“não vou mais lavar os pratos” de cristiane sobral

12
IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí UESPI 1 O DISCURSO AFROFEMININO EM “NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS” DE CRISTIANE SOBRAL Rita de Cássia Barros Assunção (FAI / SEMEDUC) 1 RESUMO Não vou mais lavar os pratos de Cristiane Sobral constitui-se numa coletânea de poemas já publicados nos Cadernos Negros. A obra traz, em grande parte de seus poemas, a combinação da construção da identidade negra feminina com um discurso da resistência. Essa resistência é percebida, principalmente, quando a autora tematiza a condição feminina da mulher negra nas relações de gênero e nas relações com a sociedade. Objetivamos, nessa análise, averiguar como o eu enunciador, através de um discurso da resistência afrofeminino, constrói a identidade da mulher negra. Para essa análise, utilizaremos teóricos como Zygmunt Bauman (2004) Norman Fairclough (2001), entre outros estudiosos. O método a ser utilizado na análise será o crítico- analítico em que se tomará como suporte os conceitos de identidade de Bauman, as considerações acerca da construção do discurso de Fairclough, as formas de resistência negra e os problemas das relações de gênero na concepção de um eu enunciador subversivo em “Não vou mais lavar os pratos” de Cristiane Sobral no q ual a autora busca desconstruir os modelos preconcebidos sobre a mulher negra na sociedade atual. Palavras-Chave: Cristiane Sobral. Discurso afrofeminino. Identidade Negra. ABSTRACT The colletion of poems Não vou mais lavar os pratos of Cristiane Sobral what gather poems already published in Cadernos Negros, brings, largely of your poems combine of construction feminine black identity with the discuss of the resistance. That resistance is realize, mainly, when the author discuss about feminine condition of the black woman in the gender relations and in relations with society. We aims, in this analysis, to determine like the I of the feminine black speech through of the resistance , like made the identity black woman. In this analysis, will use authors Zygmunt Bauman (2004) Norman Fairclough (2001), and others. The method used in the analysis is 1 Mestre em Letras pela Universidade Federal do Piauí - UFPI. Professora e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Produção e Divulgação Científica da Faculdade do Vale do Itapecuru FAI. Coordenadora da área de Língua Portuguesa da Secretaria Municipal de Educação de Caxias. E-mail: [email protected] ISBN: 978-85-8320-162-5

Upload: vuongliem

Post on 09-Jan-2017

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas

Universidade Estadual do Piauí – UESPI

1

O DISCURSO AFROFEMININO EM “NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS” DE CRISTIANE SOBRAL

Rita de Cássia Barros Assunção (FAI / SEMEDUC)1

RESUMO

Não vou mais lavar os pratos de Cristiane Sobral constitui-se numa coletânea de

poemas já publicados nos Cadernos Negros. A obra traz, em grande parte de seus

poemas, a combinação da construção da identidade negra feminina com um discurso da

resistência. Essa resistência é percebida, principalmente, quando a autora tematiza a

condição feminina da mulher negra nas relações de gênero e nas relações com a

sociedade. Objetivamos, nessa análise, averiguar como o eu enunciador, através de um

discurso da resistência afrofeminino, constrói a identidade da mulher negra. Para essa

análise, utilizaremos teóricos como Zygmunt Bauman (2004) Norman Fairclough

(2001), entre outros estudiosos. O método a ser utilizado na análise será o crítico-

analítico em que se tomará como suporte os conceitos de identidade de Bauman, as

considerações acerca da construção do discurso de Fairclough, as formas de resistência

negra e os problemas das relações de gênero na concepção de um eu enunciador

subversivo em “Não vou mais lavar os pratos” de Cristiane Sobral no qual a autora

busca desconstruir os modelos preconcebidos sobre a mulher negra na sociedade atual.

Palavras-Chave: Cristiane Sobral. Discurso afrofeminino. Identidade Negra.

ABSTRACT

The colletion of poems Não vou mais lavar os pratos of Cristiane Sobral what gather

poems already published in Cadernos Negros, brings, largely of your poems combine

of construction feminine black identity with the discuss of the resistance. That

resistance is realize, mainly, when the author discuss about feminine condition of the

black woman in the gender relations and in relations with society. We aims, in this

analysis, to determine like the I of the feminine black speech through of the resistance ,

like made the identity black woman. In this analysis, will use authors Zygmunt Bauman

(2004) Norman Fairclough (2001), and others. The method used in the analysis is

1Mestre em Letras pela Universidade Federal do Piauí - UFPI. Professora e Coordenadora do Núcleo de

Pesquisa, Produção e Divulgação Científica da Faculdade do Vale do Itapecuru – FAI. Coordenadora da

área de Língua Portuguesa da Secretaria Municipal de Educação de Caxias. E-mail:

[email protected]

ISBN: 978-85-8320-162-5

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

2

critical and analytical based in concept of the identity of the Buman, the concept about

discuss of the Fairclough, the forms of the resistance and gender relations in the

conception subversive broadcasters subject in Não vou mais lavar os pratos of Cristiane

Sobral which author want deconstruct the conceptions about black woman.

KEYWORDS: Cristiane Sobral. Feminine black speech. Black Identity.

1 INTRODUÇÃO

Cristiane Sobral, atriz, escritora e poeta brasileira, estreou na literatura em 2000

publicando nos Cadernos Negros; possui peças teatrais, poesia e contos. No seu

percurso de formação acadêmica e literária, foi a primeira mulher negra a ganhar o

título acadêmico em Interpretação Teatral na Universidade de Brasília.

Em Não vou mais lavar os pratos (2011), primeiro livro publicado da autora, há

a consolidação de suas vertentes ideológicas e de suas políticas sociais engajadas no

qual se exprime principalmente como mulher negra. A obra, que traz no cerne do título

o caráter da negação e da resistência aos padrões socialmente e esteticamente impostos

às mulheres negras, apresenta a concepção de Sobral a respeito da necessidade de se

firmar uma identidade negra e de se fazer reconhecer como negro ou negra. Esse

compromisso assumido pela autora e transformado em bandeira de luta é manifestado

em muitos poemas do livro como “Não vou mais lavar os pratos”, “Fratricídio”,

“Pixaim Elétrico”, “Escova Progressiva”, “Cuidado”, “Lente de Contato” entre outros.

Nesses poemas, a autora discute temas relacionados ao cotidiano como a

condição da mulher, as relações de gênero e a afrodescendência direcionados

intencionalmente à problematização da raça.

A literatura de Sobral, nessa obra, apresenta-se investida, sobretudo, de

compromisso social tratando de assuntos concernentes à mulher negra, ao preconceito

com o negro, enfim, uma preocupação com a construção de uma identidade negra

autêntica e sem máscaras. Entretanto, para se compreender a necessidade de se fazer

uma literatura negra que dê visibilidade ao negro enquanto sujeito e não enquanto

objeto dos trejeitos culturais, deve-se visualizar a Literatura Brasileira como um todo

para se perceber como a mulher negra foi representada e cercada de estereotipias.

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

3

2 A MULHER NEGRA NA LITERATURA BRASILEIRA

Quando se fala na condição ou na forma como a mulher negra é ou foi

representada na literatura, há que se pensar em duas vertentes: na mulher negra

enquanto personagem e enquanto escritora.

Enquanto personagem, em grande parte dos textos literários escritos por homens

desde os primórdios da literatura brasileira, a mulher negra, oriunda da diáspora

africana, aparece representada sob a égide de uma visão estereotipada e reificada do

homem branco de visão eurocêntrica: “branca para casar, preta para trabalhar, mulata

para fornicar”. Segundo Eduardo Assis Duarte

[essa] doxa patriarcal herdada dos tempos coloniais inscreve a figura

da mulher presente no imaginário masculino brasileiro e a repassa à

ficção e à poesia de inúmeros autores. Expressa na condição de dito

popular, a sentença ganha foros de veredicto e se recobre daquela

autoridade vinculada a um saber que parece provir diretamente da

natureza das coisas e do mundo, nunca de uma ordenação social e

cultural traduzida em discurso (2009, p. 6).

Assim, vítima dessa visão estigmatizada, a mulata, povoou o imaginário

masculino, social e literário como lasciva, erótica, sensual sendo associada à ideia de

“animal erótico por excelência, desprovida de razão ou sensibilidade mais acuradas,

confinada ao império dos sentidos e às artimanhas e trejeitos da sedução” (DUARTE,

2009, p. 6). Contudo, ao lado dessa concepção em relação à mulata, impera um

paradoxo de cunho biológico: a infertilidade. Depreende-se, nesse sentido, que ela está

disponível para o prazer carnal, mas não para a maternidade.

Assis Duarte em seu artigo “Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade”

publicado na Revista Terra Roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários (2009),

demonstra que do Barroco ao século XX a literatura canônica a marcou com o signo da

sexualidade e da esterilidade. Apesar de ganharem mais versos que as senhoras e

donzelas brancas como comprovou Assis Duarte, as mulheres de peles morenas dos

poemas de Gregório de Matos são representadas por uma “semântica erótica que fazem

cintilar as fantasias sexuais do homem branco.

Ao longo de centenas de textos, o poeta enfatiza essa redução à esfera

carnal ao vincular a mulher afrodescendente ao desregramento e à

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

4

promiscuidade. E o faz submetendo muitas vezes tais personagens a

um vocabulário chulo, em que o corpo e a intimidade femininos

surgem inscritos no mais baixo calão. As opções verbais, próximas até

do grotesco, expressam os part pris norteadores da perspectiva

autoral, voltada para a desumanização que opõe “cor” a

“entendimento”. Sem este último, e sem um código de conduta que ao

menos a aproxime da sociabilidade ostentada pela mulher da classe

senhorial, a escrava é reduzida a signo cujo sentido permanece

prisioneiro de um discurso em que racismo e sexismo se emparelham

em definitivo e remetem a uma organização social em que o modo de

produção escravista dá o tom dos valores e comportamentos

(DUARTE, 2009, p. 7).

No século XIX, apesar de todo o romantismo de nossos poetas e romancistas, o

estereótipo da mulher negra continua, reforçado, agora, pelo tráfico negreiro e pela

chegada da Corte Portuguesa ao Brasil que trazia a supremacia da dominação branca e

europeia. Duarte menciona que em Alencar, por exemplo, permanece a visão

etnocêntrica e dicotômica que divide as mulheres em “anjos louros” e “morenas

ardentes” (2009, p. 8). Em O Cortiço de Aluísio de Azevedo, sem barreiras e sem

limites, o sensualismo da mulata surge desenfreadamente encarnado na figura de Rita

Baiana. Segundo Duarte

Eros e thanatos se associam em sua composição dramática, fazendo-a

se destacar pelos “meneios” de uma “graça irresistível, simples,

primitiva”, que dão destaque à sexualidade animalesca pela qual o

signo da serpente se inscreve na cadeia semântica da mulher (2009, p.

9).

Na representação de Rita Baiana, mulata avassaladora dos corações dos pais de

família, o autor cristaliza as imagens de erotismo e de infertilidade da mulher negra.

Isso comprova, segundo Duarte, que “O Cortiço alia o preconceito incrustado

historicamente com o pensamento hegemônico em seu tempo, que celebrava o mito da

hierarquia entre as raças” (2009, p. 10). No século XX, esse paradigma também se

repete. O pesquisador destaca as mulatas das obras de Jorge Amado como Gabriela,

cravo e canela, Teresa Batista, Tieta do Agreste entre outras e também as personagens

representadas por Guimarães Rosa no conto “a estória de Lélio e Lina” de Corpo de

Baile.

Nesse itinerário, vê-se que a construção da imagem da mulher negra resvala no

universo dicotômico e excludente da hegemonia masculina e branca. Compreende-se,

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

5

portanto, no limiar dessas representações que a literatura considerada canônica nesses

séculos, esteve a serviço do apagamento da contribuição africana para a formação da

sociedade brasileira.

Em contraposição a esse cenário embrutecido pelas amarras sociais, lânguido e

grotesco aos olhos dos afrodescendentes, manifesta-se, ainda no século XIX, uma voz

de desconstrução desse estereótipo, Luís Gama, em Trovas burlescas de Getulino de

1859. Duarte destaca que esse autor “dá à mulher negra outra configuração, a que não

faltam beleza física, encanto e simpatia” (2009, p. 13).

Para o pesquisador, a afroidentificação do poeta leva à mulher negra a figurar no

plano lírico-amoroso isento de erotismo vulgar e estéril. Machado de Assis é outra voz

que soa contra o preconceito e o erotismo vulgar de poetas e romancistas

disseminadores desse modelo. Como cita Duarte, no poema “Sabina” e no conto “Pai

contra mãe”, Machado de Assis problematiza a situação escravagista que perdura na

sociedade e que impõe aos negros à subordinação ao senhor. Seus textos também se

apresentam livres da visão reducionista e sexista que condena a mulher negra.

Dois autores ainda podem ser citados: Lima Barreto e Solano Trindade. O

primeiro, em meados do século XX, diferentemente dos supracitados autores de visão

racista e sexista, aborda o relacionamento inter-racial de forma respeitosa e humanizada

como se pode comprovar no conto “Clara dos Anjos”. O segundo, também na esteira

dos compadecidos e incomodados com a situação e o tratamento dado às mulheres

negras, sua poesia é marcada principalmente pela crítica e denúncia social.

Toda essa representação da mulher negra fabricada e cristalizada na literatura

brasileira através da ótica masculina está sendo desconstruída através de um

compromisso sociopolítico e ideológico compartilhado por mulheres negras e escritoras.

Essa desconstrução de paradigmas e a construção de uma identidade afrofeminina

através da literatura tornam-se possíveis graças à publicação dos Cadernos Negros e à

organização do grupo Quilombhoje que dá visibilidade literária a autores e autoras

negros marginalizados dentre eles Conceição Evaristo, Mirian Alves, Lia Vieira,

Esmeralda Ribeiro, Cristiane Sobral e tantas outras mais. Essas mulheres negras, agora

sujeitos de sua própria história, agora com um olhar feminino afroidentificado e não

mais com a ótica masculina, podem problematizar, no texto literário, diversos temas que

incidem sobre a condição da mulher negra na sociedade, destacando, sobretudo, a luta e

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

6

a resistência dela. E de forma positiva e não mais negativa, discutem a sexualidade

feminina sem tabus nem preconceitos, o prazer da maternidade tão inerente à condição

de ser mulher, as relações de gênero, o erotismo e a africanidade. Promulgam, nesse

contexto, a liberdade de expressão, a crítica e a autoafirmação. Nas palavras de Ana

Rita Santiago,

Escritores negros não apenas apropriam-se da palavra poética para

(des)contar o passado histórico de negros. Eles utilizam a LN

[Literatura Negra] também para provocar a sociedade brasileira

quanto às relações étnicorraciais; para afirmar que a lógica do

consumo, que sustenta os postulados e negócios da sociedade do

espetáculo, define a comercialização de identidades negras, a partir de

uma exposição, por vezes, unificadora e estereotipada, de elementos e

vivências culturais homogêneas, fixas e sem dinamismo, inerente aos

entrecruzamentos da vida em trânsito (2012, p. 141).

Com esse perfil de autoafirmação, de afroidentificação e da construção de um

discurso engajado com a africanidade, destacamos Cristiane Sobral com o livro Não vou

mais lavar os pratos, cuja análise, veremos a seguir.

3 O DISCURSO AFROFEMININO EM “NÃO VOU MAIS LAVAR OS

PRATOS” DE CRISTIANE SOBRAL

O discurso afrofeminino de Cristiane Sobral se consolida em muitos poemas do

livro Não vou mais lavar os pratos, entretanto, daremos enfoque à apenas alguns deles

como o poema que dá título ao livro “Não vou mais lavar os pratos”, “Lente de

Contato”, “Cuidado”, “Escova Progressiva”, “Fratricídio” e “Pixaim elétrico”.

“Não vou mais lavar os pratos” é um dos poemas mais representativos do grito

de liberdade da mulher nas relações de gênero que a autora ressalta no livro. O poema

revela a mudança de atitude da mulher em relação ao companheiro a partir do momento

em que passa a tomar consciência de seu papel na relação e na sociedade através da

leitura:

Não vou mais lavar os pratos

Nem vou limpar as poeiras dos móveis

Sinto muito. Comecei a ler.

Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi

Não levo mais o lixo para a lixeira.

Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

7

Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos,

A estética dos traços, a ética, [...] (SOBRAL, 2011, p. 23)

A leitura, para o eu enunciador, consubstancia-se na via de libertação e de

resistência aos discursos instituídos por uma sociedade de valores falocêntricos e

brancos que destinam o espaço doméstico exclusivamente para a mulher. Tomemos nota

ainda, que o título do poema também remete, em primeira instância, a uma posição

social a que a mulher negra, durante muito tempo, esteve submetida – o trabalho

doméstico. O trabalho, que era executado mecanicamente, passa ser objeto de reflexão

filosófica quando o enunciador do discurso destaca ter percebido “a estética dos pratos,

a estética dos traços” e, por fim, “a ética”. Com essa percepção filosófica, o discurso do

texto transforma-se em um discurso da resistência e também da construção de uma

identidade de gênero, uma vez que o relacionamento com o companheiro passa a ser

questionado e a ser negado nas condições em que se apresenta.

Agora que comecei a ler, quero entender

O porquê, por quê? E o porquê

Existem coisas. Eu li, e li, e li. Eu até sorrir

E deixei o feijão queimar...

Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto

Considere que os tempos agora são outros... (SOBRAL, 2011, p. 23)

Para Fairclough, a mudança envolve formas de transgressão, o cruzamento de

fronteiras, tais como a reunião de convenções existentes em novas combinações (2001,

p. 127). Nesse sentido, o eu lírico do poema subverte as convenções maritais e

domésticas com ações transgressoras como deixar o feijão queimar para se fazer

perceber pelo outro e se fazer ouvir numa tentativa de questionar os padrões pré-

estabelecidos. No trecho,

Resolvi ficar um tempo comigo

Resolvi ler sobre o que se passa conosco

Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou

De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi,

Você foi o que passou

Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto

Desalfabetizou

Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira

Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá para cá

Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis

(SOBRAL, 2011, p. 24).

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

8

O questionamento das relações de gênero confirma o que é dito por Fairclough,

pois o eu lírico cruza as fronteiras do seu relacionamento e busca construir uma

identidade de gênero através do discurso da negação e da resistência.

Manuel Castells em O poder da identidade (1999, p. 24) se refere a três formas e

origens da construção de identidades: a identidade legitimadora introduzida pelas

instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua

dominação como ocorre com os estereótipos; a identidade de resistência criada por

atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela

lógica da dominação construindo assim, trincheiras de resistência e de sobrevivência e a

identidade de projeto que é produzida quando os atores sociais constroem uma

identidade capaz de redefinir uma posição na sociedade como é o caso do feminismo.

Nesse poema de Sobral, pode-se perceber a ocorrência desses três tipos de

identidade: antes de ler e de pensar sobre seu papel na sociedade, o eu lírico legitimava

sua identidade como mulher presa a convenções sociais; após começar a ler, toma

consciência dessa dominação e passa a resistir através da transgressão; com um discurso

da resistência produz uma identidade de projeto quando diz:

Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler

Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar

Meu tênis do seu sapato,

Minha gaveta das suas gravatas

Meu perfume do seu cheiro

Minha tela da sua moldura

Sendo assim, não lavo mais nada,

E olho a sujeira no fundo do copo.

Sempre chega o momento

De sacudir, de investir, de traduzir

Não lavo mais pratos

Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo,

Em letras tamanho 18, espaço duplo (SOBRAL, 2011, p. 24).

Além do poema “Não vou mais lavar os pratos” que tematicamente trata das

relações de gênero, há no livro outros poemas que também consubstanciam um discurso

da resistência voltado mais especificamente para a construção de uma identidade de

mulher reconhecidamente negra. É o que se pode perceber nos seguintes poemas:

Lente de Contato

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

9

[...]

Sou negra

Estou aqui diante dos seus olhos

Esperando você despir o seu preconceito,

Pra gente encontrar um jeito de ser feliz

Ah, o meu cabelo natural, isento de culpa,

Vai bem obrigada

[..] (SOBRAL , 2011, p. 71)

Cuidado

Eu vou falar do nosso cabelo

Eu vou falar de tudo o que fazem tentando o sucesso

Eu vou falar porque isso acaba com a gente

Primeiro aparecem uns pentes frágeis

Impossíveis às nossas madeixas

Depois apontam para um padrão que nunca poderemos ter

Ficamos condenados à indiferença e à exclusão (Sobral, 2011, p. 74).

[...]

Nos poemas “Lente de contato” e “Cuidado”, o eu lírico ao se assumir como

mulher negra, toma o seu cabelo, um dos principais ícones da negritude e também um

dos principais alvos de bullying e de preconceito na sociedade, como cetro, como

representação maior da reversão de valores impelidos ao cabelo do negro. Reforçando o

caráter positivo do seu cabelo como marca de identidade afrofeminina, o eu lírico critica

o padrão de beleza impelido às mulheres que não possuem cabelos lisos.

A enunciação do texto revela a postura político-identitária assumida por Sobral

em disseminar a ideia de que é preciso combater o preconceito e fugir das amarras

sociais provedoras da indiferença e da exclusão. O cabelo afro, para a autora, é símbolo

de resistência identitária e resistência cultural. A citação de Bauman, no que concerne à

construção de identidade negra da mulher, endossa o discurso afrofeminino de Sobral:

a identidade escolhida e preferida é contraposta, principalmente, às

obstinadas sobras das identidades antigas, abandonadas e abominadas,

escolhidas ou impostas no passado. As pressões de outras identidades,

maquinadas e impostas (estereótipos, estigmas, rótulos), promovidas

por forças inimigas, são enfrentadas e – caso se vença a batalha –

repelidas (2005, p. 45).

No poema “Escova progressiva”, e “Pixaim elétrico”, novamente é o cabelo o

elemento identitário. Em “Escova progressiva”, parodiando o poema “Poética” de

Manuel Bandeira, a autora solta um grito de protesto contra os processos de alisamento

químico que nada mais são do que identidades impelidas como menciona Bauman

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

10

(2005). E, na contramão dessa pressão social, a autora reivindica para si o cabelo pixaim

como marca de enfretamento e de empoderamento da mulher negra. Com isso, reafirma

sua negritude, conforme se vê nos poemas abaixo:

Escova Progressiva

Se a raiz é agressiva

Escova progressiva

[...]

Eu tenho medo do formol

[...]

Abaixo a chapinha

No cabelo da neguinha

(SOBRAL, 2011, p. 88)

Pixaim elétrico

Naquele dia

meu pixaim elétrico gritava alto

Provocava sem alisar ninguém

Meu cabelo estava cheio de si

[...]

Soltei os grampos e segui, de cara pro vento, bem desaforada

Sem esconder volumes nem negar raízes

(SOBRAL, 2011, p. 81)

Chama à atenção que, de forma bem contemporânea, os versos sobralinos se

encontram com um universo bastante comum a todas as mulheres e jovens em formação

identitária – o universo da moda. Nesse sentido, percebemos que, de certa forma, esses

poemas podem cumprir uma função social e pedagógica ao atingir um público-leitor

considerável, principalmente se for utilizado nas escolas.

No poema abaixo, vê-se fortemente o discurso de pertencimento do eu lírico à

africanidade e, como a grande maioria daqueles que se declaram negros, também

condena a mestiçagem como forma de burlar a negritude. Nos versos “o mestiço não é

nem o sim nem o não, é o talvez / Mentira!” / “meu sangue negro corrói a hipocrisia

parda”, confirma-se o posicionamento do eu lírico em condenar essa denominação

“parda” que alguns negros tomam para si ao invés de se autoidentificarem como negros.

Fratricídio

Corrupção preta dói demais

[...]

Separe todos os matizes da negritude brasileira

Desintegre todas as identidades

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

11

[...]

O mestiço não é nem o sim nem o não, é o talvez

Mentira!

Sou negra

Meus dentes brancos trituram qualquer

privilégio retinto

Meu sangue negro corrói a hipocrisia parda

Mela o mito da democracia racial (Sobral, 2011,

p. 72)

A problematização da questão racial nesse poema é demasiadamente interessante

porque, de um ponto de vista bem social, condena a negação da negritude ao mesmo

tempo em que nega também o mito da democracia racial disseminado por Gilberto

Freyre.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cristiane Sobral em Não vou mais lavar os pratos proclama o compromisso

sociopolítico e histórico de produzir uma literatura afrodescendente em que o eu lírico

assume a postura de pertencimento e de construção de uma identidade de mulher negra.

Na construção desse projeto, Sobral utiliza uma linguagem feminina generificada para

falar de seus desejos ou angústias de mulher e um discurso instituinte da africanidade,

principalmente empenhado na desconstrução de valores africanos estereotipados

disseminados como pejorativos pelo discurso hegemônico.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. 2. ed. Tradução de Klauss Brandini

Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

DUARTE, Eduardo Assis. Mulheres marcadas: Literatura, gênero, etnicidade. In:

CORRÊA, Alamir Aquino (org.). Terra Roxa e outras terras: Revista de Estudos

Literários. Vol. 17-A. dez- 2009. Disponível em:

httpp://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol17A/TRvol17Asum.pdf. Acesso:

27/12/2015.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de

Brasília, 2001.

Anais do IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Teresina – Piauí - Brasil

18 a 20 de novembro de 2015

12

SANTIAGO, Ana Rita. Vozes Literárias de Escritoras Negras. Cruz das Almas: UFRB,

2012

SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. 2.ed. Coleção Oi Poema. Dulcina

Editora: Brasília, 2011.