, As Meninas surge como

importante instrumento de análise do período ditatorial, inclusive por conter registros

detalhados do processo de tortura realizados pelos instauradores do regime,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 449

Ali interrogaram-me durante vinte e cinco horas enquanto gritavam “traidor da

pátria, traidor!” Nada me foi dado para comer ou beber durante esse tempo.

Carregaram-me em seguida para a chamada capela: a câmara de torturas. [...] Primeiro me perguntaram se eu pertencia a algum grupo político. Neguei.

Enrolaram então alguns fios em redor dos meus dedos, iniciando-se a tortura

elétrica: deram-me choques inicialmente fracos que foram se tornando cada vez

mais fortes. Depois, obrigaram-me a tirar a roupa, fiquei nu e desprotegido.

Primeiro me bateram com as mãos e em seguida com os cassetetes, principalmente

nas mãos. Molharam-me todo, para que os choques elétricos tivessem mais efeito.

Pensei que fosse então morrer (TELLES, 2009, p. 127).

Telles dá voz à personagem feminina como alguém que representa os grupos sociais

militantes da época. Entretanto, por muito tempo, a mulher foi marginalizada na literatura

ocidental. Seja ela autora, seja ela personagem. Foi apenas com o advento de movimentos que

lutam contra a opressão, como o Feminismo, que a mulher pôde ter vez e espaço nas variadas

esferas sociais.

Kolontai (2011) mostra um novo tipo de mulher, que veio se constituindo em meados

do fim do século XIX, que sofre com a pouca ou nenhuma representação na literatura.

Segundo Kolontai

A literatura evoluía, aperfeiçoava-se e seguia novos caminhos; enriquecia seus

meios de expressão com novos matizes e palavras. Mas, em compensação,

continuava obstinada em nos apresentar débeis criaturas enganadas, mulheres

abandonadas, entregues à dor, esposas ávidas de vingança, fêmeas sedutoras, [...]

(KOLONTAI, 2011, p. 64)

Com o surgimento do movimento feminista, a mulher passou a ser melhor

representada na literatura ocidental. Como Kolontai (2011) descreve, um novo tipo de mulher

surge e literatura precisou compreender isso e fazer essa inserção. Logo, o sujeito feminino

passa a ter maior espaço dentro da literatura. Já para Zinani

[...] é na literatura que se encontra o espaço da subjetividade gendrada, que

possibilita a constituição de uma posição não hegemônica pela emergência da

diversidade de discursos, situação essa que lhe confere um caráter privilegiado.

Esse mesmo caráter detém o discurso literário na relação saber e poder, uma vez

que essa modalidade de discurso possibilita a subversão e a desagregação dessas

redes pelo conteúdo emancipatório que a obra de arte carrega em si, na medida em

que desautomatiza a percepção do sujeito, promovendo a reflexão. (ZINANI,

2013, p.77)

Dito isso, percebe-se que os movimentos de cunho feminista enxergam a literatura

como aliada na propagação de suas ideias e exibição de uma nova realidade que se colocava

dentro da sociedade. Logo, ao inserir personagens femininas de comportamento inovador e, às

vezes, até transgressor em narrativas de ficção, os literatos contribuíram fortemente para uma

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renovação no repensar da sociedade. Na época em que foi lançado o romance de Telles, o

movimento feminista se renova e o sistema patriarcalista começa a dar sinais de esgotamento,

pois

A década de 1960 caracterizou-se por intensa mobilização na luta contra o

colonialismo, a discriminação racial, pelos direitos das minorias, pelas

reivindicações estudantis. [...] É neste momento histórico de contestação e de luta

que o feminismo ressurge como um movimento de massas que passa a se constituir,

a partir da década de 1970, em inegável força política com enorme potencial de

transformação social. (MOREIRA ALVES, 1998; PITANGUY, 1998, p. 58)

A personagem Lia de Melo Schultz, dentre as três personagens principais, é a única

que se aproxima da militância política na luta contra a repressão ditatorial instaurada nos fins

dos anos 60 e início dos anos 70, além de ser posta como figura feminina que representa um

novo perfil de mulher, mais consciente da sua subjetividade e lugar. No romance, um dos

presos políticos é Miguel, namorado de Lia, que, após um tempo em cárcere, é exilado para a

Argélia.

O fato de ter saído da casa dos seus pais na Bahia, cursar Ciências Sociais em São

Paulo, ser uma figura engajada politica e socialmente falando, fazem de Lia uma personagem

que representa a mulher militante que surge na década de 1970, conforme Sarti,

sem uma proposta feminista deliberada, as militantes negavam o lugar

tradicionalmente atribuído à mulher ao assumirem um comportamento sexual que

punha em questão a virgindade e a instituição do casamento, "comportando-se como

homens", pegando armas e tendo êxito neste comportamento (SARTI, 2004, p. 03).

Nas primeiras linhas do romance, observa-se uma diferenciação entre as personagens

principais, ressaltada pela personagem Lorena, que, através de seu fluxo de consciência, nos

deixa a par do que pensa a respeito de sua amiga Lia:

Lião é capaz de limpar os sapatões em você mas pense no if dos lenços: a poeira é

tão digna quanto as lágrimas. Não será uma poeira lunar, tão branquinha, tão fina a

Poeira terrestre é da pesada, principalmente essa dos sapatos da minha amiga. Mas

não se importe não, seja lenço, solto no espaço. Abriu-se leve como um para-quedas

que Lião apanha impaciente. — Você está deprimida, Lião? Angústia existencial? — Exato. Existencial. Está furiosa comigo, ai meu Pai. Mudou tanto, coitadinha. Quer dizer que Miguel

continua preso? E aquele japonês. E Gigi. E outros, estão caindo quase todos, que

loucura. E se de repente ela? Ana Clara já viu um careta meio suspeito rondando o

portão, Aninha mente demais, é lógico, mas isso pode ser verdade. Sim, Pensionato

Nossa Senhora de Fátima, nome acima de qualquer investigação. Mas quando

aparece agora nome de padre e freira no horizonte, já ficam todos de orelha em pé.

(TELLES, 2009, p.15)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 451

Nesta passagem, constata-se que a crise existencial de Lia se deva pela fuga dos

padrões estéticos estabelecidos pela sociedade à época ao usar sapatos que não eram

usualmente usados pelas mulheres. Além do fato de seu namorado ainda se encontrar recluso

nas masmorras da ditadura.

Telles deixa explícitas as diferentes personalidades e características de suas

personagens, criando um momento caracterizador do espírito engajado de Lia que se

contrapõe à natureza branda e conformada de Lorena:

Examinou meio distraidamente o livro que Lia devolvera com várias páginas

marcadas de vermelho, tinha o hábito (péssimo) de assinalar o que a interessava não

só nos próprios livros mas também nos alheios. Deteve-se no trecho indicado por

uma cruz mais veemente: A Pátria prende o homem com um vínculo sagrado. É

preciso amá-la como se ama a religião, obedecer-lhe como se obedece a Deus. É

preciso darmo-nos inteiramente a ela, tudo lhe entregar, votar-lhe tudo. É preciso

amá-la gloriosa ou obscura, próspera ou desgraçada. Obedecer à Pátria como se

obedece a Deus? estranhou Lorena. Por que Lia grifara isso? Não acreditava em

Deus, acreditava? E a Pátria para ela não era o povo? (TELLES, 2009, p.61 – grifos

da autora)

Nota-se, no trecho citado, que Lia já se apresentava como detentora de consciência

política em relação à situação em que o Brasil vivia naquele momento, pois mimetiza aqueles

que buscavam questionar a conjuntura política daquele contexto ditatorial. Já Lorena, como

fiél personificação de boa parte da burguesia, de um perfil social conformado, mostrava-se

alheia aos conhecimentos políticos que sua amiga buscava compreender. Em várias outras

passagens da obra, Lorena mostra total desinteresse na busca do entendimento do contexto

sociopolítico pelo qual seu país atravessava naquele instante.

Lia fazia parte de um grupo militante de esquerda, interagindo com personagens

secundários, que buscavam debater e criar mecanismos para enfrentar a repressão imposta

pelo regime ditatorial. Em várias passagens do romance, Lia é mostrada nas inúmeras

reuniões do grupo que aconteciam em espaços diferentes, para evitar chamar a atenção das

forças ditatoriais, além de serem anônimas e secretas, tal como no trecho que segue:

Ele puxou a cadeira. Cavalgou-a. - Fiz a mudança sozinho, todo mundo dando ordens mas só eu camelei. Isto estava

um lixo, despejei três cestos e ainda sobrou este. Até rato, [...] - Quando saí ontem

do cinema me pediram os documentos. Que medo, Rosa. Você não tem medo? Lia passou a ponta da língua na unha roída. Demorou para responder. - Perfeito. Amanhã trago uma lâmpada mais forte. E uma folhinha sem anúncio de

Coca-Coca. De onde veio esta maravilha? [...] - Putz, o pátio interno. Você sabe o

que tem aí defronte? - Uma alfaiataria, falei com o velho quando cheguei. Legal, Rosa. Está vendo aqui

embaixo a rede de arame? Em caso de emergência, dá perfeitamente pra pular e ir

andando até a janela do velhinho.

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- Que é dedo-duro da OBAN. A gente enfia a cabeça na janela e ele agarra a gente

pelo pescoço, assim - fez ela puxando Pedro pela gola do pulôver. (TELLES, 2009,

p. 109)

Fica evidente o esforço da personagem em manter-se discreta quanto às reuniões que

ocorriam naqueles espaços, além da consciência de que seu grupo poderia ser denunciado e,

consequentemente, todos poderiam ser presos. Vale salientar que Lia usa outro nome quando

em reunião com grupo, mais uma tentativa de manutenção do anônimato e autopreservação.

Durante o trecho citado, há o uso da sigla OBAN que, segundo Joffily (2008),

significa Operação Bandeirante. Foi lançado no dia 1º de julho de 1969 e tinha por objetivo

reprimir e destruir os grupos de esquerda que estavam se organizando no país. Fica explícito,

diante do exposto, que autora assume, mais uma vez, através de sua personagem, um tom de

denúncia à realidade político-social daquele momento.

Em outra passagem do romance, Lia menciona aos companheiros do grupo de

esquerda o autoritarismo, a perseguição e as torturas característicos da ditadura, tal como se

pode observar em:

Outros colecionam selos, outro coleciona gravatas e lá adiante um entra na fila do

cinema. Maurício aperta os dentes que se quebram. Não quer gritar e então aperta os

dentes quando o bastão elétrico afunda lá no fundo. No desenho animado, o gato

leva trompaço e dentes e ossos se trincam. Mas na cena seguinte já se colam e o gato

volta inteiro. Seria bom se fosse como nos desenhos, Silvinha da Flauta. Gigi.

Japona. E você, Maurício? Quando o bastão entrar mais fundo, desmaia. Desmaia

depressa, morra. Devíamos morrer, Miguel. Em sinal de protesto devíamos

simplesmente morrer. "Morreríamos se adiantasse", você disse. Lembra? Eu sei,

ninguém daria a mínima. Arrancaríamos o coração do peito, olha aqui meu sangue,

olha aqui meu coração! Mas tem um tipo ao lado engraxando os sapatos, que cor de

graxa o cavalheiro prefere? (TELLES, 2009, p.15)

Nota-se um posicionamento de convicção aos seus ideiais revolucionários. No trecho,

ela esboça um pensamento de que daria sua vida lutando por aquilo que considera ideal, em

sinal de protesto.

Lia compara o desenho animado e a dura realidade enfrentada por seus colegas,

ressaltando que as dores enfrentadas pelos personagens do mundo da ficção não são reais

como as vividas pelos seus colegas, o que lhe causa revolta e compaixão simultaneamente.

Mais uma vez, conforme citação que segue, Lia relaciona as experiências de seus

companheiros perseguidos com personagens de ficção:

Eurico continua sumido, foi preso assim que desembarcou e até agora ninguém sabe

dele. Desapareceu como personagem de ficção científica, quando o homem metálico

emite o raio e o tipo se dissolve com revólver e tudo e fica no lugar uma manchinha

de gordura. (TELLES, 2009, p. 25)

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Vivendo em um pensionato de freiras em São Paulo, Lia, assim como as outras duas

personagens principais, tem uma íntima relação com as mulheres que ali trabalham. Num

dado momento do romance, Lia, que está destinada a viajar para a Argélia em auto-exílio,

conversa com Madre Alix, com quem mantém uma certa afeição,

- Boa noite, Madre Alix. Gostei muito de conversar com a senhora. - Toma cuidado, Lia. Não quero que você sofra, toma cuidado, eu peço. - Sou forte à beça. - Não, Lia. Vocês são frágeis, filha. Você, Lorena. Quase tão frágeis quanto Ana

Clara. Haja o que houver, não deixe de me dar notícias. Conte comigo. - Vou lhe mandar meu diário, Madre Alix. Ao invés de cartas, um diário de viagem!

Ela me acompanha até a porta. - Posso lhe dar uma epígrafe? É de Gênesis, aceita? - pergunta e sorri. Sai da tua

terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei. É

o que você está fazendo - acrescentou. Hesitou um pouco: - É o que eu fiz

(TELLES, 2009, p. 128)

Observe-se que a freira demonstra respeito e compaixão pela situação da jovem, pois a

mesma, ainda que temerosa pelo futuro da jovem, mostra-se compreensiva e sugere que o

exílio pode significar algo positivo para Lia.

Lia decide sair do país após descobrir que seu namorado será exilado. Diferente dele,

ela não era uma presa política, mas seu apego por Miguel e também a opção de viver num

país com maior liberdade enchiam-lhe os olhos.

4. Considerações finais

Lygia Fagundes Telles, em As Meninas, consegue transpor com felicidade para a

narrativa ficcional o tom de denúncia ao contexto político-social vivenciado no Brasil nos

anos em que o regime ditatorial civil-militar atingia seu auge. O fato de ser uma das primeiras

narrativas de ficção a abordarem o tema da repressão de forma tão direta (o fazendo através

de depoimentos reais revestidos de ficção), já torna a obra singular. Além do fato de ser

escrito por uma mulher, que surgia como representante das novas concepções e pensamentos

a respeito do sujeito feminino naquele momento de mudanças.

A personificação da mulher engajada, da mulher militante política numa de suas

personagens fez de Telles uma das escritoras de ficção que melhor exprimiram os

acontecimentos da época. Ela trouxe aos muros da narrativa ficcional os anseios, medos,

dúvidas dos jovens militantes da época, algo muito pouco explorado pelos literatos desse

período, até então.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 454

Em suma, o romance assume, mesmo que implicitamente, um papel de denúncia que

leva o leitor à reflexão, além de servir como importante fonte histórica ao trabalhar um tema

que, até os dias atuais, é considerado polêmico e instiga discussões.

Referências

MOREIRA ALVES, Branca; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo:

Brasiliense, 2003.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5 ed.

Revista. São Paulo, Editora Nacional, 1976.

TELLES, L. F. As Meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

MAUÉS, Flamarion. Os livros de denúncia da tortura após o golpe de 1964 in Cadernos

Cedem da UNESP, vol. 2, n. 1, 2011.

SARTI, C. A. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória. Estudos

feministas. Florianópolis, n.12, p. 35-50, mai. - ago., 2004.

ZINANI, C. J. Literatura e gênero:a construção da identidade feminina. Caxias do Sul:

Editora da Universidade de Caxias do Sul, 2013.

KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e amoral sexual. São Paulo: Editora Expressão

Popular, 2011.

OLIANI, N. G. As representações da mulher em As meninas, de Lygia Fagundes Telles.

2010. 107f. Relatório (Iniciação Científica). Universidade Estadual Paulista, São Josédo Rio

Preto, 2010.

FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995.

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A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA: O DISCURSO A

FAVOR DE UMA IDENTIFICAÇÃO [Voltar para Sumário]

Camila da Silva Lucena (PPGL/UFPE)1

Situando a discussão

É comum vermos em diferentes continentes o surgimento de acordos que visam unir

os países em torno de questões culturais, econômicas ou políticas, tendo como objetivo,

principalmente, o favorecimento de seus mercados no cenário internacional. Atualmente,

dentre muitos acordos vigentes destacam-se, por exemplo, o MERCOSUL na América Latina

e na Europa, a União Europeia. Algumas dessas parcerias são favorecidas devido à

proximidade entre as nações interessadas a união, no que se refere a distintos aspectos, sendo

o espaço geográfico um deles, porém há parcerias que vão além das fronteiras dos continentes

aproximando realidades divergentes. Um exemplo desse tipo de parceria é a OEI

(Organização dos Estados Ibero-Americanos), organização da qual o Brasil participa como

membro efetivo.

Na América Latina, o que se observa é que a ideia de integração tem como discurso

legitimador a história de formação desses países, exaltando um passado em comum que os

aproxima e que favorece a união. Dentre as parcerias ou blocos econômicos dos quais o Brasil

e outros países da América Latina fazem parte, a OEI desperta interesse por ser uma união

que não é majoritariamente latina, visto que Espanha e Portugal estão entre os seus membros.

Contudo, o mesmo discurso que recupera uma memória em comum entre os países da

América Latina, também é usado para a legitimação dessa parceria, o que nos leva a

questionar, quais recortes dessa memória são atualizados ao aproximar a Ibéria do contexto

latino?

Sendo assim, entendemos que é relevante conhecer mais essa parceria. A OEI

configura-se como um organismo governamental de abrangência internacional, que tem como

1 Mestranda em linguística pela UFPE, e-mail: [email protected]

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 456

objetivo promover uma cooperação entre os países Ibero-Americanos, buscando um

desenvolvimento igual e efetivo no que se refere à educação, ciência, tecnologia e cultura. Ao

tomar a cultura como um dos princípios fundamentais para esta integração, em 2006, na

Cumbre de Jefes de Estado y Gobierno, em Montevidéu, foi aprovada a Carta Cultural Ibero-

Americana e, mais tarde, um documento de caráter político chamado Avanzar en la

construcción de un Espacio Cultural compartido. Desarrollo de la Carta Cultural

Iberoamericana (doravante Documento de desenvolvimento da carta). Este último,

desenvolve, teoriza e define metas, abrangendo o conteúdo da Carta, sendo assim, esses dois

documentos têm como objetivo favorecer a cultura da Ibero-América e criar condições para o

estabelecimento do que define como Espaço cultural Ibero-Americano, bem como do sujeito

Ibero-americano que o constitui.

Então, visando ser uma problematização inicial dessa temática2, este trabalho tem

como objetivo analisar o discurso pela integração da Ibero-América, pensando

especificamente quais sentidos são mobilizados diante da ideia de espaço cultural Ibero-

Americano observando como este discurso atua em favor de uma identificação, convidando

aos indivíduos desses países a se identificarem com essa proposta, tornando-se, pois, sujeitos

ibero-americanos. Partimos da hipótese de que essas construções apresentam o que chamamos

de discurso integracionista, que atua construindo “sentidos-outros” ao teorizar sobre o que

seria esse espaço e seu sujeito, mobilizando uma memória (COURTINE, 1999; PÊCHEUX,

1997) fragmentada e com isso apagando-se dizeres que não interessam a um discurso de

integração. Como este trabalho é uma exploração inicial, essas questões serão analisadas a

partir de um capítulo do Documento de desenvolvimento da Carta, cujo título é consolidar el

espacio cultural Iberoamericano.

Para fundamentar teoricamente este trabalho, recorremos à Análise do Discurso de

linha pecheuxtiana (AD), teoria que nos oferecerá os elementos necessários para trabalhar

com essa ideia de um imaginário (PÊCHEUX, 1997) ibero-americano, pensando teoricamente

o sujeito e os processos de identificação que o atravessam (ALTHUSSER, 1970;

INDURSKY, 2008) e como isso vai se marcando na materialidade da língua, através das

designações (GUIMARÃES, 2005), a fim de construir uma estabilização de sentidos.

2 Defino este trabalho como uma problematização inicial da minha pesquisa do mestrado, na qual me proponho a

pensar o discurso integracionista e o espaço cultural Ibero-Americano, considerando a cultura como motivadora

dos discursos pela integração da Ibero-América, a partir dos dois documentos citados acima.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 457

1. Sobre a teoria que nos sustenta

A carta cultural Ibero-Américana apresenta um discurso integracionista, que regula

toda uma série de saberes sobre o que é o Espaço Cultural Iberoamericano. Pêcheux (1997)

chama esta força que regulariza os saberes de formação discursiva e cabe a nós entender o que

seria e como funcionaria essa noção, para pensar os efeitos de sentidos possíveis a partir dela

na Carta.

Primeiramente, com a Análise do Discurso a ideia de que haja um sentido literal para

uma palavra é rechaçada. O que há, é um efeito de evidência que produz uma aparente

literalidade de sentidos para o discurso. Porém, esta evidência é o resultado do trabalho da

ideologia, que é inerente a todo processo discursivo. Segundo Orlandi (2007, p. 45), “a

evidência do sentido, que na realidade é um efeito ideológico, não nos deixa perceber seu

caráter material, a historicidade de sua construção”. Ou seja, o sentido de uma palavra é

construído ideologicamente, visto que está determinado pelas posições ideológicas nas quais

os sujeitos estão inseridos.

Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões, proposições, etc.,

mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o

que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é,

formações idológicas nas quais essas posições se inscrevem. (PÊCHEUX, 1997, p.

60)

Portanto, os sentidos, ou melhor, os efeitos de sentidos são determinados pela

formação ideológica a qual pertencem. Cada formação ideológica carrega consigo uma ou

mais formações discursivas, que são definidas como uma matriz de saberes que regulam “o

que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada numa conjuntura dada” (HAROCHE,

PÊCHEUX, HENRY, 2007, p. 26). Isto é, os sentidos mudam de acordo com a formação

discursiva na qual estejam inseridos. Não está na língua, mas sim na relação entre a língua, o

sujeito e as condições sócio-históricas e ideológicas.

Pensando na Carta Cultural Ibero-americana, este documento está fundamentado por

uma posição ideológica que defende a integração da Ibero-América. A favor dessa posição se

manifesta uma formação discursiva integracionista (doravante FD integracionista) que regula

os saberes que definem e representam na linguagem a formação ideológica correspondente.

Portanto,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 458

cada formação ideológica constitui desse modo um conjunto complexo de atitudes e

de representações que não são nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se

relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em

relação às outras. (HAROCHE, PÊCHEUX, HENRY, 2007, p. 26).

Desse modo, a FD integracionista pode ser definida a partir de alguns aspectos.

Podemos citar como exemplos: o discurso que recupera a memória das formações histórica

dos países desta região; o argumento da proximidade das línguas, dos problemas sociais e de

desenvolvimento; e o emprego da cultura como condição para o desenvolvimento social e

econômico. Com esta FD integracionista, a Carta tem como objetivo provocar uma

identificação nos indivíduos dessa região para que eles possam se reconhecer nesta posição e

a partir daí atuar efetivamente como um sujeito ibero-americano.

Então, o discurso pela integração da Ibero-América, com o objetivo de provocar uma

identificação no sujeito dessa região, tem como característica a convocação dos indivíduos

para assumirem a posição de sujeito ibero-americano, isto é, para compartilharem da FD

integracionista.3 Uma vez que assume uma posição, o sujeito estará regulado pelos saberes de

determinada formação discursiva, o que implica dizer que esses saberes determinam o que

pode e deve ser dito para ser condizente com a FD correspondente, sendo assim o discurso

não será seu e sim de um grupo ideologicamente representado. Assim que, “tal concepção

obriga Michel Pêcheux a declarar que o sujeito é ‘suscetível de esquecer’, ou seja, esse sujeito

interpreta mal ou absorve a ‘causa’ ou determinação de seu discurso, pensando ao contrário

ser seu criador, fonte e origem do sentido.” (BARONAS In BARONAS, 2007, p. 200).

Dessa forma, chegamos à noção de sujeito na AD pecheuxtiana, noção crucial para

entendermos a estratégia que a Carta cria ao convocar o indivíduo a compartilhar da FD

integracionista fazendo-o esquecer dessa anterioridade. O sujeito para AD pecheuxtiana é

constituído pela história e pela ideologia, de modo que estes dois fatores vão determinar

diretamente seu discurso. Isto é, o sujeito não é a origem do que fala, mas vive segundo essa

ilusão. Para Indursky (2008), ele é duplamente afetado:

Na constituição de sua psiquê, este sujeito é dotado de inconsciente. E, em sua

constituição social, ele é interpelado pela ideologia. É a partir deste laço entre

inconsciente e ideologia que o sujeito da Análise do Discurso se constitui. É sob o

efeito desta articulação que o sujeito da AD produz seu discurso. (2008, p. 10 -11)

3 Neste trabalho não temos como objetivo analisar se de fato ocorre ou não uma identificação. Entretanto,

procuramos entender como se funda esta estratégia, pois, de certa forma, é relevante para analisar como o sujeito

está representado, sendo esta uma questão interessante para este ou futuros trabalhos.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 459

O discurso de um sujeito, que foi interpelado ideologicamente, tem que estar inserido

segundo Pêcheux (1997) em uma formação discursiva, que representa na linguagem o

funcionamento das formações ideológicas. Então, quando o indivíduo é assujeitado

(ALTHUSSER, 1970), ou seja, quando a ideologia interpela os indivíduos em sujeitos, estes

são chamados a se identificar com determinada rede de discursos. Essa noção de sujeito

provocou e ainda provoca críticas até mesmo de outras perspectivas da Análise do Discurso.

O ponto alvo da crítica é esse assujeitamento, contribuição trazida de Althusser da obra

Aparelhos Ideológicos do Estado (1970). Muitos entendem esse assujeitamento como uma

falta de criticidade, como se o sujeito não soubesse de sua vinculação ideológica. Porém, não

é assim que entendemos. Consideramos que esse assujeitamento é inerente a todo indivíduo e

a partir dele, nosso interesse é analisar como o lugar que o sujeito ocupa na sociedade

influencia o seu dizer.

Pêcheux ainda define que “a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se

realiza pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina” (1997, p.

214). A partir dessas formulações podemos pensar na noção de identificação. Esta se

manifesta nesse movimento no qual o sujeito se cola a uma rede de discursos e então produz

sentido para o que fala. É um processo de construção do sujeito, enquanto sujeito no discurso.

A Carta Cultural Ibero-americana funciona a partir desta estratégia, de levar um

sujeito a se reconhecer ibero-americano. Assim que, partindo da FD integracionista faz uma

serie de representações do que é o Espaço Cultural ibero-americano e de como são os sujeitos

que atuam nesse espaço. Essas representações vão se marcando na materialidade da língua,

pela força do uso das designações Espaço Cultural Iberoamericano, sujeto iberoamericano e

cultura iberoamericana.

Quanto à designação, faz-se relevante defini-la em relação a outro fenômeno, o da

nomeação, tendo em vista o equívoco recorrente de tomar esses dois processos como

sinônimos. De acordo com Guimarães (2005, p. 5), a nomeação é “o funcionamento

semântico pelo qual algo recebe um nome”, isto é, pode-se dizer que a nomeação está mais

para classificar, ao determinar um nome para dado objeto. Já a designação estaria mais

voltada para significar, uma vez que, enquanto funcionamento simbólico, expressa a

significação de um nome remetida à história, ou seja, designar seria estabelecer sentidos

considerando os discursos pelos quais eles são historicamente formados.

Ao estudar a designação, entendemos que sua teorização passa pelas formulações de

Pêcheux (1997) acerca da noção de pré-construído. Ao retomar os estudos de Frege, Pêcheux

recusa a ideia de que os nomes tenham sempre uma denotação e vai reafirmar a sua posição

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 460

de que há sempre algo que pode ser dito e que se refere não a algo recuperável na estrutura de

uma formulação, mas que remete a um dizer outro que se constrói antes e independentemente

do enunciado proferido. Isto é, algo remetido à história, ao percurso do funcionamento

discursivo de determinada designação. Interessa-nos, então, a trajetória pela qual os sentidos

vão sendo construídos, refletindo sobre o porquê desse caminho, e a partir disso propor uma

compreensão fundamentada. Em seguida tentamos exemplificar um pouco como se dá esse

processo.

2. Da análise do corpus

Como apontado anteriormente, é possível perceber com esta análise inicial que na

Carta Cultural Ibero-americana predomina uma orientação discursiva, chamada por nós de FD

integracionista, que tem como objetivo regular os saberes em defesa da integração ibero-

americana. Esta FD integracionista é construída por um entrecruzamento de discursos, que

convergem ao determinarem que as semelhanças históricas, linguísticas e de desenvolvimento

social dessa região são fatores que favorecem a integração.

Centrada nessas questões, a FD integracionista representa na linguagem uma formação

ideológica (PÊCHEUX, 1997) de base econômica e cultural, a partir da qual se (re)define o

sentido de cultura, espaço y sujeito ibero-americano para este contexto. Permitindo, com isso,

o destaque de certos saberes e a exclusão de outros. Com isso, vai ser fundamental para a FD

integracionista recuperar a vinculação histórica dos países desta região. Nesse sentido, se

propõe a teorizar sobre as semelhanças que aproxima a cultura desses países como um dos

principais elementos para a integração.

SD1: Pensar que, mediante la cultura, es posible la integración de una región que

supera los seiscientos millones de habitantes forma parte de un ideal político. Al fin

y al cabo, esto solamente es posible si se parte de la configuración de un bloque

común, con memorias, tradiciones históricas, prácticas culturales y formas de

organización emparentadas y que coexisten con particularidades y diferencias.

Como aponta este fragmento da Carta, para que aconteça a integração é necessário

partir de algo em comum. A Ibero-América, então, teria um vínculo em comum que se

constitui por memorias, tradiciones históricas, prácticas culturales y formas de organización

emparentadas, que favorecem a integração. A exaltação dessas questões é constante na Carta.

Notamos, às vezes, quase um tom romântico que convida os sujeitos a compartilhar desse

ideal, para que assim percebam o “comum” que os aproxima Entretanto, observamos também

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 461

que logo este discurso pela cultura e essa romancização são substituídos por uma temática de

caráter econômico, ao expor fins e estratégias para o desenvolvimento da região.

A cultura a partir desse discurso parece ser (re)significada. Uma vez que é vista como

o resultado da vinculação histórica, também é considerada como una condición, un medio y

un fin para el desarrollo social. Isto é, mais que um elemento que tem que ser valorizado para

a preservação de uma memória, é concebida como uma ferramenta de reconhecimento e de

desenvolvimento econômico e social. Na FD integracionista presente nesse documento, é

possível afirmar essas duas faces da cultura, o que demonstra que esse é um processo que

ocorre ao mesmo tempo, colocando essas duas posições uma em função da outra.

Mais um elemento que define a FD integracionista é a referência a um Espacio

Cultural Iberoamericano, como destacamos nas SDs abaixo:

SD2: El espacio cultural es un entramado de aspiraciones comunes, redes,

bloques subregionales, sistemas de coordinación y de encuentro que, se unen en

torno a la creación, circulación y apropiación social de la cultura.

SD3: La mayor parte de la sociedad y la población iberoamericanas está compuesta

por jóvenes. Por tanto, el espacio cultural iberoamericano es un espacio de

juventud con todo lo que ello significa: dificultades laborales y proyectos

aplazados, tensiones educativas y exclusiones.

A Carta traz como um de seus objetivos a consolidação do chamado Espacio Cultural

Iberoamericano. Ao definir que este espaço é um entramado de aspiraciones comunes y

también de problemas comunes, dificultades laborales y proyectos aplazados, tensiones

educativas y exclusiones, termina criando uma homogeneização e apesar de afirmar que as

diferenças serão preservadas, isto parece não se realizar efetivamente. Porque, a partir de uma

análise inicial da Carta, entendemos que na tentativa de unificação o semelhante é valorizado,

enquanto o diferente, o minoritário é inevitavelmente esquecido.

Com isso, este Espacio Cultural Iberoamericano é construído a partir de uma

homogeneização que acaba definindo o sujeito ibero-americano e sua cultura. Outro elemento

da FD integracionista que unifica este sujeito ibero-americano a partir de uma homogeneidade

é a referência a uma herança linguística da Ibero-América:

SD4: Las lenguas son fundamentales para la existencia de un espacio

cultural común. El español cohesiona, junto con el portugués, desde hace

siglos, la existencia de una comunidad histórica, puesto que facilita la

narración, la representación y el intercambio, no solo de lo que nos es

más específicamente propio, lo que nos diferencia, sino también de aquellos

que nos acerca y no une.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 462

Além de ser representada por uma vinculação histórica, cultural e por problemas

semelhantes de desenvolvimento a Ibero-América é identificada também por uma base

linguística comum. O sujeito ibero-americano, segundo a Carta, fala português e espanhol,

línguas que geralmente são definidas como irmãs, então seriam irmãos também os países que

compõem esta região. E se isso acontece, por que não concretizar essa aparente vinculação

efetivamente? Isto é o que o documento se dedica a reforçar e cristalizar no imaginário ibero-

americano. Como sugere a Carta, estas duas línguas facilitam la narración, la representación

y el intercambio, e essas seriam condições perfeitas para uma integração.

SD5: Antes de alcanzar la integración económica y política,

Iberoamérica ha estado unida por sus lenguas, sus tradiciones comunes,

la proximidad de sus prácticas de consumo cultural y la cercanía de

expresiones artísticas que, como la música y la danza, el teatro y el cine,

forman parte de sus lazos más comunes y sentidos.

Este fragmento reforça mais uma vez os laços comuns desta região e traz um

funcionamento discursivo frequente na Carta, que é o discurso pela economia que às vezes

parece superar o discurso pela cultura. Isso representa a oscilação entre duas orientações

discurisvas: antes de alcanzar la integración económica y política, Iberoamérica ha estado

unida por sus lenguas, sus tradiciones comunes […], uma que sugere que o fato de haver

semelhanças é a razão para a união; e outra orientação que sugere que a união é conveniente e

as similitudes cooperam para essa integração. Esta oscilação se faz presente em todo texto da

Carta, apesar da tentativa de deixar apenas um espaço ao final para tratar mais

especificamente das estratégias econômicas.

Portanto, o sujeito se encontra entre duas posições que estão a favor de um mesmo

objetivo: a integração. Porém, a FD integracionista unifica essas duas questões tentando criar

um ambiente onde não haja dúvida, pois se o indivíduo é um sujeito ibero-americano faz parte

desse cenário de similitudes e compartilha também do desejo pela integração para alcançar o

desenvolvimento efetivo de seu país e região. O indivíduo é convidado enquanto sujeito a se

identificar com esta representação construída pela FD integracionista, que o coloca na posição

de ibero-americano, e uma vez nessa posição aceita tudo o que vem com a memória e história

dessa designação. Entretanto, essa memória é fragmentada apagando-se com isso dizeres que

não interessam a um FD integracionista. Essas questões, porém, serão assuntos para outros

trabalhos.

3. Considerações finais

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 463

Apesar de ser uma abordagem inicial, com este trabalho foi possível rastrear algumas

questões importantes acerca do funcionamento discursivo da Carta Cultual Ibero-americana.

Apresentamos pontos significativos que surgem com objetivo da integração de uma região tão

grande como é a Ibero-América, pontos estes que merecem uma análise mais atenciosa que

não pôde ser feita e nem era o objetivo desse trabalho.

Com a ideia de integração surge a necessidade de recuperar algo de semelhante para

provocar uma identificação no outro e servir, desse modo, de justificativa para essa proposta.

Como consequência a Ibero-América é definida como uma região de vinculações históricas,

culturais e linguísticas, além de ser jovem, e por isso também se aproxima quando se trata de

problemas de desenvolvimento. Essas questões fazem parte de uma FD integracionista que

passa a definir os saberes que devem ser recuperados e reatualizados, como também aqueles

que devem ser silenciados.

Com a FD integracionista ocorre a (res)significação de alguns saberes como a noção

de cultura, de Espaço Cultural Ibero-americano e de sujeito ibero-americano, que tomam

sentidos distintos de acordo com a formação ideológica da integração em um momento

bastante específico, no qual alguns países da região começam a ter destaque no quesito

economia. Assim que, é importante voltar o olhar para a Carta, pois este documento tem

como função servir de referência para as políticas culturais de cada país, como também

incentivar projetos compartilhados entre os países da ibero-América, buscando com isso o

desenvolvimento efetivo dessa região.

Entendemos que tais discussões nos permitiram observar a naturalização de certos

sentidos produzidos em torno desse espaço, observando uma tentativa de (re)atualização e

regulação no modo de ver e pensar a Ibero-América. Por fim, acreditamos, pois, que analisar

o modo como os países Ibero-americanos e a cultura desse grupo são representados através da

proposta de integração da OEI, nos coloca diante de discussões onde o discurso revela-se um

lugar privilegiado de análise, cabendo aos que se ocupam da linguagem compreender quais

são os mecanismos por meio dos quais se realizam tais construções.

4. Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos ideológicos de estado. Lisboa: Presença 1970.

BARONAS, Roberto Leiser. Análise do Discurso: apontamentos para uma história da noção-

conceito de formação discursiva. São Carlos: Pedro e João Eds., 2007.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 464

Desarrollo de la carta cultural iberoamericana (2006). Disponible en: <

http://www.culturasiberoamericanas.org/>. Acceso en: 21 de enero de 2014.

GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do Acontecimento: um estudo enunciativo da designação.

2 ed. São Paulo: Pontes, 2005.

HAROCHE, Claudine; PÊCHEUX, Michel; HENRY, Paul. (1971). A semântica e o corte

saussuriano: língua, linguagem, discurso. In: BARONAS, Roberto Leiser (org.). Análise do

discurso: Apontamentos para uma história da noção –conceito de formação discursiva.

INDURSKY, Freda. Unicidade, desdobramento, fragmentação: a trajetória da noção de

sujeito em Análise do Discurso. In: MITTMANN, S; GRIGOLETTO, E.; CAZARIN, E.A.

(Orgs). Práticas Discursivas e Identitárias. Porto Alegre: Nova Prova, 2008, p. 9 – 33.

_______. A memória na cena do discurso. In. INDURSKY, F. MITTMANN, S.; LEANDRO

FERREIRA, M. C. (Orgs.). Memória e história na/da Análise do Discurso. Campinas:

Mercado de Letras, 2011, p. 67-91.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas:

Pontes, 2007.

PÊCHEUX, M. (1975) Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed.

Campinas: UNICAMP, 1997.

_______. (1969). “Análise automática do discurso (AAD-69)”. In: GADET & HAK (org.).

Por uma análise automática do discurso. 3ª ed., Campinas: Ed. da Unicamp, 1997.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 465

AS MISSIVAS DA IMPRENSA NORTISTA: RETRATOS

LITERÁRIOS DA SECA [Voltar para Sumário]

Camila M. Burgardt (UFPB)

A cultura epistolar, por muito tempo, foi o principal modo de se comunicar a distância.

Mas essa escrita tão necessária deveria ter suas próprias regras que seriam do conhecimento

de quem precisava escrevê-las, apesar de ser uma escrita restrita aos letrados, para que seu

entendimento fosse, na medida do possível, claro. Alguns desses escritos eram tão

especializados, refinados e esteticamente tão bem feitos que se tornaram modelos para uma

escrita, por excelência, dos ‘homens de letras’.

Segundo Barbosa (2011, p. 332), essa escrita regrada por normas de escrita

antiguíssimas baseadas na oratória e na retórica é “um dos gêneros fundadores da escrita em

jornais e periódicos”, assim, mais do que arquivos de textos, as epístolas constituem um meio

privilegiado de acesso a atitudes e representações do sujeito, modelado enquanto um gênero

literário. Assim, também devido à diversidade de temas abordados Malatian (2009) afirma

que as epístolas assumiram uma dimensão educativa, sendo utilizadas na formação dos jovens

devido ao seu caráter instrutivo.

Como vimos, a eleição das cartas publicadas na imprensa nortista deve-se ao fato de

que percebemos que no século XIX a literatura epistolar presente nos periódicos selecionados

construíram as imagens da seca que, mesmo nos dias atuais, povoam os mais diversos tipos de

composições, tais como os romances e as artes em geral, como a produção de quadros ou

filmes. As cartas pertenciam a uma tradição retórica clássica, um gênero com prescrições

seculares que lhe são inerentes e que, no Brasil, foi amplamente difundido por meio de

manuais retóricos e de civilidade até fins do século XIX, como, por exemplo, o Secretário

Português, ou método de escrever cartas, de Francisco José Freire, publicado pela primeira

vez em 1745 e que teve inúmeras reedições, também tido como o segundo livro mais presente

em inventários e testamentos do Brasil Colonial (ARAÚJO, 1999).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 466

Um manual de civilidade muito conhecido é o Código do Bom-tom ou regras de

civilidade e bem viver no século XIX, de José Inácio Roquette (1997), publicado em 1845 e

que conta com um capítulo que trata somente das epístolas – “Das cartas”. Segundo Barbosa

(2011b, p. 02) em seu estudo sobre a adaptação de livros no século XIX, os autores

“Desconhecendo a ideia de originalidade, [...] se pautavam pela cópia, compilação, extração e

adaptação de autores e títulos consagrados, que são atualizados tanto pelas formas editoriais

como pela comunidade de leitores que deles se apropriam.” Assim, um ano depois, o padre

Roquette transformou o capítulo “Das cartas” em um compêndio epistolar que, em sua

terceira edição, apresentava-se como o Novo Secretario Português ou Código Epistolar, de

1860.

Podemos perceber com Barbosa (2011; 2011a; 2011b), que a produção dos manuais

epistolares esteve articulada a um projeto mais amplo de práticas de civilidade, através de

estratégias textuais e práticas epistolares que, desempenhando funções tão variadas quanto às

motivações que a geraram, longe de refletirem o que de fato aconteceu, demandam esforço

interpretativo. E, ao oferecerem os mais variados modelos de cartas para todas as

circunstâncias, os manuais epistolares retratam maneiras de narrar e imaginar o passado,

expressando um modo de escrita, ratificando modelos normativos e estéticos.

Assim, compreender as diferentes práticas de escrita e leitura, seus múltiplos usos,

funções e formas em que foram expressos e os modos pelos quais foram revelados nos diz

muito sobre o que mudou no mundo da escrita ao longo do tempo, bem como os diferentes

comportamentos associados à vida cotidiana, as mudanças que a escrita tem para aqueles que

a usam e as diferentes formas de apropriação dos escritos. Logo, como bem afirma Pécora:

Compreender adequadamente os efeitos propiciados por determinado gênero letrado,

aqui, significa determinar as marcas temporais desses efeitos, pois estes não são

permanentes, no sentido de funcionar em qualquer período histórico, nem

demonstram a mesma qualidade, do ponto de vista da variedade de recursos

utilizados, da intensidade do impacto afetivo produzido ou da posição relativa no

conjunto dos empregos de mesmo gênero. (PÉCORA, 2001, p. 15-16, grifos do

autor)

Assim, ao pensarmos nos escritos sobre a seca de 1877-79, por exemplo, também

pensamos, em grande medida, nos periódicos do século XIX e mergulhamos numa série de

textos inerentes àquela época, alguns já esquecidos da história da literatura, que compõe o

suporte jornal, com seus mais variados gêneros textuais.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 467

Os jornais do Norte, provavelmente, foram os primeiros a publicarem as notícias da

seca e de suas mais diversas consequências à vida cotidiana dos sertanejos1, constituindo-se

no grande elaborador dos discursos que temos atualmente sobre esse fenômeno climático, pois

nesse período, 1877-79, todos os jornais aos quais tivemos acesso2, de uma maneira ou de

outra, da simples nota embutida nas notícias gerais de uma localidade ao principal tema

abordado por um poema, carta de notícias, incendiária, panfletária ou mesmo de caráter

político, observamos os diversos modos de se tratar a questão da seca, principalmente como

um objeto político com suas variadas consequências.

Nos jornais, observamos que a seca e suas implicações servem de pretexto para, por

exemplo, atacar o atual governante, enquanto um periódico de oposição ao regime vigente,

nesse sentido é interessante notar a atuação do periódico cearense conservador Pedro II. A

administração conservadora acaba no governo do Conselheiro João José Ferreira de Aguiar,

em 21/02/1878, e a administração liberal começa com o presidente de província Dr. José Júlio

de Albuquerque e Barros, em 08/03/1878. Nossa análise na fonte começa no dia 03/01/1878 e

até fins do mês de fevereiro o jornal trata a questão da seca como algo natural, no qual o

governo está se empenhando em tudo oferecer aos flagelados, a partir de então percebemos

que a situação dos flagelados e retirantes piora drasticamente, como notamos no trecho de

carta que segue:

Aquiraz. O estado atual d’esta vila é digno de dó! O povo está morrendo á fome! Os

emigrantes passam cotidianamente aos centos para essa capital, tão faltos de forças

para caminharem, que já alguns aqui tem morrido! Não há um punhado de farinha

do governo que se dê a estes famintos, para aliviar a 67 fome de jejum de 2, 3 dias,

que trazem do Aracaty a esta vila! A caridade particular já não pode acudir a tantos,

que pedem pão! Mísero povo! Deus nos acuda.

Dizem aqui que alguns liberais, mal intencionados, desta vila, mandaram ao

diretório liberal da capital uma lista das pessoas, que deveriam ocupar os cargos de

autoridades policiais, entrando nela o nome de um tal Alfredo M. de S. Leão para

delegado, ou 1º supplente do mesmo; além da seca, e moléstias que acabrunhão o

povo Aquirense, não nos podia vir maior mal maior! O tal de Alfredo não só é bem

conhecido aqui, como na capital, e em todas as partes, por onde tem andado; sem

habilitação alguma, sem predicado que o recomende, sem saber bem ler e escrever,

como se poderá ver na secretaria do governo, quando lá esteve engajado, pouco

tempo, que inutilizou alguns registros; diz em toda a parte, que logo, que chegar sua

nomeação, se há de vingar e perseguir a estes, e aqueles, uns por não lhe querer

prestar dinheiro, outros por reprovarem seus disturbios e desatinos etc.; pedimos,

portanto, ao justo administrador, que por sua ilustração e moralidade não consinta

em tal nomeação, podendo ser nomeado, qualquer liberal que gose de alguma

consideração, respeito e moralidade neste lugar, e não a um homem que não serve

nem para inspector de quarteirão.

1 O termo é entendido aqui no seu sentido mais amplo em que, exceto o litoral, todo o restante da província na

década de 1870 era considerado sertão. 2 Os jornais cearenses A Liberdade (1877); Eco do Povo (1879); O Cearense (1879); O Retirante (1877); Pedro

II (1878); e o jornal paraibano A Opinião (1877).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 468

Este mesmo pretendente já foi demitido, por incapaz, de alferes do corpo de polícia,

e de adido a secretaria do governo.

Apontaremos aqui liberais dignos de ocupar semelhante cargo, por gozarem de

estima e consideração – Os Srs. Jose Pereira Façanha, Alcides Brazil de Mattos,

Simões Branquinho, Dr. José Ladisláo e João Alves de Carvalho, que prestou bons

serviços na secretaria do governo, onde S. S. o Dr. José Julio foi secretario, e outros

que tambem gozam de bons predicados; esperamos, pois, que o Exm Sr. Dr. José

Julio, escrupuloso e moralizado como é, não nos dará aqui mais este flagelo.

Aquiraz 27 de fevereiro de 1878.

O Justo. (PEDRO II, 24/02/1878, n.16, p. 04)

Esta missiva foi publicada na Coluna “A Pedido” do jornal Pedro II, uma carta

política que é classificada como carta moral e de conselhos, ou exortatórias, com o intuito de

convencer e/ou aconselhar, mas quando essas sugestões não são consideradas elas acabam

sendo escritas “no ardor impetuoso de sua paixão, arrebatado pela violência de seus

movimentos; quando chamado por outros assuntos de sua consideração, não tem o tempo

suficiente para refletir sobre o que lhe aconselha, ou enfim se estes chegam depois que

inutilmente os há dado outra pessoa.” (ROQUETTE, 1860, p. 29).

Na carta, o leitor-escritor compara os males da seca com a nomeação do Alfredo M. de

S. Leão, para isso usa de alguns recursos para qualificá-la, como o uso das exclamações, o

enunciado pictórico “Não há um punhado de farinha do governo que se dê a estes famintos”,

altamente imagético; e de outros recursos para desqualificar Alfredo, como o uso do

pleonasmo “... maior mal maior!”, o uso repetitivo do conectivo “sem” na apresentação das

características, bem como na enumeração gradativa dos atributos negativos do sujeito. Na

tentativa de convencer o grande público e mesmo o presidente da província, o destinatário

implícito da carta, de que a nomeação do Sr. Alfredo seria uma espécie de “flagelo” para a

região e, ao mesmo tempo, de aconselhar o presidente da província, o Sr. José Julio, de que há

outros “... liberais dignos de ocupar semelhante cargo, por gozarem de estima e consideração”

(PEDRO II, 24/02/1878, n.16, p. 04). Para corroborar com o objetivo da carta o leitor-escritor

confere alguns predicados ao presidente da província como – justo administrador, ilustrado,

escrupuloso e moralizado – também com o intuito de reforçar a mensagem, pois seria um

paradoxo um presidente com esses predicados nomear um sujeito como Alfredo para um

cargo de autoridade policial.

A missiva é assinada pelo pseudônimo “O Justo” e dá início a uma série de cartas que,

ligadas ao tema da seca somam um total de vinte epístolas de denúncia contra a gestão do

presidente da província e da corrupção do governo vigente, na pessoa do Sr. Dr. José Júlio de

Albuquerque e Barros, Barão de Sobral, questionando a administração pública em vários

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 469

aspectos. Esse pseudônimo específico – O Justo – ou seja, aquele que procede com justiça,

também funciona como um argumento retórico em favor da mensagem do leitor-escritor.

O trecho que segue é de uma carta publicada na coluna “A Pedido” do jornal Pedro II,

com o título “Ao Exmo. Sr. Presidente da província”, mais uma vez o leitor-escritor da

missiva trabalha com o objetivo de sensibilizar o leitor e estabelecer certos efeitos de sentido:

Os socorros públicos que até então se distribuíam n’esta cidade, e que bem ou mal

iam mantendo a vida de tantos infelizes, embora famintos e nus, cessaram e desde

então para cá as calçadas das ruas que serviam para o trânsito público,

transformaram-se em leito de dor dos infelizes famintos, que ao exalarem o último

suspiro, preferem um bocado a voz santa do sacerdote lembrando-lhes o nome Deus!

O número de mortos nas calçadas, becos e estradas já sobe a trinta por dia, sendo

que já se encontram cadáveres dispersos pelos campos em estado de putrefação, sem

que uma alma caridosa lhes dê uma sepultura!

É um horror! A miséria tem atingido ao desespero n’esta época de calamidade, tem

varrido dos corações humanos seus mais sagrados sentimentos – amizade, dever e

gratidão não ha mais quem os revele, tudo extinguiu-se; os maridos abandonam suas

mulheres, os pais, os filhos, estes a aqueles, os irmãos uns aos outros, tudo isto pela

fome, e em cada ângulo d’esta cidade encontram-se infelizes abandonados, aqui um

morto, ali um agonizando, sempre o mesmo quadro! (PEDRO II, 22/03/1878, n.22,

p. 03)

A princípio o autor afirma que a ajuda antes chegava e não chega mais a localidade e

para marcar as consequências da falta de alimentos usa de construções imagéticas para chocar

o leitor e culpar a administração pública como em “famintos e nus”. Ao mesmo tempo, a

composição mostra-se poética e abstrata: “transformaram-se em leito de dor dos infelizes

famintos”; “que ao exalarem o último suspiro”; “tem varrido dos corações humanos seus mais

sagrados sentimentos”. Metaforicamente as ruas transformam-se em hospitais e abrigos para

os necessitados e os mortos são banalizados e tratados como animais que perecem a vista sem

serem socorridos. Imagens que impactam a sensibilidade, com sua força comovente e

evocativa, devido ao seu caráter enfático, contundente e direto.

A hipérbole, cujo significado figurado é bem maior ou menor que o próprio, não se

apresenta com o intuito de enganar – já se encontram cadáveres dispersos pelos campos em

estado de putrefação (PEDRO II, 22/03/1878, n.22, p. 03) -, mas de levar a própria verdade, e

de fixar, através do que ela diz de estranho, aquilo em que é realmente preciso acreditar

(RICOEUR, 2000).

As consequências da seca transformam as pessoas em seres desprovidos de valor,

aquilo que nos distingue dos animais irracionais, assim “os maridos abandonam suas

mulheres, os pais, os filhos, estes a aqueles, os irmãos uns aos outros” (PEDRO II,

22/03/1878, n.22, p. 03). Essa linguagem que parece simples, natural e clara afirma que a

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 470

seca, naquele momento, era falar de seres humanos que se portavam como animais, mas não

mostrando uma relação evidente de causa e efeito, justo pelo uso de uma escrita trabalhada e

portadora de efeitos de sentidos que procuravam fixar na memória uma história regular e

repetitiva – “sempre o mesmo quadro!” (PEDRO II, 22/03/1878, n.22, p. 03).

A missiva política termina com o seguinte pedido: “Longe de mim o pensamento de

fazer uma insinuação a V. Exc. para o triste estado de meus infelizes conterrâneos, que já

nadam com a morte estampada no rosto, e pedir a V. Exc. que se condoa d’eles dando as

providências que o caso exige. Creia V. Exc. no que venho te dizer.”. É assinada por “L.

Cabral”, e atualmente um nome desconhecido, mas com esse sobrenome era provavelmente

conhecido entre o próprio grupo político e assim demarcava uma posição entre os seus

companheiros de partido.

Outra implicação para se tratar da seca é a corrupção dos agentes nomeados para a

distribuição de socorros, ou seja, dos gêneros alimentícios enviados, pelo governo, aos

flagelados. A denúncia de roubos por parte dos comissários da seca ou o pedido de

restauração da honra e explicações com relação aos víveres são constantes. O periódico Eco

do Povo fez tremenda guerra aos comissários, veremos mais detalhadamente a seguir, mesmo

tendo vindo à luz já no fim da seca, 24/06/1879, publicando muitas matérias e cartas

denunciando a corrupção e o mau uso dos alimentos enviados pelo governo, como podemos

observar na notícia e na carta que segue:

Mortos á fome. – Morreram de fome, dentro do abarracamento do 1.º distrito, d’esta

cidade: José Joaquim Vem-vem, casado, natural da Telha, Maria Filomena, solteira,

natural do Icó, Joana Batista de Oliveira, viúva, natural da Telha, e Henriqueta

Maria de Jesus, solteira, natural do Limoeiro!!!

É vergonhoso registrar-se hoje óbitos d’esta ordem, quando se gasta rios de ouro e

os armazéns do governo se acham recheados de víveres!!

Chamamos a atenção do Sr. Dr. José Júlio, para um fato tão sério quanto grave.

(ECO DO POVO, 16/07/1879, n.04, p. 03)

Aos comissários do Aracati.

Os emigrantes d’esta cidade para que os seus ecos se ergam mais alto, vem por meio

da imprensa perguntar inofensivamente aos Srs. comissários Drs. Francisco

Fernandes Vieira e Antônio Gomes Tavares, qual a razão de fazer essa comissão

maiores despesas e deixando a morrer a fome, ao passo que a ulterior gastava menos

e de nós cuidava mais?

Responda-nos.

Aracati, 27 de setembro de 1879.

Os emigrantes. (ECO DO POVO, 18/10/1879, n.13, p. 06)

A primeira citação, uma notícia, informa a respeito de mortes ocorridas no

abarracamento, lugar onde se reuniam os necessitados em busca de abrigo e alimentos do

governo e, ao mesmo tempo, questiona a distribuição de víveres por parte dos comissários,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 471

clamando a atenção do presidente da província numa denúncia que espera ser apreciada e

investigada. Já na segunda parte, uma carta publicada na coluna “A Pedido”, também

questiona os procedimentos de determinados comissários, comparando-a a anterior e

intimando-a a responder também pelo jornal, numa tentativa de coagir os comissários.

Ambas as composições, a notícia e a carta, colocam em evidência a morte de pessoas

devido à fome e eram muito comuns nos jornais, como podemos observar em alguns

exemplos: “Até hoje ainda não tivemos a mais pequena chuva, e o pobre povo já começa a

morrer á fome.” (A LIBERDADE, 08/03/1877, n. 19; p. 02-3); “Já cinco pessoas foram

arrebatadas pela voracidade da fome!!...” (O RETIRANTE, 16/09/1877, n. 13; p. 02); “O

morticínio ocasionado pela fome, continua; sepulta-se diariamente no cemitério publico, nas

estradas e até nos cemitérios onde sepultaram-se em 1862 os coléricos, de 18 a 30 pessoas!”

(PEDRO II, 02/02/1878, n. 10; p. 03); “Há pais que por sua miséria tem abandonado seus

filhos, de sorte que as ruas vivem cheias de meninos e meninas no estado mais pungente que

se pode imaginar. Há mulheres que vivem nuas e morrendo á fome!!” (A OPINIÃO,

01/11/1877, n. 53; p. 02-3).

A violência da fome e de suas consequências no corpo humano são explorados em

seus mínimos detalhes de modo a causar o maior impacto possível no grande público, a

notícia do Eco do povo coloca lado a lado duas descrições bem diferentes – a de mortos e de

um armazém “recheado de víveres” -, esses enunciados são pictóricos, uma vez que se

prestam a ser representados visualmente, com detalhes significativos que colocam em

evidência dois lados opostos – a dos necessitados e daqueles que podem ajudar, mas não o

fazem. Assim, mesmo em uma notícia, verificamos que o editor usa da palavra trabalhada,

como na metáfora “quando se gasta rios de ouro” (ECO DO POVO, 16/07/1879, n.04, p. 03),

que também podemos considerar pictórica, pois gera a imediata produção de imagens que

enriquecem a mensagem e produzem maiores efeitos de sentido sobre os leitores.

Esse e os exemplos de cartas vistos anteriormente revelam o poder enfático da palavra

escrita em seus detalhes significativos, como no uso do ponto de exclamação, apropriado na

identificação de sentimentos fortes, com a função de representar, na escrita, a entonação de

exclamação de um enunciado, o que confere mais sentidos a composição.

O artifício retórico utilizado pelo autor da missiva é o anonimato, com o uso do

pseudônimo “Os emigrantes”, o que garante a liberdade de expressão e, nesse caso, o escrito

ganha uma dimensão coletiva de cobrança dos poderes públicos, uma vez que coloca a

pergunta na boca do povo de modo informal e a questão de autoria perde a importância, pois a

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quantidade de emigrantes era grande e mesmo as pessoas de posses costumavam migrar para

as grandes cidades. A identificação dos autores das cartas não é um trabalho fácil, pois:

Uma das razões, a mais óbvia talvez, diz respeito à necessidade de proteção, seja da

autoridade, seja da reputação, ou até mesmo, no caso das mulheres, de algum pai ou

marido ciumento. Por isso o uso mais sistemático do artifício encontra-se em

escritos amorosos, políticos, em debates e contendas pessoais. (BARBOSA, 2007,

p.33)

Ao mesmo tempo, o uso do pseudônimo como uma regularidade prática e discursiva,

pelo seu uso sistemático, também pode ser compreendido como sendo o suporte jornal o

responsável pela credibilidade e confiança naquilo que é publicado, pois ainda de acordo com

Barbosa (2011a, p. 272) “os pseudônimos dos periódicos brasileiros traduzem com bastante

propriedade a posição destes em relação ao presente histórico, aos acontecimentos políticos e

sociais, bem como a linha do jornal”.

Nas cartas do periódico A opinião, com relação às missivas sobre a seca, encontramos

os pseudônimos “L.”, “Justus” e “O Sertanejo”. As outras cartas desse tema são extratos

geralmente apresentados como sendo de “um amigo”, o que, como vimos, também confere

credibilidade ao escrito. Já no jornal O cearense, contamos três pseudônimos: “Um

Observador”, “Um pacatubano” e “Um lancheiro”. No Eco do Povo, temos “Um

pernambucano”, “M. F.”, “Os emigrantes”, “Um do povo”, “Lelê”, “Um vigia da estação”,

“A.”, “Um emigrante de Arronches”, “O sentinela”, “Malacaba”, “Os retirantes”, “Os amigos

do povo”.

Segundo Carvalho (2012), o Brasil passava por um intenso momento de construção da

nacionalidade, em que cabia a elite brasileira a tarefa de construir o novo Estado, nesse

momento a imprensa funcionava como uma espécie de arena política, uma vez que a grande

maioria das folhas era vinculada a partidos ou políticos. Desse modo, o uso desses

pseudônimos, marcadamente populares, conferiam determinadas características a esses jornais

e, consequentemente, ao programa político ao qual o periódico era associado, o que surgia

como uma prerrogativa da preocupação do partido com o povo, embora naquele momento o

país não possuía um povo no sentido de povo político.

Também podemos perceber que o uso dos pseudônimos manifesta-se como um

artifício retórico, segundo Lausberg (2004), como uma das estratégias da dissimulation, que

se apresenta de muitos modos, pois a probabilidade de uma carta ter sido escrita, de fato, por

algum emigrante é a mesma de ter sido escrita, por exemplo, pelo editor do jornal. Podemos

perceber uma aparente unidade nos pseudônimos acima apresentados, uma vez que as cartas

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 473

da seca são, geralmente, de notícias sobre as consequências da seca com pedidos de ajuda.

Notamos que os autores conferem uma nova configuração aos seus escritos através dessas

assinaturas, estabelecendo um lugar – a posição de retirante, de uma pessoa do povo, e, por

consequência, daquele que necessita da ajuda governamental; instituindo um grupo – os

emigrantes, os retirantes; e, por fim, dando voz a essas pessoas que, de modo geral, estão

abandonadas.

As cartas e matérias dos jornais sobre a seca de 1877-79, clivadas pelo olhar tanto dos

editores quanto dos leitores-escritores dos periódicos, que “... descrevem a sociedade tal como

pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” (CHARTIER, 2002, p. 19), produziram

diversos sentidos com os mais diferentes objetivos, principalmente políticos, econômicos e

sociais. Desse modo, estudar as cartas em sua estrutura narrativa acarreta conhecer suas partes

discursivas, considerando seus significados, buscando sua temática, objetivos, impactos,

sentidos, entre outros aspectos.

Entender as cartas sobre a seca em seus mais diversos desdobramentos como a questão

da falta de água, de gêneros alimentícios e das epidemias decorrentes dessas carências, bem

como a questão dos retirantes e da violência, em parte na busca da sobrevivência do mais

forte, apenas como documentos informativos desprezando seus conceitos teóricos seculares é

muito crítico, pois deixa de se levar em consideração uma série de elementos fundamentais

para a compreensão de um discurso historicamente datado, que deve estar ciente dos “[...]

contrastes no campo da linguagem, dos estilos de pensar, dos modos de discurso, das práticas

retóricas.” (CARVALHO, 2000, p. 127)

Mas, de acordo com Silva (2009), a tendência de nossa crítica é a de relegar a carta

simplesmente para o campo da informação, não a identificando como um gênero, mas como

uma impressão dos acontecimentos, um testemunho ambíguo e controverso da história e não

como uma operação que busca compreender “como a relação entre um lugar (um

recrutamento, um meio, uma profissão, etc), procedimentos de análise (uma disciplina) e a

construção de um texto (uma literatura)”, devem estar atrelados ao presente de sua

enunciação, numa “combinação de um lugar social, de práticas científicas e de uma escrita”.

(CERTEAU, 2006, p. 66, grifos do autor)

Pécora, no prefácio do livro A arte de escrever cartas, de Emerson Tin (2005), afirma

que a compreensão das cartas como mera fonte de informação é mentirosa, pois desconsidera

as disposições que tomam os

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 474

[...] documentos epistolares, muitas vezes lidos ainda ingenuamente como

informação direta neutra, de conteúdo denotativo e referencial simples, como se as

prescrições de gênero, algumas delas seculares, fossem apenas transparências frágeis

facilmente penetradas pelo olhar superior do crítico contemporâneo. Nada mais

enganoso. (PÉCORA in TIN, 2005, p. 12)

Assim, não podemos pensar numa pretensa naturalidade e simplicidade da escrita

epistolar, como se ela não fosse carregada de uma teia de significados em que a própria forma

estrutural da missiva não seja significativa de sentidos, que excedem seu aspecto visual, e

culminam em conteúdos definidos historicamente através de sua retórica.

Considerações

As cartas analisadas e observadas nas nossas fontes – os jornais acima mencionados -

apresentam modificações daquelas prescritas pelos manuais, desenvolvendo novos padrões de

escrita epistolar, que começam a se delinear por se encontrarem neste suporte em específico.

Mesmo assim, segundo Barbosa (2011a, p. 277) “as regras da retórica, entre elas a da escrita

epistolar como atividade regrada e artificial, que prevê um auditório, não está totalmente fora

de propósito e permanece, com mudanças próprias aos gêneros, nos periódicos.”.

Desse modo, graças ao caráter mutável do gênero dinâmico e versátil que eram as

epístolas nas mais diferentes situações e contextos, podemos observar nos periódicos como

essa escrita moldou-se as necessidades de uma época, selando um comprometimento da

linguagem das folhas com o presente de sua enunciação, bem como com sua comunidade de

leitores, por meio dos artifícios retóricos e da linguagem figurada como um modo de escrever

e de se ler de uma época no suporte jornal.

Nesse sentido, o próprio tema da seca tornou-se, a partir do fenômeno de 1877, um

grande tema, uma Tópica retórica que, segundo Barthes (1985), é uma reserva de estereótipos,

de temas consagrados, colocando-se como tema obrigatório, acompanhado de um tratamento

fixo, do mesmo modo que a Tópica da paisagem ideal, devendo da mesma maneira basear as

provas na natureza do lugar em que se passara a ação e “[...] a paisagem destaca-se do lugar

[...] a paisagem é o signo cultural da Natureza.”, tornando-se um tema reificado. (BARTHES,

1985, p. 69)

A seca também serviu de tema para se discutir ou se levantar uma série de outras

questões ligadas a esse momento específico, como o caso das comissões de socorros públicos,

que lidavam diretamente com o que era enviado pela ajuda governamental – alimentos e

dinheiros, por exemplo. O fenômeno climático também serviu de base para a criação de um

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 475

periódico específico – O retirante, que se dizia um órgão em benefício das vítimas da seca.

Mas o discurso epistolar sobre esse fenômeno não é heterogêneo, pelo contrário, esse discurso

é múltiplo, complexo, controverso e, por essa razão, é na dispersão das regularidades práticas

dessa escrita que a invenção da seca no século XIX obteve sucesso.

Referências

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 477

O REGRESSO AO PASSADO E AS RAÍZES MÍTICAS NA

OBRA O SÉTIMO JURAMENTO [Voltar para Sumário]

Camilla Rodrigues Protetor (UPE)

Amara Cristina de Silva e Barros Botelho (UPE)

Introdução

O sol brilha e despeja seus raios ardentes sobre nós,

A lua surge e sua glória.

A chuva cairá novamente e novamente o sol brilhará,

E por sobre tudo passam os olhos de Deus.

Nada escapa a Sua Vista.

(canção tradicional dos Iorubás.)1

O presente artigo tem como um dos objetivos a apresentar o macro projeto intitulado:

Gênero, identidade e a expressão do saber feminino no regresso aos mitos na obra

moçambicana O Sétimo Juramento, desenvolvido no Grupo de Pesquisa – Centro de Estudos

Linguísticos e literários da UPE.

Neste trabalho tem-se a pretensão do estudo do mito enquanto retorno as raízes

culturais e religiosas de Moçambique, analisados através dos personagens principais e dos

ritos de passagem que se entrelaçam junto ao enredo.

Sem que seja possível uma dissociação entre oralidade, escrita, identidade e mito com

a cultura e religião local, pois esses fatores se interdependem, o presente artigo fará um

sincretismo destes tópicos. Os escritores se valem de uma língua privilegiada, neste caso o

português, para mostrarem a cultura que muitas vezes é marginalizada.

A preferência por destacar a tradição oral no romance, que traz em si lendas, mitos e

contos como marcas, levantam também a questão da identidade e cultura moçambicana. Estes

1 Canção encontrada em Davis (2015, p. 546-547) in: DAVIS, Kenneth C. A Origem da África: Os Mitos da

África Subsaariana. In:______.Tudo o que precisamos saber, mas nunca aprendemos sobre mitologia. 1ª ed.

Rio de Janeiro: DIFEL, 2015. p. 535- 578.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 478

mitos fazem uma analogia com os problemas sociais presentes nesta sociedade, que Chiziane

(2008) ousou destacar.

No que diz respeito à identidade e mito, são pontos onde estão apregoados os

costumes da localidade, logo, vale salientar que religião e cultura entram como forma análoga

a observação de tais fatores.

Observando a convergência dos pontos citados, com ênfase na analise mítica, será

dissertado acerca das designações que regem as teorias desses pontos – oralidade, escrita,

identidade, mito, cultura e religião.

Será feita uma observação sucinta acerca do contexto histórico, referente a pratica

romanesca e social de Moçambique, da prática escrita e sua íntima relação com a oralidade e a

identidade deste país, onde religião e cultura se condensam.

Os teóricos utilizados como base para identidade, cultura, escrita, oralidade e mito são

Eliade (1972), Duarte (2012), Leite (2012), Appiah (1997). Outros como Armstrong (2005) e

Rosário (2010) darão apoio e complementaram as demais teorias.

2. Contexto histórico-social moçambicano e O Sétimo Juramento

Considerando a variabilidade da cultura étnica africana, é de suma importância um

estudo acerca das obras literárias desse território. O continente africano tardiamente veio a

adquirir sua independência colonial, em decorrência disso, sua literatura sofre grande

influência de outras línguas, mas possui o caráter único, em relação a outras literaturas,

devido ao envolvimento com as raízes ali presentes. A recente atividade romanesca aos

poucos vem ganhando força e notoriedade.

A obra aqui tratada faz parte da literatura feminina moçambicana – O Sétimo

Juramento – foi escrita por Paulina Chiziane (2008), considerada a primeira mulher negra e

moçambicana a escrever e ter reconhecimento nacional como romancista.

A narrativa retrata uma Moçambique inquietada pelos males do pós-colonialismo na

qual os vitimados são os proletários moradores dos subúrbios. Em sua maioria, as obras

escritas por Paulina Chiziane revelam problemas sociais envolvendo arduamente a imagem

feminina. Em O Sétimo Juramento, a autora apresenta uma família burguesa vítima da

feitiçaria. No romance, cabe as personagens femininas o desempenho de papéis decisivos para

o desfecho da narrativa. Entrelaçadas pelos mitos e presas as raízes do passado, as

personagens transitam entre o sagrado e o profano, entre o real e o mítico.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 479

No século passado, Appiah (1997) concluiu que as composições africanas eram um

campo novo e pouco explorado, logo se tratava de uma literatura em desenvolvimento. Ele

ressalta que o processo de identidade não está solidamente composto, mas está se

desencadeando para a formação, desta forma, se observados numa perspectiva visionária, os

escritores africanos exercem forte influência para formulação e aceitação de uma identidade,

vale salientar, que para ele, os escritores estão “entre a busca do eu e a busca de uma cultura.”

(APPIAH, 1997, p. 113)

O desempenho da romanesca moçambicana está ligado à oralidade, recurso este que

está intimo e indissociável da cultura e da identidade deste território. A influência da cultura

ocidental é uma grande marca de interferência cultural, pode se dizer que a escolha da língua

do colonizador tornou-se a mesma do campo literário devido ao seu prestígio e a oralidade é

marca forte no romance por trazer em si o resgate às raízes nacionais. Sendo assim, “Cresce a

consciência de que a preservação do pluralismo cultural é a única forma de garantir que a

nossa arte, a nossa literatura com os outros elementos que definem a nossa identidade cultura,

posam se manifestar e florescer no espaço que lhes é próprio.” (CHAVES e MACÊDO, 2006,

p. 20).

Os principais desafios moçambicanos estão ligados ao desenvolvimento, seja ela

social, educacional, político entre outros. Tendo seu regimento presidencialista, Moçambique

alcançou sua independência no ano de 1975.

Este país multicultural, por si próprio, será aqui representado por uma visão literária e

sob a ótica do romance O Sétimo Juramento, que permeia veredas históricas no decorrer do

enredo. A partir dele, será tratada a visão sociocultural, mítica e religiosa dos cenários

descritos no romance.

Literaturas emergentes como a africana cultivam temas ligados à resistência, como:

emigração, antievasão, o papel da mulher, a significação da terra, mito, crenças,

como forma de preservar que tanto as fontes da cultura popular quanto as raízes

nacionais, autênticas determinantes da busca de identidade (DUARTE, 2011, p. 80).

3. Oralidade: a linguagem literária da identidade cultural moçambicana

A oralidade representa forte aspecto na construção da africanidade. Essa questão nos

remete a figuras conhecidas como o griots que é “[...] um especialista, escolhido ou por

linhagem, ou por profissão, só ele detendo o conhecimento dos textos mais longos e especiais,

como a epopéia [...]” (LEITE, 2012, p.24).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 480

Muitas vezes, a oralidade é utilizada como recurso de aproximação entre escritor e

leitor, porém no caso de Moçambique e de tantas outras literaturas nacionais africanas, o

artifício da oralidade é usado como forma de valorização a cultura local. Esse recurso – oral –

também espelha um território tomado pelas mazelas sociais e políticas. Chiziane ao escrever o

romance dando um tom de oral, trazendo não somente passagens da Moçambique urbana, mas

retratando mitos e rituais de norte a sul e, através da mistificação da voz a moçambicanidade

representada pelos espíritos.

Desta forma, vale salientar que Moçambique não é apenas um país multiétnico e

multicultural, mas também multilinguístico por apresentar uma forte associação e aceitação

das línguas impostas pelo colonizador.

Muito se discute acerca da dissociação entre oralidade e escrita, vertentes estas que se

tornam presentes na romanesca moçambicana. Ainda nas concepções propostas por Leite

(2012), ela levanta pontos cruciais sobre a tendência que têm algumas críticas de partirem do

pressuposto de que a oralidade é um fator histórico e a escrita é um artifício totalmente novo,

algo que os escritores ou a população africana não dominam, ou seja, têm se o oral como

imutável e inteiramente dominante nessas populações.

Ela retrata duas vertentes para a literatura africana moderna, devido ao fator da

afinidade com a oralidade, que seria “[...] a escrita é européia, a oralidade africana [...].”

(LEITE, 2012, p.19). Ela ainda ressalva que:

[...] uma vez que essas literaturas, além desse enquadramento, são escritas na

maioria dos casos na língua do colonizador, semelhante a “colagem” levou por vezes

a análises tendenciosas paternalistas e a encarar a produção literária africana como

uma espécie de produto neocolonial. (LEITE, 2012, p.16).

Sendo assim, Moçambique tem a tendência dessa vertente moderna, devido ao fato da

África durante séculos ter sofrido a influência dos costumes do colonizador europeu, que

interferiram na sua cultura, religião e língua. A independência relativamente recente provocou

mudanças nas línguas nativas, além de que foram impostas aos colonizados como sendo a de

prestígio. Este fator está atrelado à prosa africana, na qual as marcas de oralidade são

fortemente predominantes na escrita. Sobre está influência linguística pode se dizer que:

A imposição da escrita numa sociedade de tradição oral é um elemento de

desequilíbrio. A escrita aqui não é um produto da evolução histórica normal e

responde a uma necessidade imposta pelo exterior. Por outro lado, a desvalorização

das formas de cultura indígenas, que caracterizou a política colonial de assimilação,

contribuiu para a descaracterização e rasura dos valores ancestrais. (LEITE, 2012, p.

83)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 481

Por não ter desenvolvido uma língua nacional de prestígio, os prosadores

moçambicanos valem-se da cultura linguística do colonizador, sendo assim, o português é a

língua mais usual para tais obras, sendo também considerada como a oficial do país, vale

salientar, pois, que ela não domina todo território nacional.

Deste modo, é possível afirmar que esse fator de certa forma interfere na identidade

daquela localidade como acentua Appiah (1997) acerca de identidade:

Toda identidade humana é construída e histórica; todo mundo tem seu quinhão de

pressupostos falsos, erros e imprecisões que a cortesia chama de “mito”, a religião

de “heresia”, e a ciência de “magia” [...] afinidades culturais vêm junto com toda a

identidade; (APPIAH, 1997, p.243).

Leite (2012) expõe outra teoria para predominância oral na África, sendo está tratada

como algo preexistente, social e histórico:

A predominância da oralidade em África é resultante de condições materiais e

históricas e não uma resultante da “natureza” africana; mas muitas vezes esse fato é

confusamente analisado, e muitos críticos partem do principio de que há algo de

ontologicamente oral em África, e que a escrita é um acontecimento disjuntivo e

alienígena para os africanos.( LEITE, 2012, p.24.)

Devido a tantas imposições do colonizador na cultura moçambicana, a forma que os

autores locais acharam de reaver a cultura nacional foi aproximar a escrita da oralidade, neste

romance Chiziane (2008) vale-se da forma de contação de histórias para tal aproximação. Este

recurso serviu para fazer denúncias sociais presentes no país tomado pelo pós-colonialismo, e

a presença do passado e presente, o que contribuiu muito para a volta dos valores ancestrais e

míticos.

Segundo Rosário (2010) o papel da oralidade no mundo globalizado moçambicano vem

perdendo espaço entre os mais jovens, embora muitos ainda recorram a esse sistema como forma de

ligar-se a tradição e costumes. Ele ainda aponta que a cultura moçambicana oral vem se adaptando a

evolução do mundo, fato que esta acarretando no esquecimento de um patrimônio cultural e autêntico

do território nacional e que na maior parte territorial a população está sendo regida pelo modelo

governamental. Para ele, “A tradição oral é um sistema social, econômico [sic] e cultural, não é apenas

um conjunto de contos, lendas e mitos.” Diz (ROSÁRIO, 2010, p. 142).

Assim, pode-se constatar que a afirmação da identidade coletiva torna-se substancial e

inevitável na produção literária moçambicana.

4. O mítico e o sincretismo religioso

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 482

Trabalhar mítico no romance moçambicano O Sétimo Juramento é um processo árduo,

devido à escassa teoria existente sobre este aspecto. O mito faz parte da história viva da

África e o regresso ao passado torna-se uma vereda para explicar os atuais acontecimentos.

Essas tendências estão marcadas, quase como, uma predestinação que não se pode ignorar na

composição das narrativas ali produzidas, pois constituem se como um fator hereditário

cultural e sócio-histórico. Em suma o mito não só em Moçambique, mas no território africano,

“fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor

à existência.” (ELIADE, 1972, p. 6).

Baseado, ainda, nas concepções teorizadas por Mircea Eliade (1972),

O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e

interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares.

[...] o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no

tempo primordial, o tempo fabuloso do "princípio”. [...] É sempre, portanto, a

narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a

ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente.

(ELIADE, 1972, p.9).

O mito funciona como uma ponte que separa o sagrado do profano, a aceitação de

algo, isso é tão verdade, que nas sociedades arcaicas ele estava ligado a fatos divinos, a ritos

de passagem e de criação. Porém, muitas vezes, não se consegue dissociar a palavra mito de

algo não verdadeiro.

Em O Sétimo Juramento há um forte sincretismo entre o religioso e as raízes do

passado apresentados no quadro cotidiano moçambicano. (ARMSTRONG, 2005, p.20), faz

alusão a essa associação onde o mito “[...] não era apenas um exercício de nostalgia. Seu

propósito primordial era mostrar às pessoas como elas podiam retornar a esse mundo

arquetípico, não apenas em momentos de enlevo visionário, mas também nas tarefas regulares

de sua vida cotidiana.”

Tanto para Eliade (1972) como para (ARMSTRONG, 2005, p.9), o mito “[...] é

inseparável do ritual. Muitos mitos não fazem sentido separados de uma representação

litúrgica que lhes dá vida, sendo incompreensíveis num cenário profano.”

Para as sociedades arcaicas, como os indígenas, o mito é separado dos contos e

fábulas, pois como já dito anteriormente, o mito representa algo sagrado, cósmico e as fábulas

narram histórias que aconteceram, mas que não necessariamente interfere no costume do

povo.

[...] para o homem arcaico, o mito é uma questão da mais alta importância, ao passo

que os contos e as fábulas não o são. O mito lhe ensina as "histórias" primordiais

que o constituíram existencialmente, e tudo o que se relaciona com a sua existência e

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 483

com o seu próprio modo de existir no Cosmo o afeta diretamente. (ELIADE, 1972,

p.13)

Assim como nas sociedades arcaicas, o mito é importante para revelar uma expressão

sócio-cultural e histórica da religião presentes em Moçambique, na qual Chiziane se vale de

entidades locais para desenhar a importância do mito religioso como salvação para uma

família condenada pela feitiçaria.

Acerca do mito e da influência dele na cultura e literatura em Moçambique Leite

(2012) ressalva:

Foi com o mito que a história humana sempre e em toda parte começou; Foi através

do mito que os vocábulos, os símbolos originários, tomaram a sua primeira forma –

e cada nova história os redescobriu à sua maneira. Ora, como se sabe, o processo

cultural de onde a literatura moçambicana emerge(aliás como a maioria das

literaturas africanas) tem grande parte das suas raízes mergulhadas no mito,

vivificado o cotidiano e presente na visão religiosa e religadora do homem à terra

e ao transcendente. (LEITE, 2012, p. 46, grifos das autoras)

O sincretismo mítico e religioso abordados por Chiziane (2008) vêm como forma de

explicar o presente através de pactos passados como ocorrência hereditária. Sabe-se que a

presença e representatividade dos orixás é forte e indissociável da cultura religiosa

moçambicana, suas normas regem, muitas vezes, as condutas da população local, como as

vistas n’O Sétimo Juramento, mesmo sendo as personagens já corrompidas por um sentimento

cristão ocidental. Desprendimento da religiosidade local fica evidente em,

– Esta noite, a esta hora, gostaria de consultar um adivinho, mas não posso. Por

causa da posição do meu marido. Por causa de compromissos de fé com religiões

que nada tem a ver com a minha origem. [...] Benditas sejam todas as religiões

que dão liberdade para invocar o deus sol, o deus nuvem e o deus

trovão.”(CHIZIANE, 2008, p.62, grifo das autoras)

5. O mítico em O Sétimo juramento

A prisão espiritual é o mais severo de todos os cárceres.

Paulina Chiziane2

O romance aqui trabalhado gira em torno do sagrado e do profano, Paulina Chiziane

(2008) detalha a vida cotidiana de uma família burguesa de Moçambique que vive uma

problemática num país pós-colonial. Após vivenciar uma forte crise econômica na empresa

em que trabalha, David, o patriarca da família, decide fazer um pacto com forças ocultas da

2 Trecho encontrado Chiziane (2008, p.94) in: CHIZIANE, Paulina. O Sétimo Juramento. 3ª ed. Desonhecido:

Caminho, 2008.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 484

magia, para tanto precisa realizar uma serie de ritos, afim de adquirir uma estabilidade na

empresa diante dos grevistas. Assim, num monologo, Chiziane (2008) revela as pretensões de

David,

A conversa que parecia bizarra, hoje se revela necessária. Nos mortos está a minha

esperança. No feitiço está a minha segurança. Preciso de resgatar a minha sombra

perdida para me defender da fúria dos operários. [...] não tenho protecção na igreja,

nem na lei, nem na sociedade, nem na família. Os brancos foram feitos para o céu,

para as nuvens e deuses celestes, mas os negros foram feitos para os defuntos, para

as raízes e deuses terrestres. A magia negra é o único caminho que me resta.

(CHIZIANE, 2008, p. 74, Grifo das autoras)

Após ter-se iniciado na vida da feitiçaria David põe em risco a segurança e moral de

sua família. Sua mulher Vera começa a vivenciar os mitos que escutava no passado. Avó Inês,

a sogra de Vera, e os adivinhos funcionam como a vereda que liga a família às raízes

ancestrais moçambicanas. “– Estou apenas a rever memórias do tempo antigo. A reprodução

de tudo o que vivi e vi.” (CHIZIANE, 2008, p.59), complementando a ideia proposta por

Chiziane (2008), Eliade (1997) pensa a respeito dessa ligação próxima entre real e mítico, no

qual “Neste sentido, os mitos e os ritos arcaicos ligados ao espaço e ao tempo sagrado podem-

se reduzir, ao que parece, a outras tantas recordações nostálgicas[...].” (ELIADE, 1997, p.

504.)

No desenvolver da prosa, David faz outros pactos, dentre eles o ‘lobolo’, casamento,

no qual David desposa uma mulher espírito. Neste rito de passagem fica clara a relação entre

sagrado e profano, pois o rito é regrado de orgias, termo usado por Chiziane (2008), e álcool o

qual ela retrata, dizendo: “Lobolo é mhamba [sacrifício], é união entre vivos e mortos, os

deuses maiores e menores. O lobolo é um cerimônia religiosa por excelência. A

transformação do religioso em profano é um processo universal.” (CHIZIANE, 2008, 91).

Assim Eliade (1972) diz,

Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que, ao "viver" os mitos, sai-se do tempo

profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo

"sagrado", ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável. (ELIADE,

1972, p.17)

Chiziane utiliza-se do artifício mítico, do “conhecimento esotérico e o culto, da

tradição religiosa e cultural: práticas de magia, feitiçaria, rituais de morte e [...] de iniciação

sexual” diz (LEITE, 2012, p.201), todos esses elementos num sincretismo perfeito conduzem

a obra, a critica moral da família burguesa moçambicana e dos antigos costumes afetados pelo

presente cristão e profano.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 485

Para compor o enredo, Paulina ainda toma a metáfora dos espíritos Ndaus e Ngunis,

que simbolizam a rivalidade entre pai e filho, sendo um pertencente à magia branca e outro a

feitiçaria. Ainda na atualidade estes clãs de espíritos representam uma rivalidade social e

política, ressalta Rosário (2010):

O mundo do feitiço e dos mitos esteve sempre ligado ao comportamento sócio-

cultural da maior parte dos intervenientes activos na nova história social de

Moçambique, ricos e pobres, urbanos e camponeses, instruído ou analfabeto, o

moçambicano, de uma forma ou de outra, conhece e, às vezes, enreda-se nele.

(ROSÁRIO, 2010, p. 131-132)

A escolha por detalhar cada ritual e entrelaçar o leitor no enredo é de uma maestria

singular, desta forma, Chiziane traz o real como forma ficcional para dentro da obra e o

mítico como sobrevivência da identidade cultural de Moçambique.

Considerações finais

O presente artigo versou sobre o estudo dos aspectos míticos e os artifícios – da

oralidade, da escrita, da identidade e da cultura – em um romance moçambicano, que relata,

como foi visto, a trajetória de uma família que retorna ao passado como modo de adquirir,

pela força da magia, o equilíbrio financeiro. Além disso, também reflete a coleta de dados, a

análise e o conhecimento cultural e literário acerca da realidade moçambicana pós-

colonialista.

O Sétimo Juramento mimetiza a visão da autora acerca dos acontecimentos sociais e

histórico do país. Daí este trabalho abrir espaço também para futuras investigações sobre os

aspectos sociais da sociedade moçambicana pós-colonial, em que o real e o mítico, o profano

e o sagrado refletem simultaneamente os primitivos rituais em confronto com a realidade do

presente.

Referência

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Vera Ribeiro; revisão de tradução Fernando Rosa Ribeiro. Rio de janeiro: Contraponto , 1997.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 486

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 487

NARRATIVAS HOMOERÓTICAS NOS COMPÊNDIOS DE

HISTÓRIA LITERÁRIA BRASILEIRA [Voltar para Sumário]

Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UFRPE/UFPB)

Considerações iniciais

Um dos grandes debates da moderna crítica literária do final do século XX e início do

XXI tem sido a discussão das formulações basilares das tradições literárias em cada língua e a

consequente revisão dos critérios e valores que elegeram as obras literárias a serem lembradas

e consagradas ao longo do tempo. Na maioria das vezes, essa pauta desencadeia num embate

entre tradicionalistas e a denominada “escola do ressentimento1” (Cf. Bonnici, 2011;

Crystófol y Sel, 2008), entre a exclusão ou a inclusão da contribuição das minorias culturais

na formação da literatura de uma cultura.

Um dos apontamentos mais recorrentes, segundo Bonnici (2011), parte da percepção

de que existiu (e existe) um privilégio implícito para autores brancos, heterossexuais e

pertencentes a segmentos sociais mais favorecidos para compor o elenco dos “grandes

escritores, das valiosas e universais obras” na formação do cânone.

Por essa razão, Crystófol y Sel (2008) aponta duas orientações importantes para a

sucinta reflexão que desejamos estabelecer: a primeira é a de que é relevante estudarmos o

cânone sempre relacionado à censura, que segundo a autora são “la cara y La cruz de uma

misma moneda” (p. 191); a segunda é o questionamento do âmbito “universal” para a

formulação do cânone, este é sempre regional, concentrado na valorização de obras de uma

determinada cultura.

A emergência dos Estudos Culturais, de perspectivas teóricas pós-estruturalistas e do

maior envolvimento dos grupos de minorias culturais com a literatura e seu sistema2,

1 Expressão utilizada, principalmente pelo crítico estadunidense Harold Bloom, para se referir a grupos de

pesquisadores que defendem a ideia de uma inclusão no cânone e que criticam a postura tradicionalista em

relação à consagração de autores e obras.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 488

possibilitou a reflexão sobre o cânone e as relações de poder vinculadas a ele,

problematizando esses valores universalistas e a censura instaurada ao longo do tempo.

Ao fazer essa reflexão no âmbito da cultura brasileira e rever diacronicamente a

formação do cânone, não podemos deixar de perceber os critérios excludentes que formaram a

“sagrada” história da literatura brasileira. Não é preciso revisar toda a crítica e história

literária, para se ter noção de que a formação de nosso cânone literário baseou-se, sobretudo,

numa abordagem homofóbica e misógina, branca e econômica na seleção e inclusão de

autores e obras. (Cf. Kothe, 1997).

Nesse sentido, objetivamos percorrer 4 compêndios historiográficos da literatura

brasileira, a saber A literatura no Brasil (2004 – 6 vol), de Afrânio Coutinho, História

Concisa da Literatura Brasileira (2006), de Alfredo Bosi, A Literatura Brasileira através dos

textos (2007), de Massaud Moisés, História da Literatura Brasileira (1997), de Luciana

Stegagno Picchio, evidenciando as possíveis relações entre narrativas que focalizam a

diversidade sexual e o cânone literário, problematizando o silenciamento dessas obras ao

longo do tempo e a forma de inclusão delas na história de nossa literatura.

Escolhemos esses compêndios em detrimento de outros também bastante difundidos

nos cursos de letras, porque eles possuem um alcance temporal que abarca do Quinhentismo

às tendências contemporâneas (que geralmente descrevem algumas obras até o início da

década de 1980), o que não ocorre, por exemplo, com obras como Formação da Literatura

Brasileira (2006), de Antonio Candido, A literatura no Brasil (1995), de Luiz Roncari e

História Literatura Brasileira (1998), de José Veríssimo cujo alcance chega apenas até a

literatura produzida no século XIX.

Cânone, história literária e literatura homoerótica

Existe uma vagueza semântica em relação ao conceito de cânone, segundo Cunha

(2006). As formas de ele ser descrito, caracterizado, conceituado alicerçam-se em idéias que

nos soam como se ele fosse invisível, impalpável. Esta discussão parece, muitas vezes, recair

numa abstração de manifestação do poder, embora detentora do controle sobre o corpus

oficial da literatura brasileira. O principal critério de inclusão de uma obra no cânone,

geralmente alegado por seus defensores, é o fator estético, sobre o qual Cunha (2006)

argumenta ser bastante relativista após tantas transformações culturais e literárias e, por isso,

insuficiente para determinar a inclusão ou exclusão de obras e autores nos compêndios de

literatura.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 489

Kothe (1997), sobre este tópico, e de forma bastante radical, afirma que o valor

estético é, na verdade, o que menos importa na seleção de obras canônicas no Brasil, porque

os fatores político e ideológico são decisivos para definir ou não a entrada de um autor e de

uma obra no cânone: “O cânone é formado por textos elevados à categoria de discurso, [...] o

fundamento de sua poética é, no entanto, política” (p. 108).

Podemos sintetizar que o cânone literário é um sistema simbólico e material de

valorização exacerbada de obras literárias e documentais que se concretiza através das listas

de obras que são divulgadas para o público (segundo Kothe (1997), nem sempre são literárias

as obras escolhidas como canônicas). Canônicos são os textos e autores que constam na

grande maioria dos livros de historiografia literária estudados nas graduações e pós-

graduações na área de letras; são os textos que constam nos livros didáticos do ensino

fundamental e médio; sobre os autores dessas obras, publicam-se a maior quantidade de

antologias, de traduções e de estudos críticos que solidifiquem sua hegemonia. Subjaz ao

cânone uma relação de poder, na qual hierarquicamente ele é superior aos que foram omitidos

e/ou excluídos dele, o que nos leva ao apontamento feito por Crystófol y Sel (2008) de que a

censura está sempre associada ao cânone.

Geralmente, os manuais de história da literatura mais divulgados entre os cursos de

letras mantém uma mesma quantidade de obras, de seleção de autores, mesma atribuição

valorativa aos textos, formando uma rede através da qual se reforça, segundo Kothe (1997),

que o cânone literário brasileiro seja visto e/ou estudado nos compêndios de nossa história,

indubitavelmente, de forma a não considerar possibilidades de revisão/alteração, mantendo

estabilizados discursos de sustentação de determinadas ideologias que marginalizaram textos,

temas e autores da arte literária brasileira.

Na contramão desse argumento, analisamos os referidos manuais no intuito de

percebermos os modos de narrar dos historiadores quanto às questões homoeróticas em suas

relações com os autores e com as obras, quando evidenciadas, de algum modo, no tecido

discursivo.

Um primeiro objetivo traçado foi o de verificar se há menção da temática homoerótica

em obras da literatura brasileira e, depois, que tipos de comentários são tecidos sobre o autor,

o tema ou sobre as personagens homoeróticas inseridas nas narrativas.

É comum não encontrarmos menções a obras de temática homoerótica nesses

compêndios ou, quando a obra é mencionada, há a omissão do tema, como ocorre com

Coutinho (2004) ao comentar um dos romances mais valorizados na literatura brasileira,

Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. No texto ficcional, dentre tantos conflitos

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 490

abordados, está presente, do início ao fim da obra, o desejo homoerótico (não concretizado)

entre Riobaldo (protagonista) e Reinaldo/Diadorim (amigo, parceiro de seu bando).

Coutinho (2004) dá ênfase à inovação linguística rosiana e ao mito do Fausto

(encontro/pacto de Riobaldo com o diabo) que também é aspecto muito forte no romance,

tangenciado pelo conflito amoroso com Diadorim. O mesmo faz Alfredo Bosi (2006) ao

mencionar que “Riobaldo é um homem que busca, no vaivém de suas memórias e reflexões,

negar a existência real do demônio [...]” (p. 432). Massaud Moisés (2007) escreve um

pequeno resumo da obra no qual sugere o sentimento de Riobaldo por Diadorim:

Em monólogo, Riobaldo conta sua odisséia de jagunço, empenhado tão a fundo na

vingança do grande Joca Ramiro, que estabelece pacto com o Diabo. Além do

sentimento de fidelidade, impele-o uma estranha afeição por Diadorim,

companheiro de luta [...] (Moisés, 2007, p. 567, itálicos nossos).

É curioso perceber o modo como o historiador narra a “estranha afeição por

Diadorim”, permitindo entender o desejo homoafetivo como um tabu, fato que parece impedi-

lo de se expressar abertamente sobre esse tema na obra, algo que não pode ser dito, reiterando

o aforismo de Oscar Wilde sobre o “amor que não ousa dizer o nome”, logo, distante da

interpretação do olhar canônico e, talvez, por isso, a escolha do termo “estranho” para definir

e valorar o sentimento de Riobaldo. Esse é o único momento que Moisés (2007) menciona

essa aproximação entre as personagens, numa espécie de amnésia intencional que exclui de

sua visão todo o conflito vivido pelo jagunço Riobaldo que se declara a todo o instante

afeiçoado afetivamente por Reinaldo, outro jagunço do bando.3 Luciana Stegagno Picchio

(1997) também faz referência ao mesmo sentimento, quando resume o romance que, para ela,

é a maior obra de Guimarães Rosa:

Riobaldo narra em blocos diferentes, cada um com seu sinal e sentimento, a aventura

de sua vida, o pacto com diabo (Riobaldo-Fausto), o sertão percorrido por bandos

inimigos sedentos de vingança, a camaradagem ambiguamente afetuosa com

Diadorim, o misterioso rapaz de olhos verdes: que se revela só no final, em sua

morte, donzela. (Picchio, 1997, p. 609, itálicos nossos).

Picchio (1997), de forma semelhante a Moisés (2007), usa um modo não direto,

sobretudo impreciso, para narrar o afeto entre as personagens em tela; na expressão

“camaradagem ambiguamente afetuosa com Diadorim” infere-se uma espécie de insinuação,

3 Sobre essa questão, ver o ensaio de SILVA, A.P.D. Desejo Homoerótico em Grande Sertão: veredas. In.:

Revista ANPOLL, Vol. 1, N. 24, 2008. Disponível em

http://www.anpoll.org.br/revista/index.php/revista/article/viewArticle/25.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 491

no entanto, esta forma sinuosa de narrar omite o real conflito em que se insere o sujeito

protagonista do romance: o do desejo homoerótico, o da masculinidade posta em xeque a

partir de um sentimento afetivo e do não querer admitir o desejo por um seu igual. Os demais

historiadores que não optaram por um resumo da obra, não mencionam a personagem

Diadorim e preferiram tratar, de forma generalizada, da mitopoética e da inovação linguística

em Guimarães Rosa, deixando de narrar, a partir do expediente da ficção, as relações afetivas

entre sujeitos do mesmo sexo, isto é, castrando as personagens, invisibilizando as imagens

construídas, tornando o discurso sobre a obra com um foco que caminha apenas em via de

mão única, a do discurso hegemônico e higiênico.

Além desta omissão, outro modo de narrar recorrente entre os historiadores citados é o

fato da temática (homoerótica) das obras ser concebida negativamente, como ocorre com a

narrativa Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, considerado o segundo romance em nossas letras

a narrar o erotismo entre pessoas do mesmo sexo. Até os dias atuais o tema da obra, de forma

genérica, parece sobreviver sob a égide de uma recepção negativa, sobretudo em

determinados setores tradicionais da crítica.

Alfredo Bosi (2006), ao se referir ao autor, afirma que ele possuía gosto por temas

“escabrosos” (p. 193), termo que admite o significado de “indecente” (Cf. Houaiss & Villar,

2004); em outro trecho, o historiador evidencia que “O Bom Crioulo [...] resiste ainda hoje a

uma leitura crítica que descarte os vezos da escola e saiba apreciar a construção de um tipo, o

mulato Amaro, coerente na sua passionalidade que o move, pelos meandros do

sadomasoquismo, à perversão e ao crime.” (Bosi, 2006, p. 194, itálicos nossos). As duas

palavras em destaque (sadomasoquismo, perversão), a nosso ver, foram usadas de forma

aleatória, pois não nos parece, no caso da primeira, que a obra permita uma leitura sob este

aspecto, e a segunda (pervesão, segundo Houaiss e Villar (2004), é “devassidão, depravação,

indecência”), nessa mesma linha de racioncínio, deixa claro que o termo carrega consigo,

semanticamente, uma apreciação moralista em relação ao tema homoafetivo na obra e,

considerando-se que se trata de uma visada crítica, pode-se notar o quanto este tipo de

concepção canônica, ainda presente no discurso de alguns críticos da geração dos

hostoriadores aqui em estudo, lança uma visão não afirmativa e discriminatória quanto ao

tema das subjetividades homoeróticas representadas na ficção literária brasileira.

Em Coutinho (2004), o romance gay mais conhecido e antigo do Brasil recebe a

seguinte descrição:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 492

Três anos depois do aparecimento de A normalista, Adolfo Caminha publica Bom

Crioulo. E deixa neste novo romance o melhor testemunho de sua grande vocação

de romancista. A revolta da província é substituída em Bom Crioulo por uma

audácia mais firme e ampla, que não mais se restringe aos estreitos horizontes da

cidade pequena: tomando como tema um caso de homossexualidade, vai os limites

da transposição literária dessa degenerescência, com um requinte de minúcias que

constrange e repugna. (Coutinho, 2004, p. 87, itálicos nossos).

O fato da obra agregar-se culturalmente à “degenerescência”, que “constrange e

repugna”, talvez seja uma questão de leitura bastante subjetiva e discriminatória de Coutinho

(2004), porque construída, infere-se, sob visões pessoais. Todavia, utilizar esses termos numa

escrita historiográfica que serve de baliza a leitores que porventura a consultem para obter

informações sobre a literatura no Brasil está longe de ser entendida como uma crítica literária

séria, como um pensamento ou ideia capaz de ser levada adiante por leitores que convivem

com a diversidade sexual, com as diferenças de gênero, com as políticas em favor de minorias

gays, lésbicas, trans (transgênero, travesti, transex, transhomem, transmulher, translésbica e

outras).

O que se percebe, a partir dessa apreciação de Coutinho (2004), é uma espécie de

censura que, como já afirmamos, é atitude comum na constituição do cânone (Crystófol y Sel,

2008). Nos textos dos demais historiadores investigados, o que se lê é a reiterada omissão do

aspecto homoerótico que é visivelmente protagonizado na narrativa romanesca de Adolfo

Caminha: Picchio (1997) sequer menciona Bom Crioulo entre as obras de Adolfo Caminha

(obstaculiza a autoria pela invisibilização do texto), já Moisés (2007) dá ênfase a outro

aspecto da obra (tornando-a menor, ao invisibilizar o tema homoerótico): afirma que o

romance “focaliza o problema da escravidão” (p. 270), deixando de lado o que se relaciona ao

homoerótico, ao desejo gay.

De acordo com o pensamento de Thomé (2009), um dos maiores clássicos da literatura

brasileira do século XX é o romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso,

publicado em 1959 e em cuja estrutura narrativa um dos núcleos temáticos é protagonizado

pela travesti Timóteo, que transgride a norma dos papéis de gênero, vive trancado em um

quarto, vestido de mulher, fato que desencadeia todo um desconforto nos demais sujeitos

ficcionais do romance cardosiano.

Ainda segundo o mesmo crítico (2009, p. 189), essa personagem “subverte o cânone”,

modifica a visão das personagens homoeróticas na literatura. Talvez por esse motivo, nem

essa personagem travesti, nem tampouco o viés homoerótico do romance de Lúcio Cardoso

emergem como possibilidade de leitura nos compêndios historiográficos. O autor sequer é

mencionado nas obras de Moisés (2007) e Picchio (1997) e, apesar de exaltado por Coutinho

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 493

(2004) e Bosi (2006) quanto ao modo introspectivo, intimista de abordar os conflitos das

personagens, sobretudo Timóteo, o caráter subversivo quanto às questões de gênero e de

sexualidades de uma de suas principais personagens não é citado. A indiferença, nestes

termos, parece constituir, mais uma vez, uma profunda censura que silencia, torna invisível a

obra em seu aspecto temático e quanto ao seu valor estético observado de forma mais ampla.

O discurso canônico desvia um tema central, e importante, da obra para defender uma

crítica que cala aquilo que é provocador do ponto de vista da construção do enredo, da

performance da personagem, dos valores agregados à cultura representada.

Depois da obra de Lúcio Cardoso, a única que possui a temática homoerótica com uma

travesti como protagonista (estudada pela crítica especializada) e que é mencionada nos

compêndios de história da literatura brasileira, vem a ser Stella Manhattan, de Silviano

Santiago. O romance é citado apenas por Picchio (1997), dentre os demais historiadores

consultados, o que reitera o modus operandi da construção do discurso canônico, segundo

leitura nossa em consonância com outros críticos, de que questões de gosto pessoal, de

identificação com o autor ou a obra são critérios postos em primeiro plano para narrar as

obras e os autores canonizados:

[...] um ‘profissional da literatura’ como Silviano Santiago (n. 1936) que,

essencialmente crítico e ensaísta, se afirma também como contista e romancista:

([...] Stella Manhattan, 1985, em que, numa Nova York cosmopolita, as relações

sexuais entre minorias étnicas são vistas através dos olhos de um brasileiro

homossexual; e Keith Jarrett no Blue Note, improvisos de Jazz, 1996, quando mais

de dez anos depois as temáticas da sexualidade gay e da vida no exterior

reaparecem, dessa vez na forma de cinco contos). (Picchio, 1997, p. 645, itálicos da

autora).

Como se vê, o modo de narrar autor e obra é orientado por uma economia de ideia,

atendo-se ao gesto de apreciar a pessoa, tornando secundária a discussão em torno das

“temáticas da sexualidade gay”. Mesmo quando a autora registra as produções de Caio

Fernando Abreu – autor deveras conhecido pela abordagem do tema homoerótico em suas

narrativas –se distancia das questões centrais em que estão envolvidas as personagens de Caio

F.:

Encontraremos também um ficcionista refinado e discreto como Caio Fernando

Abreu (1948-1996) que, na sua breve vida de escritor marginalizado, nos deu um

reduzido ciclo de obras-primas “urbanas” com personagens isoladas no mundo e

prisioneiras delas mesmas. Contos e romances de formação, como ritos de

passagem, eles possuem uma dimensão surrealista em que mais evidente se torna o

conflito entre indivíduo e sociedade (Morangos mofados, 1981; Quem tem medo de

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 494

Dulce Veiga4?, 1990; e póstumo, Bem longe de Marieband, 1996). (Picchio, 1997,

p. 636, itálicos da autora).

Nestes trechos, percebemos que a autora menciona, de forma en passant, o caráter

homoerótico nas obras de Silviano Santiago; o que falta ao narrar Caio Fernando Abreu,

embora ela cite Morangos mofados e Bem longe de Marieband, obras de temática gay, é a

atitude mais crítica e racional quanto ao tratamento a ser dado a autores e obras que se tornam

autores, na perspectiva foucaultiana (2009), pelas ideias desenvolvidas e pelas quais saem do

anonimato. No caso de Caio F., marcadamente em suas narrativas estão os conflitos, os

desejos, as tensões das subjetividades homoeróticas constantemente rasurando os lugares da

cultura, as fronteiras de gênero e de sexualidades. Esta leitura, apesar de os manuais de

história da literatura serem contemporâneos de autores como Guimarães Rosa, Silviano

Santiago (ainda vivo) e Caio Fernando Abreu, não é contemplada por parte da crítica

especializada do momento (ainda hoje) que opta por silenciar este aspecto, talvez, como na

visão de Coutinho (2004), constrangedor. Isto demonstra que a obra da brasilianista Luciana

Stegagno Picchio, assim como os demais, possui limitações histórico-interpretativas. Nos

outros manuais consultados, nem Caio Fernando Abreu, nem Silviano Santiago são citados

como autores.

De todos os manuais consultados, o que mais diverge quanto ao modo de abordagem,

quando comparado aos demais e possui maior alcance temporal no aspecto ‘descrição de

obras’ (chega a descrever textos da década de 1990), é o de Picchio (1997); ainda assim, não

registra os romances de Cassandra Rios5, que tiveram grande repercussão desde a década 40 –

com a publicação do seu primeiro livro A volúpia do pecado, lançado em 1948 – até as

décadas de 1970 e 1980 com seus romances mais conhecidos. Nestes, a construção sem

pudores de situações afetivas e sexuais entre personagens hetero ou homoeroticamente

orientadas provocou o sucesso de público, quando chegou a vender mais de cem mil

exemplares em um ano e, por outro lado, a censura do regime militar proibiu 36 das quase

cinquenta obras da escritora (Cf. Almeida, 2014).

Cassandra Rios, hoje maior ícone da literatura homoerótica feminina, também não é

mencionada nos demais compêndios que analisamos, sendo excluída por uma crítica

4 Destaque-se o equívoco da autora ao mencionar o título da obra de Caio F que, na verdade, intitula-se Onde

andará Dulce Veiga? 5 Veja-se, inclusive o fragmento de nota sobre a escrita de Cassandra encontrada no Dicionário crítico de

escritoras brasileiras, de Nelly Novaes Coelho (2002, p. 112): “Cassandra Rios cria uma terrível galeria de seres

prisioneiros da animalidade sexual, na maioria dos casos, contida ou reprimida sob uma aparência serena, normal

e pura. [...] O que avulta é o avesso, o mal (que deveria ser extirpado), as aberrações, as taras, o patológico...

uma total ausência de grandeza interior. Trata-se de homens reduzidos à animalidade sexual e totalmente

conscientes disso. Daí a obscenidade inerente à matéria romanesca.”

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 495

especializada que torna desimportante o impacto de venda das obras dela, bem como a

construção de um público leitor, o aquecimento de uma parte do mercado editorial quase

sempre restrita a uma tiragem e vendagem de poucos exemplares. Por que Cassandra Rios não

foi discutida como uma autora de Best Seller à brasileira?

Em outro momento, Fernandes (2009), discutimos a necessidade de atualização da

história literária no Brasil quanto aos aspectos aqui em discussão. No entanto, também

compreendemos as limitações epistemológicas de abarcar tudo o que foi silenciado no cânone

brasileiro, ao longo do tempo, cabendo, portanto, à crítica especializada (mas não imbuída de

preconceito e discriminação) resgatar, discutir e tornar visível obras específicas que

problematizam questões de minorias culturais, como tem ocorido com a literatura feminina,

com a literatura negra e com a literatura homoerótica. Neste último caso, nosso esforço se

caracteriza por uma contribuição quanto aos modos de ver e de narrar dos historiadores da

literatura brasileira, sobretudo àqueles que se posicionam contrários à manifestação e

efetivação da literatura de temática homoerótica, cabendo, por extensão, um resgate

específico de obras de temática homoerótica que foram invisibilizadas no cânone pela crítica

canonizante.

Considerações Finais

A revisão aqui proposta dos registros de narrativas homoeróticas pelos compêndios

de história da literatura brasileira pode produzir algum impacto se as considerações sobre a

literatura brasileira de temática homoerótica forem levadas a sério como devem ser; se as

obras forem lidas por uma crítica especializada que, ao invés de estabelecer juízos de valor

fundados no tão somente gosto pessoal, perceba os rumos da literatura brasileira e interprete a

produção ficcional na esteira do que pensa Josefina Ludmer (2010), quando lançou a ideia de

“literaturas pós-autônomas” como aquela produção distante de uma estruturação das obras

canônicas e tradicionais, porque rompe com a linearidade das ações, projetando outras formas

de se fazer dizer determinadas dinâmicas culturais.

A discussão em torno das representações de autores e obras da literatura homoerótica

nos compêndios da literatura brasileira funciona como uma advertência aos leitores no sentido

de que percebam, como diz Kothe (1997), os gestos semânticos de poder que tornam autores e

obras “ventrílocos” da literatura, um repetindo o outro e, neste repetir, de acordo com a

ideologia do momento (que parece ser a mesma, apesar do tempo transcorrido entre as

gerações), alcançam lugares na memória nacional.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 496

Percebemos que os manuais de história da literatura brasileira consultados, quando

fazem referência aos textos de temática homoerótica, em alguns casos omitem a apresentação

desta temática mesmo quando ela é aspecto central na obra e, assim, acabam, nesses

momentos, cometendo desvios interpretativos ao tentar direcionar a descrição ou narração do

texto para um tema que não é central, mas tangente. Nesse sentido, as relações possíveis entre

o cânone literário e a literatura homoerótica no Brasil têm sido, na maioria das vezes

conflituosas, quando não impossíveis.

Referências

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 498

A METACOGNIÇÃO NA LEITURA E AS INFERÊNCIAS

SOCIOCULTURAIS: UMA EXPERIÊNCIA COM ACADÊMICOS DO

CURSO DE TURISMO DA UNEB.

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César Costa Vitorino1

Para início de conversa

Compreender um texto é um ato de afirmação social, uma interação com outros

indivíduos e uma atividade situada num contexto sócio-histórico. Pretende-se, neste artigo,

apresentar reflexões a partir de atividades iniciais com discentes do curso de Turismo e

Hotelaria , na disciplina Comunicação, Linguagem e Turismo, semestre 2015.1, turno

vespertino, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), DCH /campus I, na cidade de

Salvador – Bahia.

A leitura é uma habilidade que envolve atividade cognitiva e metacognitiva e discutir e

aplicar teorias cognitivas e metacognitivas da leitura e da escrita, para os acadêmicos melhor

compreenderem o modo como se dá a relação leitura e compreensão textual constitui-se o

objetivo geral desta pesquisa. Pereira (2010), detalhando o entendimento sobre processamento

ascendente e descendente, afirma que o ascendente se realiza das unidades menores para as

maiores, quando a atenção do leitor está focada para as pistas visuais do texto. Esse tipo de

processamento é utilizado em situações em que o leitor apresenta poucos conhecimentos

prévios sobre o conteúdo ou sobre a linguagem do texto. O processamento descendente

acontece de forma “inversa”, isto é, se realiza das unidades maiores para as menores, quando

o leitor se apoia nas informações extratextuais, a exemplo de quando o leitor tem muitos

conhecimentos prévios sobre o assunto e sobre a linguagem empregada no texto. Pereira

(2009) enfatiza que para a compreensão do texto são necessários: a) objetivo de leitura; b)

conhecimento prévio do conteúdo e das condições de produção do texto; c) observância ao

1 Doutor em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), linha de

pesquisa: Teorias e Uso da Linguagem. Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e da Fundação

Visconde de Cairu (FVC), Salvador – BA. Coordenador do Núcleo de Estudos Africanos de Línguas e

Culturas (NGEALC)/UNEB.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 499

tipo de texto e d) estilo cognitivo do leitor. A leitura não depende somente do enfoque

linguístico, psicológico, social ou fenomenológico, depende também do grau de generalização

com que se pretenda defini-la. Possenti (2001, p. 12) diz: “ Devemos ser contrários,

evidentemente, àqueles que dizem que o sentido do texto é fixo. Acho que nenhum autor chega a

afirmar isso”.

Vários estudos ( CALDERÓN – IBÁÑEZ &QUIJANO - PEÑUELA, 2010; SANTOS,

SUEHIRO, & OLIVEIRA, 2004; SILVA &WITTER, 2008) ratificam que a compreensão

leitora dos universitários está aquém do que seria desejável para a formação acadêmica no

ensino superior. É, de certo modo, comum nós, educadores, encontrarmos um número

expressivo de estudantes que não conseguem abstrair de forma satisfatória a informação lida.

É salutar pensar que

O ensino de estratégias cognitivas e metacognitivas de leitura necessita ser

realizado desde os primeiros anos de formação escolar para que o aluno aprenda

desde cedo a fazer uso da metacognição, tendo em vista uma compreensão leitora

mais competente e eficaz. A contribuição da universidade é fundamental no sentido

de capacitar professores dos ensino fundamental e médio, bem como minimizar as

diculdades encontradas pelos alunos por meio da implementação de programas que

viabilizem o desenvolvimento da habilidade leitora. (RODRIGUES, et al ,

2014,p.188.)

Rodrigues et al (2014) comungam com a ideia de que a compreensão leitora é

essencial para uma formação acadêmica de qualidade. Na pesquisa avaliaram o efeito de um

programa dirigido a promover o desenvolvimento de estratégias cognitivas e metacognitivas

de leitura, do qual participaram 11 alunos do curso de Psicologia, bolsistas do Programa de

Educação Tutorial, os quais foram pré e pós- avaliados por meio da escala de estratégias

metacognitivas de leitura – formato universitário. Para obtenção do resultado foram

necessários 12 encontros semanais, num total de 24 horas, tendo como base a conjugação de

três pilares de estratégias metacognitivas – AIM, K-W-L e K-W-L PLUS. Encontraram-se

médias superiores na pós-avaliação, com resultados significativos para os três fatores que

compõem a escala (global, suporte e solução de problemas), assim como para o escore geral.

Os dados sugerem aprimoramento da utilização de estratégias cognitivas e metacognitivas de

leitura após a intervenção, realçando a importância de estudos dessa natureza com

universitários.

Metacognição ou gestão do pensamento?

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 500

Metacognição, termo utilizado inicialmente por Flavell (1976), diz respeito ao

conhecimento que se tem sobre os próprios processos cognitivos e produtos ou qualquer coisa

relacionada a eles, isto é, o aprendizado das propriedades relevantes da informação ou dos

dados. Na verdade, sabemos que a atividade de gerir o próprio pensamento no momento de

realização de uma tarefa, quer dizer, momento de guiar, avaliar, corrigir e regular o processo

de resolução de problemas, envolve, na grande maioria das vezes, o uso de estratégias

cognitivas. Percebemos, então, que a gestão do pensamento ( metacognição) permite a

compreensão e a explicitação das relações existentes entre os procedimentos que foram

adotados, o objetivo e o desempenho obtido.

Entender a metacognição é extremamente relevante no processo de escolarização

inicial de acadêmicos de curso superior, neste caso particular de discentes do curso de

Turismo e Hotelaria da UNEB, campus I, Salvador – Bahia. Tal postura se justifica porque é

por intermédio da metacognição que é possível alcançar várias metas intelectuais (quase

sempre associadas às metas afetivas) como:

construir conhecimentos e habilidades capazes de maior possibilidade de sucesso e

de transferência; aprender estratégias de solução de problemas passíveis de serem

auto-reguladas; adquirir autonomia na gestão das tarefas e nas aprendizagens, auto –

regulando-se e auto-ajudando-se; construir uma auto-imagem de aprendiz produtivo

e, com isso, obter motivação para aprender. (cf. DAVIS, 2006, p. 3)

A metacognição na leitura trata do problema do monitoramento da compreensão feito

pelo próprio leitor durante o ato da leitura. É fato que a leitura é elaborada em circunstâncias

diversas, é produzida diferentemente, variando de pessoa para pessoa, e acontece exatamente

quando o leitor interage com o texto, por essa razão devemos considerar a leitura como um

processo interativo entre indivíduos socialmente determinados e que ela (a leitura) está

vinculada a estruturas socioculturais. Para considerar a produção de sentidos é preciso aceitar

que o leitor desempenha um papel ativo e que as inferências são, de fato, um processo

cognitivo relevante para esse tipo de atividade.

Estratégias metacognitivas de leitura e o ponto de vista de Flavell e outros estudiosos

Estudos realizados por Flavell (1979), Bolívar (2002) e Mokhtari e Reichard (2002),

para citar apenas alguns, verificaram que há procedimentos metacognitivos que auxiliam a

resolução de problemas de compreensão denominados estratégias metacognitivas de leitura.

Tais estratégias, por sua vez, permitem ao leitor compreender um texto com maior eficácia

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 501

desde que se invista no planejamento, na monitoração e na regulação dos próprios processos

cognitivos envolvidos nessa tarefa, visando tanto o processo quanto o produto da leitura. As

estratégias incluem atenção seletiva dos leitores frente às dificuldades de compreensão,

habilidade para julgar as demandas cognitivas requeridas pela tarefa e o próprio conhecimento

acerca das necessidades impostas pelas características do texto, situação de leitura e as

próprias habilidades cognitivas do leitor.

Flavell (1976) defende o seguinte: o auto-questionamento sobre um texto funciona não

apenas para aumentar o conhecimento do leitor (função cognitiva), mas também para o

monitorizar (função metacognitiva). Esta afirmação demonstra a inter-relação das funções

cognitivas e metacognitivas, isto é, uma determinada atividade pode ser compreendida como

uma estratégia (olhar para os pontos principais), possuir uma função de monitorização (uma

atividade metacognitiva), e ser uma reflexão sobre o conhecimento (também uma atividade

metacognitiva) ( cf. BROWN , 1987).

Flavell (1979) apresenta um modelo de monitorização cognitiva que é defendido a

partir de quatro aspectos inter-relacionados, a saber: 1) conhecimento metacognitivo (que

aglutina os componentes sensibilidade e conhecimento das variáveis da pessoa, da tarefa e da

estratégia) - diz respeito ao conhecimento ou crença que o aprendiz possui sobre si próprio,

sobre os fatores ou variáveis da pessoa, da tarefa, e da estratégia e sobre o modo como afetam

o resultado dos procedimentos cognitivos; 2) experiências metacognitivas - através

delas o aprendiz pode avaliar as suas dificuldades e, consequentemente, desenvolver meios de

superá-las; 3) objetivos - impulsionam e mantêm o empreendimento cognitivo e podem ser

impostos pelo docente ou selecionados pelo próprio discente e, 4) ações (ou estratégias) -

correspondem, sobretudo , às estratégias utilizadas para potencializar e avaliar o progresso

cognitivo. Elas podem ser compreendidas como estratégias metacognitivas, produzindo

experiências metacognitivas e resultados cognitivos.

Como os estudos no campo da metacognição contemplam operações que envolvem

consciência e perpassam pelas áreas da Psicologia, da Linguística e da Psicolinguística,

concordamos, pois, com Gombert (1992, p. 9) “ toda consciência é necessariamente meta do

ponto de vista do observador”. A consciência, portanto, além de inserir-se primeiro no campo

de estudos da Psicologia tem sido focada também em pesquisas relacionadas à

Psicolinguística da leitura. Para os psicólogos cognitivistas há 4 (quatro) questões

relacionadas à consciência: 1) consciência dos processos mentais superiores – capacidade do

ser humano de remeter os pensamentos à consciência; 2) supressão do pensamento – quando

há dificuldade em eliminar algumas informações da consciência;3) questão cega – representa

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 502

visão sem percepção, ou seja, as pessoas, de modo geral, podem executar uma tarefa cognitiva

com bastante exatidão, sem qualquer tomada de consciência que seu desempenho seja

exato;4) inconsciente cognitivo – informações processadas fora da percepção consciente e o

tratamento científico é dificultado pela falta de evidências de seu funcionamento. Estudos na

linha freudiana, na maioria das vezes, fazem menção ao inconsciente cognitivo (cf. MATLIN,

2004).

Silva (2014) nos oferece a oportunidade de ter acesso a uma obra reflexiva

“Compreensão da leitura sob a lente da metacognição”, onde destaca a metacompreensão e as

estratégias metacognitivas de leitura, manifestando a sua preocupação com os aspectos

pedagógicos e o papel da escola diante das dificuldades de muitos estudantes. Na obra o autor

nos auxilia a revisar consagrados modelos de desenvolvimento da leitura, alertando para

questões fundamentais, tal como a reação entre fluência e compreensão. Com o autor

devemos concordar:

não basta que o aluno seja preciso em seu julgamento metacognitivo para que ele

apresente um bom desempenho, é necessário saber converter esse recurso

metacognitivo em estratégias cognitivasque o auxiliem na busca de soluções para

aprimorar a sua cognição. [...] ( p. 97).

Considerando a reflexão apresentada acima, lembramos também da ponderação

feita por Smith (1994) que considera a compreensão como a obtenção de respostas às

perguntas que são colocadas pelo leitor durante o processo de leitura. Ele admite que quanto

mais informações não-visuais (conhecimento prévio) estiverem disponíveis para o leitor, de

menos informações visuais ( do próprio texto) ele precisará para compreender o texto.

Reforça-se, neste contexto, que: “a partir da interação entre o insumo advindo do texto e o

conhecimento prévio, acionado durante a leitura, o leitor consegue compreender o texto lido”.

(cf. GERBER e TOMITCH, 2008, p.139).

A pesquisa: os acadêmicos põem no papel o que pensam Participantes

Participaram da pesquisa 29 discentes do curso de Turismo e Hotelaria (2015.1) da

UNEB, turno vespertino, 18 (dezoito) do sexo feminino e 11 (onze) do sexo masculino, com

média de 17 a 44 anos de idade.

Instrumento e materiais

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 503

Utilizamos a entrevista retrospectiva de Tomitch (2003 – com adaptação), composta

por 10 itens, sendo duas (questões 3 e 10) do tipo escolher apenas uma alternativa de resposta

e 8 questões discursivas (abertas) (1,2,4,5,6,7,8 e 9). O texto recomendado para leitura foi

“Escutatória ou o silêncio como alimento” (RUBEM ALVES, 2010) , apenas uma página,

publicado na Revista Educação, ano13, nº 160, agosto/2010, p.74. Para as questões abertas,

intencionalmente, foram colocadas duas linhas, mas alguns discentes ultrapassaram o espaço

para completar a resposta. Em relação à questão 1, todos os informantes (sexo masculino e

sexo feminino) disseram “Sim”, concordando, portanto, que a leitura do texto fluiu bem.

Na questão 2, todos os informantes disseram “Não”, justificando, assim, que o texto

não era difícil, mas caberia uma explicação diante do questionamento no final da questão:

“Por quê?”. Como exemplo temos: “ Não, porque esclarece os fatos de maneira altamente

compreensível” (PHOS, 18 anos, masculino), “ não. pois traz pouco conteúdo cientifico e que

seja inflexível de se interpretar. é visível a reflexão pessoal”. (TSV, 26 anos, masculino), “

Não, a linguagem é acessível, cotidiana como já foi dito”. (ANG ,39 anos, masculino), “ Não.

Como dito acima, tem uma linguagem clara e simples”. (MMTS, 17 anos, feminino), “ Não.

Por sua linguagem simples e objetividade”. (JSS, 28 anos, feminino), “ Não. Porque o autor

consegue nos prender ao objetivo que ele prõe no título.” ( ABP, 44 anos, feminino). Embora

a organização sintática apresente-se diferente para cada sujeito respondente, as justificativas

dão conta que o/a autor/a do texto utiliza uma linguagem simples e consegue prender a

atenção do leitor.

Na questão3a – classificar o texto numa escala de 1 a 10 como muito fácil, no sexo

masculino variou de 4 a 10 e no sexo feminino variou de 5 a 10. Já na questão 3 b - classificar

o texto numa escala de 1 a 10 como muito difícil, no sexo masculino variou de 1 a 5 e no sexo

feminino variou de 1 a 6. Observamos, então, que a variação no que diz respeito a achar o

texto fácil ou achar o texto difícil, tanto do sexo masculino quanto o sexo masculino manteve-

se com uma certa proximidade na escala apresentada para avaliação.

Na questão 4 – “Você diria que o texto está bem escrito? Por quê?”, eis algumas

respostas: “ Sim. Está de acordo com a norma”. (RE, 18 anos, masculino), “ Sim, porque

soube argumentar, e mostrou exemplos”. (IAM, 20 anos, masculino), “Sim. É um texto de

leitura rápida, que flui sem problemas. Palavras de facil entendimento e acessível a uma

maioria.” (LSJ, 23 anos, masculino), “ Sim. Porque o autor consegue transmitir seus

pensamentos facilmente”. ( IJOS, 18 anos, feminino), “ Sim. O autor explica de maneira fácil

e direta o assunto abordado”. (MAAS, 19 anos, feminino), “ Sim. Obedece as regras,

gramaticais e sitaxe, e a exemplificação da um dinamismo a ele, tornando a compreesão mais

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 504

fácil”. ( JSR, 20 anos, feminino). A questão da norma apresentada por uma das pessoas

inqueridas fica subentendida norma da gramática normativa e outra informante também dá

ênfase à gramática normativa quando afirma que o texto obedece regras gramaticais e sintaxe

( embora na escrita da informante apareça sitaxe).

Precisamos, diante das ponderações feitas pelos discentes , concordar com Kleiman

(1996) quando reconhece que o processamento da leitura começa pelos olhos, uma vez que

eles (olhos) possibilitam a percepção do material escrito, que passa a uma memória de

trabalho que o organiza em unidades significativas. Acontece que essa memória seria ajudada

nesse processo por outra intermediária que tornaria acessíveis, como num estado de alerta,

aqueles conhecimentos considerados como relevantes para a compreensão do texto dentre

todo o conhecimento que estaria organizado em nossa memória de longo prazo (também

chamada de memória semântica, ou memória profunda).

A questão 5 – “Como você acha que o autor organizou as ideias no texto? Você notou

algum tipo de organização? Caso positivo, como você descreveria essa organização?”

Algumas respostas: “ Sim. Ele organiza o texto de uma forma fluente e simples para

que o leitor não se perca durante a leitura”. (DRVOS, 18 anos, masculino) e de uma forma

mais sucinta: “ Sim, claro.” (LSM, 21 anos masculino), “ uma possível organização ao trazer

no inicio uma opnião pessoal, seguida de citações de outros autores e de um exemplo de

experiência vivida...” (TSV, 26 anos, masculino). E o que significam as reticências?, Se as

orientações apresentadas por Tomitch (2003) fossem seguidas rigorosamente , sem

adaptações, ou seja, se tivéssemos questionado e gravado a justificativa do acadêmico sobre o

uso das reticências no final teríamos como explicar o uso das reticências. Na voz feminina,

ultrapassando o limite de linhas temos: “ Sim. Introduziu tema falando sobre a idéia central,

desenvolveu dando exemplos para uma melhor compreensão e finalizou demonstrando como

ele próprio foi convencido, da importância do tema central do texto".”(JSS, 28 anos,

feminino).

A questão 6 – “Qual foi o objetivo do autor ao escrever o texto? Você acha que ele

conseguiu alcançar esse objetivo?”

Encontramos como repostas: “Sim. O autor passou a mensagem de que se deve falar

menos e se escutar mais”. (HIS, 23 anos feminino), “ O objetivo do autor foi representar o

silêncio e dar o direito da palavra ao próximo. Praticar o silencio. Sim”. (TOMP, 23 anos,

feminino).

Na questão 7 perguntou-se: “Você considera o texto como sendo completo? Por quê?”

e daí temos as argumentações: “Na questão informativa sim, pois a idéia é recebida pelo

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 505

leitor. Já na questão gráfica há um espaço para que se conclua o que foi dito”. ( IJOS, 18 anos,

feminino), “Sim. Porque o objetivo do texto foi devidamente alcançado”. (PSLG, 19 anos

feminino), “ Não. Acredito que há muito mais a se discorrer sobre o assunto. E, sim, dentro do

que acredito ter sido a sua proposta”. (JSS, 28 anos, feminino), “Sim. Pois o autor conseguiu

explanar seu pensamento de forma clara e organizada”.(NVRS , 24 anos, masculino ). Há,

portanto, muitas justificativas.

A questão 8 – “ O que tornou sua leitura desse texto fácil ou difícil? Por quê?”

Numa linguagem estilo telegrama (quando se faz economia de palavras) temos:“

Línguagem, abordagem”. (APJA, 19 anos, feminino), “A forma como ele foi escrito. Foi bem

explicativo”. ( AVSU, 19 anos, feminino), “ O que facilitou a minha leitura foi o fato de ter

outras revistas que tem uma abordagem semelhante a esse texto”. ( LSJ, 23 anos, masculino),

“ A linguagem clara e a organização das idéias”. (FRTG, 28 anos, masculino). Vemos aí uma

justificativa apresentada brevemente que denominamos linguagem escrita estilo telegrama e

também o depoimento que leituras de outras revistas com estilo similar ao texto Escutatória

ou o silêncio como alimento facilitou o entendimento do texto.

A questão 9 - “A maneira como o assunto foi abordado no texto lhe foi familiar?”

Atentemos, pois, para algumas respostas: “ Razoalvelmente sim, por se tratar de uma

situação comum, o termo liturgia porém, não conheço sua definição”. (PHOS, 18 anos,

masculino), “Sim. Pois abordou fatos cotidianos”. ( ANG, 39 anos, masculino), “Sim. Pois

nota-se que o autor escreve como se estivesse contando um fato há um velho amigo”. (

PSLG, 19 anos, feminino), “ Minha familiaridade com o texto esta em sua objetividade e

admirável clareza. E assunto do texto é algo que busco praticar”. (JCA, 21 anos, feminino).

A autenticidade das respostas , demonstrando sinceridade em não ter conhecimento de

uma palavra ( significado empregado em um dado contexto) faz com que o docente na sua

ação diária de mediador de conhecimento seja sensível e ,sempre que possível, e contribua

para ajudar na formação de alunos - cidadãos - críticos .

Na questão10 a – classificar o texto numa escala de 1 a 10 como totalmente familiar ,

no sexo masculino variou de 2 a 9 e no sexo feminino variou de 5 a 10. Já na questão 10 b -

classificar o texto numa escala de 1 a 10 como totalmente desconhecido, no sexo masculino

variou de 1 a 7 e no sexo feminino variou de 1 a 5. Nestas questões houve, possivelmente,

muita sinceridade ao informar se o texto era familiar ou desconhecido.

Apoiado em Tomitch (2003) ,como já dito anteriormente, atentamos para: a) as

perguntas foram suficientes para obtenção dos dados; b)evitamos ferramenta de coleta muito

longas em que os participantes são vencidos pelo cansaço; c) enunciados das perguntas foram

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 506

objetivos e claros, não deixando margem para interpretações diferentes; d) os dados foram

coletados através do preenchimento formulário de pesquisa pelo participante.

(In) conclusão

O nosso entendimento é que à medida que se compreende um texto, inferências

fundamentadas em um contexto sociocultural são geradas, ao que poderíamos chamar de

inferência sociocultural, que representaria a informação nova, inserida num novo contexto,

possivelmente extraída de uma informação de base anterior. Como cada indivíduo traz

compreensões qualitativamente diferentes para um mesmo texto, é necessário ser receptivo à

ideia de que trabalhar com o processo de inferência na leitura significa ativar os

conhecimentos individuais preexistentes no momento da leitura.

Das reflexões apresentadas, principalmente pelos os informantes da pesquisa, talvez a

maior lição é que se o leitor pretende compreender um texto, é necessário construir uma

representação mental de uma mensagem, sendo necessário conectar as informações durante a

leitura, ou seja, tanto no nível mais local das orações (microestrutura), quanto no nível mais

global dos parágrafos ou partes do texto (macroestrutura). Sendo assim, as inferências geradas

pelo leitor, no momento da leitura, têm papel de destaque na construção de significado, uma

vez que essas inferências possibilitam as conexões que integram as informações oriundas do

texto, possibilitando, inclusive, que o leitor construa um modelo mental sólido que possa

auxiliá-lo na compreensão, na retenção e no acesso posteriormente à memória das

informações lidas.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 509

SOBRE O SAGRADO E O PROFANO EM BALADA DE SANTA

MARIA EGIPCÍACA, DE MANUEL BANDEIRA [Voltar para Sumário]

Cícero Émerson do Nascimento Cardoso (UFPB)

1 – introdução:

Este trabalho se pauta numa leitura do poema Balada de Santa Maria Egipcíaca1, da

obra Ritmo dissoluto (1924), de Manuel Bandeira, a partir da dicotomia sagrado/profano.

A legenda de Santa Maria Egipcíaca, cujos feitos inspiraram autores como Manuel

Bandeira, Cecília Meireles, Rachel de Queiroz, Raquel Naveira e Antônio Callado – se

considerarmos a personagem Maria do Egito, da obra Quarup, que, em decorrência do

contexto em que está inserida, passa a prostituir-se ainda muito jovem –, traz em si, seja pelo

teor poético que comporta, seja pelo teor moralizante que apresenta, aspectos polissêmicos

que nos possibilitariam realizar uma leitura a partir da concepção de sagrado e profano

proposta por Mircea Eliade (1992).

Manuel Bandeira colheu essa legenda da hagiografia católica que, segundo Naveira

(2002, p. 33), constaria no Flos Sanctorum. A este respeito, ela afirma que:

As hagiografias, ou coletâneas da vida dos santos reconhecidos e canonizados pela

Igreja romana, surgiram em Portugal em meados do século XVI. A mais importante

dessas compilações é o Flos Sanctorum, de que houve dois textos em português,

mandados imprimir por D. Manuel I, em 1513.

Raquel Naveira (ibidem, p. 38 – 42) apresenta duas versões da legenda de Santa Maria

Egipcíaca. Faremos um resumo da versão de 1704, de Pedro de Ribadeneyra, colhida pela

autora na Biblioteca Mário de Andrade e, segundo ela, apresentada com algumas adaptações.

De acordo com esta versão, Maria Egipcíaca teria contado sua história a um monge

que a encontrara caída no deserto da Palestina. Ela teria dito que nascera no Egito e, forçada

pelos pais, fora para a Alexandria no início da adolescência – neste lugar teria vivido como

1 BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira – poesias reunidas. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 510

prostituta por muitos anos. Vendo, certa vez, o povo ir de barco para Jerusalém, por ocasião

de uma festa religiosa, ela entrara no barco e, destituída de posses, teria pagado a passagem

com o próprio corpo. Estando em Jerusalém, ao tentar entrar na igreja fora retida por uma

mão invisível que a impedira de entrar no recinto sagrado. Ela teria considerado este fato

como uma punição por ela dedicar-se a uma vida pecaminosa e, ao fazer orações, arrependida

da vida de devassidão que levava, decidiu isolar-se do mundo – fugiu, desta feita, para o

deserto.

Conforme aponta Affonso Romano de Sant’Anna (1993, p. 212), Maria Egipcíaca “já

era prostituta na famosa Alexandria, cidade que com Cartago e Corinto constituíam os

grandes centros de devassidão da Antiguidade”. Manuel Bandeira, ao desenvolver sua versão

dessa história, teria promovido uma “atualização” do “mito arcaico” da prostituta e da santa

que se fundem na imagem da “prostituta sagrada”. Ele a retoma, portanto, em forma de

balada e, em versos livres, reconta a história dessa santa que teria usado o próprio corpo

como meio através do qual poderia finalmente fugir de uma vida de promiscuidades.

Sobre o gênero balada, D’Onofrio (2000, p. 100) afirma que: “Em suas origens,

durante a Baixa Idade Média, a balada era uma forma poemática composta para ser musicada

e cantada com acompanhamento coreográfico nas festas de vindima e de outras colheitas do

campo”.

Do ponto de vista formal, D’Onofrio completa:

Tratava-se de uma forma primitiva de poesia, de origem autóctone, e cada região

apresentava sua forma peculiar. [...] O que distingue essa forma poemática é a

confluência dos três gêneros: o lírico, por ser expressão de sentimentos; o narrativo,

porque balada é uma canção-história, contém em seu bojo uma pequena fábula; o

dramático, porque a substância factual não é contada nem por um narrador

onisciente nem pelo eu poemático, mas é revelada pelo diálogo entre as

personagens.

Manuel Bandeira, como nos propõe Sant’Anna (ibidem, p. 207), teria travado na obra

Ritmo dissoluto uma luta entre os valores tradicionais e os valores modernos da poesia e,

dessa forma, teria enfatizado “um dos tópicos mais dramáticos de nossa cultura: o conflito

entre o amor erótico e o misticismo”.

Sant’Anna, ao discorrer sobre o teor erótico paradoxalmente impregnado de aspectos

místicos nessa obra, relaciona a personagem Maria Egipcíaca ao mito da Ninfa e do Fauno, e

faz alusão, também, ao fato de que o sexual e o espiritual, que se fundem sobretudo nessa

figura melancólica, são recorrentes nessa obra e dão a tônica da poética produzida por esse

autor.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 511

Passemos, a seguir, para uma leitura do poema acima citado de modo a observar, num

primeiro momento, os pormenores do texto e, em seguida, a presença do sagrado e do profano

conforme nos apresenta Mircea Eliade.

2 – Balada de santa maria egipcíaca: uma legenda atualizada

Além de dispor de um conteúdo fabular, e ser predominantemente narrativo, o poema

Balada de Santa Maria Egipcíaca apresenta um perceptível viés dramático. Podemos afirmar,

portanto, que por ser dotado desses três elementos este poema traz em si, de fato, as

características que seriam pertinentes à balada – embora com uma nova roupagem advinda de

propostas modernistas.

Para melhor compreender a discussão a que nos propomos, façamos a leitura do

poema:

Balada de Santa Maria Egipcíaca

Santa Maria Egipcíaca seguia

Em peregrinação à terra do Senhor.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...

Santa Maria Egipcíaca chegou

à beira de um grande rio.

Era tão longe a outra margem!

E estava junto à ribanceira,

Num barco,

Um homem de olhar duro.

Santa Maria Egipcíaca rogou:

– Leva-me à outra parte do rio.

Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

O homem duro fitou-a sem dó.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir...

– Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

Leva-me à outra parte.

O homem duro escarneceu: – Não tens dinheiro,

Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me teu corpo, e vou levar-te.

E fez um gesto. E a santa sorriu,

Na graça divina, ao gesto que ele fez.

Santa Maria Egipcíaca despiu

O manto, e entregou ao barqueiro

A santidade de sua nudez.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 512

Jolles (1976, p. 30), ao definir uma das formas que seriam produzidas “na linguagem”

e propaladas pela “própria língua”, como é o caso da legenda, a apresenta como “compilações

[...] que reúnem as histórias e depoimentos sobre a vida e os atos dos santos, desde os

primeiros séculos de Cristianismo”. A este propósito, Jolles indaga-se sobre o que viria a ser

um “santo”, e como este passaria a ser considerado possuidor de “santidade”. Ele afirma que a

“santidade está, pois, vinculada à instituição eclesiástica”, e a resposta para a pergunta sobre o

que viria a ser um santo somente faria sentido “a partir desse vínculo”. O que poderia tornar,

desta feita, um indivíduo santo? A instituição eclesiástica seria a legitimadora dessa santidade

– isto teria sido viabilizado por meio de um processo de canonização estipulado a partir do

papa Urbano VIII.

Jolles (ibidem, p. 54) considera, sobre a vida dos santos, posteriormente, que não é

incomum “um santo começar a existência como contra-santo”. Nesta perspectiva, ele aponta

para o fato de que alguns santos, antes de serem considerados como tal, cometeram inúmeros

pecados e, justamente por isto, por serem capazes de mudar de vida – sendo tão frágeis quanto

qualquer mortal – estes serviriam de exemplo para o ser humano que vê, também em si,

possibilidades de mudança.

A este respeito, Jolles (ibidem, p. 54) afirma que:

A igreja católica não estabeleceu para os anti-santos, grandes ou pequenos, um

procedimento correspondente ao processo de canonização. A contracanonização

efetua-se na comunidade, fora da autoridade constituída; e o seu instrumento, a

linguagem, redundou geralmente na criação de legendas, só raramente de Vidas.

A legenda de Santa Maria Egipcíaca é retomada, nessa obra moderna, e dá-nos a

conhecer a vida dessa mulher cujo comportamento de “contra-santo” revela-se, no texto

poético, com seus vieses polissêmicos que justificariam inúmeras abordagens.

Ao atualizar a legenda dessa santa – figura cuja vida, seja por seu teor dramático, seja

por seu teor lírico, tem inspirado autores brasileiros a retomá-la em obras de qualitativo

conteúdo literário –, Manuel Bandeira a expôs de modo a instigar no leitor uma suposta

compaixão que a isentaria de ser considerada por um viés moralizante. Ela, embora se

disponha a realizar um ato considerado tradicionalmente impuro, o faz sem necessariamente

demonstrar intenções pecaminosas, pois sua entrega representaria um sacrifício último em sua

peregrinação à vida espiritual que a redimiria de seus pecados.

Esse poema tem início in medias res, com a chegada de Maria Egipcíaca – evocada

como santa no título e retomada como tal já no primeiro verso – à margem de um rio que

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 513

representava um obstáculo que ela deveria superar para dedicar-se, definitivamente, ao seu

novo ideal de vida.

Temos nos primeiros versos, por meio de um narrador observador que recorre a verbos

no pretérito imperfeito, a informação de que a santa deslocava-se para a “terra do Senhor” –

Jerusalém. O cenário em que ela se encontra é descrito no verso seguinte – verso que se repete

novamente na quinta estrofe do poema – e aponta para o teor antitético e lírico do texto, bem

como sugere as mudanças que a personagem vivencia. A imagem do crepúsculo remete-nos à

oposição dia/noite, claridade/escuridão e, consequentemente, ao comportamento

pecaminoso/santo da personagem que vislumbra possibilidades de mudança.

Na imagem do “triste sorriso de mártir” temos uma oposição de ideias que já nos

remete a um paradoxo: há um sorriso, que seria supostamente caracterizador de um estado

emocional que representaria bem-estar, mas este sorriso é adjetivado como triste – imagem

reforçada pela locução adjetiva “de mártir”, que prenuncia o sacrifício que será empreendido

pela personagem.

Em seguida, o narrador diz que a santa chegou à beira de “um grande rio”. O rio, que é

adjetivado como grande, aponta para o desafio com que a personagem se depara: ela teria que

atravessar o maior dos obstáculos para concretizar seu objetivo de entregar-se de vez à vida

espiritual almejada. O verso seguinte enfatiza o conflito que se apresenta diante dela: a outra

margem mostra-se longínqua e, aparentemente, intangível.

Como perceberemos em versos seguintes, Maria Egipcíaca não dispõe de posses

materiais que viabilizem sua passagem para a outra margem do rio. Como fazer para custear,

portanto, sua viagem até a outra margem?

Surge, na sequência dos versos, outra personagem: um homem “de olhar duro” que

estava num barco junto à ribanceira. O adjetivo “duro” que o caracteriza surge, enfaticamente,

três vezes ao longo do poema. Este vocábulo poderia sugerir, dentre outras possibilidades

semânticas, a índole do barqueiro que, como um fauno sádico, detém em si a condição sine

qua non para que Maria Egipcíaca chegue ao seu destino. Esse adjetivo poderia indicar, desse

modo, a virilidade, a força física, a detenção do poder e o péssimo caráter do barqueiro e

poderia, também, remeter ao comportamento erotizado dele que vê, na vulnerabilidade de sua

interlocutora, uma possibilidade de explorá-la sexualmente.

Na quarta estrofe do poema, dá-se o primeiro diálogo entre as personagens: Maria

Egipcíaca pede ao barqueiro que a conduza ao outro lado do rio, mas não deixa de expor que

não dispõe de dinheiro para realizar o pagamento pela travessia. Ela conta, apenas, com a

solidariedade do barqueiro. Ele, no entanto, destituído de uma índole que o possibilitaria

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 514

realizar um ato de bondade, sugere, com sarcasmo, após duas sequências de pedidos

desesperados da santa, que esta entregue seu corpo como pagamento.

O barqueiro faz um gesto, que deve indicar um chamado para a consolidação do ato

sexual, e a santa sorri – certamente sorri com seu “triste sorriso de mártir”, pois, ironicamente,

para chegar ao mundo sagrado que tanto anseia ela precisa submeter-se à prostituição e

retomar o comportamento profano que ela havia desprezado após sua conversão. O ato sexual

a que ela se permite, porém, não mais representaria uma disposição para fins pecaminosos,

mas um sacrifício que poderia torná-la mais próxima de seu ideal de santificação.

O barqueiro exerce sobre a santa/prostituta o poder conferido ao sexo masculino por

visões tradicionalistas. Ele, motivado por visões misóginas que conferem à mulher uma

condição de inferioridade em relação ao homem, se apropria de um discurso de superioridade

e vê no corpo dela um objeto disponível a seu bel-prazer e seu sadismo. Ela, por sua vez,

convertida e disposta a tudo para entregar-se definitivamente à vida espiritual, não vê outra

solução senão entregar-se, num último gesto de sacrifício, ao barqueiro. Sant’Anna (ibidem, p.

211), a este respeito, afirma que: “A santa lhe teria dado o corpo, num desprendimento das

coisas terrenas e materiais, e seguiu com sua alma mais pura (por causa do martírio) para seu

destino”.

A entrega do corpo por parte da santa, como possibilidade de realizar sua travessia,

coaduna com o que Eliade (ibidem, p. 84) afirma a respeito da simbologia do corpo. Para ele,

o corpo “apresenta ou pode apresentar uma “abertura” superior que possibilita a passagem

para um outro mundo”. Por meio desse gesto de abnegação, e não menos de martírio, o

espírito poderia, de fato, libertar-se do mundo profano e ressignificar-se por meio da solidão,

do jejum, da oração e do encontro com a divindade.

Santa Maria Egipcíaca entrega ao barqueiro, ao despir seu manto, não apenas seu

corpo, mas “a santidade da sua nudez”, ou seja, o ato sexual não representou, senão, a

confirmação da mudança de conduta dessa personagem que vê em seu gesto um total

desprendimento de seu corpo como posse material. Para ela, a partir de sua conversão,

importava revestir-se da presença do ser divino que a retirara de um mundo profano e inferior.

Ela, por seu gesto, teria permanecido intacta quanto ao pecado que realizara. Como na

conhecida trova que apresenta a Virgem Maria como uma mulher que, apesar de ter

concebido um filho, Jesus Cristo, teria permanecido pura, Maria Egipcíaca gozaria de um

privilégio parecido, por sentir-se pura apesar da efetivação do ato sexual que ela experimenta

como um último sacrifício e condição sine qua non para ela libertar-se do mundo profano em

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 515

que se encontrava: “No ventre da Virgem bela / O verbo encarnou por graça / Entrou e saiu

por ela / Como o sol pela vidraça”.

Após esta breve explanação, discorreremos sobre os aspectos constitutivos do texto em

pauta com a intenção de observar, de modo mais pormenorizado, como podemos

compreender a personagem Maria Egipcíaca a partir do paradoxo comportamental que nos

remeteria à dicotomia sagrado/profano proposta por Mircea Eliade.

3 – O sagrado e o profano segundo mircea eliade

Ao discorrer sobre o sagrado, Mircea Eliade (ibidem, p. 13) afirma que: “O homem

toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente

diferente do profano”. O sagrado seria revelado por meio de uma hierofania –

etimologicamente, este termo significa: manifestação do sagrado.

Para Eliade, a história das religiões seria constituída de diversas ocorrências de

hierofanias, e a experiência do sagrado seria marcada por uma revelação fundada na

descoberta de um espaço tido como sagrado. Este espaço traria em si, também, a

representação simbólica da criação do mundo – este seria um “centro”, um “ponto fixo” em

que o indivíduo, após passar pela revelação, teria as bases para a vivência do sagrado.

Eliade (ibidem, p. 18) aponta, por outro lado, para a manifestação da experiência

profana. Neste caso, “o espaço é homogêneo e neutro: nenhuma rotura diferencia

qualitativamente as diversas partes de sua massa”.

Essa distinção entre o espaço sagrado e o espaço profano é determinante para que

compreendamos o que caracteriza a oposição que estabelecemos no comportamento da

personagem do poema de Manuel Bandeira.

Percebemos nesse texto a ocorrência de dois espaços que se opõem, e que poderiam

remeter à mudança de comportamento da personagem: de um lado há o espaço profano

representado pela cidade de Alexandria, do outro há o espaço sagrado representado pela

cidade de Jerusalém. Há, entre um espaço e outro, para utilizarmos um termo empregado por

Eliade (ibidem, p. 19), um limiar: “O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo

tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar

paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo

profano para o mundo sagrado”.

No poema em discussão, esse limiar seria representado pelo rio que separa a vida de

prostituição e pecaminosidade de Maria Egipcíaca, e a vida de devoção e sacrifício que esta

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 516

pretende para si após sua conversão – diferente do que ocorre na legenda anteriormente

apresentada, Manuel Bandeira sugere que Maria Egipcíaca teria vivenciado a conversão antes

de atravessar o rio, portanto a entrega do corpo como pagamento para atravessá-lo seria mais

um ato de sacrifício do que um ato pecaminoso.

A propósito, Eliade (ibidem, p. 19) aponta para o fato de que o limiar traria em si

“grande importância religiosa, porque se trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de um

veículo de passagem”.

Localizamos, nesse poema, os dois lados espaciais que, para Eliade, constituiriam o

espaço sagrado e o espaço profano; também localizamos na imagem do rio a fronteira que a

personagem precisaria atravessar para que a experiência religiosa fosse efetivada. Ela

precisaria, no entanto, para alcançar seus objetivos, dispor de algo que lhe desse

possibilidades de passagem – no caso de Maria Egipcíaca, ela dispõe, já que lhe falta posses

materiais, do corpo oferecido como pagamento para que assim pudesse chegar à outra

margem do rio.

Eliade (ibidem, p. 19) diz que: “O limiar tem sempre seus “guardiões”: deuses e

espíritos que proíbem a entrada tanto aos adversários humanos como às potências demoníacas

e pestilenciais”. Ele diz, ainda, que: “É no limiar que se oferecem sacrifícios às divindades

guardiãs”.

Associando ao texto, o barqueiro figuraria como o guardião do limiar que Maria

Egipcíaca precisaria enfrentar para conseguir, finalmente, ir para Jerusalém e dedicar-se à

vida de santidade. Enfrentá-lo seria, desse modo, deparar-se com a necessidade de oferecer

um sacrifício – neste caso, o sacrifício do próprio corpo.

Além disso, Eliade (ibidem, p. 65), ao discorrer sobre o simbolismo aquático – que

apreendemos do poema pela imagem do rio que a personagem precisa atravessar – afirma

que: “As águas simbolizam a soma universal das virtualidades: são fons et origo, o

reservatório de todas as possibilidades de existência; precedem toda forma e sustentam toda

criação”. Por este viés, as águas precedem a nova experiência existencial que a personagem

busca.

De acordo com a crença judaico-cristã, por exemplo, a água é utilizada para o ritual do

batismo e representa, como Eliade (ibidem, p. 66) subscreve, que: “O “homem velho” morre

por imersão na água e dá nascimento a um novo ser regenerado”. Eliade (ibidem, p. 65)

apresenta, ainda, a ideia de que: “O contato com a água comporta sempre uma regeneração:

por um lado, porque a dissolução é seguida de um “novo nascimento”; por outro lado, porque

a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida”.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 517

No poema não ocorre uma imersão direta por parte da personagem, mas a simbologia

das águas através das quais ela precisa passar – para alcançar o espaço considerado, por ela,

sagrado – traz forte representação quanto à mudança de comportamento que esta vivencia

tendo na simbologia da água uma possibilidade de renovação, de purificação, de mudança

completa de vida.

Isso coaduna com o que Eliade (ibidem, p. 66) afirma: “Em qualquer conjunto

religioso em que as encontramos, as águas conservam invariavelmente sua função:

desintegram, abolem as formas, “lavam os pecados”, purificam e, ao mesmo tempo,

regeneram”.

A propósito da simbologia do corpo – que no poema representa a posse material a que

a personagem acorre para alcançar seus objetivos –, Eliade (ibidem, p. 84) afirma que: “É

importante [...] enfatizar que cada uma dessas imagens equivalentes – Cosmos, casa, corpo

humano – apresenta ou pode apresentar uma “abertura” superior que possibilita a passagem

para um outro mundo”.

A retomada dessa legenda – da santa que se converte e precisa abandonar uma vida

entregue ao que é profano, e que busca regenerar-se e, para tal, precisa atravessar um

obstáculo que a impede de entregar-se completamente à vida sagrada e, por isto, vê-se

motivada a submeter-se a um último sacrifício, parece-nos comportar uma pertinente relação

com o que Eliade concebe em sua discussão sobre o sagrado e o profano.

Por fim, Naveira (ibidem, p. 50) diz que: “Balada de Santa Maria Egipcíaca é um

poema forte, místico e erótico”. Concordamos com a autora e ampliamos o que ela afirma

dizendo que esse poema é, sobretudo, rico em polissemia – ele possibilitaria leituras diversas

pelo valor estético que comporta. Ao dizer isto, justificamos a aplicação da concepção de

Mircea Eliade sobre o sagrado e o profano, como suporte para uma leitura como a que

propusemos aqui, ao mesmo tempo em que comprovamos que esse texto, produzido por um

dos mais criativos poetas da nossa Literatura, poderia nos render muito mais discussões para

trabalhos futuros.

Referências

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira – poesias reunidas. 3. ed. Rio de Janeiro: José

Olympio, 1973.

D’ONOFRIO, Salvatore. Balada. In: Teoria do texto 2: Teoria da lírica e do drama. São

Paulo: Ática, 2000.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 518

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo:

Martins Fontes, 1992.

JOLLES, André. Legenda. In: Formas simples. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo:

CULTRIX, 1976.

NAVEIRA, Raquel. Maria Egipcíaca. Campo Grande – MS: UCDB, 2002.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Manuel Bandeira: do amor místico e perverso pela santa

e a prostituta à família mítica permissiva e incestuosa. In: O canibalismo amoroso: o desejo e

a interdição em nossa cultura através da poesia. 4. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 519

DE GÊNESIS A SHAKESPEARE: MISTICISMO E

SIGNIFICAÇÃO DO NÚMERO SETE [Voltar para Sumário]

Clara Mayara de Almeida Vasconcelos (UFPB)

Eveline Alvarez dos Santos (UEPB)

Introdução

A relação entre cinema, e outras linguagens não-verbais que são análogas ao cinema

como é o caso do seriado, e a literatura estabelece relações estreitas. Não se trata apenas de

uma comparação entre dois tipos de linguagens que têm como categoria analítica um tema em

comum. Além do intercâmbio de informações entre elas, devemos considerar também os

inúmeros signos e significações que podem ser [re]construídos a cada vez que lemos esses

textos.

Ao colocarmos um elemento em termos de outro surgirão novos signos com infinitas

possibilidades de interpretação, fazendo com que possamos estabelecer inúmeras relações de

significação entre os novos elementos e entre esses e os já existentes. Assim se dá a tradução.

A partir disso, analisaremos nesse trabalho as relações estabelecidas entre os textos: a peça

Hamlet e o seriado Som e Fúria.

Entre o texto verbal e o audiovisual percebermos que existe uma relação diagramática.

A narrativa da peça shakespeariana não está presente no seriado de forma “integral” no

seriado, ao ter o seu enredo narrado de forma linear da mesma forma que está contido no texto

dramático. Entretanto, em meio aos diversos signos que se aglutinam na narrativa do seriado,

entre eles estão outras peça shakespearianas, perceberemos que as relações estabelecidas entre

os personagens possuem em sua constituição as características de diversos personagens

shakespearianos em que faz o telespectador reconhecer no seriado uma passagem da peça “As

you Like It”: All the world’s a stage, and all the man and women merely players: they have

their exits and their entrances; And one man in his time plays many oarts, his act being seven

ages. (SHAKESPEARE, 2012, p.27)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 520

A partir disso utilizaremos a Teoria Geral dos Signos de Charles Sanders Peirce para

construir o argumento necessário para justificar as significações apresentadas pelo número

sete na narrativa, não apenas no seriado, mas o que também está inserido no texto literário

através da convenção que esse signo adquiriu a partir dos vínculos que a sociedade criou para

que o simbolismo desse número estivesse atrelado a algo “concreto” nos termos dos laços

sociais. Sendo assim, discutiremos o que é a Tradução Intersemiótica e o seu lugar na

Semiótica Peirceana, além da sua aplicação para explicar a transposição de signos do meio

verbal para o audiovisual.

O lugar do símbolo na tradução intersemiótica

Neste trabalho, abordaremos a Tradução Intersemiótica da peça shakespeariana Hamlet

para o meio audiovisual. Para isso utilizaremos a Teoria Geral dos Signos de Charles Sanders

Peirce que tem como objeto de estudo a significação como um signo resultante de uma

relação triádica entre o objeto, o representâmen e o interpretante. Este último, por sua vez, é

um novo signo o qual representa a interpretação dos outros dois elementos.

A tríade proposta por Peirce não se restringe a apena esses três elementos. Há três níveis

de relações estabelecidas entre os elementos supracitados que organizam os signos em mais

três outras classificações. A ideoscopia peirceana é dividida em Primeiridade, Secundidade e

Terceiridade a partir da relação entre: o signo em si; signo e objeto; signo e interpretante. Na

relação signo em si está os qualissignos, sinssignos e os legissignos. Na relação signo e objeto

estão o ícone, índice e símbolo. Na relação signo e interpretante estão o rema, dicissigno e

argumento.

Entretanto, faremos um recorte na teoria e na microssérie para que essa abordagem seja

possível. Como já foi mencionado no tópico introdutório deste trabalho, será analisada a

significação/simbologia do número sete. Na teoria, abordaremos a primeiridade e terceiridade

que estão contidas na secundidade, ou seja, o ícone e o símbolo. No que concerne ao ícone é o

signo icônico diagramático, o qual representa a tradução intersemiótica por estabelecer uma

relação de analogia interna entre os elementos em comparação, entre a peça e a microssérie.

No que diz respeito ao símbolo, este será abordado para explicarmos a função do número na

narrativa, tanto do texto literário quanto do audiovisual, para que possamos compreender a

representação geral que este signo pode fazer de hábitos, por exemplo, que são vinculados à

cultura ocidental como é o caso do caráter místico que ele possui.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 521

A partir desta relação de representação em que um elemento em relação com um segundo

produz um terceiro, podemos apreender que o processo tradutório intersemiótico nada mais é

do que a representação de um signo verbal por um outro sistema sígnico, neste caso

audiovisual. Uma linguagem sofre um processo metamórfico e se transforma em outra,

contendo em sua essência os signos de sua anterior.

A Tradução Intersemiótica é uma relação diádica entre o signo e o que ele representa para

isso esse signo em questão é um símbolo, pois ele precisa ter uma convenção para que as suas

qualidades possam ser reconhecidas na outra linguagem. Embora a relação diagramática entre

esses elementos seja icônica. Pois se estabelece uma relação de equivalência entre as partes,

em que uma possui as características pertencem à outra. Para podermos entender o porquê do

símbolo ser o signo envolvido nesses processo de interpretação, recorramos a Santaella para

elucidar essa questão:

Note-se que, por isso mesmo, o símbolo não é uma coisa singular, mas um tipo

geral. E aquilo que ele representa também não é um individual, mas um geral. Assim

são as palavras. Isto é: signos de lei e gerais. [...] O objeto representado pelo símbolo

é tão genético quanto o próprio símbolo. Desse modo, o objeto de uma palavra não é

alguma coisa existente, mas uma ideia abstrata, lei armazenada na programação

linguística de nossos cérebros (1995, p. 14).

Perceberemos que interpretar o número sete como um dos signos que compõem a

narrativa da microssérie possui toda uma significação vinculada aos costumes da sociedade

ocidental desde a bíblia, tradição da hatha-ioga, passando pelo período medieval e chegando

até os nossos dias mesmo que não percebamos, mas estes signos atuam em nosso pensamento

ainda que não nos dermos conta que estamos pensando.

Ao traduzirmos, estamos transpondo os elementos que compõem uma linguagem em

outra. A imagem se traduz no “signo pensamento”, havendo, segundo Peirce no livro

“Semiótica” da coleção estudos (2003, p. 11), “uma relação de razão entre o signo e a coisa

significada”. Para tanto, todo a significação produzida pelos signos em seus vários níveis

(primeiridade, secundidade e terceiridade) atuaram em conjunto para que possamos perceber

as característica, relações factuais/indexicais e seus ajustes/combinações de acordo com o

período e lugar para que possam ser contextualizados de acordo com os conceitos que os

envolvem.

O simbolismo e o número sete: uma relação diagramática

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 522

A iconografia do crânio se apresenta como um legisigno icônico de morte, do resgate do

gênero humano por Jesus e de renascimento. As profecias do Antigo Testamento já

estabeleciam a sua correlação com a ressurreição, aparecendo também nos trajes dos monges

eremitas e aos pés de Maria Madalena para significar a morte para o mundo e o seu amor a

Deus. Assim aparece em Som e Fúria, quando Oliveira pega a fotografia (figura 1) na parede

do camarim de Elen, na qual ele está ao centro e beijando o crânio utilizado na apresentação

de Hamlet, significando um prenúncio do que lhe acontecerá após a apresentação de Sonho de

Uma Noite de Verão.

Figura 1. Fotografia tirada após a apresentação de Hamlet

O crânio implica em uma série de atributos inteligíveis que podem estar vinculados a

interpretações de caráter místico ou não. Uma das interpretações, que ela pode apresentar, diz-

nos que a vida é algo efêmero e volátil ao mostrar que não se pode escapar da morte.

O crânio de acordo com Chevalier (2009, p.298) representa a "sede do pensamento”,

assim como o Rei Hamlet nunca saiu do pensamento de seu filho, o mesmo acontece com

Dante e Oliveira e isto é reforçado a todo o momento durante a minissérie, mesmo antes de

Oliveira morrer, quando este está assistindo à encenação de Sonho de Uma Noite de Verão

junto com Naum (Gero Camilo) quando passa na televisão uma reportagem na qual Dante

está sendo preso porque não pagou o aluguel do teatro. Daí em diante, Oliveira aparece na

vida de Dante como um fantasma do passado e que mesmo depois de ter morrido, ele não o

abandona. Servindo assim para expressar a relação do ser humano com a vida e a morte.

O crânio que em Hamlet é de Yorick, na minissérie ele é apresentado como o crânio de

Oliveira, essa relação é mantida, pois de acordo com Harold Bloom, o bobo Yorick aparece na

peça como um segundo pai para o príncipe dinamarquês, fato este que já fora explicado

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 523

anteriormente e o enterro de Ofélia foi transmutado para a minissérie sob a forma do funeral

de Oliveira. Vejamos:

Figura 2. Preparativos para o funeral de Oliveira

Da mesma forma que na peça há dois coveiros e que um canta enquanto abre a sepultura

para Ofélia, em Som e Fúria há dois agentes funerários que após embalsamar o corpo de

Oliveira, tocarão acordeom e violino no momento em que Dante chega para se despedir do

amigo.

É nessa relação de Oliveira com Yorick e o prenúncio de sua morte (imagem 16) tendo a

fotografia com uma função anafórica ao mostrar o crânio nas mãos da personagem que

apresenta a “sua função de centro espiritual, o crânio é muitas vezes comparado ao céu do

corpo humano” (CHEVALIER, 2009, p. 299), estabelecendo uma relação de troca entre o céu

e a terra, na qual as personagens de pai, na peça e na minissérie, criam um caminho como uma

escada entre dois mundos através da identificação do filho com o seu genitor.

A palavra crânio em Hamlet é mencionada sete vezes, é uma alegoria que representa

pensamentos, ideias e qualidades sob forma figurada, mas que em cada elemento funciona

como disfarce dos elementos da ideia representada, do seu estado de espírito de acordo com a

forma a qual ele reage com o espectro de seu pai, assim também é Dante. Enquanto a

personagem literária escreve o quinto ato e ao mesmo tempo em que vive o seu dilema

familiar, ele não deixa de interpretar o próprio papel que ele escreveu, quer dizer, é difícil

saber quando o príncipe não está encenando. Sendo assim metalinguística, uma peça dentro de

outra em que todos são meramente atores, encenando sua peça/vida em cinco atos. É nesse

contexto de alegoria que aparece o número sete nessa conjuntura mística da peça em que

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 524

também há a aparição de espectros e esse número está presente no início da minissérie, logo

após o surto de Dante na imagem a seguir:

Imagem 3. Sete anos após o desastre da apresentação de Hamlet

Este número proporciona um interessante debate sobre o caráter simbólico de sua

presença na tragédia em que a sua aparição de forma explícita acontece com Lates:

Oh, fogo, consome meu cérebro! Lágrimas sete vezes salgadas, queimem a função e

o valor dos meus olhos! Juro pelos céus, tua loucura será paga em peso até que o

braço da balança penda para o nosso lado. Ó rosa de maio, virgem amada, boa irmã,

gentil Ofélia! (SHAKESPEARE, 2012, p. 592).

Este número está relacionado com a trindade (pai, filho e espírito santo) e com os quatro

elementos (terra, fogo, água e ar), se observarmos com atenção, a referência ao divino que é

feita quando Laertes jura pelos céus, ou seja, jura pela divindade. Os elementos da natureza,

por sua vez, são mencionados nas palavras fogo, lágrimas (referência à água), céus (podendo

ser abstraído como o ar) e rosa (a qual está vinculada a terra). Além disso, está relacionado à

criação do universo, os sete dias da semana, a relação do divino com o terreno (espectro do

Rei Hamlet e sua aparição para o filho e a de Oliveira para Dante), por fazer parte do ciclo

que consiste em perdoar para ser perdoado, atuando como o olvido total das ofensas, sendo

sincero e generoso com quem o ofendeu, tal qual faz Dante com Oliveira.

Percebe-se que esse simbolismo em torno do número sete está presente nos textos

bíblicos: Caim é amaldiçoado sete vezes. Lameque, por sua vez, é castigado setenta vezes

sete. Adão tem outro filho que se chama Sete e que veio no lugar de Abel. Este número, de

acordo com o ocultismo, algumas religiões e seitas, estabelece uma relação entre o divino e o

humano.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 525

Ser divino ou ser humano? Eis a questão. Como o pecado está relacionado ao humano e o

perdão ao divino, nota-se um ciclo em que começa com o pecado cometido por Caim, depois

o de Lameque e ele conclui com o nascimento de Sete para ocupar o lugar de Abel, assim

como Fortinbrás ocupa o de Hamlet, que começou a invocar o nome do Senhor. Sete vai

reunir em si a relação bem versus mal, humano/divino, pecado/perdão, pois ao “assumir o

lugar de Abel” como se fosse a sua reencarnação, ele é o elo entre todos os acontecimentos. O

pecado e o perdão. Assim como acontece com o Rei e Oliveira, aos quais todos os

acontecimentos estão relacionados.

Mas há também as correlações implícitas com este número, como por exemplo, a

quantidade de solilóquios de Hamlet que se assemelha a quantidade de súplicas do Pai Nosso.

Súplicas:

Santificado seja o Vosso nome;

Venha a nós o Vosso reino;

Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu;

O pão nosso de cada dia nos dai hoje;

Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem de ofendido;

Não nos deixeis cair em tentação;

Livrai-nos do mal.

Solilóquios:

O espírito de meu pai! E armado! Nem tudo está bem;

Oh, que esta carne tão, tão maculada, derretesse, (...)

Agora estou só. Oh, que ignóbil eu sou, que escravo abjeto!

Ser ou não ser – eis a questão.

Agora chega a hora maligna da noite, (...)

Eu devo agir é agora; ele agora está rezando.

Todos os acontecimentos parecem me acusar, (...)

Esse número tão presente na obra literária também possui seu papel de destaque na

minissérie, ao começar com o período que Dante passou fora do teatro e pela última produção

de Sonho de Uma Noite de Verão de Oliveira, a qual era o seu sétimo sonho que, assim como

na tradição da hatha-ioga que busca alcançar os sete chacras que é considerado a perfeição.

No panorama da Europa Medieval, o número sete possuía grande relevância como os sete

dons do Espírito Santo, as sete virtudes, as sete artes, as sete ciências, os sete sacramentos, os

sete pecados capitais e as sete petições expressas no Pai Nosso. É nessa relação de

transformação, concebendo a expressão do indivíduo para identificar o misticismo, na

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 526

constante busca de Hamlet pelo conhecimento através de seus questionamentos infindáveis

que se desenvolve a peça, por possuir ideias únicas e incompreendidas na obra. Mostrando

para o leitor e telespectador que as personagens Hamlet e Dante, ao contrário das outras, estão

em constante evolução enquanto os outros aparecem acabados/completos, os quais estão

inseridos em um grande circuito em que tudo é transitório.

É com esse aspecto metamórfico que Hamlet se apresenta durante a sua trajetória,

perceptível também a sua evolução nos solilóquios como se marcassem o amadurecimento da

personagem de acordo com a convivência que ele possui com as pessoas que traíram o seu pai

e agora o trai, que a personagem se apresenta para o leitor como se ele mesmo estivesse

escrevendo a peça, além de aparecer duas vezes na própria história como o Rei Hamlet dá

início à história, mesmo estando morto, e o seu filho a conclui como se fossem uma única

pessoa a observar as atitudes dos que o cercam. Nesse momento entra em cena, mais uma vez,

o número sete, assim como uma missa de sétimo dia para o Rei que já morrera, as

verbalizações em primeira pessoa de Hamlet com a sua própria consciência iniciam e

concluem com um mesmo tema morte. E, como não é de se espantar, todas as pessoas que

tramaram contra Hamlet morrem ao final, fechando um conjunto de sete mortes Polônio,

Ofélia, Guildenstern, Rosecrantz, Laertes, Gertrudes e Cláudio.

Conclusão

Parecemos ser una especie que es llevada por el deseo de hacer significados: sobre

todo, de seguro que nosotros somos Homo significans – es decir, creadores - de

significados. Y es esta creación-de - significados que está em el corazón de las

preocupaciones de los semióticos. Em la semiótica, los ‘signos’ son unidades

significativas que toman la forma de palabras, de imágenes, de sonidos, de gestos o

de objetos. Tales cosas se convierten en signos cuando les ponemos significados1.

[Fidalgo]

Ao término deste trabalho, chegamos à conclusão que tudo a nossa volta tem um

significado que é resultado de associações ou convenções que nós mesmos fazemos para que

possamos ligar o significado de uma coisa à outra, tendo em vista o contexto social. A partir

disso se torna possível colocar um elemento em termos de outro e compará-los.

1 Aparentemente, somos uma espécie que é movida pelo desejo de produzir sentido: acima de tudo, estamos

certos de que o homo sapiens - ou seja – criador de significado. Esta criação é, portanto, o cerne das ponderações

semióticas. Na semiótica, os "signos" são unidades dotadas de sentido que tomam a forma de palavras, imagens,

sons, gestos ou objetos. Estas unidades tornam-se signos quando as preenchemos de significados. (Tradução

nossa)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 527

Esses elementos podem ser imagens, gestos ou objetos, como Fidalgo exemplifica na

citação acima. Esses signos tornam possível comparar dois tipos de linguagem, como fizemos

nesse trabalho, e compreender que o argumento, a terceiridade da terceiridade na Teoria Geral

dos Signos de Charles Sanders Peirce, por nós construído advém do compartilhamento de

características que peça Hamlet e a microssérie Som e Fúria apresentam, além dos símbolos

presentes em ambas que possibilitaram ampliar a leitura dos dois textos.

Referências

ANDREW, J. D. As principais teorias do cinema: uma introdução. Tradução de TerezaOttoni.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2002.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos.Trad. De Vera Costa e Silva.

Rio de Janeiro: J. Olympio, 2009.

FERRAZ JÚNIOR, E. Semiótica aplicada à linguagem literária. João Pessoa: UFPB, 2012.

FIDALGO, A. Semiótica: A Lógica da Comunicação. Portugal: UBI. 1998.

FIDALGO, A.; GRADIM, A. Manual de Semiótica. Portugal: UBI. 2004.

NÖTH, W. Panorama da semiótica: de Platão a Peirce. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2003.

PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva.3. ed., 2003.

PLAZA, J. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.

SHAKESPEARE, W. Shakespeare: Obrasescolhidas. Tradução de Millôr Fernandes. Porto

Alegre: L&PM, 2012.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 528

ENSINO, ESCRITA E AUTORIA: A CONSTITUIÇÃO DO

SUJEITO-AUTOR NO CONTEXTO ESCOLAR [Voltar para Sumário]

Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)1

Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)2

1. Concepções de autoria no espaço-escola – um recorte histórico

Realizar uma reflexão acerca dos processos de autoria dentro da escola é de grande

relevância para o trabalho de todos os professores – especialmente para o trabalho dos de

língua materna. Os professores de língua portuguesa, por vezes, ao realizar as leituras das

produções de seus alunos, têm a nítida impressão de já ter lido determinado texto em outra

oportunidade. Tem de fato a impressão de estar lendo o mesmo texto mais uma vez. Esse

efeito de reconhecimento acontece sempre que o autor não trabalha o seu como dizer no

processo de construção textual.

Não se evidencia aí o fato de o aluno não saber discutir temáticas relevantes que lhe

são propostas em sala de aula ou que as discutam de forma extremamente previsíveis. Ao

contrário disso, pois se bem observadas as produções textuais elaboradas pelos alunos, no

período escolar, fica evidente a competência deles quanto ao conteúdo abordado. Ou seja,

definitivamente, o problema não é de conteúdo.

Então, por que existe o encantamento por determinados textos e por outros não? O que

faz com que um texto seja interessante para o leitor? De onde se origina o efeito de

1 Mestranda em Educação Brasileira – PPGE/CEDU/UFAL - Linha e Grupo de Pesquisa: Educação e

Linguagem. Professora de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Alagoas (IFAL). 2 Mestrando pelo programa PROFLETRAS – UFAL. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira

pela Universidade de São Paulo / Academia Alagoana de Letras (UNICID/AAL). Graduado em Letras pela

Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor substituto de Língua Latina na Universidade Federal de

Alagoas (2004 - 2206). Professor de Língua Latina e Língua Portuguesa na Faculdade de Formação de

Professores de Penedo (2003 - 2007). Professor de Língua Latina, Linguística e Língua Portuguesa na

Universidade Estadual de Alagoas (2009 - 2015). Professor do quadro de professores da Secretaria Estadual

de Educação de Alagoas (SEED) e do quadro da Secretaria Municipal de Educação de Maceió (SEMED).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 529

singularidade de que certos textos são constituídos? Essas são questões bastante relevantes

para quem se propõe a trabalhar com textos produzidos no ambiente escolar, pois elas

remetem às noções de autoria e de singularidade. A materialidade discursiva dá a

oportunidade de desvendar os processos de constituição da autoria. E dos processos vem

sempre à tona um sujeito que, inscrito no discurso, relaciona-se com ele de diversas maneiras,

tomando como base as regras sociais em que o discurso acontece.

Pensar o sujeito produtor de textos, dentro de um contexto escolarizado de língua

materna, é pensar nele na perspectiva dos diferentes modos de dizer presentes no processo de

produção textual, assim como o fizeram os autores acima citados. Isso nos impulsiona a

discutir questões acerca da natureza do que é o autor e de que forma a autoria se faz presente

nos mais diversos gêneros trabalhados dentro do universo escolar. Desta forma, pensar no

processo de produção de texto é pensar de que forma se configura a autoria e de que forma o

sujeito-produtor-de-texto adquire a posição de autor.

Por se tratar de um assunto muito importante para o entendimento da relação

aluno/produção textual/autor(ia), inúmeros são os questionamentos acerca dessa temática, tais

como: O que é de fato um autor? Como o autor se constitui no espaço escolar? É autor apenas

quem funda discursividades? Como se dá o processo de autoria dentro da escola? A escola

desenvolve o processo autoral dos alunos-produtores-de-textos? Que critérios existem para se

identificar um texto autoral na escola? De que forma os alunos se apropriam cada vez mais de

sua condição de sujeito-autor no ato da produção de texto na escola? De que maneira a escrita

autoral pode ser entendida como a consolidação de um processo? E esse processo pode se

configurar tomando como base as marcas subjetivas do autor? Quais seriam e como poderiam

ser organizados os indícios de autoria em textos de alunos? Enfim, como identificar a

presenca do autor – como encontrar autoria num texto, como distinguir textos com de textos

sem autoria?

Quando o sujeito se deixa perceber em seu próprio dizer, o texto – evidentemente –

aponta para o seu autor. E é exatamente nesse processo que o sujeito ora minimiza a

intensidade de sua presença, ora se deixa perceber de forma mais incisiva. Diversos estudos já

demonstraram que há vários indícios que indicam a presença do sujeito-autor nos enunciados

que produz, tais como:

a. A partir da escolha de determinadas marcas linguístico-discursivas usadas pelo

sujeito na construção de seus textos, pode-se encontrar sua inscrição na linguagem;

b. O fato de o aluno realizar a adequação à norma gramatical padrão da língua

portuguesa em seus textos, ou seja, o uso do registro linguístico mais adequado às

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 530

expectativas do gênero textual empregado dentro de uma situação institucional

formal traz grandes informações a respeito do processo de autoria do aluno;

c. A exatidão do vocabulário escolhido no contexto de enunciação também denuncia

que o aluno faz uso do vocábulo mais apropriado para verbalizar sua intenção

enquanto autor ciente do seu dizer;

d. O uso competente dos elementos de coesão e dos operadores argumentativos na

construção dos textos, articulando uma relação gramatical e/ou argumentativa dentro

deles;

e. A presença de verbos e de advérbios modalizadores e suas respectivas locuções;

f. O uso comedido dos adjetivos elogiosos e o ato de fazer a inserção de pronomes

pessoais (primeira pessoa do singular ou do plural) no texto evidenciam também a

presença do autor;

g. A criação de expressões nominais para individualizar determinados referentes de

modo bem característico dentro da construção textual, num claro exemplo de

inventividade do autor quando realiza a recategorização de referente já presente na

cadeia do discurso – e quando da produção de paráfrases, por se tratar de um

procedimento de retomada de um conjunto de enunciados pronunciados por sujeito e

repronunciados pelo autor de maneira própria, mantendo, contudo, o mesmo

conteúdo semântico dos enunciados de origem;

h. A inclusão de informações diferenciadas, de subsídios novos difundidos pelo

autor, capazes de transformar o enfoque a respeito da temática em discussão e

surpreender o leitor pelo elevado nível de inovação e o intento de dar resposta ou

sugerir solução a uma situação-problema, a uma provocação ou a uma questão no

processo de interação mostra-se, assim como nos casos citados anteriormente, como

indícios de autoria.

Os sujeitos precisam, no entanto, se dar conta disso, para que possam cada vez mais

instaurar sua “identidade linguística” naquilo que escrevem. Trata-se de uma maneira de

demonstrar o que pensa acerca do assunto em discussão e de, ao mesmo tempo, trazer a

responsabilidade do discurso para si mesmo também. É preciso analisar os dados, por meio de

um mecanismo de apreciação e de interpretação, para compreendê-los na constituição de

textos com autoria. As escolas – mais especificamente os professores de língua portuguesa –

precisam desenvolver no aluno a consciência do papel que ele tem de sujeito-autor, ao

escrever seus textos/discursos.

A prática de produção de texto tem de absorver a noção de autoria que vê o aluno

como sujeito-autor daquilo que enuncia. Esse entendimento dará condições para o aluno

assumir uma escrita autoral e para os interlocutores dos seus textos encontrarem a inscrição

desses sujeitos na linguagem de uma forma mais factual. A partir dos anos 60, muitos

pensadores, tais como Roland Barthes (2012), Michel Foucault (1992), Bakhtin (1992; 2011)

e Sírio Possenti (2001; 2002) vêm significando e ressiginificando o conceito de sujeito-autor e

de autoria. Para que o processo de escrita autoral ganhe espaço na escola, faz-se

imprescindível compreender como a noção de autor e de autoria se constituiu ao longo da

história.

2. A morte do autor – escrita rápida e irrefletida

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 531

Barthes, em 1968, escreveu o polêmico e notável texto “A Morte do Autor”. Nele,

deixou evidente que a noção de autoria, como difundida na modernidade, vivia seu declínio.

No texto, é enfático ao dizer que o autor é um sujeito social e instituído de acordo com a

história. O sujeito-autor, para ele, não existe fora da linguagem nem muito menos existia antes

dela, ele é fruto da ação de escrever. Para o teórico, o autor só se faz autor quando escreve.

Para confirmar sua tese, o filósofo trazia à tona algumas teorias que colocavam o conceito de

autor dentro de uma visão restrita do termo.

Barthes fortaleceu seu pensamento mostrando que teóricos já tinham se colocado acerca

da questão da autoria e, com isso, tinham apontado sérias limitações. Ele se apoiou também

no Surrealismo, que trabalhava com uma escrita rápida e irrefletida, para ponderar sobre a

presença ou a ausência da autoria nos textos. E, finalmente, para o teórico, a Linguística veio

mostrar que os enunciados são construções vazias e funcionais. Ele era mais um dentre tantos

autores que criticavam a noção de autor ligada à ideia de um sujeito que escrevia de forma

singular para extravasar suas demandas interiores.

Segundo Barthes (2012), o afastamento do autor daquilo que escreve é um fato

histórico ou um ato de escritura, pois, quando da leitura de um texto, não se perde a presença

do autor. Para Barthes, um texto é um espaço de diversas dimensões. Nesse espaço – de

convergências e divergências – não há originalidade nas escrituras, já que o texto é um tecido

emaranhado de citações, provenientes das múltiplas culturas. Barthes (2012) ainda nos diz

que o escritor, no seu processo de escritura, imita sempre um gesto anterior, nunca original,

tendo como poder apenas a possibilidade de entrelaçar as escrituras. Dessa forma,

Sucedendo ao Autor, o escritor já não possui em si paixões, humores, sentimentos,

impressões, mas esse imenso dicionário de onde retira uma escritura que não pode

ter parada: a vida nunca faz outra coisa senão imitar o livro, e esse mesmo livro não

é mais que um tecido de signos, imitação perdida, infinitamente recuada.

(BARTHES, 2012, p.62).

Uma vez afastado o autor, a pretensão de “decifrar” um texto se torna totalmente inútil,

para Barthes (2012). Para ele, dar ao texto um autor é impor-lhe um travão, é prevê-lo de um

significado último, é fechar a escritura. Essa concepção convém muito à crítica, que quer dar-

se então como tarefa importante descobrir o autor (ou as suas hipóteses: a sociedade, a

história, a psiquê, a liberdade) sob a obra – encontrado o autor, o texto está “explicado”, o

crítico venceu; não é de admirar, portanto, que, historicamente, o reinado do autor tenha sido

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 532

também o do crítico, nem tampouco que a crítica (mesmo a nova) esteja hoje abalada ao

mesmo tempo que o autor. Para Barthes (2012),

Assim se desvenda o ser total da escritura: um texto é feito de escrituras múltiplas,

oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em

paródia, em contestação; mas há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse

lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço

mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é

feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino,

mas esse destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem

biografia, sem psicologia; ele é apenas esse alguém que mantém reunidos em um

mesmo campo todos os traços de que é constituído o escrito. (BARTHES, 2012, p.

64).

Na escritura múltipla, conforme Barthes (2012), com efeito, tudo está para ser

deslindado, mas nada para ser decifrado; a estrutura pode ser seguida, “desfiada” em todas as

suas retomadas e em todos os seus estágios, mas não há fundo; o espaço da escritura pode ser

percorrido, e não penetrado; a escritura propõe sentido sem parar, mas é sempre para evaporá-

lo: ela procede a uma isenção sistemática do sentido.

3. Apagamento do sujeito versus surgimento do autor

Michel Foucault (1969) levantou a polêmica questão em relação à morte do autor. Para

o teórico, a morte do autor é bastante questionável e complexa, já que sua existência é real,

mesmo depois de sua morte. Para ele, o que define exatamente o autor é a sua relação com

uma obra ou com uma discursividade. Assim, Foucault abriu imensas possibilidades – ao

contrário de Barthes – de investigação acerca desse assunto. O entrave existente em sua teoria

está no fato de como compreender a autoria em textos que não sejam reconhecidamente uma

obra ou uma discursividade. Ou seja, para Foucault, só existe autor quando existe uma obra

que possa – indiscutivelmente – ser associada a esse autor.

É, portanto, a figura do autor que dá unidade a uma obra, de acordo com Foucault.

Porém, é importante salientar que, para o teórico, a noção de autor é discursiva, porque a

construção deste se dá por meio de um conjunto de textos que lhe é atribuído, levando-se em

consideração uma série de fatores inerentes ao que produz e enuncia. É por isso que fica tão

evidente, nos estudos de Foucault, a distinção entre autor (aquele que é reconhecido pelo

modo como seus discursos são vistos e considerados em distintas épocas em cada sociedade)

e escritor (aquele que escreve).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 533

Depois de pouco tempo, Foucault, em seu texto “O que é um Autor?”, avoluma o

pensamento de Barthes acerca do apagamento do sujeito enquanto autor do que escreve.

Foucault afirma que a escrita, na contemporaneidade, é marcada pela prática, não pelo

resultado, não importando, assim, quem de fato escreve. O teórico é categórico ao dizer que a

escrita se distanciou da questão da expressividade, pois ela se identifica com sua própria

aparência, com aquilo que lhe é exterior. Foucault salienta que

Um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser

sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome etc.); ele exerce

um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória; tal

nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir

alguns, opô-los a outros. Por outro lado, ele relaciona os textos entre si.

(FOUCAULT, 1992)

O fato de existir um nome de autor, para Foucault (1992), portanto, indica que o

discurso não é aleatório, indiferente, transitório, mas constituído de uma forma que lhe dá o

devido status. O teórico vai mais adiante ao dizer que o nome do autor manifesta a existência

de uma diversidade de discursos e de sua singular forma de ser. Para o autor, a função-autor é

característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no

interior de uma sociedade. Um discurso portador da função-autor, para Foucault (1992), deve

possuir as seguintes características: a) inicialmente, elas são objetos de apropriação; b) a

forma de propriedade da qual elas decorrem é de um tipo bastante particular; c) ela foi

codificada há um certo número de anos.

Barthes e Foucault dão conta, em suas teorias, do desaparecimento do sujeito-autor,

especialmente, porque acreditavam também que seu aniquilamento ocorreu devido à ideia de

que ele existia para cumprir um lugar dentro da composição discursiva. Foucault (1992), em

seu texto "O que é um autor?", relata que na antiguidade os textos circulavam sem que seus

autores precisassem ser identificados, pois se acreditava até então que as narrativas, as

epopeias, as tragédias, os contos e as comédias já possuíam garantia satisfatória de

autenticidade. Sobre isso, Foucault diz que

O nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para

um discurso, o fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer "isso foi

escrito por tal pessoa", ou "tal pessoa é o autor disso", indica que esse discurso não é

uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa,

uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve

ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um

certo status. (FOUCAULT, 1992)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 534

Isso não quer dizer que o autor não existe para Foucault, quer dizer que “o autor deve se

apagar ou ser apagado em proveito das formas próprias ao discurso”. (FOUCAULT, 1992).

Para o teórico, o preceito do apagamento do escritor ou do autor consente expor o jogo da

função-autor, a definição de como se desempenha tal função, em quais circunstâncias, em que

campo e as condições nas quais é plausível que um indivíduo preenchesse a função do sujeito,

enfim.

4. O autor-criador bakhtiniano

Já para Bakhtin, em seu texto “O autor e o herói na atividade estética”, o autor-pessoa [a

pessoa física] é diferente do autor-criador [função estética e formal engendradora da obra]. O

autor-criador é, segundo o filósofo, parte integrante do objeto estético, ou seja, é o sujeito-

criador que dá suporte ao produto composicional arquitetônica e esteticamente produzido. O

autor-criador é uma posição estética e formal que torna palpável uma determinada relação

axiológica com o herói e seu mundo. Faz-se imprescindível destacar que uma posição

axiológica não é um constituinte único e homogêneo. E é essa posição axiológica que dará

forma ao conteúdo. Conteúdo este que poderá ser trabalhado a partir de múltiplas

perspectivas. Para Bakhtin,

O autor-criador nos ajuda a compreender também o autor-pessoa, e já depois suas

declarações sobre sua obra ganharão significado elucidativo e complementar. As

personagens criadas se desligam do processo que as criou e começam a levar uma

vida autônoma no mundo, e de igual maneira o mesmo se dá com o real criador-

autor. (BAKHTIN, 2011, p. 6)

Quando o autor-criador materializa o conjunto, consequentemente, apropria-se da

linguagem, não como código somente, mas – e especialmente – como enunciado concreto nas

mais variadas significações axiológicas. A materialidade da arte, para o teórico, deve ser

sempre superada, pois deve ultrapassar a questão da norma em si, a transposição automática

dos enunciados concretos para atingir a língua em uso para um outro modelo de valor. Dessa

forma, para Bakhtin, o autor-criador é – ao mesmo tempo – uma posição que se constitui a

partir de uma posição axiológica delineada pelo campo de valor do autor-pessoa; e, por meio

dessa posição axiológica do autor-pessoa, é que os eventos da vida se constituem. Para o

Círculo de Bakhtin, é bom lembrar que os procedimentos semióticos – concomitantemente –

refletem e refratam o mundo. Para Bakhtin,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 535

O autor deve estar situado na fronteira do mundo que ele cria como seu criador

ativo, pois se invadir esse mundo ele lhe destrói a estabilidade estética. [...] O autor

ocupa uma posição responsável no acontecimento do existir, opera com elementos

desse acontecimento e por isso a sua obra é também um momento desse

acontecimento. (BAKHTIN, 2011, p. 177)

Não é a forma externa do texto que lhe dá, essencialmente, a uniformidade, conforme os

estudos de Bakhtin. Esta lhe é dada – no momento da criação – por meio de um variado

agrupamento de relações valorativas que estão presentes na hora da produção. Olhar para o

texto é, por conseguinte, olhá-lo a partir de uma visão macro. É olhá-lo a partir de suas inter-

relações de dialogia e de axiologia para lhe dar uma resposta, uma vez que o ato da

compreensão é por natureza responsivo. É de grande importância, de acordo com Bakhtin,

não analisar um texto de forma abstrata (meramente linguística, por exemplo), já que é nas

relações de dialogia e de axiologia que ele se constitui enquanto texto. Para Bakhtin (1998), o

discurso assinala uma relação de alteridade, pois

[...] Qualquer discurso da prosa extra artística – de costumes, retórica, da ciência, –

não pode deixar de se orientar para o “já-dito”, para o “conhecido”, “para a opinião

pública” etc. A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio de todo

discurso. [...] Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só

em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar (BAKHTIN,

[1975], 1998, p. 88).

São inúmeros os sistemas que margeiam a vida do sujeito, em seu cotidiano. Isso nos

consentiria pensar, a princípio, que seu livre-arbítrio estaria comprometido, já que as pressões

são múltiplas. Mas, ao contrário disso, é fato que ainda existem silêncios para que ele possa

preenchê-los a partir de suas atitudes e opções verbais, ao elaborar seus discursos e suas

tomadas de decisão. É preciso esclarecer que o texto, enquanto evento polifônico, admite a

presença do outro na essência do seu próprio discurso, as vozes dos outros se combinam com

a voz do sujeito-autor. Essas vozes são de natureza social, para Bakhtin.

Não é tarefa fácil para o sujeito ter autonomia discursiva diante de estruturas tão

arraigadas socialmente. Porém, necessariamente possível, ao contrário do discurso ensaiado

nos mais distintos espaços de educação do país, quando o professor, especialmente o de

língua portuguesa, ao dizer que o aluno é um mero reprodutor dos discursos que consome

socialmente e que dificilmente se liberta deles em seus escritos, por causa da grande alienação

a que são submetidos diariamente.

Os sujeitos conseguem fugir desse estigma quando, diante de um universo de

elementos alegóricos e de recursos linguísticos, selecionam um em detrimento de outro para

produzir seus discursos. Trata-se do exato momento em que o sujeito, nessas construções e

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 536

desconstruções, subverte a linguagem, com o objetivo de se distanciar do discurso “enlatado”

estabelecido pelas esferas econômica, política e social. Ao contrário disso, em muitas

situações, o sujeito tem de adequar o seu dizer e o seu fazer às limitações que lhe são

impostas, nas mais distintas situações do cotidiano. O que muitas vezes faz com que o sujeito

não expresse o que realmente gostaria de dizer.

5. A autoria que abre aspas para a singularidade

Ao contrário de Barthes e Foucault (mais próximo de Bakhtin), Possenti – em

inúmeros trabalhos – oferece aos seus leitores um novo olhar para a noção de autoria. Este

propõe uma redefinição da noção de autoria, a fim de que ela possa ser vista não somente em

textos que fazem parte de uma obra ou de uma discursividade, mas também em outros textos.

Por isso mesmo, Possenti (2002) aponta o fato de a nova noção de autoria estar diretamente

atrelada à noção de singularidade, que, por sua vez, já remete à noção de estilo – que para ele

trata-se de uma determinada forma de organizar uma sequência de qualquer tamanho,

deixando evidente que o que se faz de relevante nesse processo é como se efetiva a relação

entre a organização e o efeito de sentido que será produzido a partir disso.

Possenti (2002) diz, portanto, que “é impossível pensar na noção de autor sem

considerar de alguma forma a noção de singularidade, que, consequentemente, não poderia

escapar de uma aproximação com a questão do estilo”. Trata-se, dessa forma, de tornar prática

essa noção – quem sabe detectável em descrições, em indicativos, como os riscos de que isto

seja percebido como uma proposta que se alcance ao enumerar traços imprescindíveis e

satisfatórios. Para o autor,

Os elementos fundamentais para repensar a noção, imagino, são os seguintes: por

um lado, deve-se reconhecer que, tipicamente, quando se fala de autoria, pensa-se

em alguma manifestação peculiar relacionada à escrita; em segundo lugar, não se

pode imaginar que alguém seja autor, se seus textos não se inscreverem em

discursos, ou seja, em domínios de “memória” que façam sentido; por fim, creio que

nem vale a pena tratar de autoria sem enfrentar o desafio de imaginar verdadeira a

hipótese de uma certa pessoalidade, de alguma singularidade. (POSSENTI, 2001, p.

15-21)

O que fica evidente, nos estudos de Possenti, é que textos com autoria são aqueles em

que os sujeitos – ao arquitetarem um projeto de dizer – fazem-no de uma forma que se torna

possível apreender a presença marcante de um autor. E isso é possível graças ao fato de o

sujeito realizar um trabalho bem particular no seu dizer, ao manipular os elementos

linguísticos de que dispõe em seu repertório. Possenti ainda esclarece que o sujeito-autor, ao

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 537

realizar seu trabalho com a linguagem – de maneira consciente ou não – constrói seu texto de

forma bem singular. O que se pode concluir – a partir da noção de autoria expressa por

Possenti – é que um texto com autoria é um texto bem produzido. E com efeito de

singularidade. Ao contrário dos textos sem autoria – totalmente previsíveis.

Ao escrever, o sujeito deixa marcas que podem ser encontradas desde as primeiras

palavras do seu texto/discurso até a última. Podemos perceber o sujeito produtor de sentidos,

dentro das suas construções verbais, simplesmente pelo fato de que sua presença é concreta.

Por isso, faz-se imprescindível, o quanto antes, que o aluno tenha consciência disso, a fim de

que ele possa, no decorrer da sua história de escrevente, ir aperfeiçoando essa condição que

lhe é inerente: a de produtor de textos, nas mais distintas modalidades e situações de uso,

consciente de sua presença naquilo que escreve.

A apropriação das concepções de Possenti sobre autoria evidencia de que forma se

deve enxergar o efeito de singularidade presente nos textos dos alunos. E não só isso: os

estudos do autor permitem ir além do enxergar. Eles oportunizam a compreensão – não

somente da forma como os efeitos de singularidade são produzidos, bem como da produção

de outros efeitos, a exemplo da imposição de uma determinada leitura, de uma certa forma de

ver e refratar o mundo – já que os sujeitos-produtores-de-textos, ao exercitarem a autoria nos

seus escritos, eles utilizam-na de uma determinada posição, desenhando, dessa forma, aquilo

que dá a conhecer ao leitor.

Conduzir o aluno a se apropriar dos indícios de sua presença dentro dos textos que

produz, consequentemente, é competência da escola, que deve, em seu planejamento,

descobrir qual a melhor estratégia para conduzi-lo a essa assimilação de forma consciente. É

importante ressaltar que textos bem escritos, para Possenti, não são os que obedecem a

exigências de ordem textual ou gramatical. Não é assim que se constrói um texto de autor.

Para o teórico, o autor se faz autor quando assume duas atitudes: dar voz a outros

enunciadores e manter distância em relação ao próprio texto. Para o autor,

Locutores/enunciadores constituem-se enquanto tais em boa medida por manterem

sua posição em relação ao que dizem e em relação a seus interlocutores. Se, numa

conversa, suspendem “o que estão dizendo” para explicar-se, diante de alguma

reação do outro, visível ou imaginável, é disso que se trata (o locutor diz, por

exemplo, “não pense que estou exagerando”, “e olhe que não sou bairrista” etc.).

(POSSENTI, 2002, p. 173)

Nesse sentido, fica claro que o sujeito, fruto da inter-relação do social com o

ideológico, não constrói seu discurso sozinho. Seus enunciados constituídos dentro de uma

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 538

realidade histórica determinada/determinante são também de sua responsabilidade, pois o

movimento dialógico que estabelece com outros sujeitos lhe dá as condições necessárias para

ser atuante naquilo que escreve. Dessa forma, ao se comunicar, o sujeito põe em evidência o

caráter diversificado da língua, devido ao fato de ela ser suscetível às transformações

históricas, sociais e culturais.

6. A escola a caminho da “autoria”

Cabe à escola, a partir da mediação direta do trabalho pedagógico do professor,

apontar aos sujeitos os caminhos para que eles se apropriem da condição de autor daquilo que

enunciam, com o claro objetivo de compreender que nos enunciados que constroem há uma

margem não preenchida que pode ser habilmente descoberta e linguisticamente bem

aproveitada por eles, a fim de que produzam discursos cada vez mais autônomos – autorais.

Isso dará ao aluno maior competência para dizer de forma inventiva o que desejar

dizer. O trabalho criativo que se realiza com as formas da língua emerge, na verdade, quando

o dito é dito de uma forma bem singular. Na escola, são encontrados textos que são

verdadeiramente um celeiro do empenho do aluno no uso das formas linguísticas de maneira

competente e bem particular.

Quando o sujeito toma consciência das possibilidades de trabalhar a linguagem de

maneira criativa e subversiva, seus escritos passam a ser produzidos de forma bem singular, a

partir das inúmeras situações que a língua lhe oferece para realizar seu trabalho com grande

competência. Assim, nesse movimento de produção de sentidos autônomo, o sujeito se

constitui como autor do seu dizer.

O sujeito se torna autor quando manipula as formas linguísticas a fim de produzir

discursos singulares, não o é porque simplesmente cria o texto, mas porque o cria a partir de

todo um trabalho particular com a linguagem, utilizando-se, para essa construção, dos

elementos disponíveis no sistema. A função de autor que norteia este trabalho está voltada

para uma noção de sujeito-arquiteto-do-seu-dizer.

A autoria, portanto, neste trabalho, está ligada à noção de autor como sujeito

discursivamente constituído por seu dizer autoral. O sujeito-autor é aquele que produz seu

discurso de forma bem particular. Não se trata de entender esse processo de criação como

algo nunca visto antes, muito menos lido em qualquer lugar do mundo. Trata-se de textualizar

seus enunciados, instituindo neles critérios como a coesão, a coerência e o princípio da

unidade, com singularidades próprias do seu dizer. Quanto mais os alunos se apropriam da

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 539

competência autoral, mais deixam marcas da sua subjetividade, de si mesmo enquanto autor,

nos textos que produzem.

Referências

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. (Prefácio à edição francesa

Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. – 6ª ed. – São Paulo: Editora

WMF Martins Fontes, 2011)

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi

Vieira. 6. Ed. São Paulo: Hucitec, 1992.

BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora de

Unesp/Hucitec, 1998.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. 5.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,

2012.

FOUCAULT, M. O que é um autor? Trad. António Fernandes Cascais e Eduardo Cordeiro. 3

ed. Portugal: Veja, 1992.

POSSENTI, S. Enunciação, autoria e estilo. Revista da FAEEBA, Salvador, n. 15, 2001.

POSSENTI, S. Indícios de autoria. Perspectiva, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 105- 125,

jan./jun. 2002. Disponível em: <www.

Periódicos.ufsc.br/índex.php/perspectiva/article/view/10411>. Acesso em: 23 jan. 2014.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 540

FERDINAND DE SAUSSURE E EUGÊNIO COSERIU:

PROPOSIÇÕES SOBRE O TEXTO [Voltar para Sumário]

Clemilton Lopes Pinheiro (UFRN)

1. Introdução

O nome de Ferdinand de Saussure é associado à fundação da linguística geral

moderna. Mas ele também desenvolveu pesquisas sobre as lendas germânicas (a epopeia dos

Nibelungos e as aventuras de Tristão) e sobre os anagramas. Essas pesquisas compõem o

vasto corpus de manuscritos de Saussure que se encontra no departamento de Manuscritos da

Biblioteca de Genebra. Alguns pesquisadores interpretam essa atividade a partir de uma

perspectiva textual, e postulam uma abordagem do texto nos estudos de Saussure.

Eugênio Coseriu utilizou o termo “linguística textual” pela primeira vez em meados

dos anos 1950 em um artigo que escreveu em espanhol: Determinación y entorno. De los

problemas de una linguística del hablar. Mais tarde, no início da década de 1980, o

pensamento de Coserio sobre o texto foi apresentado na obra Textlinguistik. Eine Einführung,

editada por Jörn Albrecht, a partir de um curso ministrado na Universidade de Tübingen. O

livro, traduzido para o italiano e para o espanhol, é dedicado inteiramente ao texto. Em suma,

trata-se de uma investigação sobre o texto concebido como tal, na década de setenta na

Alemanha, em uma época de transição entre o período de formação e consolidação de uma

ciência do texto.

Considerando que Coseriu é um dos maiores continuadores de Saussure, neste

trabalho, nós nos propomos a realizar um levantamento de questões epistemológicas e

metodológicas dos trabalhos sobre texto dos dois linguistas. Nosso objetivo é realizar um

debate teórico exploratório, identificando e relacionando posicionamentos no que diz respeito

à abordagem do texto. Para atingir esse objetivo, procedemos uma análise interpretativa da

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 541

proposta de Coseriu para o estudo do texto (COSERIU, 2007) e de partes dos manuscritos de

Saussure especificamente sobre as lendas germânicas (TURPIN, 2003)1.

2. Saussure e Coseriu: dois eminentes linguistas

O suíço Ferdinand de Saussure, nascido em Genebra, em 1857, é, indiscutivelmente, o

nome mais frequentemente evocado quando se trata da Linguística do século XX. Seus

primeiros trabalhos publicados ainda no século XIX trataram da gramática comparativa das

línguas indo-europeias, conforme o paradigma linguístico hegemônico na época. Em 1878,

ele publicou, em Leipzig, Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues Indo-

Européennes (Estudo sobre o sistema primitivo das vogais nas línguas indo-europeias),

quando tinha apenas 20 anos de idade. Em 1881, ele publicou sua tese de doutorado De

l’emploi du génitif absolu en sanscrit (Do uso do genitivo absoluto em sânscrito). Após uma

temporada na Alemanha, ele foi a Paris para continuar sua formação na École Pratique des

Hautes Études. Em Paris, ele realizou uma bela carreira. Em 1892, voltou para Genebra e

passou a ensinar na Universidade de Genebra sobre os temas: gramática comparada das

línguas germânicas, do grego e do latim, além de sânscrito e linguística geral. Ele faleceu na

cidade de Vufflens, em fevereiro de 1913.

Por meio de uma exploração das notas de aula de alguns alunos dos três últimos cursos

que Saussure ministrou sobre linguística geral, na Universidade de Genebra, no período de

1907 a 1911, Charles Bally e Albert Sechehaye organizaram o livro Cours de linguistique

générale (Curso de Linguística Geral – CLG), publicado em 1916 (SAUSSURE, 1978). Essa

obra deu a Saussure o respeitável título de “fundador da linguística moderna” e se tornou um

texto base para a área.

Seguindo de perto o CLG, a divulgação das ideias de Saussure focalizou a

apresentação de dicotomias ou oposições (langue/parole, sintagma/paradigma,

forma/substância, significado/significante, sincronia/diacronia) em torno das quais foi

delimitado o objeto de estudo primordial da Linguística: a língua, entendida como um sistema

de signos que deve ser estudado nele mesmo, por ele mesmo. É assim que o CLG representa

um momento decisivo na história da Linguística como ciência. “Ele permanece, enfim, ainda

1 Os manuscritos de Saussure sobre as lendas estão divididos em três lotes: 8 cadernos, 383 folhas (BGE Ms. fr.

3958/1 a 8), 10 cadernos, 228 folhas (BGE Ms. fr. 3959/1 a 10) e 228 folhas avulsas (BGE Ms. fr. 3959/11). Há

apenas edições parciais desse material. Uma das mais completas é a de Turpin (2003).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 542

hoje, um texto de introdução à Linguística nos inúmeros cursos universitários no mundo

inteiro” (COLOMBAT, FOURNIER e PUECH, 2010, p. 25)2.

Algumas reservas ao trabalho de Bally e de Sechehaye como uma reconstrução,

baseada em fontes heterogêneas e fragmentadas, do pensamento de Saussure, foram mesmo

apresentadas por alguns dos seus antigos alunos, mas permaneceram sem eco durante muito

tempo (BOUQUET, 2010). Os trabalhos críticos de Godel, Engler e De Mauro, a partir de

fontes manuscritas, principalmente os cadernos dos alunos, começaram também a mostrar

alguns problemas relacionados à reinterpretação e à apropriação do pensamento saussuriano

apresentado por ele mesmo.

Em 1996, durante trabalhos na antiga residência da família Saussure em Genebra, foi

encontrado um conjunto de folhas manuscritas pelo próprio Saussure. Esse material, doado à

Biblioteca de Genebra, integrou outras obras já existentes e foi publicado como Escritos de

linguística geral (SAUSSURE, 2002). A partir daí, começou a se desenvolver uma revisão

fundamental de muitos pontos abordados no CLG e consequentemente da imagem que até

então se tinha de Saussure. Instaura-se um intenso debate, diríamos até uma grande polêmica,

envolvendo o CLG e o conjunto das fontes manuscritas.

Eugenio Coseriu não conquistou a mesma celebridade de Saussure, mas não deixa de

ser menos importante para o pensamento linguístico moderno. Ele nasceu em 1921, numa

pequena cidade romena chamada Mihileni. Depois de seus estudos na Romênia e Itália, ele se

tornou professor de Linguístca Geral e indo-europeia, na Universidade de Montevidéu. Em

1963, é nomeado professor de linguística romana e geral, em Tübingen, Alemanha. Durante

os anos 70, a escola coseriana de Tübingen tornou-se uma das mais prestigiosas em linguística

românica, exercendo uma grande influência, principalmente no domínio da linguística geral e

da filosofia da linguagem.

Seu interesse pela linguística nasceu do amor pelas línguas e suas literaturas durante

os anos em que estudou filologia românica e eslava em Roma. Ele aprendeu muitas línguas,

porque queria ler os textos literários na língua original. Ele dominou o romeno, o italiano, o

espanhol, as línguas eslavas, o alemão, o inglês, o grego, e, já na velhice, ainda aprendeu

japonês (KABATEK, 2004).

Coseriu desenvolveu os princípios fundamentais de sua teoria da linguagem com base

ainda na linguística estrutural, mas dominou quase todas as áreas temáticas da linguística

geral e uma quantidade notável de estudos filológicos de línguas particulares. Não se trata de

2 Texto original em francês. Tradução nossa.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 543

uma afirmação exagerada, nem de retórica elogiosa. A lista de suas publicações abrange quase

todos os setores da linguística: a filosofia da linguagem, a teoria da linguagem, a metodologia

da linguística, a fonologia, a teoria gramatical, a semântica, a linguística de texto, a

dialetologia, a sociolinguística, a estilística, a história da teoria da tradução, a política

linguística, a história da linguística. A extensão temática de sua obra é uma manifestação

externa de sua concepção pessoal acerca do que é a linguagem e a própria linguística. A

proposta de Coseriu visava compreender toda a realidade da língua e integrá-la

sistematicamente em um modelo epistemológico funcional.

Segundo Kabatek (2004), Coseriu é frenquetemente visto como um puro estruturalista,

porque boa parte de sua obra fundamental, principalmente a dos anos 50, provém de um

confronto com as ideias de Saussure (as ideias presentes no CLG, talvez seja bom frisar). No

entanto, Kabatek assinala que os trabalhos de Coseriu sempre seguiram dois tipos de

objetivos.

De um lado, o de levar a sério a linguística estruturalista em toda sua extensão, ou

seja, recobrir todos os domínios da língua; de outro lado, o de mostrar seus limites,

pois, para Coseriu, o estruturalismo oferece apenas uma visão parcial da linguagem,

deixando entre parênteses uma série de fatos (excluídos pelas célebres “sete

distinções”) para alcançar seu objeto. O dever da “linguística integral” é, então, ir

também para além do estruturalismo e reintegrar tudo o que ele exclui. (KABATEK,

2004, p, 487)3

3. Saussure e Coseriu: as proposições sobre o texto

O ponto de partida de Coseriu para o estudo do texto é a sua proposta de que a

linguagem apresenta três níveis autônomos: 1) o nível universal ou nível do falar em geral; 2)

o nível histórico das línguas; 3) o nível individual dos textos (COSERIU, 1980, 2007).

O nível universal diz respeito aos fenômenos comuns a todas as línguas. A primeira

propriedade universal das línguas é seu caráter sígnico, ou seja, a possibilidade de referir-se a

algo que não se identifica com ela mesma. A comparação entre as línguas fornece uma

evidência para essa propriedade: diferentes línguas correspondem a configurações distintas

para uma mesma realidade extralinguística. Algumas atividades relacionadas à linguagem,

como a tradução, por exemplo, só são possíveis a partir do pressuposto de que diferentes

línguas podem referir-se a uma mesma realidade e o fazem de forma diferenciada. A segunda

propriedade que Coseriu atribui ao nível universal da linguagem é a faculdade universal de

falar, não determinada historicamente. “Trata-se de um saber falar que não coincide

3 Texto original em francês. Tradução nossa.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 544

simplesmente com o saber falar alemão, francês etc., mas que vale para toda língua e para

todo falar” (COSERIU, 2007, p. 131)4. O segundo nível autônomo do falar é o nível histórico

das línguas. Cada língua particular dispõe de um léxico estruturado de forma diferente, possui

sua própria gramática e seu sistema fonológico.

Para sustentar a autonomia do nível dos textos em relação ao nível universal e ao nível

histórico das línguas, Coseriu assinala, principalmente, o fato de que as regras da língua

podem ser suspensas no texto sem provocar rejeição, e de que os textos são influenciados

pelos universos de discurso - o que não acontece com as línguas - e têm tradições particulares,

diferentes das tradições das línguas históricas.

Coseriu procura formular os princípios de uma Linguística do Texto consistente com

essa concepção dos níveis da linguagem. Como os três níveis são considerados autônomos, a

Linguística do Texto está associada ao terceiro nível, o nível individual, e é caracterizada

como uma Linguística do sentido, que objetiva a hermenêutica do sentido dos textos e se

fundamenta em uma teoria da interpretação. Ao adotar essa posição, Coseriu tem clareza de

que sua concepção de Linguística do Texto é consideravelmente diferente dos trabalhos

dominantes na área, mas faz questão de enfatizar que é a “verdadeira” e “própria” Linguística

do Texto. (COSERIU, 2007, p. 156).

Nessa proposta, Coseriu distingue, portanto, dois conceitos de texto: o texto como

nível autônomo da linguagem e o texto como nível de estruturação idiomática, superior à

oração, ao sintagma, à palavra e aos elementos mínimos portadores de significado.

Consequentemente, o autor também delineia duas formas de Linguística do Texto, para ele,

cientificamente legítimas: a que concebe o texto como nível da linguagem em geral e a que

concebe o texto como um nível de estruturação das línguas. Ambas as modalidades não são

nem contrárias nem excludentes, mas complementares e integradas, pois se encontram em

distintos planos do linguístico: o propriamente idiomático e o individual.

Inicialmente, dois tipos de linguística de texto podem ser distinguidos. O objetivo do

primeiro são os textos como um nível autônomo da linguagem, independente da

língua em que se expressa. Essa linguística do texto seria a linguística do texto

propriamente dita (...). O segundo tipo de linguística do texto toma como objeto o

texto enquanto nível de estruturação idiomática. Por isso, e também em benefício da

clareza terminológica, se denominará gramática do texto ou gramática trans-

oracional (também análise trans-oracional ou transfrástica) (COSERIU, 2007, p.

116-17).

4 As citações originais de Coseriu (2007) estão em espanhol. Tradução nossa.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 545

A Linguística do Texto como ciência do nível individual do falar consiste, para

Coseriu, como já frisamos, antes de tudo, na explicação do sentido de cada texto, isto é, uma

hermenêutica do sentido. Por sua vez, a Gramática do Texto deve estudar os procedimentos

estritamente idiomáticos para a construção dos textos.

Coseriu assinala que, no âmbito dessa “linguística do texto idiomática”, muitos

trabalhos relevantes têm sido desenvolvidos nos últimos anos, mas reconhece também que “o

elevado nível técnico da investigação realizada nem sempre corresponde a uma delimitação

téorica suficientemente clara do objeto que se deseja investigar” (2007, p. 306)5.

Concretamente, nos dois tipos de Linguística do Texto, o texto é o mesmo, apenas é

considerado de modo distinto: nível autônomo da linguagem (Linguística do Texto

propriamente dita) ou nível de estruturação idiomática (Gramática Textual).

Ao comprovar e justificar o sentido dos textos particulares, a Linguística do Texto

propriamente dita só pode chegar a um tipo de generalização: a identificação de universais

empíricos, ou seja, de características comuns a vários textos (ou até mesmo a todos os textos).

Ao buscar as generalizações acerca das formas que o sentido assume nos textos, essa

Linguística do Texto pode ser identificada com a teoria da investigação das classes de textos.

Essa abordagem não coincide simplesmente com a dos gêneros, mas a engloba.

Como exemplo de sua abordagem do texto, Coseriu apresenta a análise da novela Dom

Quixote desenvolvida por Leo Spitzer com algumas alterações. A análise de Spitzer aponta

como característica fundamental do texto a instabilidade dos nomes dos personagens, que é

tomada como um indício importante para o sentido global. Coseriu argumenta que essa

análise capta apenas o sentido parcial do texto, porque toma como ponto de partida apenas um

indício, sem analisar os diversos estratos da articulação do sentido. A teoria hermenêutica

deve considerar que o sentido dos textos, assim como o sentido das frases, não é

simplesmente a soma do sentido de suas partes.

Para Coseriu, portanto, a busca do sentido da novela Dom Quixote deve partir da

articulação hierárquica do sentido das diversas partes. A instabilidade dos nomes é um entre

os vários fatores que contribuem para o sentido, e deve ser compreendida em sua conexão

5Paralelamente à proposta de Coseriu, a noção de uma gramática do texto foi o ponto de partida de alguns

pesquisadores que buscaram estudar estruturas transfrásticas, tais como cadeias referenciais e relações entre

orações. Naturalmente, a motivação desses estudos, diferente da de Coseriu, foi a constatação de que existiam

fenômenos linguísticos cuja explicação no nível da oração não era suficiente. Daí surgiu o postulado teórico de

que é o texto, e não a oração, a unidade básica da língua. Desenvolveu-se, portanto, uma série de estudos

teóricos com o objetivo de descrever e explicar os princípios universais e as regras específicas subjacentes à

constituição do texto. Blühdorn e Andrade (2005) apresentam um balanço da situação dessa “Linguística

Textual” na Alemanha e no Brasil em que fazem uma boa retrospectiva da questão do surgimento das gramáticas

textuais. Um “estado da arte” dos estudos do texto no contexto francês é também apresentado por Adam (2010).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 546

com as demais características do texto. O sentido resulta da análise integrada do sentido de

partes do texto: os nomes dos personagens são instáveis, o entusiasmo de Dom Quixote ao

falar da liberdade, a atividade de Dom Quixote de libertar várias personagens, o governo de

Sancho Pança.

A conclusão, após o levantamento dessas características, é a de que Dom Quixote é

“um poema sobre a liberdade” (COSERIU, 2007, p. 269). No conjunto do texto, a

instabilidade dos nomes pode também ser interpretada como um momento de liberdade: as

pessoas são livres para nomear as coisas e todo nome corresponde a uma forma determinada

de ver as coisas. A parte trágica reside no fato de que as possibilidades de luta pela liberdade

são limitadas, ligadas à demência do herói, e abandonadas quando ele é vencido e curado da

loucura.

Em Saussure, não há explicitamente alusão a uma perspectiva teórica de abordagem

textual6. Se há alguma, ela é apenas inferida nas análises que ele desenvolveu sobre as lendas

e os anagramas. Segundo Rastier (2009), essas análises “testemunham um verdadeiro

pensamento da textualidade” (2009, p. 18), “buscam as normas de composição das lendas, a

compreensão das suas transformações gerais, sem neglicenciar o problema das suas raízes

históricas, pelo viés da sua relação com a linguística externa” (2009, p. 21). Para Rastier, a

textualidade corresponde a uma relação semiótica fundamental e é um dos eixos dos estudos

textuais, “que relaciona a palavra, a passagem, o texto e o corpus” (2009, p. 21)7.

De fato, a leitura dos manuscritos de Saussure sobre as lendas não deixa dúvida de que

estamos diante de uma análise textual.

A teoria das cenas parece se aproximar da teoria dos motivos, porque nos dois casos

arranja-se um texto dado de alguma forma com o que o cerca. (Ms. fr. 3959/2 -

TURPIN, 2003, p. 408).

Sem dúvida, há aqui uma verdadeira confusão de termos ou de ideias sobre o que

constitui o documento. Porque um documento é em geral um texto, imagina-se que

isso não é fazer uma operação anti-crítica de decidir o que deve ser comparado de

um texto a outro. (Ms. fr. 3959/11 - TURPIN, 2003, p. 426).8

É evidente também que Saussure não aborda o texto como nível de estruturação

idiomática, ou seja, não há indícios nos manuscritos de questões relativas a regras de

constituição idiomática das lendas. Não há, ao menos de maneira explícita, um tipo de

aproximação da análise de Saussure com as pesquisas sobre os elementos de que dispõe uma

língua particular para a construção do texto legendário. De fato, não se trata de uma

6 Sobre algumas interpretações dessa atividade de Saussure, ler Pinheiro (2014) 7 Citações originais em francês. Tradução nossa. 8 Os excertos do manuscrito de Saussure editado por Turpin (2003) estão em francês. Tradução nossa.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 547

abordagem do texto tal como é desenvolvida pela Gramática Textual ou por algumas

correntes da Linguística Textual contemporânea. Ao contrário, parece que Saussure aborda o

texto da lenda como tal, independente de uma língua particular.

Um assunto bastante recorrente nos manuscritos é a relação entre a lenda e os eventos

históricos. Saussure assinala que não há critérios para comprovar a correspondência direta

entre lenda e história, apesar das consideráveis coincidências. Além disso, a identificação

dessas relações seria importante apenas para o historiador, não para o analista da lenda.

Não é errado supor uma perfeita coincidência entre a lenda e a história, se

tivéssemos as provas mais certas de que foi um grupo definido de eventos que lhe

deu origem. O que se faça, e por evidências, nunca é mais que um grau de

aproximação que pode intervir aqui como decisivo ou convincente. Mas vale muito à

pena considerar as escalas desses graus. Ver se, sim ou não, uma outra concentração

histórica que não tentamos seria igualmente capaz de explicar a lenda nos seus

elementos, é uma prova extremamente interessante para nossa tese, uma das que, na

ausência de toda demonstração rigorosa possível em certo domínio, pode passar ao

menos por um gênero de verificação natural e não negligenciável (Ms. fr. 3958/1 –

TURPIN, 2003, p. 360).

É muito importante para os historiadores tentar identificar...

De modo algum para os legendistas. (Ms. fr. 3958/1 – TURPIN, 2003, p. 361).

Considerando, portanto, essa problemática, Saussure recusa a proposta corrente à

época de analisar as lendas pelo viés da história, pelo viés da veracidade ou falsidade dos

fatos reais. Isso leva à consideração de que a lenda é um fato semiótico, e como tal é sujeita a

transformações ao longo do tempo.

- A lenda é composta por uma série de símbolos em um sentido a precisar.

- Esses símbolos, sem dúvida, são submetidos às mesmas vicissitudes e às mesmas

leis de todos as outras séries de símbolos, por exemplo os símbolos que são as

palavras da língua.

- Todos eles fazem parte da semiologia.

- Não há nenhum método para supor que o símbolo deve permanecer fixo, nem que

ele deve variar indistintamente, ele deve provavelmente variar dentro de certos

limites.

- A identidade de um símbolo nunca pode ser fixa a partir do instante em que ele é

símbolo, ou seja quando é vertido na massa social que fixa a cada instante o seu

valor. (Ms. fr. 3958/4 – TURPIN, 2003, p. 367).

Assim, é possível estabelecer uma aproximação entre essa noção de lenda e a

concepção de texto como nível autônomo da linguagem. Como já dissemos, segundo Coseriu

(2007), o objeto fundamental de uma Linguística que concebe o texto como nível autônomo

da linguagem são os procedimentos de compreensão do sentido. Para o autor, o sentido diz

respeito ao conjunto de conteúdos que só existem como conteúdos de textos, e têm um caráter

particular e individual. “A designação e o significado, isto é, o que os signos linguísticos

designam e aquilo que significam em uma determinada língua, formam juntos no texto a

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 548

expressão de uma unidade de conteúdo superior de natureza mais complexa: o sentido”

(COSERIU, 2007, p. 153). A partir da distinção entre significante e significado, estabelecida

no CLG (SAUSSURE, 1978), para o signo linguístico, Coseriu propõe uma distinção análoga

para o “signo textual”: “O significado e a designação constituem juntos o significante, ao

passo que o sentido é o significado do signo textual” (COSERIU, 2007, p. 153).

Se aceitarmos essa hipótese, poderíamos afirmar que, para Saussure, a lenda é um

texto ou discurso particular cujo sentido, único em cada caso, é preciso compreender,

considerando a interferência de diferentes fatores.

São então os atos da personagem, ou sua característica, ou o seu meio, ou { } ou o

que ainda constitui o critério da identidade? É um pouco tudo isso e nada disso <

porque tudo pode ter sido ao mesmo tempo transformado e transportado de A a B. >

Quanto mais se estuda a coisa mais se verá que a questão não é realmente saber em

que reside a identidade, mas se há um sentido qualquer para se falar. (Ms. fr.

3959/11 – TURPIN, 2003, p. 427)

Uma personagem, por exemplo, é a soma das características atribuídas pela lenda.

Cada uma dessas características pode ser passada de uma personagem a outra, até ao ponto de

se desfazer qualquer possibilidade de identificação. Em outras palavras, a personagem não é

mais que uma associação de traços combinados. Assim, a instabilidade dos nomes das

personagens é um dos fatos, entre outros, que deve ser compreendido por meio da conexão

com as demais características da lenda importantes para a interpretação do sentido.

Entre um estado de uma lenda e o que toma o seu lugar em trezentos quatrocentos

anos de distância, não há ao contrário nenhum elemento fixo, ou destinado a ser

fixo. Nem uma personagem: (Ms. fr. 3959/11 – TURPIN, 2003, p. 428)

Ao buscar entender as condições de surgimento, circulação e estabilização das lendas

Saussure parece destacar a importância do que é singular na linguagem. Nesse sentido, é

possível interpretar essa análise como uma tentativa de também desenvolver uma

hermenêutica do sentido dos textos.

4. Conclusão

As questões apontadas por Saussure em seus manuscritos e as formulações de Coseriu

para o estudo do texto parecem ter em comum o olhar para o texto em sua individualidade,

como um acontecimento singular, e a tentativa de explicar fatos relativos ao seu sentido.

Nessa perspectiva, o texto não é considerado um fato de língua como sistema, historicamente

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 549

determinado. Esse raciocínio nos conduz a pensar, como Coseriu (2007), que, para bem

compreender a linguagem, é necessário precisar aspectos diferentes e disciplinas diferentes.

Segundo Bronckart, Bulea e Bota (2010, p. 7), apesar de todo o reconhecimento e

celebridade, a obra de Saussure ainda não está bem compreendida, e “sua dimensão

propriamente revolucionária ainda é largamente ignorada”9. Podemos estender um raciocínio

semelhante em relação a Coseriu. O grande potencial de desenvolvimento dos seus trabalhos

não recebeu, sobretudo no Brasil, a atenção merecida.

Na nossa opinião, retomar as proposições de Saussure e Coseriu constitui um

empreendimento fundamental para a ampliação e o aprofundamento dos estudos textuais. Não

se trata apenas de recuperar a história do pensamento desses autores, mas descobrir as suas

raízes, tendo em vista os alcances e os limites de suas ideias no desenvolvimento de novas

perspectivas teóricas e metodológicas sobre o texto.

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BOUQUET, Simon. Du pseudo-Saussure aux textes saussuriens originaux. In:

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Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.

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(édition et annotation d’Oscar Loureda Lamas). Madrid: Arco/Libros, 2007.

9 Texto original em francês. Nós realizamos a tradução.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 550

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PINHEIRO, Clemilton Lopes. Les études de Saussure sur les légendes: un rapide parcours à

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 551

DISCURSO E IDENTIDADE: ASPECTOS DA CONSTRUÇÃO

POÉTICA EM PATATIVA DO ASSARÉ [Voltar para Sumário]

Dalva Patricia de Alencar (URCA)

Romão Alisson de Almeida Morais (URCA)

Introdução

Através das leituras realizadas e das pesquisas bibliográficas e teóricas sobre a poesia

de Patativa do Assaré, este trabalho surge como fruto de uma análise acerca do discurso

poético e da espontaneidade com que produzia seus versos, definidos pelo próprio como

“poesia matuta”.

O poeta era dono de uma musicalidade e ritmos únicos, além de possuir um

vocabulário riquíssimo que vai desde o dialeto da linguagem sertaneja até clássicos da língua

portuguesa. Estudando a vida e a obra de Patativa, traçamos como foco principal averiguar a

complexidade de seus poemas, buscando compreender como o mesmo transitava em

universos tão distintos, sem permitir porém que sua poesia perdesse a essência da denúncia e

da reflexão.

Pretendemos também conhecer e analisar sua capacidade poética e inegável

sensibilidade e indignação diante das injustiças sociais. Além da facilidade que ele encontrava

para traduzir sua revolta através de sua poesia, transformando-a num fenômeno universal.

Para compreender a linguagem poética de Patativa do Assaré nos debruçamos nos

processos que permeiam a Análise do Discurso, e no uso de pesquisas científicas através de

autores consagrados na área da Linguística e da Literatura.

Do menino que virou pássaro

O cenário é a Serra de Santana, sítio localizado na região centro sul do Ceará, a

aproximadamente 18 quilômetros da cidade de Assaré. Um ambiente tipicamente rural como

tantos outros sertões nordestinos, não fosse o fato de ter como protagonista Antônio

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 552

Gonçalves da Silva, que mais tarde viria a ser reconhecido como Patativa do Assaré, apelido

que ganhou após uma viagem feita por volta de 1928 ao Belém do Pará.

O Assaré do Patativa que etimologicamente significa atalho e era o antigo desvio do

caminho das boiadas dos Inhamuns para o Piauí, foi também para o poeta um atalho, mas um

atalho para o mundo, um acesso rápido à universalidade da sua poesia.

Antônio Gonçalves da Silva nasceu no dia 5 de março de 1909, filho dos agricultores

Pedro Gonçalves da Silva e Maria Pereira da Silva (D. Mariô). O segundo de cinco filhos,

desde cedo teve que assumir muitas responsabilidades juntamente com os irmãos, devido a

morte de seu pai que deixou como herança para sua família apenas o ofício da agricultura e

uma pequena parcela de terra.

Patativa frequentou a escola por apenas seis meses, quando tinha em média doze anos

de idade. O próprio reconhece que seu professor mesmo sendo atencioso e dedicado, era

precariamente letrado e mal sabia ensinar a pontuação. E é justamente dessa maneira que

Patativa aprende a ler: sem ponto ou vírgula, sendo guiado apenas pelo ritmo das palavras.

Segundo Sylvie Debs (1999) “esta estranha aprendizagem, em realidade, é apenas a expressão

profunda da oralidade que caracteriza a cultura popular e a tradição dos poetas-repórteres”.

Apesar das adversidades e do pouco acesso à educação, Patativa do Assaré tornou-se

leitor voraz e assíduo de grandes autores como Olavo Bilac, Bocage, Castro Alves e Camões,

passando por leituras que vão dos poemas românticos às composições em linguagem cabocla,

o que leva suas poesias a possuírem não só um conteúdo referente às suas recordações

pessoais como também ao uso que fez das leituras clássicas.

O mundo do poeta era a Serra de Santana. Lá Patativa tinha o sertão e suas

adversidades como fonte inspiradora, sendo impossível dissociá-lo do seu cotidiano de

agricultor pobre. Costumava compor seus versos enquanto trabalhava sozinho na roça e por

mais longo que fossem os seus poemas, ele só transcrevia para o papel depois de o ter

lapidado totalmente na memória.

Este sentimento de apego à terra se estende por toda a sua vida evidenciando a

identidade que o poeta criara com a realidade ao seu redor e da qual fazia parte desde que

nascera. Tanto que só passa a morar na cidade de Assaré por volta dos sessenta anos, após um

pedido de sua esposa Belinha, que era muito religiosa e queria ficar perto da Igreja.

Mesmo morando em Assaré não se desligou da sua Serra de Santana a quem chamava

carinhosamente de “Paraíso”. Toda semana pagava um carro para ir até lá ver a família e

aproveitar as tardes para os encontros que mantinha com seu sobrinho Geraldo Gonçalves de

Alencar, o Geraldo Poeta. Destas tardes prazerosas surge o livro “Ao pé da mesa” (2001).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 553

Eu nasci na Serra de Santana

Hoje a mesma está muito diferente

Mas a tenho guardada em minha mente

Toda hora e minuto da semana (ASSARÉ, 2001)

A divulgação de sua obra passa a se concretizar a partir de 1954, através do Rádio, em

programas apresentados pela professora Tereza Siebraa Lima. Na oportunidade, Patativa foi

convidado para um encontro com Arraes de Alencar. A partir desse encontro nasce o livro de

Patativa “Inspiração Nordestina”, no ano de 1956, articulado e patrocinado por Arraes de

Alencar (apud ASSARÉ, 1956) que faz o seguinte registro no prefácio do livro:

Recitando-me inúmeras poesias de sua lavra e declamando ágeis improvisos e

repentes, impressionou-me imediatamente, pela delicadeza e arrojo das imagens,

pela suavidade lírica de muitos temas, pela mordacidade cortante de algumas

composições, pela profunda filosofia que ressumbra de quase toda a sua obra, e,

ainda, pelo fenomenal poder de sua memória. (ALENCAR, apud ASSARÉ, 1956)

Patativa publicou ainda diversos livros durante toda a sua trajetória poética. “Patativa

do Assaré, novos poemas comentados” em 1970 com apresentação e comentários de

Figueiredo Filho, o então presidente do Instituto Cultural do Cariri. Em seguida, no ano de

1978 surge o livro “Cante lá que eu canto cá”, publicado pela editora Vozes e que

proporcionou o reconhecimento nacional do poeta segundo José Valente Filho (2002). Em

1988 surge uma nova antologia intitulada “Ispinho e Fulô”, sob a direção de Rosemberg

Cariry, composta por textos de Patativa publicados em folhetos, jornais, revistase discos.

Além da publicação de seus livros, o poeta contou ainda com inúmeros estudos

nacionais e internacionais a seu respeito. Desde livros como “Patativa e o universo fascinante

do sertão”, do professor Plácido Cidade Nuvens, editado pela Unifor, até dissertações de

mestrado e doutorado.

A obra poética de Patativa tem sido alvo de acurados estudos em universidades tanto

no Brasil como no exterior, principalmente na França, onde estudiosos se sentem motivados

pela curiosidade e pela necessidade de conhecer a temática, o processo criativo e os valores

que envolvem a poesia de Patativa do Assaré.

Aos 93 anos de idade dedicados à agricultura, ao seu povo e à poesia popular, no dia

oito de julho de 2002 Patativa do Assaré vem a falecer em sua terra natal. O poeta deixa de

legado à cultura popular um número considerável de rimas e versos e uma diversidade

linguistica que garantem ao poeta autenticidade e estilo próprio.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 554

Pelos caminhos da Análise do Discurso

A análise do discurso (AD), corrente desenvolvida, em maior parte, na França, em

meados do século passado, propõe o estudo da língua em seu processo histórico-social,

encaixando-se a uma perspectiva não-imanentista, isto é, pragmática e informal da linguagem

que não só preconiza as circunstâncias de produzir e receber o texto, mas também os seus

efeitos de sentido.

A AD tem proposto, aos estudiosos, uma grande discussão em relação à definição do

que é discurso. Chama-se de discurso toda e qualquer forma de interação entre falantes,

dependendo do contexto em que se insere e da maneira como se é posto, ou seja, as ideias

encontradas em um discurso são estabelecidas e influenciadas pelo contexto político-social

em que o seu autor está inserido, com isso, pode-se inferir que o estudo vai além do texto,

chegando a uma análise da formação do discurso. Sendo assim:

O discurso é uma forma de materialização ideológica, como identificaram os

marxistas em outras instâncias sociais. O sujeito é um depósito de ideologia, sem

vontade própria, e a língua é um processo que perpassa as diversas esferas da

sociedade. (PÊCHEUX, 1961)

Vale-se ressaltar que a Análise do Discurso possui uma relação direta com o texto,

pois conforme Focault, um texto só receberá essa denominação se o interlocutor tiver a

capacidade de perceber o seu sentido, e que essa responsabilidade é do autor do texto, pois

deve escrever preocupado com a emissão, recepção e compreensão das ideias contidas no seu

discurso.

O principal foco da AD é perceber os distintos procedimentos da reprodução

linguística no âmbito social, levando-se a considerar que o sujeito não tem posse sobre seu

discurso, mas é assujeitado por/a ele por quesitos epistêmicos como: o aparelhamento social,

proposto pelo materialismo de Louis Althusser (2001), em que afirmava que a base para

qualquer relação social é influenciada por interesses ideológicos; a intervenção do

inconsciente, abordado por Jacques Lacan, em que certifica que o sujeito é atravessado e

estruturado pela linguagem do outro indivíduo e que não tem liberdade sobre as significâncias

e as possíveis enunciações do próprio discurso, ocupando um lugar histórico que lhe permite a

produção do texto como uma resposta a um exercício ideológico e sem consciência; e ao

estruturalismo, postulado por Ferdinand Saussure, em que afirma que a língua não é

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 555

comprendida no seu relacionamento com o mundo, porém tal qual uma política fechada sobre

si, podendo ser apreendida.

Assim, o que se destaca na AD é a maneira como os indivíduos compartilham ideias

pela expressão dialética, dando foco a linguagem de prática social, com uso concreto e que

considera a produção do sentido discursivo o resultado da prática da interação social.

Construção do Discurso Poético em Patativa do Assaré

Ao longo de sua trajetória poética Patativa criou poemas com linguagem tanto na

forma padrão culta quanto na variante regional, também conhecida como linguagem matuta,

capacidade essa oriunda da sua natureza de autodidata.

Diferentemente de outros autores eruditos nordestinos que convertem a matéria-prima

da tradição oral em literatura, Patativa do Assaré fazia o inverso: utilizava-se da literatura

erudita para enunciar a linguagem popular.

A diccção matuta do poeta não implicava afirmar que Patativa não compreendia ou

não sabia produzir poemas na forma erudita. Leitor assíduo e curioso de autores consagrados

como Camões, José de Alencar, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Machado de Assis,

Castro Alves pelo compromisso social e Olavo Bilac pelo seu manual de versificação,

Patativa passa por múltiplas leituras que fazem dele um poeta universal.

É interessante destacar ainda que Patativa fazia uso da linguagem regional como uma

maneira de dar voz ao sertanejo, que mesmo sofrendo com as desigualdades sociais tem

consciência dessas injustiças, bem como das diferenças existentes entre a sua cultura e a

cultura dos grandes centros urbanos.

Aliando a leitura da palavra à leitura do mundo, Patativa tornou-se um fenômeno da

poesia. Como afirma Nuvens (2002, p. 95) “Patativa é um poeta – criador, um poeta que

inventa a verdade, ao mesmo tempo, que denuncia os dramas do cotidiano nordestino.”

Através de sua poesia Patativa deixa de ser do Assaré para ser do mundo. Sua obra é uma

espécie de fala que existe como alicerce para traduzir o universal.

O lirismo presente nos versos do poema dedicado à sua mãe de criação intitulado

“Mãe Preta”, por exemplo, apresentam uma densidade poética inerente apenas aos que cantam

com a pureza da alma, como podemos apreciar no trecho abaixo:

Mamãe com todo carinho,

Chorando um bêjo me deu

E me disse - meu fiinho,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 556

Sua Mãe Preta morreu!

E ôtras coisa me dizendo,

Sinti meu corpo tremendo,

Me jurguei um pobre réu,

Sem consolo e sem prazê,

Com vontade de morrê,

Pra vê Mãe Preta no céu.

A grandiosidade e a arte no manejo e construção de seus versos tranformaram Patativa

do Assaré num fenômeno, desses que só aparecem a cada século, quando muito.

“Patativa é maior porque sua dimensão é épica. Não a poesia dos grandes feitos

heroicos, dos mitos fundantes ou dos gestos memoráveis, mas de um cotidiano que

assume essa conotação na aceitação e valorização de um povo, a sua gente.”

(CARVALHO, 2002 p.9)

O uso da linguagem na poesia de Patativa é revestida por um profundo conhecimento

na arte da versificação. Ele é um poeta que não pertence à estirpe de repentistas, cantadores e

violeiros, seus versos são escritos, muitas vezes, nos moldes camonianos com padrões de rima

e métrica bem definidos, porém se apropriando de uma linguagem simples e acessível ao

leitor, quase um dialeto, pelo qual se comunica com o homem comum, como nos versos de

um de seus poemas preferidos entitulado “O inferno, o Purgatório e o Paraíso”, que ressalta as

relações e as divisões entre as classes sociais, conforme o trecho abaixo:

Pela estrada da vida nós seguimos,

Cada qual procurando melhorar,

Tudo aquilo, que vemos e que ouvimos,

Desejamos, na mente, interpretar,

Pois nós todos na terra possuímos

O sagrado direito de pensar,

Neste mundo de Deus, olho e diviso

O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.

Este Inferno, que temos bem visível

E repleto de cenas de ternura, (sic)

Onde nota-se o drama triste horrível

De lamentos e gritos de loucura

E onde muitos estão no mesmo nível

De indigência, desgraça e desventura,

É onde vive sofrendo a classe pobre

Sem conforto, sem pão, sem lar, sem cobre.

(...)

Mas acima é que fica o Purgatório,

Que apresenta também sua comédia

E é ali onde vive a classe média.

Este ponto também tem padecer,

Porém seus habitantes é preciso

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 557

Simularem semblantes de prazer,

Transformando a desdita num sorriso.

E agora, meu leitor, nós vamos ver,

Mais além, o bonito Paraíso,

Que progride, floresce e frutifica,

Onde vive gozando a classe rica.

Este é o Éden dos donos do poder,

Onde reina a coroa da potência.

O Purgatório ali tem que render

Homenagem, Triunfo e Obediência.

Vai o Inferno também oferecer

Seu imposto tirado da indigência,

Pois, no mastro tremula, a todo instante,

A bandeira da classe dominante.

(...)

Já mostrei, meu leitor, com realeza,

Pobres, médios e ricos potentados,

Na linguagem sem arte e sem riqueza.

Não são versos com ouro burilados,

São singelos, são simples, sem beleza,

Mas, nos mesmos eu deixo retratados,

Com certeza, verdade e muito siso,

O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.

(ASSARÉ, 1992)

Através desses versos é possível perceber como em outros poemas de Patativa, a

valorização da vida a restauração dos valores da humanidade, a interferência da religiosidade

e principalmente a preocupação e a consciência critica diante de uma realidade inóspita e

desigual.

As relações feitas entre as três classes sociais comparando-as aos elementos

simbólicos da religião resultam da visão de mundo do poeta e da sua tentativa de colocar a

poesia a serviço da tradução da vida.

“Dualidade como natureza e cultura, vida e morte, sagrado e profano, verdade e

mentira, rico e pobre, homem e mulher, valente e medroso, popular e erudito

emprestam-se à percepção de Patativa como pano de fundo de muitas situações,

muitas histórias, muitos personagens. Para cada uma dessas relações, Patativa se

coloca como interlocutor. Às vezes, apenas narrando, noutras vezes mediando ou

tomando partido.” (FEITOSA, 2003 p. 236)

Outro traço que marca a profundidade poética é a oralidade que, no universo de

Patativa, atua num processo constante de produção de seus textos que vão sendo inventados e

geridos por uma série de instituições que circundam o homem, o sertão e o poeta. É

justamente nesse espaço que as suas poesias se concretizam. Vivendo num ambiente rural e

rústico durante as primeiras décadas do século XX, em que a maior distração eram as

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 558

conversas nas calçadas ao som das cantorias e dos cordéis, com isso o poeta não poderia fica

indiferente à musicalidade que o cercava. O seu mundo era oral. Portanto, participou e sofreu

tanta influência desse processo que o mais interessante era que suas composições eram feitas

na mente, num diálogo incessante entre o poeta e o agricultor.

Dessa feita, em toda a obra poética de Patativa, canto, linguagem e oralidade se

confundem para definir as marcas de sua identidade de poeta que teve como escolha a roça, a

vida, o sofrimento e as privações.

Considerações Finais

Patativa do Assaré não está livre das classificações que etiquetam sua poesia e

escondem o real valor estético de sua obra poética, mas sem dúvida o que faz da poesia de

Patativa universal é esta relação indestrutível que o poeta cria entre sua produção e o público

leitor.

Não se pode considerar como suficiente para simplificar Patativa apenas a criatividade

com que ele produzia seus versos, tampouco o modo como ele tratava as injustiças e o

descaso com seu povo. É necessário observar Patativa como um todo. Como um poeta

universal.

Através da sua poesia, Antônio Gonçalves alia a emoção e a consciência de mundo, as

lutas e esperanças do sertanejo, os conflitos e a indiferença dos governantes a uma linguagem

clássica, porém acessível, que narra o cotidiano dos mais humildes e dá voz aos que sempre

foram classificados de incultos e despreparados.

Segundo Gilmar de Carvalho (2002, p. 6) “Patativa é puro deleite. Ele é maior do que

qualquer tentativa de interpretação. Seu vigor nos desautoriza. Diante dele somos meros

arremedos de uma análise que se pretende distanciada. Patativa, ao contrário, é pura emoção,

com a sabedoria de quem diz o mundo através das palavras e desvenda segredos.”

A partir desta clara definição do poeta, o que podemos empreender através deste

estudo é a compreensão de Antônio Gonçalves da Silva, hoje mundialmente conhecido como

Patativa do Assaré, nos seus diversos sentidos, nas suas múltiplas interpretações e leituras de

mundo de um sujeito plural que se molda perfeitamente ao público que deseja atingir,

apresentando uma obra rica e que facilmente se confunde com a sua própria vida.

Referências

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 559

ALENCAR, José Arraes de. “prefácio” in. Inspiração Nordestina. Rio de Janeiro: editora

Borsoi, 1956.

ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 2001.

ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino.

Petrópolis; editora Vozes, 1992, p. 43-47.

ASSARÉ, Patativa do. e ALENCAR, Geraldo Gonçalves de. Ao pé da mesa: motes e glosas.

São Paulo: terceira margem, 2001.

CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré: pássaro liberto, Fortaleza, 2002.

CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré. Fortaleza: Demócrito Rocha,2000.

DEBS, Sylvie. Patativa do Assaré: uma voz no Nordeste. Trad. Ana Maria Skinner

FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: um clássico. Crato: A Província, 2002.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: edições Loyola, 2001.

PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, F. HAK, T (Orgs.). Por

uma análise automática do discurso – introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas:

Unicamp. Pp 61 – 161, 1990.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 560

FORMA E SUBSTÂNCIA: REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA,

ORALIDADE E ESCRITA A PARTIR DE SAUSSURE E DE

HJELMSLEV [Voltar para Sumário]

Dayanne Teixeira Lima (UFAL)

Introdução

A publicação do Curso de Linguística Geral em 1916, de Ferdinand de Saussure, é

tradicionalmente considerada um marco da linguística do século XX. Lançar mão do

pensamento saussuriano presente no CLG1 implica considerarmos, entre outras questões, a

particularidade de sua publicação: a de ser obra de um autor que nunca a escreveu, uma vez

que foi baseada em anotações de alunos que participaram de três cursos ministrados por

Saussure em Genebra nos anos de 1906-1907, 1908-1909 e 1910-1911. Reunidas e

organizadas por Charles Bally e Albert Sechehaye, com a colaboração de Albert Riedlinger,

discípulos de Saussure, a autoria da obra foi atribuída ao genebrino.

A publicação dos manuscritos de Saussure, dos anos 50 até mais recentemente, final

dos anos 90, tem movimentado diversas pesquisas sobre a questão da fidelidade ou

infidelidade dos editores na difícil tarefa de apresentar um pensamento tão complexo e

inacabado. Ademais, assumimos com Normand (2009) a legitimidade do Saussure que nos foi

apresentado por seus discípulos. Destacamos, ainda, o papel seminal do CLG na medida em

que estabeleceu novos rumos para a linguística e para outras áreas do conhecimento.

Atentemos, agora, para o tratamento dado à escrita na área. Se na linguística

comparatista a escrita alcançou um lugar privilegiado, tendo em vista ser a reconstituição do

indo-europeu dependente de documentos escritos antigos, na escola neogramática ela foi

fortemente rejeitada, sendo estes os primeiros a denunciar seu caráter ilusório e a “[...]

elegerem os sons como verdadeiros objetos de suas análises” (PAVEAU & SAFARTI, 2006,

p. 31). Esse caráter ilusório associa-se à noção de representação da oralidade pela escrita,

1Manteremos a sigla CLG para nos referirmos ao Curso de Linguística Geral (2006[1916]).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 561

sustentada pelo argumento da anterioridade da primeira (natural) em relação à segunda

(artificial).

Saussure (2006[1916])2, linguista de formação neogramática, também exclui a escrita

da linguística. Dedica um capítulo do CLG para abordar a representação da língua pela

escrita, sustentando a tese de que a escrita é “estranha ao sistema interno” (ibid., p. 33) e que é

necessário conhecer “[...] a utilidade, os defeitos e os inconvenientes” (ibid., p. 33) desse

processo no qual a língua é representada. Porém, segundo ele, o estudo dessas “deformações

fônicas” não pertence à Linguística, mas a outro compartimento denominado “casos

teratológicos” (ibid., p. 41), por não resultarem do funcionamento natural da língua.

No entanto, a partir da noção saussuriana de valor, apresentada no capítulo O valor

linguístico, a escrita é submetida a uma nova abordagem, vinculando-a ao funcionamento

linguístico como uma possibilidade de manifestação da língua, ao lado da materialidade

sonora, sem qualquer submissão ou exclusão de uma em relação à outra. O valor pressupõe

que os signos sejam estabelecidos não pela positividade de suas propriedades, mas pelas

relações de oposição e diferença com os demais signos: “[...] o valor de qualquer termo que

seja está determinado por aquilo que o rodeia” (ibid., p. 135).

Essa aparente contradição em Saussure é explicada por Derrida (2008 [1973]) e, mais

recentemente, por Endruweit (2008) ao associarem a exclusão da escrita presente no CLG

como resultado da filiação de Saussure a uma tradição filosófica que concebe o som como o

“significante natural”; além disso, Endruweit destaca o compromisso de Saussure com a

delimitação do objeto da linguística que correspondesse ao modelo de ciência positivista.

Ao definir a língua como um sistema de signos cujo funcionamento é regido

unicamente por valores, Saussure afirma, categoricamente, já no último parágrafo do capítulo

supracitado, que “[...] a língua é uma forma e não uma substância.” (2006[1916]., p. 141,

grifos em itálico no original). Esta afirmação foi fundamental para o linguista dinamarquês

Louis Hjelmslev (2013[1943]), que, com a colaboração de Udall, fundou a Glossemática.

Assumindo todas as consequências dessa máxima saussuriana, Hjelmslev propõe, em

seus Prolegômenos, uma teoria da linguagem que “[...] busca o conhecimento imanente, ou

seja, que se baseia em si mesmo, da língua, considerada como uma estrutura específica”

(FIORIN, 2003, p.6). Em razão disso, Hjelmslev ressignifica os conceitos de forma e

substância de tal forma que, acreditamos, foi ele capaz de trazer uma contribuição original

para o estudo da oralidade e, sobretudo, da escrita. Para abordarmos tais conceitos,

2Utilizamos a convenção [ano] para indicar, sempre que for conveniente, o ano da publicação original.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 562

recorremos aos Prolegômenos, especialmente ao capítulo Linguagem e Não-Linguagem, e à

Faria (2013).

O objetivo deste trabalho é, então, retomar os conceitos de valor em Saussure e de

forma e substância em Hjelmslev, a fim de questionarmos a relação elementar de

representação do oral pelo escrito. Para dar suporte à discussão empreendida, faremos uma

breve análise de um texto, veiculado na Internet, que apresenta letras e números misturados.

Se à escrita cumpre o papel de representar a oralidade, como explicar o fato não esperado de

números se misturarem às letras assumindo com elas o papel de escrita alfabética?

A escrita no CLG

No capítulo IV da introdução do CLG, Saussure aborda as imperfeições da

representação da língua pela escrita, sobretudo pelo sistema de escrita fonético. A partir de

exemplos de diversas línguas, especialmente do Francês, ele insiste no desacordo entre grafia

e pronúncia, destacando os efeitos nocivos deste para o estudo da língua. Esse capítulo é

carregado de um teor depreciativo à escrita, exemplificado a partir termos tais como “grafias

irracionais”, “ortografias flutuantes”, entre outros.

Depois de definir o objeto da linguística, Saussure inicia, podemos dizer, um trabalho

de “limpeza” da língua, a fim de separar todos os elementos que lhe são externos. A escrita é

um deles. O anúncio dessa atitude excludente aparece logo nas primeiras páginas do capítulo

supracitado:

Língua e escrita são dois sistemas distintos de signos; a razão de ser do segundo é

representar o primeiro; o objeto linguístico não se define pela combinação da

palavra escrita e da palavra falada; esta última, por si só, constitui tal objeto.

(2006[1916], p.34, grifo nosso).

Destacamos dois pontos neste trecho: o fato de Saussure equiparar a escrita a um

sistema de signos, ainda que numa posição inferior em relação à língua, e o esclarecimento

quanto à independência da língua (de tradição oral), que existe em função da “palavra falada”

e não da “palavra escrita”.

Embora o primeiro ponto mereça uma atenção maior, teceremos alguns comentários,

ainda que iniciais. O signo saussuriano é definido como “[...] uma entidade psíquica de duas

faces” (ibid., p. 80), ou seja, o significante e o significado. Quando Saussure atribui à escrita o

status de sistema de signos, a letra é potencialmente tratada como signo. Sendo o signo uma

entidade psíquica, imaterial, incorpórea, como poderia a letra representar a língua/som? Nem

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 563

mesmo o som confunde-se com a língua, como o próprio Saussure afirmou: “[...] é impossível

que o som, elemento material, pertença por si à língua. Ele não é, para ela, mais que uma

coisa secundária, matéria que põe em jogo.” (ibid., p. 137).

Pensamos, portanto, que essa ideia de representação da língua/som pela escrita

associa-se mais ao segundo ponto que destacamos, ou seja, à insistência de Saussure no fato

de a língua possuir uma tradição oral que independe da escrita. A isto subjaz a lógica da

anterioridade da oralidade em relação à escrita (rebatida, posteriormente, por Hjelmslev);

segundo Saussure, “[...] acabamos por esquecer que aprendemos a falar antes de aprender a

escrever, e inverte-se a relação natural” (2006[1916], p. 35).

O capítulo IV da segunda parte do curso3 atenta-se à explicitação do conceito de valor

linguístico. É este conceito que, dentre outros aspectos, justifica a língua enquanto sistema e

abala a ideia de representação da oralidade pela escrita.

Saussure afirma que “[...] o valor de qualquer termo que seja está determinado por

aquilo que o rodeia” (ibid., p. 135). Na escrita, por exemplo, a letra a é definida não por ser a,

mas por não se confundir com b, c, d, etc., se considerarmos as letras do alfabeto; o a pode

opor-se, ainda, ao para, ao de, ao com, etc., se considerarmos as preposições da língua

portuguesa. É nesse sentido que, na concepção saussuriana, o signo não é, mas vale.

Para explicar a concepção de valor atribuída ao aspecto material, Saussure recorre à

escrita, mais uma vez referindo-se a ela como um sistema de signos, e afirma:

1º os signos da escrita são arbitrários; nenhuma relação existe entre a letra t e

o som que ela designa;

2º o valor das letras é puramente negativo e diferencial; assim, a mesma

pessoa pode escrever t com variantes [...]. A única coisa essencial é que este

signo não se confunda em sua escrita, com o do l, do d etc.;

3º os valores da escrita só funcionam pela sua oposição recíproca dentro de

um sistema definido, composto de um número determinado de letras [...];

4º o meio de produção do signo é totalmente indiferente, pois não importa ao

sistema [...]. Quer eu escreva as letras em branco ou preto, em baixo ou alto

relevo, com uma pena ou com um cinzel, isso não tem importância para a

significação (ibid., p. 138-139, grifos em itálico no original).

Desta feita, o autor aponta para o reconhecimento do valor puramente negativo e

diferencial do fonema e da letra. O que vincula um ao outro não diz respeito à positividade de

suas propriedades, já que, em função da noção de valor, elas inexistem, não sendo possível

representá-los com relação a si próprios ou um pelo outro (FARIA, 1997, p. 104).

3Concordamos com Silveira (2009) ao apontar este capítulo como central na teorização saussuriana.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 564

Há uma forma que põe em jogo as unidades linguísticas na medida em que, mantidas

as relações de oposição, as variações de ordem substancial são irrelevantes. É o caso, por

exemplo, das variações na grafia da letra t que não comprometem o que lhe é essencial: o fato

de não confundir-se com l, d, etc.

Como compreender essa aparente contradição em Saussure que submete a escrita ora

ao encargo de representar a língua (falada), ora ao funcionamento linguístico?

Derrida (2008 [1973]) aponta-nos um caminho. Em seu projeto de desconstrução da

tradição ocidental, denominada por ele como logofonocêntrica4, o autor encontra em Saussure

uma filiação a essa tradição e a exclusão da escrita como consequência disso. Nesse sentido,

Mota (1997) afirma:

Com relação a Saussure, Derrida aponta a fidelidade deste às concepções clássicas

sobre a escrita. No Curso de Linguística Geral, a partir dos mesmos pressupostos e

princípios que nortearam o pensamento sobre a linguagem escrita na tradição,

Saussure atribuiria a ela, apenas uma função estrita e derivada (p.64, grifos em

itálico no original).

A função estrita e derivada da escrita, segundo Derrida, diz respeito à representação da

oralidade: a voz seria o significante primeiro, representação natural e imediata do sentido,

sendo a escrita secundária, “[...] o fora, a representação exterior da linguagem ou deste

pensamento-som” (2008 [1973], p.38).

Ademais, Derrida destaca que o signo em Saussure é linguístico, isto é, ele não

representa ideia ou coisa, e conclui que a tese do arbitrário do signo rege as relações entre

significante e significado, assim como entre fonema e grafema5.

Endruweit (2008), ao abordar, mais recentemente, o movimento de exclusão da escrita

no CLG, também aponta filiação saussuriana à tradição filosófica, especialmente ao

pensamento de Rousseau, assim como fará Derrida. Além disso, reconhece no linguista a

preocupação com a delimitação do objeto da “nova” ciência linguística. Ao analisar a

metáfora sobre os flutuadores de cortiça utilizada por Saussure para exemplificar o papel da

escrita em relação à língua, afirma Endruweit:

4Essa tradição baseia-se na filosofia do ser como presença. Ou seja, o signo linguístico seria “representativo do

sentido presente no pensamento ou da coisa mesma” (BORGES, 2006, p. 71). O privilégio da voz seria o de se

encontrar mais próximo do pensamento, sendo a palavra sonora o mais ideal dos signos.

5Dubois et al (1998[1973]) definem grafema como sendo o “[...] elemento abstrato de um sistema de escrita que

se realiza por formas chamadas alografes cujo traçado depende dos outros elementos do sistema [...]”(p. 312).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 565

Igualmente a escrita é acessória em relação à oralidade, essa, sim, essencial à língua.

Se acessória, é porque sobra, pode, tal qual os flutuadores, ser retirada sem afetar o

que realmente faz diferença. Esse é, pois, o próprio conceito de escrita como

representação da fala. (2008, p. 5-6)

A autora defende que a ideia de representação da oralidade legada à escrita é inviável

se considerarmos características do signo, apresentadas no capítulo sobre o valor, atribuídas,

também, à letra, tais como a arbitrariedade, a linearidade e a imaterialidade.

Os signos são: imotivados, tendo em vista que não há nenhuma relação entre a letra t e

o som relacionado a ela; são dispostos linearmente; e, por fim, são imateriais, incorpóreos, ou

seja, não se confundem com o suporte (sonoro ou visual) no qual são materializadas as regras

do sistema. Nesse sentido, Endruweit conclui:

Essa noção de escrita como representação, como símbolo, não poderia ser sustentada

no decorrer do Curso pela própria tese da arbitrariedade do signo. [...] A prioridade

do oral em relação à escrita está relacionada com a precedência temporal do

primeiro em relação ao último, isto significaria, portanto, entender a escrita como

representação da fala. (2008, p. 22)

A partir de Derrida e de Endruweit, constatamos que Saussure repete e, ao mesmo

tempo, inova a concepção de escrita fundamentada na representação do som pela letra. O

valor linguístico submete letra e som ao funcionamento simbólico da língua; ambas

relacionam-se, igualmente, à língua enquanto forma. Resta, ainda, considerarmos o caráter

natural atribuído à oralidade em função de sua anterioridade em relação à escrita. Nesse

sentido, recorremos a Hjelmslev que, sob os efeitos do CLG, contribui para o estudo da

relação entre oralidade e escrita.

Forma e substância em Hjelmslev e um lugar para a escrita

O pensamento de Louis Hjelmslev não poderia ser apresentado em sua totalidade e

rigor teórico, tendo em vista os limites desse trabalho. Centramos nossa atenção aos conceitos

de forma e substância6 e alguns dos desdobramentos destes que coloquem em evidência a

relação entre oralidade e escrita sob o viés da representação.

Segundo Ducrot (2001 [1972]), “[...] a teoria GLOSSEMÁTICA se apresenta como a

explicitação das intuições profundas de Saussure.” (p. 31, grifos no original). O pensamento

hjelmsleviano, baseado nas ideias saussurianas, trouxe novas contribuições para a linguística

do século XX, sobretudo para a Semiótica francesa.

6Consideramos, neste trabalho, as noções de forma e substância somente no plano da expressão, que compreende

a oralidade e a escrita como substâncias da expressão.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 566

A Glossemática pressupõe analisar a língua de forma imanente. Por imanente entende-

se o tipo de conhecimento “[...] que se baseia em si mesmo, da língua, considerada como uma

estrutura específica.” (FIORIN, p. 6, 2003). Isso significa dizer que a forma é independente da

substância, ou, como afirma Hjelmslev, que “[...] a ‘substância não pode em si mesma definir

uma língua”7 (2013 [1943], p. 110, grifos em itálico no original). Como conceber, nessa

perspectiva formal de língua, a oralidade e, especialmente, a escrita?

Hjelmslev posiciona-se contra a ideia de que há uma substância natural, e isto muito

interessa ao nosso questionamento sobre a escrita representar a oralidade. No capítulo

Linguagem e Não-Linguagem, ele abre uma discussão sobre a concepção tradicional de

linguagem natural, compreendida até então como a língua falada. Afirma o autor:

Acreditou-se que a substância da expressão da linguagem falada devia consistir

exclusivamente de ‘sons’. Tal como os Zwirner ressaltaram recentemente, com isso

se negligenciou o fato de que a fala é acompanhada pelo gesto e pela mímica, com

algumas de suas partes podendo mesmo ser substituídas por estes [...] (ibid., p. 110-

111)

Prossegue o autor destacando o fato de a mesma forma linguística poder manifestar-se

por outras substâncias que não sejam exclusivamente sonoras. É o caso, por exemplo, de a

escrita fonética manifestar a língua: “trata-se, aqui, de uma ‘substância’ gráfica que se dirige

apenas ao olho e que não precisa ser transposta em ‘substância’ sonora a fim de ser percebida

ou compreendida” (ibid., p. 111).

Com isso, Hjelmslev questiona a ideia de uma escrita derivada da oralidade,

eliminando a concepção de uma substância “natural”. Faria (2013), ao discutir os conceitos de

forma, substância e matéria, afirma ser a assunção de que não há uma substância natural ou

absoluta um dos pontos da reflexão hjelmsleviana mais relevantes para pensarmos a oralidade

e a escrita.

Segundo a autora, assumir, com Hjelmslev, a língua enquanto uma entidade autônoma

significa reconhecer ser esta constituída essencialmente de dependências internas; como

consequência, afirma ela, Hjelmslev nega a existência de uma substância absoluta ou de

realidade que independa das relações estabelecidas pela forma. Nesse sentido, a escrita “[...]

7 Nos Prolegômenos, Hjelmslev trata a substância como um elemento extralinguístico. Posteriormente, ele

percebeu que a substância poderia ser semioticamente formalizada e acrescentou o termo matéria para se referir

ao extralinguístico. Para unir os três níveis, Hjelmslev propôs a noção de manifestação: “[...] a substância é a

manifestação da forma na matéria.” (DUCROT, p. 33, 2001[1972]). Não abordaremos, nesse trabalho, a inclusão

do termo matéria.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 567

não é derivada da oralidade, uma vez que esta perde seu lugar de substância primeira/natural.”

(FARIA, 2013, p. 3).

Para responder à objeção de a escrita ser derivada da oralidade, Hjelmslev é, na

opinião de Faria, mais radical ainda ao assumir, com Russel, “a ausência de qualquer critério

para decidir qual é o mais antigo meio de expressão do homem, se a escrita ou a fala”

(HJELMSLEV, p. 111, 2013[1943]). Além disso, ele apoia-se em Saussure para defender que

“as considerações diacrônicas não são pertinentes para a descrição sincrônica.” (ibid., p. 112).

Para corroborar com a argumentação de Hjelmslev, Faria recupera a constatação saussuriana

de o fato diacrônico ser um acontecimento que existe em função de si mesmo e que, por isso,

as consequências sincrônicas dele derivadas lhe são totalmente estranhas.

Interessante considerarmos, a partir do contra-argumento de Hjelmslev, que a

sincronia, em termos saussurianos, pressupõe que as relações oriundas do sistema simbólico

da língua aconteçam ao mesmo tempo. É o caso, por exemplo, de quando uma criança, em

fase de aquisição de escrita, aprende a ler. As letras deixam de “representar” os sons, ou seja,

de existirem coladas à oralidade, e começam a se relacionarem umas às outras. É um

processo irreversível, ainda que não recuperemos seu começo, temos convicção de que se dá

de uma única e só vez8.

Hjelmslev insiste na autonomia da forma em relação à substância, seja ela de qualquer

natureza (sonora, gráfica, gestual, etc.). Conforme destaca Ducrot, se, na concepção

hjelmsleviana, a língua é forma e não substância, o é “[...] na medida em que suas unidades

devem definir-se pelas regras segundo as quais é possível combiná-las, pelo jogo que elas

autorizam.” (2001[1972], p. 32).

Para explicar a relação entre a forma e a substância, Hjelmslev propõe a noção de

manifestação, que, nesse primeiro momento, corresponde a “uma seleção na qual a forma

linguística é a constante e a substância, a variável.” (2013[1943], p. 113). Isso significa dizer

que a língua pressupõe uma estrutura manifestada ou manifestável em qualquer substância,

desde que o jogo simbólico seja mantido.

8Segundo Lévi-Strauss apud S. Auroux: "Toda coisa só tem sentido no interior daquilo que tem sentido. Isso é o

que C. Lévi-Strauss exprime perfeitamente, justamente a propósito da origem da linguagem: 'Quaisquer que

tenham sido o momento e as circunstâncias de seu aparecimento na escala da vida animal, a linguagem só pode

ter nascido de uma vez só. As coisas não podem ter começado a significar progressivamente. Na sequência de

uma transformação cujo estudo não cabe às ciências sociais, mas à biologia e à psicologia, ocorreu uma

passagem de um estágio no qual nada tinha sentido a outro no qual tudo fazia sentido'" (Auroux, Sylvain.

Filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola, 2009. p.28)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 568

Para finalizar, faremos uma breve análise de uma mensagem veiculada na internet para

que possamos dar suporte à discussão empreendida, a saber, a) a do valor linguístico; b) a da

língua enquanto forma manifestada na(s) substância(s) e, em detrimento desses conceitos,

sustentarmos o enfraquecimento da concepção de escrita que representa a oralidade.

A forma da língua em evidência

A imagem abaixo corresponde a um print do site de humor Insanos9:

Nela, podemos observar um texto, aparentemente enigmático, que apresenta letras,

números e alguns sinais de pontuação. Esse “enigma” se desfaz quando somos capazes de ler

o seguinte

Esta mensagem serve para provar como nosso cérebro pode fazer coisas

maravilhosas! Coisas surpreendentes! No começo foi difícil mas agora, nessa linha,

seu cérebro já consegue ler automaticamente. Parabéns! Apenas algumas pessoas

conseguem ler. Compartilhe se você conseguiu!

O sucesso desta mensagem que circula na internet comprova que os falantes

alfabetizados em língua portuguesa conseguem ler o texto, embora haja o estranhamento

inicial. Por que isso foi possível? Guardadas nossas habilidades cerebrais, há uma forma

subjacente que autoriza a leitura desse texto, ainda que as substâncias (letras e números)

sejam, a priori, tão diferentes.

9 O endereço eletrônico do site é www.insanos.com.br.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 569

Ademais, quando lemos, não lidamos com as letras e os números isoladamente, mas

em conjunto, como num sistema de valores. Se não relacionássemos os elementos (letras e

números, neste caso) uns aos outros em cadeia, a leitura seria inviabilizada. Não descartamos

o fato de os números 1,3,4,5,6 apresentarem certa semelhança com a grafia das letras i, e, a, s

e g, respectivamente. Ainda assim, o princípio do valor se mantém tendo em vista que as

possíveis variações no traçado das letras, bem como o meio material de que o sujeito se sirva

para grafá-las, são irrelevantes, desde que a relação de oposição entre elas permaneça.

Sendo a língua uma forma autônoma, constituída apenas por dependências internas, é

possível que a substância na qual essa forma se manifeste seja variável, mesmo que

concomitantemente, como é o caso desse texto, que reúne letras e números. É na própria

definição de língua enquanto forma que reconhecemos ser possível a coexistência entre

substâncias, sejam elas orais, gráficas, numéricas, etc, como defende Hjelmslev.

Afetadas pelo sistema, as substâncias passam a funcionar simbolicamente,

independente de suas origens. Como supor que o número, originalmente associado a

grandezas matemáticas, pudesse servir de substância para uma língua? São detalhes que a

concepção de escrita como derivada da oralidade não explica. Além disso, há características

exclusivas da escrita, tais como o espaçamento entre as palavras, a disposição em parágrafos,

o nome das letras do alfabeto, etc., que, em razão de a forma linguística abrigar possíveis

deslizamentos entre as substâncias, podem aparecer também na oralidade, e vice-versa.

Considerações finais

No início desse artigo, denominamos a concepção de representação da oralidade pela

escrita de elementar, tecendo argumentos, desde a publicação do CLG, a partir da noção de

valor linguístico, até as noções de forma e substância ressignificadas por Hjelmslev em seus

Prolegômenos, além da pequena análise feita sobre um texto retirado da internet que

enfraquecem uma relação biunívoca e hierárquica entre o oral e o escrito, bem como a ideia

de representação do primeiro pelo segundo.

Esperamos ter cumprido nosso objetivo, embora salientemos que a discussão aqui

pretendida não esteja esgotada. Há muito que investigarmos sobre, por exemplo, como se dá a

seleção da substância pela forma, bem como o papel do sujeito nessa seleção, questões

apontadas por Faria (2013). E, ainda, pensando no ambiente escolar, quais seriam as possíveis

implicações pedagógicas oriundas de uma concepção formal da escrita, chamemos assim, que

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 570

concebe oralidade e escrita não como representação de um pelo outro, mas como substâncias

igualmente acessíveis ao sujeito através da língua.

Referências

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BORGES, S. O quebra-cabeça: a alfabetização depois de Lacan. Goiânia: Ed. da UCG, 2006.

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DUCROT, O..“Glossemática”, in: DUCROT, O. e TODOROV, T. Dicionário enciclopédico

das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2001 [1972].

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Hjelmslev”, 2013 (no prelo).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 571

A EXPERIÊNCIA DO ENFRENTAMENTO NO ESPAÇO DA

INTIMIDADE: UMA LEITURA DO ROMANCE A PAIXÃO

SEGUNDO G.H. [Voltar para Sumário]

Daysa Rêgo de Lima (PPGL/UERN)

A paixão segundo G.H (2009) é uma obra de um viés filosófico e psicanalítico que

coloca o leitor em contato com situações antagônicas, a saber: grotesco e belo, inferno

paraíso, amor e ódio, dentre outras. Mas ao mesmo tempo é uma obra tocante, pois permite

uma frequente procura do eu. Ela é considerada por muitos críticos como o grande romance

da escritora Clarice Lispector, pois marca a literatura brasileira por tratar de um

acontecimento trivial, voltado a uma perspectiva humanística. Nesse sentido, a partir do

momento que a personagem G.H. encontra a barata, ela inicia uma transformação em seu

estado de espírito que a faz desenvolver uma profunda reflexão desde sua essência até a sua

realidade. Essa transformação se enaltece quando a personagem esmaga o inseto, e defronta-

se com conflitos existenciais que causam um desconforto em sua vida, levando-a a comer a

barata. “É o animal que a leva a dar o passo no caminho da desordem, da desorganização e da

tragédia. Sem ele jamais alcançaria o clímax de sua existência, dividida entre as preocupações

artísticas e alguns casos de amor” (NUNES, 1995, p. 61).

A personagem G.H. é uma mulher independente, de vida tranquila, estável, situada

no topo da hierarquia social (por morar num apartamento da cobertura), possui um senso de

ordem, da beleza, do bom gosto, além de ser muito organizada. Seu nome, no entanto, é

desconhecido, assim, como sua descrição física, sabemos apenas as inicias por algumas pistas

deixadas na obra. No entanto, a barata – personagem que protagonizará com G.H. no romance

– possui descrições minuciosas, a saber: os olhos, a boca, seus bigodes, os cílios, a possível

idade e a própria cor “Ela era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as

múltiplas pernas” (LISPECTOR, 2009, p. 55).

Compreendemos que o romance é um componente importante nos estudos literários,

por essa razão, Lukács (2000) em seu ensaio “A teoria do romance” enfatiza que questões

filosóficas e históricas tornaram-se um padrão estético do romance contemporâneo, bem

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 572

como o monólogo interior e o fluxo de consciência. O crítico estabelece as epopeias, histórias

de grande esplendor, graça e perfeição onde o herói luta pelo desejo coletivo, como as

primeiras manifestações que caracterizaram esse novo romance. A escrita de Clarice

corrobora com essa concepção de romance estabelecida pelo autor, visto que suas obras

também possuem esses traços, assim, chega a ser convidativa a forma como ela contempla

diversos modos de caracterizar esse nova concepção e/ou estilo literário.

Lukács ainda destaca que, como marca da subjetividade do sujeito humano, o

romance moderno vem se desenvolver em meio aos conflitos experienciados pelo homem, e

com sua forma de se ligar/unir ao mundo. O autor apresenta também a diferença entre a

epopeia e o romance, em que o primeiro vai enfatizar os fazeres heroicos e históricos dos

homens, enquanto o segundo vai tratar da busca de identificação com o mundo, a partir da

singularidade e individualidade do ser.

Auerbach (1976) em sua discussão sobre o romance moderno vem apresentar as

mudanças sofridas no passar dos anos, destacando desde as transformações do narrador até as

temáticas referente à criação artística, em que acontecimentos banais, triviais ganharam

espaço e ares de método. Ele destaca o desaparecimento do narrador, o movimento de

consciência dos personagens, dentre outras questões que farão parte ao romance

contemporâneo. Observa-se que, assim, como a vida evolui, desde as transformações sociais

até as paisagísticas, com a narrativa não foi diferente. O modo de narrar conforme Adorno

(2003) também vai se modificando, a prova disso está nas narrativas do século XX em que

coisas e acontecimentos banais passaram a ser objeto de análise, como pedras, aspirinas,

cidadezinhas, bem como a representação do anti-herói, muito comum nos personagens de

Clarice. O romance vai se modificando com o passar dos tempos, e desenvolvendo uma

relação com o “palco italiano”. O leitor sai de uma posição fixa e mais cômoda, e passa a agir

e refletir.

Por tudo isso, estudar Clarice Lispector tornou-se possível, sobretudo, pelos

rompimentos e adaptações das narrativas com os modelos tradicionalmente estabelecidos. Ela

que desenvolve uma literatura existencialista, numa perspectiva humanista, com alienações,

conflitos existenciais, dentre outras características semelhantes à escrita de Virginia Woolf e

Kafka. Sua obra caracterizada por estruturas diferentes, devido à ausência de diálogos, e em

contrapartida, a notável frequência de monólogos, dentre outras particularidades que fazem

parte do romance moderno, bem como narrativas com finais não felizes, marcada pela

epifania permitindo o (des)encontro dos personagens consigo mesmo, são alguns dos traços

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 573

que influenciaram para que Clarice se tornasse uma autora memorável e se enquadrasse nessa

estética literária contemporânea.

Dentre as diversas categorias analíticas que podem ser estudadas na obra

lispectoriana, acreditamos que o espaço, vai desenvolver maior relevância no romance A

paixão segundo G.H., pois ele vai influenciar diretamente o desenvolvimento da história, e

marcá-la de forma singular, devido o apartamento e, mais precisamente, o quarto da

empregada ser esse espaço, onde as reflexões da personagem serão desenvolvidas.

No que diz respeito ao espaço literário, seja ele no romance, no conto ou em qualquer

outro gênero, é uma categoria analítica que como destaca Dimas (1985) “é um dos múltiplos

recursos à disposição do romancista para compor o seu universo ficcional”. Por ser

fundamental na construção literária, sobretudo, por ser nele onde ocorre a ação da narrativa,

ele ainda desempenha diversas funções, a saber: caracterização/definição dos personagens,

localização geográfica, determinação de posicionamentos e da própria ação da narrativa,

motivação de comportamentos (inibindo ou estimulando), dentre outras. Isso nos leva a

compreender sua pertinência, este que, costumeiramente, se apresenta através de três espaços

principais: o físico, o social e o psicológico, em que cada um possui suas características e

particularidades.

Bachelard (2008) em sua obra a poética do espaço vai apresenta no capítulo da casa

que “Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades

do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano”

(BACHELARD, 2008, p. 26). Por essa razão, a casa é fundamental para o sujeito humano, é

de fato seu alicerce, um abrigo cultural, habitado desde o início dos tempos, seja nas cavernas,

nas choupanas, nos palácios, pois todos nós, desde o nascimento, precisamos de um lugar para

chamar de nosso, para nos defender, esconder, crescer e abrigar.

Frente ao exposto, o espaço no romance A paixão segundo G.H. se desenvolve no

apartamento e mais especificamente no quarto da empregada, esse espaço se apresenta em

oposição à personagem G.H, pois enquanto que os outros cômodos do apartamento eram

alegres, arrumados, sofisticados, o quarto da empregada era de fato o oposto. E nesse lugar

era onde estava tudo o que desequilibrou a vida e rotina de G.H. – a barata.

O quarto como a própria personagem descrevia era como se fosse um cômodo

isolado, que não pertencesse ao apartamento, por isso ela não encontrava nada que a

identificasse com aquele ambiente, “O quarto divergia tanto do resto do apartamento que para

entrar nele era como se eu antes tivesse saído de minha casa e batido a porta. O quarto era o

oposto do que criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara em meu talento de

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 574

arrumar [...]” (LISPECTOR, 2009, p. 41). Esse aposento desacertava todo espaço agradável

da casa de G.H, para ela aquele cômodo era o bas-fond de sua casa, (espaço marginalizado),

primeiro pelo fato de ser o abrigo da antiga empregada, e segundo pela personagem presumir

que lá estaria sombrio, sujo e desorganizado, o que para sua surpresa, estava “inteiramente

limpo”.

A partir do momento que G.H. passa a visitar aquele novo ambiente, sua vida

começa a se transformar, mesmo com pequenas indagações que posteriormente a levarão a

um fluxo de consciência, “Naquela manhã, antes de entrar no quarto, o que era eu? Era o que

os outros sempre me haviam visto ser, e assim eu me conhecia. Não sei dizer o que eu era.”

(LISPECTOR, 2009, p. 22-23). A personagem compreendeu quão impactante foi esse

encontro, que embora para muitos pudesse parecer banal, mas que para ela foi chocante, pois

o contato com a sua própria casa gerou uma série de reações que colocaram a prova sua

existência e identidade, e em breve marcaria sua vida para sempre.

O encontro de G.H. com a barata no quarto desencadearam profundas análises

relacionadas à sua existência, desde o primeiro momento que a viu “[...] bem próximo de

meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa.” (LISPECTOR, 2009, p. 46). Até o

momento da comunhão “Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha

boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma [...]”

(LISPECTOR, 2009, p. 166-167). O quarto agora, tornara-se pior, pois naquele lugar ela

havia presenciado um encontro doloroso e que ela comungou de tudo que questionava. E após

todos os acontecimentos, sobretudo, sua experiência negativa ela volta a sua rotina e as coisas

permanecem iguais, mas ela não é mais a mesma.

De acordo com Adorno, a alienação é provocada por um fluxo de narrar. O

desligamento da natureza humana, ou melhor, a desconexão com a realidade faz com que o

homem se esclareça. Nesse sentido, a personagem, desde então, passou a viver em função do

esclarecimento da própria existência. Lukcás corrobora com a concepção do autor, e afirma

que “[...] a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si

mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si

heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento.”

(LUKÁCS, 2000, p. 82). Dessa forma, o quarto foi o passaporte da personagem rumo a essa

alteração espiritual e social vivenciada em seu apartamento de luxo.

Em meio a tantas indagações quanto a sua existência, a personagem nos surpreende,

e afirma:

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 575

O apartamento me reflete. É no último andar, o que é considerado uma elegância.

Pessoas de meu ambiente procuram morar na chamada “cobertura”. É bem mais que

uma elegância. É um verdadeiro prazer: de lá domina-se uma cidade. Quando essa

elegância se vulgarizar, eu, sem sequer saber por que, me mudarei para outra

elegância? Talvez. Como eu, o apartamento tem penumbras e luzes úmidas, nada

aqui é brusco: um aposento precede e promete o outro. Da minha sala de jantar eu

via as misturas de sombras que preludiavam o living. Tudo aqui é a réplica elegante,

irônica e espirituosa de uma vida que nunca existiu em parte alguma: minha casa é

uma criação apenas artística. (LISPECTOR, 2009, p. 23, grifos nossos)

A partir da afirmação de G.H. o apartamento me reflete vemos que a personagem se

identificava com o seu lar, existindo naquele espaço uma relação de espelhamento, um

reluzia, comple(men)tava o outro, era como se o apartamento fosse uma extensão da

personagem. Embora, ela estivesse vivendo em meio a um paradoxo, entre o que apreciava e

o que a causava repúdio. É notória à identificação da personagem com a estrutura física do

apartamento, pois há uma associação do espaço da casa com a personagem G.H, sendo esse o

seu espaço íntimo. Devido o apartamento a refletir, pelo seu aspecto físico limpo, arrumado,

organizado, dotado de bom gosto, ele acaba em consonância com a personagem que era

escultora, por isso, sofisticada, amante do refinamento e do belo. Esse espaço pode ser

comparado ao espaço do ninho em Bachelard, em que a personagem G.H. ganhava de certa

forma a configuração, o contorno desse apartamento, tão sofisticado quanto seus móveis e

suas obras de arte, era como se ela fosse um complemento daquele espaço, tal qual o corcunda

em meio as esculturas na catedral de Notre-Dame.

Dimas corroborando com a concepção de Bachelard no que diz respeito à casa,

apresenta que ela semanticamente denota a concepção de “[...] proteção, sossego,

concentração, estabilidade ou o seu contrário” (DIMAS, 1985, p. 45, grifo nosso). Essa

descrição levantada pelo autor evidencia a realidade da personagem G.H, uma vez que seu

apartamento (casa) era exatamente sua zona de conforto, aquele espaço que a refletia, visto

que ele era uma extensão dela, e de tudo que a personagem apreciava. No entanto, o quarto da

empregada, que ainda fazia parte da sua residência, embora mais parecesse outro lugar,

desorganizou o seu conforto, por ser oposto a tudo que ela admirava, e passou a ser então

contrário a tudo que o seu lar estimava.

Além dessa constatação, Bachelard destaca também o ninho como um esconderijo,

refúgio, dentre outras acepções, visto que as criaturas prezam por refugiar-se em um local,

independente do requinte, “O ninho, como toda imagem de repouso, de tranquilidade, associa-

se imediatamente à imagem da casa simples” (p. 104). Assim, ele é um espaço de aconchego e

acalanto semelhante ao estimado apartamento de G.H. Todavia, Dimas ainda acrescenta:

“Desse modo, Bachelard lembra que o ninho não evoca apenas proteção e segurança, mas

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 576

também precariedade e fragilidade” (DIMAS, 1985, p. 45, grifos nossos). Tal qual a casa, o

ninho também pode se resignificar, ter uma nova conotação, devido alguma mudança que

acarrete esse desmoronamento ou desestruturação. Em A paixão segundo G.H. verificamos

essa transformação a partir de uma “[...] confissão de uma experiência tormentosa, motivada

por um acontecimento banal” (NUNES, 1995, p. 58). Assim, embora a casa e ninho tenham

denotação de paz, sossego e abrigo, eles podem surpreender, e foi isso o que aconteceu com

eles quando G.H. entrou em contato com o antigo espaço íntimo da empregada. Essa

concepção se desestruturou metaforicamente, e tornaram frágeis e contrários esses espaços,

costumeiramente, representantes da paz e sossego.

Mediante isso, inferimos que o espaço é um grande caracterizador e instigador para o

romance, pois norteou toda a narrativa, com as reflexões de G.H. seguida da comunhão com a

barata. Vemos um espaço que a princípio foi estereotipado, por abrigar a empregada, em que

a própria G.H. chegou a imaginá-lo imundo, e se surpreendeu. Em seguida, esse espaço volta

a ser marginalizado por abrigar o ser que modificou a vida da personagem e,

consequentemente, estimulou seus conflitos existenciais. Passou também a ser visto como um

cômodo isolado, uma vez que para chegar a ele, G.H. imaginava que saísse de sua casa para

poder entrar nele. E por fim, foi o espaço onde a personagem entra em comunhão com inseto.

No entanto, apesar da visão negativa depositada a ele, no fim da narrativa

verificamos que esse espaço modificou a personagem, pois descortinou a vida de G.H, de

modo que ela pudesse compreender sua existência a partir de um processo doloroso, pois

precisou arrancá-la de seu conforto para que ela pudesse compreender que sua existência vai

além de uma vida luxuosa em um apartamento de cobertura. Assim, a personagem precisou

descer desse edifício, e presenciar o feio, a dor e conflitos existenciais, pois só essa queda

possibilitou uma profunda análise arraigada em uma viagem a sua primitividade. O confronto

com a barata permitiu a personagem libertar suas alienações sociais de uma vida automática,

de modo a se desligar do mundo para religá-lo novamente, pois “Pela repugnância, G.H. saíra

de seu mundo e pela repugnância retorna à normalidade do cotidiano” (NUNES, 1995, p. 65).

E mesmo esse momento epifânico tendo cessado, permitindo que ela voltasse a sua rotina,

mas, jamais G.H. foi à mesma.

Referências

ADORNO, T. W. Notas de Leitura I. São Paulo: Editora 34, 2003.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 577

AUERBACH, E. Mimeses. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:

Perspectiva, 1976.

BACHELARD, G. A casa. Do porão ao sótão. O sentido da cabana. In: A poética do espaço.

São Paulo: Martins fontes, 2008, p. 23 – 53.

BACHELARD, G. O ninho. In: A poética do espaço. São Paulo: Martins fontes, 2008, p. 103

– 116.

DIMAS, A. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1985.

LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas cidades, Editora 34, 2000.

LISPECTOR, C. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

NUNES, B. O itinerário místico de G.H. In: O drama da linguagem. São Paulo: Ática, 1995,

p. 58 – 76.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 578

DISCURSO CRONÍSTICO; IDEOLOGIA E

MARGINALIZAÇÃO ÉTNICO-RACIAL. REPRESENTAÇÕES

DISCURSIVAS EM ACD – VAN DIJK E ALTHUSSER. [Voltar para Sumário]

Dayvison Bandeira de Moura1 (UA-PY)

Cacilda Rodolfo de Andrade2 ( UA-PY)

Edair Gonçalves3 (IFECT-SP)

Introdução

Em meio às oportunidades que foram vivenciadas por nós, em ambientes institucionais

onde pudemos refletir sobre as implicações advindas das ações do racismo. Bem como,

analisar suas consequências marginalizadoras.

Haja vista, as muitas obstruções ao acesso e exercício de direitos sociais que são,

indispensáveis, para a existência, de fato, de pessoas vítimas do preconceito. Nossas

experiências ocorreram em militâncias em favor da aquisição de direitos sociais diversos.

Sobretudo, o direito à escolarização. Não apenas, seu ingresso em ambientes que o

ofertassem, mas também, que criassem condições para a permanência daqueles e daquelas que

parcialmente, foram, e, via de regra, são incluídos, por meio de suas matrículas em diversos

estabelecimentos para suscitar a aprendizagem.

Momento em que nasce a necessidade do encontro entre os saberes típicos dos

currículos habituais, na escola. Mas, em face, de sua reinvenção seguindo moldes

ressignificadores de direitos e, mais ainda, de pessoas. Assim, deveria a escola sistematizar os

legados legítimos de seus então, educandos. Todavia, essa assertiva, tem se mostrado um

verdadeiro desafio, frente a já comum, exclusão de indivíduos que foram e têm, ainda, sido

1 Dayvison Bandeira de Moura: Doutorando em Ciências da Educação – UA – PY; Especialista em Práticas

Discursivas na FAFIRE, 2010; Especialista em Ensino de EJA - PROEJA - IFPE, 2014; Graduação: Letras

Vernáculo – FAFIRE, 2003; Magistério, 1998; Professor secundarista de Língua Portuguesa da SEDUC- PE 2 Prof.ª Cacilda Rodolfo de Andrade, Mestranda em Ciências da Educação – UNIBE – PY. 3 Edair Gonçalves3: Mestrando em Ciências da Educação – UTIC – PY. Instituto Federal Educação, Ciência e

Tecnologia de São Paulo.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 579

segregados em virtude de sua cor de pele. Ou, melhor dizendo, de suas origens étnicas.

Mesmo que caiba ao currículo e a escola, bem como seus atores, combater as ações

excludentes. E esta perspectiva, deve e precisa ser manifesta por meio de inúmeras

estratégias. Percebamos:

O currículo não é o elemento inocente e neutro de transmissão desinteressada do

conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, o currículo

transmite visões sociais particulares, e interessadas, produz identidades individuais e

sociais particulares. O currículo não é um elemento transcendente e atemporal – ele

tem uma história, vinculada as formas específicas e contingentes de organização da

sociedade e da educação. (MOURA, 2013, p.119 Apud MOREIRA; SILVA, 2005,

p. 8).

Neste artigo, pretendemos focalizar uma delas: o trabalho de leitura crítica acerca dos

elementos lexicais, considerados, neste estudo, relevantes. Especificamente, as locuções

adjetivas e as locuções adverbias, à saber “De rua”, “De família”, “Na rua”. Mediante o

contexto ao qual se subordina à crônica: De que são os meninos de rua? De Marina Colasanti,

publicado em 1985. Ação que permite aos leitores uma análise apurada não apenas sobre o

fato. Mas, sobretudo sobre o que o fato nos revela. Assim como também, como este se liga a

uma tradição excludente, marginalizadora que obstruiu, e, pode obstruir, demais, o acesso à

uma existência social, cidadã de qualquer meninos de rua. Mais ainda, se forem negras.

O que é discurso cronístico?

Ressaltemos, inicialmente, que se pode relatar apenas, ou comentar. A primeira deve

girar em torno de uma descrição dos acontecimentos relatados, havendo uma relativa

“neutralidade”, no desenvolvimento dos acontecimentos. Quanto ao segundo há a descrição,

porém esta passa a ser entrecortada pelo comentários manifestos ou tácitos do enunciador do

texto jornalístico. Conforme assinala Charaudeau (2009) no livro: Discurso das Mídias.

Momento em que ele reflete sobre a relação intrínseca entre relatar e comentar,

apregoando que ambas refletem interfaces de uma “discursivização”. Em suas palavras: “Na

verdade, essa dupla atividade discursiva empreende a mesma busca: conhecer o porquê dos

fatos, dos seres e das coisas, e, com essa finalidade, comenta-se contando ou conta-se

comentando.” (CHARAUDEAU, 2009, p.175).

“Tudo é argumentação” (apud: DUCROT, CHARAUDEAU, 2009. p. 175). Tendo em

mente a análise que faremos da crônica de Marina Colasanti, corpus que tomamos como

análise para esse estudo, preferimos então, agregar, também, a este estudo o pensamento supra

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 580

mencionado. Esta assertiva é desenvolvida por Charaudeau quando ele explícita parte de suas

considerações:

Espera-se, assim, do sujeito enunciador do propósito, que ele produza argumentos

em apoio às proposições. Pode-se dizer que a problematização baseia-se três

atividades mentais: emitir um propósito (o tema que se fala), inseri-lo numa

proposição (o questionamento) e trazer argumentos (persuadir). (CHARAUDEAU,

1992, p. 177).

As teorias crítico-reprodutivistas: Teoria da escola enquanto aparelho ideológico de

estado (AIE).

Há duas dessas teorias elencadas e explicitadas por Demerval Saviani em seu livro:

Escola e Democracia. Onde ele aborda tais conceitos dessas, bem como suas implicações para

inclusão de qualidade proposta, em tese, pela escola, para os educandos assistidos por esta.

Saviani trata da Teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica, concebida

por Pierre Bourdier e J. C. Passeron (1975). Feito isto, reflete sobre a teoria de Luis Althusser

que intitula essa etapa do artigo. Sua concepção acerca dos Aparelhos Repressivos de Estado,

que é composta pelo Governo, a Administração, o Exército, a Polícia, os Tribunais, as Prisões

e etc.), delas emergem os Aparelhos Ideológicos de Estado, os (AIE). Dentre vários citados

por Althusser, faremos algumas reflexões a respeito do AIE escolar (o sistema das diferentes

escolas públicas e particulares) e o AIE familiar (ALTHUSSER, 1977).

A distinção entre ambos assenta no fato de que o aparelho Repressivo de Estado

funciona massivamente pela violência e secundariamente pela ideologia enquanto

que inversamente, os Aparelhos Ideológicos de estado funcionam massivamente

pela ideologia e secundariamente pela repressão. (SAVIANI Apud

ALTHUSSER,1977, p. 43-44).

Nesse sentido, para esse estudo, apropriamos a ideia de que a escola concebeu por

muito tempo um estereótipo de estudante que não se adequava aos egressos das classes

marginalizadas. Vítimas do empobrecimento que se deu ao longo da história exploratória

pertinente ao período da Colônia, da República e, do seu entreposto, o Estado Novo...

“estabelecido pela Constituição em 1824, no artigo 179, parágrafo 32, logo após a dissolução

da Assembléia constituinte de 1823: a instrução primária era gratuita a todos os cidadãos.”

(GONDRA, 2008, p. 30). Entendamos que os escravizados, os libertos (alforriados), os

indígenas não eram cidadãos. Portanto, não portadores de direitos.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 581

Esse quadro de negação de direitos e marginalização e exclusão social eram

combatidos por inúmeras ações para pleitear ao Estado, e consequentemente, à sociedade

cidadã. Como podemos ver:

É importante destacar que lutas e protestos em torno das definições da cidadania

imposta na Constituição de 1824, inclusive entre negros e mestiços, assim como

houve disputas pela delimitação do público-alvo das escolas e pelo alargamento dos

direitos à educação escolar ao longo de todo o Oitocentos, abrangendo as propostas

para civilizar índios, libertos e rever a instrução oferecida às mulheres. (GONDRA,

2008, p. 30).

Além de ações para buscar a legítima identidade africana negra, e, ou afrodescendente

desde o período Colonial, como algo, indispensável, a ser conquistado erigido, forjado.

Lembremo-nos da importâncias dos Quilombos na busca de uma liberdade, ampla e

igualitária, já à época a todas as etnias perseguidas, pela ocorrência de sua não legitimidade

humana. Vejamos, outro dado, que a nosso ver nesse estudo é seguramente, um

contextualizador histórico e social do abandono que acaba a resultar em um conjunto de

marginalizações sociais a qualquer etnia, sobretudo, aos negros africanos e afrodescendentes.

O período Regencial (1831 -1840), na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, assistiu

à proliferação de pasquins exaltados e radicais, como O Homem de cor, O Brasileiro Pardo, O

mulato e o Cabrito, os quais lutavam por igualdade de direitos entre os cidadãos brasileiros,

independentemente da origem étnica. Para a Bahia, as pesquisas de João Reis (1989) e

Grinberg (2000) demostraram o quanto estas questões ainda eram debatidas, mesmo após a

regulamentação legal da Constituição. As disputas sobre os significados do que consistia ser

brasileiro e os limites para a cidadania derivam das próprias disposições legais. (GONDRA,

2008, pp.30-31).

Assim como, as concepções típicas da eugenia e xenofobismo que elidiu do exercício

efetivo, de direitos, os que eram “diferentes” das etnias eurocêntricas que desfrutavam de

privilégios sociais, como o acesso à escola, aos direitos civis, o acesso ao emprego formal

com carteira assinada, à moradia digna, à saúde de qualidade, serem vistos como gente...

Dentre outros direitos que só seriam previstos em lei, nas legislações mais recentes,

como é o caso, da reformulação da constituição federal, para a formação de um novo Brasil, a

de 1988. Onde inúmeros direitos foram consolidados aos antes “marginalizados”. Neste

século, o XXI, a emergência da lei 10.639/03. Medidas que comprometeram a antiga

sociedade brasileira, a reconhecer, a forçada, inclusão de direitos, ainda que em tese, às

maiorias excluídas. Neste texto, nos restringiremos as reflexões acerca das etnias negras

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 582

africanas e afrodescendentes. Dedicamos, exclusivamente, uma etapa desse artigo ao gênero

feminino, em função de marginalizações ainda maiores.

Mas, é necessário pensarmos também, nas exclusões ainda mais antigas, sofridas pelos

indígenas do território “descoberto por Cabral, ou “Pinzon”, se preferirem pensar situar desse

modo.

Note que nos propusemos fazer apenas, alguns recortes sobre os aparelhos ideológicos

de Estado, a escola e a família. Para que pudéssemos situar a agressão sofridas por estes

setores, à medida que atuavam consciente e inconscientemente, na disseminação de ideologias

para a dominação social, e para a reiteração do lugar-comum, típico da negação, como sendo

um reflexo do destino a que estas subclasses estavam subordinadas. Pois, “a ideologia tem

uma existência material” (SAVIANI, 1988, p.33). “Isto significa dizer que a ideologia existe

sempre radicada em práticas materiais reguladas por rituais materiais definidos por

instituições materiais.” (Apud: SAVIANI: ALTHUSSER, 1977, s.d..88-89). Algo que bem

parafraseia a epistemologia marxista do materialismo histórico e dialético, concebido por

Marx.

Como não entender que fora materialmente, que instituições representaram, por quase

todos, os últimos 50 anos do século XX, no Brasil, a existência de instituições públicas e

privadas como a escola e a família que reiteravam em suas práticas a concepção da exclusão e

marginalização em ações típicas para a civilização por amordaçamento e “despertencimento”

étnico? Ao escolhermos e avaliarmos o corpus selecionado, ele nos direcionou ainda mais

nesta direção. Uma que estamos há anos flertando.

Entendemos que se a ação da escola, dadas as exceções, atuou na preferência daqueles

que podiam ingressar na educação básica. E, estes eram tipicamente os de pele branca, e, não

pobres. Imaginem os muitos miseráveis radicados em diferentes lugares do Brasil, onde os

processos de marginalização eram mais austeros do que em outras regiões. Pensemos nas

antíteses e paradoxos perpetrados de maneira ainda mais dilacerante e obstrutiva, se

começarmos a pensar nestes acontecimentos ocorrendo na região Sudeste, em contraste com

sua ocorrência ainda mais nociva, nas regiões Nordeste e Norte. Mais ainda, longe de suas

capitais? Será que então, diante disso não conseguiremos refletir o quanto as ideologias de

reprodução para a dominação, marginalização e amordaçamento se deram neste país, gerando

os atuais cenários de marginalização e desigualdade social?

Não podemos, contemporaneamente, falando, não efetuarmos uma análise de um

gênero textual que nos permite suscitar o olhar flagrante do ou da cronista, a serviço de que

nossos educandos assumam uma visão crítica, também, fruto de uma leitura crítica dos

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 583

contextos que produziram desigualdades política e historicamente, neste país. Prática

assumida pelo Estado, gerando obstruções, entraves para a legitimação de direitos sociais, aos

muitos tipos de excluídos. E, saibamos que coube à escola e à família aturarem, ainda que

com exceções, para a disseminação de ideologias racistas, xenofóbicas, eugênicas. Algo que

vitimou de inúmeras maneiras nossas crianças, meninos e meninas. Esta ação tornando-se

uma tradição e cultura más, ainda que nocivas à vida e à dignidade.

Voltaremos a aspectos desta teoria no momento em que estivermos realizando alguns

recortes na crônica de Marina Colasanti que atua como corpus para as práticas discursivas,

decorrentes da leitura de gênero em sala de aula, como algo necessário. Algo que corrobora a

importância da leitura deste gênero sob o olhar da ideologia numa perspectiva da Análise

Crítica do Discurso.

Conceito de ideologia, conforme a ACD.

Neste estudo buscamos delinear a ideologia subjacente à crítica feita pela cronista, por

meio dos recursos prosaicos das quais autora lançou mão. Numa demonstração dos recursos

delineados por Patrick Charaudeau ao analisar os elementos que compõem o texto midiático.

Fizemos algumas já antes mencionadas e, agora passaremos a tratar de outros aspectos

elencados por Dijk (2008), acerca das implicações da ideologia no discurso. E neste caso, para

este estudo o “cronístico”, ou seja, o da crônica.

Convém explicitar que análise crítica do discurso, ou ACD:

é um tipo de investigação analítica que estuda principalmente o modo como o abuso

de poder, a dominação e a desigualdade são representados, reproduzidos e

combatidos por textos orais e escritos no contexto social e político [...] os analistas

críticos do discurso, adotam um posicionamento explícito e, assim, objetivam

compreender, desvelar e, em última instância, opor-se à desigualdade social. (DIJK,

2008, p. 113).

Diante do explicitado iremos compreender como esta concepção teórica pode ser

aplicada ao estudo que faremos do corpus.

Desde o título da crônica nos pareceu evidente a relação entre o dito por Charaudeau,

ao se apoiar no pensamento de Ducrot, quando classificam como argumentativos os relatos ou

comentários apresentados pelo enunciador. Pois segundo os mesmos independe da forma que

o enunciador midiático desenvolver sua crítica manifesta ou tácita. Ele a faz no sentido de

seduzir, convencer seus interlocutores acerca da “dominação e a desigualdade são

representados, reproduzidos” (DIJK, 2008, p. 113).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 584

Podemos observar isso desde o título: “De quem são os meninos de rua?” Notemos

que essa forma de construir o título pressupõe uma posição ativa, crítica, sobretudo, por parte

dos leitores. A pergunta evoca a busca por uma resposta. Uma que o texto não deixará de

oferecer subsídios linguístico-discursivos para enredar os leitores na tessitura “cronística”.

A relato entrecortado de comentários críticos à uma ideologia cultural que remonta um

comportamento adotado por muitos à época, na década de 80. Para tanto, Colasanti opõe o

significado da expressão “meninos de rua”, a expressão “meninos na rua”. A utilizar este

recurso ela direciona seus leitores, interlocutores, a refletir cognitivamente, em âmbito

semântico, estilístico e discursivo para os efeitos de sentidos que essas expressões geram no

imaginário popular. Visto que estes estiveram habituados, com a aparente designação da

primeira expressão. Isto como uma maneira de se isentarem de suas responsabilidades sociais,

frente ao quadro político de reimplantação do conceito de democracia. Uma social, ou seja, de

todos.

Em sua análise explicita, ou seja, manifesta, ela explica que a primeira expressão

denotaria a ideia incoerente, de que houvesse “meninos nascendo diretamente dos

paralelepípedos, das calçadas e não de famílias”. Ao realizar essa explicitação a autora

reflete sobre o fato de os meninos estarem na rua, em virtude de haver pais e mães que os

colocaram lá. Ou seja, os abandonaram.

Desenvolve assim, uma linha de análise marcada por uma análise implícita, ou seja

tácita, sobre os elementos políticos, históricos que refletem ideologias de Estado, que só ai se

enraízam como práticas sociais, decorrentes das práticas de exclusão do Estado. E, por sua

vez, adquirem ações sócias que reiteram tais práticas que transformam em muitos causos as

vítimas em algozes. Ou seja, os homens e mulheres pais e mães, vitimados pelas

marginalizações. Por conseguinte vitimam. Entra em cena, neste caso, uma cadeia cíclica

marginal.

Este ciclismo é camuflado, atenuado, “eufemizado” por expressões promotoras das

muitas marginalizações que encontram significado popular em vários níveis da sociedade,

como em: “meninos de rua” (...). Tais níveis denunciadores podem ser claramente, notados

em outras sequências da crônica que aqui, por uma questão de economia acadêmica, frente ao

gênero aqui desenvolvido, teremos que realizar. Vale pensarmos acerca do exposto

anteriormente:

O poder dos grupos dominantes pode estar integrado a leis, regras, normas, hábitos e mesmo a um consenso

geral, e assim assume a forma do que Gramsci denominou “hegemonia” (Gramsci,1971). A dominação de

classe, o sexismo e o racismo são exemplos característicos dessa hegemonia. (DIJK, 2008, p. 118, grifo nosso).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 585

No momento de manifestar a relação como os gêneros: masculino e feminino como

vítimas da marginalização que excluiu meninos e meninas, apesar de, a nosso ver, essa

expressão aglutinasse, à época os dois gêneros. Mas, acreditamos, não restar dúvidas,

Colasanti recorre de modo intertextual a estória de João e Maria. Com esse recurso manifesto

agrega-se à tessitura do relato a ideia do abandono de filhos, ambos os gêneros, em função da

falta de condições financeiras que acometeu ao pai lenhador. Que apesar de relutar à ideia da

madrasta, em algumas vezes, tolera o abandono de seus filhos à própria sorte na floresta

densa. A fim de que os mesmos não pudessem encontrar o caminho de volta à sua casa. Logo,

o retorno ao seio familiar.

Marginalização étnico - racial, no Brasil.

É verdade que a crônica tomada como corpus para a análise que estamos

desenvolvendo explicitamente, não se refere a esta ou aquela etnia, ou a qualquer grupo

étnico. Todavia, a título de buscamos sugerir o lugar da leitura e estudo desse gênero no

espaço da sala de aula. E, por nossas pesquisas se debruçarem a respeito das marginalizações

promovidas contra a dignidade dos povos africanos, no Brasil, assim como aos

afrodescendentes. Traremos à baila, alguns dados que explicitam o quanto a conscientização,

a busca por responsabilizar a todos que passariam a integrar a sociedade brasileira em “épocas

de República”, como também as autoridades do Estado brasileiro na promoção de medidas

eficazes que pudessem enfrentar às práticas do racismo institucional e do preconceito de cor

ou étnico, que vitimaram, segregaram os negros, Os colocando quase que totalmente, na

condição de ostracismo social austero, por séculos neste país.

Como a crônica trata de “meninos de rua”, e na nossa concepção analítica aqui

enfronhada pela intertextualidade manifesta, na ocorrência de João e Maria, para nós, então é

evidente, a relação contígua entre crianças e jovens. Sendo assim, reflitamos:

A violência contra a população negra no Brasil segue sendo uma grave questão

nacional. Conforme o Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventude no Brasil,

nos últimos dez anos, persiste a tendência de aumento das mortes por homicídio na

população negra (30,6%) e de queda no número de homicídios na população branca

(26,4%). Isso se verifica de forma mais acentuada na população jovem, revelando a

seletividade geracional e racial da violência letal no país. (CONFERÊNCIA

NACIONAL DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL, 3, 2013, p. 62).

Isso reflete uma cultura que vitima meninos de rua, ou melhor meninos sem família.

Ou ainda, meninas vitimadas por modelos de famílias desajustadas, empobrecidas, ao longo

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 586

da história do Brasil. Ainda com forte presença, no país. Sobretudo, nas regiões Nordeste e

Norte, os as condições de vida são subumanas.

Como não relacionarmos as práticas do abandono de meninos e meninas Na rua, ou

em outros lugares, onde se tornam vulneráveis, aos meninos e meninas negras. Vale dizer

também, que quando estas são meninas negras a face do abandono se torna ainda pior. Isto

nos faz perceber a necessidade de ações contra o racismo, o abandono e o preconceito não só

na dimensão subjetiva e, familiar de cada um, mas sobretudo, se faz necessário ações do

Estado. Como vemos:

Sob a coordenação da Secretaria Geral da Presidência da República, através da

Secretaria Nacional da Juventude (SNJ) e da SEPPIR, o Plano está organizado em

quatro eixos, que reúnem ações de dez ministérios: (i) Desconstrução da Cultura de

Violência; (ii) Inclusão, Emancipação e Garantias de Direitos; (iii) Transformação

de Territórios; e (iv) Aperfeiçoamento Institucional, as ações federais são pactuadas

com os governos estaduais e municipais, sendo sua execução acompanhadas por

outras iniciativas que envolvem as organizações juvenis, o sistema de justiça e o

parlamento. (CONFERÊNCIA NACIONAL DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE

RACIAL, 3, 2013, p. 62).

Saber disso deve nos levar a assumir uma posição em apoio ao combate de práticas

que reiterem racismo, inclusive o institucional, o preconceito e, evidentemente, o abandono de

nossos meninos e meninas. Isto porquê: “Uma pessoa negra, assim como qualquer outra de

qualquer grupo racial ou étnico, tem como base o seu desenvolvimento como ser humano, a

partir de referências próprias à história e à cultura de seu grupo.” (CONFERÊNCIA

NACIONAL DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL, 3, 2013, p. 69).

Assim será interessante nos responsabilizarmos por nos tornarmos agentes para

conduzir, em alguns casos, já em outros em reconduzir os meninos e meninas ascenderem à

condição de pessoas com direito à uma identidade étnica, social educativa e que as forje como

cidadãos emancipados, dignos. E um mecanismo para isso, compõem as reflexões acerca dos

princípios constitucionais legitimados no artigo 5% da Constituição Federal. Legalidade que

embasa a seguinte questão:

Em 2009, o MEC por meio da então secretaria de Educação Continuada, Alfabetização

e Diversidade (SECAD), e a SEPPIR elaboraram o Plano Nacional de Implementação das

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação para as Relações Étnico-raciais e para o

ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Seu objetivo é contribuir “para que

todo o sistema de ensino e as instituições educacionais cumpram as determinações legais, com

vistas a enfrentar todas as formas de preconceito, racismo e descriminação, para garantir o

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 587

direito de aprender e a equidade educacional, a fim de promover uma sociedade mais justa e

solidária”. (CONFERÊNCIA ..., 3, 2013, p. 55).

No entendimento que gostaríamos de compartilhar com nossos interlocutores, por

meio desse artigo, é encontremos elementos para desenvolvermos uma adoção de estudo e

análise de práticas discursivas que possam, dentre outros elementos, situar a análise de

temáticas relevantes, tanto quanto a temática étnico racial que em virtude de

desconhecimento, podemos nos tornar passivos à perpetuação daquilo que desenvolve as

várias frentes de preconceitos e discriminações. À medida que celebrarmos gêneros

discursivos comprometidos com uma proposta crítica e produtora de uma ação social, cidadã

promotora de emancipação tanto dos meninos, das meninas, dos adultos quanto de nossos

idosos. Em verdade, de todos aqueles que são vítimas, neste país, de marginalizações. Fato

que, destaca enquanto vítimas, à população negra, afrodescendente, afro-brasileira.

E, o gênero crônica, seguramente é comprometido com um olhar flagrante por meio de

análises que fazem o interlocutor refletir. Tomar uma posição sobre fatos sociais inaceitáveis.

Reagindo assim, aos abandonos e suas implicações. Já na década em que a crônica fora

concebida. Assim como, em nossos dias, numa época de louvarmos a diversidade étnica, por

meio de ações afirmativas, contra qualquer forma de marginalização do Estado, da escola, das

famílias... Enquanto ainda, persistam a disseminar ideologias correspondentes ao conceito de

Aparelhos Ideológicos de Estado - AIE, conforme assinalou Althusser.

Análises textuais discursivas – representação discursiva

Esta perspectiva aborda: “a dimensão semântica do texto, focalizando uma das

principais noções utilizadas pela Análise Textual e Discursiva [...] a representação

discursiva.” (ADAM, Jean-Michel, 2009, p. 173). Nessa linha de análise buscamos visibilizar

o “microuniverso-semântico, constitui uma representação discursiva mínima” (opcit.).

Vejamos como isso ocorre no corpus. “Talvez, não fosse um Menino De Família”,

“mas também, não era um Menino De Rua”, Menino De Família é aquele bem-vestido com

tênis da moda e camiseta de marca, que usa relógio...”, “Menino de rua é aquele que quando a

gente passa perto segura a bolsa com força...” (Colasanti, 1989) Nesses trechos fica evidente a

reconstrução discursiva, situadas no gênero crônica. Mas, para estabelecer uma oposição entre

a imagem social predominante, naquela sociedade. E, por sua vez, colocar o ideal coletivo em

oposição aos elementos sociais que contextualizam o fato a ser analisado: o abandono.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 588

Fato que propõe uma expectativa frente ao intento da cronista a ser revelado, mediante

as muitas reiterações que fará construindo um quadro analítico que revelará aos interlocutores

do gênero, circunstâncias sociais que não apenas responsabilizará instituições e autoridades.

Mas, a todos os indivíduos sociais, colocando o fato, do abandono como um problema social

de todos. Exigindo assim, uma ação para redimensionar o quadro que ela via construindo.

Seguindo seu intento discursivo, vai lançando mão de estruturas lexicais que

apresentam, para que o interlocutor assuma uma postura de algo que está fora da superfície do

texto. Na verdade, os recursos lexicais utilizados refletem uma tomada de consciência para o

reconhecimento de uma realidade fatídica que esse encontra fora da materialidade do texto.

Contudo imersa, num contexto social, via de regra, ignorado, relegado à invisibilidade.

Observemos outras representações: “uns nascendo de Fa-mília, outros nascendo De

Rua” (Colasanti, 1985). Isto em nesta análise sugere: “uma representação discursiva é

habitualmente composta por um conjunto – uma rede – de proposições e uma rede lexical

[...]” Estabelecendo “a semântica lexical” (ADAM, 2009, p. 174).

Diante dessas considerações optamos por classificar estas situações, neste estudo

como a aspectualização. Isto porque refere-se as características ou propriedades tanto dos

referentes como das predicações. Haja vista que as predicações refere-se ao reconhecimento

da presença de processos delineados nem em trechos como os destacados no parágrafo

anterior. Quantos outros termos utilizados ao longo dos parágrafos e por sua vez, do texto cria

uma cadeia semântica que retoma específicos aspectos do texto.

Mas, seguindo uma lógica coesiva coerente, obedece a uma lógica que põe em

evidência aspectos que são indispensáveis, essenciais, à construção do sentido no texto.

Obviamente, aquele que se deseja defender lógico-argumentativamente. Posto que oferece ao

texto um nível de progressão que vai concebendo à tessitura do texto. Uma rede. De maneira

a envolver de tal maneira os interlocutores do texto a fim de que sejam seduzidos à crítica

posta na crônica. Identificando com isso o sentido pretendido.

Podemos então, perceber que há predicações: “Como se a rua [...] os tivessem gerado,

sendo eles filhos diretos dos paralelepídos e das calçadas.” [...] “Na verdade, não existem

meninos De Rua. Existem meninos Na Rua.” (Colasanti, 1989) Seguramente, podemos notar

o quanto essas relações promovidas pela ocorrência das predicações alteram

significativamente, a concepção prévia, antes estabelecida, anterior à leitura e reflexão à luz

das análises léxico-semânticas e discursivas, construídas neste gênero.

De maneira, que a leitura de um texto, seguindo estas perspectivas não poderia

prender-se a uma metalinguagem apenas, daquilo que significa o gênero pelo gênero. Antes

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 589

necessitaria de uma leitura crítica que levasse em considerações as estratégias discursivas,

semanticamente situadas, que construíram o sentido para atender uma proposta, que carece ser

alcançada.

Considerações finais

Cabe ainda explicitar: desenvolvemos nesse breve estudo, análises com base em

aspectos lexicais, relacionando-as com a seguinte concepção:

[...] interessa-me aqui considerar as unidades do léxico [...] mas como unidades de

texto, peças com que se constrói a materialidade significante posta em sua

superfície. São, portanto, unidades lexicais co-textualizadas, constitutivas de uma

unidade de significado, para fins de um propósito comunicativo qualquer.

(ANTUNES, 2009, p. 144).

Exatamente o propósito comunicativo, situado à década de 80, assim como adequação

da leitura da crônica tomada como corpus para este estudo. E, também sua adequação para um

trabalho relacionado à concepção de práticas discursivas. Ambientadas à concepção dos

gêneros textuais e discursivos. Seguindo as indicações presentes nos Parâmetros Curriculares

de Língua Portuguesa para o Ensino Médio de Pernambuco. Mas, também, nos embasando na

remissão que o estudo dos gêneros possuem como indicados: “no quadro1, pelo Manual do

Professor de Linguagens no Século XXI, de autoria de Heloísa Takasaki. Onde se pode

perceber a indicação do gênero crônica nas 3 séries do fundamental II.” (Takasaki, 2007, p.

46-47).

Além disso, concernente aos gêneros reiterando uma metalinguagem sobre

características dele que não devem ser o centro da atenção. Cabe a alerta, há “elementos do

contexto sociohistórico mais amplos e aspectos linguístico discursivos importantes para a

compreensão do texto em determinado gênero não são levados em consideração, pois a ênfase

é, comumente na análise das características textuais.” (Takasaki, 2007, p.52).

Diante do exposto, percebemos também, a possibilidade de encontrar o lugar para a

Análise Linguística que é essencial no trabalho com os gêneros textuais e, é claro discursivos.

Pois, “possibilita uma análise sistemática e consciente sobre o que há de especial em cada

gênero na sua relação com as práticas sociais de que fazem parte” (Takasaki, 2007, p. 73).

Neste caso, a análise linguística “seria um meio para os alunos ampliarem suas

práticas de letramento” (Takasaki, 2007, p. 74). Também, “a construção de efeitos de sentido

como o ponto central das discussões a serem efetivadas em sala de aula.” (Takasaki, 2007, p.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 590

75). Ainda, “as escolhas linguístico-discursivas presentes num dado gênero não são

aleatórias, mas ali estão para permitirem que um gênero funcione socialmente.” (Takasaki,

2007, p. 77).

Vemos que o trabalho sobre aspectos lexicais está contido no referido trabalho com a

análise linguística que não pode ser confundido num trabalho com a gramática tradicional.

Elucidemos isto nas seguintes considerações: “a articulação (a coesão) que promove a

unidade semântica do texto (a coerência) é conseguida também com os recursos das unidades

lexicais presentes na sua superfície.” (ANTUNES, 2009, p. 145.).

Diante do exposto acima e mediante o acarretamento, a referenciação, e as retomadas

que fizemos ao evocar diferentes concepções teóricas como a das Teorias Reprodutivistas

como a Bordier, e a utilizada de Luis Althusser quando trata dos Aparelhos Ideológicos de

Estado. No momento em que situa o papel de agentes reprodutores de Ideologias do Estado

que eram, e podem ainda ser, disseminadas pela escola e pela família acerca de práticas que

podem gerar a marginalização e exclusão social. Algo que segrega, crianças, jovens, adultos,

idosos que deveriam ser assistidos por estas, em manifestação de práticas que gerassem a

inclusão social. E, logo, a cidadania emancipatória. À medida que valoriza as subjetividades,

historicamente situadas.

Ao mesmo tempo que enfronhamos o olhar sob à presença de ideologias

apassivadoras, como bem denuncia Van Dijk por meio da Análise crítica do Discurso – ACD.

De maneira que percebemos a relação desta com a concepção teórica de Luis Althusser, com

os Aparelhos Ideológicos de Estado – AIE. Ambas, em nossa ótica são complementares, e à

serviço da identificação de discursos marginalizadores, excludentes. Logo, precisam ser

reconhecidos e combatidos. Já que não há neutralidade quando tratamos de discurso como

afirma Bakhtin.

Como é caso, nesse estudo analisado, dos legados africanos e afrodescendentes. Em

cumprimento, de um currículo que atenda aos novos paradigmas educacionais para um Brasil

nacional, seguindo as orientações da Constituição de 1988, da LDB 9394, da lei 10.639/03.

Com essas conquistas, decorrem vários textos para a orientação do pensar para legitimar à

diversidade étnica como uma nova cultura e tradição, neste país. A exemplo do que versa as

Diretrizes Curriculares Nacionais Étnicas para uma educação nacional. Que legitimaram, no

campo legal, o compromisso das instituições públicas e privadas contra quaisquer ações de

discriminação racial, étnica, pré-conceitos, produtoras de exclusão, e por conseguinte, de

segregações. De maneira a dar instruções de como e quando elaborar e pôr em práticas ações

afirmativas.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 591

Por isso, mesmo buscamos fazer um recorte na crônica de Marina Colasanti, De quem

são os meninos de rua? Para delimitarmos representações discursivas que apresentam uma

“perspectivização” (ADAM, 2010, p. 172-187), que nos neste estudo delimitamos por

categorias lexicais, obedecendo uma linha de análise semântica. Assim como também,

situando a relação entre a enunciadora, a cronista, em seu discurso cronístico. Numa estratégia

de se referir a fatos sociais ambientados no mundo real.

Isto fazendo, por meios de um discurso manifesto e tácito que evocou a

responsabilidade de instituições e indivíduos, que naquela ocasião: “Em dias de República”

(COLASANTI, 1989), pelo menos, em tese, passariam a desfrutar de direitos sociais que os

responsabilizava.

Então, como não dizer, que isso não nos responsabiliza enquanto atores, mediadores

de processos que propiciem uma leitura, estudo de gêneros, incluindo a crônica, numa

perspectiva, não tradicional, crítica e produtora da inserção dos leitores por nós mediados, em

busca de uma tomada de consciência, fruto de uma “leitura do mundo” (FREIRE), e, de si.

Uma capaz de colocá-lo como cidadão gerador de cidadania.

Por fim, ressaltamos que nos despertamos para identificar ideologias exclusivistas ou

marginalizadoras devem ser combatidas pela escola e pelo currículo e por sua vez, pela leitura

de gêneros que possam ambientar nas aulas uma possibilidades de efetivarmos uma prática

que inclua um olhar sensível às práticas discursivas e suas implicações para que seja possíveis

aos atores envolvidos na escola, a descoberta deles mesmos. Ao agirmos assim,

possivelmente, possamos somar forças a um conjunto de ações que tem ocorrido no país

desde a sua invenção, para darmos legitimidade a tudo aquilo que se refira à construção de

nossa identidade nacional, perpassando pelos legados das muitas etnias que construíram o

ideal de um país que de fato, torne o povo soberano. Fato que envolverá a inclusão das muitas

etnias excluídas marginalizadas.

Nesse sentido, nos cabe combater os discursos explícitos, implícitos, manifestos ou

tácitos que ainda atuem como interdiscursos racistas, discriminatórios, preconceituosos. Ao

invés disso, assumamos a necessidade, inadiável de fazer a escola, não apenas em tese, mas,

em suas práticas uma propositora da cidadania popular. Por meio das ações que podem e

devem gerar múltiplas faces da interação verbal discursiva.

Referências

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 592

ADAM, Jean-Michel. Análises textuais e discursivas: metodologias e aplicações.

HEIDMANN, Ute (org.). São Paulo: Cortez, 2010.

ANTUNES, Irandé. 1937 – Língua texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola

Editorial, 2009.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2009.

COLASANTI, Marina. "Eu sei, mas não devia". Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996.

CONFERÊNCIA NACIONAL DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL, 3, 2013.

Secretaria de Políticas da Igualdade Racial- SEPPIR-BR.

DIJK, Teun A. van. Discurso e Poder. In: HOFFNAGEL, Judith; FALCONE, Karina (org.).

São Paulo: Contexto, 2008.

MOURA, Dayse Cabral de (org.). Educação e relações raciais em escola públicas: o que

indicam as pesquisas? Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013.

GONDRA, José Gonçalves. Educação, poder e sociedade no Império brasileiro. São Paulo:

Cortez, 2008. (Biblioteca básica da história da educação brasileira).

SAVIANI, Demerval. 1944- Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara,

onze teses sobre educação e política. – São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 593

OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA: RETRATO

SÓCIOANTROPÓLOGICO DO SERTANEJO NORDESTINO E

DA GÊNESE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO COMO LÍDER

MESSIÂNICO [Voltar para Sumário]

Deividy Ferreira dos Santos1 (UPE)

Introdução

Atualmente, o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, vem sendo uma das maiores

e mais discutidas obras por especialistas no âmbito da Literatura, da História e da Sociologia,

entre outras áreas nos últimos anos. Há quem se sinta a vontade para descrever, defender e

analisar uma das maiores obras da nossa literatura.

Ancorados em aspectos basilares, o livro “Os Sertões”, tem um caráter e um valor

histórico, social e cultural indiscutível na história, na formação e na cultura de nosso país,

apresentando uma análise da realidade nacional articulada com fundamentos da mudança

social (REZENDE, 2001). Nessa visão unificadora de retratar os aspectos meramente

estruturais de nosso país, Euclides da Cunha buscou tratar essas mudanças por meio de uma

concepção Naturalista, adotando a percepção do historiador francês Hippolyte Taine, que

concebia a história a partir de três fatores: o meio, a raça e o momento, isto é, seu enfoque

centra-se no Determinismo Social: o meio determina o homem e da interação entre homem e

meio resulta a guerra.

O crítico literário Massaud Moisés, em seu livro História da Literatura Brasileira,

salienta que Os Sertões é um “retrato social brasileiro que explica a difícil crueldade da nossa

realidade e do sertanejo nordestino”.

1 É graduando em Licenciatura Plena em Letras e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco (UPE),

Campus Garanhuns, onde participa dos Grupos de Pesquisas: ARGILEA e DISCENS. Atualmente está inserido

em projeto de Iniciação Científica como Bolsista do CNPq (PIBIC/CNPq/UPE), é professor de Português –

Interpretação de texto e Gramática – no Programa de Línguas e Informática UPE – PROLINFO. E-mail:

[email protected].

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 594

“Seja como for, Os Sertões anunciavam o término do ciclo romântico de nossa

visão idílica da história pátria. Iniciava-se a hora da verdade, com a derrocada ‘de

um falso idealismo, que era a pior das idealizações, porque era a idealização dos

aspectos inferiores da nossa natureza’. Na sua visão do mundo, o Brasil

nacionalizava-se ao tomar consciência do seu ego dividido, e ao exprimir-se ‘pela

linguagem mais épica que ainda se escreveu em prosa portuguesa’, indicava a

superação, ainda que parcial, dos vínculos com a Literatura Portuguesa. Vazado ‘em

estilo brasileiro, com a ênfase, a truculência, o excesso, a exuberância, o brilho, o

arremesso, a prodigalidade, a magnificência, que nos autorizavam e talvez nos

singularizem no mundo’, preludiava, na sua denúncia, o romance social dos anos 30:

a revolução literária de 1922, inaugurando a modernidade, começa em 1902, com Os

Sertões.” (MOISÉS, 1984, p.572).

Moisés coloca em xeque, como percebemos algumas ideologias perceptíveis em Os

Sertões quando tenta explicar ao mesmo tempo os diferentes tipos regionais que abarca a

obra, ou seja, mostra-se um sertão esquecido pouco receptivo ao homem e outro adiantado,

litorâneo, fazendo ao mesmo tempo um ligamento com as rudezas da época.

Nesse sentido, para clarificar melhor essa ideia, tomemos como exemplo a seguinte

passagem:

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços

neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista,

revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempenho, a estrutura

corretíssima das organizações atléticas.

[...] Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em

todos os pormenores da vida sertaneja – caracterizado sempre pela intercadência

impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas (CUNHA, 2004, p.92-

3). (Grifos nossos).

Sob certo prisma ou ponto de vista, Euclides da Cunha ao descrever o sertanejo

nordestino, apresenta como contraditórios certos aspectos de sua constituição física e seu

comportamento, isto é, por um lado o sertanejo mostra-se forte e impulsivo; por outro,

mostra-se frágil, fisicamente, e apático.

Esses aspectos contraditórios devem-se, no entanto, à caracterização da natureza onde

vive o sertanejo, pois, no sertão nordestino, a natureza mostra-se rude, seca e pouco receptiva

ao homem.

À primeira vista, a Guerra de Canudos começa a ganhar contornos históricos e sociais

quando se teme a possibilidade de haver um levante contra a República recém-fundada e

também porque o arraial liderado por um religioso fanático Antônio Conselheiro, pretendia

romper com a autoridade eclesiástica. O que aconteceu foi que os seguidores de Antônio

Conselheiro já não obedeciam mais aos feitos dos coronéis, o que acabou culminando em uma

guerra, esta, por sua vez, refletida nos sertanejos locais, travada por empecilhos como

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 595

desamparo oficial, à miséria, a ignorância, o fanatismo religioso (advindo das duas primeiras)

e a marginalização política.

Cunha ao escrever Os Sertões é importante ressaltar que ele não tinha como

preocupação central apenas contar o que presenciara no sertão, pelo contrário, munido das

teorias científicas vigentes - determinismo, positivismo e conhecimentos de sociologia e

geografia natural e humana -, pretendia também compreender e explicar o fenômeno

cientificamente. Apesar das pesquisas, estudos e discussões cada vez mais frequentes acerca

da obra, ainda é notório as interrogações postas entre vários estudiosos e especialistas acerca

de Os Sertões, ou seja, discute-se a sua classificação.

Trata-se, portanto, de uma obra híbrida que transita entre a literatura, a história e a

ciência, ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e evolucionista, à construção

literária, marcada pelo fanatismo trágico e pela exuberância das imagens. Apresenta

características de tratado científico (com longas páginas dedicadas à análise das características

do solo do sertão nordestino, por exemplo); de investigação sócioantropológica (facilmente

identificável no cuidado com que Euclides procura apresentar o sertanejo); de matéria

jornalística (exemplificada pelo minucioso registro dos embates entre as tropas oficiais e os

revoltosos); e, evidentemente, de texto literário (captando, em suas descrições, a sinceridade

da alma simples e leal do sertanejo, pronto a seguir um líder e a morrer combatendo a seu

lado).

Desta maneira, (GALVÃO, 1980, p.36) afirma que, ao tentar da conta dos

acontecimentos de Canudos no calor da hora, ele (Euclides da Cunha) se viu obrigado a

“explicitar por tentativas um quadro teórico”. Neste estavam presentes, principalmente, as

influências de Buckle, Taine, Spencer e Darwin, que segundo a especialista e crítica literária

Walnice Nogueira Galvão, entretanto, é a partir desse quadro teórico, ou apesar dele, que Os

Sertões se coloca como um livro precursor, posto na raiz do desenvolvimento das ciências

sociais brasileira nos anos 30 e 40. As interpretações gerais que surgem nos anos 30 apontam

para a coexistência de dois países – um litorâneo e adiantado, o outro interiorano e atrasado –

lições aprendidas em Os Sertões e que mais tarde será radicalizada em contradição ferrenha

substituindo a noção de coexistência. Corroboramos com Walnice Nogueira Galvão quando a

mesma afirma que:

“Decididamente era indispensável que a campanha de canudos tivesse um objetivo

superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões.

Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais demorada e digna. Toda

aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não aproveitassem os caminhos

abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 596

trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes

compatriotas retardatários.” (CUNHA, 2004, p.405 e 47). (Grifos nossos).

A autora conclui que Euclides da Cunha critica a guerra em si e afirma que outra

“guerra mais demorada e digna” deveria ser travada. Na verdade, o que ele pretende nos dizer

é que deveria surgir outra guerra, porém outra que visasse trazer o sertanejo para a

civilização; incorporá-lo à vida do país.

Diante desta perspectiva de pensamento, este artigo está organizado da seguinte forma:

primeiramente, farei algumas considerações à tela da escrita de Euclides da Cunha em Os

Sertões desenvolvendo uma inter-relação/intertextualidade com o Pré-Modernismo; a seguir,

analisarei a interpretação de Euclides da Cunha e a Revolta de Canudos em uma análise sócio

histórica de nosso país. Em seguida, será realizada uma análise da(s) ideologia(s) de Antônio

Conselheiro desde a Revolta de Canudos à Guerra do Contestado: uma releitura na Literatura

e na História. Finalmente, apresento as considerações finais sobre o trabalho.

1. A escrita de Euclides da Cunha em Os Sertões: uma inter-

relação/intertextualidade com o Pré-Modernismo

Podemos afirmar que o Pré-Modernismo é uma época de nacionalismo temático: um

nacionalismo crítico, questionador.

Nesse quadro, a literatura passa a ser concebida como um instrumento e ação social:

ela nos permite conhecer mais profundamente a realidade e assim aumentar nossa capacidade

de convivência, nossa competência para organizar um mundo mais fraterno.

Essa concepção de literatura não era a que mais agradava aos governantes do país, que

preferiam um nacionalismo mais ufanista e uma literatura mais bem-comportada, ou seja, uma

literatura que atuasse como o “sorriso da sociedade”, para usar a expressão de um autor da

época. O Brasil vivia então a sua Belle Époque, expressão francesa que designa o período

entre 1885 e 1918, no qual Paris exportava cultura e modelos de comportamento, e o dinheiro

da cafeicultura patrocinava algumas reformas urbanísticas embelezadoras no Rio de Janeiro,

então capital do país. As classes sociais mais favorecidas podiam seguir a moda parisiense e

divertir-se passeando pelas avenidas e fazendo compras nos magazines da capital federal.

Uma literatura que preferia tematizar as enormes diferenças sociais do país ao invés de

louvar o “progresso” nacional era, sem dúvida, um desagradável empecilho à propaganda

oficial, que procurava transmitir a sensação de que a República, recém-consolidada pela

chamada “política do café com leite”, que era a aliança entre os produtores de café paulistas e

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 597

os criadores de gado leiteiro de Minas Gerais, era efetivamente um caminho modernizador e

democratizante para o país.

A descoberta do Brasil não oficial foi, dessa forma, o grande mérito da prosa pré-

modernista. Por meio dela, o nacionalismo crítico e progressista conseguiu exprimir-se,

combatendo o nacionalismo conservador oficial, que, à análise dos problemas sociais, preferia

o palavreado muito eloquente sobre a “grandiosidade da pátria”. Os tipos humanos

marginalizados, como o sertanejo nordestino, os habitantes dos subúrbios cariocas, o “caipira”

paulista, ganharam espaço nas obras literárias e com eles as realidades de que faziam parte. O

Brasil encontrou-se com os diferentes “Brasis” nesse trabalho de investigação e análise da

realidade nacional.

Ao lado dessa renovação temática, o Pré-Modernismo produziu também uma

renovação na linguagem literária, enriquecida pela incorporação de elementos de origens

muito diversas: enquanto alguns autores optaram pela poetização da linguagem científica,

outros preferiam a utilização de regionalismos, de formas da linguagem popular ou de um

estilo simples e despojado, capaz de aproximar a literatura da linguagem jornalística.

Diante dessa perspectiva, podemos concluir que o Brasil do início do século mantém

basicamente a mentalidade do final do século XIX, pós-republicana, positivista e liberal.

Entretanto, um quadro político tenso põe em risco o poder das oligarquias civis, provenientes

dos setores rurais. Uma burguesia industrial nascente, ligada à produção e exportação do café

no eixo Rio-São Paulo-Minas Gerais começa a ascender. A urbanização e a imigração,

decorrentes do crescimento industrial, trazem à cena ideologias progressistas que conflitam

com o nosso tradicionalismo agrário.

As pressões de outros segmentos da população interessados numa mudança política,

por exemplo, os profissionais liberais, a pequena classe média, alguns setores militares, o

proletariado manifestam-se através de movimentos como a Revolta contra a vacina

obrigatória, a Revolta da Chibata e as duas greves gerais de operários. No meio rural, por sua

vez, as tensões se expressam na proliferação de grupos de cangaceiros e em movimentos

messiânicos relacionados à emanação de eventos de grande repercussão política, como a

Guerra de Canudos, ocorrida na Bahia, a Revolta do Contestado e o Levante de Juazeiro, que

teve o Padre Cícero como um dos protagonistas.

Notoriamente, parece vislumbrar “dois brasis” em estado de confronto, ao longo da

Primeira República: aquele agrário, tradicionalista e conservador, que detém o poder, e este

que anuncia a virada do século um país industrial, urbano, em busca da modernização.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 598

Além disso, o Pré-Modernismo não constitui uma escola literária, porque não chegou a

formar um grupo de autores com os mesmos valores estéticos, mas apenas uma

tendência/momento de transição surgida na literatura do início do século XX de denúncia dos

problemas estruturais da sociedade brasileira, de modo bem menos determinista que os

naturalistas e privilegiando temas regionais.

Euclides da Cunha assim como os demais escritores pré-modernistas, elenco: Augusto

dos Anjos na poesia; Lima Barreto, Monteiro Lobato, Graça Aranha e o próprio Euclides da

Cunha na prosa; tinham a preocupação e uma abordagem e estilos próprios, específicos, tais

prosadores se aproximam por anunciarem a grande temática que ocupará nossa primeira

geração modernista: a redescoberta dos valores brasileiros, expressa por um nacionalismo que

muitas vezes retoma a vertente regionalista, da literatura brasileira de modo crítico, polêmico,

problematizador.

Cunha ao fazer em Os Sertões um retrato do que presenciara na Guerra de Canudos

discorre em sua narrativa da presença de algumas figuras de linguagem como as antíteses, as

personificações e as metáforas. É importante frisar que não apenas para dá um sentido

“conotativo”, figurado as suas reflexões, mas, principalmente, para emblemar/amplificar os

empasses entre suas reflexões acerca da guerra em compará-las com sua clara e recorrente

ironia.

Consoante SEVCENKO, a escritura de Cunha caracteriza-se por:

“[...] uma linguagem elevada, selecionada, elaborada, altamente metafórica e

imagística, de comunicabilidade mediatizada, dotada de efeitos elocutivos,

escoimada de clichês, rebarbativa, áspera, carregada, homogênea, praticamente sem

variação sociolinguística, isenta de paródia ou prosopopeia, reveladora e enérgica.

Uma linguagem altamente coerente com o conteúdo transmitido, na medida em que

procurava evidenciar uma dignidade superior da cultura científica e filosófica e

revelar a sua capacidade de perceber erros e injustiças, ao mesmo tempo, que

expunha a verdade última presente no movimento profundo das forças naturais. Um

discurso de revelação e verdade, que perderia o seu poder de demonstração se

oscilasse de acordo com os vários níveis da realidade que aborda; fato que

sintomaticamente também ocorre com a linguagem científica.” (SEVCENKO, 1989,

p.135).

Teoricamente, a discussão aqui proposta se assenta na concepção de que Euclides da

Cunha recorreu a algumas figuras de linguagem para a composição do seu texto não apenas

para dá sentido conotativo as suas reflexões, mas também para dá expressividade, intensidade

as suas ideias.

Cunha utilizou, na sua análise, uma linguagem científica, para explicar os

acontecimentos que observava. Registrou, no seu texto, muitas palavras desconhecidas e

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 599

incompreensíveis para a maioria do público leitor. Podemos assim afirmar com veracidade

que a obra euclidiana foi escrita com inteligência no sentido mais específico da palavra, (não

me refiro ao sentido geral da palavra) e sensibilidade, à medida que o livro avança e os

detalhes nos são passados minuciosamente sem perdemos o “fio” da narrativa.

2. A interpretação de Euclides da Cunha e a Revolta de Canudos em uma análise

sócio histórica de nosso país

Nas últimas décadas do século XIX uma série de condições contribuiu, para o

esfacelamento de milhares de sertanejos do nordeste: o declínio da produção açucareira, as

constantes secas, a prepotência dos coronéis-fazendeiros e os novos rumos políticos do país,

com a república.

Foi nesse contexto de opressão e desesperança sociais, durante o mandato do

presidente Prudente de Morais, que Antônio Vicente Mendes Maciel, apelidado Antônio

Conselheiro, encontrou ambiente propício para suas pregações político-religiosas.

Desconsiderando certas mudanças surgidas com a república, Conselheiro declarava-se, por

exemplo, contra o casamento civil e, por isso, foi identificado por seus adversários como

fanático religioso e monarquista.

Antônio Conselheiro tinha 65 anos quando, em 1893, chegou a uma velha fazenda

abandonada no sertão baiano, situada às margens do rio Vasa- Barris, onde liderou a formação

do povoado de Canudos. Desde 1870, fazia pregações que atraíam crescente número de

pessoas do sertão nordestino. Um de seus lemas era: “A terra não tem dono, a terra é de

todos”.

Milhares de pessoas mudaram-se para Canudos: sertanejos sem-terra, vaqueiros, ex-

escravos, pequenos proprietários pobres, homens e mulheres, perseguidos pelos coronéis ou

pela polícia. Buscavam paz e justiça em meio à fome e à seca do sertão. Em pouco tempo, o

povoado transformou-se numa das localidades mais populosas da Bahia, reunindo entre 20

mil e 30 mil habitantes.

Comandada por Antônio Conselheiro, a população de Canudos vivia, segundo alguns

pesquisadores, num sistema comunitário em que as colheitas, os rebanhos e o fruto do

trabalho eram repartidos. O que restava era vendido ou trocado com os povoados vizinhos. Só

havia propriedades privada dos bens de uso pessoal, como, por exemplo, roupas, móveis, etc.

A prostituição e a venda de bebidas alcoólicas eram proibidas. O povoado tinha normas

próprias, representando uma alternativa de sociedade para os sertanejos que fugiam da

dominação dos grandes coronéis.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 600

Em 1896, num arraial formado à beira do rio Vaza-Barris, norte da Bahia, onde viviam

cerca de 25 mil pessoas lideradas por Antônio Conselheiro, ocorreu o mais trágico episódio da

jovem República brasileira. O beato Conselheiro fazia uma pregação que concorria com a

igreja tradicional, arregimentava a antiga mão-de-obra de fazendeiros e, por não atender a

separação entre Igreja e Estado, aprovada na Constituição de 1891, atacava a República. A

repressão, estimulada por fazendeiros e religiosos, partiu do governo baiano, que teve suas

forças derrotadas.

O ocorrido ganhou contorno federal (era entendido como um “foco monarquista”) e

tropas do Exército intervieram; lutando nas caatingas, que foram igualmente derrotadas.

Diante deste exposto, observemos uma passagem de Os Sertões que fundamenta esta

hipótese: “Canudos não se rendeu” (CUNHA, p. 497).

Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história

resistiu, até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão

integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos

defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos

e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.

(CUNHA, 2004, p.497).

No trecho apresentado, é narrado o fim da luta entre as tropas do exército e os quatro

últimos defensores de Canudos no dia 5 de outubro de 1897. No dia 6, houve a derrubada das

casas e a exumação do cadáver de Antônio Conselheiro.

No interior da Bahia, o arraial de Canudos, essas populações foram fanatizadas por

Antônio Conselheiro, que foi considerado perigoso monarquista pelo governo central. Para

combatê-lo foram mobilizadas forças federais. Essa guerra durou de 1892 a 1896 e Canudos

foi exterminada, após fortes resistências, com a morte do líder.

Diante disto, corroboramos com Roberto Ventura em Canudos como cidade ilustrada:

Euclides da Cunha urbs monstruosa, quando ele afirma que:

Euclides da Cunha interpretou a Guerra de Canudos a partir de fontes orais, como os

poemas populares e as profecias religiosas encontradas em papéis e cadernos nas

ruínas da comunidade. Baseou-se em profecias apocalípticas, que julgou serem da

autoria de Antônio Conselheiro, para criar, em Os Sertões, um retrato sombrio do

líder da comunidade. Esses poemas e profecias foram o ponto de partida de sua

visão de Canudos como movimento sebastianista e messiânico, vinculado à crença

no retorno mágico do rei português D. Sebastião, para derrotar as forças da república

e restaurar a monarquia.

[...]

Foi além da narração da guerra, ao construir uma teoria do Brasil cuja história seria

movida pelo choque de etnias e culturas.

[...]

O conflito entre Canudos e a república resultou, para Euclides, do choque entre dois

processos de mestiçagem: a litorânea e a sertaneja. O mestiço do sertão, apresentaria

vantagem sobre o mulato do litoral, devido ao isolamento histórico e à ausência de

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 601

componentes africanos, que tornariam mais estável sua evolução racial e cultural.”

(VENTURA apud ABDALA, 1997, p.89-93).

Notamos evidentemente o comentário que Roberto Ventura levanta acerca de Os

Sertões ao mencionar os movimentos sebastianistas, ou seja, ao movimento político

saudosista que preconiza a volta de D. Sebastião, rei de Portugal, desaparecido, ou morto, na

batalha de Alcácer- Quibir, contra os mouros, em 1578. O fato de o corpo não ter sido

encontrado possibilitou que se criasse o mito da volta do rei, que seria o salvador do povo e

do país.

3. A ideologia de Antônio Conselheiro desde a Revolta de Canudos à Guerra do

Contestado: uma releitura na Literatura e na História

A situação de pobreza e abandono em que vivia boa parte da população brasileira

durante a República Velha fez com que milhares de pessoas buscassem amparo junto a líderes

messiânicos que se diziam porta-vozes do mundo divino na Terra. Dois movimentos

messiânicos se destacaram: o de Canudos, na Bahia, e o do Contestado, no Sul do país.

Perseguido pelas autoridades, Antônio criticava a República e elogiava a monarquia,

prometendo o retorno do rei de Portugal dom Sebastião, morto no norte da África em 1578.

Atraídos por sua pregação, dezenas de milhares de sertanejos fixaram-se na região, onde

passaram a viver da agricultura de subsistência. Muitas pessoas exploradas pelos fazendeiros

fugiam para Canudos em busca de uma vida melhor.

Acusada de monarquista, a comunidade começou a incomodar a oligarquia estadual, o

governo federal e a hierarquia da Igreja. Para reprimi-la, em 1896 o governo enviou a

Canudos uma expedição militar com pouco mais de cem homens. Fustigada pelos

seguidores do Conselheiro, a improvisada tropa foi derrotada. Até o final de 1897, mais três

expedições seriam enviadas. Só na última, composta de mais de 8 mil soldados, o Exército

sairia vitorioso.

Assim como no sertão baiano, a miséria era grande na divisa do Paraná com Santa

Catarina. Essa região, onde viviam cerca de 60 mil pessoas, era conhecida como Contestado

(disputado), por ser reivindicada pelos dois Estados desde o Império. Em meio à miséria, a

população buscou refúgio nas palavras do “monge” José Maria. Dizendo-se um eleito de Deus

e prometendo o advento de um reino de justiça, que muitos identificavam com a monarquia, o

beato passou a ser seguido por milhares de fiéis. Seu assassinato por forças policiais em 1912

não enfraqueceu o movimento. Morto José Maria, seus adeptos passaram a seguir as palavras

de moças virgens que diziam ser videntes.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 602

A partir de 1913, por várias vezes tropas dos governos estadual e federal lançaram

ataques contra os redutos rebeldes. Usando armamentos pesados, os soldados tiveram de

enfrentar encarniçada resistência da população local, munidos de velhas espingardas, foices e

facões. Somente em janeiro de 1916, o último líder dos sertanejos foi preso e a Guerra do

Contestado chegou ao fim. Estimativas apontam que por volta de 20 mil pessoas, entre

mulheres, crianças, homens e idosos, morreram no conflito.

Em meio a esse clima inóspito e destoante, faz-se necessário ainda o movimento

messiânico O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, ocorrido nas terras do Crato, no Ceará. A

comunidade do Caldeirão era liderada pelo paraibano, José Lourenço Gomes da Silva, ou

simplesmente o beato José Lourenço, como era mais conhecido. No Caldeirão, os romeiros e

imigrantes trabalhavam todos em favor da comunidade e recebiam uma quota da produção. A

comunidade era pautada no trabalho, na Igualdade e na Religião.

Corroboramos a luz do pensamento de Francisco Edésio Batista, quando o mesmo

ressalta que:

Governo, Igreja e Sociedade deram as mãos para destruir o Caldeirão. Ainda não

existiu no Brasil governo bom para os pobres. O conflito ocorreu no Estado Novo,

em pleno governo Getúlio Vargas, o pai dos pobres. Na realidade não se pode falar

em conflito. O que houve foi o massacre puro e simples de uma comunidade

camponesa desarmada. (BATISTA, 2002, p. 36).

Percebemos a partir da reflexão de Batista, que as palavras nesse caso se

metamorfoseiam para um sentido de que quando se trata da luta pela terra no Brasil os pobres

não têm pátria, e nem mesmo o acolhimento da religião oficial, o catolicismo romano.

Considerações Finais

A obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, se insere dentro de um quadro histórico em

que ainda se vivia o Brasil antes da Semana de Arte Moderna. Deste modo, foi à busca de

uma resposta à pergunta: “Que país é este?”, que marcou a arte brasileira do século XX e que

perdura até hoje. Já no Pré-Modernismo - período que antecedeu à realização da Semana de

Arte Moderna e que se estendeu de 1902 a 1922 -, percebia-se a preocupação de alguns

autores em denunciar a realidade brasileira, descortinando um país não oficial, dos

marginalizados, desde o sertão nordestino até os subúrbios cariocas, passando pelas áreas

rurais do estado de São Paulo.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 603

A primeira obra que negava o Brasil idealizado pelos autores românticos foi Os

Sertões, de Euclides da Cunha, publicada em 1902. A partir do relato da Revolta de Canudos,

liderada pela figura mística de Antônio Conselheiro, o autor escancarou os contrastes entre o

Brasil europeizado, que “vive parasitariamente à busca do Atlântico” e aquele outro Brasil,

dos “extraordinários patrícios” do sertão nordestino.

Em tese, notamos em Os Sertões, de Euclides da Cunha, que apesar de todo o levante

político destacado ao longo do trabalho, fica indubitável que os canudenses lutavam pela

monarquia apenas porque eram esmagados pela República. Se fosse o contrário, seriam

republicanos. Logo, em outros termos, o que estavam tentando fazer era apenas sobreviver às

condições adversas e à inépcia do governo.

Referências

BATISTA, Francisco Edésio. O Caldeirão do Beato José Lourenço, Crato/CE, Academia dos

cordelistas do Crato, 2002.

CORDEIRO, Domingos Sávio de Almeida. Memórias e Narrações na construção de um

líder, Beato José Lourenço. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de

Ciências Sociais e Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade

Federal do Ceará, Fortaleza, 2002.

_____. Um Beato líder – Narrativas Memoráveis do Caldeirão. Fortaleza, Imprensa

Universitária da UFC, 2004.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 2ª. Ed. São Paulo: Ática, 2004.

_____. (1966a) Contrastes e Confrontos. In: _____. Obra Completa I. Rio de Janeiro,

Aguilar, p. 101-219.

GALVÃO, Walnice Nogueira. (Org). (1980) Euclides da Cunha: história. São Paulo, Ática,

p. 7-37.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 5ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 1998.

_____. História da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1984.

REZENDE, Maria José de. Os Sertões e os (des) caminhos da mudança social no Brasil.

Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 13(2): 201-226, Novembro de 2001.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação da cultura na

Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1989.

VENTURA, R. (1996) Euclides da Cunha e a República. Estudos Avançados, 10(26): 275-

291, Janeiro-Abril.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 604

_____. Canudos como cidade ilustrada: Euclides da Cunha urbs monstruosa. In: Abdala Jr.

Canudos: palavra de Deus, sonho da terra. São Paulo, Senac/Boitempo. Editorial, 1997. P.

89-93.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 605

PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO EM SALA DE AULA:

UM CAMINHO DE APROPRIAÇÃO NA ESCRITURA DE

GÊNEROS TEXTUAIS [Voltar para Sumário]

Dennys Dikson (UFRPE/UFAL) 1

Wanessa Gomes Teixeira Maciel (UPE) 2

1. Introdução

Apresentaremos neste trabalho questões relativas ao processo de Retextualização em

ações práticas dentro da aula de Língua Portuguesa em Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

A questão mais relevante é apresentar, dentro de um contexto escolar, a importância desse

processo de mutabilidade textual – especificamente quando trabalha atividades com os alunos

com o intuído de se passa um determinado gênero textual escrito para outro gênero textual

também escrito.

As aulas de Língua Portuguesa – quando o trabalho ativo com gêneros textuais é

realizado a contento – se tornam muito mais consistentes quando a estratégia de retextualizar

entra no jogo de aprendizagem. Isso porque essa prática de escrita instiga a entrada dos alunos

nas características e estruturas textuais, seja do texto retextualizado ou daquele que se quer

retextualizar. Quanto mais se mergulha na formatação seja de qual for o gênero textual,

melhor é o aprendizado da leitura e escritura, aumentando consideravelmente as questões

relativas à reflexão crítica, compreensão daquilo que se lê e capacidade de escrever melhor –

o texto, então, se mostra como o eixo mais relevante quando se trata de ensino e

aprendizagem de leitura-escrita.

1 Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Garanhuns – UFRPE/UAG.

Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPGLL) da Universidade

Federal de Alagoas (UFAL). Mestre em Linguística pela mesma Instituição. Membro-pesquisador-discente do

Laboratório do Manuscrito Escolar (L’AME), sediado no PPGE-UFAL. Integrante do grupo de pesquisa

Escritura, Texto e Criação (ET&C-PPGE/UFAL). Contato: [email protected] 2 Graduada em Licenciatura em Letras pela Universidade Federal Rural de Pernambuco – Unidade Acadêmica

de Garanhuns (UFRPE - UAG). Pós-graduanda em Ensino de Língua Portuguesa e suas Literaturas pela

Universidade de Pernambuco (UPE). Contato: [email protected]

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 606

No decorrer deste trabalho, trataremos rapidamente de questões acerca de Gêneros

Textuais e as relações existentes entre os textos, seja escrito-escrito ou escrito-oral.

Abarcaremos, outrossim, o conceito de Retextualização (MARCUSCHI, 2004;

DELL’ISOLA, 2007) e quais os aspectos que estão envolvidos neste processo de

transformação de um texto em outro, modificando a estrutura do gênero textual, sem perder o

tópico apresentado no do texto-base.

Analisaremos uma atividade escolar, a partir das noções e pontos principais da

Retextualização, que foi desenvolvida com alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental.

Vamos observar os processos que rodeiam o trabalho dos alunos quando estão retextualizando

em sala de aula, durante as aulas de Português – práticas estas que devem favorecer a

compreensão de textos, a formação de leitores críticos e bons produtores textuais.

2. Falando um pouco sobre os Gêneros Textuais

Para tornar possível a comunicação em diferentes contextos e suprir as necessidades

de utilização da linguagem humana, surgem os gêneros textuais. Qualquer pessoa é capaz de

reconhecer, instantaneamente, o gênero a que está sendo submetido – desde que esteja nele

inserido previamente –, sendo possível “ajustar-se” ao contexto de interação, pois nossa

comunicação e interrelação humanas só é possível ocorrer através de gêneros que se

manifestam por textos.

Isto é o que nos afirmam Dolz, Schneuwly & Haller, quando dizem que: “(...) os

gêneros podem ser considerados instrumentos que fundam a possibilidade de comunicação (e

de aprendizagem). (...) é um instrumento para agir linguisticamente”. E, por serem

considerados instrumentos que “permitem realizar ações em situações particulares” (DOLZ,

S2004, p. 171) é que eles se tornaram objetos análise, de discussão, de reflexão e de ensino.

Quando estamos em uma situação de comunicação, é primordial a escolha ou

adaptação a um determinado gênero textual para que a significação possa ser produzida. As

situações de comunicação são diferentes e os gêneros também o são, é o que nos afirma

Dell’Isola, acrescentando: “Assim, a cada situação, em cada lugar, através de cada meio, para

cada interlocutor, as pessoas se expressam de maneiras diferentes, produzem gêneros

distintos.” (2007, p. 11)

O trabalhado eficaz e reflexivo em sala de aula a partir de gêneros textuais, que projete

os alunos a perceberem a real ligação com a vida em sociedade, é um caminho interessante de

ser trilhado no campo pedagógico do ensino de Língua Portuguesa. É mister que os

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 607

professores, ao trabalharem os gêneros, definam bem as atividades e seus objetivos,

contextualizem com os alunos, mostrem como e quando utilizar este ou aquele gênero,

expliquem aos alunos o porquê daquela atividade e para que o gênero em questão serve.

Para Dolz, Schneuwly & Haller, os gêneros que devem ser estudados em sala de aula

são os de comunicação pública formal.

Já que o papel da escola é sobretudo o de instruir, mais do que o de educar, em vez

de abordarmos os gêneros da vida privada cotidiana, é preciso que nos concentremos

no ensino dos gêneros da comunicação pública formal. (...) cujo grau de formalidade

é fortemente dependente do lugar social de comunicação, isto é, das exigências das

instituições nas quais os gêneros se realizam (rádio, televisão, igreja, administração,

universidade, escola etc.). (2004, p. 147)

Devido ao fato dos alunos geralmente já dominarem os gêneros do cotidiano, é que se

deve trabalhar os gêneros de comunicação pública. Para Dolz, Schneuwly & Haller (2004)

estes últimos apresentam maiores restrições impostas pelo exterior, e por isso, necessitam de

um controle mais consciente para dominá-los.

Os autores também afirmam que para se levar um gênero para sala de aula, é preciso

observar o que este gênero tem de relevante para ser ensinado. Quanto mais realizações

textuais este gênero permitir que sejam feitas, melhor ele será para o ensino. Ao entrar na

escola para ser ensinado, o gênero irá se transformar para atender as necessidades daquele

meio.

É necessário que ao se ensinar um gênero de comunicação pública, o professor

observe o que este gênero irá trazer de contribuição para o estudante, pois, a partir do

momento que um gênero migra de seu contexto tradicional e começa a ser utilizado como

objeto de ensino na escola, este gênero muda, se transforma para poder suprir as necessidades

da sala de aula. Ao migrar para o meio escolar, é preciso que o gênero esteja dentro dos

conformes de ensino que são estabelecidos previamente pela escola, porque só assim ele vai

poder ter relação com o que será trabalhado em aula.

À guisa de exemplificação, alguns dos gêneros que não fazem parte do contexto

escolar, mas que podem ser trabalhados pelos professores em sala de aula, são as notícias de

jornais, os noticiários de televisão, as entrevistas, os testemunhos, dentre outros. Entretanto,

para se trabalhar tais gêneros de maneira eficiente, primeiramente é preciso apresentar a

situação que será trabalhada, comentar com os alunos o que será feito, refletir com eles a

respeito do trabalho que será realizado e, a partir daí, solicitar a atividade – situação

contextual que dificilmente é realizada.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 608

3. Retextualização

Trataremos aqui das transformações de um texto de uma modalidade (escrita

ou falada) para outra, ou seja, a Retextualização. Segundo Rodrigues, este termo

retextualização foi empregado pela primeira vez por Travaglia (1993) para fazer

referência à tradução de uma língua para a outra. Abaurre (1995) acrescenta a ideia

de refacção ou reescrita de um texto, e Marcuschi (2001) trata da transformação de

textos orais em textos escritos, especialmente. (RODRIGUES, 2010, p. 119)

Para Marcuschi (2004) a retextualização não é um processo mecânico, pois envolve

algumas operações complexas que interferem tanto no código como no sentido. As

retextualizações são comuns em nosso dia a dia, nas mais diferentes atividades diárias.

Podemos perceber o uso delas ao repassarmos uma informação a alguém, por exemplo, pois,

ao fazermos tal processo, nós estamos transformando o que nos foi dito anteriormente. A este

respeito, Marcuschi nos traz que “Toda vez que repetimos ou relatamos o que alguém disse,

até mesmo quando produzimos as supostas citações ipsis verbis, estamos transformando,

reformulando, recriando e modificando uma fala em outra.” (2004, p. 48 – grifos do autor).

Essa transformação não significa dizer, porém, que a retextualização é a organização

de um texto mal elaborado ou mal organizado, pois não o é. Retextualizar não é passar um

texto que esteja numa forma de caos para uma forma mais elaborada, pois cada texto possui

sua própria formulação. Retextualizar é um outro movimento, é uma “adaptação”

(MARCUSCHI, 2004) de textos, pois transforma-os de uma modalidade para outra, às vezes

utilizando-se de gêneros textuais muito diferentes, o que faz com que sejam envolvidas

estratégias diversas neste processo de retextualização. Ao considerar fala e escrita, o autor nos

afirma que são possíveis quatro tipos de combinações no processo de retextualização, são

elas: da fala para a escrita; da fala para a fala; da escrita para a fala; e da escrita para a escrita.

As atividades de retextualização podem ocorrer de modos muito variados, pois é

possível adequá-las a qualquer gênero textual. Para se produzir uma retextualização,

necessário se faz que haja uma compreensão do texto-base, observando seus tópicos

principais de ideias. Se não houver essa estratégia compreensiva do que será retextualizado, a

atividade será prejudicada. Marcuschi (2004) afirma que muitos problemas que ocorrem nas

retextualizações são causados exatamente por essa falta de compreensão e o problema

aumenta quando se passa de um gênero para outro. Ele afirma que:

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 609

(...) para transformar é necessário compreender o texto. Contudo, uma não-

compreensão não impede a retextualização, mas pode conduzir a uma transformação

problemática, chegando ao falseamento. (2004, p. 86 – grifos do autor)

A retextualização é também chamada por Marcuschi (2004, p. 52) de “adaptação, que

já é uma transformação na perspectiva de uma das modalidades”. As modalidades de que o

autor está tratando aqui seriam a fala e a escrita ou vice-versa e de uma modalidade a outra.

Desta feita, podemos dizer que retextualizações são as transformações que ocorrem

nos textos, seja na modalidade oral ou na modalidade escrita, são mudanças que ocorrem no

interior dos textos, quando da sua reescritura ou (re)oralização. Tais transformações ocorrem

tanto no plano da expressão como no plano do conteúdo, dependendo da complexidade no

momento de retextualizar e também das intenções daquele que está produzindo o texto.

Retextualizar não é uma atividade simples, pois trata de transformar um texto em outro

tendo que manter a essência do texto-base. Mesmo no dia a dia, nós, usuários da língua

portuguesa, realizarmos constantemente retextualizações e não paramos para refletir o quão

complexa é esta atividade. E quando a questão vai à sala de aula, então fica ainda mais

complexo o trabalho. Caso o professor não conduza bem a atividade e o aluno não possua a

habilidade de entender os textos a partir da leitura, a retextualização vai ficar comprometida

devido à suposta má interpretação do texto-base que possa ocorrer.

Marcuschi ainda frisa que

(...) toda atividade de retextualização implica uma interpretação prévia nada

desprezível em suas consequências. Há nessa atividade uma espécie de tradução

endolíngüe que, como em toda a tradução, tem uma complexidade muito grande.

(2004, p. 70 – grifos do autor)

Ao transformar um texto de uma modalidade para outra e, principalmente de um

gênero para outro, o aluno é levado a pensar e refletir em como o texto-base foi estruturado e

como o texto final será escrito. Neste processo, o aluno exercita a leitura, compreensão e

escrita do texto retextualizado. Se a atividade de retextualização for bem selecionada e

preparada pelo professor, é possível desenvolver no aluno as habilidades de leitura e escrita,

fazendo-o refletir acerca dessas duas competências, além de, ao colocá-las em prática, haver

um exercício constante da interpretação ou compreensão dos textos.

4. Atividade de Retextualização

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 610

4.1. Aspectos envolvidos na Retextualização

Como pontuamos mais acima, a atividade retextualizada para análise é referente a

gêneros escritos, e foi realizada nos Anos Finais do Ensino Fundamental, numa Escola

Municipal de Saloá/PE.

Ao se fazer uma retextualização, vários aspectos estão envolvidos neste processo.

Dentre esses processos, Marcuschi (2004) menciona a eliminação, a completude, a

regularização, o acréscimo, a substituição, a reordenação, o tratamento da sequência dos

turnos, a inferência, a inversão e a generalização. Alguns destes aspectos também são tratados

por Verceze & Nogueira (2005). Os autores mencionam a inferência, a substituição, a

reordenação, a ampliação/redução de estilo, a reformulação, a inversão, o tratamento de

turnos, dentre outros.

No próximo item, ao analisarmos as Retextualizações feitas com os alunos,

destacaremos alguns destes aspectos que podemos encontrar nas atividades, tentando

compreender se o trabalho de refeitura de textos auxilia na apropriação dos gêneros que estão

em questão, tanto como texto-base, como texto-fim.

4.2. Análise da atividade

No momento da retextualização, geralmente ocorrem mudanças no conteúdo do texto-

base, entretanto, tais mudanças não devem nunca modificar a temática e a veracidade que esse

texto primeiro carrega. O texto retextualizado deve sempre manter as informações e tópicos

principais do texto original.

As atividades de retextualização permitem que, ao elaborar um novo texto, os alunos

trabalhem estratégias textuais e discursivas. Para elaborar um novo texto em um outro gênero,

o aluno precisa conhecer o gênero que será escrito para assim escrever dentro do contexto

daquele, e da proposta que foi pedida. As atividades devem criar condições para que os alunos

conheçam diferentes gêneros, seja da esfera oral ou da esfera escrita, e, assim, desenvolvam

suas competências para utilizar eficientemente a Língua Portuguesa. O trabalho ancorado nas

retextualizações permite, também, ao professor, desenvolver um trabalho de grande

relevância, interativo e produtivo. Para tanto, necessário se faz que o docente selecione

atividades com textos reais e de uso no cotidiano, pois são por estes textos que os alunos

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 611

demonstram mais interesse, e são com estes textos que o aluno vai apreender seu uso em

sociedade.

Dell’Isola nos afirma que as atividades de retextualização são um “excelente recurso

para o trabalho com o gênero”. (2007, p. 11). Além de trabalhar a leitura, compreensão e a

escrita, as retextualizações permitem o conhecimento e o trabalho com diversos textos

diferentes e seus funcionamentos nos mais variados lugares sociais.

Através do uso dos gêneros, em consonância com as atividades de retextualização, os

alunos poderão produzir diversas possibilidades de textos a partir de reflexões acerca do uso

destes gêneros e das características que os constituem. Como nos diz Marcuschi, “quando

dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de

realizar linguisticamente objetivos específicos em situações particulares diferentes” (2008, p.

154).

A atividade de Retextualização aqui analisada tinha como objetivo principal fazer com

que os alunos entendessem e apreendessem um determinado poema, transformando-o em

outro gênero escrito, num gênero da esfera do narrar, ficando os alunos à vontade para

escreverem sejam histórias inventadas ou contos ou fábulas ou crônicas ou outro que pudesse

trazer os traços narrativos como característica principal.

Antes de iniciarmos a atividade de retextualização, foi feita uma discussão acerca do

que seria a “retextualização”, como ocorre esse processo, para que serve, quando utilizamos a

retextualização, qual sua finalidade, tudo isto com o intuito de aprofundá-los no conceito do

assunto, mostrando tal prática é muito mais comum em nosso dia a dia do que se imagina.

Ao finalizar a discussão, entregamos aos alunos o poema intitulado “Eu e a árvore”3,

de Martins D’Alvarez, e fizemos juntamente com eles a leitura do texto para poder discutir e

entender. Ao fim da leitura, começamos a fazer perguntas referentes ao texto para que a

compreensão do texto-base fosse desenvolvida. Após este momento, solicitamos que os

alunos produzissem um texto narrativo sem especificar qual o gênero. A grande maioria dos

textos produzidos mostraram-se muito proveitosos e interessantes.

Apresentaremos dois recortes de retextualizações que foram produzidos pelos alunos

referente à primeira estrofe do poema. Segue abaixo a primeira estrofe do poema “Eu e a

árvore” e, logo depois, os recortes:

Quando nasci, papaizinho

Plantou, em nosso quintal,

3 Fonte: http://www.pragentemiuda.org/2008/09/poesia-eu-e-rvore.html (Acesso: 04/11/2013)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 612

Uma arvorezinha esguia,

Para ver qual de nós duas

Cresceria mais depressa

Qual mais alta ficaria.

Primeiro recorte:

4

Analisando sinteticamente esta produção escrita de um aluno, vamos observar o

seguinte:

a) existe a compreensão do texto-base a contento, pois, como se observa, os tópicos ou ideias

centrais estão mantidos (o pai que planta uma árvore no quintal para observar se a filha ou a

árvore ficaria mais alta);

b) há a eliminação do caráter narrativo a partir da menina como está no poema, ocorrendo a

substituição do narrador para a terceira pessoa no texto escrito;

c) a completude textual é alcançada, por haver uma narrativa com início, meio e fim;

d) observam-se diversos acréscimos, como o tempo (4 anos passados, e 8 meses de gestação),

uma gravidez, a compra da árvore, dentre outros; e

e) também vê-se a inferência em alguns instantes, como a possibilidade da gravidez e

nascimento de um bebê, a decisão de se comprar árvore e o trato que o pai fez com a esposa.

O segundo recorte:

4 Transcrição: Bom Essa história aconteceu a 4 anos atraz uma mulher estava gravida de uma menina ela já

estava com 8 messês de gestação um certo dia o marido da mulher decidiu comprar uma árvore é plantou no

quintal da sua casa. Dias se passaram é chegou o dia da mulher ter o bebê então assim que a criança nasceu o

pai plantou a árvore e fez um trato com a esposa “vou plantar uma árvore no quintal, pra ver quem cresce

primeiro a menina ou a árvore

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 613

5

Sobre este segundo trecho de um outro aluno, vemos:

a) assim como o anterior, a compreensão do texto-base também ocorreu dentro do previsto, pois

as marcas tópicas principais foram devidamente mantidas;

b) houve eliminação do caráter narrativo de primeira pessoa conforme traz o poema,

modificando a uma narrativa em terceira pessoa;

c) a completude textual também é alcançava, introdução, meio e final estão bem postos;

d) há vários pontos de acréscimo, como: esposa cuidava da menina, o homem cuidava da árvore,

a menina só engordava, a menina só crescia dos lados, a menina só alcançava a janela, a

menina sobre nos galhos da árvore, entre outros;

e) e sobre a inferência, vemos: o homem que tinha acabado de ser pai, a árvore que só crescia,

etc.

É interessante notarmos em ambos os trechos dos textos dos alunos também ocorre

aquilo que Marcuschi (2004) chama de “falseamento”, pois há certas “invenções” que não

constam no texto-base. Os alunos, na verdade, realizam a retextualização, fazendo acréscimos

que estão fora do que foi dito no texto primeiro. Mas é interessante ressaltarmos que as

retextualizações foram devidamente realizadas, e o “falseamento” não desmerece nem

invalida a produção textual, trata-se apenas de mais uma características que pode ocorrer

5 Transcrição: No poema deu para entender que tinha um homem que tinha acabado de ser pai então ele teve a

ideia de plantar uma árvore no quintal para ver qual das duas cresciam mais rápido e qual ficaria maior. A

esposa desse homem cuidava da menina o homem cuidava da árvore, eles cuidava delas a toda hora, mais

enquanto a árvore crescia a menina só engordava, a àrvore crescia cada vez mais para o alto e a menina só

crescia dos lados. A árvore bate no telhado e a menina só alcança a janela, a menina por vingança por não ter

ficado da altura da àrvore a menina sobe em seus galhos até ficar mais alta do que ela.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 614

durante o momento que se faz essa troca de um gênero ao outro, para que a adaptação seja

menos complexa de realizar por aquele que retextualiza.

5. Algumas considerações finais

Quando analisamos atentamente os trechos em tela, vamos observar como é relevante

para o ensino de leitura-escrita em sala de aula esse processo de retextualização. Os alunos

compreenderam dentro do esperado o que o texto-base traz em seu bojo principal e

produziram outros dois textos retextualizados com caráter narrativo, através de histórias

inventadas, a partir do poema apresentado em aula.

É interessante ressaltar que, além desse entendimento do que o texto primeiro traz, os

alunos utilizam inúmeras outras estratégias em suas produções escritas. Construir eliminação,

acréscimos, substituições, ordenações e referências numa produção escrita, a partir de outro

texto, é algo que carrega uma larga complexidade reflexiva textual-discursiva, pois o trabalho

não se restringe a entender o texto-base, mas refazê-lo, mantendo as ideias, em outra

modalidade de gênero.

Isso significa que essas tarefas escolares de retextualizar precisam mais e mais constar

como obrigação por parte dos docentes dentro da sala de aula, em especial em Língua

Portuguesa; pois, infelizmente, esse recurso é um instrumento ainda pouco utilizado, não

sabemos se por desconhecimento dos professores ou por conta dos famosos “conteúdos” que

enchem a pauta das aulas, não sobrando espaço para o que realmente é importante.

Está claro, apenas a partir desses dois trechos (agora imaginemos em textos maiores e

bem mais elaborados!), que a desenvoltura textual e escritural dos alunos são afloradas e

instigadas, o que permite falar que retextualizar é um relevante caminho de entrada e

apropriação das características textuais tanto do texto-base quanto no texto-fim. Atividades

semelhantes carecem de mais lugares e olhares, precisam entrar nas salas de aula porque

nossos alunos ainda sofrem muito quando se trata de compreensão de texto e de escrita de

gêneros textuais. O que esperamos é que estas rápidas análises possam fazer com que nós

docentes reflitamos atentamente e pensemos com mais objetividade nossas ações

pedagógicas, e que o retextualizar seja mais um importante instrumento para tentar modificar

esse quadro tão triste que circula nossos alunos, especialmente no que pertine à leitura,

escritura e reescritura de textos em ambiente escolar.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 615

Referências

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 616

ANÁLISE DE GÊNEROS DA ESFERA JORNALÍSTICA NO

CURRÍCULO DE PORTUGUÊS PARA O ENSINO

FUNDAMENTAL DO ESTADO DE PERNAMBUCO [Voltar para Sumário]

Diana Pereira Costa Alves1 (UPE)

Ecia Mônica Leite de Lima Freitas2 (UPE)

Introdução

São inúmeras as inquietações trazidas pelos educadores quanto ao ensino de gênero na

escola. Este artigo busca principalmente examinar como se dá a proposta de trabalho com os

gêneros da esfera jornalística e qual a concepção de gêneros adotada no Currículo de

Português para o Ensino Fundamental no Estado de Pernambuco.

Quando se trata do trabalho com gêneros na escola é muito comum surgirem

inquietações sobre o que ensinar, como e que práticas educativas são mais eficazes para que o

trabalho obtenha êxito. Tais afirmações se baseiam em diversas pesquisas realizadas no Brasil

como, por exemplo, os estudos de Bonini (2011), Rojo e Barbosa (2013), Assis (2010) e Melo

e Assis (2013). Por outro lado, indagações sobre a eficiência do currículo para atender as

necessidades dos estudantes na apropriação dos gêneros, aparecem constantemente nos

estudos de Rojo (2000), Moreira (2007), e Jesus (2008) através dos quais embasamos esse

trabalho.

O corpus da pesquisa foi construído a partir da elaboração dos seguintes critérios: a)

identificar a concepção de gênero adotada no Currículo de Português de Pernambuco para o

Ensino Fundamental (anos finais); b) investigar se há um equilíbrio entre as expectativas de

aprendizagem com a compreensão e produção do gênero da esfera jornalística; c) verificar se

os eixos oralidade, leitura e escrita encontram-se interligados no ensino dos gêneros textuais

da esfera jornalística em cada ano escolar.

1 Mestranda do PROFLETRAS da Universidade de Pernambuco - Campus Garanhuns e professora da rede

municipal de Garanhuns-PE. 2 Mestranda do PROFLETRAS da Universidade de Pernambuco - Campus Garanhuns. Professora da rede

municipal de Garanhuns e da rede estadual de Pernambuco.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 617

A partir desses critérios analisamos criticamente a presença dos gêneros da esfera

jornalística no Currículo de Português para o Ensino Fundamental do Estado de Pernambuco e

como se articulou com a concepção de gênero subjacente ao documento. Assim sendo, a

discussão foi organizada a partir dos seguintes tópicos: ‘O Currículo na escola e sua

influência no ensino’, ‘A esfera jornalística: aspectos teóricos’ e, por fim, apresentamos a

análise propriamente dita, intitulada ‘Os gêneros da esfera jornalística no Currículo de

Português de Pernambuco: analisando o documento’.

O currículo na escola e sua influência no ensino

O Currículo é uma proposta, cuja função é orientar a prática pedagógica do professor.

De acordo com Jesus (2008), entre as décadas de 1960 a 1970, ocorreram alguns estudos

sobre currículo, caracterizando-o em três níveis: o currículo real, o currículo oculto e o

currículo formal. O currículo real é aquele que acontece no dia a dia de sala de aula como

resultado de um plano de ensino; o currículo oculto trata de todo aprendizado que permeia a

vida do estudante, decorrente das práticas sociais a que esteja submetido; e o currículo formal

é aquele institucional, construído pelos sistemas educacionais para ser vivenciado em sala de

aula.

O currículo formal deve considerar a complexidade do processo de ensino-

aprendizagem e não pode estar desvinculado das interações sociais, necessitando assim, de

um contínuo processo de reflexão que envolva os principais autores do processo educativo e

assegure os direitos culturais, políticos e sociais dos indivíduos (MOREIRA, 2007). Tal

reflexão deve preceder a própria elaboração do documento, pois é em sua construção que os

meios devem ser viabilizados para assegurar os principais direitos dos indivíduos. Vale

ressaltar que o currículo também deve estar atrelado aos contextos e práticas dos estudantes

possibilitando o processo de ensino-aprendizagem. Comungando com esse pensamento

Sacristán afirma que

O currículo é a ligação entre a cultura e a sociedade exterior à escola e à educação;

entre o conhecimento e cultura herdados e a aprendizagem dos alunos; entre a teoria

(ideias, suposições e aspirações) e a prática possível, dadas determinadas condições (SACRISTÁN, 1999 apud JESUS, 2008, p.2640).

Conforme Moreira (2007), o currículo deve atender os seguintes pontos: Os conteúdos

para aprendizagem, a vivência dos conhecimentos adquiridos, os planos didáticos, as

expectativas de aprendizagem e os processos de avaliação. Em relação a isso e baseado nos

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 618

estudos de Rojo (2000), é possível prever algumas tensões que podem ocorrer entre uma

determinada proposta curricular e a sua execução em sala de aula, dentre elas podemos citar:

a) desconhecimento ou não aceitação, por parte dos docentes, dos discursos teóricos

atualizados; b) propostas desvinculadas das necessidades sociais, culturais e políticas do

público a que se destinam; c) objetivos de aprendizagem acima ou abaixo dos níveis de

escolarização previstos.

Dessa maneira, interessa-nos ainda acrescentar qual a influência do currículo de

Língua Portuguesa no que se refere ao trabalho com os gêneros textuais na escola. Importa-

nos inicialmente lembrar que o conhecimento da língua materna é essencial para a construção

e o desenvolvimento humano, tão necessário para as práticas sociais, históricas e culturais em

que estejam inseridos. Ademais, sendo a língua o principal meio de acesso aos diversos

conhecimentos essenciais aos indivíduos, evidencia-se a importância do Currículo de Língua

Portuguesa.

O Currículo de Português deve, pois, sempre se adequar às diversas abordagens que

estão em constante atualização, procurando atender as diversas transformações culturais e

sociais, dentre elas, o trabalho com os gêneros textuais que permeia as diversas esferas

sociais, como é o caso das esferas de circulação científica, esfera literária, esfera jornalística,

entre outras. É possível citar, por exemplo, que a partir da inserção tecnológica no mundo

atual, houve uma necessidade de se incluir nos currículos de Português o ensino dos gêneros

digitais, com o objetivo de desenvolver nos estudantes métodos eficazes para a escrita e a

leitura de textos eletrônicos, assim como a necessidade de inclusão dos textos literários com

função estética e não meramente pedagógica.

A esfera jornalística: aspectos teóricos

As pesquisas atuais na área do ensino de língua materna têm sugerido que um ensino

efetivo de leitura e produção de textos deve ser direcionado por meio de uma diversidade de

gêneros textuais (BARBOSA, 2000). Dessa forma, várias esferas das práticas sociais são

contempladas no currículo de Português, dentre elas, a esfera jornalística.

Um dos estudiosos dos gêneros do jornal, Adair Bonini (2011), ressalta a grande

relevância social dos estudos dos gêneros jornalísticos como subsídio não só para a formação

do profissional (jornalista ou professor de língua), mas também como importante para a

educação e a formação do cidadão crítico que saiba lidar com as manifestações difundidas

pelo meio jornalístico, uma vez que toda sociedade é afetada por elas.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 619

Ao tratar da esfera jornalística, Rojo e Barbosa (2013) apontam que os propósitos

dessa esfera são em geral informar e formar opinião, classificados como jornalismo

informativo e jornalismo opinativo. De acordo com Assis (2010), essa divisão também foi

conceituada por Melo em 1985, no entanto, referida como gênero informativo e gênero

opinativo, e considerada hegemônica no jornalismo.

Assis (2010) destaca que no âmbito do jornalismo brasileiro os autores

representativos, José Marques de Melo e Manuel Carlos Chaparro, apresentam teorias

díspares desse assunto. Enquanto Melo expõe um estudo voltado para a intencionalidade do

material jornalístico, Chaparro tem o foco na estrutura linguística do discurso. Nesse sentido,

é perceptível também uma diferenciação de conceitos e nomenclaturas entre as áreas de

comunicação e linguística no que tange a esfera jornalística. Melo e Assis (2013) associam

“gênero” a agrupamento, que por sua vez está coligado a outros elementos refletidos e

traduzidos em nossa vida social por meio de textos, programas e materiais com diferentes

características, denominados de “formato”.

Por conseguinte, os formatos são distribuídos nos gêneros, de acordo com Melo (2009

apud MELO e ASSIS, 2013) da seguinte forma: gênero informativo (nota, notícia,

reportagem, entrevista); gênero opinativo (editorial, comentário, artigo, resenha, coluna,

caricatura, carta, crônica). O primeiro, tem por objetivo revelar “a sucessão exata dos fatos

que estão inter-relacionados e suas causas, limitando-se a uma simples exposição” (PEURCE

2002, p.202 apud ASSIS, 2010, p.18); já no segundo, a opinião “é uma função psicológica

pela qual o ser humano, informado de ideias, fatos ou situações conflitantes, exprime a

respeito seu juízo” (BELTRÃO 1980, p.14 apud ASSIS 2010, p.20).

Essas duas dimensões da esfera jornalística são bem presentes nos currículos escolares

de Língua Portuguesa com o intuito de colaborar na formação crítica do estudante, seja a

partir da leitura, compreensão e produção de gêneros do jornalismo informativo ou do

jornalismo opinativo. Mesmo existindo uma preocupação quanto à leitura, compreensão e

produção de textos, conforme Rojo e Barbosa (2013), os indicadores nacionais vêm

mostrando resultados negativos quanto à formação de leitores e produtores de texto; e no que

se refere à formação de leitores de periódicos o resultado é o mesmo. Segundo as autoras, isso

acontece porque a escola trabalha com os gêneros de forma desvinculada das práticas e da

esfera em que o gênero se insere.

A inclusão dos gêneros da esfera jornalística no currículo escolar é importante, mas é

preciso como em qualquer outra esfera que seu ensino seja o mais contextualizado possível,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 620

mesmo que seja uma situação simulativa, permitindo assim uma compreensão e produção

eficiente dos mesmos.

Os gêneros da esfera jornalística no currículo de português de Pernambuco: analisando

o documento

O Currículo de Português para o Ensino Fundamental é um documento baseado nos

Parâmetros Curriculares de Pernambuco (PCPE) e tem por objetivo auxiliar o professor no

que concerne à divisão de conteúdos por anos e bimestres. O documento evidencia o ensino a

partir da natureza social e interacional da linguagem e apresenta o texto como objeto central

de ensino destacando as práticas de uso da linguagem na escola. Dessa forma, o Currículo de

Português segue a estrutura dos PCPE quanto aos eixos de ensino: análise linguística,

oralidade, leitura, letramento literário e escrita. Atrelado aos eixos de ensino estão as

expectativas de aprendizagem que indicam os objetivos para cada conteúdo.

Atendendo ao primeiro objetivo desse artigo que é identificar a concepção de gênero

adotada no Currículo de Português de Pernambuco para o Ensino Fundamental, constatamos

que a concepção de gênero textual apresentada explicitamente nos PCPE e consequentemente

no Currículo de Português, é de base Bakhtiniana, uma vez que compreende a atividade

comunicativa a partir de enunciados padronizados de estrutura relativamente estável e

socialmente determinados (BAKHTIN, 1997), mas também o documento alinha a essa teoria

a concepção de gêneros textuais de outros autores (MARCUSCHI, 2003; SCHNEUWLY,

2004; SCHNEUWLY e DOLZ, 2004).

Em se tratando da presença de gêneros da esfera jornalística no Currículo de Português

de Pernambuco, podemos encontrar a seguinte distribuição:

Gênero 6º ano 7º ano 8º ano 9º ano

Notícia X X X X

Reportagem X - X X

Entrevista X X X X

Defesa de ponto de vista3 X - X -

Texto de opinião3 - X - -

Artigo de opinião - - X X

Editorial - - X X

3 Nomenclatura utilizada como gênero por Dolz e Schneuwly (2004).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 621

Carta do leitor - X X X

Fonte: elaborada pelas autoras baseada no Currículo de Português para o Ensino Fundamental do Estado de Pernambuco

Identificados os gêneros da esfera jornalística no documento, analisaremos desse

ponto em diante simultaneamente o segundo e terceiro itens de análise que são: investigar se

há um equilíbrio entre as expectativas de aprendizagem e a compreensão e produção do

gênero da esfera jornalística, especificamente do jornalismo informativo e do jornalismo

opinativo4; verificar se os eixos oralidade, leitura e escrita encontram-se interligados no

ensino dos gêneros textuais da mesma esfera em cada ano escolar.

No 6º ano os gêneros encontrados são predominantemente os do jornalismo

informativo: notícia, reportagem e entrevista. Apenas a defesa de ponto de vista é

representativa do jornalismo opinativo, considerando-o como gênero conforme Scheneuwly e

Dolz (2004).

Observa-se no documento que as expectativas de aprendizagem para esses gêneros se

concentram apenas no eixo da oralidade. Assim sendo, as expectativas de aprendizagem para

a notícia, a reportagem e a defesa de opinião se direcionam para produzir relatos e textos

expositivos orais e produzir textos argumentativos orais. Já para a entrevista, as expectativas

de aprendizagem, mesmo sendo apenas no eixo da oralidade, expandem um pouco a

possibilidade de trabalho com o gênero em questão, ainda que não indique sua produção oral:

reconhecer os efeitos de sentido em decorrência do uso de diferentes recursos coesivos na

produção de textos orais e oralizar textos escritos utilizando ritmo e entonação adequados às

situações discursivas.

Diante disso, é possível tratar da seguinte inquietação: tendo como base o PCPE que

apresenta uma proposta interacionista, verificamos que ao pensar a língua como recurso para

realizar ações, nesta série, o documento não preocupou-se em ampliar as expectativas de

aprendizagens, no intuito de levar o estudante a refletir sobre os usos sociais do gênero. Dessa

forma, embora o documento base PCPE proponha um modelo de ensino que desenvolva

capacidades nos eixos leitura, oralidade e escrita, isso não ocorre nesse ano escolar. Ao

mesmo tempo que o PCPE sugere um ensino através da interligação entre os eixos, ele expõe

o procedimento “sequência didática” postulado por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) em

que no seu último critério de organização dessa sequência, destaca que ao se trabalhar um

4 Optamos por utilizar as expressões em destaque de Rojo e Barbosa (2013), ao invés de gênero informativo e

opinativo proposto por Melo (2006) por considerarmos mais adequadas aos estudos teóricos atuais sobre

gêneros.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 622

mesmo gênero em mais de um ano escolar, deve-se propor objetivos diferentes conforme as

etapas de escolarização.

Em relação ao 7º ano escolar, os gêneros da esfera jornalística são assim apresentados:

notícia, entrevista, texto de opinião e carta do leitor. A notícia agora é elencada apenas no

eixo da escrita com a seguinte expectativa de aprendizagem: produzir textos que circulam nas

diferentes esferas da vida social considerando os interlocutores, o gênero textual, o suporte e

os objetivos comunicativos. Nessa expectativa de aprendizagem é possível perceber traços da

teoria de Bakhtin (1997) que trata das condições específicas e as finalidades de produção dos

gêneros de cada esfera de comunicação. Por se tratar da escrita de um gênero, consideramos

importante que o documento trouxesse também expectativas de aprendizagem no eixo da

leitura, uma vez que é imprescindível a leitura para a identificação das características

inerentes ao gênero em estudo, subsidiando assim o momento da escrita. Essa indicação da

leitura do gênero antes da escrita pode ser comprovada nos estudos de Dolz, Noverraz e

Schneuwly (2004).

A carta do leitor, da mesma forma como no gênero textual notícia, se apresenta apenas

no eixo da escrita, mostrando-se discrepante com a perspectiva teórica, exposta anteriormente.

Para esse gênero em questão, as expectativas de aprendizagem se mostram um pouco

confusas, pois propõem que o estudante expresse opinião na produção de gêneros textuais que

requeiram o uso de estratégias de convencimento do leitor (propagandas, resenhas, cartas de

leitor, editorial, artigo de opinião, debate), ou seja, embora o conteúdo seja “carta de leitor”, a

expectativa de aprendizagem abrange outros gêneros que não foram citados no conteúdo. Isso

mostra uma quebra de expectativa, uma vez que esperava-se uma aprendizagem relativa ao

gênero carta de leitor.

Assim como a notícia e a carta de leitor que aparecem em um eixo apenas, ainda no 7º

ano, observa-se a indicação de trabalho com o texto de opinião no eixo da leitura, objetivando

identificar as especificidades do gênero de um texto, seu objetivo comunicativo (propósito),

seus interlocutores previstos e suas condições de produção; identificar o gênero de um texto,

considerando a situação discursiva; reconhecer efeitos de sentido decorrente de escolha do

vocabulário; identificar o tema de um texto; inferir o sentido global ou ideia central em

determinados gêneros. Apesar de constar em apenas um eixo, várias expectativas de

aprendizagem foram enumeradas de forma pertinente considerando os diversos aspectos de

um gênero que podem ser abordados na leitura.

O gênero textual mais completo do 7º ano no que se refere à distribuição nos eixos de

ensino é a entrevista, pois é especificada nos eixos da oralidade, leitura e escrita. Em nossa

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 623

avaliação, essa conexão em mais de um eixo no mesmo ano escolar possibilita um trabalho

mais significativo de compreensão e produção de um gênero.

No 8º ano do Ensino Fundamental os gêneros do jornalismo opinativo são assim

distribuídos: no segundo bimestre, a carta de leitor nos eixos leitura e escrita; no terceiro

bimestre, além da carta de leitor, o artigo de opinião e o editorial estão presentes também nos

eixos leitura e escrita; no quarto bimestre eles não aparecem em nenhum dos eixos. Já os

gêneros do jornalismo informativo, a entrevista é apresentada no 1º, 2º e 3º bimestres nos

eixos da oralidade, leitura e escrita; a notícia e a reportagem, somente são propostas no final

do quarto bimestre no eixo da escrita.

O PCPE, base do Currículo de Português, adota uma concepção de língua enquanto

ação e interação social. Dessa forma, no trabalho com os gêneros textuais espera-se que as

expectativas de aprendizagem para cada eixo de ensino, tendo como foco a interação,

apresentem como prioridade os seguintes pontos: os propósitos comunicativos, os

interlocutores pretendidos e os contextos sociocomunicativos do texto ou para o texto. Ao

analisar o documento, especificamente o eixo leitura e escrita, onde aparecem os gêneros da

esfera jornalística, é possível verificar que as expectativas concentram-se em grande parte na

observação dos referidos aspectos discursivos. No eixo da leitura, dentre as expectativas

podemos citar as seguintes: identificar o gênero de um texto, considerando a situação

discursiva; e identificar as especificidades do gênero de um texto: seu objetivo comunicativo

(propósito), seus interlocutores previstos e suas condições de produção. No eixo da escrita,

encontramos, por exemplo: produzir textos que circulam nas diferentes esferas da vida social,

considerando os interlocutores, o gênero textual, o suporte e os objetivos comunicativos.

Por fim, no 9º ano, seis gêneros da esfera jornalística são contemplados. No jornalismo

informativo: a notícia, a reportagem e a entrevista e no jornalismo opinativo: o artigo de

opinião, o editorial e a carta do leitor. Ao contrário do que ocorre no 7º e 8º ano, de um

gênero se apresentar em mais de um eixo, agora eles voltam a aparecer em apenas um. A

notícia, a reportagem e a entrevista são elencadas apenas no eixo da oralidade; já a carta do

leitor, o artigo de opinião e o editorial constam no eixo da escrita.

Reafirmando o que dissemos anteriormente, consideramos mais efetivo um ensino de

gênero textual em que se articule mais de um eixo de ensino por série, porém, o gênero

notícia, por exemplo, que se apresenta em todos os anos escolares tem como foco apenas um

eixo de ensino. No 6º ano oralidade, no 7º ano escrita, no 8º ano escrita e no 9º ano oralidade,

enquanto que a leitura não aparece em nenhum momento.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 624

Percebemos ainda que mesmo sendo este um ponto negativo no documento, as

expectativas de aprendizagem poderiam ir se modificando ano após ano passando de uma

forma mais simples até uma mais complexa, refletindo-se assim em níveis de atividades

diferenciados conforme o público escolar. No entanto, observando a repetição dos gêneros por

ano no Currículo de Português, constatamos que as expectativas de aprendizagem nem sempre

vão progredindo quanto à passagem de uma simples a uma mais complexa, garantindo uma

continuidade coerente do ensino. Exemplo disso, o mesmo gênero notícia no eixo da oralidade

parte de uma expectativa de produzir textos orais no 6º ano para a expectativa de

reconhecer no 9º ano os gêneros específicos da fala. Não achamos, pois, que haja uma

progressão significativa nas expectativas de aprendizagem; ao contrário, nesse exemplo

especificamente, parece-nos que parte-se de uma expectativa mais complexa para uma mais

simples. Passagens como essas são comuns nos demais anos escolares.

Diante das orientações curriculares expostas e analisadas até aqui, é possível

identificar aspectos positivos, como a própria disposição dos gêneros da esfera jornalística ao

longo do documento, uma vez que esses devem proporcionar ao estudante uma maior

reflexão dos assuntos que permeiam o meio social; como também aspectos negativos no que

concerne à distribuição dos eixos de ensino por série e consequentemente a escassez de

expectativas de aprendizagem que em nosso entendimento atrapalha a apropriação efetiva do

gênero.

Considerações finais

Ao analisar o Currículo de Português para o Ensino Fundamental do Estado de

Pernambuco, verificamos que a teoria presente de gêneros textuais tem como principal

representante Bakhtin e o grupo de autores de Genebra, Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004).

Diante dos resultados analisados, verificamos que os gêneros do jornalismo

informativo são mais presentes do 6º ao 9º ano do que os do jornalismo opinativo, exemplo

disso é a notícia e a entrevista. O fato de haver repetição de gêneros ao longo dos anos, não é

um ponto negativo, no entanto, a falta de progressão das expectativas de aprendizagem de um

ano para o outro pode gerar um fracasso na apreensão de um gênero textual. Além disso, a

falta de alinhamento entre os eixos da oralidade, leitura e escrita ou em pelo menos em dois

desses eixos para o ensino, também desfavorece uma compreensão mais consistente do gênero

em estudo.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 625

Foi possível perceber ainda a ausência do gênero textual ‘resenha’ que deveria estar

presente por ser um dos gêneros da esfera jornalística capaz de desenvolver a criticidade dos

estudantes. Tais constatações nessa pesquisa apontam para a necessidade de repensar a

proposta do Currículo de Português de Pernambuco, com vista ao desenvolvimento dos

estudantes nos eixos leitura, escrita e oralidade, pois, para uma efetiva participação social é

essencial a apropriação da linguagem em seus diversos usos.

Embora reconheçamos haver pontos conflituosos no documento, não podemos negar a

importância dele para a educação do estado de Pernambuco, que nos últimos anos vem

tentando melhorar seus índices educacionais, principalmente no quesito leitura, compreensão

e produção de texto.

A presente análise permite-nos também afirmar que só a construção desses

documentos não garantirá o avanço significativo nos índices educacionais, mas pode ser um

bom começo se for acompanhado por capacitações mais pontuais para os professores por área

específica de ensino. De forma que todos possam falar a mesma linguagem e compreender as

teorias que são discutidas nos documentos oficiais, não ficando esse entendimento apenas

para os elaboradores dos mesmos. Além disso, a participação mais efetiva dos professores na

construção do currículo viabilizaria uma melhor adequação deste com a sua prática de ensino.

Importa-nos informar ainda que o currículo em análise organiza-se apenas em torno

dos conteúdos e expectativas de aprendizagem, porém conforme afirma Moreira (2007), além

dos conteúdos e objetivos, no currículo devem constar os modos de aprendizagem, planos de

ensino e as formas de avaliação, sempre com o intuito de desenvolvimento de capacidades

que permitam uma apropriação efetiva dos conhecimentos necessários para a atuação do

indivíduo em sociedade. Ademais, desejamos que ao compartilhar esse estudo, bem como

algumas inquietações trazidas, não tenhamos esgotado as possibilidades de análise, mas,

sobretudo tenhamos motivado outros profissionais da área de educação a entender o currículo

como um documento que deve ser objeto de reflexão contínua, uma vez que é através dele que

podemos legitimar o conhecimento e validar o processo de ensino aprendizagem.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 628

ENSINO DE LITERATURA EM WEBQUEST: O

IMAGINÁRIO E O CRIATIVO EM ALICE NO PAÍS DAS

MARAVILHAS

[Voltar para Sumário]

Diego Paulo da Silva (IFAL)

Nádia Mara da Silveira (IFAL)

I. Introdução

"I hear and I forget. I see and I remember.

I do and I understand."

(Confucius)

Ensinar literatura na escola em meio ao avanço da tecnologia tem se tornado um

grande desafio tanto para professores de língua materna quanto de língua estrangeira, em

virtude dos impasses com as quais se deparam ao abordar conteúdos de literatura em sala de

aula. Entendemos que é realmente desafiador atrair a atenção dos alunos para a leitura de

livros literários quando estes apresentam mais entusiasmo em desenvolver atividades estando

conectados à internet.

Por conta disso, não é raro ouvir os estudantes se queixarem que a linguagem do texto

literário é complicada, enfadonha e que estudar literatura é chato porque não se discute

assuntos “legais”, que atraem os jovens ou, ainda, porque consideram não ter relevância

alguma, pois supõem que os textos literários não dão espaço para discutir temas atuais que

dialoguem com a realidade deles.

Desse modo, acabam demonstrando menos interesse em realizar atividades de leitura e

discussão de textos literários por se valer da ideia de que a literatura só trata ou discute

“coisas antigas” e/ou desinteressantes. Por outro lado, há alunos que compartilham

experiências interessantes adquiridas ao ler literatura, algumas na escola outras fora dela,

entretanto, esses alunos estão, na maior parte das vezes, em menor número.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 629

Mesmo com a visão construída em seu imaginário, os alunos pensam em formas de

tornar o estudo de literatura escolarizada mais interessante, recorrendo à internet e aos

recursos tecnológicos como instrumentos para a aprendizagem de literatura, integrando-a nas

diversas tecnologias disponíveis. Sendo assim, recorrem a dispositivos tecnológicos que

entrecruzam várias formas de expressão, dentre elas o som, a imagem e o movimento e

facilitam a aprendizagem por estabelecer diálogos com outras formas de linguagem.

Pensando nisso, propomos a inserção da metodologia webquest como forma de

articular os elementos da informática ao ensino, no intuito de fornecer outros conhecimentos e

proporcionando “novos” caminhos para a aprendizagem. Com isso, pretendemos inserir a

tecnologia no ensino de literatura, na pespectiva de contribuir para as reflexões feitas acerca

dos textos literários e estimular a imaginação e a criatividade dos alunos, incentivando-os a

desenvolver as múltiplas inteligências (cf. GARDNER, 1994) em sala de aula.

Como proposta, utilizaremos a obra Alice’s Adventures in Wonderland (2005/1865),

traduzido como “Alice no País das Maravilhas”, que estabelece uma abordagem intertextual1

com a narrativa fílmica “Alice in Wonderland” (2010), desenvolvido por Tim Burton, numa

leitura cinematográfica da obra de Lewis Carroll, na perspectiva de traçar diálogos entre a

língua materna (português) e a estrangeira (inglês).

II. Web o quê? A metodologia Webquest como instrumento de aprendizagem

As formas de aprender têm sofrido muitas mudanças em virtude da revolução

tecnológica com a qual nos deparamos nas últimas décadas e não se pode negar os efeitos de

seu surgimento no âmbito da educação, sobretudo, no que se refere à aprendizagem e ao

ensino. Isso nos faz notar que as formas de aprender têm mudado com o surgimento/advento

das tecnologias, portanto, é preciso que as formas de ensinar também mudem. (MORAN,

[2000] 2010).

Com isso não queremos dizer que fazer essa mudança seja algo simples, pelo

contrário, temos total consciência das dificuldades com as quais os professores se deparam na

tentativa de integrar recursos tecnológicos nas atividades pedagógicas, principalmente, no

desafio de desenvolver práticas baseadas na aprendizagem cooperativa (Mercado, 1999), quer por

1 Nesta pesquisa consideramos o termo intertextualidade com base nos estudos propostos por Julia Kristeva

(1969), a partir de discussões feitas por Mikhail Bakhtin. Valendo-se dos estudos bakhtinianos, a autora define

intertextualidade com a seguinte citação: “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção

e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade instala-se a de intertextualidade, e a

linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (KRISTEVA, [1969] 2005, p. 68).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 630

falta de intimidade com eles quer por não saber como utilizá-los de maneira eficaz em sala de

aula. No entanto, também é importante entender que “muitas formas de ensinar hoje não se

justificam mais”. (MORAN, [2000] 2010, p. 11)

Para responder as indagações e os questionamentos dessa natureza o professor e

pesquisador Bernie Dodger, da Universidade de San Diego, na Califórnia, em parceria com

Tom March, ainda na década de 90, desenvolveram um estudo metodológico que visava

capacitar professores para aplicar recursos do âmbito da informática na sala de aula como

suporte, no intuito de promover uma aprendizagem significativa e inteligente utilizando a

internet.

Tratava-se, pois, da metodologia Webquest, que Dodge ([1995] 2001, p. 1) definiu

como sendo “uma atividade investigativa, em que alguma ou mesmo toda a informação com

que os alunos interagem provém da Internet2”. A Webquest, enquanto metodologia de ensino,

começaria a romper alguns paradigmas, sobretudo os que supunham que o professor seria o

detentor do saber e os alunos apenas receptáculos. (MERCADO, 1999).

A metodologia Webquest dialoga com a teoria sociointeracionista de Vygotsky

([1989] 1998) porque propõe uma aprendizagem colaborativa, entendendo que o

desenvolvimento se dá numa relação de trocas de experiências por meio da interação e

mediação, isto é, evidencia a aquisição de conhecimentos pautada em processos de interação

entre o sujeito e o meio.

Desse modo, as Webquests permitem “a interatividade e a aprendizagem colaborativa”

(SANTOS, 2005, p. 114), uma vez que proporciona aos estudantes a possibilidade de

desenvolver pesquisas e atividades em grupo, em pares e/ou individuais se valendo dos

conhecimentos partilhandos nas experiências de sala de aula. A Webquest, para Santos (2008,

p. 6), “precisa agregar elementos que incentivem: a pesquisa como princípio educativo; a

interdisciplinaridade e a contextualização entre conhecimento científico e a realidade do

aprendente”.

Nesse sentido, a presença do professor é essencial porque medeia a situação de

aprendizagem de forma dialógica na articulação desses elementos para que os alunos

transformem as informações contidas na internet em conhecimento, atuando como “facilitador

e organizador da aprendizagem de forma a colaborar com o desenvolvimento da autonomia do

aluno” (LEFFA, 1988, p. 233), o que para Behrens ([2000] 2010) se configura como o mais

novo desafio no âmbito educacional.

2 “Is an inquiry-oriented activity in which most or all of the information used by learners is drawn from the Web”

Esta e todas as outras traduções para o português apresentadas neste trabalho são de autoria deste pesquisador.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 631

Essa possibilidade de trazer contribuições significativas para o ensino faz da webquest

uma metodologia que se apropria das tecnologias da informática potencializando “os espaços

de convivência e aprendizagem, principalmente, quando levamos em consideração o uso de

interfaces interativas, mídias digitais”. (SANTOS; SANTOS, 2014, p. 41), em que são

atravessadas diversas linguagens.

Os benefícios do trabalho com a webquest são amplos, pois acionam vários

mecanismos da aprendizagem que, estando intimamente relacionados, se entrecruzam gerando

a aprendizagem colaborativa por envolver

a interação de cinco tipos, ou dimensões, de pensar: (1) atitudes positivas e

percepções sobre aprendizagem, (2) pensamento envolvido na aquisição e integração

do conhecimento, (3) pensamento envolvido em extensão e refinamento do

conhecimento, (4) pensamento envolvido na utilização de conhecimentos de forma

significativa, e (5) os hábitos produtivos da mente3. (MARZANO, 1992, p. 7)

Para esse autor, os pensamentos são formas de estabelecer sentido e contribuem para

que os alunos experienciem uma aprendizagem construtiva por meio de investigação,

executando, encorajando e estimulando uma experiência de aprendizagem mais eficaz, na

qual todos possam intervir para a construção coletiva de sentidos.

Corroborando com essa perspectiva de aprendizagem estruturada em processos

interativo-cooperativos, Moran assegura que é necessário estimular os estudantes a buscar

maneiras de realizar as atividades de forma interativa, considerando e respeitando os saberes

de cada um para integrá-los de forma a atingir um só objetivo comum a todos os aprendentes,

visto que

é importante educar para a autonomia, para que cada um encontre o seu próprio

ritmo de aprendizagem e, ao mesmo tempo, é importante educar para a cooperação,

para aprender em grupo, para intercambiar ideias, participar de projetos, realizar

pesquisas em conjunto. (1995, p.13).

Estimular o trabalho colaborativo é um dos principais objetivos da Webquest

interativa, uma vez que por meio dela pretendemos contribuir para que os alunos aprimorem

e/ou despertem habidades através de atividades interativas nas quais todos colaborem entre si

para resolver um determinado problema.

3 “The interaction of five types, or dimensions, of thinking: (1) positive attitudes and perceptions about learning,

(2) thinking involved in acquiring and integrating knowledge, (3) thinking involved in extending and refining

knowledge, (4) thinking involved in using knowledge meaningfully, and (5) productive habits of mind.”

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 632

Enfatizamos que as WebQuests devem ser utilizadas em sala de aula para trabalhar

conteúdos envolvendo atividades interdisciplinares que provoquem discussões incentivadoras

de aprendizagem. Desafiar os alunos a criar histórias, enredos, montar um cenário são formas

de estimular a capacidade criativa, pois é a partir do incentivo que os alunos poderão perceber

seu potencial na realização da pesquisa/tarefa/atividade.

Dessa forma, será possível que os professores apliquem as WebQuests na perspectiva

de dar aos alunos uma tarefa que lhes permite usar a sua imaginação e as habilidades de

resolução de problemas, utilizando suas próprias habilidades de pensamento criativo e de

resolução de problemas para poderem sanar problemas dos mais diversos.

Segundo Marzano (1992, p. 7) é imprescindível que os alunos se tornem aprendizes de

maneira construtiva e que tenham “capacidade de assumir uma maior responsabilidade pela

própria aprendizagem, com o conhecimento de como avaliar o seu próprio crescimento4”, pois

isso os ajudaria a aprender a lidar com desafios do cotidiano e contribuiria para a contrução da

autonomia por despertar neles a capacidade de resolver seus problemas.

Sendo assim, o uso da webquest é pertinente, pois se constitui como metodologia de

ensino que, mediada pelo professor, pode auxiliar no desenvolvimento dos alunos, ajudando-

os a despertar a produção criativa para lidar com diversas situações-problema, gerando a

possibilidade de articular os saberes adquiridos na escola para utilizá-los na vida prática.

III. Literatura: um passeio mundo das maravilhas

A materialização da literatura se dá por meio da linguagem. Essa concepção nos

permite, por exemplo, compreender que as formas de manifestação da literatura são

diversificadas, uma vez que se pode estabelecer relações com elementos de outras expressões

artísticas, não podendo, portanto, ter sua compreensão associada unicamente à linguagem

verbal.

A literatura deriva, por excelência, da capacidade humana de imaginar. O artista

imprime suas impressões de mundo, construindo imagens que representarão sua

individualidade. No entanto, essas imagens são mutáveis, incompletas e adquirem sentido por

meio do olhar e das experiências do outro.

Por sua natureza dialógica, a literatura vem sendo confrontada com outras formas de

linguagens e, mais recentemente, as que envolvem outras mídias. Nesse sentido, trazemos

4 “capacity to take increased responsibility for their own learning, and with the knowledge of how assess their

own growth.”

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 633

uma proposta de atividade que pretende contribuir para que se promova novas experiências

com o ensino-aprendizagem de literatura por meio de uma webquest utilizada em sala de aula.

A WebQuest proposta se apresenta num entrecruzamento entre a linguagem da

narrativa cinematográfica Alice no País das Maravilhas (2010) e a obra literária de Lewis

Carroll, de mesmo título. A partir dessa abordagem, pretendemos dar aos alunos

possibilidades de construir sentidos por meio do diálogo entre o filme produzido por Tim

Burton e a obra de Carroll. Discutindo a relação que existe entre o livro e a adaptação

cinematográfica, Culler ressalta que os elementos que compõem a linguagem do cinema se

valem de diálogos com outros trabalhos pré-existentes, pois

[...] retomam, repetem, contestam, tranformam. Essa noção às vezes é conhecida

pelo nome imaginoso de ‘intertextualidade’. Uma obra existe em meio a outros

textos, através de suas relações com eles. (CULLER apud THIEL; THIEL, 2009, p.

46).

A imbricação entre a narrativa fílmica e o livro de Lewis Carroll, discutida por meio

de uma WebQuest, nos dá diversas possibilidades de leitura, uma vez que nos permiti

(re)construir a todo momento a história de Alice, estimulando nossa imaginação e criatividade

por meio do contato com o texto e com outros elementos, tais como o som e a imagem, que

unidos provocam uma relação de movimento e de envolvimento. No próprio livro, Alice faz

uma reflexão acerca da importância da presença da imagem na interpretação de um texto.

Alice começava a enfadar-se de estar sentada junto à irmã e não ter nada o que fazer:

uma ou duas vezes espiara furtivamente o livro que ela estava lendo, mas não tinha

figuras nem diálogos, “e de que serve um livro” – pensou Alice – “sem figuras nem

diálogos?” (CARROLL, 2005, p. 41).

Quando lemos estabelecemos diálogos e construimos significados, isto é, atribuímos

sentido ao que lemos e relacionamos as informações que o texto nos dá ao conhecimento que

foi adquirido no decorrer de nossas experiências de vida. Essa interação ocorre também ao

articularmos as imagens e os sons ao assistirmos a um filme, uma vez que a visão e a audição

se integram na interpretação(ões) das imagens de um texto fílmico. (THIEL; THIEL, 2009).

Tanto o filme quanto o livro explorados na WebQuest estão repletos de elementos que

evocam o que Todorov ([1975] 1981) classificou como fantástico, maravilhoso e estranho. De

acordo com esse autor, o fantástico se manifesta como aquilo que não se consegue definir

como real, ganhando corpo no terreno do incerto, do duvidoso. O maravilhoso, por sua vez, é

compreendido num espaço de questionamento em que não há explicação real que justifique

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 634

determinados acontecimentos, uma vez que eles se estruturam no âmbito do sobrenatural, pois

“não se explica de maneira nenhuma” (TODOROV, [1975] 1981, p. 31). Já o estranho ocorre

na impossibilidade de uma explicação racional para determinado acontecimento. Dito de outra

forma, é o momento em que o real não consegue fundamentar uma justificativa válida que

explique determinado fenômeno.

(...) de súbito um Coelho Branco de olhos róseos passou perto dela [...] quando o

Coelho tirou um relógio de bolso do colete e deu uma espiada, apressando-se em

seguida, Alice levantou-se sem demora, pois assaltou-a a idéia de que jamais vira na

sua vida um coelho de colete e bolso, e muito menos com um relógio dentro

(CARROLL, 2005, p. 41).

No trecho percebemos a presença do elemento fantástico se constituindo na incerteza

do momento em que o coelho branco surge trajando um colete no qual mantém um relógio de

bolso e Alice duvida da possibilidade de sua visão real, quando raciocina e não encontra

espaço na realidade para explicar o que acabara de ver.

Na narrativa de Burton, assim como na de Carroll, Alice se depara com situações

inusitadas que estimulam a nossa criatividade e impulsionam a nossa imaginação, tal como no

momento em que ela, após ter adentrado a toca do coelho, bebe um líquido que a faz diminuir

de tamanho e depois quando come o bolo que a faz crescer, atingindo mais de três metros de

altura. Esses e outros elementos caracterizam essa obra como parte da literatura fantástica.

A literatura nos dá a chance de embarcar no universo fantástico de Alice, permitindo-

nos explorar, (re)criar, (re)construir e (res)significar o mundo das maravilhas por meio de

nossa criatividade. Através desse universo, transferimos a imaginação do âmbito literário para

que os alunos leitores possam ter contato com a fantasia de modo a associá-la às suas

experiências e aos seus conhecimentos de mundo. (MCKAY, 1982)

Por conta disso, é essencial promover e desenvolver atividades nas quais os alunos

experienciem o contato com a literatura e possam reiventar os textos criando outras histórias e

registrando seus sentimentos, impressões e opiniões geradas a partir do contato inicial que

tiveram as narrativas.

Matos (1987, p. 20) assegura que o “ensino da literatura é, em rigor, impossível, pela

simples razão de que a experiência não se ensina. Faz-se. Mas podem e devem criar-se as

condições para essa experiência”. Duff e Maley (2003, p. 6) corroboram com essa afirmação

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 635

quando enfatizam que “o texto literário dá acesso a um mundo de experiências pessoais que

cada aluno possui.”5

As experiências adquiridas com a webquest utilizando o texto literário, por meio do

livro, do filme ou de ambos, são de extrema importância para o estudo da literatura. Por sua

capacidade de se correlacionar a outras disciplinas, a literatura se mostra extremamente

importante no estudo da língua em virtude das várias contribuições que ela pode oferecer para

o ensino-aprendizagem.

O trabalho com a literatura por meio da Webquest pode nos trazer benefícios de

natureza linguística, literária, cultural e estética. Ao utilizá-la em sala de aula podemos fazer

comparações entre os elementos que compõem a língua e a cultura de um povo, incitando

reflexões acerca das relações que se estabelecem entre a língua materna, nesse caso a língua

portuguesa, e a língua estrangeira (inglês) articulando tanto as questões culturais quanto as

linguísticas entrelaçadas ao ensino de literatura (COLLIE & SLATER, 1987), tal como

propomos com o texto de Alice, por exemplo.

Nesse sentido, o texto literário se apresenta como meio de explorar diversos aspectos

da linguagem, pois se configura como material autêntico, ou seja, faz uso de situações

concretas e contextualizadas, haja vista que o “texto literário provê exemplos de linguagem

tomados de uso real, que podem ser enfatizadas em contextos ativos na interação e no

trabalho de significação com e da linguagem.” (BRUNFIT & CARTER, 2000, 15).

São esses tipos de experiência que procuramos promover ao defendermos o ensino de

literatura tendo como suporte metodológico a webquest. A ideia é que o aluno-leitor possa

relacionar as discussões feitas com as diferentes abordagens de Alice no País das Maravilhas

com situações da vida real, discutindo e refletindo sobre aspectos da infância e da

adolescência, bem como as diversas implicações decorrentes das mudanças ocorridas nesse

período de transição.

É por meio do entrecruzamento das imagens, obsevando e comparando as

personagens, o cenário, as caricaturas, as fantasias e as aventuras exploradas nas narrativas

em questão que a WebQuest conecta aluno e professor com a literatura, envolvendo-os numa

atividade investigativa e convindado-os a embarcar numa aventura atrativa e motivadora com

o romance de Carroll.

IV. Considerações Finais

5 “Literary texts give access to the worlds of personal experience which every student carries within.”

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 636

O trabalho com a literatura é de fundamental importância para aprimorar e/ou

desenvolver habilidades e competências de leitura e de compreensão de textos na sala de aula.

Para Ur (1996) o contato com textos literários nos possibilita a conhecer diferentes tipos de

escrita, bem como representações autênticas dos vários tipos de usos da língua. O autor

assegura que a literatura é um recurso agradável que auxilia no ensino-aprendizagem da

língua por envolver tanto a emoção quanto o intelecto que, aliados a motivação, podem

contribuir para o desenvolvimento pessoal do aluno nas diversas situações de sala de aula.

Buscamos, nesta pesquisa, promover algumas experiências por meio do romance Alice

no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, na perspectiva de ajudar a “estimular a imaginação

dos nossos alunos, para desenvolver as suas habilidades críticas e aumentar a sua consciência

emocional” (LAZAR, 1993, p. 19)6. Segundo Lazar (1993, p. 15) “um bom romance ou uma

curta estória pode ser particularmente emocionante na medida em que envolve os alunos no

suspense de desvendar o enredo.”7

O potencial que a literatura tem de promover na sala de aula diálogos com outras

linguagens, como a da narrativa fílmica, contribui significamente para desenvolver a

criatividade dos alunos. Por meio do envolvimento entre o som, a imagem e o movimento que

atrai e desperta a atenção, os alunos têm a possibilidade de fazer comparações entre os

elementos que caracterizam o texto fílmico e a linguagem literária, discutindo e refletindo

sobre assuntos que os ajudão a despertar o senso crítico.

Nessa perspectiva, destacamos também a WebQuest como metodologia que aliada a

literatura pode expandir ainda mais as discussões em sala de aula, uma vez que ambas

favorecem o trabalho colaborativo que privilegia tanto as atividades em grupo quanto as que

exploram as habilidades individuais de cada aluno. Por meio da WebQuest podemos

desenvolver trabalhos em que a literatura se apresente como atividade investigativa que

explore o potencial de pesquisa na internet, mas que não se limita a isso, uma vez que

desperta também a capacidade investigativo-criativa dos alunos.

Portanto, percebemos o importante papel que a webquest ocupa no ensino-

aprendizagem de literatura por apresentar uma abordagem intertextual e, por vezes,

interdisciplinar que visa a provocar discussões, reflexões e análises críticas no âmbito da

linguagem, da literatura e da cultura.

6 “to stimulate the imagination of our students, to develop their critical abilities and to increase their emotional

awareness.” 7 “A good novel or short story may be particularly gripping in that it involves students in the suspense of

unraveling the plot”

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 639

ENTRE AS ESTRADAS QUE (NÃO) SE ABREM: TERRA

SONÂMBULA, LITERATURA E CINEMA [Voltar para Sumário]

Diogo dos Santos Souza (UFAL)

Victor Mata Verçosa(UFAL)**

1. Introdução

Terra sonâmbula, romance do escritor moçambicano Mia Couto, escrito em 1992, traz

um retrato do modo como a leitura e o ato de contar histórias pode se transformar em um

recurso de sobrevivência da memória no ambiente da guerra do mundo africano. Nesse

contexto, pode-se também afirmar que as personagens principais da história, Muidinga e

Kindzu, figuram em um espaço narrativo que é poetizado entre a fronteira do lido, do vivido e

do imaginado. Assim, a proposta deste trabalho é fazer uma leitura da representação do

espaço no romance citado em diálogo com a sua adaptação cinematográfica homônima,

dirigida pela cineasta moçambicana Teresa Prata em 2007.

Logo, na interlocução entre o discurso literário e o discurso fílmico, é possível

compreender como o espaço é um elemento narrativo que se redimensiona nesse

procedimento de releituras. Uma topoanálise de Terra Sonâmbula (romance e filme) requer a

leitura dos espaços narrativos como categorias agentes na trama, dado o estado de estagnação

da guerra enfrentada pelas personagens e a inviabilidade da fuga do precário espaço

geográfico. Instabilizadas graças ao trânsito pela memória e o imaginário, as referências aos

espaços físicos adquirem elas mesmas plasticidade e movimento, emergindo do fundo à

superfície narrativa sob formas efêmeras e estranhas que envolvem, acolhem e desencontram

os habitantes do país paralisado pela guerra. É a viagem deste espaço sonâmbulo - movendo-

se durante os devaneios do sonho, das noites escuras, da fome e da fantasia.

Estudante de Doutorado em Estudos Literários no Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da

Faculdade de Letras (FALE) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). ** Graduado em Letras Português pela Faculdade de Letras (FALE) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

e professor da rede estadual de educação básica de Alagoas.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 640

As cenas narrativas (do romance e do filme) que serão lidas, por uma questão de

necessidade de recorte do material analisado, são provenientes do foco narrativo que

acompanha a jornada das personagens Muidinga e Tuahir. Dessa forma, a leitura da

representação do espaço será feita sob um enfoque específico, não se atendo a multiplicidades

de tramas que surgem ao longo das narrativas.

2. O espaço na leitura literária de Terra Sonâmbula

O estudo de Osman Lins acerca do espaço no romance propõe uma distinção entre as

categorias de espaço e ambientação, de maneira que o espaço narrativo corresponde a uma

referência locativa no plano da história enquanto ambiente é a composição textual marcada

por recursos expressivos empregados pelo autor que caracterizam ou tematizam tais lugares

da ação ficcional. (LINS, 1974, p.77).

Os ambientes narrativos em Terra Sonâmbula materializam-se através dos recursos da

prosa em que os componentes físicos do espaço ganham forma por meio de metáforas,

alegorias e sinestesias pelas quais os lugares da ação são apresentados e descritos. Com efeito,

o Moçambique através do qual viajam Muidinga, Tuahir e Kindzu não está inscrito imóvel em

uma dada cartografia, mas é a grande força agente na borda instável entre vida, morte, inércia

e transformação provocada pela guerra que perturba as relações, significados, vidas e mesmo

os limites do real para os viventes da terra.

A violência que dissolve a ordem do país é a mesma que faz ressurgir do imaginário as

forças primitivas da natureza que modificam o tema do espaço e lançam intempéries sob as

quais os viajantes buscam sobreviver. Lançado ao terreno do inacreditável pelo conflito

armado, o espaço cenário torna-se agente e dinamizador da narrativa: “A estrada que agora se

abre a nossos olhos não se entrecruza com outra nenhuma. Está mais deitada que os séculos,

suportando sozinha toda a distância.” (COUTO, 2007, p.9).

Tingida de morte mas também de desejo de vida, toda a terra de Moçambique aparece

a Tuahir, Muidinga e Kindzu como símbolo desta duplicidade: fertilizada pelas lendas e

devoradora de homens. A terra que se move durante o sono, espreguiçando-se nas planícies

barrentas, pântanos e depressões, jamais levantando-se em montanhas, boceja engolindo os

viventes para dentro do pesadelo – quando Kindzu é puxado aos subterrâneos pelos espíritos

da praia – ou dos sonhos da terra, quando Muidinga e Tuahir caem na armadilha do velho

Siqueleto em seu vilarejo abandonado.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 641

Tanto a narrativa literária quanto a fílmica representam o súbito desse encontro breve

e estranho de Muidinga e Tuahir – cada vez mais envolvidos e envoltos pelo imaginário dos

cadernos de Kindzu – com o velho de natureza misteriosa e fala enigmática cuja boca

desdentada é tal qual o buraco na terra em que caíram aqueles dois personagens. Siqueleto é

um porta-voz da terra devastada pela morte e miséria, é um intérprete das intenções da

natureza que deve ser “semeada de homens” para que voltem a nascer pessoas para povoar o

país.

O velho Siqueleto infunde misticismo e revela o desejo da paisagem, igualmente

mortífera e fecunda. Lins (Id, p. 84) categoriza como oblíqua ou dissimulada a ambientação

cuja materialidade se revela no texto por meio dos gestos ou atos dos próprios personagens,

sendo o caso neste ponto da narrativa, em que atribuem-se aspectos mágicos e vontade ao

ambiente inanimado, aliás, como acontece durante todo o enredo. Todo o espaço da narrativa

em Terra Sonâmbula adquire movimento próprio e caracterização complexa própria de um

personagem.

A terra sonâmbula reage ao poder da palavra, do sonho e do desejo dos sobreviventes.

Muidinga fertiliza a terra escrevendo o nome de Siqueleto no chão e na árvore do centro do

vilarejo, cumprindo assim o desejo do velho de reinscrever a humanidade e restaurar a vida

àquela natureza moribunda, convertendo-se em semente e fertilizando, ele mesmo, a terra. A

morte de Siqueleto completa um ciclo que impregna a natureza de renovada energia vital e

que marca da topoanálise do romance e de sua adaptação fílmica.

De maneira semelhante, o encontro de Tuahir e Muidinga com Nhamataca, o fazedor

de rios, é também rodeado das forças telúricas que trazem o espaço do plano de fundo ao

plano de ação da narrativa. Todavia, é importante que se destaque que a obra cinematográfica

reelabora livremente o nascimento do rio em relação ao modo como o mesmo evento se dá na

obra literária. Nhamataca não está presente no filme e Muidinga, em um momento de

epifania, é o personagem que escava o rio buscando uma saída da estrada morta onde se

encontra o machimbombo.

Tanto os espaços da terra quanto os da água são plenos dos potenciais simultâneos de

criar e destruir a vida na terra sonâmbula e prenunciam um entrecruzamento das rotas de

Muidinga e Tuahir, que viajam pela terra, e Kindzu, que percorre rotas aquáticas e terras à

beira d’água, como a vila de Matimati. As águas da chuva, dos rios, do pântano e do oceano

são um sinal do insólito que acompanha a viagem de Kindzu e passam a envolver Muidinga e

Tuahir.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 642

Nhamataca planeja um rio chamado Mãe-água, que fertilizará a terra sedenta e

terminará a guerra. A tempestade e o brotamento das águas que fazem nascer o rio engolfando

seu criador revestem a morte deste personagem – ele mesmo nascido a bordo de um barco –

de um sentido de retorno ao seio materno, de modo análogo à volta de Siqueleto às veias da

terra natal. Na obra para cinema, a Mãe-água brota do desejo desesperado de Muidinga que

escava a terra em busca de uma fuga daquela estrada vazia. O rio converte o machimbombo

em uma embarcação em rota para o mar e para o destino final dos viajantes que partem da

terra devastada.

A estrada morta e o rio, a despeito de seus perigos, apresentam-se como caminhos de

travessia aos sobreviventes. Porém, o cruzamento labiríntico destes elementos naturais no

mesmo espaço na forma de pântano próximo ao oceano que já se escuta perto é um obstáculo

mortal para Muidinga e Tuahir. A pestilência das águas rasas e estagnadas sobre terra

movediça contamina Tuahir, que deseja o alívio final no mar assim como Taímo, o pai de

Kindzu, que foi sepultado nas águas do oceano.

Para a terra sonâmbula, as águas e o mar atuam como vetores para o outro mundo e

Tuahir revela que, desde a chegada ao machimbombo, já ouvia as ondas como em um

presságio do fim de sua vida. A adaptação de Teresa Prata desenha este instante nos minutos

iniciais do filme, durante a chegada de Muidinga e Tuahir ao ônibus na estrada.

O velho e o menino escapam do pântano e chegam ao oceano onde encontram o barco

de Kindzu no qual seguem viagem. Tuahir expira sobre o mar durante a leitura do último

caderno de Kindzu em um tempo em que as narrativas paralelas estão já tão profundamente

ligadas que as vidas de Muidinga e Kindzu e Tuahir e Taímo (pai de Kindzu) parecem unidas

pela vontade do país que se move sob os pés dos sobreviventes, tal qual a crença dos

habitantes de Matimati.

A terra sonâmbula é o espaço narrativo que manifesta-se no diálogo com os

personagens do romance. Sua configuração enquanto elemento da narrativa não é a do espaço

apassivado que serve de palco para trama, mas de ambiente plástico entre a materialidade e o

sonho, quase personificado pelas essências da natureza e repleto das vozes dos espíritos da

terra.

2. O espaço na leitura fílmica de Terra Sonâmbula

Para o início da reflexão sobre a leitura do espaço que a cineasta Teresa Prata realizou

em sua adaptação fílmica homônima do romance de Mia Couto, Terra Sonâmbula, é válido

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 643

passarmos pela primeira epígrafe do texto literário, que pode ser interpretada como um

recurso que posiciona a compreensão do espaço que irá surgir no decorrer dos caminhos de

Muidinga e Tuahir. Nomeada como “Crença dos habitantes de Matimati, a epígrafe de

abertura do livro fornece um viés de leitura para o adjetivo que qualifica a singularidade dessa

“terra”:

Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a

terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam

o novo rosto da passagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados

pela fantasia do sonho (COUTO, p.5, 2007)

A ideia do sonambulismo da terra evoca o movimento entre espaços distintos, fazendo

com que o tempo presente se entremeie com o passado, ou ainda com um tempo que está por

vir. Nessa perspectiva, podemos pensar a função da trilha sonora no prólogo do filme, em que

o som da água jorrando antecede o início dos créditos iniciais. Antes mesmo de Muidinga

(Nick Lauro Teresa) e Tuahir (Aladino Jasse) entrarem em cena, o ruído da água já é

apresentado, indicando uma possível confluência futura entre o ambiente da terra que se move

com as águas do imaginário poético. Assim, “a fantasia do sonho” se evidencia na narrativa

fílmica através do som “tipo over”, “quando não provém de uma origem existente na cena

mostrada, não fazendo parte do espaço/tempo da diegese” (MAZZOLENI, 2002, p. 193).

Nesse caso, a inclusão desse recurso cria, talvez, um efeito de sentido de contraposição entre

o que se vê e o que se escuta: o andar pela terra seca na atmosfera do ambiente aquático,

como se quisesse demonstrar que as personagens desde então estavam em contato com outro

espaço narrativo.

Ainda no prólogo, podemos destacar outro caminho de leitura de Teresa Prata que

mostra o seu olhar sobre o texto fonte: o plongée1 de Muidinga “dirigindo” o seu “barco com

rodas”. Aqui, nesse plano que dá foco no detalhe do objeto, é possível afirmar que a escolha

por filmar a cena através do recurso técnico mencionado seja uma forma de expor a

resistência de Muidinga a esse espaço que foi contaminado pela guerra. O fato de a

personagem brincar com o seu “barco com rodas”, que possui um volante, pode significar

1 O termo francês, que equivale a “mergulho” na língua portuguesa, consiste em filmar a pessoa ou o objeto de

cima para baixo, captando toda a sua dimensão. Também conhecido como câmera alta, esse recurso

normalmente transmite a ideia de inferioridade do que está sendo filmado, tendo em vista que o espectador é

posicionado acima do objeto que está em cena. http://agambiarra.com/plongee-e-contra-plongee-a-arte-de-medir-

com-a-camera/. Acessado em 8 de maio de 2014, às 8h48min.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 644

uma tentativa de assumir o controle das estradas que são percorridas, sem ser, desse modo,

semente levada por elas sem a opção de escolha.

Mais adiante, o encontro com machimbombo (ônibus) se transforma num elemento

que potencializa a dor e o sofrimento das personagens, visto que a única morada que se

consegue é a carcaça carbonizada de um transporte urbano. Essa habitação é uma espécie de

cova, pois é receptáculo de cadáveres de vítimas da guerra. Ou seja, a “estrada que se abre”

para Muidinga e Tuahir é marcada pela morte e pela violência, transfigurando o

machimbombo em um local de parada, de estaticidade, de confirmação de que a guerra ainda

persegue aquele lugar. Nesse sentido, provavelmente, possamos tratar essa compreensão

como uma forma de subverter a função do meio de transporte coletivo urbano: ao invés de ser

um espaço de trânsito e de mobilidade, é um componente narrativo que se apresenta fincado

numa raiz, com rodas atrofiadas na presença da morte. Por outro lado, é o machimbombo que

se torna uma janela para o mundo da ficção, posto que é nele que Muidinga encontra os

cadernos de Kindzu e começa a exercer o seu papel de contador de histórias para Tuahir,

iniciando o ciclo de outras subtramas.

Na passagem da voz narrativa de Muidinga (no romance) para a narração em primeira

pessoa do primeiro caderno de Kindzu, “O tempo em que o mundo tinha a nossa idade”, não é

possível afirmar com clareza de onde esse narrador fala, apesar de podermos supor que ele

está na vila em que mora. Já no filme, optou-se situar o espectador no espaço do rio, que até

então apenas se apresentou através da trilha sonora, no formato de ruídos. Novamente, o

roteiro e a direção do filme encontram um meio de expressar a multiplicidade do foco

narrativo do romance, mais evidente a partir dessa cena.

Após deixar o machimbombo, a dupla de personagens, na busca de uma rota que não

estivesse tomada pelas consequências da guerra, percorre um longo caminho que os leva de

volta para o ponto de partida, fato que pontua a circularidade da estrada que não os liberta do

destino que é traçado para os habitantes daquela terra. Durante o decorrer da película, a

paisagem, praticamente, mantém-se a mesma, como se já indicasse que Muidinga e Tuahir

estão pisando nos círculos de um espaço que desemboca somente na morte. O tom nublado da

imagem quase sempre se mantém o mesmo, alterando-se, especialmente, nos momentos de

leitura dos cadernos de Kindzu.

No contexto da indignação em voltar para o mesmo lugar de onde partiu, Muidinga,

inconformado, vê o seu brinquedo, “o barco com rodas”, mover-se sozinho. Incitado pela

força do imaginário e da esperança, a personagem começa a cavar o solo na tentativa de

“fazer um rio” (1h13min29seg), figurando uma atmosfera da narrativa fantástica, bastante

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 645

presente no romance e pouco representada no filme. Nesse momento, o roteiro do filme falha,

a nosso ver, ao imprimir uma passagem abrupta entre a percepção do caminhar em círculo e

uma instantaneidade de Muidinga ao ter a ideia de fazer um buraco na terra, fato que se

desenvolve de modo mais pausado no texto fonte. Através desse pequeno ato de cavar, uma

fonte de água nasce, movimentando a estrada. Aos poucos, o machimbombo submerge na

água, transformando-se numa espécie de barco, como se o espaço terrestre estivesse sendo

fundido pelo espaço aquático.

A desembocadura, o trânsito do rio para o mar, não é apresentado ao leitor espectador,

já que Muidinga e Tuahir caem no sono e acordam no local de águas mais largas

(1h24min40seg). Essa mudança de cenário pode significar no filme a passagem imperceptível

da realidade da guerra para o mundo ficcional de leitura dos cadernos de Kindzu,

principalmente se levarmos em consideração que essa ação os leva para a mesma rota das

histórias que estavam sendo lidas. As águas que retiram as personagens da sobrevivência da

guerra também figuram como cenário da morte de Tuahir, subsidiando a reflexão de que a

água pode ser uma

“metamorfose essencial entre o fogo e a terra. O ser consagrado à água é um ser em

vertigem. Morre a cada minuto e, incessantemente, algo de sua substância aniquila-

se. A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que atinge o céu com as suas

flechas; a morte cotidiana é a da água. [...] (BACHELARD, 1942, apud,

SANT’ANNA, 1992, p. 152).

Na cena em que Tuahir fala sobre a possibilidade de sua morte (1h26min53seg), o

espaço em evidência do machimbombo comporta essa metamorfose citada por Bachelard,

pois a submersão do autocarro não apaga as marcas do fogo, tal como não elimina as suas

características de transporte terrestre, posto que ele mantém as suas rodas no movimento de

navegar. Também podemos compreender o espaço de Tuahir e Muidinga como um entre-

lugar, que no filme é representado pela presença constante do ruído da água, sinalizando essa

“vertigem”, esse girar ao redor de uma mesma estrada. Essa morte paulatina, pausada, pode

significar a morte de Tuahir para o mundo de vivência da guerra, reconstruindo-se no espaço

ficcional anunciado pela água. Por fim, é válido frisar que a morte sob as águas é mais

silenciosa, comedida, se comparada a outras situações semelhantes da narrativa fílmica, como

se o mar estivesse finalmente quieto, já que agora obteve o descanso para a alma de Tuahir.

Em seu estudo sobre as relações entre espaço e literatura, Santos (2001) pensa esse

elemento de constituição da narrativa como um lugar de composição das vivências e das

relações entre as personagens. Ao utilizar como exemplo o romance brasileiro Menino de

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 646

engenho, de José Lins do Rêgo, o autor situa o papel do espaço da paisagem do agreste

nordestino no procedimento de leitura literária: “em tais cenários, cria-se um microcosmo em

função do qual vão se definindo as condições históricas e sociais das personagens, onde é

possível detectar a correlação funcional entre os ambientes, as coisas e os comportamentos”

(SANTOS, 2001, p. 79). Essa reflexão pode ser transposta para o contexto da adaptação

fílmica de Terra Sonâmbula, ao percebermos que pequenos detalhes de construção do espaço

desempenham uma função social e psicológica quando fazemos uma interlocução com as

ações das personagens.

Umas das escolhas de filmagem mais interessantes da diretora Teresa Prata, já

comentada aqui no início desta seção, foi a inclusão dos ruídos de água desde o prólogo da

película. Na releitura feita pela tela, a cineasta compreendeu a integração entre o espaço

vivido e o espaço do imaginário poético dos cadernos de Kindzu, expressando o seu olhar

através da utilização do som. Assim, o leitor espectador parece ser convidado a entrar num

fluxo de consciência2 do espaço dessa terra sonâmbula, nas veredas das estradas que se

abrem, que se fecham e que se mantém entreabertas.

3. Considerações finais

O estudo do texto de Mia Couto e da adaptação de Teresa Prata não podem prescindir

de uma observação cuidadosa dos espaços e ambientes enquanto elementos da narrativa, bem

como o “comportamento” atípico, jamais figurativo, dos lugares de ação ficcional nas obras

analisadas. O protagonismo do(s) espaço(s) na narrativa é um aspecto central da composição

de Terra Sonâmbula, seja em sua realização literária, seja em sua realização fílmica. De fato,

é o título que sintetiza a matéria a qual as linguagens – da literatura e do cinema, neste caso –

irão (re) compor.

Obra marcada de espaços de travessia e imobilidade, rotas que paralisam e obstáculos

que se abrem ao fantástico (a armadilha, o rio, o mar), a terra sonâmbula viaja ela mesma

através dos espíritos dos homens, desejosa do encontro com as águas de sonho. Na fusão

dessas duas fertilidades são tecidos os novos rumos e a renovação da vida através da morte.

As interseções estabelecidas entre o romance e a sua adaptação fílmica mostram que o

(s) espaço (s) da narrativa pode ser ressignificado através das especificidades da linguagem

2 Para David Lodge (2009, p. 51), a expressão fluxo de consciência “foi um termo cunhado por William James, o

psicólogo irmão do Henry, o romancista, para definir o fluxo contínuo de pensamentos e sensações na mente

humana”. No caso de nossa leitura, esse conceito pode corresponder ao trânsito entre o tempo e espaço que

vivem a experiência da guerra mesclados às sensações do tempo e espaço da leitura literária.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 647

cinematográfica, como a introdução do som na montagem do filme e a representação da

paisagem que corrói a realidade, mas também se transforma em palco que alimenta o

imaginário da leitura. Dessa forma, no (des) encontro das estradas que se abrem e daquelas

que se fecham para nós, leitores e espectadores, a nossa reflexão chega as linhas finais nesse

terreno movediço em que literatura e cinema dialogam, transmutando as relações que são

promovidas com a ida do texto literário à tela.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 648

FORMAÇÕES DISCURSIVAS E IDENTIDADE DO SUJEITO

PROFESSOR EM “QUE RAIO DE PROFESSORA SOU EU?”,

DE FANNY ABRAMOVICH [Voltar para Sumário]

Djamara Virgínia Ferreira da Rocha Silva (UFCG)

Aloísio de Medeiros Dantas (UFCG)

Considerações Iniciais

As construções discursivas também são regidas, dentre outros fatores, por aspectos

sociais que refletem o momento histórico cultural e ideológico instaurado na/pela

humanidade. Deste modo, investigar os discursos que circulam em nossa sociedade constitui-

se uma atividade de fundamental relevância científica, uma vez que, através destes, torna-se

possível mapear conceitos que atravessam as diversas práticas sociais.

Dentre estes discursos, podemos destacar aqueles que se relacionam ao ensino como

instrumentos de estudo da educação, meio de definição de suas nuances conceituais e como

estas foram incorporadas pelos sujeitos, que materializam seus discursos através de textos,

que, por conseguinte, podem configurar-se como ferramenta de veiculação do corpus a ser

investigado. Um exemplo deste processo, seria o livro Que raio de professora sou eu?, de

Fanny Abramovich.

Motivados por estas circunstâncias, apresentamos este artigo que tem como tema as

implicações discursivas sobre a educação em Fanny Abramovich, o que nos fez pensar

enquanto questão norteadora: “quais as implicações que o discurso sobre o ensino presente na

obra Que raio de professora sou eu? traz para a identidade do professor?”.

O termo “ensino” relaciona-se a diversos elementos, mas delimitamos o nosso foco de

pesquisa no professor enquanto sujeito. Justificamos o nosso interesse por entender que,

apesar dos demais elementos, como os manuais didáticos, a Escola, os exames vestibulares, os

documentos políticos orientadores do sistema educacional brasileiro, entre outros, o professor

firma-se socialmente como uma peça-chave do ensino, sendo importante lançar um olhar

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 649

científico sobre como se estabelece a imagem deste sujeito que ensina, preocupação que

delimita nossa pesquisa, tendo como foco o sujeito-professor.

Para desenvolver esta investigação, considerando que elegemos o discurso como ponto

de análise, utilizaremos a Análise do Discurso para embasamento teórico e metodológico de

nossa pesquisa, abordando os conceitos de sujeito, formação discursiva e identidade.

Enfatizamos que quando uma narrativa é analisada pela ótica da Análise do Discurso,

ela não é vista da mesma maneira das teorias literárias, para quem importam conceitos como

narrador, personagem e foco narrativo, mas será concebida, conforme apontamos acima,

como uma atividade discursiva feita por um sujeito (escritor) que gera um efeito discursivo,

por meio do qual outros sujeitos adotam discursos (personagens) paralelos ou subordinados ao

discurso ou temática da narrativa. Fanny Abramovich, além de escrever sobre professores, é

graduada em Pedagogia pela USP e atuou como professora, elementos que ratificam a

relevância de estudos do discurso vinculados aos seus livros.

Fundamentação Teórica

Os procedimentos da análise do discurso exigem “um ir-e-vir constante entre teoria,

consulta ao corpus e análise” (ORLANDI, 1999, p. 67), deste modo, consideramos que as

categorias teóricas do discurso necessárias para o desenvolvimento de nossa pesquisa são:

sujeito, formação discursiva e identidade. Os pressupostos teóricos aqui apresentados

dividem-se, portanto, em três seções: “Sujeito das formações imaginárias e Forma-sujeito

histórica”, “Os efeitos de sentido e a Formação discursiva” e “Identidade: processos

identificatórios”.

Sujeito das formações imaginárias e Forma-sujeito histórica

Conforme Pêcheux (1990), “é impossível analisar um discurso como um texto” (p.79),

isto é, para perceber os sentidos que subjazem os discursos, não é necessário apenas observar

a superfície linguística, mas considerar as suas condições de produção (id., ibid., p.79).

Ao explicitar essas condições, Pêcheux identifica como seus elementos estruturais, os

participantes do discurso, isto é, os sujeitos, por ‘A’ e ‘B’, esclarecendo que o sujeito não é a

pessoa física, o “organismo individual” (id., ibid., p.82), mas que designam lugares

determinados na estrutura de uma formação social.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 650

Vemos assim, que o sujeito para Pêcheux é concebido com base na relação com o

outro, haja vista que considerá-lo enquanto social implica em não adotá-lo em sua condição

individual e/ou puramente linguística (INDURSKY, 2000, p. 70). Interiormente ao processo

entre os sujeitos ‘A’ e ‘B’, são produzidas imagens que designam o lugar que os sujeitos

atribuem a si mesmos e mutuamente, o que se denomina por formações imaginárias (Pêcheux,

1990, p. 82).

Estas formações são organizadas por Pêcheux (1990), em expressões que as designam,

e as significações das mesmas. Como elas estão presentes em todo processo discursivo (id.,

ibid., p. 83), temos que as expressões de ‘A’ significam a imagem no lugar de ‘A’ para o

sujeito colocado em ‘A’ ou a imagem do lugar de ‘B’ para o sujeito colocado em ‘A’, e as

expressões de ‘B’ implicam estes mesmos significados imagéticos em relação a ‘A’.

A partir disso, entendemos que um discurso sobre o ensino, consequentemente, é

perpassado por formações imaginárias, e se este tem o sujeito professor como um de seus

aspectos, temos imagens do sujeito-professor que emanam deste discurso. Portanto, para

desenvolver um estudo discursivo sobre a educação em Fanny Abramovich, tal pressuposto

teórico tornou-se fundamental, uma vez que embasa nossas investigações a respeito da

imagem do professor e as concepções de ensino subjacentes, isto é, as propriedades do

discurso sobre a educação no material analisado.

Ressaltamos ainda que a esta noção de formação imaginária, Pêcheux soma outro

conceito para o estudo do sujeito: o de ideologia. Com isso, consideramos que as imagens

atribuídas pelo sujeito são também atravessadas por traços ideológicos,

Pêcheux (1988) diz que a ideologia nos faz pensar o homem como ser ideológico (id.,

ibid., p.152), de modo que “o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia” (id., ibid, p.

154), ou seja, a ideologia é uma estrutura elementar do discurso, pois a partir dela se

estabelece o sujeito. Sujeito e ideologia, apesar do domínio desta última, são realidades

simultâneas (DANTAS, 2007, p.65), pois como vimos, não existe sujeito sem ideologia.

Disso resulta que o sujeito para Pêcheux, além de social, é histórico, e conseguintemente,

ideológico (INDURSKY,2000, p 71), elementos que Pêcheux (1988) utilizou para designar a

forma-sujeito histórica.

Destacamos também que a ideologia apenas se materializa, isto é, se realiza

linguisticamente, através do sujeito e suas ações de linguagem, o que nos dá respaldo para ter

as obras literárias como uma possibilidade de ferramenta para analisar o discurso, pois elas

são uma ação de linguagem.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 651

Os efeitos de sentido e a Formação discursiva

Dada a sua preeminência, é a ideologia que subsidia as evidências que indicam que

uma palavra ou enunciado digam o que de fato queriam dizer, e ainda escondem o que

Pêcheux (1988) irá chamar de caráter material do sentido, a dependência ideológica dos

sentidos. O sentido está além da superfície linguística, uma vez que se constitui

discursivamente, definindo-se pelas condições ideológicas que circundam o quadro sócio-

histórico em que está inserido.

Desconstrói-se assim a idéia de literalidade do sentido, pois ele não existe em si

mesmo. Partindo disso, depreende-se que a sequência linguística dirigida do sujeito ‘A’ ao

sujeito ‘B’, através das quais são construídas as imagens, não podem ser analisadas segundo

uma transmissão de informação, trata-se de um “efeito de sentido” (Pêcheux, 1990, p. 82),

entendido como o trabalho discursivo atravessado nas palavras e expressões (DANTAS, 2007,

p.48). E se há discurso nas palavras e expressões, há ideologia, destarte, a construção do

sentido baseia-se em formações ideológicas e, por conseguinte, nas formações discursivas.

(PÊCHEUX, 1988, p. 160).

A formação discursiva pode ser entendida como aquilo que define o que pode e deve

ser dito, baseado em uma formação ideológica. Se o dizer é definido por uma formação

discursiva, quando o sujeito enuncia, se insere em uma formação discursiva, ocupando o lugar

de sujeito de discurso.

É pela formação discursiva que torna-se possível compreender os diversos sentidos na

engrenagem discursiva. Portanto, escolhemos esse conceito da Análise do Discurso como

outras das ferramentas teóricas da pesquisa por considerá-lo necessário para apreender os

sentidos que atravessam o nosso corpus, para definir o seu arcabouço discursivo face à nossa

questão de pesquisa, no tocante às formações discursivas em que se inscrevem a forma-sujeito

professor manifesta através da obra analisada.

Identidade: processos identificatórios

A inscrição do sujeito do discurso em uma formação discursiva, coloca-o em um

processo de identificação resultante da interpelação pela ideologia, que é dissimulado pela

identidade do sujeito.

Tal processo identificatório é esboçado por Pêcheux (1988), para quem “a interpelação

do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 652

formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito.” (id., ibid.,

p. 163), dando–se esta identificação através da forma-sujeito, pela qual a formação discursiva

tem seu dizer organizado.

Esta relação entre o sujeito do discurso e a forma-sujeito é denominada por Pêcheux

(1988) de tomadas de posição, que se distinguem em três modalidades. A primeira delas é a

identificação, que ocorre quando o sujeito do discurso se identifica plenamente com a forma-

sujeito da formação discursiva que o afeta, ou seja, há uma superposição entre o sujeito do

discurso e o sujeito universal, o que caracteriza o discurso do ‘bom sujeito’, que reflete

naturalmente o Sujeito.

O sujeito do discurso pode também se contrapor à forma-sujeito, tomando uma

posição de distanciamento do saber da formação discursiva a qual se submete, relação que

define a segunda modalidade dos processos identificatórios que é a contraidentificação.

Temos também que o sujeito pode não apenas se posicionar contra um saber da formação

discursiva, ele pode distanciar-se dela em si mesma, isto é, deslocar-se para outra formação e

sua forma-sujeito correspondente, ocorrendo assim o processo de desidentifcação, a terceira

modalidade de tomada de posição do sujeito do discurso.

Utilizamos o conceito dos processos identificatórios em nossa pesquisa, porque nos

propomos a olhar para o discurso sobre o ensino, investigando suas implicações para a

identidade/formação do professor, deste modo, estes pressupostos teóricos são

imprescindíveis para a busca das respostas de nossa questão de pesquisa, cujas etapas de

realização serão apresentadas a seguir.

Metodologia

Optamos por escolher os princípios teóricos e procedimentos metodológicos da

chamada “análise de discurso francesa”, filiada ao pensamento de Michel Pêcheux, como

fundamentos desta pesquisa.

Feita esta consideração, o primeiro passo da nossa pesquisa foi a realização da leitura

da obra “Que raio de professora sou eu?”, de Fanny Abramovich, orientados pelo princípio

metodológico da Análise do Discurso de que a “análise é um processo que começa pelo

próprio estabelecimento do corpus e que se organiza face à natureza do material e à pergunta

(ponto de vista) que o organiza.” (ORLANDI, 1999, p. 64).

Deste modo, tivemos a obra de Fanny Abramovich como objeto empírico, mas do

ponto de vista da Análise do Discurso, esse objeto empírico recebeu um tratamento teórico,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 653

pelo qual o transformamos em objeto teórico, isto é, em discurso, condicionados por nossas

perguntas de pesquisa e objetivos, dando-nos subsídios para escolher trechos da obra que

serviram para a nossa investigação de maneira mais específica.

Construído o objeto teórico, transformamos o texto em recortes textuais, dos quais

selecionamos sequências discursivas que melhor apontassem a nossa questão de pesquisa,

relacionadas ao ensino e à identidade de professores. Neste sentido, a natureza da pesquisa é

documental-bibliográfica, na medida em que se utilizou de livros e textos para definir os

recortes textuais e sequências discursivas que compuseram o corpus, investigando nesses,

conforme dissemos, os seguintes conceitos da AD: o sujeito, a formação discursiva e a

identidade.

Escolhemos dez recortes textuais, que serão apresentados ao longo da análise esboçada

no tópico a seguir.

Formação discursiva e identidade do sujeito-professor em “Que raio de professora sou

eu?”, de Fanny Abramovich

Para analisar a constitutividade do discurso sobre o professor, destacando as categorias

da formação discursiva e da identidade, conforme dissemos, partimos do recorte textual

abaixo:

[RT1] Outro seriado que sinto saudades é o Fama. Passava na Manchete. [...].

Acontecia numa escola de arte, em Nova York. [...]. Quando não aguento mais meus

alunos e as escolas onde trabalho, sonho com aquela... Com as aulas que daria lá.

Com alunos criativos e cheios de energia. Com colegas interessantes e preocupados.

Será que eu daria conta? Provavelmente também não. Mas sonho é sonho.

(ABRAMOVICH, 1990, p. 14)

Ao comparar a escola do seriado com as instituições da sua realidade, o sujeito-

professor desse discurso constrói uma imagem da escola como espaço das impossibilidades de

prazer, isto é, ser um professor plenamente satisfeito com o exercício de sua profissão, dá-se

como uma impossibilidade, mas alimenta-se o desejo irrealizável de mudar a escola,

inovando-a conforme ela é apresentada na mídia. Sinalizando uma formação discursiva

inovadora e também midiática, visto que coloca a escola apresentada na mídia como padrão, o

que é ressaltado também pelo fato de ser uma escola de Nova York, perpetuando assim a

ideologia de superioridade norte-americana.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 654

Entretanto, observamos que ao passo que o sujeito almeja a inovação da escola,

demonstra um conformismo com a degradante situação real do seu trabalho, discurso

vinculado à impressão de que uma escola melhor implica em maior quantidade de trabalho, ao

qual o professor não daria conta, instaurando assim uma imagem de professor conformado

com os problemas que circundam sua realidade de trabalho, deixando a escola em que

desejaria trabalhar apenas na instância do sonho. O sujeito do discurso reconhece a

necessidade de mudar enquanto professor, o que é abordado em outro recorte textual:

[RT2] Nestes treze anos que dou aulas não sei o que piorou mais. Se os alunos, a

direção da escola, os salários os professores... Há coisas que se faz tão

automaticamente que, quando se presta atenção nelas, o susto é enorme. Um

espanto! (ABRAMOVICH, 1990, p. 15)

Apresenta-se neste excerto um discurso marcado pela falta (BERTOLDO, 2007), pois

assume que há falta de diversos elementos, que acarretam o fracasso da educação brasileira

hoje. Estes elementos estão tão imbricados que não é possível distinguir o nível de

desqualificação entre eles quando comparados ao que se via no passado.

Ressaltamos ainda que neste excerto soma-se à identidade do professor, o ser alguém

cujo senso autocrítico foi deteriorado pelo automatismo que se impregnou no exercício da

profissão ao longo dos anos, de maneira que quando o professor ainda reflete sobre sua

prática de ensino, assusta-se com os problemas que se apresentam, sendo estes apontados na

obra também pelos alunos:

[RT3] A garota dizia: “Vocês, professores, são muito engraçados. Cobram

responsabilidade da gente, mas não têm nenhuma. Qualé? Exigem que estude, mas

sem caderno, como é que posso?” Concordei. Apoiei. Se animou. Continuou. “E não

é só isso, não. Vocês querem que a gente pesquise, estude, crie coisas novas. Mas

vocês não estudam, estão sempre repetindo as mesmas atividades, os mesmos

exercícios, até as mesmas piadas. [...]. Pigarreei. Tossi. Olhei o relógio. Me mandei.

Caminhando e pensando. Se os alunos estão tão desinteressados, tão rebeldes, tão

decepcionados com a escola, com o ensino, têm razão. Toda razão.

(ABRAMOVICH, 1990, p. 21)

Ao utilizar um aluno para fazer tal acusação dos professores, e vendo o que esta

atitude gerou na professora; uma mescla de surpresa, vergonha e novas reflexões, delineamos

outro aspecto da identidade docente que é confrontado pelo discurso da obra em análise, que é

a assimilação do olhar para o aluno com inferioridade, como indivíduo acrítico, indiferente às

deficiências do professor. Com isso, vemos que outra marca discursiva presente na obra é se

contrapor a superioridade do sujeito professor em sua relação com o aluno, evocando uma

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 655

formação discursiva de igualdade, uma visão democrática de escola, na qual todos devem ser

ouvidos. Deste modo, a identidade do sujeito-professor pauta-se em ser acessível aos alunos,

inclusive no que concerne às críticas feitas por estes.

Neste excerto, observa-se mais uma vez um discurso negativo da imagem do

professor, apontando que outro traço identificatório seu é a estagnação intelectual, isto é, o

descaso com a necessidade de se atualizar com as novas demandas de conhecimento,

reverberando a imagem do sujeito-professor como indiferente a sua qualificação profissional,

ou seja, ele não muda em função de seus alunos e de suas responsabilidades enquanto

educador, mas podem ocorrer mudanças por outras motivações:

[RT4] Há alguns anos, na sala dos professores, sempre se discutia alguma coisa da

educação. [...] Depois, veio um tempo em que só se discutia o salário baixo, a

exploração, [...]. Hoje encostei na janela. [...] Os professores-homens só falavam de

futebol e contavam piadas... As mulheres discutiam os preços do supermercado, da

feira, [...]. Só isso. Claro que eu também vivo isso. Mas ficar numas de portaria de

prédio ou entrada de quitanda, sem chegar perto do assunto alunos-aulas-cursos, é

um pouco esquisito. Bem esquisito. (ABRAMOVICH, 1990, p. 16)

Vemos que o professor passou por um processo de metamorfose ao longo dos anos,

que rumaram em um processo de descaso com a educação, e que teve como motivação central

a questão salarial, o que nos permite identificar a formação discursiva econômica, dada a

atribuição da quantia do salário à valorização da profissão docente, categorizada como algo

sem valor, o que acarreta a apatia deste profissional, que não discute mais nada vinculado ao

seu trabalho.

O professor tornou-se, portanto, um profissional desgastado e cansado, que desistiu de

se impor e de lutar por sua profissão e por seus direitos, outro aspecto da identidade desse

sujeito:

[RT5] Hoje, quando me espanto com quem dá e como se dá aulas, me pergunto se

vale a pena continuar neste meu ofício. Que virou tão cansativo, tão desgastante, tão

levado de qualquer jeito... Não seria melhor mudar de profissão? Trabalhar ao lado

de gente séria num trabalho sério?? E sendo levada mais a sério?? (ABRAMOVICH,

1990, p. 21-22)

Para o sujeito, desistir de ser professor, escolhendo outra profissão, outra identidade, parece

ser a melhor opção para solucionar os males deste trabalho, entre os quais o salário é

considerado como um dos mais graves. Essa questão salarial define outras marcas da imagem

do professor e, por conseguinte, da sua identidade:

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 656

[RT6] Disse que eu era muito simpática, o apartamento jeitoso, mas que para

professora ela não trabalhava. Não recebiam o bastante pra pagá-la.

(ABRAMOVICH, 1990, p. 26)

[RT7] “Como é que pode? O que esta menina pretende da vida? Ser professora?

Morrer na miséria, depois de se matar por anos?”(ABRAMOVICH, 1990, p. 89)

A imagem do professor é a do profissional cujo salário é extremamente baixo. O

sujeito-professor é identificado como alguém de pouco valor, pois está condicionado a uma

vida com poucos recursos. Este discurso evoca algumas concepções mercadológicas pautadas

no ideário capitalista, uma vez que a qualificação do cargo de professor pelo valor do seu

salário, implica em tratar o sujeito como uma mercadoria (BAUMAN, 2008). De forma que

os baixos salários do professor o enquadram como uma mercadoria sem qualidade.

Observamos este aspecto ainda em outro excerto:

[RT8] Antes, perigoso era ser atriz. Hoje, professora... Que mundo !! (ABRAMOVICH, 1990, p. 89)

O discurso mercadológico da educação fortalece-se ainda mais com a competição, que,

sendo uma marca capitalista, característica da contemporaneidade, ecoa também em outras

sequências discursivas:

[RT9] Não deu dez minutos pra perceber que a idéia da diretora era outra. Bem

outra. [...] Não quis ouvir sobre a alegria dos alunos nos treinos, a participação

frenética da torcida, a introdução de novos esportes. Insistia que perderam a

competição. E isso a chateava [...]. Competição como valor educacional. Fim da

picada. Muita confusão na linha e nos trilhos desse trem. (ABRAMOVICH, 1990, p.

22-23)

[RT10] Que o nível de uma escola é dado pelo índice de aprovação dos seus alunos

no vestibular. (ABRAMOVICH, 1990, p. 23)

Nestes excertos, veicula-se uma crítica ao discurso de ensino como estratégia de

mercado, de competição. Não importam o processo de ensino e aprendizagem, a experiência

vivenciada pelo alunos e professores, o foco está nos resultados, nos números, no mérito,

advindo por conquistar os primeiros lugares entre as escolas. Essa concepção de educação

repercute na identidade do sujeito-professor com a formação discursiva da economia,

findando o princípio da competição em sua prática educativa, o que se traduz em exigências

do cumprimento de currículos, especialmente nas séries do ensino médio.

Destacamos ainda que nesse excerto, denuncia-se a manipulação do professor pelos

seus superiores no ambiente escolar, de modo que o sujeito-professor vê-se limitado pelos

diretores e supervisores da escola e as concepções de educação subjacentes às suas ordens.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 657

Considerações Finais

O estudo apresentado neste artigo, teve como pergunta central: “quais as implicações

que o discurso sobre o ensino presente na obra Que raio de professora sou eu?, traz para a

identidade do professor?”. No tocante a esta pergunta, elencamos como respostas, a percepção

de que o discurso sobre o ensino afeito às disputas mercadológicas é criticado na obra, de

modo que, o professor apresenta-se como instrumento de efetivação deste discurso, uma vez

que sua prática de ensino deve obedecer às exigências do mercado.

Entretanto, apesar de ver-se envolto nessa esfera ideológica, e reconhecer a

necessidade de transformar o quadro da educação brasileira, o sujeito-professor demonstra ser

incapaz de se sobrepor a esses princípios que permeiam o cenário escolar, devido à

supremacia das autoridades da escola e de suas próprias deficiências, uma vez que o discurso

docente é marcado pela falta, inclusive de motivação própria para confrontar os percalços que

acompanham a compleição de ser um professor na contemporaneidade.

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Que raio de professora sou eu?. São Paulo: Scipione, 1990.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio

de Janeiro: Zahar, 2008. Tradução de Carlos Alberto Medeiros.

BERTOLDO, E. S. Políticas de formação de professores de língua e seu impacto no sujeito-

professor. In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. Análise do discurso no Brasil: mapeando

conceitos, confrontando limites. São Carlos: Clara Luz, 2007, p. 123-134.

DANTAS, A. M. Sobressaltos do Discurso: algumas aproximações da análise do discurso.

Campina Grande: EDUFCG, 2007.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

Tradução de Luís Felipe Baeta Neves.

INDURSKY, F. A fragmentação do sujeito em análise do discurso. In: INDURSKY, F.;

CAMPOS, M.C. (Orgs.). Discurso, memória, identidade. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 2000,

p. 70-81.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:

Editora da Unicamp, 1988. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et al.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 658

______. Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise; HAK, Tony. Por uma

análise automática do discurso. Campinas: EdUnicamp, 1990. p. 61-162. Tradução de

Bethania S. Mariani et al.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 659

DE SELFIE A MINICONTO MULTIMODAL: ENSINO DE

GÊNERO DIGITAL EM SALA DE AULA [Voltar para Sumário]

Dorinaldo dos Santos Nascimento (UFS)

Vanusia Maria dos Santos Oliveira (UFS)

1 Introdução

Demandas sociais exigem que o sujeito domine as tecnologias da leitura e da escrita e

as utilize adequadamente nas situações comunicativas das quais faz parte. Isso fica evidente,

por exemplo, no fato de que o domínio dessas habilidades “são competências essenciais para a

maioria das atividades profissionais no mundo contemporâneo” (OLIVEIRA, 2010, p. 11).

Por outro lado, na escola, é preciso rigor na sistematização e no planejamento das atividades

de leitura e escrita. Devemos enquanto professores levar em consideração os elementos

cognitivos relacionados aos conhecimentos linguísticos e enciclopédicos dos alunos no

planejamento e na condução das aulas de leitura (Ibidem, p. 71).

Nessa linha de raciocínio, as práticas de escrita e reescrita ocorrem sob procedimentos

dialógicos e interativos, Suassuna apud Elias (2013) e Soares (2009), cujo papel do professor

é o de mediador da aprendizagem. Quanto à leitura, como se pode perceber, a mediação

ocorre baseada nos aspectos cognitivos e metacognitivos da linguagem (LEFFA, 1996). Para

além disso, nossos alunos estão cada vez mais envoltos em leituras que exigem deles a

compreensão de textos com amálgamas da linguagem verbal e não verbal, por conta disso,

conciliar leitura, escrita e multissemiose, Rojo (2012) e Marcuschi e Xavier (2010), é o que

propomos neste artigo em que apresentamos uma sequência de atividades voltada ao

estudo/produção de texto e hipertexto.

Além dos já citados, embasam nossa produção os estudos de Bakhtin (2003) e Dias et

al (2012) dentre outros. Inicialmente relacionaremos os fundamentos teóricos que integram a

proposta; a seguir, apresentaremos a sequência de atividades elaborada a partir dos

pressupostos apresentados e, por fim, analisaremos um objeto educacional construído nesta

perspectiva.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 660

2 Leitura, escrita, multissemiose e miniconto: pressupostos para a proposição da

atividade

Para Leffa (1996), além das atividades de leitura desenvolverem os aspectos

cognitivos, o professor deve proporcionar também o desenvolvimento da metacognição -

tomada de consciência do processo leitor por parte dos alunos. Enquanto na cognição o aluno

tem consciência do resultado do ato de ler, na metacognição ele tem consciência do processo

do ato de ler. No âmbito metacognitivo, cabe ao docente, por meio de atividades específicas,

exercitar com os alunos-leitores estratégias de reparo para melhorar o desempenho na leitura,

pois “uma das características fundamentais do processo da leitura é a capacidade que o leitor

possui de avaliar a qualidade da própria compreensão” (Ibidem, p. 45).

Além disso, para promovermos atividades em sala de aula que favoreçam práticas de

leitura efetivas, podemos nos valer das contribuições de Leffa (1996) acerca da definição e do

processo de leitura. Para o autor, ler pode ser entendido como extrair o significado do texto,

atribuir o significado ao texto e interagir com o texto. E essas definições colocam em cena o

leitor e o texto numa dinâmica interativa, que viabiliza a leitura como via de mão dupla. Em

tempo o leitor extrai as informações do texto, ele contribui com suas experiências, acionando

um processo de interação e, assim, compreendendo o texto de maneira mais efetiva. Segundo

ele:

A complexidade do processo da leitura não permite que se fixe em apenas um dos

polos, com exclusão do outro. Na verdade, não basta nem mesmo somar

contribuições do leitor e do texto. É preciso considerar também um terceiro

elemento: o que acontece quando leitor e texto se encontram. Para compreender o

ato da leitura temos que considerar então: a) o papel do leitor, b) o papel do texto e

c) o processo de interação entre o leitor e o texto (Ibidem, p. 17).

No que concerne à escrita, Elias (2013, p. 160) afirma que “demanda da parte de quem

escreve (e também da parte de quem lê) a utilização de muitas estratégias”, uma vez que

vários conhecimentos são desencadeados para que a interação escritor/leitor ocorra com

eficácia. Por conta disso, optamos por mediar execução das atividades conforme as

orientações de Soares (2009) e Suassuna (2011). A primeira apresenta-nos uma proposta de

avaliação baseada em feedback. Este é o retorno dado ao aluno/autor acerca de sua produção.

Segundo a autora, a motivação e o auxílio para que o estudante consiga avançar em seu

processo de escrita ocorrerá “se o feedback realmente fornecer informações que capacitem o

aprendiz a identificar os aspectos do seu desempenho que são aceitáveis e passíveis de

melhoria por algum meio específico” (SOARES, 2009, p. 51). A autora salienta que o

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 661

feedback pode vir do professor e/ou do colega. A segunda destaca que o professor “mais do

que identificador de problemas textuais, é um propiciador e facilitador da reflexão, na medida

em que permite que o redator (aluno) seja exposto à interpretação do outro” (SUASSUNA,

2011, p. 120), ou seja, o diálogo e a interação com o outro no processo de construção, bem

como no de refacção textual, oportuniza êxito ao material que se pretende produzir.

Para além disso, almejamos aliar a cultura digital à prática educativa escolar ao

trabalhar gêneros textuais/discursivos Bakhtin (2003), uma vez que, parte do fascínio pela

tecnologia digital é decorrente do “fato de reunir em um só meio várias formas de expressão,

tais como texto, som e imagem, o que lhe dá maleabilidade para a incorporação simultânea de

múltiplas semioses” (MARCUSCHI, 2010, p. 16), ou seja, o trabalho com múltiplas semioses

é um elemento motivador da aquisição de conhecimento.

Dessa forma, considerando o processo ensino-aprendizagem de leitura e de escrita

textuais voltado para a concepção sociointeracionista da língua e a internet como um rico

material de apoio para o suporte multissemiótico, propomos, neste artigo, uma sequência

didática concernente à leitura/escrita do gênero miniconto multimodal a partir de fotografia

em formato selfie. Considerando a série alvo desta proposição (9º ano) e presumindo o

interesse aderente ao cotidiano dos alunos, desenvolvemos situações didáticas atreladas ao

selfie no intuito de mobilizar a atenção do aluno-leitor para a discussão e entendimento

críticos de temática ligada à expansão do espaço virtual na “vida real”.

Acreditamos que os alunos necessitem refletir sobre o fato de que, por trás de uma

prática aparentemente sem tanta relevância, subjazem questões importantes vinculadas ao

narcisismo e à autoafirmação atrelada ao autoengano camuflado. Exemplificável nos sorrisos

fingidos, belezas cirúrgicas, poses forçadas que ganham espaço crescente em exposições

reiteradas nas redes sociais, ocultando uma face negativa nas relações humanas constatável

nos contatos vagos, relacionamentos vazios, culto à superficialidade. Em virtude disso,

propomos a exploração do selfie numa perspectiva de aproveitamento educativo salutar ao

processo de ensino aprendizagem, também vinculada ao letramento digital1 (SOARES, 2002).

De acordo com Spaldind (1998), há uma tradição latino-americana profícua em torno

da produção minicontística. Em mapeamento conciso do gênero, o guatemalense, Augusto de

Monterroso, com a publicação nos anos sessenta do século passado do miniconto “O

dinossauro”, é tido como precursor do gênero. Nas letras nacionais brasileiras, Dalton

1Amalgamado às novas tecnologias da informação e comunicação, o letramento digital surge configurado como

decorrência das mudanças cognitivas e discursivas que a prática da leitura e escrita na tela demanda (SOARES,

2002, 151).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 662

Trevisan representa a ficção curta minimalista. O livro “Ah, é?” (1994) é considerado a

referência germinal do miniconto contemporâneo no Brasil. Também merece menção em

nosso país, o livro organizado por Marcelino Freire, “Os cem menores contos brasileiros do

século” (2004), cujas narrativas atingem no máximo cinquenta letras.

Do ponto de vista estrutural, é um desafio para o ficcionista fabular o miniconto, uma

vez que ele necessita produzir uma narrativa com todas as suas propriedades inerentes

restando-lhe uma reduzidíssima quantidade de letras. Sendo exemplar os minicontos

unifrásicos, narrativas marcadas pela extrema concisão. Por outro lado, isso só é viável “desde

que haja um mínimo de determinação no texto para que o leitor consiga preencher as zonas

indeterminadas; estarão preservados a intensidade, a tensão e o efeito, operando tais textos

como “bombas nucleares” que explodem após o ato da leitura” (SPALDING, 2008, p. 5). Em

virtude disso, o miniconto mobiliza um leitor protagonista em interação muito ativa com o

texto no sentido de ser (co)autor da narrativa e preencher os espaços “vazios” da história.

Esse tipo de narrativa insere a literatura em diálogo com a estética minimalista,

emergida no contexto nos anos sessenta do século passado. O minimalismo opera quando há

uma redução no número de elementos no sentido de produzir efeito artístico máximo

(SPALDING, 2008). Por isso, que um dos escritores do gênero afirma que “O miniconto,

como qualquer ficção curta, tem de pegar o leitor de cara, com recursos expressivos capazes

de interessá-los a seguir o desenvolvimento da história até chegar a uma reviravolta que

provocará a surpresa e que geralmente é o objetivo do escritor” (HERGESEL apud DIAS et

al, 2012, p. 80).

Na contemporaneidade, tendo em vista os meios tecnológicos digitais, o gênero

miniconto tem circulado em redes sociais e blogs, por exemplo. Assim, essas narrativas são

ressignificadas considerando a fluidez e rapidez com que se propagam nos meios digitais.

Acresce que tais ficções curtas, símbolos de uma “estética da brevidade” “interpelam

movimentos de leitura diferenciados, mais fluidos, dinâmicos e que requerem letramentos

diferenciados de seus interlocutores” (DIAS et al, 2012, p. 81). Nesse contexto, surge o

miniconto multimodal, narrativa ficcional curta, marcada pela extrema concisão, em que no

mesmo plano composicional multissemiótico coexistem de modo imbricado a palavra escrita,

a imagem, o movimento, as cores e os sons.

3 De semiose a semioses: proposição da sequência de atividades

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 663

Concretizamos o objeto de aprendizagem miniconto multimodal para/por alunos do 9º

ano do ensino fundamental como demanda de disciplina de mestrado2, bem como pelo fato de

que o livro didático de língua portuguesa que adotamos na série mencionada (“Português:

Linguagens”, Cereja e Magalhães, 2012), explora os gêneros conto, e miniconto

incipientemente, em três unidades de trabalho. Decorrente disso, objetivamos, também,

sugerir, de modo a complementar o livro didático no tangente aos gêneros supracitados, uma

proposição na perspectiva multissemiótica, considerando que o LD não contempla tal

abordagem. Propomos a efetivação do miniconto multimodal em duas etapas: na primeira,

como um trabalho de instrumentalização do aluno acerca do conceito e propriedades

essenciais do gênero miniconto em contraste ao conto; e posteriormente, em segundo

momento, com encaminhamentos didáticos em direção à construção do miniconto multimodal

pelos alunos.

Diante disso, na primeira etapa, partimos da leitura e interpretação do conto “A

cabeça”, de Luiz Vilela, seguidas pelo miniconto “Uma vela para Dario”, de Dalton Trevisan.

No âmbito da exploração das relações dialógicas evidenciamos que há entre as duas narrativas

selecionadas a intersecção do eixo temático. Têm-se histórias que abordam a brutalidade e

suas nuances no espaço público e urbano.

Em perspectiva colaborativa com os alunos fizemos a análise do conto “A cabeça” via

discussão dos pontos de vista, posicionamentos explícitos e subjacentes a partir das falas das

personagens, considerando o predomínio do discurso direto na narrativa, quase que

inteiramente dialogada. Desvelamos a voz do narrador como um sujeito do discurso narrativo

que recorta uma situação dramática em tom prosaico e nos apresenta o evento da trama como

“natural”, quase um recorte jornalístico “impessoal”.

Posteriormente, observamos no miniconto “Uma vela para Dario” a hegemonia do

discurso indireto. Ao ser priorizado esse tipo de discurso citado, concluímos que as falas dos

personagens em discurso indireto aproximam a voz do narrador à das personagens. A única

fala em discurso direto é a que anuncia a morte do anônimo transeunte, levando-nos a

conceber a proeminência dessa fala no conjunto da história. Diante da falta de solidariedade,

indiferença, egoísmo, oportunismo dos personagens (roubo de pertences de Dario enquanto

este agoniza), o discurso direto funciona como um “grito”, que ressoa no anonimato

esmagador urbano, anunciando a morte do personagem.

2Proposição lançada na disciplina Gêneros Discursivos/Textuais e Práticas Sociais, ministrada pela prof.ª Dr.ª

Izabel Cristina Michelan de Azevedo, no PROFLETRAS, Mestrado Profissional em Letras (UFS), no ano letivo

2014.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 664

Concomitante ao trabalho de leitura e interpretação das ficções curtas, explicitamos

para os alunos explicações convergentes e divergentes a respeito das características estruturais

dos gêneros conto e miniconto. De forma que o aluno compreendesse que ambos são

narrativas curtas, cujo modo de narrar é marcado pela brevidade (intencionalidade de ser

breve), geralmente, apresenta poucos personagens, poucas ações, tempo e espaço reduzidos.

Passíveis de leitura de única assentada, tendem na contemporaneidade a romperem a

convencional construção com introdução, desenvolvimento, clímax e desenlace. Acrescendo

que em contraste ao conto, o miniconto, conforme já explicitamos na seção anterior, eleva ao

limite máximo a capacidade de narrar uma história em espaço tão exíguo.

Na segunda etapa, encaminhamos a produção de minicontos multimodais a partir da

semiose fotografia, mais especificamente, fotos em formato selfie. Por duas razões: a primeira

referente à mobilização da atenção e envolvimento do público-alvo, usuários de tais

“autorretratos” contemporâneos disseminados em redes sociais. A outra motivação sustenta-se

em uma teoria do conto em que é possível fazermos analogia entre a “técnica” de estruturação

do conto e a “técnica” fotográfica (CORTÁZAR, 1974, p. 71). Considerando que fotógrafos e

contistas, ambos, necessariamente, exercem a arte do recorte de situações, precisam limitar o

olhar, pousá-lo numa parte do todo, selecionar situações significativas que apesar de serem

um recorte, guardam profundas significações, capazes de causar ressonâncias à sensibilidade

do espectador-leitor. Fotógrafo e contista compartilham a estética do recorte que traz em si a

transcendência (MOISÉS, 2006, p. 52).

Anterior ao trabalho com as fotografias (selfies), realizamos uma situação didática

contextualizadora, explorando em slides telas de artistas famosos com seus autorretratos, bem

como as narrativas historiográficas acerca dos artistas e de suas respectivas telas a fim de que

os alunos percebessem que no âmbito da arte há amostras do desejo humano de autoimagem,

considerando que essas autoimagens guardam e reverberam histórias. É razoável conceber

que não há similaridade enquanto valor artístico que possa aproximar telas e selfies, há a

intencionalidade especular, ver-se, ter uma imagem de si.

Posteriormente, os alunos foram orientados a “produzirem” uma foto em formato

selfie. Estabelecemos que a foto necessariamente teria que agregar elementos para produção

de uma narrativa ficcional; o miniconto multimodal seria produzido a partir da foto. Logo, a

selfie evidenciaria um contexto para fabulação de enredo com o(s) fotografado(s) em um lugar

(cenário), ou seja, um fundo locacional que evocasse uma cena, algum núcleo dramático

constituinte para uma história. Evidenciamos para os alunos que nossa proposição de trabalho

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 665

seria efetivada em caráter de intercâmbio interescolar3 de modo que eles produziriam o

miniconto multimodal a partir de selfies de discentes de outra escola. Implementamos essa

proposta valendo-nos da rede social WhatsApp, com a criação de grupo virtual para que

possibilitasse a interação e aproximação entre os envolvidos, inclusive os professores, os

quais davam orientações pelo aplicativo a respeito da feitura das selfies no tangente às

adequações/inadequações para o propósito lançado.

Após essa fase, fizemos conjuntamente a seleção de quatro fotografias, as quais foram

distribuídas a grupos de cada turma nas duas escolas mencionadas. A proposta de miniconto

multimodal foi planejada como uma atividade pedagógica coletiva, haja visto a necessidade

de compartilhamento e negociação de ideias em trabalho com múltiplas semioses, bem como

envolver ferramenta digital para sua realização (conforme veremos adiante).

Para que os alunos tivessem algum parâmetro, posto tratar-se de uma produção nova

para eles, exibimos um miniconto multimodal em vídeo4. Faz-se necessário, nesse momento,

evidenciar para os alunos aspectos como: sons de músicas que se hibridizam às imagens; ao

enquadramento das imagens; as cores que compõem os quadrantes; à escolha das cenas; à

ordem das cenas (DIAS et al, apud ROJO & MOURA , 2012, p. 88). Depois de assistirem ao

miniconto multimodal em vídeo e termos feito análise de suas condições de produção e

configuração, os alunos partiram para produção da narrativa a partir da selfie. Ressaltamos a

relevância de que o texto narrativo precisa de reescritas, revisões até que se chegue a uma

versão final do texto escrito. Juntamente com a fotografia, os alunos foram orientados a

selecionarem outras imagens, ilustrações, músicas, áudios que auxiliassem na composição do

miniconto multimodal:

[...] dimensão em que tanto a linguagem verbal como a visual desempenham papel

na produção de sentidos, de efeitos de sentido, não podendo ser separadas, sob pena

de amputarmos uma parte do plano de expressão e, consequentemente, a

compreensão das formas de produção de sentido desse enunciado, uma vez que ele

se dá a ver/ler, simultaneamente (BRAIT, 2013, p. 44).

Na sequência, orientamos que as imagens escolhidas deveriam ser transferidas para o

computador e editadas com o programa Movie Maker até chegar-se à versão final do

miniconto multimodal. Para instrumentalizar a utilização mais adequada da ferramenta Movie

Maker, apresentamos um tutorial5 afim de que a ferramenta fosse potencialmente melhor

3Envolvendo uma turma de 9º ano de duas escolas de estados diferentes, o Centro Educacional Edval Calasans

(CEEC), no município baiano de Banzaê e o Colégio Estadual Ministro Petrônio Portela, em Aracaju (SE).

Considerando que os proponentes residem em cada um dos estados. 4Disponível em: www.youtube.com/watch?v=hJ4RJ2UwU0s. Acesso em 24/10/2014. 5Seguimos a orientação de tutorial de DIAS et al (2012, p. 90-91).

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 666

explorada pelos alunos. Salientamos, como atividade final desse percurso metodológico, a

realização de uma “Mostra de minicontos multimodais” a fim de que os alunos compreendam

concreta e efetivamente que a realização do gênero implica produção, circulação e recepção.

4 “Reencontro”: a concretização da proposta

Analisaremos, neste tópico, o miniconto multimodal “Reencontro”.6 Este texto foi

produzido, conforme orientações da proposição aqui apresentada, por alunos do Colégio

Estadual Ministro Petrônio Portela num intercâmbio entre turmas da Instituição. Observemos

como a linguagem que “é uma das faculdades cognitivas flexíveis e plásticas adaptáveis às

mudanças comportamentais e a responsável pela disseminação das constantes transformações

sociais, políticas, culturais” (MARCUSCHI & XAVIER, 2010, p. 11) foi aqui empregada

para a composição do texto multissemiótico.

O miniconto multimodal teve como base para o início da produção a semiose

imagem estática selfie. Atentemos para fato de que a imagem a seguir oportuniza a escrita de

um texto com temática em torno de viagem por conta do local, aeroporto, bem como das

malas presentes na composição do autorretrato, tirado pelo Smartphone, enviado por uma

aluna do 9º B.

Figura 1: selfies produzidas por aluna.

Duas alunas do 9º A compuseram o seguinte miniconto, a partir da selfie analisada.

Reencontro

Ao olhar da parte superior à área de embarque, vejo que consegui realizar

meu sonho que é viajar de avião.

- John!? Não acredito, você por aqui?

Olhares e lembranças vieram à tona.

Por que agora?

6Texto multimodal digital produzido sob orientação dos autores deste artigo e da prof.ª Dr.ª Izabel Cristina

Michelan de Azevedo e discutido no colóquio “Novos modos de inscrição do sujeito em selfie e miniconto

multimodal: o trabalho com a heterogeneidade discursiva em sala de aula” do I Ciclo de Estudos Bakhtinianos

(UFS) do qual os autores deste texto participaram ao lado do prof. Dr. Eduardo Lopes Piris em 18/11/2014.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 667

Temos uma curta narrativa literária com seus elementos estruturais: foco narrativo em

primeira pessoa; personagens, a narradora-personagem e John; espaço, aeroporto; tempo,

breve, o de um rápido reencontro; clímax, momento das lembranças e o desfecho com uma

indagação que pode ser tanto da narradora-personagem quanto do personagem John, ou,

mesmo, de um narrador-observador, e que indicia uma possível história de amor interrompida.

No terceiro momento da produção, um aluno do 2º B somou-se às alunas do 9º A para

que o uso “de áudio, vídeo, tratamento da imagem, edição e diagramação” (ROJO apud ROJO

& MOURA, 2012, p. 21) viabilizasse a retextualização do miniconto para o miniconto

multimodal. Além de encontros presenciais, o aplicativo WhatsApp oportunizou a mediação

entre os integrantes da equipe e os orientadores da atividade.

A ferramenta Movie Maker possibilitou o entrelaçamento de semioses fotografia,

imagens, palavras, sons e movimentos em construções cirurgicamente recortadas, por conta

do minimalismo pertinente ao gênero em produção. Após pesquisas na internet, no texto, os

selfies (fotografias) e o miniconto aparecem amalgamados a imagens que remetem ao

contexto de viagem, aeroporto; lugares cuja visita seria concretização de sonho na idealização

que os autores colocam sob a perspectiva da narradora-personagem; reencontro; recordações e

reflexão. Tais imagens se alternam (movimento) tendo como pano de fundo, inicialmente, um

silêncio que logo é interrompido por alguns sons: o de muitas pessoas em um determinado

ambiente; o de um toque que deixa a entrever um suspense; a seguir, um que remete a algo

romântico e por fim, o de um avião decolando.

E eis que, de selfie a miniconto multimodal, ocorreu o ensino de gênero digital em

sala de aula, cabendo, neste momento, ao leitor-espectador do miniconto multimodal

preencher os vazios da trama sem desprender-se do núcleo dramático da história.

Considerações finais

Leitura, escrita, Smartphone, WhatsApp, Movie Maker, a produção do miniconto

multimodal “Reencontro” comprova que prática educativa com gênero digital não exclui

atividades de leitura e escrita, muito pelo contrário, motiva o aluno, pois, ao conciliar práticas

escolares, multimodalidade e hipertexto, o aluno atribui significado à sua produção e percebe

que a escola não é um espaço que está aquém do que ele vivencia cotidianamente, nem o que

ele vivencia está distante das práticas escolares.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 668

Além disso, o estudante aprende analisar criticamente textos em vídeo, observando

que a base para a construção do sentido está na hibidização de seus elementos (LEMKE apud

ROJO, 2014).

Tencionamos, dessa forma, colaborar não apenas com a pesquisa de outros

educadores, mas também com estudantes de áreas afins, que almejem desenvolver atividades

relacionando hipertexto, gêneros digitais e ensino.

Referências

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verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 670

LACUNAS E DISTORÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO “OFICINA

DE ESCRITORES” [Voltar para Sumário]

Edilaine P. de Sousa (UPE)

Magna Kelly Sales (UPE)

1. Introdução

A comunicação escrita se constitui a partir do contato com os bipares. É por meio de

aspectos dialógicos que o indivíduo vai se apropriando da escrita. Neste sentido, a partir dos

materiais didáticos, os alunos dialogam com diversos autores por meio de textos e este contato

é importante para a comunicação discente, principalmente por entender que as instituições de

ensino ainda constituem uma das principais agências de letramento dos sujeitos.

Contudo, todos os anos são lançados manuais que, devido as ilustrações,

aparentemente parecem conferir um tratamento singular para a escrita. Ledo engano! Tais

coleções apresentam algumas lacunas e distorções de base metodológica e teórica, havendo

muitas vezes um distanciamento entre as orientações dedicadas aos professores e as atividades

propostas nas sequências didáticas.

É óbvio que raramente haverá livros didáticos isentos de lacunas e estas evidentemente

podem ser preenchidas pelos docentes em suas práticas de escrita com os alunos. Mas, não se

pode conceber que materiais com distorções teóricas graves sejam disseminados pelo país,

pois as concepções que norteiam tais práticas não podem ser destoantes das atividades

propostas sob pena de que tais matérias não contribuam para a escrita eficaz dos discentes.

Sabe-se que os estudos contemporâneos versam sobre as propostas de produção

textual emergirem de situações sociais comunicativas. Bazerman (2011) trata do estudo de

gênero afirmando que este não pode divorciar-se da ação social da qual emerge. Assim, as

propostas inseridas nos materiais precisam fazer sentido para os alunos de modo que se

sintam motivados a comunicarem-se das mais diversas formas. Acerca disso, Bazerman

(2011) ainda destaca que “a escrita fornece os meios pelos quais alcançamos outros através do

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 671

tempo e do espaço, para compartilhar nossos pensamentos, para interagir e para cooperar”

(BAZERMAN, 2011, p.11).

Portanto, o presente artigo se propôs a analisar um exemplar do livro didático do 9°

ano visando apontar as fragilidades concernente a aspectos teóricos e práticos. Para isso, fez-

se discussões relacionadas à organização sequencial, temáticas e gêneros selecionados

seguidos de possibilidades do trabalho com narrativas ancoradas em estudos de Bazerman

(2011), Maingueneau (2012) que tratam de concepções de gênero, bem como de sequências

didáticas pautados em Schneuwly e Dolz (2004).

2. Análise descritiva do livro

O Livro Didático (LD) “Oficina de Escritores”, para o 9º ano, de Hermínio Sargentim,

foi lançado em 2012 publicado pela editora IBEP. Apresenta uma proposta relacionada à

produção de texto cujos eixos básicos da Língua Portuguesa são: (leitura, oralidade, análise

linguística e produção de textos). A figura 1 contendo a capa indica o público heterogêneo

infanto-juvenil a quem é direcionado o volume, mas há distorções concernente ao conteúdo,

modo de abordagem em muitas das atividades propostas.

Figura 1: Capa do livro

Há uma diversidade de gêneros, todavia as propostas de produção nem sempre se

vinculam ao gênero apresentado como motivador da atividade. A metodologia pauta-se por

projetos e sequências didáticas, em tese, direcionada para que os alunos, com o auxílio dos

professores possam desenvolver atividades de produção escrita de modo reflexivo. Contudo,

as sequências didáticas apresentam-se de modo frágil, pois repetidas vezes o gênero proposto

não é discutido, nem tão pouco internalizado pelos alunos. A tabela seguinte apresenta os

gêneros encontrados neste manual didático.

TABELA 1. Seleção de gêneros discursivos

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 672

As principais distorções referem-se as concepções de gêneros que norteiam a

organização destas atividades que aparecem indefinidas. Há menção ao sociointeracionismo

de Vygotsky, mas isso não se constitui na explanação das atividades propostas, além disso, a

perspectiva de Vygotsky volta-se para o universo infantil e a coleção de Sargentim engloba

também o público juvenil. Vygotsky (1998) enfatiza que o indivíduo antes de adentrar no

universo escolar, já está em contato com diferentes textos que circulam nas esferas sociais e

nem sempre são consideradas outras instâncias como cruciais para o desenvolvimento da

escrita.

Diferente do ensino da linguagem falada, no qual a criança pode se desenvolver por

si mesma, o ensino da linguagem escrita depende de um treinamento artificial. Ao

invés de se fundamentar nas necessidades naturalmente desenvolvidas das crianças,

e na sua própria atividade, a escrita lhes é imposta de fora. (VYGOTSKY, 1998, p.

139-140).

Vygotsky (1998) enfoca que a linguagem escrita envolve aspectos cognitivos e

socioculturais. Ele trata do nível de pensamento Real e do Potencial, este último decorrente da

interação com o meio. Cada um destes níveis compõem um só processo. Assim, a distância

entre eles, o autor intitula “Zona de Desenvolvimento Proximal” (VYGOTSKY, 1998, p.111).

É visível que na coleção em análise há uma tentativa de inserir atividades decorrentes da

esfera jornalística e de outras instâncias, levando em conta o sociointeracionismo, mas as

distorções em parte se constituem, porque não há indicação para que se tenham acesso a

leitura direto da fonte. Ao invés disso, o trabalho ocorre por recortes e as análises não

ultrapassam a superfície textual.

Haveria maior interação se as temáticas tratadas tivessem uma relação com a faixa

etária dos adolescentes. Para Maingueneau (2008) “a temática é aquilo de que um discurso

trata em qualquer nível que seja, os termos assumem valores distintos e os enunciadores são

levados a utilizar aqueles que marcam sua posição no campo discursivo” (MANGUENEAU,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 673

2008, p. 81). A partir da identificação da temática, é possível se discutir acerca da relevância

do texto, havendo maior interação com os interlocutores. É necessário que seja instigante para

motivar os discentes produzirem os textos.

Em suma, algumas das propostas não corroboram com o que preceituou Vygotsky

(2001), pois para ele “a escrita constitui um processo psicológico avançado, o seu

desenvolvimento depende essencialmente das situações sociais especificas nas quais o sujeito

participa” (VYGOTSKY, 2001, p.39). Assim, a previsão dos PCNs para o aluno “produzir

textos coerentes, coesos e eficazes” (BRASIL, 1998, p.51) não se institui plenamente com

atividades desta natureza, meramente estruturalistas.

2.2 análise do projeto a – no mundo da ficção

Segundo Sargentim, o Projeto A visa orientar e motivar os alunos a produzirem

diversos textos narrativos. Após isso, realizar concurso literário e publicar um livro. Ele

propõe que ao apresentar o projeto, seja discutida a realização das atividades, definindo cada

uma das etapas que serão vivenciadas: data de apresentação e realização do projeto,

publicações, concursos, etc.

Já na primeira atividade, há uma sequência organizada de modo frágil, contendo uma

citação generalizada: “o homem sempre foi um apaixonado por qualquer tipo de história”.

(SARGENTIM, 2012, p.11”), seguido da proposta de produção de notícia a partir apenas do

título de um conto que não havia se discutido, demonstrando superficialidade quanto às

concepções de gêneros. Os alunos não se familiarizaram com a temática e outras

peculiaridades do conto e foi solicitado que escrevessem uma notícia. Acerca do estudo dos

gêneros, Bazerman (2011) enfoca que:

Podemos chegar a uma compreensão mais profunda de gêneros se os

compreendermos como fenômenos de reconhecimento psicossocial que são parte de

processos de atividades socialmente organizadas. Os gêneros tipificam muitas coisas

além da forma textual. São parte do modo como os seres humanos dão forma às

atividades sociais (BAZERMAN, 2011, P. 32).

Sargentim estimula que o desenvolvimento das sequências seja feito em conjunto, com

a turma e em parceria com os docentes. Estas atividades inicialmente dialogam com

Bazerman (2011), pois para ele o conjunto de gêneros se institui de maneira plausível através

de pessoas que trabalham juntas de uma forma organizada. Contudo, o modo de organização

das sequências, são pouco estimulantes para elaboração do livro da turma que seria mais que

uma atividade escolar, constituiria atividade socialmente organizada contendo formatos de

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 674

textos diferentes produzidos pelos estudantes. O projeto A é “apresentado” aos alunos a partir

da indicação do objetivo, estratégias e encerramento, conforme mostra a imagem abaixo.

Figura 2: Classificação dos elementos da narrativa

Fica evidente que a sequência classificatória tem uma relação direta com estudos de

estruturalistas e não sociointeracionistas conforme explicitado nas orientações para os

professores, a exemplo de estruturalistas como Terra (2014) que trata das narrativas

enfocando que ao esquematizar uma sequência, normalmente se consideram cinco aspectos:

situação inicial, complicação, ações, resolução ou clímax e situação final. O referido autor

indica que em sala de aula deve-se refletir sobre cada elemento de modo separado conforme

citação abaixo, o que demonstra uma perspectiva tradicional e não pautada no

sociointeracionismo. Além disso, sugere que a leitura de textos curtos deve ser para reflexão

de aspectos estruturais como ocorre na coleção de Sargentim.

Bazerman (2011) diz que ao nos engajamos em práticas de leitura e escrita, passamos

por um processo de transformação, pois os “gêneros moldam as intenções, a percepção e o

quadro interpretativo, e, por meio da comunicação por gênero, o indivíduo compreende

melhor o mundo, tornando-se apto a participar com êxito e fazer contribuições individuais

dentro dos espaços discursivos relevantes”. (BAZERMAN, 2011, p. 111-115). Contudo,

observou-se que não houve reflexão sobre as peculiaridades dos gêneros narrativos, sendo

sintetizados como história conforme figura 3.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 675

Figura 3: esquema de alguns elementos das narrativas

É importante ressaltar que a depender do gênero narrativo, há outros elementos

importantes que nem foram mencionados. Maingueneau (2008) tratando da análise de

narrativas enfatiza que tanto “a superfície textual como aspectos interdiscursivos são

relevantes para análise dos gêneros e atividades de escrita” (MAINGUENEAU, 2008, p.18).

Assim, nas SD observadas os elementos que serviram de preparação para a escrita não foram

adequados dentro da perspectiva sociointeracionista.

2.2.1. Descrição das sequências do projeto a

Define-se sequência didática como um “conjunto de atividades escolares organizadas,

de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito”. (SCHNEUWLY, B;

DOLZ, J, 2004, p. 82). Uma sequência visa contribuir para que os discentes se apropriem

melhor de determinado gênero textual, permitindo que se comuniquem de forma adequada.

No material em análise, há seis sequências e em cada uma existe um elemento da narrativa em

evidência, de acordo sintetizado na tabela 2.

TABELA 2: Resumo do conteúdo das Sequências Didáticas

Elemento da narrativa

PERSPECTIVA

TRADICIONALISTA

(ESTRUTURALISMO)

1.1. Fato: matéria-prima da história;

1.2. Foco narrativo: tipos de narradores;

1.3. Ampliação dos fatos: acréscimo dos fatos da narrativa;

1.4. Conflito da personagem: cenas típicas contendo problemas;

1.5. Enredo: sequência cronológica e psicológica;

1.6. Suspense: momento de tensão na narrativa;

2.2.2. Fato: matéria-prima da história

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 676

O primeiro texto motivador inserido foi o conto gaúcho “Festa Acabada” (Simões

Lopes Neto). Este, não foi discutido pelo autor, mas apenas o título considerado base para que

os alunos escrevessem uma notícia acerca desta temática. O gênero “notícia” não havia sido

nem sido inserido na explanação do assunto. Assim, os alunos poderiam não ter familiaridade

com a escrita do gênero, dificultando o desenvolvimento da sequência. Tal inadequação se dá

ainda no campo teórico, pois tal proposta não se vincula ao sociointeracionismo nem a ideia

de SD que requer a preparação do aluno a partir da etapa de conhecimento do gênero.

Na etapa de organização do texto, é apresentado um relato com os fatos do conto,

provavelmente, com o intuito de comparar os modos de contar histórias. Sugere-se que se

construa uma notícia com base nos fatos do conto “Festa Acabada” antes de haver

apropriação do gênero proposto. Em seguida, solicita-se que o aluno crie uma história baseada

em qualquer outra notícia selecionada ao acaso em fontes quaisquer. Assim, mais uma

distorção já que atividades pautadas em sequências didáticas não podem se dar de modo

aleatório, devem ser bem conduzidas.

Em síntese, os direcionamentos indicados contrariam as propostas de SD a partir do

trabalho com gêneros. Nesse sentido, autores como Schneuwly e Dolz (2004) propõem que as

produções textuais sejam feitas a partir de Sequências Didáticas com etapas definidas segundo

citação abaixo:

“Analisar um texto completo ou partes de um texto, comparar textos de um mesmo

gênero, reorganizar partes de um gênero, entre outras atividades, tudo isso é

importante quando se trata de sequência didática. A base da SD deve ser as

dificuldades encontradas pelos alunos na produção inicial, a partir disso, devem-se

escolher atividades que fará com toda a turma e outras apenas com alguns alunos

que tenham mais dificuldades de escrita”. (SCHNEUWLY, B; DOLZ, J, 2004, p.

89;107 - adaptado).

Nesta ótica, a inserção do poema como atividade introdutória poderia ser mais viável

tendo em vista a similaridade com a notícia. Um exemplo seria o texto de Manuel Bandeira,

“Poema Tirado de uma notícia de jornal”, pois este traz uma discussão pertinente acerca dos

efeitos da bebida alcoólica, acidentes ou suicídios em face da bebida, pobreza, miséria, isto é,

temáticas bem comuns veiculadas pela mídia para que os alunos escrevessem uma notícia.

Poema Tirado de uma Notícia de Jornal - Manuel Bandeira

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão

sem número.

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 677

Figura 4: texto motivador para escrita de narrativas

Neste caso, os discentes poderiam produzir textos com uma tipologia predominante,

mas sem excluir a possibilidade de mesclar com outros tipos textuais, havendo uma definição

de qual gênero o discente produzir, podendo ser uma crônica, fábula, conto ou outra narrativa

literária já que o propósito mencionado pelo autor é fazer um concurso literário e publicar o

livro da turma.

Sendo assim, seria interessante discutir gêneros literários e não simplesmente tratar

todos como “história” sem sistematizar alguns conceitos relevantes sobre gêneros, adequando

ao nível de linguagem e conhecimento da turma evidentemente. Trata-se de possibilidades de

reescrita utilizando gêneros diversos, adequando ao universo juvenil que precisa de incentivo

para não apenas ler e analisar narrativas, mas sobretudo se expressar utilizando formatos

distintos.

2.2.3. Foco narrativo

A “essência” do foco narrativo é representada por quatro fotografias que mostram

pontos distintos de um rio, e uma breve explicação para ilustrar esta perspectiva tradicional

em que Sargentim utiliza imagens para estudar o “Foco Narrativo”, refletindo sobre a posição

que os enunciadores assumem, assim como quais as implicações existem pelo fato do discurso

ser narrado em 1° ou 3° pessoa. Assumindo uma perspectiva discursiva, segundo nos indica

Maingueneau (2012) quando se lê de modo reflexivo, há outros aspectos que devem se

sobrepor aos meramente estruturais. Trata-se de analisar o gênero em sua plenitude,

discutindo estratégias utilizadas pelos enunciadores ao produzirem o discurso.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 678

Figura 5: estudo do foco narrativo separado dos demais elementos da narrativa

O “ensino divorciado” de que trata Bazerman (2011) se materializa nestas sequências

organizadas pois há uma revisão com os mesmos elementos: avaliação do leitor, roteiro de

revisão, espaço para reescrita somente a partir de recortes, desconectado das instâncias sociais

dos quais emergiram os textos, apresentando uma abordagem vaga acerca do estudo dos

gêneros.

Reiterando que não se trata de sugerir produções rígidas para os discentes. Por outro

lado, é contraditório organizar um livro em sequências sem ter definido as concepções de

gênero e definido a sequência didática.

2.2.4. Ampliação dos fatos

A introdução do conceito de ampliação dos fatos é feita sem minúcias. O texto motivador é

uma pequena crônica que trata da vibração em uma partida de futebol. A organização do texto

trata de progressividade, simultaneidade, fato e ampliação do fato. Os espaços destinados à

revisão e reescrita, apresentam a mesma estrutura das sequências anteriores e não se ocupa em

direcionar a escrita em um determinado gênero.

Figura 6: crônica que trata da partida de futebol

2.2.5. Conflito da personagem

A sequência inicia com o conto “Encontro com o passado”. Quanto ao conflito, as

explicações estão de o ser/não ser e ter/não ter. Faz menção a protagonista e antagonista, na

busca de apontar como se desenvolvem os conflitos. No direcionamento para a produção de

textos, há duas propostas. É notório que o aluno só terá que “dar conta” de uma. Nesse

espaço, também, não se fala em escrever num determinado gênero, se diz “escreva uma

história...” e “Crie uma personagem...”.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 679

Figura 7: Trecho do Conto “Encontro com o passado de Elsie Elessa”

Tanto a preparação quanto a revisão destacam tópicos já conhecidos e continuam

fugindo das teorias de produção textual a partir dos gêneros na perspectiva

sociointeracionista. Até mesmo os direcionamentos, que no livro aparecem em letras

vermelhas e pequenas ao longo das páginas, oferecidos ao professor não se vinculam aos

estudos de gênero.

2.2.6. Enredo

Assim como em sequências anteriores, há apenas uma introdução construída a partir

de reflexões acerca de sequência cronológica e sequência psicológica. No entanto, a

abordagem é muito sucinta e não apresenta exemplo a partir de textos, aponta-se apenas uma

possibilidade de contexto para exemplificar os dois tipos de sequência. O texto motivador é a

crônica “Minha casta Dulcineia” de Fernando Sabino. No tópico referente à organização do

texto, o autor busca indicar os elementos que compõem o enredo, segundo ele são

apresentação, conflito e desfecho.

Diferente das propostas anteriores, aparece um segundo texto motivador, “O

meucalipto” de Pedro Bandeira. Esse texto aparece para direcionar a organização do texto,

que também difere das outras sequências. O foco da segunda organização do texto é tratar do

enredo psicológico, que a partir da descrição de Sargentim, utiliza-se da técnica do flash back,

e seria um passeio pelo tempo sem preocupação com linearidade temporal, o ponto chave é a

emoção. Têm-se nessa sequência três propostas de produção textual. A primeira sugere que se

escreva um texto com base num poema, que é também um anúncio e pode ser lido e entendido

de baixo para cima e de cima para baixo. A segunda sugere que se escreva uma história

baseada nos elementos oferecidos numa notícia e o aluno pode escolher o tipo de enredo. A

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 680

terceira apresenta o início de um conto e sugere que o aluno dê continuidade a ele escrevendo

uma história.

Sendo assim, conto e história são a mesma coisa, ou coisas diferentes? O livro não faz

nenhuma abordagem específica a respeito, o que se percebe, repetidas vezes, é o uso da

expressão escreva uma história, sem direcionar o gênero. Quando se parte para a preparação

da escrita, não fica evidente qual das propostas o aluno deve seguir, e nos direcionamentos

dados ao professor, são retomadas explicações já vistas em outros momentos. Como nas

outras propostas há um roteiro de revisão e sugestão de reescrita.

Figura 8: Poema que pode ser lido de várias formas

2.2.7. Suspense

A introdução fala de modo superficial que o suspense é fundamental para atrair a

atenção do leitor. O texto motivador é “O valente” de José Cândido de Carvalho. A

organização do texto se dá em torno do suspense que há no texto motivador. Diferentemente

das outras sequências, essa só apresenta uma proposta de produção textual, mas retoma a

mesma nomenclatura, sugere que o aluno invente uma história em que haja suspense, tendo

como base o texto motivador. Assim como nas outras sequências, existe a preparação da

escrita, um roteiro de revisão, um espaço para reescrita, como a mesma linearidade das outras.

2.2.8. Organização do concurso de histórias

Essa é a etapa final da sequência. Apresenta um direcionamento para que os alunos,

sob a supervisão do professor, elaborem os critérios do concurso. Indica que eles devem, além

de definir os critérios, redigir o regulamento do concurso, como norteador apresentam um

modelo de regulamento. A proposta do concurso aparece de modo oportuno, todavia não fica

evidente se os alunos devem usar os textos que já foram escritos, revisados, reescritos e

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 681

editados ou se eles podem escrever outros textos para concorrer. Nesta perspectiva, mais uma

vez depara-se com a proposta em SD instituída de modo inadequado bem como as concepções

e direcionamentos quanto ao estudo dos gêneros pouco específicos.

3. Considerações finais – concepção de gênero e sequência didática

Em se tratando de sequências didáticas, Dolz e Schneuwly (2004, p. 82) configuram

como sendo “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em

torno de um gênero textual oral ou escrito”. Pelo que se constatou, no material em análise não

havia marcas dos estudos de Dolz e Schneuwly, nem as ações torneadoras da produção textual

amparavam-se em propostas pautadas no sociointeracionismo conforme verificado no manual

do professor.

No método pautado em SD, a escrita inicial ocorre em primeira instância, servindo

para intervir nas supostas dificuldades dos discentes e com isso oferecer aos alunos os

elementos de que necessitam para a produção de um bom texto do gênero em questão, sendo a

reescrita, parte do processo. A primeira escrita é quando os alunos acentuam as noções que

têm sobre o gênero e que irão guiar o trabalho docente. A situação de comunicação deve ser

está definida para que os alunos tenham êxito em produzir textos, mesmo que não apresentem

todas as características do gênero proposto. Acerca disso, Dolz e Schneuwly (2004, p.83)

apontam que:

Uma SD tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um

gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais

adequada numa dada situação de comunicação. As SDs servem, portanto, para dar

acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente domináveis.

Logo, a SD institui atividade que surgem por meio da linguagem real, sendo uma

metodologia adequada à prática de produção textual. Bazerman (2011) dialoga com estas

ideias, porque afirma que a produção textual é um processo complexo pois envolve a

predisposição para agir cognitiva e discursivamente em todas as etapas da produção.

Portanto, as propostas de produção textual devem se reportar às práticas sociais e isso

em geral não ocorreu no material em análise. Os gêneros que circulam na sala de aula

necessitam estar vinculados à realidade do aluno, no intento de facilitar o envolvimento com

as suas ações de escrita. Bazerman (2001, p. 52) aponta em suas percepções que:

Sempre soubemos que escrever é um ato social, mas, recentemente, começamos a

examinar com mais atenção as implicações disso para a anatomização das

atividades, da localização, da dinâmica social de cada instância da escrita.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 682

Começamos a perceber como a sala de aula é um cenário particular da escrita – nem

um cenário natural inato nem artificial inato, nem necessariamente liberal – apenas

um cenário da escrita.

Em suma, Bazerman (2011, p. 10) discorre sobre o ensino de gêneros, destacando a

magnitude de centralizar o interesse, utilidade e relação do gênero com a vivência dos alunos,

o que é correto, tendo em vista a quantidade de alunos que não se sentem motivados a

produzir textos justamente pelo fato de as propostas quase sempre estarem desconectadas da

sua vida. Por isso, Bazerman (2011, p. 11) afirma que se reconhecemos os estudantes como

agentes, aprendendo a usar criativamente a escrita dentro das formas interacionais tipificadas,

dinamicamente cambiantes que chamamos de gêneros, eles virão a entender o poder da escrita

e serão motivados a fazer o trabalho árduo de aprender a escrever efetivamente.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 684

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM PERNAMBUCO:

OCORRÊNCIAS LEXICAIS PARA CIGARRO DE PALHA E

TOCO DE CIGARRO [Voltar para Sumário]

Edmilson José de Sá (CESA)

Introdução

Este artigo tem o intuito de analisar um aspecto da variação lexical detectada na fala

dos pernambucanos, de acordo com corpus do Atlas Linguístico do Estado. Na ocasião serão

evidenciadas as designações registradas para cigarro de palha e toco de cigarro.

O Estado de Pernambuco possui 185 municípios, o que já reflete uma realidade

linguística variável pela própria constituição histórico-geográfica peculiar a cada município.

Para a obtenção de uma amostra considerável, foram escolhidos vinte municípios distribuídos

entre os quatro cantos do Estado a partir de suas mesorregiões sertão – agreste – zona da mata

– região metropolitana.

Aos informantes selecionados a partir do perfil sugerido por Cardoso (2010) de que

tivessem entre 18 e 30 anos e entre 50 e 65 anos apenas com, no máximo, as séries iniciais do

ensino fundamental concluídas, acrescentando o ensino superior completo apenas à capital do

Estado.

A partir de uma análise sob a égide diatópico-diastrática, pretende-se descrever, ainda

que superficialmente, as realizações que se sobressaem em detrimento de outras mais inibidas,

o que poderá auxiliar numa organização de áreas sub-dialetais no Estado de Pernambuco e

contribuir com outras pesquisas em prol de discussões acerca da heterogeneidade do

português brasileiro.

1 Breves considerações sobre dialetologia e geolinguística

É notório que os estudos de descrição linguística sob os auspícios da variação

linguística se respaldam em três aspectos teóricos, a saber: A sociolinguística, a partir da qual

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 685

a língua é explicada segundo a interferência de elementos sociais do falante a exemplo de

gênero, faixa etária, escolaridade, localização, sendo esses, portanto, pertences à dimensão

chamada diastrática. A Dialetologia, por sua vez, se limita a investigar as realizações

linguísticas de uma dada comunidade, sem necessariamente, interpretá-las à luz de restrições

externas, mas dentro da própria estrutura da língua ou, como tem sido mais recorrente, com a

adoção do método cartográfico emprestado pela geografia, daí o fato de esse método ser

chamado de Geografia Linguística ou, simplesmente, Geolinguística.

A aplicação desse método, embora ainda pouco conhecido e não alcunhado foi

pensada por Nascentes (1958), visando à realização de uma descrição detalhada no idioma

falado no Brasil. Contudo, esse feito pareceu mais difícil do que ele pensava. Assim, o

linguista adiou a elaboração de atlas regionais e também o seu projeto de Atlas Linguístico de

Brasil. Nas Bases para a elaboração do Atlas Linguístico de Brasil, o autor preconiza que:

[...] embora seja muito vantajoso um atlas feito ao mesmo tempo no país inteiro,

pois o fim não é muito distanciado do início, os Estados Unidos, país vasto com

belas trilhas, preferiram a elaboração de atlas regionais, para uni-los depois no atlas

geral. Igualmente nós deveríamos fazer isto em nosso país que também é vasto

(NASCENTES, op cit, p. 07).

Desde o fim dos anos cinquenta, portanto, estão sendo ampliados alguns trabalhos

importantes que têm servido de apoio teórico aos estudos variacionistas e, pelo continuum,

para as pesquisas geolinguísticas mais recentes.

O trabalho pioneiro de Nelson Rossi em 1963, chamado Atlas Prévio dos Falares

Baianos – APFB, foi a deixa para a confecção de vários outros trabalhos hoje encontrados

tanto nas bibliotecas do Brasil, como fora delas.

Após o estudo realizado na Bahia, já foram concluídos os seguintes atlas linguísticos:

o Esboço de um Atlas Linguístico de Minas Gerais – 1977, o Atlas Linguístico da Paraíba –

1984, o Atlas Linguístico de Sergipe – 1987, o Atlas Linguístico de Paraná – 1994, o Atlas

Linguístico e Etnográfico da Região Sul do Brasil – 2002, o Segundo Atlas Linguístico de

Sergipe – 2005, o Atlas Linguístico Sonoro de Pará – 2004, o Atlas Linguístico do Amazonas

– 2004, o Atlas Linguístico de Paraná - II – 2007, o Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul

– 2007, o Atlas Linguístico do Estado do Ceará – 2010 , o Atlas Linguístico de Goiás – 2012

e o Atlas Linguístico de Pernambuco – 2013, sobre o qual versa este trabalho.

Existem, ainda, alguns atlas regionais em fase de implantação, que pertencem aos

Estados do Maranhão, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rondônia, Pará e Pernambuco,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 686

além de outras dissertações e pesquisas já concluídas ou em elaboração, enfocando atlas

microrregionais.

2 Variação lexical no Brasil: algumas considerações

Nos trabalhos dialetológicos documentados sob a forma de atlas linguísticos são

encontradas variantes lexicais bastante relevantes.

No atlas de Minas Gerais, por exemplo, foi percebido que as cidades localizadas no

norte de Minas demonstraram preferências pelo uso de determinadas palavras, como china

(bola-de-gude), neve (cerração), chuva-de-flor (granizo), entre outras.

Já os mineiros do sul do estado e do Triângulo Mineiro apresentaram ocorrências

lexicais como rabicó (animal sem rabo) e chuva-de-rosa (granizo).

Na Paraíba, por sua vez, foram encontradas respostas curiosas e que foram inseridas

no atlas linguístico do estado. Para soutien, também foram proferidas as respostas corpete,

califon, porta-seio, guarda-seio e bustiê. Para útero, também foram encontradas mãe do

corpo, bacia, ventre e ventre da mãe.

No caso do tornozelo, foram encontradas variantes do tipo rejeito, junta, mocotó, junta

do pé, osso de São Severino e osso do gostoso. E para rótula, também apareceram as variantes

bolacha, bolacha do joelho, rodinha do joelho, cabeça do joelho, patinho e bolachinha.

Ferreira et al (1987), no primeiro atlas de Sergipe, encontrou como variantes para

arco-íris os termos arco-celeste, olho de boi, arco de boi, arco da velha, arco de velho e arco,

enquanto Aguilera (1994), ao elaborar um esboço para o atlas do Paraná, encontrou, dentre

outros resultados, designações para útero tais como útero, com 53% dos registros, mãe-do-

corpo com 27%, barriga com 10% e ventre também com 10%.

Sentindo a necessidade de contemplar aspectos não mencionados num primeiro

trabalho, Cardoso (2002) elaborou o segundo Atlas Linguístico de Sergipe como tese de

doutorado. Nesse atlas, a professora procurou coletar respostas para o campo semântico

homem. Além disso, convém mencionar que tais designações permitem compreender melhor

o regionalismo sergipano, a exemplo da designação tunco para muxoxo, alcunha nordestina

para o estalo que se dá com a língua e o céu da boca, para indicar desprezo ou desdém. A

carta disposta na figura 1 mostra a categoricidade das respostas encontradas:

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 687

Figura 1: Carta 85 do Atlas Linguístico de Sergipe II (CARDOSO, 2002)

No Amazonas, a pesquisa realizada em nove pontos de inquérito resultou em algumas

variantes curiosas no campo lexical, como foi o caso das designações para cambalhota, que

teve como respostas carambota, calambota, carambola, calhambota, calambiota,

calhambiota com 82% dos registros, salto / pulo mortal com 9%, cangapé com 6% e bunda-

canastra que teve 3%, como mostra a carta disposta na figura 2:

Figura 2: Carta 76 do Atlas Linguístico do Amazonas (CRUZ, 2004)

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 688

Recentemente em 2010, foi publicado o último atlas regional, o do Estado do Ceará.

Nele há algumas cartas lexicais com uma quantia relevante de variantes, como é o caso da

carta 7 para ventania, que documentou cicrone, temporal, tufão, vento celeste, viração,

aguaceiro, terremoto, trevoada, trovoada, vento brabo, vento forte e vento geral.

Figur

a 3: Carta 7 do Atlas Linguístico do Estado do Ceará (BESSA, 2010)

3 O ‘Cigarro de palha’ e o ‘Toco de cigarro’ em Atlas Linguísticos antes de

Pernambuco.

Dos atlas linguísticos mencionados no item 1 deste artigo, cinco registraram variantes

para cigarro de palha e toco ou resto de cigarro. São eles: Atlas Linguísticos de Sergipe

(ALS) I e II, Atlas Linguístico e Etnográfico da Região Sul do Brasil (ALERS), o Atlas

Linguístico do Mato Grosso do Sul (ALMS) e o Atlas Linguístico de Goiás (ALG).

No caso do primeiro item lexical, cigarro de palha, pode-se observar a distribuição de

ocorrências nos dois atlas nordestinos, construídos com a pesquisa em Sergipe, conforme o

quadro 1:

ALS I ALS II

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 689

Variantes Quantia Variantes Quantia

Cigarro de palha 07 Bagoga 04

Cigarro de fumo 07 Biana 03

Ligumi 03 Baga 01

Cigarro de fogo de corda 02 Bonga 01

Fumo de corda 01 Madonga 01

Cigarro de fumo cortado 01

Paizanu 01

poleta 01

Quadro 1: Ocorrências para cigarro de palha no ALS I e no ALS II

No quadro 1, ficou constatada a existência de duas designações que se destacaram no

ALS I: cigarro de palha e cigarro de fumo, enquanto no ALS II teve apenas a ocorrência

bagoga como a mais quantificada, embora em número reduzido.

No quadro 2, a seguir, é possível comparar os dados registrados das variantes mais

contabilizadas nos atlas de Mato Grosso do Sul, de Goiás e da Região Sul. Vale salientar que,

no atlas regional sulista, os dados foram coletados nos três estados da região Paraná, Santa

Catarina e Rio Grande do Sul.

ALERS ALMS ALG

Variantes Quantia Quantia Quantia

Paraná Santa

Catarina

Rio Grande

do Sul

Palheiro 190 60 66 64 19 04

Cigarro de palha 24 17 02 05 53 15

Cigarro crioulo 30 05 05 20 - -

Baiano 04 04 - - - -

Pito (de palha) 02 01 - 01 - 09

Paiova 01 01 - - - -

Fumo - - - - 12 01

Cigarro de fumo 02 01 - 01 12 02

Cigarro barato - - - - 02 -

Charuto 09 06 01 02 01 -

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 690

Quadro 2: Distribuição de variantes para ‘cigarro de fumo’ em atlas do Centro-Oeste e Sul

No quadro 2, dentre as variantes para cigarro de palha no Centro-Oeste e no Sul, a

ocorrência palheiro foi mais quantificada no ALERS com 190 realizações bem equiparadas

nos três estados da região. Essa designação, conforme encontrado em Houaiss (2009), advém

de palha, do latim palea.

No ALMS e no ALG, destacou-se a variante cigarro de palha com 53 e 15

ocorrências, respectivamente. Coincidentemente, essa realização também foi a mais

contabilizada no ALS I.

Já no caso do ‘toco de cigarro’, sete variantes foram encontradas no ALS II, sendo

quatro ocorrências para bagoga, três para biana, e baga, bonga e madonga com uma

ocorrência cada uma.

ALERS ALG

Variantes Quantia Quantia

Paraná Santa

Catarina

Rio Grande

do Sul

Toco de cigarro 116 28 21 67 06

Xepa 55 13 42

Bituca 47 47 08

Bagana 12 01 11

Ponta de cigarro 07 01 02 04 01

Pituco 05 01 02 02

Bidu 03 03

Puxo 03 03

Baga 02 02

Quimba 21

Quadro 3: Distribuição de variantes para ‘toco de cigarro’ em atlas do Centro-Oeste e Sul

A partir do quadro 3, observa-se que as ocorrências toco de cigarro e ponta de

cigarro foram as únicas registradas no ALERS e no ALG in totum. Apesar disso, a

designação bituca se mostrou bastante relevante no Paraná, enquanto xepa é mais realizada

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 691

em Santa Catarina e toco de cigarro no Rio Grande do Sul. Já em Goiás, o destaque foi para

quimba, enquanto as outras realizações do atlas do estado se mostraram mais inibidas.

4 ‘Cigarro de palha’ e ‘Toco de cigarro’ em Pernambuco

O Atlas Linguístico de Pernambuco (ALiPE) registrou as variantes cigarro de fumo,

cigarro de corda, cigarro de palha e pacaia.

Além dessas respostas, houve duas respostas de natureza metonímica: saci e trevo, às

quais se acrescentam ocorrências únicas, a saber: sabugo, cigarro de seda, cigarro preto,

braço de Judas, fumador, zé-bostinha, beatinha, cavalinho e cigarro de bucha.

Na figura 4, é possível perceber como ocorreu a distribuição diatópica do cigarro de

palha.

Figura 4: Distribuição de variantes para ‘cigarro de palha’ em Pernambuco

Na figura 4, quando é apresentada a carta 35 do ALiPE com as variantes mais

registradas nos pontos de inquérito, ficou notória a relevância de ‘cigarro de fumo’, dado o

percentual de ocorrências em todos os municípios. As variantes ‘cigarro de corda’ e ‘cigarro

de palha’ foram mais inibidas, sendo proferidas pelos informantes em pontos isolados.

Foi interessante a distribuição do item ‘pacaia’, como variante lexical para o ‘cigarro

de palha’. A palavra advém do quicongo makaya, plural de kaya 'folha', especificamente

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 692

'folha de tabaco', erva usada como fumo. Trata-se de um termo que se manifesta com maior

assiduidade na região metropolitana do Recife, Zona da Mata Norte e início do Agreste,

permitindo com que seja feita uma isoléxica.

Figura 5: Isoléxica de pacaia em Pernambuco

Nos municípios de Limoeiro, Taquaritinga do Norte e Caruaru, a designação se

mostrou mais relevante, com, pelo menos, duas ocorrências, manifestando-se, mais

inibidamente, nos demais pontos investigados.

Já em relação ao ‘toco de cigarro’, houve maior distribuição das variantes, o que se

tornou mais fácil de estabelecer áreas sub-dialetais. As ocorrências que se sobressaíram na

pesquisa foram beata, bituca (bicuta, pituca), biola (piola), goia, baga e ponta de cigarro.

Além disso, foram registradas as variantes únicas piúba, bigoia e bico. Na figura 6, há a

distribuição das ocorrências no mapa de Pernambuco.

Figura 6: Distribuição de variantes para ‘toco de cigarro’ em Pernambuco

No mapa disposto na figura 6, a lexia ‘beata’ foi registrada em quase todo o Sertão do

Estado e parte do Agreste. ‘Biola’ é marca dialetal de São José do Egito, compartilhada,

ainda, pelos informantes da segunda faixa etária de Taquaritinga do Norte.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 693

Da Região Metropolitana de Recife e da Zona da Mata e parte do Agreste, prevaleceu

a lexia ‘goia’, distribuindo-se quase categoricamente. A variante ‘baga’, por sua vez, se

mostrou com extrema relevância em dois municípios investigados do Sertão do São

Francisco, Afrânio e Petrolina.

Nos trabalhos em que foram contabilizadas variantes para os dois itens lexicais nos

documentos dialetais mencionados neste artigo, é possível determinar os percentuais das

ocorrências compostas pela lexia ‘cigarro’:

Variantes Quantidade %

Cigarro de palha 31 29%

Cigarro crioulo 30 28%

Ponta de cigarro 13 12%

Toco de cigarro 11 10%

Cigarro de corda 09 8%

Cigarro de fumo 07 6%

Cigarro barato 02 1,8%

Cigarro de fogo de corda 02 1,8%

Cigarro de fumo 02 1,8%

Cigarro de fumo cortado 01 0,9%

Tabela 1: Dados quantitativos de lexias compostas por ‘cigarro’

Considerações finais

Este trabalho teve a preocupação de apresentar a variação linguística de natureza

lexical de dois itens, o cigarro de palha e o toco de cigarro, pertencentes ao campo semântico

‘comportamento e convívio social’.

Os resultados apontaram para dois itens bastante variáveis em três atlas linguísticos já

concluídos, o Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul, da Região Sul e o de Goiás, da

mesma forma que também ocorreu no Atlas Linguístico de Pernambuco.

Assim como ocorreu no ALG, a variante mais quantificada no ALiPE foi a composta

‘cigarro de palha’. Apesar de ter havido outras ocorrências comuns nos quatro trabalhos, elas

foram pouco relevantes, se manifestando em casos isolados.

No caso de ‘toco de cigarro’, houve, também, algumas coincidências de variantes

existentes nos quatro atlas linguísticos mencionados neste artigo. Contudo, interessa

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 694

mencionar sugeríveis marcas dialetais das ocorrências desse item, uma vez que a designação

‘goia’ foi quase categórica em seis municípios da região metropolitana do Recife, Zona da

Mata Norte e início do Agreste. Indo mais à frente, distribuem-se beata, ponta de cigarro,

bituca e biola, sendo essa última registrada por três dos quatro falantes de São José do Egito.

Além disso, a realização baga se mostrou quase categórica em Afrânio e Petrolina, dois dos

municípios mais distantes da capital de Pernambuco.

Lamenta-se o fato de os outros atlas linguísticos não terem cartas da variação dos dois

itens lexicais, o que já predispõe a condição de se fazerem novas pesquisas quer utilizando os

itens aqui analisados, quer se valendo de outras conotações, auxiliando, assim, na construção

de outras áreas sub-dialetais do Brasil.

Referências

AGUILERA, Vanderci de Andrade. Atlas linguístico do Paraná - ALPR. Curitiba: Imprensa

Oficial do Estado, 1994.

BESSA, José Rogério Fontenele. Atlas linguístico do Estado do Ceará. Vol. 1 – Introdução.

Fortaleza: Edições UFC, 2010.

CARDOSO, Suzana Alice Marcelino. Atlas linguístico de Sergipe II. Tese de Doutorado. Rio

de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2002.

______. Geolinguística: tradição e modernidade. São Paulo: Parábola, 2010.

CRUZ, Maria Luiza de Carvalho. Atlas linguístico do Amazonas – ALAM. Tese de Doutorado.

Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.

FERREIRA, Carlota. et al. Atlas linguístico de Sergipe. Salvador: Universidade Federal da

Bahia; Aracaju: Fundação Estadual de Cultura de Sergipe, 1987.

NASCENTES, Antenor. Bases para a elaboração do atlas linguístico do Brasil. Rio de

Janeiro: MEC, Casa de Rui Barbosa, Vol. I, 1958.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 695

O RISO IRÔNICO NA POESIA DE ANGÉLICA FREITAS [Voltar para Sumário]

Eduarda Rocha Góis da Silva (UFAL)

A obra de Angélica Freitas é marcada por diversos elementos que a aproximam de

uma poesia dita experimental, na medida em que rompe com elementos tradicionais do fazer

poético, apresenta uma linguagem coloquial muito próxima à língua falada e incorpora novas

tecnologias de registro e circulação ou difusão do escrito, escrevendo poemas a partir do

Google. Em seus dois livros publicados até o momento: Rilke shake (2007) e Um útero é do

tamanho de um punho (2012), a poeta gaúcha opera uma desconstrução de estereótipos de

vários discursos conservadores e autoritários, sejam eles literários ou não. Em Rilke shake

(2007), alguns poetas do cânone ocidental são dessacralizados, retirados de uma espécie de

pedestal, e aparecem em situações risíveis, em poemas como: “na banheira com Gertrude

Stein” (FREITAS, 2007, p. 32), em que a poeta americana aparece soltando pum debaixo

d’água; “estatuto do desmallarmento” (Idem, p. 53), em que o sujeito poético realiza uma

consulta popular para banir Mallarmé dos lares; “não consigo ler os cantos” em que o sujeito

poético questiona: “vamos nos livrar de Ezra Pound?/ vamos nos livrar de Marianne Moore?”

(Ibidem p. 37). No segundo livro de Freitas, Um útero é do tamanho de um punho (2012),

essa desconstrução se realiza através da reelaboração irônica dos estereótipos de gênero

atribuídos às mulheres, já que a poeta resgata clichês da lógica machista/patriarcal,

problematizando diversas formas de controle sobre o corpo feminino, quase sempre com

humor e ironia. Desse modo, este trabalho tem como objetivo discutir as relações existentes

entre humor e ironia na poesia freitiana, tendo como base teórica, principalmente, os textos de

Bergson (1983); Bakhtin (2011); Cortázar (2014); e Linda Hutcheon (1991). Aqui, o humor é

pensado dialogicamente (Bakhtin, 2011), ao passo que os poemas respondem a enunciados

presentes na contemporaneidade

Ironia e humor na poesia de Angélica Freitas

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 696

Há diversas formas possíveis de abordar o humor na poesia de Angélica Freitas, talvez

porque o humor e a ironia sejam dois dos recursos mais frequentes na obra da poeta gaúcha.

Antes de apresentar as análises dos poemas, é preciso estabelecer distinções entre essas duas

categorias, visto que é um erro comum confundi-las e nem sempre a ironia tem um caráter

risível, como destaca Linda Hutcheon em Teoria e política da ironia (2000): “um dos

conceitos errôneos que os teóricos têm sempre de enfrentar é a fusão da ironia com o humor”

(2000, p. 20). Ainda sobre esta distinção entre ambos, Bergson afirma:

Ora se enunciará o que deveria ser fingindo-se acreditar ser precisamente o que é.

Nisso consiste a ironia. Ora, pelo contrário, se descreverá cada vez mais

meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as coisas deveriam ser. É

o caso do humor. O humor, assim definido, é o inverso da ironia [...] a ironia é de

natureza retórica, ao passo que o humor tem algo de mais científico. (1983, p. 61

grifos do autor.)

Desse modo, a ironia, por definição, é entendida como um recurso linguístico da

retórica em que comumente se diz algo, querendo dizer o contrário do que foi dito. Devido a

esse desdobramento controverso, ela se converte em um fator de recepção, já que: “a ironia

não é ironia até que seja interpretada como tal – pelo menos por quem teve a intenção de fazer

ironia, se não pelo destinatário em mira. Alguém atribui a ironia; alguém faz a ironia

‘acontecer’” (HUTCHEON, 2000, p. 22 e 23), por isso, é difícil para um estrangeiro, por

exemplo, entender determinados enunciados irônicos de uma outra língua, tendo em vista que

tal recurso depende da compreensão do contexto em que está inserido e do enunciado que está

sendo ironizado, remetendo à relação que se estabelece entre interlocutores, no processo

complexo da enunciação, seja numa conversa oral, seja na leitura de um texto. Muecke em

Ironia e o irônico (1995) postula:

A palavra “ironia” não quer dizer agora apenas o que significava nos séculos

anteriores, não quer dizer num país tudo o que pode significar em outro, tampouco

na rua o que pode significar na sala de estudos, nem para um estudioso o que pode

querer dizer para outro. (1995, p 22)

Assim, o autor enfatiza a compreensão da ironia como fator de recepção, pois ela pode

adquirir significados diferentes, mudar de contexto dependo da situação e das pessoas

envolvidas. Apesar de ironia e humor não terem obviamente o mesmo significado, já que nem

sempre a ironia é risível, é fato que enunciados cômicos podem ser, eventualmente, irônicos e

vice-versa. É a partir da perspectiva de um humor que se alia à ironia que foram realizadas as

análises dos poemas citados neste texto, levando em consideração a noção de dialogismo de

Bakhtin, para quem “Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 697

outros enunciados.” (BAKHTIN, 2011, p. 272), tendo em vista que os enunciados cômicos e

irônicos dialogam com outros enunciados vigentes no discurso contemporâneo e, para

compreendê-los, é preciso conhecer os anteriores a que eles respondem.

Para tentar traçar um percurso do humor nos dois livros de poemas publicados por

Freitas até o momento: Rilke Shake (2007) e Um útero é do tamanho de um punho (2012),

tentei responder a pergunta: do que se ri na poesia de Angélica Freitas? Enquanto me

dedicava a essa questão, deparei-me com um ensaio de Julio Cortázar sobre humor e

musicalidade na literatura, presente no livro Clases de Literatura (2014)1, ainda não traduzido

para o português, que contém as transcrições de suas palestras em Berkeley, nos anos 80, das

quais pode-se extrair um vasto material para pensar diversos aspectos caros à teoria literária.

O texto sobre o humor me serviu de base para pensar este recurso na poesia de Angélica

Freitas. Paradoxalmente, Cortázar começa sua fala tratando da inquietação, da qual eu

compartilho, que é falar sério sobre o humor. Para ele, não há nada mais terrível, e, ao mesmo

tempo, é difícil falar do humor com humor, “pois ele engendra as palavras que acabam tendo

um efeito que não se pretendia” (2014, p. 158). Cortázar, ao contrário de Bergson em O riso

(1983), que fala a todo momento do cômico, estabelece uma distinção entre cômico e humor.

Para ele, há uma confusão bastante perigosa entre o humor e a simples comicidade, pois há

coisas que são cômicas, porém não contém algo de inexpressável, indefinível, que, na

perspectiva de Cortázar, haveria no verdadeiro humor. Para explicar melhor essa postulação,

ele recorre a exemplos do cinema e compara Woody Allen, que seria um humorista a Jerry

Lewis, que seria um cômico. A diferença entre ambos, segundo ele, está em que “alguém

como Jerry Lewis busca simplesmente criar situações nas quais fará rir por um momento, mas

que não tem nenhuma projeção posterior; terminam na piada, são sistemas de circuito

fechado, muito breves, mas que na literatura não teriam consequências importantes”

(CORTÁZAR, 2014, p.158). Já Woody Allen, para o autor, realiza efeitos cômicos que estão

cheios de um sentido que vai muito além da piada ou da situação imediata: contém uma

crítica, uma sátira ou uma referência. Ainda que essas postulações de Cortázar sejam

questionáveis, em alguma medida, já que é difícil definir o que seria um verdadeiro humor, se

é que ele existe, entendo que essa distinção foi feita para destacar que o humor na literatura

tem um tom mais crítico, desestabilizador, como o presente na poesia de Angélica Freitas,

diferente de um humor mais “inocente”, menos pretensioso, que termina na piada em si.

1 As citações desta obra, apresentadas ao longo do texto, são fruto de traduções livres feitas por mim.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 698

Rilke shake: uma poética dessacralizadora

Seguindo com Cortázar (2014), vemos que, ao pensar o humor na literatura, quando se

analisa o fragmento que contém esse elemento, ele atua quase sempre para dessacralizar algo

ou alguém, questionando, assim, valores, estereótipos, “verdades”. Na poesia de Angélica

Freitas, em seu primeiro livro, Rilke shake (2007), esse elemento a ser dessacralizado é, num

processo de autoironia, o próprio lugar da poeta ou dos poetas, e também da própria poesia.

Desde o título do livro observamos a brincadeira que ela realiza com o escritor alemão Rainer

Maria Rilke, colocando um grande poeta da tradição universal no mesmo plano semântico que

um milk-shake. O título da obra sugere a batida, a mistura de elementos e já indica uma fusão

entre o que seria alta cultura e cultura de massa, eliminando, assim, a noção de valor, uma das

características principais do pós-modernismo ou contemporaneidade, discutidas mais

amplamente por Linda Hutcheon (1991) e Arthur Danto (2006)2. No poema homônimo, que

aparece abaixo, essas características citadas aparecem mais claramente:

rilke shake

salta um rilke shake

com amor & ovomaltine

quando passo a noite insone

e não há nada que ilumine

eu peço um rilke shake

e como um toasted blake

sunny side para cima

quando estou triste

& sozinha enquanto

o amor não cega

bebo um rilke shake

e roço um toasted blake

na epiderme da manteiga

nada bate um rilke shake

no quesito anti-heartache

nada supera a batida

de um rilke com sorvete

por mais que você se deite

se deleite e se divirta

tem noites que a lua é fraca

as estrelas somem no piche

e aí quando não há cigarro

não há cerveja que preste

eu peço um rilke shake

engulo um toasted blake

e danço que nem dervixe

(FREITAS, 2007, p. 39)

2 Cf. Hutcheon: Poética do pós-modernismo (1991) e Danto: Após o fim da arte (2006).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 699

Esse poema, que não apresenta nenhum tipo de pontuação (as pausas são dadas pela

divisão dos versos), é constituído por rimas em duas línguas, português e inglês, aproximando

os poetas Rilke, alemão, e William Blake, inglês, a produtos típicos de uma sociedade de

consumo como o milk-shake, o achocolatado ovomaltine, o Mc Donald’s Mc Toasted e seu

ovo frito estilo “sunny side up”, resultando em um “rilke shake” um “toasted blake/ sunny

side para cima”. Esse tipo de aproximação resulta na dessacralização daqueles poetas

canônicos, pois antes eram alta cultura, mas agora tornam-se fast food, ou seja, estão no

mesmo plano que a cultura de massa, não há mais distinção, foram batidos e misturados.

Rilke e Blake são retirados dos livros e entram em outro gênero textual, o cardápio de

lanchonete, raramente referido ou incorporado pelo/no poema. É perceptível, também, o

procedimento de devoração da antropofagia cultural, com recorrência de verbos que reforçam

a metáfora digestiva, núcleo da proposta oswaldiana: o sujeito poético bebe (“bebo um rilke

shake”), come (“e como um toasted blake”), engole (“engulo um toasted blake”) os poetas

estrangeiros.

No último verso (“e danço como dervixe”) podemos ressignificar o sentido de

“shake”, visto que uma de suas acepções é também balançar ou mexer, seja algum objeto,

como também, balançar ao som de uma música, isto é, dançar. Dançar “que nem dervixe”

consiste em girar em sentido anti-horário até entrar em transe. Girar é, para os dervixes, a

imagem de como eles podem se tornar um lugar livre para o humano e o divino se

encontrarem. Dessa maneira, o sujeito poético, ao “dançar que nem dervixe”, gira e mistura as

diferentes referências da alta cultura e da cultura de massa, planos opostos, assim como o

humano e o divino, dentro de si e, principalmente, dentro do poema, e ainda podemos remeter

a mistura de uma dicotomia muito forte em nossa tradição: Ocidente e Oriente, aqui evocado

pelos dervixes, que pertencem à antiga cultura persa. Essa imagem da dança nos lembra uma

outra, resgatada por Italo Calvino nas Seis propostas para o próximo milênio (2010), quando

o italiano aborda a leveza. Para Calvino, a literatura opera a busca da leveza como reação ao

peso de viver, e essa leveza presente no humor que percorre todo o poema, concretiza-se na

imagem da dança dervixe, em que o constante girar sem nunca perder o equilíbrio, faz-nos

acreditar que seus pés nunca tocam o chão, como se estivessem, a qualquer momento, prontos

para alçar voo, semelhante à imagem de Perseu, resgatada por Calvino para exemplificar a

leveza: “Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o

que há de mais leve, as nuvens e o vento” (2010, p.16). Assim, com leveza, vemos aqui um

humor que se realiza através da dessacralização do cânone, o que se encaixa perfeitamente

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 700

bem na afirmativa de Cortázar:

O humor dessacraliza, não o digo em um sentido religioso porque não estamos

falando do sacro religioso: dessacraliza em um sentido profano. Esses valores que se

dão como aceitos e que costumam merecer um tal respeito das pessoas, o humorista

costuma destruí-los com um jogo de palavras ou com uma piada. Não é exatamente

que os destrua mas por um momento os faz baixar do pedestal e os coloca em outra

situação; há como uma derrogação, um retrocesso na importância aparente de muitas

coisas e é por isso que o humor tem na literatura um valor extraordinário porque é o

recurso que muitos escritores utilizaram e utilizam admiravelmente bem, para, ao

diminuir coisas que pareciam importantes, mostrar ao mesmo tempo onde está a

verdadeira importância das coisas que essa estátua, esse figurão ou essa máscara

cobria, tapava e dissimulava. O humor pode ser um grande destruidor, mas ao

destruir constrói.” (2014 p. 159 tradução minha.)

Em “rilke shake”, o cânone, tido como o grande valor da literatura, é retirado do pedestal, a

que se refere Cortázar e se coloca em outra situação, neste caso, no cardápio de lanchonete;

por meio das rimas em português/inglês, o poema provoca um efeito de riso, à medida que os

nomes dos poetas são mesclados aos nomes das comidas fast food. “rilke shake” pode ser

pensado como a representação desse humor que ao destruir constrói, pois, o cânone é

ressignificado, retirado de uma pretensa importância e é associado a elementos comuns da

cultura de massa, adquirindo um novo significado.

Um útero é do tamanho de um punho: rindo dos estereótipos de gêneros

Judith Butler afirma em Problemas de gênero (1990) que “rir de categorias sérias é

indispensável para o feminismo” (2013, p.8). Em seu segundo livro, Um útero é do tamanho

de um punho (2012), Angélica Freitas leva tal afirmativa às últimas consequências, já que

diversos assuntos caros ao feminismo são abordados com muito humor e ironia, além de

realizar uma evidente paródia a um discurso machista/patriarcal. A obra aparece dividida em

sete seções: “uma mulher limpa”, “mulher de”, “a mulher é uma construção”, “um útero é do

tamanho de um punho”, “3 poemas com o auxílio do google”, “argentina” e “o livro rosa do

coração dos trouxas”. Em todas elas, a poeta gaúcha opera uma desconstrução irônica dos

estereótipos de gênero atribuídos às mulheres, resgatando diversos clichês da lógica

machista/patriarcal, tais como nos poemas: “uma mulher limpa” (2012, p. 11), “uma mulher

sóbria (2012, p. 22) “mulher de regime” e “uma mulher gorda”, que ironizam a ditadura da

magreza e questionam a gordofobia, pondo em xeque alguns mecanismos de controle sobre o

corpo das mulheres, que, segundo essa lógica, deveriam ser limpas, magras, bonitas, sóbrias,

etc. O livro permite diversas possibilidades de discussão desses temas, porém, neste curto

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 701

texto não haveria espaço para todas elas; trago, assim, para este momento, o poema “mulher

de vermelho”, em que algumas das questões anteriormente apresentadas podem ser discutidas.

mulher de vermelho

o que será que ela quer

essa mulher de vermelho

alguma coisa ela quer

pra ter posto esse vestido

não pode ser apenas

uma escolha casual

podia ser amarelo

verde ou talvez azul

mas ela escolheu vermelho

ela sabe o que ela quer

e ela escolheu vestido

e ela é mulher

então com base nesses fatos

eu já posso afirmar

que conheço o seu desejo

caro watson, elementar:

o que ela quer sou euzinho

sou euzinho o que ela quer

só pode ser euzinho

o que mais podia ser

(FREITAS, 2012, p. 31)

Um tema importante é trazido à cena: a questão da cultura do estupro, em que a roupa

da vítima é considerada um convite ao abuso sexual. Na lógica machista/patriarcal, muitas

vezes, as vítimas são culpabilizadas por usarem determinadas vestimentas, de determinadas

cores ou comprimento, como se isso justificasse qualquer “desejo incontrolável” do abusador.

A “mulher de vermelho” mimetiza todas essas mulheres e o poema, que parte de um ponto de

vista masculino, em que um observador homem questiona: “o que será que ela quer/ essa

mulher de vermelho” reforça a ideia da ironização da roupa como convite, pois, a pergunta

acentua uma possível intenção da mulher de vermelho de vestir tal peça para provocar

determinada reação, quando, na verdade, essa ideia está sendo questionada e não afirmada,

retomando a ideia de ironia como algo que se diz, querendo dizer o contrário. A ironia se

revela mais evidente nos versos finais: “ela sabe o que ela quer/e ela escolheu vestido/e ela é

mulher/então com base nesses fatos/eu já posso afirmar/que conheço o seu desejo/caro

watson, elementar:/o que ela quer sou euzinho/sou euzinho o que ela quer/só pode ser

euzinho/o que mais podia ser”, momento no qual aparece o personagem de Arthur Conan

Doyle, Sherlock Holmes, que apesar de não ser nomeado, pode ser recuperado através do

verso: “caro Watson, elementar”, frase dita pelo detetive em todas as suas aventuras com seu

fiel assistente Watson, no momento em que encontra uma pista importante ou quando

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 702

desvenda o caso. Em “mulher de vermelho”, a frase é retomada ironicamente como se o

sujeito poético houvesse desvendado a questão: se ela é mulher, usou vermelho, é porque me

quer, uma lógica que não se concretiza e não faz nenhum sentido aparente, mas que é

utilizada como justificativa para abusos sexuais e aqui aparece parodiada. O diminutivo

“euzinho”, grau do substantivo que também pode ser utilizado em frases depreciativas,

aparece como mais um operador da ironia no poema, repetido três vezes, aparece

ridicularizando a figura do sujeito poético que observa a mulher de vermelho e dá um tom

superficial e despreocupado ao poema, intensificando, assim, a paródia a esse discurso

machista.

Considerações finais

A poesia de Angélica Freitas abre espaço para diversas abordagens do humor

associado à ironia, porém, neste curto texto não havia espaço para discutir amplamente tais

relações, o que está sendo feito em minha dissertação de Mestrado, no PPGLL/Ufal. Nestas

páginas, tentei responder, sem a pretensão de esgotá-la, uma pergunta norteadora deste

trabalho: do que se ri na poesia de Angélica Freitas? E finalizo compreendendo que a poética

freitiana propõe uma desconstrução de discursos autoritários de um modo bem-humorado,

podendo ser o cânone literário, grupo seleto de escritores, majoritariamente homens, que

figuram nas listas de grandes obras da literatura universal; ou um discurso machista que

controla e regula o corpo feminino, tentando determinar o tipo de roupa, de aparência, que

diversas mulheres deveriam ter, segundo essa lógica. Esses discursos são parodiados com

ironia e humor, já que nos vemos rindo em situações que comumente não seriam engraçadas,

porém, o modo como Angélica Freitas ridiculariza, em seu sentido primeiro, de tornar digno

de riso, o observador da mulher de vermelho, que tenta justificar o fato de uma mulher ter

escolhido um vestido dessa cor para provocá-lo, coloca-o em uma situação na qual vemos que

seus argumentos não fazem nenhum sentido, o que o torna tolo, incoerente. O sujeito machista

converte-se numa figura caricata, cômica, configurando uma abordagem menos usual para

tratar de temas como o feminismo. O mesmo ocorre com o cânone, quando os autores Rilke e

William Blake viram cardápio de lanchonete; a autora coloca os escritores celebrados em

situações inusitadas, assim como Gertrude Stein, soltando puns numa banheira. Diante disso,

pode-se dizer que Freitas, em seus poemas, ri e desestabiliza categorias sérias, em que ela

também se situa, desde estereótipos de gênero, como também o lugar do/a escritor/a,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 703

trazendo-as para o cotidiano com o bom humor e a leveza que já se tornaram traços

característicos de sua poesia.

Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad.: Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2011.

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Trad. Nathanael C.

Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução

Renato Aguiar.4a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad.: Ivo

Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

CORTÁZAR, Julio. Clases de literatura. Ciudad de México: Alfaguara, 2014.

FREITAS, Angélica. Rilke shake. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

________. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Júlio Jeha. Belo Horizonte: Ed. da

UFMG, 2000

MUECKE, D. C. Ironia e o irônico São Paulo: Perspectiva, 1995.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 704

HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA: MEMÓRIA E IDENTIDADE

NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL DE GRAÇA GRAÚNA

E INALDETE PINHEIRO

[Voltar para Sumário]

Eidson Miguel da Silva Marcos (UFRN)

Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)

O passado colonial vivenciado por vários grupos e nações fora da Europa legou,

principalmente para os afro-descendentes e indígenas, uma série de fissuras identitárias e

territoriais. Alteridades diferenciais, a exemplo do negro e do índio no Brasil, são

reconhecidamente marcadas por tal legado. A literatura, nesse sentido, configura um espaço

de resistência onde identidade, alteridade e auto-história são ressignificados e reafirmados por

meio da incorporação de aspectos ligados à oralidade ancestral negra e indígena, como o

exercício griótico, ou seja: o recurso à contação de histórias e outras práticas como veículo de

transmissão e manutenção dos saberes construídos coletivamente. Tal exercício conforma

uma das principais vias de manutenção da memória coletiva nas criações literárias infanto-

juvenis de Maria das Graças Ferreira Graúna e Inaldete Pinheiro de Andrade, ilustradas no

presente estudo por duas de suas narrativas, respectivamente: Criaturas de Ñanderu e O Be-a-

bá do Baobá. Objetivamos, portanto, empreender leituras aproximativas dos referidos textos,

enfocando as problematizações étnicas e identitárias que são consubstanciadas através da

contação de histórias, recurso característico tanto da didática no âmbito da educação

institucional quanto na tradição particular de culturas como as africanas e as indígenas.

O ano de 1500 se tornou, no Brasil, o marco de uma historiografia oficial que reflete a

visão e o projeto do colonizador europeu sobre o chamado Novo Mundo. Nesse sentido, a

história dos povos originários registrada principalmente pelo exercício oral e mnemônico

passou, juntamente com a dos seus remanescentes, a ser relegada ao obscurantismo. Durante a

trajetória histórica brasileira, um discurso ‘adocicado’ de mestiçagem sempre buscou encobrir

os problemas decorrentes do passado colonial ligados à situação do negro e do índio. Pelo

viés literário, projetos de construção de uma brasilidade, a exemplo do projeto nacionalista

romântico – que propõe uma identidade brasileira a partir da submissão de um índio

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 705

idealizado e da exclusão do negro – e do projeto freyriano com seu ranço positivista/eugenista

apresentaram em seu bojo tais problemáticas.

Partindo para um recorte mais específico, percebe-se que em estados como o Rio

Grande do Norte, mesmo apresentando o termo potiguar1 como gentílico designativo para

quem nasce ou vive em seu território, existe um marcado discurso de apagamento de

alteridades diferenciais que protagonizaram a trajetória histórica, política, econômica e

cultural da unidade federativa, nomeadamente o negro e o índio. Assim, constatamos que:

nos estudos sobre o Rio Grande do Norte, as referências a identidades diferenciais

são discretas, também nas representações nativas do passado, percebemos uma

ausência dos principais atores da história colonial. Nos dois casos, as populações

autóctones, os escravos e seus descendentes, são relegados ao segundo plano.

(CAVIGNAC, 2011, p.195)

Visto que:

Logo após a retomada do território pelos portugueses na segunda metade do século

XVII, podemos pensar que houve uma ação planejada e coordenada, visando a

eliminação física das populações nativas e que, ao mesmo tempo se desenvolveu um

movimento contínuo e generalizado de apagamento sistemático da presença cultural

dos grupos nativos; movimento que resultou numa amnésia coletiva. Neste sentido,

o aniquilamento do elemento indígena nas consciências, inclusive dos próprios

descendentes, a erradicação física aliada ao apagamento dos índios nos documentos

administrativos, pode ser interpretado como sinais do pleno sucesso do colonizador.

(CAVINAC, 2003, p. 10)

Percebemos, no entanto, que a presença de negros e descendentes indígenas na

história, na política, na produção cultural e literária potiguar sempre contradisse a falácia de

tais discursos. Neste último campo, podemos citar nomes como os dos irmãos Castriciano de

Souza, figuras importantes no cenário cultural e político do Rio Grande do Norte nas

primeiras décadas da República. Eles alcançaram destaque nacional com a poesia,

especialmente por intermédio de Auta de Souza.

Os Castricianos foram contemporâneos de Fabião das Queimadas, poeta rabequeiro

que, tendo nascido escravo, comprou a liberdade com seu labor poético, por meio do qual

também expressou os dissabores do cativeiro. Através da gesta do gado, um dos temas do

cancioneiro popular brasileiro, metaforizou a experiência e situação do escravizado:

1 O termo potiguar remete a Potiguara – comedor ou catador de camarão, e se refere a um dos povos originários

que ocupavam terras do litoral nordestino à época da colonização. Atualmente, remanescentes dessas populações

ocupam vinte e duas aldeias situadas nos municípios paraibanos de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto, bem

como algumas regiões do Estado norte-rio-grandense a exemplo dos Mendonça do Amarelão, no município de

João Câmara e os Eleotélios do Catu, no município de Canguaretama.

.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 706

Foi-se espalhando a notícia;

Mão de Pau é valentão.

Tando eu enchocalhado,

Com as algemas nas mão,

Mas nada posso dizer,

Que prezo não tem razão.”

(CASCUDO, s/d, p. 89).

Outro nome que merece destaque é o de Dona Militana Salsutino, descendente de

negros e índios que guardava na memória um vasto repertório do cancioneiro popular de

origem ibérica. É detectável nesse cancioneiro referências às relações étnicas, como se fez

registrar em “A Tapuia”, poema no qual vemos a tensão do diálogo entre dois eu-líricos, um

feminino e outro masculino:

Oh, linda Tapuia,

vamos para o Porto,

tomar o conforto

de um copo de vinho.

Não quero o teu vinho,

sou uma pobre tapuia.

Não bebo no copo,

só bebo na cuia

(GURGEL, 2012, p. 226-227).

Percebemos, nos versos acima, a negação da tapuia face ao convite do eu-lírico

masculino que a quer levar para o Porto, mas ela resiste e defende sua condição de vida e seu

lugar de pertencimento. Não seria por acaso que encontramos nesses exemplos de literatura

oral a problematização de questões étnicas, uma vez que ao examinarmos de perto a tradição

oral, “verificamos a existência de elementos recorrentes que, apreendidos conjuntamente,

terminam por informar sobre um passado que não foi registrado nos livros de história”

(CAVIGNAC, 2011, p. 195).

Na literatura potiguar contemporânea, elementos como oralidade, identidade e

etnicidade ganham espaço na produção de autoras como Maria das Graças Ferreira Graúna e

Inaldete Pinheiro de Andrade, ambas radicadas no Estado de Pernambuco. Através de seus

trabalhos literários, as autoras põem em evidência a presença do índio e do negro no cenário

histórico e cultural do país, enfocando a resistência e a necessidade da preservação da tradição

negra e indígena pelo protagonismo e ação dos próprios afro-descendentes e indígenas na

condição de sujeitos de sua própria história.

Maria das Graças Ferreira Graúna nasceu no município de São José de Campestre/RN.

De ascendência potiguara, é professora universitária na área de Literatura e Direitos

Humanos, poeta, ensaísta e ficcionista. No volume 29 dos Cadernos Negros, Graça Graúna

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 707

depõe: “Ao escrever, dou conta da minha ancestralidade; do caminho de volta, do meu lugar

no mundo” (GRAÚNA, 2006, p. 119). Em seu trabalho ficcional voltado para o público

infanto-juvenil, a autora coloca a história, a cultura e os próprios indígenas como

protagonistas da narrativa, como faz em Criaturas de Ñanderu2, texto revelador de uma

proposta política e educativa eivada de reivindicação e requalificação étnica.

Na narrativa em questão, passada em uma aldeia indígena, a índia mais velha, no

finalzinho da tarde, reúne os mais jovens, com destaque para sua neta mais velha e conta-lhes

uma história. Essa história trata de uma cunhã cujo nome é mudado para o de um pássaro. A

mudança se verifica por influência superior destinada ao pai da cunhã, visto que ela precisa

assumir seu papel enquanto protetora da tradição, do conhecimento, da terra e do povo

indígena. A jovem passa então por um processo de maturação espiritual que apresenta, por

sua vez, efeitos físicos: “uma plumagem negra foi tomando conta dos seus ombros e dela

sugiram belas asas!” (GRAÚNA, 2010, p. 20). Finalmente, a cunhã sai da aldeia para

enfrentar a cidade grande.

A contação de histórias é bastante valorizada e dinamizada na narrativa.

Primeiramente, constituindo a principal ferramenta de transmissão do conhecimento e da

tradição indígena, conhecimento vasto como as estrelas do céu, pois “o tanto de estrelas que a

gente vê no firmamento corresponde ao tanto de histórias que os índios têm para contar”

(GRAÚNA, 2010, p. 7). A palavra “Histórias”, grafada dessa forma e não “estórias” aponta

para a natureza epistemológica desse gênero narrativo e dos saberes indígenas, quebrando

uma concepção “ocidentalocêntrica” que põe culturas ágrafas em uma escala de valoração

inferior.

Como mantenedor de uma tradição, o exercício da contação vai desempenhar papel

vital, uma vez que constitui a principal forma de transmissão dos valores e dos saberes dos

povos indígenas: “Preste bastante atenção e, quando for grande, conte para os seus filhos o

que eu agora vou lhe contar. É verdade. Ouvi de meu pai, um caboclo velho, muitas

histórias...” (GRAÚNA, 2010, p. 11). Importante ressaltar que essa experiência de contação

pode ganhar dimensões que extrapolem o limite do texto impresso, uma vez que observamos

na trama uma avó contando histórias ouvidas de seu pai para seus netos e podemos ter uma

pessoa – mãe, professora etc. – lendo essa narrativa para um público infantil, o que

possibilitará uma experiência similar à dos curumins da narrativa.

2 Ñanderu: de origem guarani, “Grande Espírito”, “Nosso Pai”.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 708

Experiência de contação que, aliás, vem a fazer parte de um dado cultural brasileiro,

marcado principalmente pela presença de elementos indígenas e africanos. Autores como Luís

da Câmara Cascudo 3 apontam para a existência, em certos setores da sociedade, da cultura da

contação de histórias, dos mais variados gêneros e assuntos, e essa prática de contar histórias,

verídicas ou fictícias, narrar fatos acontecidos ou reinterpretados, contar anedotas etc., para

além da tradição herdada de Portugal, seria exercitada através de manifestações como a

poranduba4 indígena e a figura do akpalô

5 afro-brasileiro.

O recurso oferecido pelo exercício da contação de histórias, agregado ao conteúdo que

a narrativa traz proporciona uma experiência mais concreta de assimilação de uma auto-

história6 dos povos indígenas, sem a intermediação de um olhar não indígena. Numa sala de

aula de jovens índios, a inserção didática de obras como Criaturas de Ñanderu poderia gerar

uma cadeia de sentidos e identificações mais marcante, uma vez que eles estariam

experienciando a problemática identitária de ser “índio” em um país como o Brasil, a exemplo

do que é retratado na obra de Graça Graúna. A cunhã da história contada pela avó aos seus

netos cresce interiormente, adquirindo também uma plumagem negra, vivendo ora como

mulher ora como pássaro, somente sendo vista pelos seus parentes e pelas aves. Essa

maturidade lhe permite enfrentar as armadilhas da civilização não-indígena:

Diz a lenda que ela foi muitas vezes atraída pelas belas mentiras da cidade grande.

Por isso, essa criatura às vezes aparece com seu canto engaiolado. Mas, para não

morrer de tristeza, voa no pensamento até onde estão as suas crias e os seus parentes.

No pensamento, ela mergulha nos rios e gralha forte um canto que tem a força da

flecha que atinge certeiro o coração dos malfeitores. (GRAÚNA, 2010, p. 27)

Percebe-se, portanto, um olhar sobre a tradição, a cultura e a resistência indígena

isento de estereótipos, uma vez que parte de uma perspectiva formulada pelos próprios

indígenas. Estaríamos falando, então, de uma literatura de expressão indígena escrita em

língua portuguesa, ocorrendo que muitos dos sentidos presentes na narrativa talvez não sejam

de fácil apreensão para um não indígena, já que “Só quem tem a ciência do índio pode

entender” (GRAÚNA, 2010, p. 28). Dessa maneira, as próprias características da contação de

histórias e da estrutura das narrativas indígenas teriam o potencial não apenas de transmitir

3 Ver “Literatura Oral no Brasil”. 4 Narrativa indígena que consistia no relato dos eventos vivenciados por cada membro da família. Ver

CASCUDO (2006). 5 Contador ou contadora de histórias que geralmente andava de localidade em localidade exercendo sua função

durante o período escravocrata. 6 Para Graça Graúna, a ideia de auto-história poderia ser interpretada como “um acorar-se nas raízes próprias do

seu povo para se reconhecer sujeito da história, da própria história...” (GRAÚNA, 2013, p. 135)

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 709

pontos de vista e conhecimentos, mas de deixar ocultos determinados segredos a quem não

desenvolva uma sensibilidade própria para delas extrair toda uma particular carga semântica.

Já há algum tempo se faz emergente uma produção de autores indígenas que, à

semelhança de Graça Graúna, põe em evidência questões como identidade, tradição e auto-

história. Nomes como o da própria Graça, Olívio Jekupé, Daniel Munduruku, Eliane

Potiguara, dentre outros, não só produzem trabalhos com características em comum, como

também se organizam em torno de publicações, eventos, pesquisas, sites etc., caminhando

para consubstanciar cada vez mais uma Literatura Indígena no Brasil.

Nesse sentido, tal experiência

configura um movimento literário, na medida em que pode ser observado nos seus

aspectos coerentes e sistemáticos, como um grande texto que se dá a ler. Seus

escritores representam uma população de cerca de 350.000 indivíduos [...] um

movimento [...] intencionalmente produzido pelas lideranças intelectuais, e

professores indígenas e por intelectuais e professores “brancos” que têm claramente

se posicionado a favor da emancipação dos povos autóctones. (ALMEIDA, 1999, p.

13-17)

Fenômeno semelhante é verificado com o segmento afro-descendente. Referida como

um conceito provisório, fluido e em permanente expansão, a chamada Literatura Afro-

brasileira pressupõe, por parte de quem a movimenta, a tomada de outros lugares de fala que

remetem à condição sócio-histórica do afro-descendente no Brasil, contemplando temática,

linguística e ideologicamente seu percurso desde a condição socioeconômica na qual foi

introduzido e mantido por muito tempo no país até sua imensa contribuição no processo de

formação da nação em vários aspectos.

Esse é o caso de Inaldete Pinheiro de Andrade. Natural de Parnamirim, Rio Grande do

Norte, mas radicada no Estado de Pernambuco, graduou-se em Serviço Social e atuou com

destaque no Movimento Negro desde a sua fundação. Empenhada na defesa do meio

ambiente, desenvolveu atividades em prol dos baobás do Estado pernambucano, fato que lhe

rendeu o prêmio Zumbi dos Palmares. Em muitos de seus trabalhos de ficção e de seus

ensaios acadêmicos tematiza a herança ancestral africana.

O conto O Be-a-bá do Baobá se passa em uma tabanca 7 na qual o homem mais velho,

detentor da sabedoria ancestral reúne os mais jovens em um círculo para narrar-lhes a

trajetória do povo africano trazido à força para um novo mundo. Sua narrativa destacará toda

a resistência diante dos revezes da escravidão: “Bem no meio da tabanca há um Baobá. Entre

7 Aldeia, povoado.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 710

suas raízes o Homem-Grande vem sentar-se. O Baobá e o Homem-Grande são as criaturas

mais velhas da tabanca.” (ANDRADE, 2005, p. 29).

Assim como a avó indígena de Criaturas de Ñanderu, o Homem-Grande detém um

conhecimento que lhe foi transmitido pelos mais antigos, tendo na oralidade o principal

veículo de transmissão: “O Homem-Grande vem da geração de outros homens sábios que

sempre viveram ali, conheceram todas as histórias e as foram contando até chegar a este

Homem-Grande.” (ANDRADE, 2005, p. 29). Isto aproximaria o trabalho de Inaldete

Pinheiro e Graça Graúna de uma tradição griótica 8, ou, se quisermos tomar como apoio a

perspectiva do crítico Salvato Trigo ao tratar das relações entre oralidade e escritura:

situa-o no caminho de um griotismo literário, por estabelecer um vínculo entre a

tradição oral dos contadores e contadoras de histórias e sua atualização e reinvenção

pela escrita, encontrando na ativação da memória e no motor da imaginação

elementos mediadores dessa continuidade. (QUEIROZ, 2007, p. 153).

A sequência da narrativa apresenta a invasão da tabanca por “uns homens de cor de

pele diferente, muito bem armados (...) avançarem sobre as pessoas que iam para a plantação,

acorrentando-as e levando-as para fora dali.” (ANDRADE, 2005, p. 29). Desse modo, o conto

é permeado pela história, diáspora e culturas dos povos africanos, desde suas origens até o

Brasil. Inaldete Pinheiro de Andrade alude à resistência das culturas de matriz africana no país

valendo-se simbolicamente do baobá, árvore que sobreviveu à violência do processo

colonizador, enraizou-se e permaneceu viva e forte.

Muitos sóis, muitas luas se passaram. A criança viu a primeira semente brotar da

terra e a planta foi crescendo, crescendo, ficou maior do que a criança, maior do que

o Homem-Grande: a criança viu nascer um lindo Baobá. Outras sementes brotaram e

outros Baobás cresceram e o povo que foi vendido, fugia e ia para as matas e se

juntava e se juntava à criança, iniciando ali uma vida como era na sua terra – sem

dono e sem senhor, o resultado do trabalho divido por todos. Eles chamaram este

lugar de quilombo. (ANDRADE, 2005, p. 30)

O conto de Inaldete Pinheiro ressalta o importante papel de uma memória que, apesar

do processo de apagamento, necessita ser preservada para que “onde for plantado um Baobá o

seu povo viva sempre” (ANDRADE, 2005, p. 31). Papel de preservação da memória que o

“Homem Grande”, representante da sabedoria ancestral incorporada ao exercício griótico,

desempenha no conto ao relatar para as crianças “as histórias que ouviu dos mais velhos ou as

8 Expressão que remete a griot, termo difundido a partir da África de colonização francesa e que designaria,

genericamente, o artista especializado em perpetuar a memória de sua coletividade por meio de um exercício

performático que envolve a contação de histórias, a gestualidade, a voz, o corpo e também a utilização de outros

elementos, como os instrumentos musicais.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 711

histórias que ele assistiu” (idem, 2005, p. 29). A própria autora, aliás, se encarrega de assumir

esse papel multiplicador no âmbito social e educacional por intermédio de sua obra ficcional e

de sua ação pedagógica.

Dessa forma, Inaldete Pinheiro, tal como Graça Graúna no tocante à questão indígena,

também oferece uma referência positiva para a construção e fortalecimento da identidade e

auto-estima da criança negra, fato, que segundo a autora 9, não é recorrente nas narrativas

brasileiras que tematizam ou contam com a presença de personagens afro-descendentes 10

. À

semelhança da narrativa apresentada por Graça Graúna, no conto de Inaldete Pinheiro o

exercício da contação de histórias aparece como importante ferramenta de preservação da

tradição, do conhecimento e da memória afro-descendente, constituindo por sua vez um meio

de resistência à secular violência física e simbólica dispensada aos negros. Além do mais, a

“ênfase na ancestralidade sugere uma força enunciativa com respeito ao ato de narrar como

instrumento de preservação da memória.” (GRAÚNA, 2013, p. 100), de tal forme que, “a

história/memória dos povos excluídos se faz presente na [...] contação de histórias”

(GRAÚNA, 2013, p. 171). Emerge das narrativas, portanto, um discurso afirmativo, de

requalificação étnica e histórica engendrado pelos próprios representantes das alteridades em

questão.

Referências

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de Doutorado em Comunicação e Semiótica. São Paulo: PUC, 1999.

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Editorial, 2001.

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 2 ed. São Paulo: Global, 2006.

________. Vaqueiros e Cantadores. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

9 Ver “Racismo e Anti-Racismo na Literatura Infanto-Juvenil”. 10 Nesse sentido, já existem trabalhos que catalogam a produção literária voltada para o público infanto-juvenil,

visando perceber a reação do mercado editorial brasileiro diante das leis 10.639 e 11.645, além de fornecer

alguma orientação para a inserção dessas literaturas no âmbito escolar. Trabalhos que culminaram em

publicações como “Índios e Negros na Literatura Infantil/Juvenil Brasileira (catálogo de obras)”, coordenada

pela Professora Ana Cristina Marinho e desenvolvida na Universidade Federal da Paraíba.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 712

CAVIGNAC, Julie. “Índios, negros e caboclos: identidades e fronteiras étnicas em

perspectiva. O caso do Rio Grande do Norte”. In: CARVALHO, Maria do Rosário. EDWIN,

Reesink. CAVIGNAC, Julie. (org.). Negros no mundo dos índios: imagens, reflexos,

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________. A etnicidade encoberta: “Índios” e “Negros” no Rio Grande do Norte. In:

MNEME Revista de Humanidades, v. 4 – nº 8, abril-setembro de 2003. Caicó/RN:

Departamento de História e Geografia da UFRN, disponível em:

http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/pdf/mneme08/001-p.pdf, acessado em 08 de fevereiro

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GRAÚNA, Graça. Contrapontos da Literatura Indígena Contemporânea no Brasil. Belo

Horizonte: Mazza Edições, 2013.

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invisibilizadas vozes femininas na literatura potiguar contemporânea. Disponível em:

www.letras.ufmg.br/literafro, acessado em 20 de janeiro de 2015.

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12. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, 1982, pp. 29-33.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 713

O MICROCONTO: UM PRODUTO DA ROMANCIZAÇÃO? [Voltar para Sumário]

Elias Coelho da Silva (UFPB)

1. Introdução

Como já lembrava Fiorin (2006, p. 60), pelo valor heurístico que dela desabrocha, “a

obra Bakthiniana sofreu toda sorte de vicissitude” e cada um fez dela a leitura que melhor

explique seu objeto ou que sirva melhor a seus propósitos. Isso não significa que as diferentes

leituras feitas até então sejam impróprias, ao contrário: cada gesto de leitura revela sempre

mais a abrangência explicativa dessa obra. Portanto, o que será discutido aqui torna-se mais

um gesto que, apoiando-se nos ensinamentos do Círculo de Bakthin, busca esboçar uma

discussão que está ainda em fase embrionária, qual seja a romancização dos gêneros do

discurso na era digital.

Se a concepção de gênero do discurso tem rendido grandes discursões nas mais

diferentes áreas do conhecimento, em especial nas ciências humanas e sociais, a de

romancização ainda parece estar mais vinculada à literatura, no trato das relações de

linguagem inerentes aos gêneros literários, com ênfase no romance e no conto. Aqui, busca-se

observá-la pelo viés da linguística, de um ângulo enunciativo, o que implica antes de qualquer

coisa que a romancização é compreendida como um processo de relações de contato entre

gêneros.

Desta feita, o objetivo desse trabalho é refletir sobre o processo de romancização dos

gêneros do discurso após o advento da internet. Esse espaço virtual deu vida a novos gêneros

que por certo podem estar influenciando os que já existiam. Como base teórica para essa

reflexão buscou-se apoio também nas releituras feitas por Ermerso e Morson (2008) das obras

do Círculo, em especial abordagem da romancização.

Por ser um trabalho que ainda encontra-se em fase embrionária, não se pretende aqui

chegar a conclusões sobre o assunto, mas apontar caminhos para o reflexão em torno desse

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 714

fenômeno nos dias atuais, tanto com relação aos gêneros literários quanto aos de outros

campos de atividade humana.

2. O gênero do discurso e seu caráter dialógico

A noção de gênero não é nova, se sabe. Desde a Grécia Antiga essa noção vem sendo

tratada pelos estudiosos da linguagem seja na literatura, na retórica ou na filosofia da

linguagem. Segundo Fiorin (2006, p. 61), essa noção oscila entre períodos que compreendem

os gêneros como formas rígidas e aqueles em que as formas são mais livres.

Mas a ideia de forma está sempre presente. Os gêneros eram compreendidos como

tipos de textos com “um rol de propriedades formais, fixas e imutáveis, adquiriam um caráter

normativas” (FIORIN, 2006, p. 60). Na Rússia, já no século XX, a expressão mais acabada

desse olhar sobre a forma teve sua representação mais significativa com os chamados

Formalistas Russos, que dominavam o cenário dos estudos literários e linguísticos do início

daquele século. É a essa percepção dos gêneros como estabilidade normativa dos textos que o

Círculo da Bakthin contrapunha. Para chegar a tratar da temática da romancização, é

necessário entender em que consistia a contraposição do Círculo em ralação aos Formalistas.

Em “O método formal nos estudos literários” Medvedev destaca cinco características

dos estudos formalistas em ralação aos gêneros. A primeira era o de conceber o tema de uma

obra como sendo constituído de suas parte em particular, ou seja, o tema global seria a soma

das parte menores. Dessa forma, para entender a obra como um todo era necessário o estudo

dos elementos menores e a soma desses elementos levariam necessariamente ao todo.

De acordo com esse posicionamento, portanto, o todo da obra, ou o todo de um

gênero, dependia dos elementos menores, mas o oposto não acontecia, ou seja, o todo era

determinado por suas partes e não o contrário.

A segunda, seria o reconhecimento de que as partes são de natureza linguística, e

assim sendo poderiam ser subdivididas em elementos menores. Dessa forma, um texto divide-

se em parágrafos, que se subdivide em períodos, estes em orações, em palavras e assim por

diante. A conclusão lógica leva a entender que o gênero podia ser subdividido sem perda

significativa de sentido, na medida em que a análise do todo dependia da observação de suas

partes.

O próximo passo leva inevitavelmente a terceira característica: o gênero não passa de

uma forma de desdobramentos de uma hierarquia de dispositivos, que iria do menor para o

maior. O gênero, portanto, não passaria de um conjunto de elementos hierarquicamente

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 715

sobrepostos que comporiam um todo significativo. Por outro lado, os próprios gêneros seriam

hierarquicamente constituídos. Ao logo da história alguns gêneros se sobrepunha uns aos

outros, pois as necessidades humanas, em determinado momento histórico, faz com que

alguns gêneros tornem-se obsoletos ou marginais enquanto outros surgiriam para atender as

reais necessidades da comunicação e expressão humana.

Por outro lado, os próprios gêneros seriam hierarquicamente constituídos. Ao logo da

história alguns gêneros se sobrepunha uns aos outros, pois as necessidades humanas, em

determinado momento histórico, faz com que alguns gêneros tornem-se obsoletos ou

marginais enquanto outros surgiriam para atender as reais necessidades da comunicação e

expressão humana. Esta seria a quarta característica: a substituição de hierarquias. Na história

literária hierarquias vão ficando obsoletas e dão espaço a outras. Assim, a explicação do

declínio do Romantismo se daria pela ascensão do Realismo. A mesma lógica se daria com os

gêneros, o surgimento de novos gêneros tornavam o antigos obsoletos e estes caiam em

desuso. Nessa linha de pensamento, atualmente, se poderia conjecturar que a carta tornou-se

obsoleta ou marginal com o surgimento do e-mail.

Segundo Ermerson e Morson (2008, p. 288) Medviédev se opõe aos Formalistas por

abordarem os gêneros “das partes para o todo e de baixo para cima”, ou seja, primeiro vem a

abordagem dos elementos da linguagem, “significando isso que um complexo desses

elementos, o gênero, veio necessariamente depois” (ERMERSON E MORSON, 2008, p.

288). Ora, para Medviédev o gênero é um fato social, que constitui-se na sua orientação para

o público, cada elemento do gênero seria determinado por essa orientação. Portanto, é o todo

da obra que determina suas partes e não o contrário. Por esse motivo o autor dirá que

o tema realiza-se não por meio da frase, nem do período e nem por meio do conjunto

de orações e períodos, mas por meio da novela, do romance, da peça lírica, do conto

maravilhoso, e esses tipos de gênero, certamente, não obedecem a nenhuma

determinação sintática. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 197).

O que o autor ressalta é a determinação do gênero sobre o sentido. Assim, o sentido de

cada elemento do enunciado, desde a palavra até o texto como um todo, é determinado pelo

gênero.

Em seu artigo O gênero do discurso, Bakthin retoma essa discussão, mas agora

objetando a Linguística, que também focava os elementos linguísticos como ponto de partida,

e mais, como unidade de sentido e de comunicação. O autor faz uma distinções entre as

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 716

unidades da língua e a unidade da comunicação discursiva, contrapondo as orações, enquanto

unidades da língua, aos enunciados, unidades da comunicação.

O enunciado tem características próprias que o distingue das unidades da língua.

Segundo Bakthin (2011) o enunciado é delimitado pela alternância dos sujeitos do discurso.

Desde o início de sua produção, o enunciado constitui-se pelo seu direcionamento para o

interlocutor que espera que o locutor conclua seu dizer para iniciar um novo enunciado. Ele

tem contato direto com a realidade, pois é produto da interação humana e requer sempre

compreensão e resposta. Só há compreensão porque o enunciado é pleno de sentido. Dessa

forma, o enunciado é o elemento que promove a interação, ele está tanto direcionado para o

ouvinte quanto para outros enunciados, na medida em que ele é sempre resposta aos

enunciados dos outros sujeitos.

Em direção contrária, a oração, enquanto unidade da língua carece de todas essas

propriedades, segundo Bakthin (2011, p. 278):

Não é delimitada por ambos os lados pelos sujeitos do discurso, nem tem contato

imediato com a realidade [...] nem com enunciados alheios, não dispõe de plenitude

semântica nem capacidade de determinar a posição responsiva do outro falante, isto

é, de suscitar resposta. A oração enquanto unidade da língua tem natureza

gramatical, fronteiras gramaticais, lei gramatical e unidade.

Tendo concebido os gêneros como enunciados relativamente estáveis, Bakthin (2011,

p. 279) concluirá que “as obras especializadas dos diferentes gêneros científicos e artísticos, a

despeito de todas as diferenças entre elas e as réplicas do diálogo, também são, pela sua

própria natureza, unidades da comunicação discursiva”.

Não por acaso, o autor assimila os gêneros às réplicas do diálogo, toda a concepção de

linguagem que ele elabora é baseada na metáfora do diálogo. Esta metáfora corresponde a um

grande diálogo universal, no qual todo gênero está inserido enquanto enunciado, posto que

todo enunciado responde a outro, todo gênero surge em resposta a outros gêneros. Não

importando se uma simples réplica do diálogo face a face que exige resposta imediata ou uma

grande obra literária, ambos, enquanto gênero, cumprem esse fim:

A obra é um elo na cadeia de comunicação discursiva: como a réplica do diálogo,

está vinculada a outra obras-enunciados: com aquelas as quais ela responde, e com

aquelas que lhe respondem; ao mesmo tempo, à semelhança da réplica do diálogo,

ela está separada daquelas pelos limites absolutos da alternância dos sujeitos do

discurso (BAKTHIN, 2011, P. 279).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 717

Ora, se o gênero tem características diferente de suas partes e se estas são

determinadas por aquele, seria necessário um olhar de cima para baixo, ou melhor, do gênero

para os elementos linguísticos, na medida em que as partes que o integram, se olhadas

isoladamente, não tem relação direta com a realidade, já os gêneros estão em constante

relação dialógica com outros gêneros, como se pode perceber nas palavras de Bakthin. Ou

seja, as relações dialógicas são inerentes aos gêneros e não aos elementos da língua, em

sentido estrito. Se esses elementos integram um gênero, seu sentido é determinado pelo

gênero e estão direcionado para a resposta, para o diálogo.

Essas relações dialógicas entre gêneros, no entanto, podem se dar de diferentes

formas. A seguir, serão abordadas duas dessas formas de diálogo entre gêneros, a

intergenericidade e a romancização, afim de buscar uma distinção entre elas.

3. Gêneros ingênuos e polêmicos: o processo de romancização

Para Bakthin (2011) existe uma variedade infinita de gêneros, pois eles são fruto da

inesgotável atividade humana nos mais diversos campos de atividade (saúde, educação,

política, religião, jornalismo etc.) e em cada campo “é integral o repertório dos gêneros do

discurso, que cresce e se diferencia a medida que se desenvolve e se complexifica um

determinado campo” (BAKTHIN, 2011, p. 262).

Essa variedade de gêneros sempre foi conhecida, desde a antiguidade, segundo o

autor. No entanto, fora negligenciada e dela se fez sempre um recorte, especialmente literário,

retórico ou linguístico.

Do ponto de vista literário estudava-se as diferentes relações entre os gêneros que o

compunha, como a epopeia, o poema, o drama, a novela, o romance etc. Segundo Bakthin

(2011) praticamente não se levava em consideração as diferenças linguísticas gerais existente

entre os diferentes enunciados (gêneros).

Já a retórica estudava os gêneros levando em consideração as especificidades

linguísticas e a sua relação com o auditório. O estudo era mais completo e complexo, mas

também aí se restringia aos gêneros jurídicos e políticos. Por outro lado, a Linguística Geral

dava atenção aos aspectos linguísticos do enunciado, mas abordava apenas os gêneros orais e

em aspectos estritamente linguísticos, segundo o estudioso russo (idem, p. 263). Por isso, para

ele, até o início do século vinte, a questão do gênero ainda não havia sido verdadeiramente

colocada.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 718

Bakthin (2011) conclui, portanto, que esse fato levou ao negligenciamento da grande

variedade dos gêneros, o que impediu o conhecimento da verdadeira natureza do enunciado.

Nesse ponto, ressalta o autor, “é de especial importância atentar para diferença essencial entre

os gêneros discursivos primários (simples) e os secundários (complexos)” (BAKTHIN, 2011,

p. 263). Os gêneros secundários seriam aqueles que são originários de atividades culturais

mais elaboradas, desenvolvidas e organizadas. É o caso do romance e do poema, na literatura;

do artigos científicos, no campo acadêmico; da propaganda e publicidade, no campo

publicitário.

Já os gêneros primários se formariam nas relações cotidianas mais fortuitas e

imediatas, geralmente são orais (mas nem sempre: as cartas familiar e amorosa são escritas,

por exemplo).

O que importa nesse trabalho é mais especificamente as relações entre essas duas

categorias genéricas. Para Bakthin (2011, p. 263), no processo de sua formação, os gêneros

secundários “incorporam e reelaboram os gêneros primários”. Acredita-se aqui que essa é

mais uma relação dialógica entre gêneros, nesse caso, uma relação de apropriação de um

gênero por outro. Um romance, por exemplo, pode incorporar uma carta em seu interior, sem

que com isso deixe de ser um romance ou a carta deixe de ser carta. Mas o autor adverte que

quando um gênero primário é incorporado pelo secundário ele perde o seu contato direto com

a realidade e passa a ser parte integral do secundário e o contato com a realidade passa a ser

mediado por este.

Essa relação dialógica entre os gêneros primários ganhou uma nova abordagem ao

longo do tempo. Alguns estudiosos a denominaram de intergenericidade. Mascuschi (2008)

observou que essa relação não se dá apenas entre gêneros primários e secundários, os próprios

gêneros secundários se apropriam uns dos outros, que aliás, segundo o autor, é um fato muito

comum nos dias de hoje. Para esse autor, a intergenericidade é a “hibridização ou mescla de

gêneros em que um gênero assume a função de outro” (MARCUSCHI, 2008, p. 165). A

naturalidade desse caso se dá, segundo ele, porque “os textos [e o gêneros] convivem em total

interação” (idem, p. 166), ou em diálogo constante. Segue abaixo o exemplo de

integenericidade:

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 719

Publicidade do Ministério da Saúde contra o uso do cigarro

Nessa publicidade, nota-se a apropriação da tirinha pelo gênero publicitário. Como

esclarece Bakthin (2011), a tirinha passa a fazer parte da propaganda e só tem contato com a

realidade por meio desta, no entanto a propaganda não perde sua funcionalidade. Na verdade,

a função parece ser ainda mais enfatizada e ganha força sua capacidade comunicativa. No

caso da tirinha que foi apropriada, Marcuschi (2008, p. 169) dirá que temos aí o caso de “um

texto que não perde sua função, mas assume um novo lugar, ou seja, migra [...] de um

domínio [...] para outro” sem deixar de ser o que é.

Vemos que no caso da intergenericidade, o gênero continua sendo o mesmo apesar de

apropriar-se ou ser apropriado por outro.

Outra interpretação sobre a interação entre os gêneros é dada por Ermerson e Morson

(2008). Os autores fazem um distinção entre gêneros ingênuos e gêneros polêmicos. Os

autores, baseados em Medviédev, concebem o gênero como “um modo específico e visualizar

uma dada parte da realidade” (ERMERSON E MORSON, 2008, p. 291), ou seja,

compreendemos a realidade por meio do gênero, não há apreendemos e depois usamos os

gêneros para expressá-la. Dessa forma, “a medida que aprendemos novos gêneros,

aprendemos a ver diferentemente e expandimos nosso repertório de visão” (ERMERSON E

MORSON, 2008, p. 292).

Por esse motivo, quanto mais se complexifica as experiências humanas, quanto mais

as culturas mudam, novos gêneros surgem. Isso leva a crer que os novos gêneros refletem as

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 720

mudanças sociais. Nas palavras de Ermerson e Morson (2008, p. 293), “tais mudanças levam

a novas experiências e a diferentes gêneros do discurso”.

Por outro lado, um gênero pode influenciar a forma como o outro enxerga uma dada

realidade. Segundo os autores, alguns gêneros só percebem uma forma de conceber o mundo

ou uma dada parte dele, sendo considerados ingênuos. Outros, como o romance, são capazes

de complexificar essa realidade. Enquanto os gêneros ingênuos tende a forças centrípetas, que

o moldam e o enformam, o romance é naturalmente apreciador das forças centrífugas, sujeito

a diferentes entonações e mudança. Os romances seriam “mais cônscios da multiplicidade de

linguagens, esquemas conceptuais e experiências socais; onde os outros poderiam profetizar,

o romance limita-se a conjecturar” (ERMERSON E MORSON, 2008, p. 292). Isso não

significa que os outros gêneros também não possa levar os gêneros rivais a tornarem-se

polêmicos, pelo contrário, os autores enfatizam que que isso acontece, mas que os romances e

os gêneros correlatos o fazem melhor. Por isso, denominam esse processo de reacentuação de

um gênero ingênuo em polêmico como a romancização do gênero. Assim, os autores deixam

claro que após ser romacizado, um gênero muda sua forma de ver a realidade, e acrescentam

que

“depois de perder sua ingenuidade, o gênero pode ainda reafirmar os seus valores

iniciais, continuar a empregar o seu esquema conceptual e voltar a falar sua

linguagem favorita, mas mesmo que o faça terá, não obstante, mudado

(ERMERSON E MORSON, 2008, p. 292).

Em certa medida, em alguns casos essa mudança não chega a ser total, tem-se então a

intergenericidade. Acredita-se, aqui, no entanto, que em outros, a romancização se

complexifica a tal ponto que a mudança produzida pelo contato entre gêneros chega a

produzir um novo gênero, teremos aí uma romancização total.

4. O microconto: um produto da romancização?

Para tentar demonstrar esse processo de romancização total, será analisado o caso do

microconto. Para isso, é necessário esclarecer que gêneros entraram em contato e o geraram.

O prefixo “micro” tende a levar a percepção de que esse gênero não passa de um conto muito

pequeno. A questão que se põe é: o que levaria a produção de um conto muito pequeno? A

ênfase dada pelo adverbio ao adjetivo “pequeno” não é exagero. Mas dizer que o microconto

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 721

é de fato apenas um conto pequeno é desconsiderar a sua natureza, o processo pelo qual o fez

surgir.

Esse gênero, na verdade, é fruto do contato entre os gêneros digitais, como o Twitter, e

o conto. O Twitter é uma ferramenta de comunicação, segundo o próprio criador, e não uma

rede social; assimila-se ao blog, alguns preferem entende-lo como um microblog, como

Alcântara (2013). A característica mais visível do Twitter é que nele só é permitido usar 140

caracteres para produzir um texto. Ele é, portanto, um gênero que olha o mundo de forma

sintética: nele, tudo deve ser sintetizado, resumido e expressado em poucas palavras. O

própria criador, Jack Dorsey (2011) disse em entrevista ao Estadão que “com poucas palavras

as pessoas são mais espontâneas, mais instantâneas”. Além disso, ele é fruto das mudanças

tecnológicas, oriundas da globalização dos equipamentos digitais e da popularização da

internet. Não obstante, ele é um ferramenta própria desse universo, que comporta uma

realidade baseada na informação e na velocidade.

Por outro lado, o conto é um gênero muito antigo com relação ao Twitter.

Comparando-o a forma que ele (o conto) apreende a realidade com a do romance, Ermerson e

Morson (2008) dizem que “o conto tende a ver a vida em termos essencialmente anedótico”

enquanto o romance está adaptado a descrever uma época, as características sociais e

históricas desta. Por esse motivo, os autores lembram que o que diferem o conto de um

romance não é a sua extensão, mas a forma pela qual ambos enxergam a realidade. Cada

gênero, portanto, é mais adaptado a compreender uma dada parte da realidade e da cultura que

o cerca.

É notável que a cultura minimalista já produzia textos literários muito pequenos, mas a

ascensão da internet deu forma relativamente estável ao microconto, pois apesar de não ser

definido a quantidade de caracteres a ser utilizado, alguns preferem limitar a 140 caracteres, o

que aproxima ainda mais esse gênero do Twitter. Segundo Blasina, nem todo texto pequeno é

um microconto, este tem características próprias: concisão, narratividade, totalidade (não deve

ser fragmento de outro texto, deve ser um todo significativo), um subtexto ou informação

implícita, ausência de descrição e retratar o cotidiano. Outro fator predominante é uma

surpresa final, assim como nos gêneros humorísticos, mas não para provocar humor

necessariamente, no microconto há sempre um final arrematador.

A autora ainda destaca que uma de suas características é a ligação com as novas

ferramentas de informação e comunicação, pois um dos fatores que podem determinar a

quantidade de caracteres é a possibilidade de envio por torpedos ou uma postagem no Twitter,

por exemplo. Ora, o surgimento dos gêneros digitais, que têm como característica a

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 722

velocidade da informação, a conversa espontânea e curta, gerou novas necessidade culturais e,

ao entrar em contato com o conto exigiu uma revisão em seu olhar, mas agora não se

imbricou com ele em uma apropriação intergenérica, e sim provocou uma reacentuação tão

profunda que acabou por romancizá-lo por completo, o que derivou em outro gênero, com

características própria e com sua própria forma de refletir a realidade, o microconto:

Texto 2

Disponível em https://twitter.com/microcontos/status/13857113728.

Note-se no texto acima, que é muito comum encontrar microcontos em páginas do

Twitter, não por acaso, ele se configura aí como um intercâmbio entre a ferramenta e a

narrativa. Por isso, é salutar pensar na possibilidade de esses gêneros digitais terem

romancizado o conto, operando uma grande reacentuação em sua natureza. No entanto, como

lembram Ermerson e Morson (2008, p. 318) um gênero novo não suplanta os velhos, apenas

suplementam, ampliam o repertório de gêneros.

Processo análogo pode ter acontecido com a carta pessoal e tenha derivado o e-mail.

Mas tanto um quanto outro processo ainda merece um estudo mais detalhado. Uma sugestão

seria buscar o processo que originou o e-mail, ele comporta traços da carta pessoal, mas tem

como característica fundamental a velocidade na transmissão e internet como meio de

transmissão. Qual gênero competia com a carta antes do surgimento do e-mail? É provável

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 723

que uma resposta a essa questão mostre outro processo de romancização e confirme ainda

mais o que aqui se propõe.

É importante ainda reafirmar que não se está aqui afirmando que o Twitter tenha

originado o microconto, como afirmado anteriormente, os minimalistas já produziam esse tipo

de gênero, mas que sua produção tem uma influência provável das novas tecnologias. E ainda

que o surgimento de gêneros como o Twitter pode estar provocando uma estabilização ao

menos relativa dessa nova forma de ver a realidade, altamente sintetizada e permeada de

sugestão, que é o microconto.

Não se pode negar que o conto é ponto de origem desse gênero, mas igualmente

negável é o fato de ele ter surgido, de alguma forma, de uma modificação na visão tradicional

do conto, que sugere-se aqui ter acontecido com o avanço tecnológico, em especial com o

surgimento dos gêneros digitais.

Considerações

Este artigo, como se percebe, é apenas mais um diálogo de caráter introdutório e

especulativo, não tem a pretensão de chegar a uma conclusão absoluta ou uma afirmativa

generalizadora. Apenas busca sugerir um olhar para o fenômeno da romancização dos gêneros

a partir da relação destes com as ferramentas tecnológicas provenientes da internet. Mais

especificamente as ferramentas que funcionam como gêneros do discurso.

Apesar de partir do caso ainda não conclusivo do microconto, a ideia é pensar como os

gêneros que estão surgindo nos últimos anos podem ter sido gerados a partir de processos de

romancização. É bom lembrar que gêneros mais simples em termos tecnológicos, como o fax,

pode ter levado a carta a enxergar o tempo de forma diferenciada. Com o advento e a

generalização da internet, esse contato pode ter gerado o e-mail, por exemplo.

Se tais observações, por estarem ainda em estágio embrionário, não mostra um

caminho seguro ao menos deixam pistas e trilhas a serem seguidas. Uma dessas pistas aponta

para um questionamento maior, qual seja: além das necessidades de uma determinada época,

quais os elementos formais dão origem aos gêneros? Seria o contato entre eles, que gerariam

novas formas relativamente acabadas de ver e dizer sobre o mundo? Essas são algumas

questões a serem respondidas, e sua resposta comporta estudos e espaços bem maiores que o

de um pequeno artigo científico. No entanto, ficam aqui os apontamento inicialmente

necessários a seu desdobramentos.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 724

Referências

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2011.

BLASINA, Juliana. Microconto: O valor das pequenas coisas Acessível em

http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/print.php?id=4036 Acesso em

08/05/2015.

FIORIN, José Luiz de. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São

Paulo: Parábola Editorial, 2008.

MARTINS, Rodrigo. Um homem de poucas palavras. Estadão on line. São Paulo, 2009.

Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,um-homem-de-poucas-

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MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução

crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo

Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.

MORSON, Gary Saul; Emerson, Caryl. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística.

Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008

MARTINS, Rodrigo. Um homem de poucas palavras. Estadão on line. São Paulo, 2009.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 725

A DESAGREGAÇÃO HUMANA EM MAÇÃ AGRESTE, DE

RAIMUNDO CARRERO [Voltar para Sumário]

Eliene Medeiros da Costa

1 Romance e niilismo

Ao discorrer sobre o romance e sua relação com a modernidade, Claudio Magris

afirma que o gênero é a antiepopeia do desencantamento, da vida fragmentada e desagregada.

Ao dizer isso está se contrapondo ao pensamento de Hegel que defendia o romance como

sendo a “epopeia moderna”.

Para Magris (2009) o moderno surge marcado pela ausência de um código ético e

estético, um fundamento que atribua sentido e unidade à multiplicidade da vida, parece um

acervo sem conexão e articulação de objetos indiferentes. E é nesse contexto que surge o

romance moderno, incorporando essa desarticulação. Por isso, torna-se o gênero por

excelência na modernidade e contemporaneidade, uma vez que nasce em meio à

desarticulação do tempo moderno e por esse motivo é capaz não só de representá-lo, mas de

criticá-lo. Desenvolve-se em meio a um mundo desagregado e caracteriza-se como um

fragmento da desagregação da épica antiga, no entanto parece unificar a totalidade da vida

que o mundo moderno tende a despedaçar. É capaz de celebrar ideais, narrar paixões, debater

questões sociais, informar, fantasiar e produzir conhecimento. Muitos heróis/personagens

presentes nos romances representam a crise da modernidade. Uma das temáticas que segundo

Magris (2009) contribuíram para o desenvolvimento do romance foi o niilismo:

Em Dostoiévski, em Tolstói e em tantos outros grandes autores do romance (ainda

que não apenas do romance, obviamente, mas da literatura em geral) este último é o

cenário do advento do niilismo, fato da modernidade; de seu triunfo, de sua

catástrofe e da resistência a ele. (MAGRIS, 2009, p. 1025)

Caracterizado como o fim dos valores e dos sistemas de valores, o niilismo, segundo

Magris (2009), é fundamental para a existência do romance, assim como o romance tornou-se

um espaço onde o niilismo pode se desenvolver. Sobre o niilismo, Amaral (2011) afirma:

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o niilismo é descrito e comentado por Nietzsche como um movimento de negação

da vida, um processo que move a história do ocidente, à medida que o homem

experimenta o vazio de sentido como consequência da desvalorização dos valores

supremos, os quais se dispunham, in phisiologicis, como exigências para a

conservação “de uma determinada espécie de vida” (AMARAL, 2011; p. 110).

Dessa forma, o niilismo pode ser definido como uma crise de valores e tem como um

de seus preceitos não aceitar as normas impostas pela sociedade. O personagem literário, tal

qual o homem que representa, ao abandonar seus valores supremos e seus heróis como força

representativa, como acontecia em épocas anteriores, está diante do nada. Isso gera um

estranhamento em relação a sua condição de existência no mundo, já que o ser humano já não

coincide consigo mesmo, uma vez que o mundo exterior já não o representa mais. Isso o

coloca frente a um universo de desilusão em que

a força do espírito pode estar fatigada, esgotada, de modo que os fins e os valores de

até então são inadequados e não encontram mais nenhum crédito, de modo que a

síntese dos valores e dos fins [...] dissolve-se, de maneira que os valores fazem

guerra, isoladamente, uns aos outros: esfacelamento -, modo que tudo o que

refresca,cura, apazigua, entorpece, vem para o primeiro plano, sob diversos

disfarces: religioso, ou moral, ou político, ou estético etc. (NIETZSCHE, 2008; p.

37; apud AMARAL, 2011; p. 111).

Na compreensão da dissolução desses valores supremos se faz necessário entender o

conceito de décadence. A qual é expressa como uma crise de valores, nesse contexto, o

niilismo não se constitui como a causa dessa degeneração, mas como sua lógica, já que a

décadence é conduzida pela ‘vontade do Nada’. Ela é definida por Giacoia (2000) como:

Processo de degeneração, dissolução anárquica de uma concreção vital, cuja

estrutura e coesão consiste na hierarquia das forças que a constituem. Uma formação

orgânica decadente caracteriza-se, pois, como uma unidade em desagregação, cujas

partes tendem à anarquia dos elementos‟, à dissolução da totalidade que outrora

constituíam (GIACOIA, 2000; p. 21; apud AMARAL, 2011; p. 112).

Nesse sentido, o vício, a doença, a libertinagem, o pessimismo são consequências da

decadência. Características que se fazem presentes em diversas obras literárias

contemporâneas. É o caso da obra Maçã agreste do escritor pernambucano Raimundo

Carrero.

2. Desagregação do humano em Maçã agreste

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A epígrafe inicial do romance Maçã agreste já nos remete a um mundo desprovido de

valores. Trata-se de um curto enunciado de autoria de Dostoiévski que diz o seguinte:

“Convenha, é uma desgraça para uma época não saber mais a quem respeitar. Não é mesmo?”

E é nesse universo de “desrespeito” que somos inseridos ao começarmos a ler o romance.

Universo que começa a ser tecido em 1989 e se perpetua pelas demais obras que se seguiram.

Somos apresentados a personagens que só poderemos conhecer melhor em outras obras. Ao

adentrarmos no romance nos encontramos com Dolores, Ernesto Cavalcante, Jeremias,

Raquel, Sofia e Alvarenga. Além disso, somos remetidos a três diferentes espaços físicos: o

engenho pertencente à família de Ernesto, resquício da cultura canavieira, o qual obviamente

está dando seus últimos suspiros e é rapidamente devastado pela imprudência e inexperiência

do herdeiro, Ernesto; um casarão, situado na Praça Chora Menino, em Recife; e uma zona de

baixo meretrício, onde moram Jeremias, Raquel, Sofia e Alvarenga.

Usamos o termo desagregação aqui como sinônimo de decadência. A desagregação

humana é marcada, na obra, pela ausência de valores, especialmente na família formada por

Ernesto e Dolores, os pais, e Jeremias e Raquel, seus filhos. Filho de senhor de engenho,

Ernesto abusava de sua lascívia com as negras, antes e depois do casamento com Dolores.

Conhece a jovem em Recife quando vai estudar Direito e resolve casar-se com ela num

momento de desespero, uma vez que no momento que percebe que não tem habilidades de

seguir a carreira jurídica, nem casar com uma moça da alta sociedade decide se suicidar.

Dolores, secretária da faculdade onde ele estudara, pobre, pertencera, na época, ao ciclo de

amizades do rapaz e por um in-feliz acaso o encontra num mercado no dia em que ele vai

comprar comida para morrer de “barriga cheia”. Ao encontrá-la ele resolve abandonar a ideia

da morte e casar-se com a moça. Desse casamento nascem Jeremias e Raquel. O pai mantém

durante muito tempo uma relação incestuosa com a filha, fato que começa num armazém do

Engenho Estrela e se perpetua pelo casarão da Chora Menino. Quando se tornam adultos, os

filhos resolvem abandonar o casarão no intuito de se enveredarem por um universo

degradante: Raquel resolve ser prostituta; Jeremias, em princípio sai da casa dos pais para

tocar saxofone em um cabaré, depois se torna o líder da seita Os soldados da Pátria por

Cristo, um grupo que se reveza entre momentos de orações e momentos de todo tipo de crime.

Com a saída dos filhos, Dolores mata o marido.

Este romance mantém uma espécie de continuidade com as obras escritas

posteriormente, pois personagens apresentados nele vão aparecer, muitas vezes,

completamente ressignificados em obras escritas posteriormente. De forma, que os textos

mantêm uma espécie de intratextualidade, especificada num diálogo recorrente entre elas,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 728

onde algumas coisas que ficam obscuras numa obra são elucidadas em outra. Nesse sentido,

destacam-se, A minha alma é irmã de deus, Seria uma sombria noite secreta, O amor não tem

bons sentimentos e Tangolomango: ritual das paixões deste mundo. Tomamos como exemplo

o caso do assassinato de Ernesto, que em Maçã agreste fica meio obscuro, sendo esclarecido

melhor em O amor não tem bons sentimentos. Onde fica esclarecido que Dolores assassinou o

marido. Em O amor não tem bons sentimentos, encontramos Matheus, que fora criado com

uma tia, Guilhermina, o qual após a prisão de Dolores torna-se responsável pelo casarão e

pelas visitas à mãe na Penitenciária. Já em Seria uma sombria noite secreta, nos

reencontramos com Rachel e Alvarenga, ficamos conhecendo a vida de abandono e pobreza

dele e sua relação de amor subserviente com Rachel. Subserviente porque ele se torna uma

espécie de protetor da prostituta, tocando corneta para chamar seus clientes em troca de um

chocolate em forma de peixe dourado, como se fosse um animal de estimação. A minha alma

é irmã de deus nos apresenta Camila, personagem que se apresenta de forma multifacetada, já

que se metamorfoseia em diferentes personagens, em um momento é Mariana da novela As

sementes do sol, o semeador, em outro é Raquel de Maçã agreste, se metamorfoseia também

em Ísis de Somos pedras que se consomem e por fim é Camila, a jovem que quer ser santa

para desfilar no exército das onze mil virgens do Paraíso. Já em Tangolomango: ritual das

paixões deste mundo nos deparamos com tia Guilhermina e sua relação incestuosa com o

sobrinho-filho Matheus.

Maçã agreste foi caracterizada pelo jornalista, Carlos Menezes do jornal O Globo

como uma “sinfonia a cinco vozes”, pois “se impõe diante da violência, da crueldade e do

cinismo contemporâneos, e assim aprofunda e leva a conhecer melhor o abismo da condição

humana” (PEREIRA, 2009; p. 36). Entendemos que essa sinfonia dá-se pela presença das

vozes dos personagens: Ernesto, Dolores, Jeremias, Raquel e Sofia no decorrer do enredo.

Vozes que quase nunca representam algum tipo de comunicação entre eles, mas caracterizam-

se mais por um constante diálogo monológico. Trata de um personagem solitário em sua

essência, que mesmo quando está em meio a uma multidão é solitário.

José Castelo caracteriza a obra carreriana como uma escrita só lâmina, devido a sua

configuração voltada a narrar, muitas vezes, o lado obscuro do ser humano. O qual está

sempre envolvido por uma espécie de penumbra. Exemplo disso é o personagem Judas de

Sombra severa que vive com o rosto constantemente escondido sob a aba do chapéu. Castelo

(2005) ainda destaca que há em Carrero, assim como nos mestres russos, um interesse pelos

subterrâneos, pelo obscuro e pelos abismos. Pois seus personagens “configuram a própria

condição humana. A vida é ambígua e mutilada” (CASTELO, 2005; p. 17). Eles estão

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 729

condenados à infelicidade, pena imposta por uma condição existencial que eles sofrem,

marcada pela dificuldade de aceitar a fragilidade da vida e a fatalidade a que estão sujeitos.

Em Maçã agreste destaca-se a degradação ou decadência humana. A degradação

presente na obra em estudo se dá em diferentes aspectos: social, moral, religioso, econômico.

No plano social, percebemos que a parcela da sociedade descrita no romance é

composta por marginalizados: ladrões, prostitutas, assassinos, os quais são caracterizados pelo

narrador como “os abandonados da sorte, os destroçados” ou “figuras de um mundo

irremediavelmente em decadência”. Dessa forma, a família de Jeremias, todos os personagens

que aparecem na narrativa e o próprio ambiente em que o enredo acontece, a cidade do

Recife, caracterizam-se como símbolos desse mundo irremediavelmente em decadência.

A degradação social também é inerente à família de Jeremias, uma vez que a pobreza

desencadeada pela perda dos bens pertencentes ao pai deixou-os à margem da sociedade. Seu

pai metaforiza a decadência da cultura canavieira. Sua mãe torna-se assassina, sua irmã decide

ser prostituta, após perder passivamente a virgindade com um suposto desconhecido no escuro

de um dos pavilhões do Engenho, que na verdade era seu próprio pai. E ele Jeremias torna-se

o profeta dessa decadência, o mestre de uma seita baseada na violência e nos mais diversos

crimes.

No plano moral, destacamos a falta de princípios éticos e morais de Ernesto que já na

adolescência enganava os professores para não ser reprovado na faculdade. A ausência dos

princípios morais é ainda mais demarcada nas relações sexuais que mantém com a filha na

casa onde mora com o filho e a esposa. Outro traço que define a ruína desses princípios é o

comportamento dos membros da seita liderada por Jeremias, que em nome de uma suposta

religião, estupram, roubam, enganam e matam.

No plano religioso, destaca-se a seita criada por Jeremias, nomeada Soldados da Pátria

por Cristo, que subverte as normas pregadas pelas religiões oficiais. Essa subversão

caracteriza-se pelos princípios que norteiam a seita, já que a noite é um “horário livre para

estupros, assaltos, putaria, chantagem, vadiagem, molecagem e outras atividades exclusivas

dos integrantes da confraria” (CARRERO, 1989, p. 207). Princípios completamente

contrários àqueles que norteiam as religiões oficiais.

No plano econômico, a degradação se dá pela falência de Ernesto que passa a ser

sustentado pelos filhos. É apontada também pelo trabalho que ele e a irmã passam a exercer e

pelo próprio casarão, resquício da época em que o pai era um rico latifundiário: “Naquele

tempo a decadência da família não era apenas sentida, mas vista e até tocada. A decadência

profunda e física, empurrada para a desgraça, revelada na casa sem pintura e nos móveis

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 730

gastos” (CARRERO, 1989; p. 166). Uma decadência que pode ser vista, sentida e até tocada.

Materializada e metaforizada na casa sem pintura e nos móveis gastos é caracterizada pelo

narrador como uma decadência profunda e física que empurra os personagens para a desgraça.

A qual é revelada pela prostituição, assassinato e demais transgressões praticadas pelos

personagens.

3. “Uma viagem pelo desespero”

Um dos traços que caracterizam o personagem Jeremias é caminhar sem um destino

pela cidade de Recife, especialmente pelos bairros pobres. A cidade é descrita como uma

“cidade coberta pelo lodo da miséria”. No entanto, esse universo degradante nos parece

cativá-lo, de forma que parece preso a esse universo decadente:

Pensava insistentemente na noite, nas duas noites, em que vagou pelas ruas da zona

em decadência, vazias, escuras e vazias, as mulheres paradas nas esquinas,

ostentando misérias e doenças, rindo, e rindo, e rindo sem dentes, as mulheres

implorando companhias, e ele andando, andando, andando, sem conseguir parar,

fumando, sem comer, fumando e bebendo, em busca do infinito. Rodopiando. Às

vezes rodopiando pelo mesmo quarteirão, parava junto de Alvarenga, em vigilância

perpétua, e conversava, retirava-se sem se despedir e continuava andando, fiel

guarda da noite, incapaz de guardar a si mesmo, ia até o princípio da ponte mas não

conseguia atravessá-la, não conseguia. Ali os pés chumbavam-se ordenando-lhe o

retorno, e retornava, era um desses cães perdidos, que farejam calçadas, cheiram o

chão, mudam de destino (CARRERRO, 1989; p. 213).

Percebe-se nesse momento o completo estado de inquietude em que o personagem se

encontra, incapaz de um minuto de paz. Apesar de estar imerso num universo de decadência,

desilusão e angústia, ele não almeja retirar-se dele. Parece que só nesse ambiente ele se

completa. E por mais que tente atravessar a ponte, que metafórica e literalmente o distanciaria

desse universo, não consegue, sempre retorna. Temos em um primeiro plano uma cena

corriqueira de uma grande cidade, um ponto de prostituição, temos uma cena banal do

cotidiano a qual é ressignificada pelo ir e vir de Jeremias em meio à cena decadente, composta

por prostitutas miseráveis e doentes.

Esse constante caminhar de Jeremias o assemelha do personagem do conto O homem

na multidão de Edgar Allan Poe, o qual se apresenta como um personagem emblemático da

literatura contemporânea. A história é narrada da perspectiva de um narrador personagem que

em determinado dia se depara com um homem que lhe chama a atenção, ao qual resolve

seguir. Percurso que dura por volta de vinte e quatro horas, no qual o homem não fala com

ninguém, nem para de caminhar, sempre buscando as ruas e os lugares movimentados, e se

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 731

angustiando quando percebe que o lugar onde se encontra está perdendo o movimento de

pessoas. Dessa forma, o fato de Jeremias permanecer durante duas noites “andando, andando,

andando, sem conseguir parar, fumando, sem comer, fumando e bebendo, em busca do

infinito”, dialoga com o comportamento do homem da multidão e parece demarcar uma

consciência angustiada, que tenta aliviar essa angústia andando, vagando em meio aos pobres,

prostitutas e miseráveis. Assim como o personagem do conto de Poe que apenas caminha em

busca de espaços em que estejam presentes várias pessoas. Encontramos nesse conto

personagens pertencentes a diferentes classes sociais, já Jeremias tende a observar os

marginalizados. No entanto, ambos são anulados pela “multidão”, vagam por cidades como

embriagados em estado de completo abandono, semelhantes ao flanêur de Charles Baudelaire.

As andanças de Jeremias são caracterizadas como uma viagem pelo desespero, o qual

já fazia parte de toda a sua vida:

Quando saíra de casa e por onde estivera, era impossível responder, agora. Não

sentiu amargura, nem agonia, nem arrependimento. Imprevisível, tudo o que lhe

aconteceu. Uma viagem pelo desespero, como aliás tinha sido toda a sua vida, toda a

sua inquietante vida, e estava cansado demais para procurar uma resposta.

(CARRERO, 1989, p. 21)

Desespero que faz parte da degradação que ele vivencia em seu meio familiar,

desprovido de valores e também no espaço físico em que está inserido, povoado pelo crime,

prostituição, miséria e decadência.

4. O profeta da decadência

Jeremias, numa conversa, discute com Sofia a respeito do significado dos nomes das

pessoas, em relação ao seu próprio nome afirma: “— Talvez o meu seja o mais apropriado,

porque nenhum outro personagem lamentou-se tanto por não ter permanecido no ventre da

mãe” (CARRERO, 1989, p. 31). É perceptível a relação de intertextualidade entre esse

enunciado e o livro de Jeremias da Bíblia judaico-cristã. Onde o profeta bíblico lamenta-se

por não ter morrido no ventre materno para não precisar anunciar a devastação de Jerusalém,

se a cidade não se rendesse aos babilônicos. Analogamente, o personagem carreriano lamenta-

se por ter que presenciar o sofrimento do mundo:

Saí de casa, outro dia, ao anoitecer. Sem dizer nada a ninguém lamentava-me por

não ter permanecido no ventre de minha mãe para não ser obrigado a assistir ao

desespero do mundo, para não me ser imposta a visão de homens e mulheres que

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vivem os grandes tormentos, que formam a contorção da existência e que são

incapazes de construir a estrada que nos leva à casa do sacrifício. [...] — A princípio

pensei que, como agora, devia apenas perambular pelas ruas, cansando-me.

Guardava raiva dos revoltosos e dos devassos, dos mansos que se deixam dominar

pelos desesperados. Caminhei. Caminhei muito, Sofia. Mas não cansei, e era grande

o meu esforço, não cansei. Disse depois, a mim mesmo, que deveria atirar-me no

mundo feito um profeta anunciando as suas lamúrias e os seus lamentos, suas pragas

e suas antecipações, até que as carnes estivessem inteiramente devoradas pela fome

e pela sede, eu próprio sem saber mais onde estavam meus pés e minhas mãos

(CARRERO, 1989, p. 29 - 30). (Grifo nosso)

Um mundo em que as pessoas estão famintas e desesperadas, se contorcendo em torno

de sua própria existência. Incapazes de encontrar um caminho para solucionar tal sofrimento.

Diante disso sagra-se profeta. Afirma que sua missão é como um chamamento divino, que

visa salvar da dor e da fome do frio e do calor, da ira e da perseguição, os desvalidos que

andam pelas ruas desnutridos e desnudos. Cria uma seita e sai pelas ruas em busca de

seguidores oferecendo falsos milagres. É seguido por uma multidão de miseráveis que buscam

livrar-se de seus males:

Protegidos em muletas, arrastados em carros de madeira, pulando numa única perna,

os aleijados se aproximavam, os loucos tresvariando, excitados e mistificados, os

mendigos retirando moedas de mochilas imundas, estendendo as mãos esqueléticas e

comprando porções do vinho milagroso, capaz de restituir o viço, de sarar os males,

trazendo sorte e dinheiro (CARRERO, 1989; p. 29).

Ironicamente explora àqueles de quem anteriormente se compadecera, vendendo-lhes

porções milagrosas e extorquindo-lhes o pouco que têm. Jeremias é o profeta da decadência.

A decadência está em sua vida pessoal, no meio em que vive e também na seita que lidera, já

que Os Soldados da Pátria por Cristo é uma seita baseada em falsos milagres e na violência,

pois organiza assaltos, explora crianças e pratica uma série de atos considerados ilícitos.

Características essas, que dialogam com a decadência, no sentido de que as práticas pregadas

por essa seita remetem a ideia de um humano desprovido de valores religiosos, pelo menos

dos valores aceitos socialmente. Mesmo porque o motivo que o levou a “oficializar” os

trabalhos de sua seita foi uma ameaça de Daniel, um adolescente delinquente que cometera

alguns assassinatos nos quais Jeremias também estava envolvido: “Daniel quer proteção, terá.

Formaremos um grupo de salteadores, de vagabundos e de criminosos. Terão toda a noite para

roubar e matar, durante o dia rezaremos e louvaremos a Deus e a pátria. Sou o que sou e

sendo o que sou não retornarei mais à poeira antiga” (CARRERO, 1989; p. 223). Dessa

forma, a trama desenvolvida na obra apresenta um protagonista que tem um misto de santo e

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de bandido, o qual apresenta duas faces, durante o dia lidera a seita e a noite os bandidos,

estupradores e assassinos que praticam os mais diversos crimes.

5. O subsolo de Jeremias

O comportamento do personagem Jeremias coloca-o numa espécie de mundo

subterrâneo que o aproxima do homem do subsolo de Dostoiévski. A novela que recebe esse

nome retrata o cotidiano de um personagem profundamente egoísta, apático à sociedade, que

vive recluso numa pequena casa, sem amigos, trabalho ou religião e sente-se superior aos

demais indivíduos, aqueles pertencentes à superfície. O subsolo representa a fuga do homem

moderno dos conflitos que surgem na sociedade, frutos de um novo estado de organização

social, política, religiosa e de pensamento, ancorados numa quebra dos valores vigentes. Para

Frank (2002)

a expressão “homem do subterrâneo” tornou-se parte do vocabulário da cultura

contemporânea, e essa personagem alcançou hoje em dia [...] a estatura de uma das

grandes criações literárias arquetípicas. Nenhum livro ou ensaio que estuda a

situação precária do homem moderno estaria completo sem alguma alusão à

explosiva figura de Dostoiévski (FRANK, 2002; p. 427).

Percebe-se, dessa forma, a importância do homem do subterrâneo para compreender a

situação do homem moderno. O personagem carreriano se assemelha ao homem do

subterrâneo no que diz respeito a mostrar-se apático à sociedade, pelo menos a parcela mais

abastada dela. Ele sente-se sufocado em meio aos prédios da cidade do Recife, em meio aos

ricos. No entanto, não se isola da sociedade, ao contrário, mistura-se aos esquecidos, aos

abandonados pela sociedade, aos decadentes. Seu subsolo é um mundo assinalado pela

degradação e pela ruína.

Assim, Maçã agreste é uma obra marcada pelo sofrimento e pela degradação humana,

já que seus personagens têm como traço marcante a ruína. Ernesto caracterizado pela

degradação moral e econômica. Degradação que reflete em todo o núcleo familiar, revelado

no assassinato cometido por Dolores e também na vida levada pelos seus filhos, Raquel e

Jeremias, frutos da decadência dos pais, caracterizados pela prostituição e por uma série de

atitudes que remetem à decadência e à degradação. Características que segundo Cruz (1998),

fazem parte das sociedades modernas.

O personagem Jeremias é metaforizado como símbolo dessa decadência, pois escolhe

ser profeta, funda sua própria “religião” que é baseada em seus próprios princípios. Princípios

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 734

degradantes, uma vez que subvertem aos valores sociais, morais, e até mesmo aos valores

religiosos, à medida que está baseada na violência e em atos ilícitos.

6. Considerações finais

Em Maçã agreste podemos perceber uma desvalorização de valores, traços que são

inerentes ao niilismo. Podemos dizer que as normas sociais são subvertidas nos aspectos:

moral, físico, social e religioso e econômico. Os personagens vivem à margem da sociedade e

não seguem as regras ditadas por ela, conduzem a vida à margem de tudo que pode ser

aceitável socialmente como conduta normal do ser humano.

Esse romance, pertence ao conjunto de obras que retratam os problemas e inquietudes

da modernidade, focando a decadência humana, uma vez que seus personagens são

representativos de uma subversão social, física, religiosa e moral negativa. É um texto que nos

coloca frente a um retrato social que todos fingem não ver.

A maioria das obras do escritor Raimundo Carrero, escritas anteriormente a Maçã

agreste, mantêm uma relação muito forte com alguns livros bíblicos, podendo ser

consideradas reescritas deles. Percebe-se já nessas obras um constante questionamento em

relação à fé, a Deus, de forma que, seguindo o pensamento de Priscila Varjal, os personagens

buscam preencher um vazio, o qual nas obras escritas após Maçã agreste parece ser

preenchido justamente por essa transgressão de valores baseada em incestos, estupros, crimes,

enfim através de uma negação de valores.

7. Referências

AMARAL, Cassiano Clemente R. Algumas considerações sobre Memórias do Subsolo a

partir de um referencial nietzscheano. In: 6° Encontro na Graduação em Filosofia da Unesp.

Vol. 4, n° 1, 2011.

CARRERO, Raimundo. Maçã Agreste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.

CASTELO, José. Uma escrita só lâmina. In: CARRERO, Raimundo. O delicado abismo da

loucura. São Paulo: Iluminuras, 2005.

CONCEIÇÃO, Auríbio F. Somos Pedras que se Consomem em Angustia: a temática da

inquietação no diálogo entre Graciliano Ramos e Raimundo Carrero. 2004. 100f. Dissertação

(Mestrado em Letras e Lingüística. Área de concentração: Literatura) ― Centro de Artes e

Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

CRUZ, Elcy Luiz. A Simulação Real: narrativa carreriana em “Somos Pedras que se

Consomem” e o e o mundo pós- moderno. 1998.159f. Dissertação (Mestrado em Letras e

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 735

Lingüística. Área de concentração: Literatura) ― Centro de Artes e Comunicação,

Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

Dicionário online de português. http://www.dicio.com.br/decadencia/ Acesso em: 14 de

outubro de 2014.

DOSTOIÈVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tradução Boris Schnaiderman. São Paulo:

Editora 34, 2009 (6ª Edição).

FRANK, Joseph. Dostoiévski: Os Efeitos da Libertação 1860-1865. Tradução Geraldo

Gerson de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.

MORETTI, Franco (Org.). O romance é concebível sem o mundo moderno? In: O Romance.

A Cultura do Romance. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Cosacnaify, 2009.

NEVES, Edilene Soares. A Construção social e Intertextual em “A Sombra Severa” de

Raimundo Carrero. 1999.136f. Dissertação (Mestrado em Letras e Lingüística. Área de

concentração: Literatura) ― Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de

Pernambuco, Recife.

PEREIRA, Marcelo. Raimundo Carrero: A fragmentação do humano. Recife: Caleidoscópio,

2009.

POE, Edgar Allan. O homem na multidão. In: Histórias Extraordinárias. Tradução de P.

Nasetti. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2000.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 736

A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM LAÇOS

DE FAMÍLIA, DE CLARICE LISPECTOR [Voltar para Sumário]

Elizabete Sampaio Vieira da Silva 1

Elisabeth Battista 2

I Considerações preliminares

A coletânea de contos Laços de família, publicada em 1960, trata-se de uma obra

composta por treze contos que retratam o aprisionamento do ser humano, especificamente das

personagens femininas em decorrência dos laços familiares. Os contos retratam a sociedade

carioca nos anos 60, questionam o modelo social patriarcal no qual a mulher vivia

aprisionada, denunciando a coerção e repressão das quais eram vítimas, a autora traça um

perfil da figura feminina que em virtude do casamento, muitas vezes, por ser arranjado pela

família, vivia alienada e sobrevive de aparências.

Na perspectiva supracitada a respectiva produção objetiva analisar a construção das

personagens de Clarice Lispector nos contos Amor e Laços de Família visando dar destaque à

figura feminina. A autora Clarice Lispector é um ícone da literatura moderna no Brasil,

iniciou sua carreira muito cedo, aos 16 anos teve um de seus contos publicado no jornal

literário Dom Casmurro, trabalhou como jornalista e só então escreveu seu primeiro romance

Perto do Coração Selvagem, que foi publicado em 1944, pela editora do jornal onde

trabalhava. A repercussão crítica da obra foi muito rápida, Sérgio Millet (1945 apud Coelho,

2002) foi um dos primeiros críticos a se manifestar sobre este romance de Clarice Lispector,

segundo ele:

A obra de Clarice Lispector surge no nosso mundo literário como a mais séria

tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai além,

nesse campo quase virgem de nossa literatura, da simples aproximação; pela

primeira vez um autor penetra até o fundo da complexidade psicológica da alma

1 Mestranda no Curso de Pós Graduação Stricto Sensu em Estudos Literários da Universidade do Estado de Mato

Grosso/PPGEL, sob orientação da professora doutora Elisabeth Battista 2 Professora Doutora em Estudos Literários da UNEMAT e orientadora do Curso de Pós Graduação/PPGEL no

Campus de Tangará da Serra/MT

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moderna, alcança em cheio o problema intelectual, vira no avesso, sem piedade nem

concessões, uma vida eriçada de recalques. (COELHO, 2002, p.129)

A autora foi uma das pioneiras a propor por meio de sua produção ficcional a ruptura

com os paradigmas e valores estéticos incorporados à literatura de autoria feminina produzida

até então. Clarice Lispector engendra novas perspectivas acerca da mulher no cenário

literário, há em sua produção intenção de protesto, de denúncia, de desarticulação de modelos,

de valores predominantes vigentes, bem como a tentativa de resgate e libertação das vozes

negligenciadas pelo sistema patriarcal, além do rompimento com os conceitos de ficção

existentes. Em concordância com Lúcia Ozana Zolin (2005):

A obra de Clarice Lispector significa, na trajetória da literatura de autoria feminina

no Brasil, um momento de ruptura com a reduplicação dos valores patriarcais que

caracteriza a fase feminina [...] Pode-se dizer que ela inaugura outra forma de narrar

dentro de um espaço tradicionalmente fechado à mulher. Trata-se do marco inicial

da fase feminista. Chamá-la de feminista não significa, contudo, que as obras que

nela se inserem empreendam uma defesa panfletária dos direitos da mulher.

Significa, apenas, que tais obras trazem em seu bojo críticas contundentes aos

valores patriarcais, tornando visível a repressão feminina nas práticas sociais, numa

espécie de conseqüência do processo de conscientização desencadeado pelo

feminismo. (ZOLIN, 2005, p. 279)

Diferentemente de outras obras de autoria feminina como os romances Úrsula (1859) de

Maria Firmina dos Reis, A intrusa (1908), de Júlia Lopes de Almeida e A sucessora (1934),

de Carolina Nabuco, produções que consciente ou inconscientemente reafirmavam os valores

patriarcais sobre as limitações culturais preconceituosas que ditavam o comportamento social

esperado pelas mulheres, as produções de Clarice Lispector inovaram no sentido de se

consolidar como um espaço no qual a mulher, enquanto sujeito histórico, ganha voz, ao poder

manifestar seus anseios, frustrações, insatisfações, medos silenciados pela opressão da qual

foram vítimas por um longo período, contribuindo assim para desfazer assim os estereótipos

que figuravam na ficção.

Elóidia Xavier (1991, p.16) afirma que há na produção ficcional clariceana a

problematização da condição social da mulher. Segundo ela: “a domesticidade da mulher é

posta em xeque, no que ela representa de coerção e repressão; é o momento de ruptura”. Isso

significa que a escritora foi pioneira ao trazer para a arte literária as angústias existenciais que

permeavam o universo feminino, especialmente, no sentido de imprimir à obra ficcional

valores que se diferenciavam daqueles apregoados pelo sistema convencional. As

idiossincrasias que permeavam a identidade feminina, que permaneciam ocultas começaram

com Clarice a ganhar destaque e a incitar o imaginário de seus leitores.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 738

Esses questionamentos, a busca da mulher pela compreensão do seu papel em meio à

sociedade e a tentativa da construção de uma identidade própria, passa a ser representada na

literatura não mais pela ótica masculina, mas sob uma perspectiva feminina.

A introspecção manifestada pelo uso constante de monólogos interior é uma

característica recorrente na produção ficcional clariceana, a autora inaugura uma nova forma

de escrita adentrando em território, até então, não explorado pela literatura, mergulha no

mundo interior de suas personagens, no inconsciente humano e contribui para desvelar alguns

dos conflitos interiores femininos mais íntimos, alguns dos mistérios que permeiam a

existência humana. De acordo com Nelly Novaes Coelho:

Primeira voz, na literatura brasileira, a expressar à agônica/desafiante crise de

conhecimento do ser e do dizer que nos rastros do Existencialismo) se radicalizou

como uma das grandes interrogações do século XX, Clarice Lispector é vista [...]

como um dos vértices mais altos da nossa moderna ficção de húmus metafísico.

(COELHO ,2002, p.130)

Vale ressaltar que A coletânea Laços de família foi publicada em meio a um período

de revolução comportamental marcada pelo surgimento do Feminismo, um movimento

político, social e filosófico que buscava a instauração de uma igualdade de direitos entre

homens e mulheres, a libertação destas diante do ambiente machista que a relegavam a um

papel de inferioridade e submissão total, a inserção da mulher no meio literário. Nesse sentido

a ficção clariceana encarregou-se, por meio da linguagem desvelar a dor, os desejos dessas

mulheres e a valorização da produção literária feminina.

II A construção das personagens femininas em Clarice Lispector

A obra de Lispector – ao falar sobre a condição da mulher, e ao

inscrevê-la como sujeito da estória e da história – não se limita

à postura representacional de espelhar tal qual o mundo

patriarcal e denunciá-lo, como se mergulhássemos nas águas de

uma narrativa de extração neorealista.Nela se constrói, isto sim

um campo de meditação ( e de mediação) em que se aprofunda

o questionamento das relações entre literatura e sociedade.

Lúcia Helena

A epígrafe acima apresenta perspectivas que são observáveis nos contos “Amor” e

“Laços de família” os quais narram histórias de duas mulheres que vivem uma rotina

aparentemente normal com suas famílias, donas de casa exemplares, mães, esposas amorosas,

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 739

mas que em certo momento da narrativa tomam consciência de que, na verdade, estão

enclausuradas, oprimidas, sufocadas e infelizes, nesse espaço familiar que oscila entre um

local de proteção e opressão simultaneamente:

“Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar

perplexamente lhe dera. [...] O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para

sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundia

com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de

adulto.”(LISPECTOR, 1998, p.20)

Logo no início do conto “Amor” percebe-se que a personagem Ana vive imersa em

uma rotina de mulher, esposa e mãe tentando se convencer de que isso lhe basta: “Por

caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o

tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro,os filhos que tivera

eram filhos verdadeiros.”( Lispector 1998, p. 20).Todavia há momentos em que essas certezas

se perdem em meio a sensações de angústia, os devaneios e o medo abalam o cotidiano

da personagem:

“Certa hora da tarde era mais perigosa. [...] Quando nada mais precisava de sua

força, inquietava-se. [...] Sua preocupação reduzia-se a tomar cuidado na hora

perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada

membro da família distribuído nas suas funções.” (Lispector, 1998 p. 19-20).

A personagem tem receio do ócio, e de tudo que ele pode lhe provocar, ela precisa se

sentir útil busca o amparo do cotidiano para continuar acreditando que está tudo bem, mas a

rotina e os afazeres domésticos que mantém a personagem longe de suas inquietações são na

verdade um refúgio no qual Ana tenta se esconder de si mesma: “Ana sempre tivera

necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera”

(LISPECTOR, 1998, p.20).

Observa-se, ainda, que o anseio pela liberdade é algo que causa medo em Ana, pois a

personagem foge das situações que de alguma forma possam alimentar o sentimento que

guarda no seu inconsciente. Como o papel social da mulher já estava culturalmente definido,

Ana sente-se perdida quando não há mais o que fazer, é como se nesses momentos não

soubesse quem é, coloca em dúvida a própria existência.

Aos poucos se percebe pelas pistas deixadas pelo narrador que na verdade Ana era

uma mulher triste, que vivia um conflito existencial profundo: “Quanto a ela mesma, fazia

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 740

obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida.

Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera”. (LISPECTOR, 1998, p. 21).

Mas o que tanto a personagem temia acaba acontecendo, e a partir de um encontro

com um cego no bonde quando retornava das compras ela vê sua vida modificada, e tudo o

que antes era suficiente, agora não era mais, a frustração toma conta da personagem que a

partir desse encontro entra em crise, passa a ter outra percepção do mundo e de sua realidade:

“Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles. [...]

Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. [...] o mal

estava feito. A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando

tricotara.A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o

que fazer com as compras no colo.E como uma estranha música, o mundo

recomeçava ao redor.O mal estava feito.” ( LISPECTOR, 1998,p. 22).

O encontro com o cego abala a vida da personagem, ela vê no cego o quanto estava

presa, consegue compreender tudo que teve que abrir mão em razão do casamento e dessa

falsa felicidade que esse casamento lhe proporcionara até então. Deixando eclodir sua ânsia

de liberdade, a vida agora tinha outro sentido, Ana percebe o espaço familiar de outra

maneira, a insatisfação é o sentimento que domina seus pensamentos:

“Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse [...] tudo

feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma

despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de

náusea doce, até a boca.” (LISPECTOR, 1998, p. 23).

A personagem percebe que, todo o cuidado que tivera para não se deixar influenciar

pelos seus desejos inconscientes de liberdade fora dilacerado por essa experiência que lhe

rouba a paz, isso fica explícito no seguinte trecho: “Os dias que ela forjava haviam- se

rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la.

De que tinha vergonha? [...], não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade

de viver.” (LISPECTOR, 1998,p. 27)

Apesar de todas as transformações pelas quais Ana passa, ela ainda não consegue se

desvincular desse espaço familiar, e acaba optando por voltar a sua rotina como uma forma

de se sentir mais segura, ainda que essa segurança lhe sufoque e lhe angustie, e nas mãos do

marido encontra uma saída para retornar ao cotidiano: “ Num gesto que não era seu, mas que

pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a

do perigo de viver.” (LISPECTOR ,1998, p.29).

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 741

A personagem Catarina do conto “Laços de família” vive a mesma crise existencial

que Ana, tem uma relação conturbada com a mãe, o marido e, também, com o filho. A

personagem sente o sufocar de um cotidiano que lhe aprisiona e percebe o quanto é

assustadora a falsa tranquilidade do espaço familiar. A solidão é algo constante na vida da

personagem, e ela se dá conta disso no momento em que é lançada contra a mãe durante uma

freada brusca do táxi que as levariam para a estação:

“Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito

esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam

realmente abraçado ou beijado [...] Como se “mãe e filha” fosse vida e repugnância.

Não, não se podia dizer que amava sua mãe.Sua mãe lhe doía, era isso.”

(LISPECTOR, 1998,p. 96-97).

Não há proximidade entre mãe e filha, a relação é marcada pela frieza, não havendo

lugar para intimidade, afeto, ou qualquer tipo de proximidade: “Que coisa tinham esquecido

de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito

assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.” (LISPECTOR,

1998,p. 97).

Catarina acredita que a mãe nunca gostou dela e como forma de se proteger, não se

permite amá-la, reproduz, sem perceber, com o filho o mesmo modelo de relação falida que

teve com mãe, pois é uma mãe distante, só se dá conta disso no momento em que ouve o

filho chamá-la de mamãe:

“Catarina voltou-se rápida.Era a primeira vez que ele dizia “mamãe” nesse tom e

sem pedir nada.[...] Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da

própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o

menino, não só com os olhos:o corpo todo riu quebrando um invólucro, e uma

aspereza aparecendo como uma rouquidão.”( LISPECTOR, 1998,p.100)

A partir desse “reencontro” com o filho, Catarina consegue se perceber de uma maneira

diferente, suas verdades são desconstruídas, ela liberta-se, o que frustra o marido ao observar

a nova relação que surge entre mãe e filho:

“ Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e

dissera-se: ela está tomando o momento de alegria - sozinha.Sentia-se frustrado

porque há muito não poderia viver senão com ela.E ela conseguia tomar seus

momentos sozinha.” (LISPECTOR, 1998,p.102).

Observa-se que os traços da personalidade das personagens são muito bem construídos

pela autora, num jogo de palavras no qual as mulheres são infelizes, extremamente solitárias,

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 742

tímidas, caladas, sem perspectivas e, de maneira repentina, dão uma guinada na sua trajetória

a partir da consciência do lugar e/ou do não lugar que ocupam na sociedade.

As personagens femininas clariceanas carregam consigo uma herança de opressão e

repressão muito forte. Vivem um conflito interno intenso, que as consome e dilacera por

dentro, pois não conseguem compreender quem são, justamente porque ainda não sabem

verdadeiramente quem são, já que estão presas ao papel social que lhes fora imposto e do

qual elas não conseguem se libertar.

Como afirma Beth Brait (1998) a respeito dessa construção da personagem:

Como um bruxo que vai dosando poções que se misturam num mágico caldeirão, o

escritor recorre aos artifícios oferecidos por um código a fim de engendrar suas

criaturas. Que elas sejam tiradas de sua vivência real ou imaginária, dos sonhos, dos

pesadelos, ou das mesquinharias do cotidiano, a materialidade desses seres só pode

ser atingida através de um jogo de linguagem que torne tangível a sua presença e

sensíveis os seus movimentos. (BRAIT,1998, p.52)

São essas características propostas por Brait que é possível verificar em Clarice

Lispector ao construir ou desconstruir as personagens Ana e Catarina, ela busca a partir

dessas construções incitar a discussão sobre o papel da mulher na sociedade e no casamento,

especialmente retratar como esses conflitos de relações faziam sentidos no imaginário

feminino.

A epifania é um elemento recorrente nos contos da coletânea Laços de família, e nos

permite compreender que as personagens Ana e Catarina, passam a ter uma nova percepção

de si e do mundo que inicia na desestabilização provocada por um acontecimento corriqueiro

que provoca nas personagens o questionamento acerca das verdades impostas e de sua

condição enquanto ser no mundo. Nesse sentido, Olga de Sá (1979 p.106) afirma que: “a

epifania é um modo de desvendar a vida selvagem que existe sob a mansa aparência das

coisas, é um pólo de tensão metafísica, que perpassa ou transpassa a obra de Clarice

Lispector.”.

Segundo a autora a dinâmica de construção literária de Clarice Lispector propôs e

incitou acirradas discussões e questionamentos sobre a fragmentação da estrutura da narrativa,

o rompimento com a estética da época, a inovação na construção das personagens as quais

assumem a partir daí a consciência de seu papel e ao vale-se dessa ganha voz suscita

discussões sobre o espaço que ocupam na sociedade, bem como sobre as questões de gênero

que relegavam às mulheres um papel de inferioridade.Assim a obra de Clarice Lispector é um

importante registro dessas vozes femininas que durante tanto tempo foram emudecidas.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 743

Ana e Catarina são personagens transgressoras, que questionam a estrutura social e a

ideológica de sua época, manifestando suas inquietudes e conflitos, por meio do fluxo de

consciência e questionamentos sobre suas identidades existenciais. Elas buscam compreender

melhor quem são e qual o seu papel diante da sociedade na qual estão inseridas, imersas na

ânsia de descobrir-se, libertar-se dessa condição submissa tornam-se porta-vozes das mulheres

violentadas por esse sistema opressivo em que vivem.

Apesar de toda a angústia decorrente dessa tomada de consciência, da tensão entre a

dúvida e o querer que dilacera essas personagens que tentam escapar, mas não têm forças para

concretizar essa fuga, elas não conseguem se desvincular desse espaço opressor e acabam

optando pela segurança e o conforto que encontram nesse ambiente e, assim retornam ao

cotidiano para reconstruir suas vidas. Todavia esse retorno não lhes permite voltar à mesma

situação, pois a partir do instante que tomam consciência desta, já não são mais as mesmas.

A compreensão do contexto histórico no qual a obra foi escrita é imprescindível, para

compreender a instabilidade que ronda a construção da personagem feminina em vários

momentos da produção de Clarice Lispector, estas observações vêm ao encontro das

proposições de Antonio Candido (2004, p.175) quando este afirma que, ”os valores que a

sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas

manifestações da ficção[...]A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate,

fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.”

A construção das personagens Ana e Catarina é elaborada de maneira minuciosa no

que tange as angústias que rondam o imaginário feminino, pois são mulheres vítimas de um

sistema social machista, que as impõe a alienação como algo natural. Elas estão presas a um

estereótipo feminino e um sistema social no qual o patriarcalismo impera, sendo o homem o

único ser dotado de direitos, restando às mulheres apenas os deveres e obrigações. As

personagens são sujeitos históricos acorrentados pela ideologia de uma época na qual a

mulher tinha seu papel social restrito ao ambiente privado do lar, e era apenas o que lhe

permitiam ser, não tinham acesso à educação, a participar da sociedade na qual estava

inserida, o casamento era seu destino, a submissão a esta instituição e tudo que ela estabelecia

como certo, era uma regra.

Em princípio a visão de mundo dessas personagens parece ser bastante restrita,

aspecto proporcionado pelo sistema social da época com sua ideologia machista que

condicionava a mulher a um estado de alienação degradante, onde suas ações, seu modo de

ser, pensar, de agir, de se comportar socialmente já estavam pré-estabelecidos. Porém, com o

decorrer do enredo, a autora mostra que é na fragilidade do feminino que também está a sua

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 744

força para superar as adversidades do mundo opressor e injusto, especialmente no que tange a

diferença de gênero.

III Considerações finais

A construção das personagens femininas de Clarice Lispector nos contos em análise

nesta abordagem rompe com os valores estéticos e éticos vigentes no período de sua

produção, pois ultrapassa um mero debate de questões feministas e instiga à reflexão sobre as

discussões acerca do papel social da mulher naquele período e no momento de recepção da

obra. Trata-se de eclodir as relações envoltas no casamento e nas questões de gênero, bem

como apresentar elementos que nos fazem compreender como estas refletiam e continuam a

refletir na sociedade, assim consolida , ratifica a concepção de literatura defendida por

Antônio Cândido (2004) de que a literatura como direito é uma necessidade universal, e,

portanto, ao satisfazer necessidades básicas, humaniza, faz viver na diversidade e

complexidade que se amalgama no viver cotidiano e ficcional apresentado pela autora.

Os contos Amor e Laços de Família desconstroem o universo feminino tão bem

maquiado pelo sistema convencional da época e desvelam questões subjacentes deste, a crise

da figura feminina, que encontra-se perdida, fragmentada, e busca a partir das respostas aos

seus questionamentos e ânsias interiores encontrar e atribuir significado para sua existência.

A desigualdade de gênero, que cerceia a mulher naquele período, a impede de viver

para além do ambiente privado do lar, oprimindo, reprimindo e determinando seu

comportamento. Esses aspectos fazem com que a literatura exerça seu papel humanizador, no

sentido de contribuir para libertar as vozes sufocadas pelo sistema operante, especialmente, ao

permitir que elas ecoem e instiguem outras discussões, posicionamentos e ideologias.

Referências

CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. 3 ed. rev.ampl. São Paulo:

Livraria Duas Cidades, 2004.

______. A personagem de ficção. 12.ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

BRAIT, Beth. A personagem. 6. ed. SãoPaulo: Ática, 1998.

COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras(1711-2001).São Paulo:

Escrituras, 2002.

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 745

BONNICI, T; Zolin, L.O. (org.) Teoria Literária: abordagens históricas e tendências

contemporâneas.2.ed.Maringá: Eduem, 2005, 275-283.

XAVIER, Elódia. Reflexões sobre a narrativa de autoria feminina. In.:Tudo no feminismo: a

mulher a narrativa brasileira contemporânea.Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1991,p 9-16.

HELENA, Lúcia. Nem musa nem medusa: itinerários da escrita de Clarice Lispector. Niterói:

EDUFF,1997.

SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.

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Nas fronteiras da linguagem ǀ 746

ENTRE LENDAS E GUARANÁS: O IMAGINÁRIO

SIMBÓLICO BRASILEIRO [Voltar para Sumário]

Eliziane Navarro (PPGEL/UNEMAT)

Olga Maria Castrillon-Mendes (PPGEL/UNEMAT)

É um monstro de forma humana

De longos pelos dotado,

Alto, forte, horripilante,

Em um só pé apoiado [...]

Assombrosa é a mata bruta

Onde o bravo poaieiro,

No seio da natureza

Labuta só, dia inteiro.

(MENDES, 1993, p. 56)

Nesta pesquisa, pretende-se, com base nos pressupostos teóricos de Gilbert Durand e

Joseph Campbell, fazer a análise de alguns elementos simbólicos significativos do imaginário

brasileiro. Para tanto, elencou-se como recorte fundamental do estudo a conhecida lenda

interiorana do Pé-de-Garrafa bastante difundida, tanto em prosa, quanto em verso,

principalmente, nas primeiras décadas do século XX, em Mato Grosso.

Catalogada pela escritora Dunga Rodrigues na obra Lendas de Mato Grosso publicada

em 1997, foi também aproveitada pelo autor francês Alfredo Marien na escrita da novela Era

um Poaieiro que se configura como um repositório literário dessa simbologia local. O estudo

se faz importante na medida em que possibilita o acesso à camada do inconsciente coletivo da

classe de trabalhadores marginalizados, permitindo assim, dar sentido ao imaginário popular

em suas relações com o divino, com a passagem do tempo e, sobretudo com a morte.

Em meados do século XX o jovem francês Alfredo Marien chegou ao “sertão” de

Mato Grosso, fez sua vida e constituiu família. Nessa época, as terras do município de Barra

do Bugres-MT encontravam-se no apogeu econômico por ser a maior produtora da poaia.

Dotada de propriedades terapêuticas a raiz da poaia, cientificamente chamada de Cephaelis

Ipecacuanha, foi extraída nas matas mato-grossenses e exportada para os laboratórios da

Europa, atraindo assim, ambiciosos trabalhadores pela promessa de fortuna rápida. Houve

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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ 747

uma corrida ao novo Eldorado. Substituía-se o esgotamento dos minérios pelo “ouro negro”,

cuja economia movimentava o comércio, especialmente, através do rio Paraguai.

A vida do poaieiro, como a dos garimpeiros, estava longe de ser fácil. Ao invés da

bateia, usavam a foice e o saracuá3. Como o seringueiro, esses homens embrenhavam-se nas

matas da poaia no tempo das águas e ficavam meses sem ver o sol, à mercê dos perigos

próprios desse ambiente insalubre, das enfermidades, do trabalho esgotante e dos bichos. Esse

contexto foi ideal para a propagação de várias lendas da região, dentre as quais o Pé-De-

Garrafa e o Anhanguera. Toda essa riqueza mística foi aproveitada por Marien que, assim

como os narradores orais da tradição, apropriou-se de um universo de narrativas populares e

escreveu Era um Poaieiro, publicado em 1944 pela Livraria Técnica na cidade de São Paulo-

SP e, em 2008, compôs um dos exemplares da Coleção Obras Raras, levada a termo pelo

trabalho conjunto da Academia Mato-Grossense de Letras e da Universidade do Estado de

Mato Grosso/UNEMAT.

Em 1997 a escritora, pianista e professora Dunga Rodrigues catalogou, com o intuito

de preservar as tradições orais do povo mato-grossense a obra Lendas de Mato Grosso onde

descreve cento e vinte oito histórias atribuídas à narradora Ozebia e ao padre José Maria de

Macerata4, dentre as quais encontramos algumas lendas aproveitadas por Marien. Isso é sinal

visível da preocupação descritiva do texto, ou seja, o trato de um desconhecido explorador do

interior brasileiro, como uma personagem ativa (e atípica) da sua história.

Pretende-se aqui então, relacionar os dois trabalhos que se ligam pelo imaginário: do

escritor francês que escreve em Mato Grosso, portanto, um olhar “de fora”, e da autora mato-

grossense, essencialmente voltada ao sentimento telúrico. Nesse sentido, serão analisados

alguns elementos simbólicos das lendas que, conforme explicado anteriormente, uma vez

compreendidos como parte do imaginário social, permite a compreensão do povo a partir da

sua essência. Sobre a necessidade de se analisar mais que os aspectos linguísticos de um texto,

Batista diz:

Um texto, ao ser produzido, interessa primeiro ao seu produtor como objeto

portador de um sentido existencial, antes de ser um objeto comunicacional ou

3 Pequena lança com ponta de metal pontiaguda semelhante a ponteiro de aço, acabado em guatambu ou madeira

de análoga resistência utilizada para afofar a terra onde se ocultavam as raízes aneladas da ipeca; metida no solo,

extraía com facilidade as raízes, acompanhadas dos arbustos (CORREA FILHO, 1975, p. 492 apud, CAMPOS,

M. C. A., 2005. p.296). 4 O religioso italiano Fr. José Maria Macerata era considerado um santo pela população de Cuiabá em virtude de

sua participação no movimento nativista da Rusga ( ). O escritor José de Mesquita escreveu sua biografia

intitulada O Taumaturgo do sertão. Cf. Dicionário Biográfico Mato-Grossense, de Rubens de Mendonça

(Goiânia/GO: Ed. Rio Bonito, 1971, p. 92) e Revista do IHGMT e da AML. Cuiabá, 1928. On:

http://www.jmesquita.brdata.com.br/bvjmesquita.htm

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