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IX ENABED
6 - 8 de Julho de 2016
Florianópolis, SC
Área temática 3 - Estudos Estratégicos
O PODER NAVAL NO SÉCULO XXI
AUTOR: José Augusto Abreu de Moura (PPGEM/EGN)
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O PODER NAVAL NO SÉCULO XXI
Resumo : O Poder Naval é o instrumento militar do Estado habilitado a atuar no ambiente hídrico em prol de seus interesses, refletindo aspectos das Políticas Externa e de Defesa. Tradicionalmente, sua atuação cobre três áreas: a militar, centrada nas ações bélicas; a di-plomática, de apoio à Política Externa, e a constabular, de exercício da soberania e ações auxiliares, como busca e salvamento e auxílio em desastres naturais. Na área militar, o Poder Naval realiza o controle de áreas marítimas, a fim de nelas permitir a realização de atividades civis ou militares; a negação do uso do mar, a fim de difi-cultar o uso de uma área marítima por algum oponente; e a projeção de poder, influencian-do, a partir do mar, o comportamento de outros atores. Na atualidade, o emprego do Poder Naval é condicionado por novos fatores, como a unipolaridade militar exercida pelos EUA desde o fim da Guerra Fria, a valorização intrínse-ca das áreas marítimas dotadas de recursos minerais e o aumento expressivo do tráfego marítimo. No Brasil, existem dois outros, a autossufiência em petróleo e a importância cruci-al das plataformas petrolíferas, que fizeram com que defesa do tráfego marítimo, prioritária quando o País era grande importador desse produto, perdesse importância ante a defesa daqueles ativos litorâneos. Doutrinariamente, essa defesa exigiria o controle de vastas áreas, implicando um número inviável de meios de superfície e aéreos. Assim, a abordagem do problema consiste em prover dissuasão em grandes extensões oceânicas, por meio da negação do uso do mar realizada por um "mix" de submarinos nucleares e convencionais de ataque, apoiados por um abrangente sistema de monitoramento que, além disso, apoiaria a patrulha naval e a se-gurança da navegação. Cabe também notar que a cooperação com países lindeiros do Atlântico representa a contribuição da diplomacia naval para a cobertura do entorno estratégico. Palavras-chave : Poder naval, dissuasão, submarinos, plataformas, controle de área maríti-ma, negação do uso do mar.
INTRODUÇÃO
O Poder Naval é o instrumento militar do Estado habilitado a atuar nos espaços marí-
timos e nas águas interiores em prol de seus interesses, refletindo aspectos das Políticas
Externa e de Defesa. É constituído pelas unidades navais, aeronavais e de fuzileiros navais;
suas bases e estruturas logísticas, administrativas e de comando e controle, bem como
meios externos à Marinha, quando mobilizados.
Por atuarem no meio hídrico, que cobre mais de dois terços da superfície do globo e
não é, em sua maior parte, sujeito a jurisdições nacionais, as marinhas, mais que as outras
forças armadas, sempre estiveram ao lado dos fatores que, tradicionalmente, promovem a
inserção internacional dos países. Alfred T. Mahan (1840-1914) destacava o plano do co-
mércio internacional, assinalando que as forças navais existiam para protegê-lo, representa-
do principalmente pela navegação mercante, que foi e continua sendo seu principal motor1.
1 MAHAN, 1987, p.26-28
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Elas possuem, contudo, outras dimensões – o conjunto de aspectos segundo os quais cons-
tituem uma interface do País com outros atores do sistema internacional.
Tradicionalmente sua atuação cobre três áreas: a militar – dedicada primariamente
às ações armadas no ambiente hídrico ou a partir dele; a diplomática – que apoia a Política
Externa (a chamada "Diplomacia Naval"); e a constabular – a que vai além da policial a-
brangendo, além de atividades de exercício da soberania do Estado em sua jurisdição geo-
gráfica, a manutenção da ordem e da segurança (“security”) no mar, bem como as ações de
salvaguarda e resgate de bens e pessoas (“safety”), além de várias outras tarefas não milita-
res nem diplomáticas, como auxílio a órgãos civis, apoio em desastres naturais, etc.2 É a á-
rea tipicamente coberta pelas guardas costeiras, nos países que as possuem, mas que,
mesmo neles, tem envolvido meios da Marinha em vários casos.
As atividades contidas nas áreas de atuação têm sofrido considerável alteração nes-
ta passagem de milênio, em virtude de três aspectos que se destacam, inerentes ao fim da
Guerra Fria, ao progresso tecnológico e ao aumento da população do planeta: a unipolari-
dade militar dos EUA, o expressivo aumento do tráfego marítimo e a crescente valorização
intrínseca das áreas marítimas.
A ATUALIDADE MARÍTIMA
No Pós-Guerra Fria, a poderosa oposição naval soviética ao Ocidente desapareceu,
os conflitos oceânicos foram esquecidos e vieram as intervenções dos EUA e seus aliados
com a projeção de seus poderes navais sobre litorais alheios, criando-se dois padrões de
política de defesa ligados a esse setor - Estados que procuram desenvolver a capacidade
de projeção de poder, e os que se preparam para defender seus litorais contra tais ações..
Em outras épocas da História ocorreram conflitos armados entre Estados continen-
tais e marítimos, mas a possibilidade de guerras oceânicas não terminava como conse-
quência da vitória da potência naval, porque existiam outras potências navais candidatas à
condição de futuros adversários. Mesmo no século XX, as duas guerras mundiais não resul-
taram em semelhante divisão entre os padrões de Políticas de Defesa. A diferença para a si-
tuação atual é que o fim da Guerra Fria resultou na unipolaridade, com a hegemonia da po-
tência naval vitoriosa.
O novo paradigma foi inicialmente estabelecido com os documentos “...From the Se-
a: Preparing the naval service for the 21st century” e “Forward...From the Sea”, emitidos pe-
la Marinha dos Estados Unidos respectivamente em 1992 e 1994, que constituíram os pri-
2 KEARSLEY, 1992, p. 8§2; CANADA, 2001, “The Roles of Navies”, figura 5; PROENÇA Jr, 1999, p.20. O termo “constabular” foi empregado como tradução de “constabulary” por não existir, até o momento, tradução exata em Português.
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meiros passos para a implementação da nova Estratégia de Segurança Nacional emitida pe-
lo Presidente3:
"Esta Estratégia de Segurança Nacional tem profundas implicações para a Marinha e o Corpo de Fuzileiros Navais. Nossa estratégia mudou de um foco em uma ameaça global para um foco em desafios e oportunidades regionais. Enquanto a perspectiva de uma guerra global desapareceu, estamos entrando num período de enormes in-certezas em regiões críticas para nossos interesses nacionais. Nos-sas forças podem ajudar a conformar (“shape”) o futuro de formas fa-voráveis aos nossos interesses sustentando (“underpinning”) nossas alianças, evitando a formação (“precluding”) de ameaças e ajudando a preservar a posição estratégica que ganhamos com o fim da Guer-ra Fria."
E assim foram mudados o foco e, consequentemente, as prioridades de aplicação de
recursos, das operações no mar (“on the Sea”), para o emprego das forças a partir do mar
(“from the Sea”) – ações de projeção de poder para influenciar eventos nas regiões litorâ-
neas do mundo4.
A consideração básica afirmava que, como uma nação marítima, a Estratégia de Se-
gurança dos EUA era necessariamente transoceânica, e seus interesses vitais estavam na
extremidade final das “estradas do mar” (“highways of the seas”), as linhas de aproximação
estratégica que se estendem dos EUA aos pontos mais distantes do planeta.
A nova concepção mantinha a “Diplomacia Preventiva” como apoio à Política Exter-
na, implementada por forças navais avançadas em todas as regiões de maior importância
estratégica - o Atlântico, o Mediterrâneo, o Pacífico, o Índico, o Mar Vermelho, o Golfo Pér-
sico e o Caribe - que demonstrariam a intenção e a capacidade de juntar os aliados da
OTAN e outros, mas também Estados amigos, na defesa dos interesses compartilhados,
provendo os meios para a reação a crises, se tal dissuasão falhasse5.
Catorze anos já se passaram (estamos em julho de 2016) e algumas estratégias nor-
te-americanas já foram emitidas, mas o conceito básico permanece, ainda que com títulos
mais diplomáticos, como se pode ver no prefácio da "A cooperative Strategy for 21st Century
SeaPower", de março de 2015:
"Os serviços navais da América - a Marinha dos EUA, o Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA e a Guarda Costeira dos EUA - provêm de forma exclusiva a presença em todo o Globo. Durante tempo de paz ou de conflito, em todo o espectro - desde o apoio de um aliado com assistência humanitária e socorro em desastres até dissuadindo ou derrotando um adversário em ações cinéticas - marinheiros, fuzi-leiros ou pessoal da Guarda Costeira - são desdobrados no mar em posições distantes como necessário, como e quando formos neces-
3 UNITED STATES OF AMERICA, 1992, “INTRODUCTION”§2 e 3 4 UNITED STATES OF AMERICA, 1994, p. “Forward...From the Sea”§1 5 UNITED STATES OF AMERICA, 1994, “The Strategic Imperative”§2 e 3
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sários. Vindo pelo mar, estaremos lá mais cedo e ficaremos lá mais tempo, levando tudo o que precisarem de nós, sem pedir permissão a ninguém"6
Do outro lado da mesa, existem os que priorizam a defesa contra a projeção de po-
der sobre seus litorais na preparação do Poder Naval. Neste caso, o paradigma é a China
que, em virtude da questão colocada por um possível movimento emancipatório de Taiwan –
ilha a 110 milhas do território chinês - inadmissível para Beijing, mas que seria apoiado pe-
los EUA, consideram a possibilidade de um conflito naval com a Superpotência7.
Quanto ao tráfego marítimo, a globalização econômica iniciada nos anos 1980 resul-
tou num aumento drástico, quadruplicando o número de navios entre 1992 e 20128, cabendo
registrar que, em janeiro de 2015, havia 50.420 navios mercantes em operação no mundo9.
Segundo a United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), o
transporte marítimo responde pelo comércio global em cerca de 80% do volume e 70% do
valor, sendo esses quantitativos ainda maiores no caso dos países em desenvolvimento10, e
Geoffrey Till afirma que ele tende a continuar crescendo com o aumento da população mun-
dial, sendo que os mares constituem a única via capaz de suportar tal crescimento para que
sejam mantidos os atuais padrões de vida11.
Esse autor considera que, atualmente, o comércio marítimo constitui um sistema glo-
bal, pois o que o afetar em qualquer lugar do mundo pode produzir consequências graves e
imediatas na segurança e na economia de outros países. Tal sistema tem as vulnerabilida-
des decorrentes da miríade de interesses a ele inerentes, aí incluindo as óticas nacionais e
regionais, implicando o problema político de avaliar se são ou não favoráveis aos interesses
da comunidade comercial e, se não forem, reduzir suas influências, estabilizando-os ou re-
organizando-os, o que poderá exigir emprego da força12.
As possibilidades de reação preconizadas implicam as seguintes capacidades:
- as marinhas, apoiadas pelas guardas costeiras, deverão possuir a capacidade de
controlar suas áreas marítimas de interesse;
- os poderes navais deverão ter a capacidade de projeção de poder sobre terra, a fim
de promover a estabilidade internacional, fundamental para o comércio internacional; e
- as marinhas e guardas costeiras deverão contribuir para a manutenção da ordem
nos oceanos.
6 UNITED STATES OF AMERICA, 2015, p.i. 7 GODWIN, 2007, p.49§1 8 WORLDWIDE, 2014 9 STATISTA, 2016 10 PANITCHPAKDI, 2012, “Highlight” 11 TILL, 2006, p.8 12 TILL, 2006, p. 11§1
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Os conceitos de Till, a par de procedentes, servem perfeitamente à manipulação polí-
tica da Ética – em termos de ações em proveito do bem comum, para benefício de Estados
mais poderosos – como previsto na Doutrina da Harmonização de Interesses, identificada
por Carr13.
Assim, a proteção do tráfego marítimo, apesar de continuar sendo uma responsabili-
dade dos poderes navais dos Estados, constitui atualmente um conjunto de ações fortemen-
te coberto pela cooperação internacional. A Organização Marítima Internacional (IMO), per-
tencente à Organização das Nações Unidas (ONU), estabelece normas a respeito, e, para
seu cumprimento, há diversos de sistemas de monitoramento e controle para acompanha-
mento dos navios mercantes.
Além disso, as principais potências navais, em coalizão com marinhas de outros paí-
ses, mantêm forças de proteção estacionadas em regiões especialmente perigosas, como
as forças-tarefa multinacionais comandadas pela marinha norte-americana que operam
permanentemente na região do Chifre da África14.
No que toca à valorização das áreas marítimas, deve-se notar que, no início do sécu-
lo XX, para os antigos teóricos da guerra naval, o mar só tinha valor como via de trânsito,
valendo a seguinte afirmação de Corbett15:
O único método correto é perguntar o que podemos assegurar para nós próprios e o que podemos negar ao inimigo pelo Comando do Mar. Agora, se excluirmos os direitos de pesca, que são irrelevantes para este assunto, o único direito que nós ou nosso inimigo podemos ter no mar é o direito de passagem. Em outras palavras, o único valor positivo que o alto mar tem para a vida nacional é o de meio de co-municação.
Atualmente, contudo, com as descobertas e as possibilidades de exploração comer-
cial de recursos naturais no solo e no subsolo marinhos, várias áreas marítimas passaram a
constituir objetivo de defesa por seu próprio valor. Cabe notar ainda que, entre as potências
atuais, provavelmente as principais jazidas marítimas de recursos naturais importantes – pe-
tróleo e gás – têm ocorrido nas áreas litorâneas da principal potência continental – a Rússia
– aumentando a importância das estratégias navais defensivas que já praticava.
Além dos recursos em si, as instalações de exploração existentes em várias partes
do mundo contêm estruturas de tal porte e relevância econômica, que sua proteção constitui
tarefa da maior importância para o Poder Naval.
13 CARR, 1981, p.52§2 14 COMBINED, 2016 15 CORBETT, 1911, p.89§3 e 90§3
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Cabe observar também que, devido ao progresso tecnológico, algumas regiões oce-
ânicas muito afastadas dos litorais já são importantes pela extração de outros minerais além
do petróleo e gás, e essa prática deve aumentar nos próximos anos, trazendo relevância
geopolítica à “Área” – a parte dos fundos marinhos fora das jurisdições nacionais segundo a
Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) – pelo valor estratégico
dos recursos extraídos para alguns países, como a Coréia do Sul, que considerou a vulne-
rabilidade de sua economia aos choques de oferta de certos recursos como manganês, co-
balto, níquel e cobre, motivo suficiente para realizar vultosos investimentos para sua extra-
ção do fundo do mar em várias áreas do Pacífico, sob a forma de nódulos polimetálicos.
Nesses investimentos, o país construiu navios especializados e adquiriu do governo
de Tonga (um Estado arquipelágico) a licença para prospectar em sua Zona Econômica Ex-
clusiva (ZEE), tendo prospectado cerca de 1,3 milhões de Km2 no Pacífico16.
A Índia, o único investidor pioneiro a pleitear e conseguir uma concessão no centro
do Oceano Índico para esse fim, quando todos os outros as pleitearam no Pacífico, demons-
tra que, além da importância econômica, pode haver importância geopolítica em tais empre-
endimentos. A área, de 150.000 km é denominada "deep sea mining area" e consta como
uma das "áreas marítimas de interesse", na estratégia marítima do país17.
A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (International Seabed Authority -
ISA), órgão da ONU criado pela CNUDM que administra a exploração da Área, regulou em
2000 a exploração dos nódulos polimetálicos, anteriormente já praticada no Pacífico e no
Índico, mas só recentemente emitiu os documentos regulatórios para a exploração dos “sul-
fetos polimetálicos” (em 2010) e das “crostas cobaltíferas” (em 2012), que ocorrem no Atlân-
tico e estão sendo objeto do interesse de vários Estados, inclusive o Brasil18.
No plano da “Ordem Pública dos Oceanos” - o problema da IMO - a crescente valori-
zação intrínseca das áreas marítimas está realçando o conflito, na Política global, entre o
Princípio da Liberdade da Navegação, defendido principalmente pelos países desenvolvi-
dos, e o Princípio da soberania permanente sobre os recursos naturais do Estado, defendido
principalmente por países em desenvolvimento - no caso, os recursos passíveis de extração
em sua área de jurisdição marítima, que exigem estruturas fixas acima d’água, implicando
possíveis alterações nas rotas comerciais e pleitos para restrição das áreas marítimas pró-
ximas à passagem de forças navais.
A ATUALIDADE MARÍTIMA BRASILEIRA
16 KORDI, 2008, slides 4 a 7. 17 INDIA, 2015, p.36 18 INTERNATIONAL SEABED AUTHORITY, 2014
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No caso da Marinha do Brasil, a capacidade de atuação nas áreas tradicionais tem
por foco as seguintes tarefas principais: a defesa das áreas litorâneas, onde se situam as
fontes nacionais de petróleo; a proteção do tráfego marítimo; a aproximação com os Esta-
dos lindeiros do Atlântico Sul19; e o cumprimento de suas responsabilidades quanto à manu-
tenção da soberania nacional na área de jurisdição brasileira (AJB) e à segurança da nave-
gação, busca e salvamento, na área marítima que lhe foi atribuída por acordo internacio-
nal20.
As três áreas sofreram importantes alterações desde o fim da Guerra Fria, e este es-
tudo tem o propósito de fazer um resumo delas e das condições que as cercaram.
A ÁREA MILITAR
Nas últimas décadas, a linha estratégica da Marinha do Brasil foi fortemente influen-
ciada por dois aspectos:
No plano da política internacional, o fim da Guerra Fria, provocou o ressurgimento de
várias rivalidades regionais, mas esse não foi o caso entre Brasil e Argentina, pois elas já
haviam sido fortemente golpeadas, ainda no auge do conflito bipolar pela Guerra das Malvi-
nas (abril-junho de 1982) e pelo início da Globalização econômica (anos 1980), que fizeram
renascer a sombra do Conflito Norte-Sul – entre países centrais e periferia21 – criando forte
motivação para a cooperação intrarregional, traduzida por diversos acordos.
O outro aspecto pertence ao plano econômico e consistiu no fato de o País ter dei-
xado de ser grande importador de petróleo, necessidade que o perseguiu desde a aparição
dessa forma de energia até os anos 1990, mas conquistando a autossuficiência em 2006.
Essa condição, perdida em 2012, foi recuperada em 2015, ainda que devido em grande
parte à atual crise econômica22. Acrescente-se a isso o fato de a autossuficiência provir em
grande parte das plataformas petrolíferas, e tem-se o quadro responsável pela recente alte-
ração da estratégia naval brasileira, que mantinha um padrão secular.
Segundo a Estratégia Nacional de Defesa (END), os poderes navais têm três tarefas
estratégicas: Controlar áreas marítimas, negar o uso do mar e projetar poder. No século
XIX, a Marinha atuou nas proximidades do litoral sul-americano e, esporadicamente, na Áfri-
ca23, dentro da escola britânica de seus principais chefes naquele processo – posteriormente
19 MOURA NETO, 2010, p.452. O Atlântico Sul como área marítima de interesse direto do Brasil é definido como "do paralelo de 16ºN até o continente Antártico, abrangendo as mar-gens oeste da África e leste da América do Sul", extrapolando o conceito geográfico. 20 BRASIL, 2013 (PND), inciso 5.9. 21 VIDIGAL, 2002, p.27§4 a p. 29§1. 22 DIAS, 2008, slide 9; O GLOBO, 2016. 23 VIDIGAL, 1982, p. 20-24.
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teorizada por Corbett24 – e das necessidades de então - controlar áreas marítimas e projetar
poder, como ocorreu no Prata, durante a Guerra da Cisplatina (1825-1828) e as interven-
ções de 1851-52 e 186425.
Mesmo na Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), essas tarefas se mantiveram –
controlar áreas, agora fluviais, e projetar poder. Depois dela, porém, voltou-se a focar o mar,
inclusive com a construção dos grandes navios pelo Plano Naval de 1906 e com a participa-
ção nas duas guerras mundiais. O propósito principal consistia em dar segurança ao tráfego
marítimo, responsável não só pelo comércio exterior que proporcionava os bens importados
e as divisas das exportações, como pelo provimento de energia - derivados de petróleo26.
A Guerra Fria nada alterou quanto a esse propósito. A Marinha se especializara em
Guerra Antissubmarino (GAS) para escoltar comboios (o que constitui controle de área marí-
tima móvel) durante a Segunda Guerra Mundial, com apoio material e doutrinário dos EUA,
e assim continuava, como força naval de um país periférico, compartilhando tal tarefa com
as demais marinhas do Hemisfério, preparando-se para enfrentar a grande força submarina
do Bloco Oriental, que procuraria interromper o comércio marítimo do Ocidente no caso de
uma 3ª guerra mundial. A expertise da Força se resumia ao nível tático, pois o operacional
não era cogitado na época, e o estratégico era ditado pelos EUA, voltado para o conflito
Leste-Oeste.
Em face desse compartilhamento e do recebimento periódico de navios usados dos
EUA, bem como de seus sobressalentes por força do Acordo Militar Brasil-EUA de 1952, o
custo da Marinha para o Estado era relativamente baixo e a estrutura de apoio logístico foi
pouco desenvolvida27. Tal situação, contudo, preenchia as necessidades estratégicas do Pa-
ís, provendo a defesa do tráfego marítimo contra a única ameaça seriamente vislumbrada, e
ensejando à Marinha continuar na tarefa de controlar áreas marítimas, que praticava desde
a Independência.
Mesmo quando a Força resolveu obter navios novos com o Programa de Renovação
dos anos 1960/70, a ênfase na GAS continuou, apesar do pequeno incremento nas capaci-
dades antissuperfície e antiaérea das novas unidades, denotando a grande preocupação
com a defesa do tráfego marítimo28.
24 PROENÇA et al, 1999, p. 103 e 109. A Marinha nunca encarou o “comando do mar” sob o enfoque de Mahan, que implicava a destruição da esquadra inimiga, mas sob o de Corbett – que visava incapacitá-la de interferir seriamente com nossas iniciativas para conseguir o propósito da guerra. 25 VIDIGAL, 1982, p. 15 – 20; 35-36; 41. 26 VIDIGAL, 1982, p. 56; 82-84;103;120. 27 VIDIGAL, 1982, p. 118 28 VIDIGAL, 1982, p. 123-124
10
A partir dos anos 1980, quando a Guerra das Malvinas lembrou a possibilidade de
conflitos com Estados mais poderosos, que não os do bloco soviético, passou-se também a
dar atenção à defesa de pontos da costa contra a aproximação de forças navais, como ocor-
rera naquele conflito, o que não fugia ao propósito principal, pois esses pontos eram nor-
malmente portos, e sua defesa visava à continuidade do transporte marítimo.
Vale dizer que, nesse último momento, deu-se atenção ao emprego dos poucos
submarinos convencionais disponíveis em táticas de negação do uso do mar nas proximida-
des dos portos, mesmo assim, pode-se dizer que, no século XX, a estratégia naval brasileira
sempre privilegiou o controle de áreas marítimas pela perene necessidade de priorizar a
proteção do tráfego marítimo.
Nos anos 2000, porém, a autossuficiência em petróleo retirou-lhe provimento de e-
nergia, deixando apenas os bens e divisas do comércio marítimo não energético; e o fato de
mais de 91,35% do petróleo e 73,33% do gás produzidos no País (percentagens de 2013)
provirem de vulneráveis plataformas petrolíferas, muito afastadas da costa (no momento, ju-
lho de 2016, as mais amaradas são as do campo Lula, a 302 km – 163 milhas náuticas da
costa)29, colocou ao Brasil um inédito, importante e difícil problema militar:
- ao contrário da proteção do tráfego marítimo, a defesa das plataformas de explora-
ção e produção – plantadas na área de jurisdição brasileira – não pode, em princípio, ser ob-
jeto de cooperação internacional por envolver considerações de soberania, devendo, portan-
to, ser assumida e custeada exclusivamente pelo Brasil; e
- considerando que a interrupção no fornecimento de petróleo teria forte e imediato
impacto sobre toda a vida nacional, qualquer ação contra as plataformas produziria um gra-
víssimo problema econômico e provavelmente ambiental, o que implica priorizar sua defesa
acima da de qualquer outro objetivo situado no mar, inclusive a do tráfego marítimo, e fazer
com que tal defesa seja proativa, como determinado pela Estratégia Nacional de Defesa
(END)30, a fim de impedir tais danos, e não reativa, após eles serem perpetrados.
O Brasil não é o primeiro país a enfrentar esse tipo de problema. Cite-se como e-
xemplo os campos do Mar do Norte, onde o petróleo começou a ser mais explorado a partir
dos anos 1970, em plena Guerra Fria, mas sob condições estratégicas diferentes das brasi-
leiras, pois trata-se de um mar fechado, no coração da Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN), uma aliança militar extremamente poderosa, nas proximidades de bases na-
vais e aéreas britânicas e de outros países da organização que, assim, são plenamente ca-
pazes de controlar tais áreas marítimas e são partícipes na exploração, pois os campos se
situam em suas Zonas Econômicas Exclusivas (ZEE).
29 BRASIL, 2014; BRASIL, 2013a. 30 BRASIL, 2013, p.10
11
Aqui, além de a região mais importante – o Pré-Sal – ser maior que a do Mar do Nor-
te, as plataformas se distribuem por vários pontos do litoral, o qual é aberto ao Oceano A-
tlântico, permitindo a um eventual agressor um sem número de objetivos e linhas de aproxi-
mação, de forma algo semelhante ao ataque a objetivos na costa. Considere-se, além disso,
que existem atualmente munições inteligentes com alcance de mais de mil milhas náuticas,
o que estende a área de onde um vetor hostil pode ameaçar nossos ativos costeiros territo-
riais e litorâneos a praticamente todo o Atlântico Sul.
Geoffrey Till preconiza o efetivo controle da área marítima contígua como a melhor
defesa contra ações de projeção de poder sobre terra, como a que precede uma invasão do
território, tanto pela dissuasão que produz como por sua ação efetiva31. O caso aqui é um di-
ferente, pois a área ameaçada inclui a área litorânea onde se situam as plataformas, mas
definindo-se controle como o exercício do poder de permitir ou restringir a passagem ou
permanência da área em questão de unidades navais ou navios mercantes segundo crité-
rios próprios32, pode-se considerar que o conceito de Till continua válido. É, porém, imprati-
cável para o poder naval brasileiro (e certamente para muitos outros) controlar área tão ex-
tensa.
No século XX algumas formas de defesa específicas contra ações de projeção de
poder sobre o território por forças navais muito poderosas foram idealizadas, começando
com a “Jovem Escola” soviética, dos anos 1920, que previa ações de negação do uso do
mar na faixa costeira, realizada por submarinos, lanchas torpedeiras e aviões, sob o controle
de uma estação de comando em terra33.
Estratégias nesse sentido têm sido teorizadas pelo CSBA (“Center for Strategic and
Business Assessment”) dos EUA, que as divide em dois tipos: as destinadas a impedir o a-
gressor de chegar à área de operações, o litoral amigo (“anti-acesso”); e as destinadas a
contra-arrestar as operações do oponente na área de operações, caso suas forças consi-
gam chegar lá (“negação de área”). Tais estratégias têm sido tratadas em conjunto na litera-
tura e conhecidas pela sigla A2/AD (“Anti-Access/Area Denial”)34.
Atualmente, para o CSBA, o sistema de A2/AD paradigmático é o implantado pela
China (denominado pelos chineses de “Maça do Assassino”), previsto especificamente con-
tra ações de projeção de poder por forças navais dos EUA e constituído principalmente por
um sistema de C4ISR (“Command, Control, Communications, Computing, Intelligence, Sur-
veillance and Reconaissance”) que cobre vastas áreas marítimas e terrestres e sistemas de
31 TILL, 2013, p. 203-204 32 BRASIL, 2014b, p. 1-8. 33 FRIEDMAN, 2000, p.129 e 130; COLE, 2007,p. 23§3. TILL, 2013, p.76-77, 205. Não con-fundir a “Jovem Escola” soviética dos anos 1920 com a “Jeune École” francesa do século XIX. 34 KREPINEVITCH et al, 2003, p. 4-5
12
mísseis antinavio lançados de terra, balísticos e de cruzeiro, além de sistemas anti-satélite,
submarinos de ataque, convencionais e nucleares dotados de mísseis, etc35.
No Brasil, em cumprimento à END36, a Marinha está procurando implementar um sis-
tema análogo, só que muito mais modesto, constando de um sistema de C4ISR, o “Sistema
de Gerenciamento da Amazônia Azul” (SisGAAz), ora em especificação, para apoio a forças
navais e aéreas, e uma expressiva força de submarinos formada por unidades convencio-
nais e de propulsão nuclear, a fim de proporcionar dissuasão em grandes extensões oceâni-
cas contra vetores hostis que se aproximem das áreas de plataformas, por meio da negação
do uso do mar, o que inclui a interceptação de tais vetores. O sistema se enquadra aproxi-
madamente na "defesa indireta avançada" uma das formas de defesa contra ações navais
de projeção de poder preconizadas por Till37.
Os submarinos (o quantitativo inicial) estão sendo construídos no Brasil por meio do
“Programa de Desenvolvimento de Submarinos” (PROSUB), estabelecido por um acordo de
transferência de tecnologia com a França.
Apesar de não ser mais o de primeira prioridade, o problema da proteção do tráfego
marítimo continua sendo importante, inserido num setor em que também ocorreram impor-
tantes transformações nas últimas décadas, como anteriormente exposto, em que ressalta
seu aumento expressivo.
No que toca ao Brasil, esse aumento pode ser evidenciado pela figura abaixo, que
apresenta as estatísticas diárias médias de navios de interesse brasileiro monitorados pelo
Comando do Controle Naval do Tráfego Marítimo (COMCONTRAM) entre 1978 e 2014. Ne-
la vemos que o número de navios também quadruplicou entre 1998 (306) e 2008 (1250), o
que não se deve apenas à Globalização, mas também ao crescimento que o Brasil experi-
mentou no período – o PIB mais que quintuplicou (em dólares) entre 2002 e 201138.
Esse aumento de demanda tem sido enfrentado pela estrutura de controle naval do
tráfego marítimo – uma importante componente da proteção - com o desenvolvimento e im-
plantação de novos sistemas de monitoramento em rede, como o “Sistema de Informações
sobre o Tráfego Marítimo” (SISTRAM), o “Programa de Rastreamento de Embarcações
Pesqueiras por Satélite” (PREPS), o “Centro Regional de Tráfego Marítimo da Área Marítima
do Atlântico Sul” (CRT-AMAS), o “Automatic Identification System” (AIS) e o “Long Range
Identification and Tracking” (LRIT). Alguns desses sistemas têm sido instalados em países
da América do Sul e da África, integrando-os à rede39.
35 TANGREDI, 2013, p.47 e 93 36 BRASIL, 2013, (END) p.12, item 6. 37 TILL, 2013, p.204 38BRASIL, 2015, tab.ie1-51.xls. 2002: US$508.919x109; 2011: US$2,613.516x109. 39 BRASIL, 2014a, slides 28 a 63.
13
Cabe notar que a estrutura já conta, desde os anos 1960, com uma organização mul-
tilateral, formada pelas marinhas do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, a “Área Marítima
do Atlântico Sul” (AMAS), apoiada pelo sistema CRT-AMAS, acima citado, sendo que ofici-
ais das três primeiras se revezam no cargo de “Coordenador” (CAMAS), coordenando o
controle do tráfego marítimo de interesse da região40, o que constitui, uma interpenetração
entre as áreas militar e diplomática.
ESTATÍSTICA DIÁRIA DE MONITORAMENTO DE NAVIOS
1978
1 983
1988
1993
1998
2003
2008
2009
2010
2011
2012
201 3
2014
0
200
400
600
800
1000
1200
1400
1600
1800
108 124160
204
306
678
12501322 1354 1385
1450
1545
164011/SET/2001
Fim da URSS 91
SISTRAM I SISTRAM II SISTRAM III SISTRAM
GUERRA FRIA
IV
Tráfego marítimo de interesse do Brasil41
Além do controle naval, porém, a efetiva proteção do tráfego marítimo exige meios.
Quanto a estes, ainda que os submarinos de propulsão nuclear também sejam importantes
numa força naval que se proponha a isso, são imprescindíveis navios de superfície de diver-
sos tipos, principalmente escoltas (fragatas, corvetas, contratorpedeiros, etc) e navios aeró-
dromos. Existem atualmente programas da Marinha para sua obtenção, mas eles não estão
sendo implementados por falta de recursos.
Como a tecnologia naval avançou consideravelmente desde os anos 1970/80, quan-
do o País empreendeu pela última vez um programa de construção de tais unidades42, atu-
almente isto está além das possibilidades da Base Industrial de Defesa (BID) e exigirá forte
aporte tecnológico do exterior.
Verifica-se, assim, na área militar, uma mudança de postura da MB: da voltada para
o controle de áreas marítimas para proteção do tráfego mercante, dentro das linhas inglesa 40 BRASIL, 2015. 41 BRASIL, 2014a, slide 27 42 Houve uma exceção: a corveta Barroso, construída entre 1994 e 2008, devendo-se esse longo período aos problemas econômicos do País.
14
e norte-americana, marcada, na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria, pela predomi-
nância dos navios de superfície e a especialização em operações antissubmarino para es-
colta de comboios ou navios de alto valor, para a preponderância da defesa contra ações de
projeção de poder contra áreas litorâneas fixas, por meio da negação do uso do mar, em
que se destacam as ações de submarinos – no caso, com grande necessidade dos nuclea-
res, em face da operação em grandes extensões oceânicas. É uma postura mais próxima
das que caracterizam países continentais, como assinala Hughes43, de que são exemplos a
Rússia e a China.
A ÁREA CONSTABULAR
No que importa a este tópico, as condições acima citadas de aumento do tráfego ma-
rítimo se refletiram em grande aumento da demanda pelos serviços da “Autoridade Maríti-
ma”, exercida pelo Comandante da Marinha e definida em lei como o conjunto de capacida-
des subsidiárias destinadas a orientar e controlar a Marinha mercante e suas atividades cor-
relatas, prover a segurança da navegação aquaviária, contribuir para a formulação e condu-
ção de políticas nacionais que digam respeito ao mar, implementar e fiscalizar o cumprimen-
to de leis e regulamentos no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros ór-
gãos do Poder Executivo, federal ou estadual quando se fizer necessário, em razão de
competências específicas44.
Na prática, isto implica trabalhos de segurança, normatização e fiscalização da na-
vegação mercante e das operações portuárias, aí incluindo as eventuais operações de bus-
ca e salvamento. Releva aí não apenas o acima citado aumento do tráfego marítimo que
passa pelo Brasil, mas também o das atividades “offshore”, consequentes da crescente ex-
tração petrolífera no litoral, especialmente na região do Pré-Sal, que mobiliza navios, plata-
formas e meios aéreos de grandes empresas nacionais e estrangeiras. Cabe também notar
que a área de responsabilidade atribuída ao Brasil pela Convenção Internacional de Busca e
Salvamento Marítimo de 1979 (Convenção de Hamburgo) para tais operações tem uma ex-
tensão sobre o Atlântico de 1,8 vezes a área do território nacional45.
Essa demanda tem sido enfrentada com grande esforço da rede de Capitanias dos
Portos, delegacias e agências, cujos serviços são regulados nacionalmente e pela IMO, em
conjunto com as operações de patrulha naval, que tem sido intensificadas com a obtenção
de vários navios-patrulha.
Os meios navais exigidos para a maior parte das tarefas desta área são navios de
superfície relativamente simples – os navios-patrulha e navios de socorro (rebocadores de
43 HUGHES, 2000, p.165 44 Lei 97/1999, Lei 9966/2000, in BRUM, 2010. 45 BRASIL, 2016.
15
alto mar) - que têm sido construídos por estaleiros nacionais Além deles, extraordinariamen-
te, navios escoltas (fragatas e corvetas) também são empregados.
A ÁREA DIPLOMÁTICA
Esta área tem sido objeto de considerável demanda nos últimos anos. Com a ascen-
são do Brasil no sistema internacional e sua pretensão a um assento permanente no Conse-
lho de Segurança da Organização das Nações Unidas, a participação em foros multilaterais
e operações de paz sob a égide dessa organização é exigida e necessária.
Entre essas últimas, a mais longa (desde 2004) é Missão das Nações Unidas para a
estabilização do Haiti (MINUSTAH), que inclui um contingente de fuzileiros navais em con-
junto com efetivos do Exército; mas provavelmente a que proporciona maior visibilidade é a
Força-Tarefa Marítima (FTM) da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL), in-
tegrada por navios de várias marinhas, inclusive um brasileiro, e que é comandada por um
almirante também brasileiro. A Marinha do Brasil considera essas duas operações como "di-
plomacia Preventiva" – as realizadas sob a égide de organismos internacionais para preve-
nir choque entre parte em disputa que possam degenerar em conflitos armados46 - conceito
bem diferente da "diplomacia preventiva" norte-americana, constante do "Forward...from the
Sea", como exposto no início deste trabalho.
Citem-se também os diversos exercícios como as operações FRATERNO e PRATA
(com a marinha da Argentina), VENBRAS (com a marinha da Venezuela), BRACOLPER
(com as marinhas da Colômbia e do Peru), IBSAMAR (com as marinhas da Índia e da Re-
pública da África do Sul) e FELINO (com as forças armadas dos países da Comunidade de
Países de Língua Portuguesa – CPLP).
Cabe também aqui citar os diversos acordos de cooperação. Por um deles, imple-
mentado a partir de 1994, a Ala Naval do Governo da República da Namíbia foi estruturada
desde o início, com inúmeros oficiais e praças realizando cursos em centros de formação da
Marinha, no Brasil. Desde 2001, há uma missão naval naquele país para assessorar a For-
ça, cuja tarefa atual é auxiliar a implantação de seu corpo de fuzileiros navais, do qual a
primeira unidade já está em atividades de adestramento.
Os países da África Ocidental constituem alvos prioritários da diplomacia naval por
serem também interessados na manutenção da segurança do Atlântico Sul, o que possibilita
a integração das atividades para sua preservação com o Brasil e, assim, a cobertura do en-
torno estratégico. Assim, as atividades de cooperação constituem um ponto de contato entre
as áreas militar e diplomática. Nesse contexto, também estão em andamento acordos de
cooperação com Angola e Cabo Verde, onde há uma missão naval desde 2013.
46 BRASIL, 2014b, p. 5-9
16
OUTRAS ÁREAS
Em alguns países, a atuação do Poder Naval e da burocracia encarregada de sua
preparação e gerência - a Marinha - se estendem a outras áreas além das tradicionais. A
Marinha do Brasil não é diferente e, entre as áreas adicionais, destacam-se a das políticas
públicas ligadas ao mar e a da prestação de serviços. Ainda que tais atividades tenham sido
iniciadas bem antes do início do novo século, ambas produziram e continuam produzindo
serviços relevantes na atualidade.
As políticas públicas ligadas ao mar constituem o métier da Secretaria da Comissão
Interministerial para os Recursos do Mar (SeCIRM). Trata-se de um órgão da Marinha que
se dedica à articulação de setores de outros ministérios em nome do Ministério da Defesa,
para a elaboração de tais políticas públicas, com a finalidade de coordenar os assuntos rela-
tivos à consecução da Política Nacional para os Recursos do Mar (PNRM),.em cuja imple-
mentação são também empregados órgãos e meios da força naval.
Um dos serviços mais importantes em que a SeCIRM atuou foi o cumprimento do
Plano de Levantamento da Plataforma Continental Brasileira (LEPLAC), realizado pela Mari-
nha entre 1987 e 2004, em conjunto com a Empresa Brasileira de Petróleo S.A.
(PETROBRÁS) e a comunidade científica nacional com o propósito de colher e compilar
subsídios para pleitear junto à ONU, como previsto pela CNUDM, a extensão da plataforma
continental além das 200 milhas de ZEE. O pleito foi em sua maior parte bem sucedido e a
extensão, que chega em alguns trechos a 150 milhas, foi incorporada à AJB47.
Atualmente, o desafio reside na exploração da "Elevação do Rio Grande". Trata-se
de uma enorme elevação submarina a cerca de 1.100 km da costa do Rio Grande do Sul, ri-
ca em "crostas cobaltíferas" (ou "crostas ferromagnesíferas ricas em cobalto") minério que,
como anteriormente exposto, interessa ao Brasil. Em 2014, a ISA aprovou o plano de traba-
lho para sua exploração colocado pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais
(CPRM) que, em conjunto com a CIRM, catalisaram a ação de várias entidades para a ela-
boração e implantação do projeto, como o Ministério das Minas e Energia, Ministério da Ci-
ência, Tecnologia e Inovação, Ministério das Relações Exteriores e várias universidades
brasileiras48.
No que toca à prestação de serviços, existe a Empresa Gerencial de Projetos Navais
(EMGEPRON), que atua na área de gerenciamento de projetos de interesse da Marinha e
comercialização de produtos de suas organizações (p. ex.: munições fabricadas pela Fábri-
ca Jurandir Muller de Campos), para clientes no Brasil e no Exterior. Cite-se aqui como rele-
47 SECRETARIA, 2016 48 MORE; SOUZA, 2015, p.7-8
17
vante e, analogamente à área diplomática - como contribuição à área militar na cobertura do
entorno estratégico, a prestação dos serviços de levantamento das plataformas continentais
de Angola e da Namíbia, com a tecnologia desenvolvida durante a realização do LEPLAC,
acima citado49.
CONCLUSÃO
As últimas décadas têm trazido diversas situações que impactaram e continuam im-
pactando os poderes navais, alterando suas formas tradicionais de ação como interface do
Estado com outros atores do Sistema Internacional.
Na área militar, a valorização intrínseca do mar criou novos objetivos de defesa, o
que, com o advento do novo paradigma "projeção de poder X defesa contra projeção", con-
tribuiu para o desenvolvimento de estratégias defensivas que têm por objeto as áreas litorâ-
neas detentoras de recursos naturais, condição que poderá estender-se a algumas áreas
oceânicas a médio prazo, com a crescente possibilidade de exploração mineral na "Área".
Este aspecto e o expressivo aumento do tráfego marítimo estão fazendo surgir o
conflito entre o Princípio da Liberdade de Navegação, defendido principalmente pelos países
desenvolvidos, e o Princípio da Soberania Permanente sobre os Recursos Naturais do Es-
tado, defendido principalmente pelos países em desenvolvimento, reeditando o conflito Nor-
te-Sul.
Nesse contexto, a Marinha do Brasil teve que alterar sua tradicional à prioridade à
proteção do tráfego marítimo para a proteção às plataformas petrolíferas, o que, no para-
digma antes citado, situa o País no bloco dos que privilegia a defesa contra ações de proje-
ção de poder na preparação de seus poderes navais, ainda que tenha que dar atenção á
proteção da navegação mercante, que também aumentou significativamente no plano na-
cional, exigindo um grande esforço de fiscalização e patrulha naval.
A Marinha do Brasil realiza a diplomacia naval por meio de diversas atividades como
exercícios conjuntos, missões de paz, cursos e serviços prestados a outros países, e tem
por foco os Estados da costa ocidental africana que, por também desejarem a segurança no
Atlântico Sul, ensejam ações de cooperação de vários tipos, permitindo a cobertura de im-
portante parte do entorno estratégico brasileiro com ações de "soft power".
49 EMGEPRON, 2016
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