textos literários

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01. Edifício Solidão.......................................... argumento................. p. 02 02. A Voz....................................................... conto.......................... p. 18 03. Obara da Floresta......................................... conto.......................... p. 23 04. O Fim do Mundo Parte 1................................. crônica....................... p. 25 05. Dudu e Eu.................................................. crônica....................... p. 29 06. Inverno...................................................... fragmento.................. p. 36 07. Sonhos...................................................... fragmento.................. p. 37 Davi L. Ramos Trabalhos Literários

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Portfólio com alguns trabalhos literários de Davi L. Ramos

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Page 1: Textos Literários

01. Edifício Solidão.......................................... argumento................. p. 02

02. A Voz....................................................... conto.......................... p. 18

03. Obara da Floresta......................................... conto.......................... p. 23

04. O Fim do Mundo Parte 1................................. crônica....................... p. 25

05. Dudu e Eu.................................................. crônica....................... p. 29

06. Inverno...................................................... fragmento.................. p. 36

07. Sonhos...................................................... fragmento.................. p. 37

Davi L. Ramos

Trabalhos Literários

Page 2: Textos Literários

EDIFÍCIO SOLIDÃO1

por Davi Ramos

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1 Argumento para roteiro de longa-metragem. Premiado e executado por meio de edital de Desenvolvimento de Roteiros.(FUNCEB 2008)

Page 3: Textos Literários

“Edifício Solidão”

Os trechos em itálico representam partes explicativas. O texto normal é a

história contada por Pedro.

Pedro, 25 anos, é negro, magro, de estatura mediana. Veste camisetas pouco

chamativas, sem estampa, uma calça jeans desbotada e sempre o mesmo

tênis. Seu andar é calmo e a fala tranqüila, quase apática. Ele nunca sorri,

pois faz o tipo pensativo, que vive no mundo da lua, entre pensamentos que o

consolam ao mesmo tempo em que o afastam de um mundo que ele sente

como inseguro e hostil. É o nosso protagonista, e a partir de agora é ele quem

vai contar essa história.

O Editor me olha pensativo, a mão no queixo, bolando bem o que vai falar. Eu

já sei a resposta, mas permaneço ali, tentando parecer calmo enquanto uma

gota de suor desce de minha testa e meus dentes trincados arriscam me dar

uma dor de cabeça. “Olha...”, ele diz. Difícil escutar o resto. O texto é muito

bom, mas o espaço está ocupado e eu devo, naturalmente, aguardar um

contato em momento mais propício. Agradeço educadamente e saio.

Eu moro no Edifício Solidão. O nome mesmo do prédio caiu, mas eu o chamo

assim porque todo mundo que mora aqui acaba ficando sozinho. Como uma

maldição. É um lugar nem muito velho nem muito novo, nem muito bom e

nem muito ruim. Junto da entrada há uma abertura onde funciona uma

copiadora. A menina que faz as cópias se chama Laís, tem 17 anos, mas ainda

é meio criança. Ives é meu vizinho. É branco, pequeno, magro e de cabelos

escuros. Seus gestos são exagerados e ele fala de forma espalhafatosa,

sempre colocando uma entonação a mais para enfatizar o que diz. Usa roupas

pretas e tem um spike no braço. Estamos no terraço, e de lá vemos outros

prédios médios e antigos, tetos de telhado e o céu azulão de uma manhã

comum em Salvador. Ele fuma cigarro e me pergunta do meu livro (“até agora

nada”... eu respondo). Ele conta da mulher, Patrícia. Diz que está traindo ele

com a ex-namorada. A ex dele, não dela. É complicado.

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Page 4: Textos Literários

Samuel trabalha com arte. Ele é branco, loiro e meio gordinho. Fala trocando o

som de “s” pelo de “x”, o que lhe confere um tom engraçado. Age, no entanto,

de forma desembaraçada, como se não tivesse qualquer problema de fala. Nas

paredes, no chão e sobre os móveis ─ em cada canto de seu pequeno

apartamento há um amontoado de quadros e objetos feitos por ele. Samuel

mostra seu último trabalho na técnica de ORIGAMI: uma grande corda com

uma fileira de pássaros de diversas cores. Ele comenta o preço dos pincéis.

Fala muito, com uma empolgação leve, juvenil. Tudo muito bonito. Eu tento

mostrar interesse, mas é difícil. Samuel estudou artes plásticas e agora mora

sozinho, sobrevivendo de bicos e eventuais vendas de quadros. De vez em

quando vem uma senhora bem vestida, que sempre sai com um. Diz Samuel

que já expôs em Moscou. Sei não. Samuel não tem cara de Moscou.

Silvana, minha namorada, é branca, alta, cabelos escuros. Quando a gente

ficou junto a primeira vez eu me achei o cara mais feliz do mundo. Era a mais

bonita na faculdade (depois descobri que ela pensava o mesmo). Estamos na

casa dela. Ela se arruma e me pergunta se eu gostei. Digo que sim. Ela troca

de roupa. “Sim, mô. Tá linda.”.

Levo Silvana ao cinema. É um filme de amor. Encosto nela, dou um beijo no

pescoço e a abraço. Ela não se move ─ tem um rosto frio de mármore. Puxo

assunto no ônibus. “É, o filme é legal...”, ela responde. E continua olhando pela

janela, como quem procura por algo que, obviamente, não está do lado de

dentro.

Seu Zé é o porteiro do Edifício. Ele é jovem, negro e usa uniforme azul

clássico. Tem um violão velho meio acabado, que está sempre tentando tocar.

“Boa Noite, Seu Zé”. “Noite, seu Pedro...”. Subo as escadas. Falo de Silvana

para Samuel. Ela tem estado fria, distante. Me preocupo. Samuel me dá um

origami, o mais bonito da mesa. Guardo no bolso.

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Page 5: Textos Literários

Vou com Ives até a lavanderia, dividindo com ele a carga de roupas. Faz calor,

mas ele usa uma camisa preta de mangas longas. Mesmo com as mãos

ocupadas, consegue tirar um cigarro do bolso e o acende. Fala com o cigarro

na boca. Me conta sobre um amigo dele que eu não conheço (“Sabe o Igor?

Aquele, do cabelo rasta?”), diz que o cara tentou se matar. “Pire aí, o cara se

jogou do quinto andar, de cabeça. Jeito idiota de se matar, né? Quinto andar.

Virou vegetal”. Eu concordo. “Fosse eu, não dava chance. Me jogava logo do

último andar, pra não ter erro”, ele diz. Olho para Ives assustado. Chegando na

lavanderia, tiramos as roupas das trouxas. Quando Ives coloca um bolo de

roupas em uma máquina, a manga da camisa encurta e eu vejo que o braço

dele está cheio de cortes retos e precisos. Como os que alguém faz em si

mesmo. Pergunto o que é aquilo. Ele cobre o braço com a manga e não diz

nada. Continua a colocar as roupas na máquina.

Vou até o trabalho de Silvana, com a desculpa de dar o ORIGAMI para ela. Ela

usa um jaleco branco alvíssimo e não me olha nos olhos. Vamos até o

refeitório. Faço menção de pegar o origami no bolso. Ela diz: “precisamos

conversar”. Não lembro de mais nada. Só entendo muito rapidamente que

aquilo é o fim, e que eu não sou mais bem vindo. Me levanto, apertando de

leve o origami no bolso da camisa. No meio do caminho, me viro e volto até

ela. Dou-lhe um beijo na boca, mas encontro de novo a estátua de mármore.

Saio resignado.

O Edifício Solidão parece assustador, e não consigo entrar. Dou meia volta e

ando pela rua, entre o meio fio e os carros. Fica de noitinha. Na contramão,

me distraio com os faróis que me cegam os olhos, na esperança de me perder

num clarão daqueles. Volto derrotado. Seu Zé arranha notas perdidas no

violão. Subo as escadas. Do apartamento de Ives, ouço briga de casal e choro

de criança. Passo direto, sem dar atenção... aquilo sempre acontece. Deito e

ligo meu abajur. Não durmo. Os berros da casa de Ives são um saco.

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Page 6: Textos Literários

Acordo cedo, decidido a recuperar Silvana. Saio bem arrumado. Compro rosas,

as mais caras. A dona da loja olha para mim compadecida, mas ela tem flores

para vender e não vai desaconselhar meu desatino romântico. No caminho,

todos reparam no idiota com o buquê de flores.

Toco várias vezes na casa dela, que fica numa rua tranqüila em estilo antigo.

Silvana abre o portão e eu entro ─ ficamos na frente da casa. Está

completamente bêbada. Minha sogra aparece e comenta: “como ele está

bonitinho”. Silvana olha para a mãe com raiva intensa e ela entra, miúda.

Sentamos na escada. Eu coloco o buquê de flores no colo dela e digo que a

gente ainda pode tentar, que vale a pena, essas coisas. Mas ela não consegue

completar uma frase. Passa a mão em meu rosto, sem dizer nada. Eu noto

uma marca de mordida em seu pescoço. Tiro o buquê de flores do seu colo,

me levanto e saio. Antes de ir, olho para trás. Ela dorme com a cabeça caída

entre as pernas.

Eu, Ives e Samuel estamos bebendo em um bar de cadeiras de plástico. Estou

com a mesma roupa. O buquê está amassado e escangalhado em cima da

mesa. Muitas garrafas de cerveja vazias. Conversamos sobre o amor, todos

com boas definições e bons argumentos, mas sempre no clímax do

pensamento de um o outro interrompe com uma opinião escancaradamente

esdrúxula, machista e politicamente incorreta. Além da nossa, só há mais uma

mesa ocupada. Uma mulher repara em mim. Ives me convence e eu vou até

ela, mas dou meia volta antes de falar qualquer coisa. A mulher fica sem

entender nada.. Não sou do tipo que faz isso. Sento novamente e viro um copo

de cerveja. “Essa é a noite da depressão, e eu não vou estragar”, digo.

Voltamos os três completamente bêbados, falando asneiras e cantando

músicas tristes até chegar em casa.

É um outro editor, mas poderia ser o mesmo. Tem a diferença de ser muito

gordo, e por isso, quando levanta para me cumprimentar, eu dou um passo

atrás para abrir espaço. Ele não percebe. Olha nos olhos e me pergunta se eu

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Page 7: Textos Literários

passei por aquilo tudo que está escrito. Respondo que sim. Entra na sala um

homem branco, alto. Parece uma cópia barata de Clark Kent. O cara pega meu

artigo e diz, entreolhando o chefe: “Acabei de checar, e esse lugar que você

falou não existe. As cenas foram roubadas de jornal, tudo que ele fez foi ligar

tudo”. O Editor olha para mim, esperando uma resposta. Pego meus papéis e

vou embora.

No dia seguinte, um carro de mudanças descarrega na frente do prédio. Vejo,

no corredor, que os pacotes chegam para o apartamento ao lado do meu.

Desço as escadas, ainda com sono. Na portaria, Seu Zé, Ives e Samuel olham

a mudança chegar. Seu Zé: “tem cara de sê mulé”.

Bato no apartamento de Maria. Ela abre – tem 27 anos, é negra, muito bonita.

Usa um vestido florido, de tecido. Fala de modo simples, mas correto. O tom é

doce e cativante, sem traço de amargura. Não é alegre, porém. Invento uma

desculpa qualquer e saio, tímido. Ives tenta conversar com ela, que o deixa

entrar no apartamento. Só que ele, com seu temperamento expansivo, acaba

falando tanto que não se ouve uma palavra de Maria. Ele sai, e diz, somente:

“Ela é linda”.

Maria desce as escadas vestida lindamente. Samuel olha para ela, que

CORRESPONDE AO OLHAR, por um longo tempo. Ela passa por nós e vamos

até a porta para espiar. Chega um carro preto e Maria entra nele. Acende-se a

luz interna: o motorista é RODOLFO, namorado de Maria, um homem branco,

40 anos, vestindo paletó. Se beijam. O carro sai, e nós, cães sem dono,

ficamos a olhar.

Vou à copiadora fazer uma cópia do meu livro. Entrego para Laís, que pega

com muito cuidado. Entre uma página e outra ela olha para mim, mas eu nem

reparo. “Mais tarde eu pego”, digo sem olhar.

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Page 8: Textos Literários

Na portaria, Samuel fuma um cigarro. Ives tenta ensinar uns acordes de Trem

das Onze para seu Zé, mas o resultado é pífio. Seu Zé, de modo engraçado,

conta as peripécias sexuais de um caso que teve com uma mulher da rua, mas

Ives não acredita (“... mas oito assim, direto? Que pilha é essa...”). Passo por

eles, os cumprimento e subo as escadas lentamente. Entro em meu quarto e

sento no computador para escrever um pouco. O cursor pisca sem que eu

digite qualquer palavra. Me levanto, tomo um café. Sento no computador, leio

o que escrevi e me levanto. Me deito e olho para o teto. Me levanto

novamente, sento na cadeira, e escrevo: “Era uma noite fria...”. Tomo um gole

de café. Me levanto e vou até um dicionário. Acho a palavra, me sento

novamente e completo, batendo nas teclas com cuidado, como se escrevesse

algo de grande importância: “Era uma noite fria e tempestuosa”. Ouço um

carro se aproximando. Pela janela, eu vejo: é o Rodolfo, que traz Maria de

volta. Ela entra no prédio, a ouço subir as escadas. Vou até a porta e, na hora

em que ela chega, abro. Olho pra ela e peço: “sal”. Ela me olha esquisito:

“Sal? Agora?”. “É, tô precisando. Eu gosto de cozinhar assim, de noite...”. Maria

sorri, entra no apartamento e volta. Me entrega um saquinho de tecido

amarrado com uma fita delicada. Deito e coloco o saquinho em minha

cabeceira, com a certeza de que ele nunca será consumido no meio da

alimentação comum.

Na portaria, Seu Zé toca os primeiros acordes de Trem das Onze, com a ajuda

de Ives. Chamo ele em um lugar reservado, e confesso que estou apaixonado.

“Por quem?”, ele pergunta. “Maria”, eu respondo. Ives se espanta e, depois de

uma longa pausa, diz: “eu também”.

É uma reunião com um editor. Ele tem o meu livro, Edifício Solidão, 300

páginas encadernadas, em cima de sua mesa. É branco, um pouco gordo, usa

terno e gravata. Me explica os motivos pelos quais não vai publicar meu livro.

Diz que se trata de material muito bem escrito, de alta profundidade

emocional, mas acha que é pouco vendável, muito pessoal e descritivo demais.

Depois do papo furado de sempre, ele me olha nos olhos e pergunta: “Aquela

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Page 9: Textos Literários

parte, a da estação, aconteceu mesmo?”. Eu olho para ele e, constrangido,

balanço a cabeça afirmativamente. “Eu sabia, eu sabia!”, ele responde. Quando

levanto, ele me pergunta: “posso ficar com esse aqui?”. “Faz como você

quiser” – eu respondo, já de saco cheio, me levantando.

Passo no mercado e encho um carro de bebidas, biscoitos, salgadinhos e

chocolate. Parecem as compras de uma criança alcoólatra. Chego na seção de

frutas. Quando olho para o lado, vejo Silvana, de longe. Bonita e bem vestida,

ela escolhe tomates. A observo por algum tempo, e percebo, em seus gestos,

uma graciosidade que ainda me encanta, e é de certa forma hipnotizado que

me dirijo até ela. Ela se surpreende ao me ver, e parece se condoer de meu

estado: estou sujo, cansado e mal vestido. Pergunto como ela está, e ela me

responde com um vago “estou bem, e você?”. Conto que meu livro acabou de

ser recusado por mais um editor, e passo a enumerar os mesmos insuportáveis

motivos de sempre (e que, é claro, nunca passam pela minha falta de talento).

De repente, vejo chegar aquele mesmo Clark Kent, o idiota que me destratou

na sala de um editor. Tento ignorar sua aproximação, continuando a destilar

meu arraial de lamúrias. O Clark Kent continua se aproximando

insistentemente, até que parece querer passar por onde está Silvana. De

forma surpreendente, ele não só não passa como a abraça pela cintura, e

pergunta, com uma caixa de leite na mão: “integral ou desnatado?”. Viro para

ele, já possesso, e respondo: “é desnatado”. Silvana nos apresenta, dizendo

“Esse é Tadeu”; eu dou um sorriso amarelo e saio de perto, achando que me

despeço, mas na verdade resmungando e me distraindo com rótulos que não

me interessam. Vou direto para o caixa e passo minhas compras. Sem saber

exatamente o porquê, me escondo em um canto do estacionamento. Os vejo

sair e, como quem não quer nada, vou ao encontro deles, com as compras na

mão. “Encontrei você de novo”, eu digo. Silvana dá um sorriso tão amarelo

quanto o meu, e eu agora os devo estar assustando. Depois de algum tempo,

digo artificialmente “então tá, boa sorte. Já vou indo...”. E me afasto. No meio

do caminho, porém volto para eles correndo e jogo um saco de compras em

cima de Tadeu. Uma dúzia de ovos explode, misturando-se à vodka com a qual

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Page 10: Textos Literários

dividia o saco. Ele cai no chão e eu chuto sua barriga, até que os

freqüentadores do mercado começam a reparar. Vendo a aproximação dos

seguranças, me dirijo para fora e saio, primeiro andando e depois correndo.

Antes de ir, ainda olho para trás e vejo Silvana, agachada junto a Tadeu. Ela

olha para mim, estarrecida.

Chego em casa e olho a pilha de papéis na mesa, perto de meu computador

velho e vagabundo. Abro o blog e escrevo: “Fui recusado mais uma vez...”.

Ouço um barulho de porta de carro batendo, e vou até a janela. Na ponta da

rua, o carro de Rodolfo aparece. Maria se afasta do carro, que a segue. Não se

ouve a conversa, mas percebe-se que Maria discute com Rodolfo, e ele pede

que ela entre no carro. Maria chega até a frente do prédio e Rodolfo sai.

Discutem. Maria tira uma jóia que usa no pescoço e joga no chão. Entra no

prédio chorando. Rodolfo observa ela entrar. Olha para cima, se certificando de

que ela não o vê. Pega a jóia no chão, entra no carro e sai tranqüilamente.

Ouço Maria chorando pelo corredor. Ela bate a porta com força. Colo o ouvido

na parede e a ouço chorar.

Acordo cedo e vejo Maria saindo com um grande saco de roupas. Ela deixa na

portaria e fala algo com Seu Zé. A sigo. Pergunto pra quem é aquilo. Ela me

olha friamente, e me pergunta se eu sou sempre enxerido desse jeito. Ainda

assim, ela não o faz com ódio ou raiva, mas como alguém que se esforça em

definir limites.

De manhã, conto a Ives que Rodolfo e Maria não estão mais juntos. Ives sobe

as escadarias e entra no apartamento dela. Pelo lado de fora, ouço a voz doce

de Maria. Subitamente, Ives abre a porta do apartamento e sai, andando

cabisbaixo. Maria tem os olhos marejados. Balança a cabeça em negativa.

Enquanto isso, Ives sobe as escadas, lento e pesaroso, olhando para o chão, a

face do abatimento. Noto a ausência dele e, por intuição, vou até o terraço.

Chegando lá, Ives está na borda, chorando de forma ridícula e exagerada. Ele

quer se jogar. Me aproximo com cuidado, tentando convencer Ives a não fazer

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Page 11: Textos Literários

nenhuma besteira. Ele só chora muito, sem conseguir falar. Quando estou

perto, faço um movimento em sua direção. Ives se assusta e se joga,

querendo fugir. Puxo ele pelo cinto e caímos os dois no chão. Maria surge no

alto escada, com os olhos marejados. Ives se levanta e vai até ela, que o

abraça e o conduz até seu apartamento. Anoitece. Impaciente, vigio a porta de

Maria.

É dia. Converso com Ives no terraço. Estou desconfiado, com raiva contida.

Ives fuma um cigarro, devagar. Peço satisfações a ele a respeito do que

aconteceu na noite anterior, no quarto. Com respostas evasivas, Ives dá a

entender que aconteceu algo entre ele e Maria, mas que foi tão profundo que

prefere não falar. Pergunto sobre a mulher dele. Ainda mais evasivo, Ives

responde que ela está em casa e não quer mais sair. Em tom de desafio,

mando ele me mostrar sua mulher, já que ninguém a vê há semanas. Ives, a

contragosto, me leva até o apartamento dele.

Quando Ives abre a porta, vê-se que, à exceção da TV desligada e uma

poltrona, está tudo completamente vazio, sem móveis, sem nada. Ives me

convida para entrar, e diz que a mulher deve estar dormindo no quarto. Olho o

quarto de relance, e vejo que está igualmente vazio. Acendo uma luz e

percebo que a energia foi cortada. Ives foi abandonado. Ele senta na poltrona

e liga a TV. “Senta aí no sofá”, ele diz. Mas o sofá não existe. Sento no chão e

assistimos à TV desligada. Ives fuma um cigarro.

Mais tarde, eu me arrumo e bato na porta de Maria. Tenho uma caixa de

bombons em uma das mãos, e pergunto: “muito brega?”. Ela ri e pega a

caixinha. O dia está nublado. Andamos em um parque, e ela come os

bombons. Um velhinho joga pedaços de pão para os pombos, que comem. Um

dos pombos pega um pedaço maior e corre dos outros, se exibindo. Maria ri e

eu ESBOÇO UM SORRISO. Um casal de velhinhos anda de mãos dadas.

Parecem conosco. Digo a Maria que acho aquilo lindo, duas pessoas

conseguirem se agüentar e se gostar por tanto tempo. Maria olha para mim e

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Page 12: Textos Literários

sorri. Ela fala pouco. Dou a Maria o ORIGAMI de Samuel. Ela agradece, e seus

olhos brilham enquanto olha para o origami. Quando Maria me pergunta quem

fez, RESPONDO QUE FUI EU, dissimulando. Quando faço isso, ele me olha,

séria. É NOITE. Na chegada ao prédio, digo a Maria que foi um absurdo o que o

namorado dela fez, que eu nunca faria chorar uma mulher como ela. Maria me

dá um beijo fraterno e carinhoso na bochecha. Diz que é melhor não subirmos

juntos. Eu concordo, a contragosto, e subo antes dela.

O “trio depressão” está de novo no bar. Bebemos em silêncio. “Eu gosto do

cabelo dela. Outro dia ela passou por mim, eu me virei na hora e dei uma

fungada. Que cabelos!”, eu disse. “Ela é gostosa pacas! Se eu pego uma

mulher daquelas, num quero mais nada da vida!”, continua Ives. “Eu achei ela

fofinha”, completa Samuel. “Fofinha? Você acha ela fofinha?”. “É. Fofinha”.

Samuel traga seu cigarro. Olhamos para ele, em silêncio.

Na copiadora, Laís termina de encadernar a minha cópia. Ela me olha e

pergunta: “foi você quem escreveu?”. “Eu mesmo”. “Eu li umas partes, mas

outras não deu, porque eu tava copiando”. “É, eu sei como é...”, respondo.

Pego o livro e agradeço. Vou até o quarto de Maria e bato à porta. Ela abre, e

entrego o meu livro a ela. Maria põe o livro contra o peito e me diz que vai ler.

No supermercado, eu, Ives e Samuel compramos bebidas. Ives comenta sobre

que tipo de pessoa compra bebidas num sábado à noite. Passam um casal,

duas mulheres, um homem sozinho e uma mulher sozinha, todos comprando

bebidas. Ives compara o tipo de pessoa com a bebida que está comprando.

Começo a brincar de deslizar pelo chão. Ives desdenha e continua pegando

bebidas. Pouco depois, Samuel começa a deslizar também. Eu e Samuel

fazemos uma corrida de deslizamento. Ives vê uma placa de “proibido fumar”

e acende um cigarro. Entramos na sessão de biscoitos e fazemos comentários

sobre os produtos, relacionando-os aos hábitos das pessoas. Passamos pela

sessão de salgadinhos e fazemos o mesmo. Na sessão de doces, o chão está

acabando de ser encerado. Eu e Samuel tiramos os sapatos e, de meia,

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Page 13: Textos Literários

tomamos impulso para a corrida. Corremos e deslizamos velozmente ─ tão

rápido que batemos em uma senhora de meia-idade que aparece no final de

uma fileira. Ives traga o cigarro, enquanto nos observa, se desculpando e

saindo com o rabo entre as pernas. No caixa, conversamos sobre as calorias

dos produtos light que compramos. Voltamos ao edifício. Ligamos a TV (que

passa a novela das oito) no salão de festas, abrimos as bebidas e comemos.

O carro de Rodolfo está parado na porta do prédio. Reparo, desconfiado. Na

portaria, Seu Zé toca Trem das Onze do início ao fim, de forma

surpreendentemente competente e emocionante. Ives começa a chorar e sai

soluçando. Samuel fuma um cigarro. Vai até ele, o parabeniza e sai. Vou até o

apartamento de Maria, a porta está entreaberta. Rodolfo está de pé, abraçado

com ela, chorando. Ela solta o abraço, ele demora mais um pouco e SAI,

levando um grande saco de roupas. O rosto dele está molhado pelas lágrimas,

mas resignado. Maria ainda alisa suas costas, maternalmente. Ele passa sem

me ver. Maria olha para mim.

Estou numa audiência com o juiz. Tadeu está à minha frente, com o rosto

machucado e cheio de curativos. Silvana, ao lado dele, olha para mim da

mesma forma como no supermercado. Eles estão com um advogado. O

advogado deles expõe o caso, contando em detalhes o que aconteceu no dia

em que eu bati em Tadeu. O juiz olha para mim, aparentando concordar. Me

encolho na cadeira. A meu lado, SEU ZÉ, O PORTEIRO, de paletó e gravata, faz

as vezes de defensor. Desenvolto, e em nada lembrando seu modo de ser no

Edifício, ele enumera, no perfeito linguajar jurídico, as frustrações pelas quais

eu passei, me colocando em uma posição de vítima, ao mesmo tempo em que

esclarece muita coisa entre eu e Silvana que não havia sido dita até então.

Olho para ele, impressionado. (“Senhor Juiz, o réu vinha passando por um

stress intenso, fruto, de um lado, de frustração amorosa intensa e, de outro,

das dificuldades profissionais inerentes à nossa condição social

contemporânea. Além disso, eu gostaria de salientar aqui o caráter humilhante

da ruptura deste relacionamento, por conta tanto da frieza da antiga

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Page 14: Textos Literários

companheira, quanto da patologia social que vitima o meu cliente.”). A partir

daí, ele descreve em detalhes o final de meu relacionamento, incluindo o dia

do término e minhas atitudes despropositadas (e mais algumas que eu ainda

não havia contado), fazendo, nos momentos importantes, uma pausa para

comentar o meu estado emocional. Ao final da fala de Seu Zé, Silvana olha

para mim de outra forma. Seu olhar é compassivo, de quem subitamente

reconhece algo. Ela fala com o seu advogado e com Tadeu, que balançam a

cabeça afirmativamente. Na saída da audiência, eu peço para falar com

Silvana. Agradeço a ela por ter resolvido tudo daquela forma. Ela responde que

aquilo não foi nada de mais, e que ela não queria me ter feito sofrer. Tadeu se

afasta mais, dando espaço para que conversemos. Ela explica que Tadeu foi

sempre um bom amigo, e que eu não devia pensar que eles estavam juntos

antes. Ela só o conheceu melhor agora, quando foi apresentar o seu livro a um

editor. “Um livro?”, eu pergunto. “É, eu nunca te mostrei... ficava

envergonhada”. Silvana olha para mim com carinho e sai. Eu ainda paro sua

caminhada e digo: “Silvana... me desculpe”. Ela volta e me dá um abraço. Me

olha nos olhos e SAI.

É noite, estamos no terraço. Maria tem o meu livro nas mãos. Em dúvida, me

pergunta se eu passei por tudo aquilo mesmo. Eu digo que sim. Ela me olha e

balança a cabeça. Me abraça. Eu não entendo o porquê, mas gosto. Gosto

muito.

É uma noite fria na PRAIA. Usamos casacos e revezamos uma garrafa de

cachaça. Conversamos sobre suicídio e o modo ideal como nos mataríamos.

Conto como sempre imaginei o meu enterro ─ um lugar escuro, todos com

roupas pretas e o féretro andando lentamente em direção à cova. Alguém

comenta sobre como eu era uma pessoa vivaz e alegre, e do absurdo que era

morrer alguém “assim tão jovem”. No meio do caminho, uma mulher (Maria)

gritaria, quebrando o silêncio: “Não se vá...”. Samuel me tira do devaneio.

Conta que finalmente conseguiu a bolsa que queria. Vai viajar para Alemanha,

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Page 15: Textos Literários

estudar artes plásticas. Ives acende um cigarro. Sentamos os três na areia,

olhando o mar e revezando a garrafa para mais uma rodada.

O apartamento de Samuel está mais bagunçado que nunca. Eu o ajudo a

arrumar as malas, o que eu faço entristecido. Ele empacota muitas tranqueiras

sujas, e também muitos quadros belíssimos, com temas naturais e retratos

femininos. Um deles me chama atenção: parece ser um porta-retrato de Maria.

Patrícia, a mulher de Ives, aparece na portaria. Seu Zé está dormindo e

acorda. “Tarde, Dona Patrícia”. Ela sobe as escadas e bate na porta de Ives,

que atende. Depois de um momento de surpresa, a convida a entrar. Patrícia o

faz, um pouco relutante. Ives oferece um café, Patrícia aceita. Ives vai até a

cozinha e volta sem nada. “Acabou o café”. “Tudo bem”, responde Patrícia. Ela

tem alguns papéis na mão, que entrega a Ives. Ele lê, atento, olhando para ela

de tempos em tempos. Patrícia estende uma caneta para Ives.

No terraço, e Ives fuma um cigarro. Está pálido, a voz fraca e depressiva.

Conversamos sobre Samuel e sua viagem. Na conversa, percebemos que

também não vemos Maria há um bom tempo. Desde que Samuel viajou, por

sinal. Perguntamos a Seu Zé o que está acontecendo. Ele se espanta, e diz que

também não vê Maria há muito tempo.

Entra a música Trem das Onze original (na voz de Adoniran Barbosa). Volta

para A NOITE EM QUE MARIA E PEDRO VOLTARAM DO PARQUE. Depois que

Maria fala a Pedro que é melhor eles subirem separados, Pedro sobe e Maria

faz o mesmo logo depois. Em sua porta, ela encontra um origami. Pega. Nele,

está escrito: “siga a pista”. Maria olha pelo chão e vê mais origamis, que a

levam até a escada. Vai descendo até o subsolo, onde mora Samuel. Ela bate à

porta e Samuel abre. Ambos sorriem e se beijam. Maria ENTRA no

apartamento. Vemos NOVAMENTE os dois trocando olhares na escada. Depois,

Samuel encontra Maria em uma loja de produtos de arte e eles conversam. Em

seguida, os dois vão juntos ao cinema. Saem abraçados. Em um bar,

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Page 16: Textos Literários

conversam animadamente. Riem. Não ouvimos nada do que dizem ─ apenas a

música. Samuel leva Maria até a porta de seu apartamento. Ela entra e

Samuel fica do lado de fora. Depois de algum tempo, Maria abre a porta.

Samuel está lá, parado. Se beijam.

Eu, Ives e Seu Zé corremos até o apartamento de Maria e o arrombamos. Lá

dentro, encontramos centenas de origamis lindíssimos, dos mais variados tipos

e tamanhos. Logo percebemos que Samuel e Maria foram embora juntos.

Vemos Samuel e Maria no aeroporto, com malas em volta, sentados,

esperando o avião. Se beijam com a intimidade de um casal antigo. Samuel

acaricia seu rosto e olha para ela, que cochila. Vemos então o avião

levantando vôo e, na pista, Ives, Pedro e Seu Zé, ali como que por mágica,

com as mesmas roupas, vendo o avião passar por cima deles.

Na copiadora, me distraio vendo as mãos de Laís executarem o seu trabalho

com graça e precisão. Ela está mais bonita e arrumada, com jeito de mulher.

Me entrega mais uma cópia do meu livro. “Eu posso ficar com essa mais uns

dias? Eu queria terminar de ler”. “Melhor não”, eu respondo. Me olha nos olhos,

um pouco surpresa. “Vou fazer um negócio com esse aqui. Além do mais,

tenho um melhor pra te mostrar”. Laís sorri.

É noite, estamos no terraço. Ives acende um cigarro num papel em brasas.

Pergunto a se ele sabia que Seu Zé era formado em direito. “Claro”, ele

responde. Uma pilha de papéis queima no chão, quebrando o escuridão da

noite. São várias cópias de meu livro, “Edifício Solidão”. Aquela não era a

minha história. Era a história de Ives, Samuel, Maria e de um bando de gente

que eu nunca vi e nunca amei. Agora eu tenho que escrever a minha. E quem

sabe eu também, um dia, não vá embora do Edifício Solidão.

Vou até a copiadora e encontro Laís. Ela continua bonita, e mais arrumada do

que convêm a uma operadora de xérox. Dou a ela um bolo de papéis e peço,

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Page 17: Textos Literários

novamente: “copia e encaderna, por favor”. Entrego a ela um grande volume

de papéis. “Esse você pode ler”, eu digo. Depois de entregar, finjo me lembrar

de um outro papel que eu tinha guardado. Tiro um ORIGAMI do bolso e

entrego a ela. “Foi você quem fez?”, ela pergunta. “Não, foi um amigo”,

respondo. “Mas o que está escrito foi”. Ela abre e lê o que eu tinha escrito.

Olha para mim com um sorriso. Arruma o cabelo. SORRIO DE VERDADE. É a

primeira vez em muito tempo que eu faço isso.

FIM

17

Page 18: Textos Literários

18

em homenagem a Ray Bradbury

A Voz (conto)

por Davi L. Ramos

Page 19: Textos Literários

Ivo Túlio gostava de andar próximo à pista, vendo os faróis se aproximando,

crescendo e morrendo com seu gemido triste. Às vezes um auto-ar parava a seu

lado. O passageiro, distraído de sua leitura noturna, ou pego de surpresa durante

os comerciais da auto-tv, olhava espantado.

- Bom dia, senhor. Algum problema com seu caminhante? Gostaria de uma

carona?

- Não, obrigado. Eu gosto de usar as pernas.

Poucas pessoas andavam desde que os caminhantes passaram a ser produzidos

em série. Em 2052, o pavor dos acidentes a pé era uma fobia estabelecida. O

caminhante, uma geringonça circular de metal antigravidade, do tamanho de um

pneu e com um nanochip que processa os impulsos cerebrais e o dirige ao

caminho desejado, tinha se encarregado de acabar definitivamente com o hábito

de colocar pé-ante-pé para se locomover. Recentemente, Túlio encontrara, numa

antiga biblioteca, um verbete intitulado “calo”. Decidido a presenciar o nascimento

de uma dessas interessantes anomalias anatômicas, achou, em uma loja de

quinquilharias, um par de sapatos dois números menor que o seu. Para o prazer

de Ivo, o fundo de seu calcanhar já coçava irritantemente. “Andar a pé! Daqui a

pouco vai querer correr uma maratona!”, dizia a mãe.

Quando entrava em um ônibus ou caminhava por ruas antigas atrás de bibelôs do

século XX, Ivo Túlio, às vezes, sentia que não estava sozinho. Já tinha se

acostumado. Era como se dividisse com alguém aquele gosto do passado, um

alguém que ainda usava sapatos de couro e relógios de pulso, mas preferia o

segredo da invisibilidade. Às vezes conversavam, em pensamento. E ouvia

respostas, mas não acreditava nessas coisas. Seria ele diferente, melhor, pior,

estranho? Não sabia. Mas, cada vez que entrava em algum lugar, sentia que

estava interrompendo algo. Como se o mundo, secretamente, conspirasse. O

tempo todo.

A noite avançava madrugada adentro. Túlio chegou ao fim da pista. De vez em

quando, um carro desprogramado parava pelo segundo e meio necessário para

que seu computador de bordo refizesse a rota e seguia, com um clique surdo, sua

trajetória robotizada, levando em seu interior passageiros sonolentos ou

narcotizados. A paisagem era agradável. O lixo do mundo. O cemitério das idéias.

A herança selvagem. A morte. O fedor. O mundo velho. Chamavam de muitos

nomes. A Metrópole cresceu em volta daquele que um dia foi conhecido como o

Berço da Civilização. Ninguém se interessou em reconstruir a cidade antiga.

Aviões, helicópteros, carros a combustão, televisores, computadores não-

19

Page 20: Textos Literários

quânticos, todo o lixo não reciclado da última revolução tecnológica estava ali,

dentro dos prédios desabitados. E havia, também, algo que Túlio não encontrava

em outro lugar – livros. Não como os da biblioteca - uns quadriláteros pretos de

dois milímetros de espessura, com telas de plasma e sistema automático de

avanço de páginas. Mas livros de verdade, amarelados, com traças, poeira,

anotações de margem e rodapé, marcadores, dedicatórias, folhas secas, bilhetes

de amor, receitas médicas, dinheiro de celulose e listas de compras.

Amanhecia. A descida era íngreme. No topo do monte, uma placa luminosa se

apagou. Mochila apertada nas costas, avançou devagar, quase deitando no

matagal que o encobria. Os edifícios, antes apoteóticos arranha-céus do século

XX, agora não eram mais que um amontoado de paredes escuras e vidros

quebrados. Em uma grande avenida, os carros de alumínio se enfileiravam num

grande, interminável, infinito engarrafamento. Como se um dia, na hora rush,

todos de repente houvessem decidido largar seus veículos pesados e poluentes

para dar uma volta despreocupada pelos campos e vales que cercavam a Cidade

Antiga. Ninguém perdia tempo naquele lugar. Túlio podia ouvir seus passos

ecoando longe, reverberando no passado, tocando-o, fazendo-o vibrar e viver de

novo por breves segundos. Vindo e indo. Nascendo e morrendo. Como os faróis na

auto-estrada.

Terra. Algo que não se via na Metrópole. Onde não havia concreto, a grama

artificial cobria o horizonte com seu verde sintético. Sentiu vontade de tirar os

sapatos – e tirou. Colocou-os na mochila. As pedrinhas pinicavam, a poeira

grudava e ele precisava desviar das poças d’água – mas era bom. Sentir. Parecia

vida.

Adiante, um trator amarelo-ferrugem bloqueava a passagem para uma rua que se

estendia à direita. Túlio quis desviar. Mas a voz, quase audível, trêmula até, lhe

indicava o caminho. Em pouco tempo, o pé descalço de Ivo brigava com uma das

rodas, enquanto com as mãos ele se apoiava na porta do veículo, usando a cabine

como passagem para o outro lado. A rua estava estranhamente vazia. Nem sinal

de carros. Nenhum entulho, lixo ou restos. Era como uma rua comum, em que

todos ainda estivessem dormindo em suas camas numa manhã de domingo. Túlio

podia ouvir os ecos distantes de jornais sendo jogados nas frentes das casas,

pessoas saindo atrasadas para seus trabalhos, crianças fardadas andando rua

acima em uma algazarra distante, que se perdia docemente no horizonte.

Fechando os olhos, podia ver. Querendo, podia tocá-las. Mas, quando abriu os

olhos, tudo o que viu foram casas mortas. O portão de uma delas pendia, quase

solto. O muro baixo deixava ver o telhado. Marrom das telhas e negro do tempo,

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Page 21: Textos Literários

ostentava no meio um grande buraco, que ia de parede a parede. Quando entrou,

Ivo Túlio deixou para trás o portão caído. Entre os pés e o chão, a camada de

folhas secas produzia um crepitar agoniante. Entrou.

Era uma sala pequena, retangular, com o sofá de frente para uma estante. Sobre

ela, aparelhos antigos - TV, vídeo e uma pilha de discos que Túlio conhecia apenas

de museus. Um homem com o cabelo de cuia sorria em uma capa de papelão. O

corredor, longo e escuro, o chamava. No meio do caminho, a porta de um quarto

desviou sua atenção. Uma cama de casal, comida pelos cupins, se sustentava com

restos de inércia. Na escrivaninha havia um livro. Antes de pensar, Ivo já o tinha

nas mãos. Ao contrário do resto da casa, estava limpo e bem conservado. Não

havia título. Depois de algum tempo ele se lembrou que, ao contrário dos livros da

biblioteca, este devia ser aberto. Abriu-o cerimoniosamente, com a lentidão

reflexiva dos tempos. No entanto, logo quando se pôs a ler as atraentes páginas,

estas começaram a se desfazer, não obstante não houvesse naquele quarto

abafado correntes de vento que justificassem que aquelas folhas se dividissem em

mil partículas de pó, que produziam uma nuvem estranha e pesada que agora o

envolvia. Tentou passar as folhas com mais cuidado, sem sucesso. Irritando-se,

trocou-as com os dedos frenéticos, e no íntimo gostaria ter em suas mãos não um

fóssil do século passado, mas um confortável nano-pc com controles mentais. As

páginas, como se fugissem, também se desfaziam em velocidade crescente. Em

pouco tempo, o livro todo pairava em volta de Ivo Túlio. Irritado, sentou-se na

cama, a capa oca nas mãos. Levou menos de um segundo para que os pés da

cama se soltassem e ele caísse junto com ela. O baque foi tão grande que, do

teto, caiu uma camada de poeira. Estranhando, ele se levantou, indo até o

corredor. Uma chuva de poeira caía do telhado, cobrindo Ivo Túlio de cinza e

fazendo-o tossir. Andou acelerado até a porta, quando ouviu o primeiro estrondo.

Na sala, a TV se espatifava no chão, enquanto o sofá deslizava para a frente. A

previsão do tempo não havia mencionado terremotos, mas não havia dúvida de

que a terra tremia. Desesperado, Ivo Túlio passou pela porta e cruzou o quintal,

caindo muitas vezes. Cidade Antiga convulsionava - Ivo corria em desespero

solitário. Passou pelo trator em um pulo desengonçado, e, subindo nos carros,

cortou caminho pelo engarrafamento infinito. O tremor dava sinais de que iria

parar, mas depois voltava com força redobrada. Em uma dessas, Túlio caiu de

cima de um carro e, em um pára-choques, rasgou o braço direito de uma ponta a

outra. O sangue misturado com a terra empapava sua camisa e o cobria com um

marrom selvagem. O livro ficou para trás.

A descida fácil agora se convertia em um desafio mortal. Tentando escalar o

barranco sem qualquer apoio, logo Ivo Túlio estava coberto de terra, sentindo por

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Page 22: Textos Literários

todo o corpo as pancadas ferozes que vinham das profundezas. Não podia respirar

e sentia-se morrendo, quando, de repente, um baque mais forte o projetou para

cima. Ele estava negro, quase desmaiado, mas agora mais próximo de subir até a

pista, onde acreditava que estaria seguro. Aproveitando uma brecha no inferno,

deu alguns passos certeiros e logo estava são e salvo, na pista por onde havia

chegado na agora longínqua madrugada.

Depois de três longas respirações, Ivo Túlio se perguntou que tipo de terremoto

era aquele, que só revolvia a terra da Cidade Antiga. Intrigado, resolveu olhar

para trás, quando viu as gigantescas armas sônicas da Companhia Nacional de

Reconstrução posicionadas há cerca de cem metros. Levantando assustado, viu,

no lugar por onde havia descido, uma grande placa luminosa que brilhava, entre

piscadas defeituosas, com os dizeres “CUIDADO! ÁREA EM RECONSTRUÇÃO”. E

então, ao comando do homem pequeno seguramente posicionado atrás das

máquinas, toda a cidade antiga estremeceu a um só tempo. A casa veio abaixo,

caindo de frente sobre o jardim. Debaixo do trator surgiu uma grande cratera, que

o sugou, junto com os carros e o asfaltamento. Os arranha-céus, decrépitos e

imponentes, vinham abaixo em quedas espetaculares, e o céu se cobriu de cinza.

As crianças, em suas felizes estripulias, perdiam a voz e a cor, esmaeciam e se

uniam à poeira e à fuligem, espalhadas pelo chão. Ao longe, uma voz rouca, triste,

dolorida, uma voz que era o próprio tempo, dava seu último grito. O homem, de

longe, chamava Ivo Túlio. Mas ele não queria andar. Reuniu forças e gritou, um

tanto desanimado, que preferia esperar que ele trouxesse um caminhante.

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Page 23: Textos Literários

“OBARA DA FLORESTA”

Obara conta que eu nasci na ribanceira, de dentro de uma pedra, que foi

formando, formando até fazê eu. Ele viu tudo, e esperou o dia pra me salvar

da morte certa, balançando no cipó. Naquele tempo, Obara era forte e azul

como o céu. Diz ele que foi de lá que ele veio, junto com um trovão que

destruiu a floresta inteira. Obara, filho do céu, voava pela mata. Eu, diz ele,

era um pedacinho de limo que ele foi criando. Até que do liminho veio uma

boca, que ele amarrou pra eu não comer as pedras todas. Depois da boca veio

o pescoço, e do pescoço nasceram os ombros, e dos ombros vieram os braços,

que deram mais trabalho ainda para Obara, e depois as pernas, os pés e os

dedinhos.

Obara teve que cobrir meus pés com lama de Aramacaia, senão eu ralava eles

nas pedras até o joelho, e aí tinha que crescer tudo de novo. E daí vieram as

unhas, e nessa hora eu já era adulto e Obara não conseguia me amarrar, e

como diz a Lei ele me largou na mata até eu aprender. Como eu não tinha

olhos para ver, nem ouvido nem nada, saí me batendo em tudo, mas Obara

cuidou bem de mim. Eu era tão forte e tão duro que, se caísse da ribanceira

onde eu nasci, coitada da ribanceira. Depois de um tempo nasceu um olhinho

bem pequeno, que via tudo pequeno e eu me achando muito grande. Saí

comendo tudo - as árvores, os bichos, as pedras.... quase como um pedacinho

da ribanceira que me pariu.

Quando eu percebi, meu olho pequeno soltou um lágrima minúscula e cresceu

um pouquinho, mas como eu era grande da lágrima nasceu um rio, que eu

chamei de Rio da Minha Lágrima, e de vez em quando eu eu até lá tomar

banho junto com Obara. Foi aí que eu percebi que não era tão grande assim,

era só um pouquinho maior que ele. O resto todo é que continuava pequeno.

Foi então que Obara me contou que as pedras que ele me deu, quando era

criança, eram pedras de gigante, e que, ao contrário dele, eu nunca ia parar de

crescer. Obara já estava um pouco velho, o azul virando cinza, mas ele ainda

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Page 24: Textos Literários

era grande e forte pra voar pelos cipós, parando de vez em quando para

descansar com seu cajado. E numa noite dessas Obara veio e me deixou um

pacote com as melhores pedras que tinha para comer na floresta. Eu comia as

pedras e chorava em cima delas, pois sabia era a Lei, e eu nunca mais veria

Obara, que me salvou da morte, me criou e fez de mim um gigante da floresta.

E agora que cresci eu sei que na verdade também sou pequeno, como o

tanaiú, a folha do tanaré e o aristão. Foi então que eu percebi que, das pedras

que ele me deu, um liminho começou a crescer, e eu cuidei dele, como Obara

cuidou de mim, sabendo que assim como ele um dia a Lei me levaria. O meu

nome? Não sei, nunca me deram. Acho que vai ser Obara também.

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Page 25: Textos Literários

“O FIM DO MUNDO PARTE 1”

- Lia?

- Sim?

- Eu não te amo.

- Como assim não me ama?

- Eu tava olhando pra você, aí deitadinha, lendo seu livro, e de repente percebi

que eu não te amo.

- Mas quando você disse o contrário?

- Nunca.

- A gente tá junto há quanto tempo? Um mês e meio?

- Um mês e meio.

- Não acha um pouco precipitado?

- Pra dizer que não te amo?

- Sim.

- Talvez eu tenha pulado alguma etapa, mas não sei bem qual...

- Que tal aquela parte em que você diz que me ama?

- Não me pressione. Eu já disse que não...

- Não precisa repetir.

- Mas o que você quer que eu diga, então?

- Não sei, mas não isso.

- E você, me ama?

- Você não tem o direito de pergunt...

- Ama ou não ama?

- E se eu disser que sim, o que você vai achar disso?

- Eu já disse que não...

- Eu sei. Eu sei.

- Mas eu gosto muito de você.

- Tá bom.

- Adoro transar com você.

- Sei.

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Page 26: Textos Literários

- Seu corpo é o mais perfeitamente belo que já ví.

- Mas você não me ama.

- É.

- E precisava deixar isso claro assim, na hora de dormir?

- Foi.

- E agora eu posso dormir?

- Pode. Mas não me abrace muito.

- Porquê?

- Porque abraço na hora de dormir é só pra quem eu amo. E eu não te amo.

- Você tinha que repetir?

- Você perguntou “porquê.

- O que você quer que eu faça?

- Fique ali no cantinho.

- Junto da parede?

- É.

- Mas tem uma infiltração na...

- Eu sei...

- Porquê eu não posso mais dormir abraçadinho?

- Eu já disse...

- Tá, eu já sei. Me empresta o travesseiro?

- O de ganso não.

- O outro.

- Pode ficar.

- Brigada.

- Tá gostando?

- É até fresco aqui.

- Você está gostando?

- To, sim. Brigada.

- Não quero mais que você fique aí.

- Porquê?

- Porquê um dia eu vou amar alguém, e esse alguém é que vai ficar aí.

- Mas não vai sobrar lugar nenh...

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Page 27: Textos Literários

- Vai pro chão.

- Mas tá frio.

- Eu desligo o ar.

- Mas...

- Eu já disse. Desce.

- Me empresta um lençól?

- O chão tá bom?

- Sabe que até gostei? Assim, com ar desligado, fica gostoso.

- Sai daí.

- Mas pra onde eu vou então?

- Não sei.

- Eu fiz alguma coisa de errado?

- É claro que não. Você sabe que eu te adoro. Apenas não te amo.

- Mas praonde eu vou?

- Eu não sei. Vai pra junto das pessoas que eu não amo. Tem um monte delas

por aí.

- Mas tá tarde.

- Eu sei.

- Vou pra sala, tá bem?

- Tá.

- Tchau.

- Eu to ouvindo você chorar.

- Desculpe.

- Pare com isso.

- Mas eu...

- Pare!

- Eu vou pro banheiro...

- Boa idéia.

- O que você tá fazendo aqui?

- Dá licença. Preciso urinar.

- Não posso olhar?

- Não. Só pode olhar quem...

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Page 28: Textos Literários

- Eu olho pro outro lado. Tem problema não.

- Tadeu?

- Sim?

- Eu queria te falar um negócio.

- Diga.

- Mesmo com tudo isso, eu queria dizer que, do fundo do meu coração, eu te

amo.

Tadeu abre um sorriso.

- Mesmo mesmo?

- Mesmo mesmo.

- Você me ama?

- Amo.

- Mesmo eu fazendo isso tudo com você?

- Mesmo você fazendo isso tudo comigo.

- Mas porque?

- Porque sim. Porque eu te amo.

- Eu também te amo.

- Eu sei, Tadeu. Vamos pra cama agora?

- Vamos.

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Page 29: Textos Literários

“DUDU E EU”

1. O Dudu era muito meu amigo.

- Dudu!, aqui! – eu disse – Puxa uma cadeira.

Dudu olhou em volta e fez uma cara estranha quando me viu. Tirou a pasta tiracolo e, pedindo gentilmente (o Dudu era sempre muito gentil) ao casal do lado, pegou uma cadeira e sentou à minha frente.

- Diga, rapaz! O que tem feito?- Nada de mais. Você sabe, TV.- E a mulher?- Disse que ia fazer vestibular. Ela não sabia, quando marcou, que hoje era o vestibular.- E aí você me chama, né, sacana? Eu sou o estepe.- Ainda acha que eu te chamei!- Bonito, isso. Não diz onde anda, marca encontrinho escondido com vagabunda, sai por aí com outros amigos e nem me chama... Que porra é essa?

Dudu ria. - O que você quer? Nunca mais uma praia, uma viagem, um jantarzinho! Colé!

Dudu riu meio sem graça.

- Pedrão...- Diga.- Assim vão achar que a gente é viado.

Dudu ria.

- Mas sério, e a mulher?, emendei.- Vai ligar hoje.- Que horas?- Cinco.- Você vai ter que ligar de volta.- Eu sei.- É bom. Deixa ela insegura.- Mandei minha vó dizer que eu tava enchendo a cara no boteco.- Isso, garoto.- Agora eu vou ser obrigado a ir no boteco encher a cara. Eu odeio mentir pra velha.- Terrível. Simplesmente terrível. Espero que você não tenha me incluído na história.

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Terminei a cerveja e pedi a conta,

- Porque não pagou logo?- Não sei, acho que é proibido.- Claro que não. Dava logo o dinheiro pro garçom. - E a classe onde fica?

O garçom trouxe o livrinho com a conta.

- Vou colocar o dinheiro assim, saindo pela borda, pra ele vir pegar logo.- Você é um imbecil. 2. Eu e Natália havíamos dormido juntos. Ela ronronava de seu lado da cama, coberta pelo lençol, enquanto se espreguiçava felinamente. Eu olhava para cima, com as mãos embaixo da cabeça. Não estava feliz, tampouco triste. Era bom.

- Acordou tem muito tempo?, disse Natália.- Esqueci de contar – eu não durmo nunca.- Mesmo?- Fiz uma cirurgia, uns anos atrás. Arranquei meu hipotálamo. Você sabe, a parte do cérebro que faz a gente dormir.- Ah. Engraçado.

A Natália nunca ria. Eu suspeitava que ela me achava um completo idiota, o que me fazia pensar que eu provavelmente transava muito bem.

- Comprou os cigarros que eu te pedi?- Esqueci. Peraí que eu trago.- Não, deixa. Pego na hora do almoço.

Ela quis almoçar fora. Descemos a escadas do motel no centro e saímos, em busca de comida decente. Encontramos um PF simpático. Comíamos em silêncio, quando, ao longe, vi aquela figura branca, quadrada e coberta de preto, formar-se em minha retina. Era o Dudu.

- Dudu! Não sabia que andava por esses lados...

Parecia preocupado.

- Trabalho aqui do lado, agora.

Silêncio de olhares evasivos.

- Essa aqui é a Natália. Natália, esse é o Dudu. Lembra que eu te falei dele?- Muito prazer, Dudu. Ele fala muito de você.- Sério? Quem diria! Só vejo esse aí uma vez na vida outra na morte...

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Page 31: Textos Literários

O Dudu olhava pros cantos, os olhos caídos.

- E sua vó, como está? Aquela velha escrota ainda me odeia?- Morreu.- Sério?- Sério.

Se o mundo explodisse, tenho impressão que Natália continuaria comendo seu bife com batatas. Mas voltando.

- E de quê, assim de repente?- Câncer.- Mas câncer dá assim?- Ela tava internada há dois meses.- Ah, tá.- Bem, eu já vou indo...- Não vai almoçar?- Não. Como no caminho. Atrasado...- Tá bom então. A gente se fala.- É. Tchau, Natália.

Natália deu aquele sorriso irônico que eu amo.

- Tchau, Dudu.

3. De madrugada e o telefone toca.

- Pedrão?- Diga, Dudu.- Sabe aquela mulher?- A do vestibular? Sei.- Terminou comigo.- Cê ligou pra dizer isso?- Fica pior.- Diga logo.- Ela tá com meu melhor amigo.- Pó, Dudu! Eu achava que seu melhor amigo era eu!- Do trabalho!, melhor amigo do trabalho!- Sim, e aí?- Não vai dizer nada?- Quer que eu diga o que?- Sei lá, qualquer coisa.- Dudu, eu vou dizer uma coisa que vai te ajudar pro resto da vida. Tá anotando?- Tô.- Mulher é puta.- Sério?- Sério.

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- Até minha mãe?- Principalmente!- Porra, Pedrão! Essa foi demais!- Certo. Agora deixa eu dormir.- Tá.

4. Ligaram do trabalho do Dudu. Disseram que ele não aparecia há quase uma semana e não atendia as ligações. O cara tava arrasado.

- Cadê a pasta, Dudu?

Não respondeu. Levantou a mão e contorceu os lábios, girando a cabeça em negativa. - Liguei em sua casa e nada. Passei lá e o porteiro disse que você tinha saído. Montei tocaia, uma hora cê ia aparecer. Você não vai acreditar, mas aqui eles têm um português de verdade. Tem bigode e tudo, e desconfio que é burro como uma porta. Acho que ele me deu troco a mais.

Ele não ria. Estaria tomando aulas com a Natália?

- Pô, Dudu! Assim não pode, cara! Reage, fala alguma coisa! Nem que seja pra me mandar pra puta que pariu mas fala, cacete!

Ele respirava fundo.

- Lembra quando foi comigo, o que você fez? Me jogou um balde de água na cara!

Dudu tinha os olhos úmidos.

- Manda à merda, Dudu! Manda se fuder!

As lágrimas caíam. Dudu respirava rápido.

- Abre essa boca e fala alguma coisa, porra!

5. O Dudu tava até bem. Não usava mais a camisa preta. Não sei se porque mudou mesmo ou porque a camisa tinha ficado na casa dela. Ria mais, fazia uma piada ou outra. Era como uma versão passada na kiboa do Dudu de antes. Comíamos bolinhos de bacalhau com cerveja.

- E o escritório?- Muito bem... você sabia que lá dizem que você é minha puta?- Desconfiava. Mas puta mesmo, de programa, ou só uma vagabunda dedicada?- Vagabunda dedicada.- Ah, bom. Eles que me desrespeitassem.

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- Não me descontaram o salário. Legal da parte deles.- É verdade. É tipo uma licença maternidade, só que pra corno.- É. Licença Corno.- Licença Chifres.- Prefiro Corno.- Que seja. Eu não sou corno, mesmo.

6. É de madrugada. Ligo pro Dudu.

- Dudu?- Diga.- Ela morreu me odiando?- Quem?- A sua vó, morreu me odiando?- Como é que eu vou saber?- Sei lá, ela disse alguma coisa, assim, no leito de morte? Eu preciso saber, Dudu.- Eu não ouvi direito... eu não lembro.- Fala a verdade!- Eu nem acordei ainda... - Anda, Dudu! Eu não posso dormir com isso na cabeça!- Eu acho que foi...- Conta...- Como foi, mesmo?...- Diz logo...- Ah, lembrei!- Desembucha!- Ela falou: ”Filho da puta aquele seu amigo, hein?!” E depois morreu.- Você espera que eu acredite nisso?

7.

- Natália, eu preciso te contar uma coisa.- É o quê, Pedrão?- Eu amo o Dudu.- Eu sei disso. Ele é seu amigo.- Não, Natália. Você não entendeu. Eu AMO o Dudu.- Eu sei, você ama ele muito. Quer que fique com ciúme agora?- Não, Natália. É diferente.- Diferente como?- É que eu tô apaixonado, entende?- Você tá brincando...- Sério.- Quando isso começou?- Não sei... acho que foi quando ele perdeu a namorada. Estava tão frágil...- Mas Pedrão, você nunca foi disso, o que aconteceu?- Eu sei, mas aconteceu, o que eu posso fazer? Não é que eu seja viado...

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Page 34: Textos Literários

- Não?- Não. Eu não gosto de homem. Só gosto do Dudu.- E ele, o que acha disso?

Dudu estava lívido. Ele não esperava por isso,

- Você sabia disso?, perguntou Natália.

Ele não conseguia formar as palavras. Natália se levantou.

- Depois de velho resolve virar bicha. Boa sorte, Dudu. Vou embora.

Natália se levantou e saiu.

- Dudu, me desculpe. Eu nem sei onde eu tava com a cabeça...

Dudu tinha os olhos arregalados.

- Olha, eu vou indo. Eu sei que você precisa de um tempo pra assimilar. Pensa bem, tá?

8. De madrugada o telefone toca. Está mudo, mas respirando.

- Dudu, é você?- Sou eu..

A voz estava cansada.

- Olha, deixa eu falar uma coisa sobre ontem... é que na verdade...- Não, deixa que eu falo, Pedro. Você sempre foi meu melhor amigo, cara...- Eu sei, mas...- Não. Você já falou muito, agora é minha vez, ok? A gente se conhece há quanto tempo? 10, 15 anos? E nunca você me deixou na mão. Não vou te mentir que me surpreendi com tudo o que você disse, mas pensei bem depois. Tudo o que você falou fez sentido. Lembro quando a gente ia no fliperama juntos, as tarde no shopping, quando não nos desgrudávamos na escola, de todas as vezes em que nos consolamos quando as mulheres sacanearam com a gente...

- É verdade, Dudu, é verdade...

- Então, foi pensando em tudo isso que eu tomei essa decisão. Vamos tentar, que se fodam os outros! A gente se ama, caralho. - Pô, Dudu, saquié...- Fala, Pedrão. - É que ontem... bem... você sabe que eu adoro zuar com sua cara, né? Coisa de amigo...

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Page 35: Textos Literários

- Sei...- Pois é, é que eu tinha combinado com a Natália...- Eu sei... mas não saiu como você tinha pensado, tudo bem...- Sabe o que é, é que..., aquilo que eu te falei... bem, não sei nem como dizer isso agora, depois de tudo isso...- Fala logo.- É que era tudo brincadeira.- Como assim, brincadeira?- Pô, Dudu, vai me dizer que você não olhou no calendário?- Olhei não, porque?- Você sabe que dia hoje?- Não...

A voz sumia do outro lado do telefone.

- Hoje é 2 de abril, Dudu. Ontem foi primeiro de abril. Primeiro de abril, sacou?- Saquei...

Silêncio.

- Dudu, você é um sacana mesmo!- Oi?- Me pegou! Putaquepariu, você me pegou!- Como ass...- Touché, Dudu!, touché! Virou o feitiço contra o feiticeiro! Eu acreditei mesmo que você queria... caralho!, genial! Essa você tem que contar pro pessoal na sexta. Antológica! Depois dessa só indo dormir mesmo. Caraca... touché!- É... touché.- Té mais, Dudu.- Té.

E desligamos. Engraçado... nunca mais eu vi o Dudu.

Saudade do Dudu.

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Page 36: Textos Literários

“INVERNO”

Sei que você gosta de pular no rio, de churrasco no quintal, ouvir músicas bacanas e esquecer que o tempo passa tudo morre e mesmo enquanto vivos nossos pensamentos são sujos e imperfeitos.

Eu sei de tudo isso, inclusive que eu devia ver o lado bom das coisas e outros clichês não menos verdadeiros. Que preciso exigir menos de mim, rir mesmo sem graça e dançar danças que eu não gosto apenas pelo prazer cinético, pela completude instantânea que surge quando o corpo vaza ritmos comprimidos de vibração melódica.

Acho lindo quando você conta que subia em pé Araçá, brincava de pega-pega, jogava com os moleques da rua e outras criancices com trilha sonora de MPB.

Sei também algumas coisas que você não sabe, coisas de gente boba que cresceu entre livros e monitores. Aprendi que existem dois tipos de pessoas no mundo, os normais e os melancólicos. Nunca subi em pé de araçá, não brinquei de pega pega, e, mesmo quando brinquei, ainda era o estranho que sempre perdia e voltava pra casa pensando em murros e pontapés que nunca encontravam o destino.

Talvez você não entenda, talvez ninguém um dia venha a entender. É que um demônio invisível me roubou a alegria aos dez anos de idade.

E hoje vivo nos sorrisos que provoco, com aqueles que não se importam em compartilhar as pequenas coisas secretas... essas poucas que não me ofendem com seu brilho.

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“SONHOS”

Uma vez sonhei que era um aviãozinho de papel. E voava.

Me interessam os eventos capazes de romper o tecido das relações sociais. Às vezes fantasio rasgos na realidade que, por alguns segundos, me produzem grande satisfação. Andando no ônibus, vejo um exército desconhecido invadindo a orla de Salvador. Marcham sem pressa, soberanos. Abrem caminho, mas não matam ninguém. Ainda. Se dirigem talvez às sedes do governo. Aos batalhões do exército. Aos shoppings Salvador e Iguatemi.

Era pior, quando criança. Tive inúmeros sonhos com discos voadores. Eu os temia, mas ao mesmo tempo desejava aquela sensação intrigante de medo e espanto. Já os vi pousar em meu colégio, num dia de aula. Outra vez, avistei um disco maravilhosamente belo de minha janela do quarto e chamei a família toda para ver. Era como se o mundo se partisse em dois, como se dali em diante tudo fosse diferente. Talvez eu quisesse ser o cara dos discos voadores, o herói do filme, o nerd que decifra o código, descobre a invasão, acha o grande palpite que vai salvar a humanidade.

Hoje tudo era água. Eu morava no décimo segundo andar e tinha água em minha janela. E eu saía de barco pela cidade.

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FIM