narrativa hipertextual multimídia

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Narrativa Hipertextual Multimídia: um modelo de análise Marcelo Freire

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Livro sobre narrativas hipermidiáticas

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  • Narrativa Hipertextual Multimdia:um modelo de anlise Marcelo Freire

  • Narrativa Hipertextual Multimdia:um modelo de anlise

  • Marcelo Freire Pereira de Souza

    Doutorando e mestre em Comunicao e Cultura Contemporneas pela Universidade Federal da Bahia. Graduado em Jornalismo pela Faculdade Integrada da Bahia. Professor do curso de Relaes Pblicas nfase em Multimdia da Universidade Federal de Santa Maria campus Frederico Westphalen.

  • Narrativa Hipertextual Multimdia: um modelo de anliseMarcelo Freire Pereira de SouzaPrimeira edio, Santa Maria, 2010

    Edio: Ada MachadoReviso: Debora Cristina LopezCapa e projeto grfico: VLK Design

    FACOS/UFSM

    Catalogao na Fonte: Bibliotecria Lucia Giacomoni CRB 10/1726

    S729n Souza, Marcelo Freire Pereira de.

    Narrativa hipertextual multimdia: um modelo de anlise / Marcelo Freire Pereira de Souza. Santa Maria: FACOS, 2010. 105 p. : il.

    Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-98031-71-2 1. Texto jornalstico. 2. Webreportagens estudo. 3. Produes. narrativas. 4. Narrativa hipertextual. I. Ttulo

    CDU: 070:8142

  • A Otto Lopez-Freire [in memorian], o menino mais forte que conheo

  • AGRADECIMENTOS

    A Debora Cristina Lopez, a razo de tudo.

    A Graciela Natansohn, pela orientao e por compartilhar uma viso multidisciplinar que possibilitou esse trabalho.

    A Marcos Palacios e aos demais colegas do GJOL, pelas frutferas discusses e leituras.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Culturas Contemporneas, pela ateno e disponibilidade.

  • Todo texto uma mquina preguiosa pedindo ao leitor que faa uma parte de seu trabalho.

    (Umberto Eco)

  • SUMRIO

    INTRODUO

    CAPTULO I LEITURA1.1 Leitor e leitura 1.2 Leitura em mdias digitais 1.3 Caractersticas do webjornalismo

    CAPTULO II GNERO E REPORTAGEM 2.1 Gnero e produo de sentido 2.1.1 Contrato de leitura e de comunicao 2.2 Reportagem e webreportagem

    CAPTULO III NARRATIVA 3.1 Narrativa e narratividade 3.2 O enunciador e as categorias da enunciao 3.2.1 Categoria tempo ou Da narrativa aristotlica ao hipertexto 3.2.2. Contexto social como embreagem de espao 3.3 Categoria pessoa ou multivocalidade e a narrativa 3.4 Narrativa hipertextual jornalstica 3.5 Arquiteturas da informao

    CAPTULO IV ANLISE 5.1 40 anos de Maio de 68 5.1.1 Arquitetura da Informao 5.1.2 Protocolo de Leitura e gramtica da interao 5.1.3 Criao de Mltiplas linhas narrativas e encadeamento narrativo 5.1.3.1 Categorias Enunciao e a composio da narrativa 5.1.3.2 Categoria Pessoa 5.1.3.3 Categoria Espao 5.1.3.4 Categoria Tempo 5.2 Nao Palmares 5.2.1 Arquitetura da Informao 5.2.2 Protocolo de Leitura e gramtica da interao 5.2.3 Criao de Mltiplas linhas narrativas e encadeamento narrativo 5.2.3.1 Categorias Enunciao e a composio da narrativa 5.2.3.2 Categoria Pessoa 5.2.3.3 Categoria Espao 5.2.3.4 Categoria Tempo 5.3 40 anos do Maio de 68 Vs Nao Palmares

  • CONSIDERAES FINAIS

    REFERNCIAS

  • Introduo

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    Este livro fruto de uma inquietao acadmica do autor. Durante a gradu-ao em jornalismo e o mestrado em Comunicao os debates sobre narra-tiva hipertextual sempre foi objeto de nossos estudos. Nesta obra, buscamos compreender tambm como ela dialoga com o processo de leitura em mdias digitais. A partir destes elementos pudemos propor e testar um modelo de anlise de webreportagens utilizando algumas ferramentas metodolgicas apoiadas em distintos campos como os estudos de linguagem, a semitica e anlise do discurso de veis francs. O desenvolvimento de um modelo a partir desse instrumental terico o principal avano desta pesquisa, que parte de uma primeira aproximao com o objeto (SOUZA, 2006) em que categoriza-mos como os links se relacionam dentro de uma cobertura especial, mas sem relacionar as discusses com os itinerrios possveis propiciados pela arqui-tetura da informao.

    Essa limitao nos levou a um novo problema de pesquisa: desenvolver um mtodo que permitisse identificar se as webreportagens criam mltiplas linhas narrativas que pudesse ser replicada em diversas produes do mesmo gne-ro. Nosso objetivo testar um modelo de anlise de webreportagens a partir da formao de multiplas linhas narrativas em duas produes do gnero: Na-o Palmares e 40 anos do maio de 1968. O resultado da pesquisa inicial nos levou atual hiptese: a observao da gramtica de interao, arquitetura da informao e o encadeamento narrativo estabelecido a partir das categorias de enunciao funcionam como ferramentas para a construo de um modelo de anlise de webreportagens.

    O gnero adotado para a seleo do objeto deste estudo permanece o mesmo, por compreendermos que por tratar de acontecimentos j concludos as reportagens tm como caracterstica oferecer uma informao mais apro-fundada e, por isso, mais adequada para a criao de narrativas. Desta vez observamos as webreportagens 40 anos do maio de 681 do portal G1 e Na-o Palmares2 da Agncia Brasil. Optamos por esses dois veculos por terem uma produo regular de reportagens. Uma demonstrao disso o fato de o primeiro manter um canal de especiais e o outro um de grandes reportagens. Ambos tambm tratam de acontecimentos que j esto concludos e, por isso, poderiam ter um tempo de execuo maior e, por conseguinte, uma estrutura mais elaborada.

    Para criar um modelo de anlise de webreportagens baseado na criao de mltiplas linhas narrativas, buscamos aproximar, respeitando as espe-

    1Essa reportagem pode ser acessada no endereo http://g1.globo.com/Sites/Espe-ciais/0,,15530,00.html 2Essa reportagem pode ser acessada no endereo http://www.agenciabrasil.gov.br/grandes-re-portagens/2007/10/16/grande_reportagem.2007-10-16.3152825702

    Introduo

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    cificidades da web, perspectivas e operadores de anlise dos principais autores da rea em outros suportes e de alguns que j iniciaram essas aproximaes como: Vron (2004), Eco (1993; 1994; 2004a; 2004b), Lies-tl (1997) e Scolari (2005). Nosso objetivo testar se os operadores so suficientes para analisarmos webreportagens e como podem funcionar em conjunto de forma complementar.

    Esse modelo deve realizar a avaliao qualitativa seguindo as trs etapas definidas por Trivios (1987, p. 161) para observao de contedo: pr-anli-se, descrio analtica e interpretao inferencial. A primeira a organizao e delimitao do objeto. Alm da delimitao do corpus, importante a reali-zao de um resgate da histria do veculo analisado, sua abrangncia e uma anlise ampla de sua estrutura para referenci-los socialmente. A descrio analtica uma classificao e um estudo aprofundado do corpus de pesquisa (TRIVIOS, 1987). Propomos a utilizao de alguns operadores para fazer as anlises preliminares buscando reconhecer a constituio de alguns padres na construo dos textos das reportagens do corpus. Os parmetros para anlise textual e estrutural sero: arquitetura da informao e encadeamento narrativo atravs de embreagens e debreagens. J para a anlise da interface utilizaremos a idia de gramtica da interao de Scolari (2005) que inclui, alm da anlise textual, a conexo entre a mise en page (aspectos grficos) e os protocolos de leitura. A terceira etapa, interpretao inferencial, a mais profunda e reflexiva da anlise de contedo (TRIVIOS, 1987). A partir dos padres reconhecidos na etapa anterior, buscamos poder identificar as estra-tgias utilizadas na construo do discurso das reportagens. Para isso, utili-zamos como operadores a arquitetura da informao, a criao de mltiplas linhas narrativas e o encadeamento narrativo, alm do protocolo de leitura e da gramtica de interao.

    No primeiro captulo buscamos as diferenas entre as formas de leitura tradicional e na tela a partir das instncias de produo e no de recepo, tratamos com leitura projetada e no realizada pelo leitor emprico. A primeira diferena nessa projeo de leitura que abordamos a gerada pela introduo da interface e suas conseqncias como uma nova gramtica de interao, considerada no mesmo nvel das gramticas textual e visual. Depois vemos a prpria materialidade do meio, atravs da reviso das caractersticas do web-jornalismo: hipertextualidade, multimidialidade, instantaneidade, memria, personalizao, interatividade e supresso dos limites de espao e tempo. Temos como base terica autores como Elias Machado, Marcos Palacios, Lu-ciana Mielniczuk, Ramon Salaverra e Javier Diaz Noci.

    O segundo captulo dedicado questo do gnero discursivo, inicialmen-te abordando como ele cria uma relao de reconhecimento entre produtor e

    Introduo

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    leitor, chamada contrato de comunicao ou contrato de leitura. Depois ve-mos quais so as definies do que reportagem e de suas especificidades no ciberespao. O terceiro captulo um momento chave para esta pesquisa. Nele definimos os parmetros para o estabelecimento da narrativa no webjor-nalismo a partir das categorias da enunciao e da aproximao de Gunnar Liestl a respeito dos conceitos de Gerard Genette. Antes disso, partimos das definies da narrativa tradicional aristotlica at a sua aplicao, tanto no jornalismo quanto no hipertexto.

    No quarto captulo operacionalizamos o modelo em cada uma das reporta-gens separadamente, seguindo as seguintes etapas: Arquitetura da Informa-o; Protocolo de Leitura e Gramtica da Interao; e Criao de Mltiplas linhas narrativas e encadeamento narrativo, para ento fazermos um cruza-mento dos resultados obtidos. Com esse comparativo podemos identificar diferentes estratgias na composio tanto do protocolo de leitura explcito na mise en page, como da organizao da informao atravs da arquitetura da informao e, por fim, a criao das mltiplas linhas narrativas.

    Esperamos que a metodologia aqui proposta possa ser aplicada a outros objetos, respeitando o horizonte de expectativas criado na instaurao do contrato de leitura. Assim como pretendemos auxiliar na desconstruo da idia de que a narrativa se cria automaticamente com a estruturao dos iti-nerrios de leitura. Como veremos ao longo deste trabalho, defendemos que a construo de uma narrativa depende de elementos mais complexos do que apenas a linkagem. Acreditamos que o repertrio de percursos oferecido pelo autor fundamental para a criao de uma narrativa multilinear, mas depende, necessariamente, do contedo para se desenvolver.

    Introduo

  • Captulo I - Leitura

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    Ao longo dos trs primeiros captulos deste livro pretendemos apresentar o referencial terico que apia cada uma de nossas ferramentas de anlise. Neste primeiro captulo pretendemos definir alguns dos limites deste estudo e caminhos que iremos seguir. Analisamos a relao entre a arquitetura de infor-mao e seus itinerrios de leitura com a criao de narrativas multilineares. Assim, preciso definir o que consideramos itinerrios de leitura e quais so as diferenas entre a ler na tela e no papel. Tratamos da questo da leitura a partir da anlise das instncias de produo e no de recepo. Ou seja, a leitura projetada, potencial, e no a realizada pelo leitor emprico. Nesta leitura projetada iremos tratar com aspectos especficos, principalmente a interface e a arquitetura da informao com veremos ao logo deste captulo.

    1.1 Leitor e Leitura

    A primeira diferenciao que devemos fazer aqui entre leitor e leitura e as conseqncias de optar por ter um ou outro como foco em uma pesquisa. Es-colher o primeiro, aquele que, de acordo com o Dicionrio Aurlio, l, nos leva a uma tradio dos estudos relacionados aos hbitos de leitura, perfil de con-sumo, letramento ou, ainda, cognio. Um exemplo desse tipo de pesquisa a realizada por Lcia Santaella (2004), que traa um perfil do leitor segundo sua habilidade de navegao. Ela determina trs tipos:

    Captulo I - Leitura

    Acreditamos que atravs de uma anlise do processo de leitura definida, tambm segundo o Dicionrio Aurlio, como ato ou efeito de ler, podemos entender a constituio desse leitor e de outros possveis ao observar a obra, suas estratgias discursivas e no o processo cognitivo. Partimos da idia que seja popular ou erudita, ou letrada, a leitura sempre produo de sentido (GOULEMOT, 1996, p. 107). Para o autor,

    O primeiro [...] o leitor contemplativo, meditativo da idade pr-industrial, o leitor da era do livro impresso e da imagem ex-positiva, fixa. O segundo o leitor do mundo em movimento, dinmico, mundo hbrido de misturas sgnicas, um leitor que filho da Revoluo Industrial e do aparecimento dos grandes centros urbanos: o homem na multido. Esse leitor, que nas-ce com a exploso do jornal e com o universo reprodutivo da fotografia e do cinema, atravessa no s a era industrial, mas mantm suas caractersticas bsicas quando se d o advento da revoluo eletrnica, era do apogeu da televiso. O terceiro tipo de leitor aquele que comea a emergir novos espaos incorpreos da virtualidade. (SANTAELLA, 2004, p.19)

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    Ler dar sentido de conjunto, uma globalizao e uma arti-culao aos sentidos produzidos pelas seqncias. No en-contrar o sentido desejado pelo autor, o que implicaria que o prazer do texto se originasse na coincidncia entre o sentido desejado e o sentido percebido, em um tipo de acordo cultural (GOULEMOT, 1996, p.107-108).

    [...] um texto um artifcio que tende a produzir seu prprio leitor-modelo. O leitor-emprico aquele que faz uma conjectu-ra sobre o tipo de leitor-modelo postulado pelo texto. O que sig-nifica que o leitor emprico aquele que tenta conjecturas no sobre as intenes do autor-emprico, mas sobre as do autor--modelo. O autor-modelo aquele que, como estratgia textual, tende a produzir um certo leitor-modelo. (ECO, 2004b, p.15)

    Essa relao do leitor com o texto, para o autor francs, define-se em trs elementos: uma fisiologia, uma histria e uma biblioteca, como veremos a se-guir. Ao considerar o jogo entre o sentido desejado pelo autor e o constitudo pelo leitor nos aproximamos do conceito de leitura de Umberto Eco, que inclui os conhecimentos prvios do leitor. Para ele (1993, p.79), um texto produzi-do para uma comunidade de leitores e a sua interpretao no ser definida pelas intenes do autor, mas de acordo com uma complexa estratgia de interaes que tambm envolve os leitores, ao lado de sua competncia na linguagem enquanto tesouro social, chamada pelo prprio Eco de enciclo-pdia. Para entender melhor como se d essa relao entre autor, texto e leitor podemos destacar quatro entidades: o leitor emprico, o autor-emprico, o leitor-modelo e o autor-modelo sendo que os dois ltimos so entendidos apenas como estratgias textuais inscritas na mensagem e os dois primeiros representando tanto autor quanto leitor propriamente ditos, externos ao texto. O leitor-modelo constitui um conjunto de condies de xito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto seja plenamente atualizado no seu contedo potencial (ECO, 2004a, p. 45). A atualizao re-ferida por Eco faz parte do processo de leitura, quando o leitor-emprico com-pleta lacunas deixadas pelo autor-emprico no texto com sua compreenso de mundo, suas experincias pessoais. Para o autor,

    Algumas destas lacunas podem ser entendidas como estratgias presentes no texto que vo construir um tipo de leitor apto a preench-las. Para Eco, prever o prprio leitor-modelo no significa somente esperar que ele exista, mas significa tambm mover o texto de modo a constru-lo (2004a, p. 40). Esse processo de construo se d a partir do reconhecimento entre o leitor--modelo proposto e o leitor-emprico, e isso se deve ao estabelecimento de uma srie de fatores contextuais, entre eles, como props Goulemot (1996) ao

    Captulo I - Leitura

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    [...] um texto um artifcio que tende a produzir seu prprio leitor-modelo. O leitor-emprico aquele que faz uma conjectu-ra sobre o tipo de leitor-modelo postulado pelo texto. O que sig-nifica que o leitor emprico aquele que tenta conjecturas no sobre as intenes do autor-emprico, mas sobre as do autor--modelo. O autor-modelo aquele que, como estratgia textual, tende a produzir um certo leitor-modelo. (ECO, 2004b, p.15)

    Quando a publicao impressa de livros passou a ser poss-vel, a maior parte da populao europia ainda no dominava a nova tecnologia de leitura e escrita, o alfabeto fundido em tipos mveis ainda no era conhecido dos leitores, que teriam que domin-lo e tornarem-se proficientes na leitura dele (Havelock, 1996). Cada uma das novas tecnologias de suportes para es-crever e ler, ou seja, de fixar e de apreender textos, nova inter-face entre autor e leitor sem que seja necessria a presena de

    O ponto chave que temos na nova relao com o texto digital a sua virtu-alizao, que muda ao mesmo tempo que sua materialidade e a relao com o corpo do leitor. A migrao da pgina para a tela altera a forma de leitura e a estruturao deste texto. Chartier destaca que preciso considerar que a tela no uma pgina, mas sim, um espao em trs dimenses, que possui profundidade e que nele os textos brotam sucessivamente do fundo da tela para alcanar a superfcie iluminada (CHARTIER, 1996, p. 31). Alm disso, define que essa nova textualidade seria suave, mvel e infinita. O autor remete ao estabelecimento do predomnio do cdex para explicar como a materialida-de influi na construo das obras. De maneira semelhante, as possibilidades (ou as coeres) do livro eletrnico convidam a organizar de forma diferente o que o livro que ainda nosso distribui de forma necessariamente linear ou seqencial (CHARTIER, 1996, p. 108). Para ele, a revoluo do texto eletrni-co uma revoluo da tcnica de produo dos textos, do suporte do escrito e das prticas de leitura. Ana Elisa Ribeiro insere um elemento que acaba por mediar essas trs instncias.

    falar de fisiologia, considerar o corpo do leitor e a materialidade da obra.

    1.2. Leitura em mdias digitais

    A relao do leitor com o corpo e a materialidade constitui um dos pon-tos chaves para entender as mudanas na leitura em mdias digitais. Para Eliane Arbusti Fachinnetto (2005) a diferena entre os suportes constitui seu significado,

    Captulo I - Leitura

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    ambos num mesmo contexto (como o caso e a natureza das conversaes face a face). Da mesma forma, usurio e tela so uma relao nova, em transio. Um novo suporte de escrita e leitura surge com a leitura em tela e o leitor se v, novamente, s voltas com a construo da histria de uma nova prtica de leitura e com uma nova relao entre o corpo e o objeto. (RIBEI-RO, 2003, p.15)

    A usabilidade um atributo de qualidade relacionado facili-dade do uso de algo. Mais especificamente, refere-se rapidez com que os usurios podem aprender a usar alguma coisa, a eficincia deles ao us-la, o quanto lembram daquilo, seu grau de propenso a erros e o quanto gostam de utiliz-la. Se as pessoas no puderem ou no utilizarem um recurso, ele pode muito bem no existir. (NIELSEN e LORANGER, 2007, p. XVI)

    Com a mediao desta interface, novos elementos so inseridos na leitura do texto eletrnico e exigem novas competncias e conhecimentos do usu-rio. A pesquisadora Mara Jess Lamarca Lapuente aponta os mais diretos, como o reconhecimento de cones, mudanas no cursor, mecanismos de retorno, significado das barras de ferramentas etc3 (LAMARCA LAPUENTE, 2006). Alm disso, ela cita que preciso saber manejar o mouse, as barras de rolagem e ferramentas de busca. A principal abordagem sobre a eficincia do uso de elementos de uma interface a usabilidade, que tem em Jacob Nielsen seu maior representante.

    Ana Elisa Ribeiro explica que a usabilidade a medio da qualidade da interao do usurio com o produto ou sistema website, software, tecnologia mvel ou qualquer dispositivo operacional (2003, p. 30). Nesta perspectiva, a usabilidade teria quatro focos prioritrios: facilidade de aprendizado, eficincia de uso, memorizao e freqncia e gravidade dos erros para a criao de uma interface transparente. Apesar de ser a principal orientao nas pesqui-sas relacionadas interface, leitura e letramento digital, a usabilidade tem um vis funcionalista, no se aplicando presente pesquisa que apresenta uma abordagem mais prxima aos estudos de linguagem. Como nosso objetivo lidar com a formao de sentido e no com a eficincia da interao, interes-sa-nos saber as intenes de autor ao criar um link, e no quantos cliques so necessrios para chegar a um contedo especfico. Portanto, preferimos tratar autores como Carlos Scolari (2004) e Lev Manovich (2001), que observam as interfaces com uma perspectiva semitica.

    3No original: iconos, cambios del cursor, mecanismos de vuelta atrs, estilos tipogrficos, signi-ficado de las barras de herramientas etc. (Traduo nossa)

    Captulo I - Leitura

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    Em termos semiticos, a interface do computador atua como um cdigo que carrega um cdigo que carrega mensagens cul-turais em diferentes mdias. [...] Um cdigo pode tambm trazer seu prprio modelo de mundo, seu prprio sistema lgico, ou ideologia; por conseguinte, mensagens culturais ou linguagens inteiras criadas utilizando esse cdigo vo seguir esse modelo, sistema ou ideologia. A maioria das teorias culturais modernas conta com essas noes que vo se referir a idia da no trans-parncia do cdigo. [...] Em resumo, longe de ser uma janela transparente para os dados dentro do computador, a interface traz fortes mensagens por si s4 . (MANOVICH, 2001, p. 76).

    Assim como Manovich, Carlos Scolari defende que a interface um lugar onde acontecem processos de significao e por isso nunca ser neutra ou ingnua. Apesar do que defendem muitos designers e pesquisadores, a interao com as mquinas digitais est longe de ser uma atividade natural, automtica e transparente5 (SCOLARI, 2004, p.27). A sua hiptese que antes, durante e depois da ao possvel identificar processos de reco-nhecimento, intercmbio comunicacional, no nvel textual, entre enunciador e enunciatrio. Para realizar essa intercambio simblico o texto produz ins-tancias virtuais: um sujeito enunciador produtor e produto do texto e um sujeito enunciatrio produzido pelo enunciador e pelo texto.6 (SCOLARI, 2004, p. 27). Assim temos uma aproximao da nossa referncia inicial da composio do texto atravs das duas instncias discursivas propostas por Umberto Eco, previamente apresentadas. Seguindo essa lgica, teramos mais um elemento, mais uma camada, na composio do discurso: a inter-face ou, como afirma o pesquisador,

    4No original: In semiotic terms, the computer interface acts as a code which carries cultural mes-sages in a variety of media. [...] A code may also provide its own model of the world, its own logical system, or ideology; subsequent cultural messages or whole languages created using this code will be limited by this model, system or ideology. Most modern cultural theories rely on these notions which I will refer to together as non-transparency of the code idea. [...] In short, far from being a transparent window into the data inside a computer, the interface bring with it strong mes-sages of its own. (Traduo Nossa)5No original: A pesar de lo que sostienen numerosos diseadores e investigadores, la interaccin con las mquinas digitales est lejos de ser una actividad automtica, natural y transparente. (Traduo Nossa)6No original: Para realizar este intercambio simblico el texto produce dos instancias virtuales: un sujeto enunciador productor y producto del texto y un sujeto enunciatario producido por el enunciador y el texto. (Traduo nossa)

    [...] a atividade do usurio diante da tela interativa no pode ser reduzida a dinmica entre texto e mise en page: a essas gramticas (textual e grfica) se agrega uma terceira, uma gra-

    Captulo I - Leitura

  • 20

    Essa mise en page, para o autor, inclui estratgias de interao que vo alm apenas da criao de um projeto grfico e da conjugao dos pacotes multim-dia (com textos, imagens, sons, vdeos etc.). Ela deve construir o leitor tambm a partir das propostas de interao. A pgina tradicional impressa organizada de forma linear. J a pgina em um ambiente hipertextual promove uma leitu-ra multidirecional, alm de ser composta por elementos textuais, imagticos e icnicos. Contudo, Scolari ressalta que esse tipo de leitura no sinnimo de leitura catica: a estrutura das pginas digitais deve predispor uma srie de dispositivos que orientem a leitura e hierarquizem os contedos8 (2004, p. 207).

    Sem considerar a gramtica da interao, Diaz Noci et alli (2004) fazem um comparativo entre o aspecto visual em jornais impressos e digitais. Segun-do eles, os quatro objetivos principais, que seriam: hierarquizar contedos, melhorar a legibilidade, dar uma uniformidade visual e deixar o produto mais atraente praticamente no foram alcanados.

    [...] atualmente, a maioria dos jornais eletrnicos apresentam uma caracterstica formal muito parecida entre eles. A prtica normal organizar o contedo da pgina principal, como muito autores chamam, em tridente. Isso acontece quando a apre-sentao dos itens noticiosos se d na parte central da pgina, deixando a coluna da esquerda para a insero dos menus de navegao e a da direita para servios, publicidade e promo-es9. (DIAZ NOCI et alli, 2004, p. 5)

    mtica da interao que inclui botes e cones para navegao hipertextual, os dispositivos para a personalizao da interface, os mecanismos de feedback, as seqncias operativas e todas as aes que o usurio deve executar para obter um resultado predeterminado. A gramtica da interao contribui no s para impor uma maneira de ler, mas sobretudo, uma maneira de fa-zer7 . SCOLARI, 2004, p. 105)

    7No original: [..] la actividad del usuario frente a la pantalla interactiva no puede ser reducida a la din-mica entre texto y la mise en page: a estas dos gramticas (textual y grafica) se agrega una tercera, una gramtica de la interaccin que incluye los botones e iconos para navegacin hipertextual, los dispositivos para la personalizacin de la interfaz, los mecanismos de feedback, las secuencias ope-rativas y todas las acciones que el usuario debe ejecutar para obtener un resultado predeterminado. La gramtica de la interaccin contribuye no slo a imponer una manera de leer, sino sobre todo, un modo de hacer. (Traduo Nossa)8No original: no es sinnimo de lectura catica: la estructura textual de las paginas digitales debe predisponer una serie de dispositivos que orienten la lectura y jerarquicen los contenidos (Traduo Nossa)9No original: [...] at present, the majority of the electronic newspapers present a formal characteristic that is very similar amongst themselves. The normal practice is to organise the contents of the front page by means of what some authors call trident. This is a question of presenting the news items in the central part of the page, leaving the left-hand column for inserting the navigation menu, and the space on the right-hand side for services, advertising and promotions. (Traduo Nossa)

    Captulo I - Leitura

  • 21Figura 01 Exemplos de pginas com formato tridente no jornalismo brasileiro

    Captulo I - Leitura

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    A organizao das pginas no formato de tridente, como nos exemplos do G1 e da Folha on Line (Figura 01), prope o que Chartier (1996) chama de proto-colo de leitura. Na primeira figura vemos a aplicao exata do que explicaram os autores espanhis. Trs eixos de leitura colocando no centro notcias, direita a publicidade e esquerda os menus, hierarquizando a informao, dispondo o mais importante acima e decrescendo em nvel de importncia a medida em que se afasta do topo. Chartier postula uma existncia pacfica entre os protocolos de leitura e a ao criativa do leitor. Ela deve ser empreendida cruzando-se, de um lado, os protocolos de leitura adequados aos diferentes grupos de leitores e, de outro lado, os traos e representaes de suas prticas (CHARTIER, 1996, p. 89). Segundo ele,

    Dessa forma, a segunda funo desta mise en page, alm de propor um inte-rao, sugerir diferentes seqncias ao leitor, que vai optar por uma apenas. Ento, alm de propor a interao atravs de estabelecimento de uma interface, a pgina prope uma ordenao do contedo e, por conseguinte, um protocolo de leitura.

    Chartier destaca que no texto impresso os dispositivos tipogrficos tm, portanto, tanta importncia, ou at mais, do que os sinais textuais pois so eles que do suportes mveis s possveis atualizaes do texto (1996, p. 100). Com isso, podemos entender a importncia dos elementos paratextuais nas sugestes de direo e na contextualizao, principalmente no contexto das leituras em mdia digital, onde h a necessidade de novas habilidades por par-te do leitor, como vimos ao longo deste captulo. Para Palcios e Mielniczuk os paratextos seriam os textos que acompanham, envolvem, delimitam o texto principal. Corresponderiam a uma zona de transio e de transao entre o tex-to (para o autor, especificamente o livro) e o leitor (2001, p. 8). Podemos consi-derar esses elementos tendo tanto uma natureza textual quanto grfica. Os au-tores defendem a idia de que o link um elemento paratextual da escrita em

    [...] todo autor, todo escrito impe uma ordem, uma pos-tura, uma atitude de leitura. Que seja explicitamente afirmada pelo escritor ou produzida mecanicamente pela maquinria do texto, inscrita na letra da obra como tambm nos dispo-sitivos de sua impresso, o protocolo da leitura define quais devem ser a interpretao correta e o uso adequado do texto, ao mesmo tempo que esboa seu leitor ideal. Deste ltimo, autores e editores tm sempre uma clara representao: so as competncias que supem nele que guiam seu trabalho de escrita e de edio; so os pensamentos e as condutas que desejam nele que fundam seus esforos e efeitos de persua-so [...] (CHARTIER, 1996, p. 20)

    Captulo I - Leitura

  • 23

    No webjornalismo, a notcia deve ser encarada como o princpio de algo e no um fim em si prpria. Deve funcionar

    hipertexto. Talvez no o nico, mas o que se apresenta com maior evidncia na atual fase do jornalismo desenvolvido para a Web (PALACIOS e MIELNICZUK, 2001, p. 9). O link um dos personagens mais importantes deste estudo. Vol-taremos a ele ao tratar da hipertextualidade e do estabelecimento de narrativas no ciberespao. Depois de tratarmos das estratgias discursivas, da projeo do corpo atravs da interface e da relao entre esses dois elementos, precisa-mos abordar o que define a materialidade do meio, ou seja, as caractersticas da internet. Veremos mais especificamente essas caractersticas aplicadas ao webjornalismo, que nosso objeto.

    1.3 Caractersticas do Webjornalismo

    O jornalismo na web est inserido em um ambiente comunicacional que pos-sibilita a produo de um texto especfico, explorando todas as potencialidades da rede. Para redao em mdia digital (cf. CANAVILHAS, 2001) so considera-das, por estudiosos do webjornalismo como Bardoel e Deuze (s/d), as seguintes propriedades: interatividade, customizao de contedo, hipertextualidade e multimidialidade, que permitem o uso das inovaes proporcionadas pela inter-net. Palacios (2002) acrescenta outras trs: Memria, Instantaneidade e Supres-so dos limites de espao e tempo.

    Algumas das caractersticas da web so oriundas de outros meios, mas so potencializadas na rede mundial de computadores; outras surgiram com a Inter-net. A interatividade uma das que passaram por essa reconfigurao. Diferen-te da participao de leitores atravs de cartas, ouvintes ou telespectadores por telefone, na rede, ela considerada capacidade de atuao do leitor no fazer jornalstico (cf. BARDOEL E DEUZE, s/d). Essa participao vista em diferentes nveis por diversos autores. Para Machado e Palacios (1997), a simples navega-o no hipertexto j configura uma situao de interao. Andr Lemos (1997, p. 01) considera, alm desta interatividade como uma ao dialgica entre o ho-mem e a tcnica, que pode se dar com o hipertexto, outras duas, com a mqui-na e com outras pessoas. Na mesma linha, Luciana Mielniczuk (2003) considera a interatividade no como um processo estanque, mas processos integrados, que ela denomina de multi-interativos. A autora destaca que o email a forma mais simples e usual de participao do leitor e que os fruns, outra opo de fcil gerenciamento e implantao, tm ganhado espao nos noticiosos digitais. Para Canavilhas (2001), a notcia apenas o passo inicial para o processo jorna-lstico na web, que pressupe a participao do leitor como decisiva:

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    apenas como o tiro de partida para uma discusso com os leitores. Para alm da introduo de diferentes pontos de vista enriquecer a notcia, um maior nmero de comentrios corres-ponde a um maior nmero de visitas, o que apreciado pelos leitores. (CANAVILHAS, 2001)

    Ao contrrio de Andr Lemos, os pesquisadores Elias Machado e Luciana Mielniczuk consideram o simples clique como interatividade e aprofundam a nfase na participao dos leitores, dada por Canavilhas. Lev Manovich (2001) discute a participao do leitor e retoma com uma abordagem diferenciada a distino feita por Andr Lemos (1997) entre interao e interatividade. Manovi-ch considera apertar botes e escolher links com uma ao psicolgica de inte-rao. Para ele, o processo de formao de hipteses, memria ou identificao que demandam a compreenso de um texto ou imagem qualquer so equivo-cadamente associados a apenas uma estrutura de links pr-definida. Portanto, consideramos como interatividade a associao de links que [...] objetifique o processo de associao, normalmente tomado como central do pensamento humano10 (MANOVICH, 2001, p. 61), ou seja, que levem o leitor a um fluxo de informaes encadeadas.

    A customizao de contedo outra forma de integrar o leitor no processo jornalstico como editor, escolhendo receber s o que lhe interessa. Com ela, possvel pr-selecionar o contedo que ser carregado em um website ou newsletter atravs do cadastro de usurios ou configuraes salvas anterior-mente e ativadas atravs de cookies11. Para Machado e Palacios (1997), com esse processo, nas redes telemticas, a primeira vez que coexistem na dis-seminao de informao, a massividade, interatividade e personalizao. A sistematizao dos tipos de personalizao considera trs modelos distintos: a personalizao de servios, personalizao de contedo e a personalizao de fontes (PALACIOS apud SILVA Jr., 2000, p.66). Esse tipo de servio no ex-clusividade da web, mais uma das caractersticas potencializadas pelas redes telemticas. Os primeiros servios de notcias que definiam seu contedo de acordo com as escolhas de seus leitores eram transmitidos via fax, na segunda metade dos anos de 1980.

    A segmentao, tanto em veculos impressos quanto nas rdios e TVs, princi-

    10No original: [...] objectifies the process of associations, often take to be central to human thinking. (Traduo nossa)11Os cookies so arquivos texto (.txt) enviados pelo servidor web para os browsers que visitam suas pginas. Ele armazenado pelo browser e ativado toda a vez que a pgina que o gerou acessada. Os cookies funcionam para informar aos servidores web quantas vezes uma mesma pgina aces-sada pelo mesmo browser ou servir, tambm, para ativar pginas customizadas para um usurio. DICIONRIO DE Informatiqus. Disponvel em http://www.ac-grenoble.fr/cite.scolaire.internationale/Peda/Discipli/CDI/RDI/informat.htm. Acesso em: 23 mar 2006

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    A juno da hipertextualidade com a memria rompe os limites espaciais e temporais que foram, desde sempre, uma marca essencial da prtica jornalstica em todos os seus su-portes pr-telemticos. Tal situao de ruptura fora o terico a debruar-se sobre as especificidades dessa nova prtica hi-pertextual (PALACIOS, 2005, p. 3)

    A hipertextualidade antecede todas as outras caractersti-cas, porque a implantao dessas s acontece atravs da-quela. Em outras palavras, para aplicar qualquer recurso rela-cionado s caractersticas da multimidialidade, interatividade, memria, personalizao e atualizao contnua preciso faz-lo atravs do esquema de lexias e links. [...]

    Para confirmar a afirmao de que o hipertexto a mais im-portante das caractersticas, basta fazermos algumas pergun-tas: existe multimidialidade/convergncia sem o hipertexto? a interatividade, enquanto situao de navegao, ocorre sem o hipertexto? possvel acessar os servios referentes memria, atualizao contnua e personalizao seno atravs do hipertexto? Para todas as questes, a resposta pa-rece ser no. Alis, cabe ainda uma outra pergunta: existe o webjornal sem o hipertexto? Tambm a resposta no. Por mais arraigado aos formatos dos suportes anteriores, sempre

    A hipertextualidade a principal responsvel pela estrutura da web. Essa formatao possibilita todas as demais caractersticas das redes. Podemos, de maneira elementar, caracterizar o hipertexto como a ligao entre textos por meio de links e essa a base de todo o webjornalismo.

    palmente via cabo, outra evidncia desse direcionamento em outros suportes. A instantaneidade , tambm, uma caracterstica recorrente na mdia tradicio-nal. Nas TVs e, primeiramente, nas rdios, as coberturas ao vivo transmitem em tempo real, ou pelo menos com uma diferena temporal cada vez menor, os acontecimentos. A insero deste recurso se deu no jornalismo com o uso do telefone e do telgrafo como ferramentas de transmisso de informaes.

    Ao contrrio da instantaneidade, a supresso dos limites de espao e tem-po uma diferenciao da Internet em relao mdia tradicional. De maneira prtica, a primeira vez que o jornalista no tem limites de espao, como no impresso, ou de tempo, como nos casos da TV e do rdio. Uma das utilizaes possveis desta caracterstica apontada pelo autor o uso de bancos de dados no armazenamento do contedo noticioso. Desta forma, contando com ndices ou busca atravs de palavras-chave o material pode ser acessado tanto por jornalistas, quanto por leitores. A associao desta quebra dos limites fsicos com as demais caractersticas potencializadas pela web diferencia o jornalismo realizado neste ambiente da forma que realizado nos suportes anteriores.

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    o webjornal est inscrito sob a lgica hipertextual, utilizando--se dos recursos de textos fragmentados em lexias interco-nectados por links. (MIELNICZUK, 2003, pp. 159-160)

    [...] hipertextos abarcam a noo de contradio, fragmen-tao, justaposio, e pluralismo, mais do que a busca pela verdade que o corao das empresas jornalsticas tradicio-nais (Bolter, 1991; Murray, 1997). Essa abordagem descrito no apenas como mais responsvel com as qualidades das novas mdias digitais, mas mais compatveis com os desafios das perspectivas ps-modernas que no mais acreditam em uma realidade, uma simples integradora viso de mundo, ou ainda, na credibilidade de apenas um ngulo de percepo (Murray, 1997, p. 161). Esse tipo de interrupo de uma viso unificada da realidade cria o contexto os convidativos poten-ciais do hipertexto12. (HUESCA e DERVIN, 1999)

    Essa interligao entre os documentos propicia ao texto na web uma orga-nizao prpria, fragmentada, e que permite a complementao e a contrapo-sio de informaes agrupadas em blocos de texto. Beatriz Ribas (2004) des-taca que a dinmica da Internet marcada pelo rpido acesso aos diferentes blocos. Um mosaico de informaes permite acesso a diferentes ngulos e percepes sobre um mesmo tema (RIBAS, 2004, p. 3). Essa organizao da informao atinge diretamente a organizao do texto jornalstico. Para Robert Huesca e Brenda Dervin o hipertexto possibilita ao jornalismo explorar diversos enfoques da notcia,

    A possibilidade de abarcar diferentes realidades e pontos de vista na cober-tura de um fato cria a idia de imerso. Mielniczuk defende que a narrativa na web, alm de hipertextual, imersiva que permite ao leitor navegar atravs da informao em multimdia (2003, p. 30). Marcos Palacios (1999) afirma que, no contexto do webjornalismo, a multimidialidade representa a convergncia de udio, vdeo e imagens na narrao do fato jornalstico. Esse fenmeno, para o autor (2005, p. 7), mais a potencializao dos suportes anteriores do que uma ruptura. De acordo com Canavilhas (2001), a introduo de novos elementos textuais faz com que o usurio explore a notcia de uma maneira mais pessoal. Ele no pode ser visto mais apenas como leitor, telespectador ou ouvinte j que

    12No original: hypertexts embrace notions of contradiction, fragmentation, juxtaposition, and plura-lism, rather than pursuing truth that is at the heart of the traditional journalistic enterprise (Bolter, 1991; Murray, 1997). This approach is described not only as more responsive to the qualities of new, digital media, but as more compatible with challenges from postmodern perspectives that no longer believe[s] in a single reality, a single integrating view of the world, or even the reliability of a single angle of perception (Murray, 1997, p. 161). This sort of interruption in the unified view of reality creates the context for the inviting potentials of hypertext. (Traduo nossa)

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    Na Web, no entanto, a conjugao de Memria com Ins-tantaneidade, Hipertextualidade e Interactividade, bem como a inexistncia de limitaes de armazenamento de informao, potencializam de tal forma a Memria que cremos ser legtimo afirmar-se que temos nessa combinao de caractersticas e circunstncias uma Ruptura com relao aos suportes medi-ticos anteriores. Voltamos a insistir que ao fazermos esse tipo de afirmao, estamos a nos referir a possibilidades que se abrem tanto para os Produtores quanto para os Utentes da Informao Jornalstica. A realidade da prtica jornalstica na Web aproxima-se ou distancia-se de tais possibilidades aber-tas, conforme os contextos e produtos concretos disponveis hoje na Internet. (PALACIOS, 2002, p. 7)

    A criao desta memria mltipla, instantnea e cumulativa interfere direta-mente na narrativa jornalstica na web, como veremos detalhadamente no ca-ptulo 3. Portanto, em relao ao nosso objeto, vimos as caractersticas da web aplicadas ao jornalismo para entendermos a sua materialidade neste ambiente. Inclumos a interface como representao do corpo do leitor no referido meio. Alm disso, discutimos a sua funo na formao de uma nova gramtica da interao, associada textual e grfica. Assim, consideramos que a repor-tagem, que veremos no prximo captulo, conta em sua materialidade com as seis caractersticas do webjornalismo. Ou seja, suas caractersticas so tambm as do meio. Contudo, preciso considerar tambm outros elementos para sua constituio, como veremos a seguir.

    a webnotcia integra recursos multimiditicos, exigindo uma leitura multilinear (CANAVILHAS, 2001, p. 4). Podemos, desta forma, delimitar a multimidialidade como um importante recurso da hipertextualidade. Isso porque ela a associa por meio de links a outros elementos textuais, tpicos dos demais suportes, exige uma leitura multilinear, proporciona ao usurio uma viso mais completa dos fatos com diversas vises (multivocalidade), alm de poder criar um ambiente interativo de imerso, com imagens, udio e vdeo.

    A ltima das caractersticas da Internet que abordaremos aqui, a memria, est vinculada a muitas daquelas citadas neste tpico. Esta caracterstica est intimamente associada supresso de espao e tempo e hipertextualidade. Atravs dela, tanto o jornalista quanto o usurio podem ter acesso a um acer-vo infinito de informaes organizadas por bancos de dados e ferramentas de busca. Mielniczuk (2003) ressalta que em suportes anteriores Internet esse recurso apresenta-se, tipicamente, em arquivos de edies antigas, em veculos impressos, ou de fitas de udio e vdeo, em Rdios e TVs. Palacios considera uma verdadeira ruptura, em relao recuperao de informaes, a congrun-cia de trs fatores: interatividade, hipertextualidade e instantaneidade.

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    - Um ponto de vista funcional, desenvolvido por certos ana-listas, que procuram estabelecer funes com base na ativida-de linguageira, a partir das quais as produes textuais podem ser classificadas segundo o plo do ato de comunicao em direo ao qual elas so orientadas.

    - Um ponto de vista enunciativo, iniciado por Benveniste (1966) que, apoiando-se no aparelho formal de enunciao props uma oposio entre discurso e histria freqente-mente reformulada em discurso VS. narrativa.

    - Um ponto de vista textual, mais voltado para a organiza-o dos textos, que procura definir a regularidade composi-cional desses textos, propondo, por exemplo, o que fez Adam, um nvel intermedirio entre a frase e o texto chamado se-qencial que tem um valor prototpico de narrativa, descrio, argumentao etc.

    - Um ponto de vista comunicacional, que confere a esse termo um sentido amplo, ainda que com orientaes diferen-tes. Para Bakhtin (1984: 267), por exemplo, os gneros de-

    Neste captulo pretendemos traar um panorama dos conceitos de gnero discursivo e gnero jornalstico para, a partir deles, abordarmos a reportagem e suas especificidades no ciberespao. Mais do que apenas uma retomada de tipologias, visamos ressaltar a importncia do estabelecimento e do reconhe-cimento do gnero discursivo no processo de comunicao. A determinao do gnero orienta como ser sua leitura, o que se espera de uma reportagem, no nosso caso. Alm disso, ao entender a natureza do objeto analisado pode-mos compreender a importncia do estabelecimento das mltiplas narrativas e do aprofundamento da informao. Essa compreenso fundamental para a aplicabilidade do nosso modelo de anlise porque ela serve de parmetro para leitura dos padres que vo ser detectados com a aplicao dos operadores.

    2.1. Gnero e produo de sentido

    De acordo com Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau (2004), a no-o de gnero remonta Antiguidade. Sua tradio foi iniciada com a crtica literria, que classifica as obras de acordo com suas caractersticas. Entretanto, os estudiosos de linguagem reforam que no uso corrente, ela um meio para o indivduo localizar-se no conjunto das produes textuais (2004, p. 249). Se-gundo os autores, na tradio literria os gneros tm como funo classificar e selecionar textos literrios, mas os critrios utilizados no so os mesmos desde o incio desta prtica. Outras reas de estudos como a semitica, anlise do dis-curso e anlise textual aplicam essa noo a outros tipos de textos. Charaudeau e Maingueneau (2004) distinguem algumas correntes tericas e seus diferentes pontos de vista:

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    pendem da natureza comunicacional da troca verbal, o que lhe permite distinguir duas grandes categorias de base: pro-dues naturais, espontneas, pertencentes aos gneros primrios (aqueles da vida cotidiana), e produes constru-das, institucionalizadas, pertencentes aos gneros secund-rios (aquelas produes elaboradas, literrias, cientficas etc) que derivariam dos primrios. (CHARAUDEAU E MAINGUENE-AU, 2004, p.250)

    Em uma obra anterior, Maingueneau aponta que em uma concepo tradi-cional os gneros eram como espcies de quadros nos quais se fazia deslizar um contedo independente deles (2000, p. 74), mas que com a influncia de correntes mais pragmticas algumas limitaes para que se constitussem definies de gneros se estabeleceram, entre elas: o status respectivo dos enunciadores e dos co-enunciadores; as circunstncias temporais e locais da enunciao; o suporte e os modos de difuso; os temas que podem ser intro-duzidos; extenso, o modo de organizao etc. (MAINGUENEAU, 2000, p. 74).

    O pesquisador destaca o papel fundamental do suporte na emergncia e na estabilizao de um gnero. Alm disso, refora que o gnero de discurso tem uma incidncia decisiva sobre a interpretao dos enunciados. No podemos interpretar um enunciado se no sabemos a qual gnero relacion-lo (2000, p. 75). Dentre os diversos pontos de vista, consideramos o comunicacional como o mais adequado para nossa pesquisa por estar centrado nas trocas verbais e considerar que elas so fundamentais para o estabelecimento de um horizonte de expectativas, sem o qual, a situao de comunicao no se desenvolve com propriedade. A negociao destas condies que criam um ambiente co-municativo favorvel se d atravs de um contrato de comunicao. Contudo, antes de nos aprofundarmos neste conceito, precisamos buscar elementos ain-da mais bsicos do que compe um gnero.

    Para Patrick Charaudeau (2006) objetos textuais que possuem as mesmas caractersticas podem ser integrados em uma mesma classe textual ou de g-nero. Segundo ele, trs aspectos devem ser tomados em considerao para determinar uma classe textual: o de lugar de construo de sentido do texto, o de grau de generalidade das caractersticas que definem a classe, o do modo de organizao discursiva dos textos (2006, p. 204). Em relao informao miditica, mais especificamente, o autor francs prope a definio de gnero a partir do cruzamento dos tipos: de instncia enunciativa, modo discursivo, contedo e dispositivo. O tipo de instncia enunciativa caracteriza-se pela ori-gem do sujeito falante e seu grau de implicao (CHARAUDEAU, 2006, p.206). Essa origem estaria relacionada ao pertencimento do sujeito a um veculo de mdia. Outros fatores seriam, a forma que ele apresentado na mdia e a colo-cao desta mdia em relao s outras. O tipo de modo discursivo seria a for-

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    A noo de contrato pressupe que os indivduos perten-centes a um mesmo corpo de prticas sociais sejam suscet-veis de estarem de acordo sobre as representaes linguagei-ras dessas prticas sociais (Charaudeau, 1983:50). A cada gnero de discurso ento associado um contrato especfico. (MAINGUENEAU, 2000, p.36)

    A nfase inicial de Eliseo Vern est centrada na produo de sentidos de um texto feita atravs de sua relao com ou-tros elementos que compem o circuito da linguagem (cf.

    Essa relao entre gnero e contrato fundamental para o desenvolvimento dessa pesquisa porque ela determina um acordo de compartilhamento de ex-pectativas entre as instncias de produo e recepo. Ela vale tanto para o contrato de comunicao proposto por Charaudeau (1994) quanto para o Con-trato de Leitura proposto por Vern.

    ma como o acontecimento miditico foi transformado em notcia. Charaudeau (2006) considera trs categorias de modos discursivos, dos acontecimentos: relatados, comentados e provocados. A reportagem, nesta categoria, para ele, estaria colocada entre os relatados. J o contedo temtico poderia ser visto em dois nveis: o da seo e o da rubrica. Poderamos citar como exemplo a seo de Esportes como o macrodomnio abordado pela notcia. Futebol seria uma rubrica, dentro da seo Esportes, uma juno de um modo discursivo e um tema particular. Por ltimo est o tipo de dispositivo, que remonta a uma materialidade prpria do suporte miditico. As especificidades do texto para cada uma delas: imprensa, rdio, TV ou web diferencia os gneros. O autor cita como exemplo as diferenas entre uma entrevista em rdio e outra na televiso a simples insero de imagens muda o gnero de uma para a outra. Antes de partimos para a constituio do gnero reportagem no jornalismo, temos que retomar o conceito de contrato, que fundamental, no para entender o que ela, a reportagem, , mas o que se espera dela.

    2.1.1 Contrato de leitura e de comunicao

    Charaudeau e Maingueneau definem o contrato de comunicao como a condio para os parceiros de um ato de linguagem se compreenderem mini-mamente e poderem interagir, co-construindo o sentido, que a meta essencial de qualquer ato de comunicao (2004, p. 130). Para os autores, essa compre-enso explica o sucesso, quando no h s reconhecimento do enunciado no sentido lingstico, mas quando do que quer-dizer o locutor.

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    ibidem, p.190). Uma abordagem que se proponha a aplicar, aos fenmenos de sentido, o modelo de um sistema produ-tivo, deve postular relaes sistemticas entre conjuntos significantes dados (atestados), por um lado, e os aspectos fundamentais de todo sistema produtivo, de outro: produo, circulao, consumo (ibidem). Tal aproximao com o siste-ma produtivo pode ser percebida at mesmo pela metfora empregada na proposta de Vern contrato de leitura e dar tambm o tom de sua preocupao, voltada essencial-mente para o consumo do contedo meditico (SPANNEN-BERG, 2004, pp. 29-30).

    Para Charaudeau (1997), o ato comunicacional depende de uma relao de intencionalidade entre as instncias, o que define trs lugares: enunciador, destinatrio e o texto, resulta-do de um jogo de intencionalidades entre as partes preceden-tes. O interessante perceber que o texto, ao mesmo tempo processo e resultado de um desejo da parte que envia e da que recebe. [...] Na perspectiva do contrato de leitura, os dispositivos de enunciao cumprem duplo papel: estabelecer vnculo com o leitor e marcar a diferena do produto em rela-o ao concorrente. Da parte do destinatrio, a interpretao do posicionamento do enunciado a premissa bsica. (DAL-MONTE, 2008, pp. 29-41)

    Mesmo considerando outros elementos na interao entre as instncias de produo e recepo, o autor argentino trata fundamentalmente das relaes entre essas duas partes. Para ele, uma anlise do dispositivo de enunciao o que chamo de uma anlise na produo: mas o contrato se cumpre, mais ou menos bem, no leitor: no reconhecimento (VERN, 2004, p. 234). Outro pesquisador, Edson Dalmonte, destaca que para Vern a instncia de produo baseia-se num conjunto de obrigaes ou constrangimentos discursivos a serem respeitados (2008, p. 16). O grau de reconhecimento das estratgias do enunciador, para ele, pode afastar ou aproximar o pblico. O pesquisador reconhece que h pontos em comum entre as duas abordagens relativas ao tratamento do contrato.

    Como neste momento nos interessa mais a relao entre o enunciador, o destinatrio e o texto daremos nfase abordagem de Charaudeau na compo-sio tanto do gnero quanto do contrato que ele estabelece. Em sua prpria definio, ele afirma que, a reportagem jornalstica trata de um fenmeno social ou poltico, tentando explic-lo. Um fenmeno social significa uma srie de fa-tos que se produzem no espao pblico cuja combinao e/ou encadeamento representa, de uma maneira ou de outra, uma desordem social ou um enigma no qual o homem est implicado (CHARAUDEAU, 2006, p. 221). Contudo, antes

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    de tomar a sua definio como definitiva, faremos uma retomada dos estudos de gnero no Brasil para esboar nossa prpria abordagem da sua verso no ciberespao.

    2.2 Reportagem e webreportagem

    As discusses sobre conceitos e classificaes dos gneros no jornalismo impresso remontam dcada de 60, com as obras de Luiz Beltro. Na busca pela sistematizao das pesquisas em jornalismo, o acadmico subdividiu as produes de impresso em informativo, interpretativo e opinativo13. Cerca de vinte anos depois outro pesquisador, Jos Marques de Melo, realizou uma relei-tura das obras de Beltro, levando o estudo de gneros a um lugar de destaque na pesquisa brasileira em comunicao.

    As classificaes dos dois autores, embora apresentem algumas divergn-cias principalmente no que diz respeito ao enquadramento dos tipos de texto, seguem padres semelhantes. Como informativo compreende-se a cobertura diria de informaes, que envolve o hard news14. Para Beltro, um dos subg-neros fundamentais do jornalismo informativo a notcia, que ele compreende como a narrao dos ltimos fatos ocorridos ou com possibilidade de ocorrer, em qualquer campo de atividade e que, no julgamento do jornalista, interessam ou tm importncia para o pblico a que se dirigem (BELTRO, 1969, p. 82).

    J o jornalismo interpretativo busca compreender e trabalhar com dados em aprofundamento, mais elaborados e com ampliao das vozes atribudas s fontes de informao. Trata-se, ento, como o nome expressa, de um gnero que busca interpretar acontecimentos e dados, apresentando uma viso mais ampla dos temas tratados (BAHIA, 1990; VILAS BOAS, 1996). Beltro (1976) acredita que funo do jornalismo interpretativo apresentar uma multiplicidade de pontos de vista sobre o acontecimento, permitindo, desta forma, que o leitor tenha subsdios para tirar suas concluses acerca do assunto. Entre os gneros principais do interpretativo est a reportagem em profundidade, conceituada por Beltro.

    O texto interpretativo utilizado no meio impresso com mais freqncia em-

    13O presente captulo se concentra no jornalismo interpretativo, somente apresentando com brevidade os demais, por se tratar do foco da pesquisa mais especificamente a reportagem. 14Segundo Beltro (1969), a reportagem insere-se no jornalismo informativo. Entretanto, importante ressaltar que, por definio, o que compreendemos por reportagem ao definirmos objeto de pesquisa da presente obra enquadra-se no conceito de reportagem em profundidade. Ainda de acordo com Beltro, a reportagem em profundidade busca instigar o leitor e no se restringir ao simples relato da informao, enquanto a reportagem classificada como informativa o relato de uma ocorrncia de interesse coletivo, testemunhada ou colhida na fonte por um jornalista e oferecida ao pblico, em forma especial e atravs dos veculos jornalsticos (BELTRO, 1969, p. 195).

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    bora no com exclusividade em revistas, cadernos especiais e suplementos. Isso se deve periodicidade destas publicaes que, sendo divulgados sema-nal, quinzenal ou mensalmente oferecem ao jornalista mais tempo para a inves-tigao dos fatos, para a ampliao das fontes consultadas, para o cruzamento e anlises dos dados coletados e para a adoo de uma narrativa mais criativa. [...] o texto de uma revista semanal mais investigativo e interpretativo, menos objetivo e mais criativo (VILAS BOAS, 1996, p. 41). Ainda segundo o autor, este gnero se apega mais aos fatos, primando sempre por aprofundamento e pela apresentao de aspectos diversos da mesma informao.

    A terceira classificao apresenta o jornalismo opinativo, composta, como o nome expressa, por textos que demonstram a opinio de seus autores, com estrutura e objetivo que variam de acordo com o gnero em questo (BAHIA, 1990). Trata-se, aqui, de textos que se inserem em meios de comunicao de distintos formatos e periodicidades.

    Os estudos sobre os gneros jornalsticos, suas especificidades e sua inser-o e/ou adaptao aos meios de comunicao originam-se nas discusses do impresso. Por isso, para ampliar o olhar acerca do gnero webreportagem, fundamental compreender seu princpio, os autores e propostas que so fonte para as definies iniciais que permeiam, de maneira mais ou menos intensa, os debates sobre o fazer jornalstico, seu discurso e sua finalidade, isto , seus pressupostos e definies de gnero. Pretendemos, portanto, discutir as carac-tersticas, especificidades e classificaes da reportagem em impresso, inserida no jornalismo interpretativo, para, atravs dela, ampliarmos o debate sobre a construo de webreportagens, gnero ainda pouco debatido no campo aca-dmico e carente de sistematizaes e anlises.

    Jos Marques de Melo (1994, p. 65) acredita que a reportagem o relato ampliado de um acontecimento que j repercutiu no organismo social e produ-ziu alteraes que so percebidas pela instituio jornalstica. Ainda que tenha sido conceituada, como dito, originalmente para o jornalismo impresso, esse gnero adotado por todos os meios de comunicao como uma ferramenta para ampliao de informaes em contedo, seja nos meios eletrnicos con-vencionais, digitais ou impressos.

    Observa-se, ao pensar a conceituao da reportagem que, embora ela se ori-gine de uma notcia, ambas no podem ser consideradas como sinnimos. Isso porque quando uma determinada notcia possui complexidade e variedade de informaes contextuais necessrias para demandar uma reportagem, assume outro carter, especfico e no necessariamente vinculado factualidade, que lhe atribui outro papel como informao. Vilas Boas (1996, p. 43) lembra que, mesmo com essa reconfigurao, uma reportagem nunca perde seu potencial noticioso e que nem sempre uma notcia ir demandar uma ampliao como

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    esta, que vai alm de uma simples compilao de informaes relacionadas a um fato, exigindo crtica, observao e anlise.

    Martnez-Costa e Dez Unzueta (2005), ao tratarem especificamente da repor-tagem em radiojornalismo, ressaltam que o objetivo central est em explicar um problema, argumentar uma tese ou narrar uma ao que se refere a um tema de atualidade informativa, portanto, com potencial noticioso. Para isso, lana mo de distintas estratgias narrativas, como o uso de personagens, a construo de histrias e a retomada de dados e contextos sobre o fato.

    Ao contar uma histria em uma reportagem, segundo Coimbra (1993), o jornalista pode utilizar algumas ferramentas discursivas e de apurao. Esses instrumentais determinariam, segundo o autor, o estilo de texto desenvolvido. Primariamente, a classificao envolve trs tipos de reportagem: descritiva, narrativa e dissertativa. Coimbra ressalta, no entanto, que as caractersticas de cada um dos estilos de reportagem no as fazem excludentes, mas permitem que se crie, ainda, categorias mistas, em que as reportagens fundem suas es-pecificidades em busca das melhores estratgias para contar a histria ao leitor.

    A reportagem descritiva, explica Coimbra, trabalha com as possibilidades de percepo do sujeito. Assim, descreve, como o nome diz, elementos captados pelos sentidos, focalizando sua abordagem no sujeito e reforando os atributos dos personagens. J a reportagem narrativa apia seu texto em fatos organiza-dos a partir de uma relao de anterioridade e posterioridade, mostrando, por exemplo, as alteraes identificadas no estado das pessoas e das coisas. Trata--se, ainda segundo Coimbra, do estilo mais adotado no jornalismo, justamente por trabalhar com as relaes de tempo e, desta maneira, aproximar a histria do leitor.

    J a reportagem dissertativa pode ser a classificao mais diferente entre as trs essenciais propostas pelo autor. Ela traz uma estrutura mais argumentativa e menos de relato, em que se tem como objetivo a exposio ou a explicao, interpretao de idias e de acontecimentos. Trata-se de um raciocnio mais dedutivo e articulado, com razes argumentativas fortes. Desta forma, pode-mos afirmar que a reportagem dissertativa deve possuir um argumento central que, acompanhado de idias secundrias, se encadeiam formando um racioc-nio interpretativo. Para compor essa narrativa complexa, o locutor utiliza-se de diversas ferramentas lingsticas, como a deduo, a comparao, o confronto, a analogia, a anlise, a causalidade, entre outros, para sustentar seu discurso (COIMBRA, 1993).

    Para chegar at essas informaes e construir uma reportagem de maneira sistematizada, Mara del Pilar Martnez-Costa e Dez Unzueta (2005) acreditam que importante seguir alguns passos. Desta forma, a complexidade e o apro-fundamento da produo jornalstica estariam assegurados, independente do

    Captulo II - Gnero e Reportagem

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    meio de comunicao a que se destine a reportagem. A primeira etapa refere--se identificao da idia e conseqente estabelecimento dos propsitos da cobertura. Ao saber dessas definies, o reprter pode definir o estilo da repor-tagem ao que pretende nortear o processo de apurao das informaes e que apresenta papel crucial na elaborao de uma reportagem para internet, por exemplo, j que define o fio condutor do texto e da busca por informaes, personagens e fontes. Ainda neste momento, as possibilidades que o meio de comunicao adotado oferece apresentam-se ao reprter, que deve pensar no somente no carter de aprofundamento do gnero, mas tambm no potencial multimiditico e de convergncia que a web propicia.

    Aliado aos recursos lingsticos que tem ao seu dispor, s informaes co-letadas, observao realizada em campo, o comunicador, ao compor uma webreportagem, deve considerar a necessidade de anlise do fato caracters-tica da reportagem e as especificidades do meio de comunicao em que se insere ao cumprir as etapas cruciais de organizao, anlise, redao e edio do material jornalstico.

    Uma caracterstica do gnero no jornalismo impresso, que pode ser trans-posta diretamente para a reportagem na web, a possibilidade, descrita por Beltro, da formatao da reportagem no em um nico texto. O autor (1976, p. 88) define que o jornalismo interpretativo (categoria em que se enquadra a reportagem) no composto de uma matria nica, mas da unio de diversos textos que cercam a ocorrncia e fornecem sentido a ela. Cita ainda alguns ele-mentos possveis para a composio de uma grande reportagem: uma chama-da na primeira pgina, um texto-sntese em forma de pirmide invertida, e uma seqncia de textos e ilustraes (1976, p. 88).

    Este formato organizado em diversos textos que se baseia na observao do jornal impresso, pode ser adequado organizao hipertextual dos blocos de informao. E a partir desta caracterstica que Diaz Noci define a reportagem na web. Est claro que a reportagem o gnero mais apto para o uso do hi-pertexto mediante composies complexas de ns informativos. Por ser ciclo mais lento de produo, permite mais riqueza multimiditica: texto + fotografias + sons + vdeos +... (2001, p. 53).

    Assim como Luiz Beltro, Diaz Noci considera a reportagem como um gne-ro interpretativo e destaca que o formato uma boa ferramenta documental, mas um recurso informativo deficiente. Contudo, ele aponta que este gnero webjornalstico o melhor para aplicar o modelo em nove partes proposto por Robert Darnton:

    1. O texto principal, que reflete a notcia ou o acontecimen-to que serve de base para a reportagem e ao qual se acessar, geralmente, a travs do ttulo convertido em link,

    Captulo II - Gnero e Reportagem

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    Para Lpez Garca (2003) o espao para os textos interpretativos no jorna-lismo online vem crescendo. Entre as razes para essa maior participao, o autor espanhol destaca as prprias caractersticas da internet que podem ser plenamente exploradas neste gnero: o aprofundamento da informao e a mul-tiplicidade de fontes possveis propiciados pela supresso do limite de espao na composio da reportagem. Ele a define como um relato mais extenso sobre qualquer aspecto da atualidade. O acontecimento tratado j conhecido pelo pblico, mas abordado de forma mais completa e documentada (2003, p. 451) e sua estrutura bsica seria formada por quatro nveis:

    2. Os anteceedentes, textuais, grficos ou sonoros,3. O contexto atual,4. As reaes e opinies de diferentes especialistas e de

    leitores,5. Anlises, avaliaes e expectativas futuras6. Sempre que a notcia permita ou o fato permitam, galeria

    de fotos ou um grfico ou grficos sucessivos,7. Vdeo com som ambiente, se a informao permitir,8. Links externos relacionados ao tema,9. Foruns e opinies dos leitores15. (DIAZ NOCI, 2001, p. 54)

    15No original: 1) El texto principal, que refleja la noticia o el acontecimiento que sirve de base al repor-taje y al cual se acceder, generalmente, a travs del ttulo convertido en enlace, 2)Los anteceden-tes, textuales, grficos o sonoros, 3) El contexto actual, 4) las reacciones y opiniones de diferentes expertos y de los lectores, 5) anlisis, valoracin, propuesta de futuro, 6) siempre que la noticia o el hecho permitan, galera de fotos y/o un grfico o grficos sucesivos, 7) video con sonido de ambiente, si la informacin lo permite, 8) enlaces externos relacionados con el tema, 9) foros, opiniones de los lectores. (Traduo Nossa)

    - Pgina ou n inicial: A reportagem hipertextual, em um primeiro estgio, deveria limitar-se a oferecer um ttulo e uma breve introduo geral [...]. Tambm poderia incorporar um guia de leitura proposto aos leitores de forma, que preser-vando a estrutura aberta da reportagem e a liberdade dos usu-rios para definir suas preferncias, determine a possibilidade de seguir um itinerrio de leitura modelo para adquirir a in-formao fundamental.

    - Extenso do texto fonte atreves de uma srie de docu-mentos [...] que poderia se relacionar com os links e materiais complementares relativos aos blocos temticos que formam a reportagem.

    - Contextualizao primria: documentos que complemen-tam o ncleo da reportagem [...] e, em particular, trabalhos de infografia que ajudem a ilustrar o que foi apresentado no texto fonte (e, em certos casos, cheguem a substitu-lo como ncleo da reportagem.

    - Contextualizao secundria: em linhas gerais, trata-se de realizar um aproveitamento das fontes documentais de que dispe o meio de counicao para complementar a informa-o principal [...]

    Captulo II - Gnero e Reportagem

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    - Materiais alheios ao meio: por ltimo, uma reportagem que aproveita as pontencialidades do meio digital em que se desenvolve teria que complementar a informao com uma seleo de links feita a partir de critrios qualitativos e quan-titativos que permitam ao leitor acessar fontes externas ao meio16 (LPEZ GARCA, 2003, pp. 459-460).

    16No original: - Pagina o nodo inicial: El reportaje hipertextual, en un primer estadio, debera limitarse a ofrecer un titular, una breve introduccin general []. Tambin podra incorporarse una gua de lectu-ra propuesta a los lectores de forma que, preservando la estructura abierta del reportaje, y la libertad de los usuarios para definir sus preferencias, existiera la posibilidad de seguir un itinerario de lectura modelo para adquirir la informacin fundamental.- Extensin del texto fuente a travs de una serie de documentos [] [que podran] ponerse en relacin con enlaces y materiales complementarios relativos a los distintos bloques temticos que forman el reportaje.- Contextualizacin primaria: documentos que complementan el ncleo del reportaje [] y, en particu-lar, trabajos de infografa que ayuden a ilustrar lo expuesto en el texto fuente (y, en ocasiones, lleguen incluso a sustituirlo como ncleo del reportaje).- Contextualizacin secundaria: en lneas generales, se trata de realizar un aprovechamiento de los fondos documentales de que dispone el medio de comunicacin para complementar la informacin principal.- Materiales ajenos al medio: por ltimo, un reportaje que aprovechara las potencialidades del medio digital en el que se desenvuelve tendra que complementar la informacin propia con una seleccin de enlaces, guiada por criterios a la par cualitativos y cuantitativos, que permitiran acceder al lector a fuentes externas al mdio. (Traduo Nossa)17No original: Este gnero se caracteriza asimismo por su exuberancia en el empleo de distintos tipos

    As aproximaes do modelo em nove etapas de Robert Darnton feita por Diaz Noci, assim como a estrutura proposta por Lopez Garca remetem a arqui-teturas de informao mais completas e uma redao que possibilite ao leitor uma compreenso das relaes de causa e efeito do acontecimento abordado.

    O professor Ramn Salaverra (2005) destaca a posio dbia da reportagem que pode ser considerada tanto como um texto informativo quanto interpreta-tivo, dependendo do tipo de abordagem pretendida pelo reprter. Ele retoma a classificao de Martnez Albertos, que nomeia as reportagens objetivas como aquelas que se apiam nas informaes bsicas, sem licenas estilsticas, e as reportagens interpretativas como as de uma maior carga analtica e riqueza de estilo. Para Salaverra, a misso da reportagem vai alm do resgate documental de acontecimentos ou declaraes.

    Este gnero se caracteriza assim mesmo por sua exu-berncia e o emprego de distintos estilos de redao, mais especificamente, a narrao, a descrio, a exposio e, em menor medida, tambm, o dilogo (Alvarez, 1993). Ficaria de fora apenas o quinto tipo de texto, a argumentao, que con-sidera-se patrimnio dos gneros jornalsticos ou de opinio (Martnez Vallvey, 2002) . (SALAVERRA, 2005, p. 521)

    Captulo II - Gnero e Reportagem

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    De acordo com o professor da Universidade de Navarra, o hipertexto o grande responsvel por essa variedade de estilos de redao. Ele afirma que possvel manter a conciso descritiva em um texto principal e ampliar os deta-lhes sobre os acontecimentos ou personagens envolvidos em desdobramentos apresentados ao longo deste texto principal. Ou seja, o gnero no hipertexto no se encontra entre dois tipos, mas podendo ser parte dos dois ao mesmo tempo, de acordo com o percurso escolhido pelo leitor.

    Outro autor que trata da complexificao da reportagem no ciberespao Gutirrez Siglic, que defende que em uma arquitetura da informao mais ela-borada possvel a redao de textos mais profundos e complexos, com uma maior quantidade de dados que podem ser lidos de maneira no sequencial (2006, p. 5). Ele indica que a construo dos hiperlinks deve ser feita levando em considerao contedos-chave que permitam um tratamento profundo do tema em questo e tragam diversas teorias que expliquem o caso. Consideramos, assim como maioria dos autores, a webreportagem como uma potencializa-o da reportagem categorizada pelos estudos de gneros oriundos do gnero impresso. O hipertexto, a interatividade e a multimidialidade so os principais elementos desta adequao ao novo meio, que permitem a incorporao de diferentes estilos redacionais e formatos. Cabe ao leitor optar por um percurso que supra suas expectativas em relao ao gnero e informao.

    de escrito, muy especialmente la narracin, la descripcin, la exposicin y, en menor medida, tambin el dilogo (lvarez, 1993). Quedara fuera tan slo el quinto y ltimo tipo de escrito, la argumentacin, que se considera patrimonio de los gneros periodsticos argumentativos o de opinin (Martnez Vall-vey, 2002). (Traduo Nossa)18No original: textos ms profundos y complejos, con mayor cantidad de datos que pueden ser ledos de manera no secuencial. (Traduo Nossa)

    Captulo II - Gnero e Reportagem

  • Captulo III Narrativa

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    Neste captulo apresentaremos uma das mais importantes etapas do mo-delo de anlise proposto: a identificao da formao da narrativa em uma estrutura hipertextual. Explicaremos ao longo desta parte qual a funo das categorias de enunciao podem ser utilizadas neste processo e como pode-mos aplic-las em nossa anlise, sem a inteno de realizar aqui uma extensa reviso de literatura sobre o tema. Contudo, consideramos importante realizar esse panorama porque a narrativa no ciberespao ainda no plenamente compreendida em seu campo de pesquisa.

    A relao entre a narrativa e as redes telemticas um tanto recente. Mi-chael Joyce (s/d) destaca que a narratividade hipertextual ainda uma ado-lescente. Portanto, a busca por uma sistematizao ou uma formatao para ela um desafio para diversos autores. As mudanas no so apenas nas ferramentas ou suportes e, sim, na forma de pensar a maioria dos elementos da narrativa tradicional.

    O autor ressalta que as mudanas no incluem apenas novos elementos narrativa tradicional, mas mudam o seu ferramental. Elas a redefinem e a refi-nam. Por isso, para tentar entender as diferenas entre essas duas formas de contar histrias vamos buscar os elementos bsicos da narrativa clssica, como eles se relacionam com jornalismo e, mais especificamente, a reportagem. De-pois analisaremos as alteraes trazidas pelas novas tecnologias e buscaremos um conceito de narratividade hipertextual que deve guiar as anlises operadas nesta obra. Isso vai nos dar elementos para entender e identificar, a partir do conceito de gnero visto no captulo anterior, estratgias discursivas adotadas atravs das formas de contar histrias.

    Hipertexto , claro, jovem em qualquer medida 47 anos desde o Memex de Vannevar Bush, 29 desde a ampliao de Engelbart, 27 desde o hipertexto de Nelson e cinco anos des-de que nos reunimos em grande nmero no primeiro enconrtro da ACM sobre hipertexto em 1987. A narrativa antiga [...] isso porque o hipertexto pensa em si prprio mais como sendo es-trutural do que um pensamento seriado pensamento no es-pao mais do que pensamento por um espao.19 (JOYCE, s/d)

    19No original: Hypertext is, of course, young by almost any measure-- 47 years since Vannevar Bushs Memex, 29 since Engelbarts Augment, 27 since Nelsons hypertext, five years since a number of us gathered for the first of the ACM hypertext meetings in 1987. Narrative is old. [...]This is because hypertext thinks itself to be structural rather than serial thought-- thought in space rather than thought for space. (Traduo Nossa)

    Captulo III - Narrativa

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    3.1 Narrativa e Narratividade

    Inicialmente, vamos trazer o conceito de narrativa para entender quais so os elementos que compem uma histria e seu processo de elaborao. Para Osvaldo Coimbra (1993) narrar contar um acontecimento com uma relao de anterioridade e posterioridade. Luis Gonzaga Motta (2005) a define de forma ainda mais abrangente:

    Esta definio aborda o resultado do processo de formao de sentido e destaca a sua importncia para compreendermos o objetivo e subjetivo do mundo, entretanto, deixa claro que a narrativa o resultado de relatos. O se-mioticista Umberto Eco atribui narrativa uma funo consoladora e acredita que por essa razo as pessoas contam histrias desde o incio dos tempos. Sempre foi a funo suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experincia humana (ECO, 1994, p.93). J Lev Manovich faz uso da obra do narratlogo Mieke Bal para buscar uma perspectiva mais pragmtica do que compe uma narrativa: ela deveria conter ambos, um ator e um narrador; de-veria tambm ter trs diferentes nveis que consistem no texto, na histria e na fbula; e esse contedo deveria ser uma srie de eventos conectados causa-dos ou experimentados pelos atores 20 (MANOVICH, 2001, p. 201). Manovich faz uma importante distino entre narrao e descrio. A primeira a que faz o enredo andar e a segunda quando isso no acontece. Para Fiorin, a narrativa um simulacro das aes humanas e uma Teoria Narrativa , antes de mais nada, uma Teoria de Ao (2002, p. 32). Para abordar essa ao em curso e seu resultado concludo, trabalharemos com duas idias: narrativa e narrati-vidade, respectivamente, produto final e seu processo de formao de sentido.

    A narrativa traduz o conhecimento objetivo e subjetivo do mundo (o conhecimento sobre a natureza fsica, as relaes humanas, as identidades, as crenas, valores e mitos, etc.) em relatos. A partir dos enunciados narrativos somos capazes de colocar as coisas em relao umas com as outras em uma ordem e perspectiva, em um desenrolar lgico e cronolgico. assim que compreendemos a maioria das coisas do mundo. (MOTTA, 2005, p. 2)

    Chamaremos de narratividade a tudo o que se apresenta ante a concatenaes e transformaes de aes e paixes . [....] A narratividade , radicalmente, um ato de configurao

    20No original: it should contain both an actor and a narrator; it also should contain three distinct levels consisting of the text, the story, and the fabula; and its contents should be a series of connected events caused or experienced by actors. (Traduo Nossa)

    Captulo III - Narrativa

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    Para ns, a compreenso deste processo fundamental para determinarmos ou, ao menos, delimitarmos como ele se configura nas redes telemticas. Con-sideramos a denominao de Fabbri adequada por incluir elementos verbais, gestuais e musicais na formao do processo narrativo. Isso porque Fabbri no avalia a narratividade como um produto fechado, e sim como um processo. Como estamos trabalhando com a idia de narratividade, estamos tratando, na verdade, de processos enunciativos. Jos Luiz Fiorin, parafraseando Edgard Morin, destaca duas teses centrais para esses processos: (a) o discurso, em-bora obedea as coeres da estrutura, da ordem do acontecimento, isto , da Histria e (b) No h acontecimento fora dos quadros do tempo, do espao e da pessoa (FIORIN, 2002, p. 14). O autor defende que a compreenso dos mecanismos de temporalizao, de espacializao e de actorializao fun-damental no processo de discursivizao. Para Maingueneau, o discurso se desenvolve no tempo, de maneira linear. O discurso se constri, com efeito, em funo de uma finalidade, devendo, supostamente, dirigir-se para algum lugar (2005, p. 53). Ao longo deste captulo, apresentamos as trs categorias da enunciao, tempo, espao e pessoa e desenvolvemos uma abordagem a partir da correlao destas dimenses com as aproximaes de Gunnar Liestl da perspectiva de Grard Genette sobre a questo do tempo, a idia de Lev Manovich de espao navegvel e de multivocalidade de Bakthin.

    3.2 O enunciador e as categorias da enunciao

    Antes de estabelecermos essas relaes preciso fazer algumas conside-raes em relao ao link. Consideramo-lo como elemento estruturante do hi-pertexto responsvel pela ligao entre dois ns (cf. LEVY, 1995) e com uma importante funo paratextual (cf. MIELNICZUK e PALACIOS, 2001), como vi-mos no final do primeiro captulo, mas no pretendemos aqui fazer mais uma tipologia ou um estudo de linkologia22. A proposta que fazemos de consi-

    21No original: Llamaremos narratividad a todo lo que se presenta cada vez que estamos ante conca-tenaciones y transformaciones de acciones y pasiones. () La narratividad es, radicalmente, un acto configuracin del sentido variable de acciones y pasiones; acciones y pasiones que pueden estar organizadas desde al punto de vista de la forma de su contenido, es decir, de su semntica, y pueden ser manifestadas por una forma de expresin distinta (verbal, gestual, musical, etc) (Traduo Nossa)22Para um estudo aprofundado das tipologias de links sugerimos: Levy (1995), Landow (1997), Nielsen e Loranger (2007), Mielniczuk (2003) e Codina (2003).

    do sentido varivel de aes e paixes; aes e paixes que podem estar organizadas do ponto de vista da forma do seu contedo, ou seja, de sua semntica, e podem ser manifes-tadas por uma forma de expresso distinta (verbal, gestual, musica etc.) (FABBRI, 2000, p. 57-58)21.

    Captulo III - Narrativa

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    derar, na composio de uma narrativa hipertextual, o link como o responsvel pelo movimento de embreagem e debreagem que instaura as categorias da enunciao. A importncia desta proposio se d, acreditamos, por estipular uma ferramenta de identificao de links de forma independente da sua funo, seja complementao, contextualizao etc., e sim dos elementos discursivos mais elementares.

    Na enunciao, o enunciador utiliza mecanismos chamados: debreagem e embreagem. No hipertexto, expandimos a ao desse mecanismo, colocando--o como elo entre duas lexias.

    Sempre que o enunciador d voz de fala a uma personagem acontece a embreagem e quando retoma a narrao ocorre uma debreagem. Seguindo a mesma lgica em relao s demais dimenses do discurso, podemos afir-mar que quando ele se remete a um tempo diferente da narrao ou evoca um espao diferente do que ele narra acontece a embreagem. As debreagens so os movimentos inversos. Por exemplo, sempre que o enunciador faz um flashback, ele se refere a um tempo diferente do agora da enunciao. Isso re-presenta uma debreagem de tempo. Quando ele retoma o tempo da narrao temos o movimento inverso, uma embreagem. O mesmo acontece em relao ao espao quando se descreve um local diferente ao que est o enunciador, acontece uma debreagem de espao. Em relao pessoa, esses movimen-tos se estabelecem quando a fala cedida a outro personagem que no o enunciador. No caso do jornalismo, poderamos exemplificar com sees e retomadas de fala em uma entrevista.

    Os mecanismos de instaurao de pessoas, espaos e tempos no enunciado so dois: a debreagem e a embreagem. Debreagem a operao em que a instncia de enunciao disjunge de si e projeta para fora de si, no momento da discur-sivizao, certos termos ligados a sua estrutura da base, com vistas a elementos fundadores do enunciado, isto , pessoa, espao e tempo (Greimas e Courts, 1979, p.79). [...] A debre-agem consiste, pois, num primeiro momento, em disjungir do sujeito, do espao e do tempo da enunciao e em projetar um no-eu, no-aqui e um no-agora. Como nenhum eu, aqui e agora inscritos no enunciado so realmente a pessoa, o espa-o e o tempo da enunciao, uma vez que estes so sempre pressupostos, a projeo da pessoa, do espao e do tempo da enunciao no enunciado tambm uma debreagem (Greimas e Courts, 1979 p.79). [...] Ao contrrio da debreagem que ex-pulsa da instncia de enunciao a pessoa, o espao e o tempo do enunciado, a embreagem o efeito de retorno enuncia-o, produzido pela neutralizao das categorias de pessoa e/ou espao e/ou tempo, assim como pela denegao da instn-cia do enunciado. (FIORIN, 2002, pp. 43-47)

    Captulo III - Narrativa

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    Pode-se igualmente produzir um enunciado desprovido de embreantes isolado da situao de enunciao: fala-se ento de enunciado no embreado. Os enunciados no embreados no so interpretativos em relao situao de enunciao; eles procuram constituir universos autnomos. (MAINGUENE-AU, 2005, p. 114)

    Outro importante estudioso, Dominique Maingueneau (2005), trata dos conceitos de embreagem e de no-embreagem. Para ele, chama-se de em-breagem o conjunto de operaes pelas quais um enunciado se ancora na sua situao de enunciao (2005, p. 108). De acordo com o lingista (2005, p.113-114) fala-se em enunciado embreado, geralmente quando esse contm, alm de embreantes, outras marcas da presena do enunciador: apreciaes, interjeies, ordens, interpelao do co-enunciador. Os enunciados embre-ados constituem a imensa maioria dos enunciados produzidos. difcil ima-ginar o que seria uma conversa que no remetesse ao contexto da enunciao ou que no interpretasse o co-enunciador (MAINGUENEAU, 2005, p. 114). J quando essas marcas no esto presentes, o autor categoriza-o como no embreado.

    Essas marcas podem ser aplicadas, ou no, em qualquer uma das cate-gorias da enunciao e, se aplicadas, criam uma relao direta entre dois blocos de texto, seja de aproximao ou distanciamento dos atores, aes ou espaos. Podemos pensar na associao entre um fato contado por dois narradores. H uma cesso da fala por parte do enunciador e, portanto, uma embreagem de pessoa. Outro exemplo seria um avano ou retomada em re-lao ao tempo da narrativa, que poderia ser interpretado como embreagem de tempo ou o mesmo em relao ao espao. Esse tipo de associao define que dois blocos fazem parte da mesma narrativa, tm uma relao textual. Essa necessidade de buscar um mecanismo discursivo que una duas lexias no hipertexto cada vez maior devido ao maior volume do uso de base de dados como ambiente, principalmente quando se trata de narrativas jornalsticas. Vi-cente Gosciola aponta a hipermdia23 como um processo comunicacional que depende do relacionamento entre seus diversos contedos e seu usurio. A hipermdia que no est em uso por alguma pessoa ou grupo delas apenas um banco de dados, um repositrio de contedos (2008, p. 21). O pesqui-sador Elias Machado defende a hiptese que o jornalismo digital em Base de Dados, como uma forma cultural tpica da sociedade de redes, assume

    23O autor faz uma diferenciao entre hipertexto e hipermdia considerando a primeira mais relaciona-da literatura e a segunda ao audiovisual.

    Captulo III - Narrativa

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    ao menos trs funes: 1) de formato para estruturao da informao, 2) de suporte para modelos de narrativa multimdia e 3) de memria dos contedos publicados (2005, p. 303). Para Lev Manovich,

    Para ele, a base de dados suporta a narrativa, mas uma seqncia arbi-trria de dados no forma uma narrativa. Ele defende que o pr-requisito conter uma srie de eventos causados ou experimentados por autores e consideramos que utilizando a embreagem e debreagem como critrio te-mos sempre essa relao em uma das dimenses do discurso, ou seja, tem-po, pessoa ou espao.

    3.2.1 Categoria Tempo ou Da Narrativa Aristotlica ao Hipertexto

    Comeamos a observar a questo do tempo porque ela a chave da orga-nizao dos elementos da narrativa aristotlica, primeira sistematizao cro-nolgica da forma de contar uma histria. A cronologia da narrativa tradicional segue o percurso: apresentao ou introduo; complicao ou peripcia, ao que contrape os personagens ou altera a sua estabilidade; clmax ou n e o desfecho ou desenlace, que retoma nova situao de equilbrio aps o conflito inicial (cf. ARISTTELES, s/d). Motta (2005) prope a aproximao das narrativas miditicas aos parmetros principais da narrativa aristotlica, ou seja, histrias com princpio, meio e fim (introduo, desenvolvimento e concluso), centrada nas aes dos personagens. O autor divide as narrativas miditicas em relao ao seu objeto, apesar de compreender que essa sepa-rao apenas cria variaes no efeito que dado a alguns elementos.

    A narrativa construda atravs da linkagem de elementos de uma base da dados em uma ordem particular, isto , traan-do uma trajetria que leva de uma elemento a outro. No nvel material, a narrativa s um conjunto de links, os elementos, por si s, permanecem guardados em uma base de dados. [...] Uma narrativa interativa (que pode ser chamada de hipernar-rativa em analogia ao hipertexto) pode ser entendida como a soma de mltiplas trajetrias atravs de uma base de dados. A narrativa linear tradicional uma entre vrias outras trajet-rias, isto , uma escolha particular feita em uma hipernarrativa24. (MANOVICH, 2001, pp. 200-201)

    24No original: The narrative is constructed by linking elements o