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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE HISTÓRIA Ailton Fernandes da Rosa Júnior A PEDRA E A BALA: A LUTA PELA TERRA EM CACHOEIRAS DE MACACU (1960-1964) Niterói, RJ. 2009.

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

CURSO DE HISTÓRIA

Ailton Fernandes da Rosa Júnior

A PEDRA E A BALA: A LUTA PELA TERRA

EM CACHOEIRAS DE MACACU

(1960-1964)

Niterói, RJ.

2009.

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- 2 -

Ailton Fernandes da Rosa Junior

A PEDRA E A BALA: A LUTA PELA TERRA

EM CACHOEIRAS DE MACACU

(1960-1964)

Monografia apresentada ao

Curso de História da Universidade

Federal Fluminense, como requisito

parcial para obtenção do Grau Bacharel

em História.

Orientador: Prof. Dr. Mario Grynszpan.

Niterói, RJ.

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- 3 -

Ailton Fernandes da Rosa Junior

A PEDRA E A BALA: A LUTA PELA TERRA

EM CACHOEIRAS DE MACACU

(1960-1964)

Monografia apresentada ao

Curso de História da Universidade

Federal Fluminense, como requisito

parcial para obtenção do Grau Bacharel

em História.

Prof. Dr. Mario Grynszpan

Orientador – U.F.F.

Profª Drª Márcia Maria Motta

Leitora Crítica – U.F.F.

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- 4 -

À Maria de Lourdes e

José Rocha(em memória),

verdadeiros protagonistas

desta História.

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- 5 -

Agradecimentos:

Depois de certo tempo de trabalho e de fronte para as páginas que irão ler, é

imperioso fazer justiça e dar o devido mérito àqueles que contribuíram (direta ou

indiretamente) para a realização deste trabalho.

Agradeço a todos que irei mencionar nas próximas linhas (e a mais alguns que por

ventura me esqueça de listar) do mesmo modo, a ordem das aparições não significa uma

maior ou menor importância.

Primeiro, agradeço a meus familiares, principalmente minha mãe e irmã, que deram

toda a sustentação e o apoio necessários. Que me agüentaram e ajudaram, mesmo nos

momentos de maior tensão.

Tenho grande gratidão para com todos os amigos que fiz na UFRuralRJ: Rodrigo,

Hugo, Marcelo, Junior, Fernanda, Samara, Luciana, etc. Além do Prof. Dr. Luiz Edmundo,

um ótimo profissional e amigo.

Um obrigado também aos meus amigos da UFF, com destaque para Luiz Augusto,

Arliny, Saulo, Vinícius, Pedro, entre outros. Alguns já eram amigos de velha data, outros,

nem tanto, mas certamente todos têm sua parcela de contribuição e a minha gratidão.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Mário Grynszpan, agradeço por aceitar me orientar na

realização deste trabalho. E, ao longo do ultimo ano, ter auxiliado-me a selecionar meus

questionamentos teóricos e a delimitação do tema, sempre com seus comentários precisos e

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- 6 -

ótimas indicações. Sem dúvidas, este trabalho só foi possível graças à maturidade

proporcionada pela sua orientação.

Sou grato a Prof.ª Dr.ª Márcia Motta, minha leitora, pela atenção dispensada e pela

paixão que sempre demonstra com a História Agrária, que me serviram de incentivo e

apoio. Sou muito grato por ter aceitado ler minha monografia e pelas ótimas aulas que me

deu o prazer assistir durante a graduação.

Por ultimo, agradeço a Janille Campos, minha namorada, que nos últimos meses foi

bombardeada por surtos de estresse e mal-humor. Mas agüentou, sempre com um sorriso e

uma palavra de apoio.

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- 7 -

Sumário

Apresentação

9

Capítulo 1 - O aparato conceitual: Uma introdução necessária

13

Um breve resgate da literatura sobre o tema. 16

O conceito de campesinato e de lutas sociais no mundo rural 21

Capítulo 2 - O Recorte geográfico e cronológico: a delimitação do objeto em

seu contexto espaço-temporal

28

Cachoeiras de Macacu: a ocupação humana e suas contribuição para o

estudo

28

Capítulo 3 - O conflito pela terra em Boa Morte

38

Boa Morte no contexto das mobilizações camponesas no Rio de Janeiro 38

O litígio em São José da Boa Morte

42

Capítulo 4 - O conflito sob a ótica militar

55

Os acusados

55

O depoimento das testemunhas

63

O depoimento dos acusados

69

A sentença

78

Considerações Finais

84

Bibliografia

88

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- 8 -

“A questão política no campo, em nosso país,

é hoje a questão da propriedade da terra;

do conflito entre a propriedade capitalista

e dos regimes alternativos de propriedade que

nascem da sua crise. Na cidade, a luta principal

dos trabalhadores é contra a exploração

capitalista; mas, no campo, a principal luta

dos lavradores é contra a expropriação

conduzida pelo mesmo capital. O adversário

é o mesmo, mas o enfrentamento é distinto”.

(José de Souza Martins – Expropriação & Violência)

“A reforma agrária só prejudica uma minoria de insensíveis,

que deseja manter o povo escravo e a nação submetida

a um miserável padrão de vida”.

(João Goulart, Presidente do Brasil, 1964)

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- 9 -

Apresentação:

„Ameaça em Macacu‟, foram estas as palavras estampadas no jornal O Globo do dia

20 de maio de 1964, o conteúdo da matéria? Tratava-se de uma solicitação de reforços feita

pelo General-de-Divisão reformado Basílio Taborda.

No tal pedido, o General Taborda, afirmava veementemente que uma nova

diligência militar deveria ser enviada ao Município, para realizar uma minuciosa vistoria,

onde certamente encontrariam armas e munições enterradas por aqueles que estariam

organizando uma guerrilha de resistência à „Revolução Democrática de 1964‟.

Entre 1961 e 1964, notícias como esta foram cada vez mais freqüentes na imprensa

nacional, Cachoeiras de Macacu esteve presente entre jornais das mais variadas visões

políticas, desde aqueles que apoiavam as ocupações de terras ocorridas nos anos anteriores

ao Golpe de 1964, até aqueles visavam criticar e denegrir a imagem das mobilizações.

Aqueles guerrilheiros, mencionados pelo General Taborda, eram os mesmo

lavradores e líderes políticos que meses antes levaram a cabo a ocupação de uma fazenda

no Município de Cachoeiras de Macacu.

Os conflitos pela terra em Cachoeiras de Macacu, no período que compreende os

primeiros anos da década de sessenta (1960-64), este é o tema a ser estudado. O interesse

pelo assunto pode ser creditado a uma experiência ulterior a própria graduação, e deve-se,

em parte, às várias histórias ouvidas, desde a infância, sobre os conflitos pela terra e a

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- 10 -

memória de luta guardada por alguns daqueles que participaram diretamente dos eventos

em questão.

A proposta é, portanto, interpretar e procurar esclarecer os eventos presentes em um

caso específico: a luta dos lavradores no município de Cachoeiras de Macacu, no interior

do Estado do Rio de Janeiro. Mais especificamente na localidade de São José da Boa

Morte, 3° distrito de Cachoeiras, onde ficava a fazenda de mesmo nome, palco daqueles

que foram os eventos mais dramáticos do Município.

Para viabilizar esta análise, priorizamos as relações estabelecidas entre lavradores e

alguns dos articuladores envolvidos com a política partidária local, dentre eles, Ubirajara

Muniz, prefeito eleito de Cachoeiras de Macacu no ano de 1962 pelo Partido Trabalhista

Brasileiro (PTB). A partir das relações forjadas e pela interação destes agentes sociais

distintos, procuramos entender as dinâmicas que envolvem a mobilização do trabalhador do

campo, na sua luta pela propriedade da terra. A fim de conservar a posse das áreas de

cultivo (ou seja, seus meios de produção), capazes de perpetuar as condições de trabalho

fundamentais para a manutenção de seu modo de vida. Ameaçados pela violência daqueles

que tendiam a mudar este quadro, através da expulsão dos lavradores da terra.

Nossa principal fonte é o Inquérito Policial Militar (IPM) aberto pra investigar as

„invasões‟ de terras ocorridas em Cachoeiras de Macacu no momento anterior ao Golpe

Militar de 1964, essa fonte será cruzada com matérias de jornais e fontes jurídicas, a fim de

atestar maior rigor às afirmativas, partindo de dados que se repetem (ou que destoam) nas

diversas fontes.

Ler fontes policiais (processos e inquéritos) não indica que queremos partir em

busca de uma „verdade histórica‟ ou do que „realmente aconteceu‟, isso seria uma busca, no

mínimo, ingênua. A documentação apresenta seus vícios, sua linguagem segue um modelo

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- 11 -

de acusação e seus dados são, em muitos casos, manipulados. Mas também seria

ingenuidade objetar-se ao uso de tais fontes porque elas não nos dizem a verdade.

Basta observar exatamente essa fórmula que se repete, que acaba por descortinar o

próprio mecanismo da repressão, cujo objetivo é sempre o da acusação, deixando para trás,

diversas vezes, contradições e peças que não se encaixam dentro do processo, essas são as

frestas por devemos guiar o olhar.

O nosso IPM é, na verdade, uma coleção de documentos, perfazendo um total de

aproximadamente 2000 páginas. Um inquérito detalhado, onde a vida de cada um dos

acusados foi drasticamente invadida e a vigilância sobre aqueles que estavam sob o olhar da

repressão foi constante.

Note-se ainda, neste contexto, que a observação mais atenta da própria produção

social dos processos criminais analisados, informam para a questão do controle social numa

sociedade de exceção. Os agentes portadores da ordem se preocupam em conhecer e

dissecar os aspectos mais variados da vida dos investigados, com a intenção de vigiar e

controlar aqueles que poderiam ser taxados de subversivos, impondo padrões previamente

estabelecidos. Ao mesmo tempo em que, davam voz (mesmo que limitada) aos

„subversivos‟, acabando por nos revelar a resistência e a luta.

O trabalho divide-se em quatro capítulos e uma conclusão. No primeiro, para além

de uma pequena introdução bibliográfica acerca do assunto, faremos uma breve

especificação do quadro teórico, refletindo sobre os conceitos que serão trabalhados no

decorrer do texto. O principal interesse deste capítulo é fazer um resgate da literatura

preocupada com as questões do campo e apresentar o horizonte conceitual, ou seja, os

conceitos que usaremos para operar com o objeto, trazendo as discussões necessárias para

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diferenciar as noções trazidas pelo debate acadêmico daquelas arraigadas no senso comum

acerca da figura do camponês.

Ao segundo capítulo caberá a tarefa de localizar geograficamente nosso objeto.

“Vista do alto, em suas relações com o homem, a Geografia não é outra coisa que a História

no espaço, assim como a História é a Geografia no tempo” 1

. A história da ocupação

humana e as mudanças físicas sofridas pela paisagem cachoeirense são pertinentes e

cruciais para o entendimento do que foi a luta pela terra em Cachoeiras de Macacu.

Intensamente marcada pela interferência do homem na paisagem, fator explicativo para a

valorização, especulação e expulsão do lavrador de suas terras de cultivo.

No terceiro capítulo será feito nosso primeiro esforço documental em desvendar a

mobilização camponesa em Macacu. Primeiro, relacionando o conflito local com o quadro

mais geral das mobilizações camponesas no campo fluminense. Segundo, indicando as

primeiras fontes, principalmente os jornais que, durante todos os meses da „invasão‟,

estamparam diariamente manchetes relacionadas aos eventos. Envolto por questões mais

gerais, o capítulo tende a dar um panorama das ocupações na Fazenda São José da Boa

Morte e relacioná-las com um movimento mais amplo, ocorrido em todo o Estado.

No quarto (e ultimo) capítulo apresentaremos com mais detalhes nossa principal

fonte, o IPM de Cachoeiras, seguindo sua estrutura original, não por simples comodidade,

mas em decorrência do objetivo central do capítulo, buscar uma compreensão sobre a visão

militar (e Estatal) a respeito das mobilizações camponesas, em especial a de Cachoeiras.

Para tanto, dividimos o capítulo em quatro partes com o objetivo de: traçar o perfil dos

acusados, analisar os depoimentos (das testemunhas e dos acusados) e a sentença final

deferida ao processo.

1 Frase atribuída ao geógrafo oitocentista, Elisée Réclus.

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- 13 -

Capítulo 1 – O aparato conceitual: uma introdução necessária

“A terra é o „grande laboratório‟, o arsenal que proporciona

tanto os meios e objetivos de trabalho como a localização,

a base da comunidade. As relações dos homens com a

terra são ingênuas: eles se consideram como seus

proprietários comunais.”

(Karl Marx)

Faz-se necessário a redação de um pequeno capítulo que terá por função fazer

alguns dos esclarecimentos acerca dos conceitos teóricos e do método a ser utilizado nesta

monografia, não foi nossa preocupação aqui fazer um capítulo teórico-metodológico, o que

implicaria num investimento mais amplo e profundo do que as pretensões iniciais.

Objetiva-se, então, situar o leitor no contexto da produção acadêmica sobre o tema e dar a

ele a possibilidade de visualizar alguns dos conceitos fundamentais para a viabilização

desta análise.

O trabalho em questão inscreve-se no que podemos chamar de História Social,

numa abordagem que será orientada prioritariamente pela historia social britânica, um

campo da história que promove uma transversalidade com outras ciências sociais,

principalmente com sociologia e com a antropologia social, nesse sentido, há uma

preocupação maior em analisar a experiência e a cultura acumulada no processo de

mobilização da classe (no caso, os camponeses).

“É a cultura compartilhada que determina a possibilidade de

sociabilidade nos agrupamentos humanos e dá inteligibilidade aos

comportamentos sociais. Deste ponto de vista, não apenas as representações,

mas também as ações sociais são „textos‟, passíveis de serem culturalmente

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interpretados, o que determina um especial interesse do ponto de vista da

análise social.”2

Para isso, utilizaremos como fontes históricas: relatórios, inquéritos, prontuários e

boletins de prisão realizados pelo DOPS e pela Secretaria de Segurança Pública do Estado

do Rio de Janeiro3; processos de reintegração de posse e outras fontes jurídicas do Fórum

da Comarca de Cachoeiras de Macacu4; além de artigos e matérias do jornal „O Globo‟

5; do

jornal „Novos Rumos‟6; e do jornal „Ultima Hora‟

7.

É fundamental fazer alguns esclarecimentos sobre as fontes que foram utilizadas

para a construção deste trabalho. A principal fonte que usaremos é o processo nº 7.477,

aberto pela Segunda Auditoria do Exército da 1º Cirscunscrição Judiciária Militar, que teve

origem num Inquérito Policial pelo Departamento de Polícia Política e Social da Secretaria

de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, em julho de 1964, cuja função era a de

dar seguimento às investigações sobre o conflito de terras em Cachoeiras de Macacu

ocorrido no período que abarca os últimos meses do ano de 1963 e o início de 1964, já que

o dito inquérito anteriormente aberto foi interrompido pela concessão de habeas-corpus aos

acusados, que alegavam inépcia da denúncia.

O trabalho tem como base, portanto, fontes policiais, principalmente aquelas que

foram produzidas pelos órgãos que tinham a função específica de manter a ordem e

controlar a chamada „subversão‟. Desse modo, um cuidado especial deve ser tomado ao

2 CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (Orgs). Domínios

da Historia: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Editora Campus/Elsevier, 1997. p. 52 3 As fontes citadas foram pesquisadas no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro;

4 Grande parte dos documentos que estavam no Fórum de Cachoeiras de Macacu foram recentemente

transferidos para o Museu da Justiça, no Rio de Janeiro, onde a consulta pode ser agendada; 5 Alguns recortes do jornal O Globo estavam anexados aos processos consultados no APERJ, algumas outras

matérias foram consultadas na seção de periódicos da Biblioteca Nacional. 6 O Jornal Novos Rumos foi consultado na seção de periódicos da Biblioteca Nacional.

7 O Jornal Ultima Hora possui um acervo digitalizado, acessível online, através do sitio do Arquivo Publico

do Estado de São Paulo;

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trabalhar com estas fontes (relatórios, prontuários, comunicados, depoimentos de acusados

e testemunhas, etc), já que o órgão responsável pela produção das fontes é parte integrante

do projeto político do Estado que se inaugura com o Golpe Militar de 1964, ou seja, acabar

com a heterogeneidade da sociedade brasileira, procurando silenciar aqueles que eram

considerados „subversivos‟ ou „potencialmente perigosos‟.

Apontava-se o suspeito, construindo uma imagem de inimigo-objetivo, que acabava

por interferir na configuração da idéia de crime político8. Dentro desse universo, teremos

contato com diversos tipos de discursos: o da ordem nos relatórios policiais; o da

subversão, nos depoimentos dos acusados; e alguns depoimentos de informantes e

testemunhas nos dão também uma visão diferenciada. Lembrando que, de toda forma, estes

discursos certamente sofreram algum tipo de gerenciamento, que deve ser desmontado para

o entendimento da lógica policial, cuja missão era a de comprovar a existência de um

crime. Desse modo o discurso da ordem assume um caráter acusatório e tende a criar uma

imagem negativa para se referir aos acusados.

Estas atividades policiais foram amplamente orientadas pelos Atos Institucionais

que (re)instalaram o Estado de Segurança Nacional, criando uma verdadeira „comunidade

de informação‟9 que era implementada pela Doutrina de Segurança Nacional, os agentes da

repressão eram acionado com o intuito de produzir as informações e centralizá-las, a fim de

criar um rede de informes para alimentar o Sistema Nacional de Informação (SNI) e os

órgãos de inteligência militar (CIEX, CISA e CENIMAR).

A partir das fontes indicadas e do tipo de tratamento que a elas será dado, cabe-nos,

portanto, questionar: Qual o significado da luta social pela posse da terra em Cachoeiras de

8 ARENDT, Hannah. O Sistema Totalitário. Trad. Roberto Raposo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978.

9 MAGALHAES, Marionilde Dias. „A lógica da Suspeição: Sobre os aparelhos repressivos à época da

Ditadura‟. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, volume 17 (33), 1997. pp. 203-221

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Macacu, no período imediatamente anterior ao golpe militar de 1964? Qual a relevância do

estudo deste caso específico para a conformação de um quadro mais amplo das

reivindicações campesinas nos anos 1950 e 1960?

Essas são as perguntas que assinalam um ponto de partida para as inquietações que

norteiam as nossas reflexões. Que tend52em a pensar a forma de mobilização assumida

pelos agentes sociais envolvidos no conflito e a inserção destes no quadro político mais

geral dos embates deste tipo que são vivenciados por todo o país, e de maneira especial no

Estado do Rio de Janeiro. Somando a possibilidade de que o estudo da luta de um

determinado grupo de lavradores pela terra pode contribuir para o entendimento da

diversidade destes confrontos. Lembrando que no interior destas disputas estava inserido

um grande espectro de militantes de esquerda, tanto de setores rurais quanto urbanos.

Um breve resgate da literatura sobre o tema.

Para facilitar o entendimento a respeito desta monografia e do campo de estudo ao

qual ela se insere, vamos traçar um pequeno resgate da literatura acerca do tema, a história

dos movimentos sociais no campo, ou seja, o campo da história que se preocupa em

analisar as questões relacionadas ao mundo rural, e as relações desencadeadas a partir daí,

quer seja no plano da produção, quer seja no plano social.

Uma prática muito comum no Brasil, até o início da década de 1980, foi a pesquisa

sobre o universo rural ficar restrita a inserção do camponês na estrutura sócio-econômica, o

que acabou prejudicando a compreensão das questões mais profundas, relacionadas às

condições e as formas de organização da luta camponesa.

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Inúmeras foram, no Brasil, as referências ao camponês como grupo social

relacionado ao atraso. O próprio Euclides da Cunha relatou os acontecimentos de Canudos,

como a „nossa Vendéia‟10

, com uma clara exaltação da força militar republicana, com a

relação da Proclamação em 1889 como a “nossa revolução”11

, o desejo camponês de

retorno à uma situação anterior, associado à religião e à tradição é tido como um traço

reacionário inerente ao camponês.

Apesar das claras mudanças de posicionamento do campesinato nas primeiras

décadas do século XX, com significativos casos de guerrilha camponesas bem sucedidas e

implementação de regimes socialistas, como os casos de revolução na China (1949); em

Cuba (1959); a luta vietnamita contra a dominação francesa (1945) e a vitória sobre a

posterior invasão estadunidense (1975), as pesquisas sobre os camponeses ainda se

mantiveram quase que restritas a problemática econômica. Somente depois da proliferação

dessas lutas, os trabalhos sobre os camponeses demonstraram a relação entre mobilização e

os estudos anteriores. Citaremos alguns dos trabalhos considerados clássicos e de referência

para os estudos sobre mobilização camponesa, dando conta das especificidades de cada

caso e das generalizações que permitem uma visão geral.

Uma dessas obras a ser mencionada aqui é o livro As Origens Sociais da Ditadura e

da Democracia: Senhores e Camponeses na Construção do Mundo Moderno12

, de

Barrigton Moore Jr, onde o sociólogo investiga os processos de modernização e o tipo de

característica política adotada pelos países (Democracias ou Ditaduras; cujas ultimas

10

A Revolta da Vendéia ocorreu na França pós-revolução (1793-1796) e foi uma sublevação camponesa em

defesa da Igreja e da Monarquia, essa revolta foi muito reproduzida no discurso revolucionário e de militantes

de esquerda durante muito tempo, para demonstrar a essência do conservadorismo camponês. 11

GRYNSZPAN, Mário. “Da Barbárie à Terra Prometida: o campo e as lutas sociais na história da

República”. In: GOMES, Ângela de Castro; PANDOLFE, Dulce Chaves e ALBERTI, Verena (orgs). A

República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. 12

MOORE JR, Barrington. As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia: Senhores e Camponeses na

Construção do Mundo Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

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podem ser de direita, „facistas‟; ou de esquerda, „comunistas‟) a partir da transformação das

sociedades agrárias em modernas sociedades industriais.

As transformações se dão, portanto, através de três vias: a „revolucionária-

democrática‟, adotada pela Inglaterra, Estados Unidos, França, etc. que teriam aliado o

capitalismo à democracia através de uma série de revoluções, cuja participação do

camponês teria sido muito pequena. O grande desenvolvimento da agricultura comercial

acabou eliminando, por assim dizer, as reivindicações camponesas.

Uma outra via é a „revolução pelo alto‟, cujas bases reacionárias acabaram por

desembocar nas ditaduras de direita, „os regimes facistas‟ da Itália, Alemanha, etc.

A última via a ser tratada é a Comunista, cuja eclosão está intimamente relacionada

com as revoluções camponesas, para uma analise aprofundada sobre o tema, Moore Jr. se

volta para o estudo da Revolução Chinesa, onde a existência de um determinado contexto,

de um tipo específico de relações entre campesinato e classes dominante e a progressiva

mudança no ritmo dessas relações, muito marcada pela entrada do capital no campo. Para

Moore Jr. as mudanças impostas pelo capital no campo, com a quebra de um conjunto de

regras e costumes aceitos é a maior das motivações para as revoltas camponesas.

Outro estudo clássico é o de Eric Wolf, antropólogo norte-americano, denominado

As Guerras Camponesas do Século XX,13

com primeira edição em inglês de 1969. Wolf

propõe algumas generalizações após um estudo individual de seis casos (México, Rússia,

China, Cuba, Argélia e Vietnã). Segundo Wolf, a partir das considerações de Karl Polanyi14

sobre a internacionalização do capitalismo industrial e a adoção do modelo europeu de

13

WOLF, Eric. As Guerras Camponesas do Século XX. São Paulo: Global Editora, 1984. 14

POLANYI, Karl. A Grande Transformação: As origens de nossa época. Rio de Janeiro: Editora Campus,

1980.

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Estados Nacionais, acabou por resultar numa desagregação das bases de controle das

antigas classes dominantes, o que permitiu a articulação e sublevação dos camponeses.

O ponto central para o entendimento dessas guerras camponesas, para Wolf, está

justamente nas disputas entre as elites anteriores e as elites dessa „nova ordem‟, que acabam

por corroer os laços verticais de dominação, ao mesmo tempo em que os laços horizontais

(de solidariedade entre as comunidades camponesas) não se alteram, permitindo a

organização e a luta. A existência de lideranças externas é entendida como benéfica pela

circulação de „novas idéias‟, mas associada às antigas tradições, outro ponto é a

questionamento a respeito de um único tipo camponês. Nos diversos casos estudados são

mencionados diversos níveis de diferenciação social, política e econômica.

No que tange algumas obras da literatura nacional, nos caberá a tarefa de evidenciar

um problema em especial, a caracterização de „tradicional‟ e „moderno‟15

no meio rural,

principalmente quando se trata de diferenciar o tipo de mão-de-obra (nacional e

estrangeira). No momento de homogeneização das relações capitalistas no campo, a

privatização da terra e a transformação desta em equivalente de capital, nenhum grupo

social encontra-se imune, independente da origem nacional. Desta forma, houve a

transformação dos camponeses de grupo social caracterizado pelo trabalho familiar e

acesso aos meios de produção (terra) em trabalhadores para o capital. José de Souza

Martins16

, estudando as mudanças no mundo rural do princípio do período republicano,

afirma que a imigração e a colonização estrangeira dirigida para algumas regiões do país

criam um trabalhador rural „moderno‟, um campesinato de homens livres, compradores de

terra, que existe graças a transformação da terra em mercadoria.

15

Ver OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paul: Boitempo, 2003. 16

MARTIS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e a o seu lugar no

processo político. Petrópolis: Vozes, 1981.

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O que se percebe, é a inserção desse trabalhador estrangeiro nos mesmos laços de

subordinação ao paternalismo local, e às formas de dominação, de forma que, o diferencial

entre „tradicional‟ e „moderno‟ parece se dever à origem étnica do trabalhador. Nesse caso

o emprego dos termos „tradicional‟ e „moderno‟, não faz muito sentido e não nos auxilia

nessa análise. A autora Margarida Maria Moura faz menção ao processo de „coisificação‟

do camponês levado à frente pelas ciências sociais:

“A idéia de um meio rural arcaico, caracterizado pelo atraso cultural

das estruturas camponesas, teve efeito nefasto à compreensão de sua

existência, já que colocava num plano idealista de „mentalidades‟ resistentes

à mudança a explicação da não-mudança do campesinato (...). A partir da

idéia de que as sociedades podem ser tradicionais – uniformes, fechadas e

coesas – ou modernas – baseadas na divisão do trabalho e na necessidade de

interação das unidades - , chegou-se a uma tipologia desprovida de

movimento e tensão inerentes aos processos sociais que o camponês

vivencia. A ambigüidade estava na conceituação do campesinato como

posição intermediária nesse esquema dualista”17

Thompson parece aproximar-se mais do que chamamos de movimentos sociais, seu

esforço para conceber a classe como um grupo social com uma determinada formação

cultural, cuja consciência se desenvolve ao longo da própria experiência histórica de lutas

sociais que se solidificam num „making of‟ (fazer-se)18

, trata-se de um novo tratamento

dado à formação da consciência e a mobilização para a luta.

17

MOURA, Margarida M. Camponeses. São Paulo: Editora Ática, 1986. pp. 68-69 18

THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa: A árvore da vida. Vol 1. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1987.

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O conceito de campesinato e de lutas sociais no mundo rural

O conceito de campesinato deve ser esclarecido, numa tentativa de eliminar parte do

que existe no senso comum a respeito do termo. Senso comum muito marcado pela idéia de

impossibilidade de trabalho devido a „raça‟ e a mestiçagem da mão-de-obra nacional no

período de transição do trabalho escravo para o trabalho livre19

, ilustrado principalmente

pela figura do Jeca Tatu20

, sempre envolto pela preguiça, pelas doenças e por uma peculiar

falta de ambição, o que parece estar intimamente ligado à sua condição de camponês

nacional e mestiço, comumente denominado de caboclo, caipira, ou caiçara.

O Jeca Tatu aparece como a caricatura representativa de um Brasil arcaico,

sinônimo de atraso, tudo aquilo que não se desejava reproduzir. A eficácia dessa associação

entre o Jeca Tatu (leia-se mão-de-obra nacional recém liberta) e o que existe de mais

atrasado na sociedade brasileira é fruto de uma longa e sofisticada construção, sua aceitação

remete à lógica dualista utilizada para classificar nosso meio social: campo/cidade,

arcaico/moderno, atraso/progresso, que aparece em textos de vários intelectuais, de diversas

filiações teóricas. Finalmente, quem, portanto, é o camponês que procuraremos trabalhar

aqui?

O campesinato não deve se entendido como um bloco único, ou como uma versão

rural do proletário. O que parece necessário de menção é o rompimento com as análises

essencialistas promovidas por alguns marxistas, que consideraram o campesinato enquanto

19

Para uma maior compreensão a respeito da transição do trabalho escravo para o trabalho livre no momento

posterior a Abolição (1888) ler EISENBERG, Peter L. Modernização sem mudança: A industria açucareira

em Pernambuco, 1840-1910. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. e MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da

Terra. São Paulo: HUCITEC, 1990. 20

Personagem muito popular da obra do escritor Monteiro Lobato, figura peculiar na representação do

caboclo brasileiro enquanto elemento do atraso.

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- 22 -

um único bloco social, na forma de classe aliada ou inimiga, mas sempre na condição de

coadjuvante diante do proletariado, a classe essencialmente revolucionária.

Uma das vias de análise é “aquela que toma o campesinato como uma identidade,

construída e redefinida em função de fatores diversos, de contextos históricos, sociais,

culturais, e mesmo do trabalho de representação de atores políticos, como organizações,

partidos, lideranças”21

. O que explica como o termo camponês no Brasil, a partir dos anos

1950, foi capaz de agregar diversos grupos sociais completamente diferentes, como:

posseiros, pequenos proprietários, lavradores, colonos, meeiros, foreiros, entre outros, que

por sua vez possuíam necessidades sociais distintas.

O conceito de campesinato deve ser operado levando em consideração as

características sociais do grupo, assim como o contexto histórico e espacial onde se

inscreve. Seria ingênuo acreditar que o termo camponês deve ser circunscrito à apenas uma

parcela deste grupo que é tão diverso e agrega inúmeras formas distintas de relação com a

terra e com a produção.

O conceito de „classe‟ que usaremos para tratar do campesinato só se mostra

completo de sentido quando atrelado a outro conceito, o de „luta de classes‟, para discutir

este conceito, o das lutas sociais travadas no campo, é preciso se desvencilhar da leitura de

campesinato enquanto classe coadjuvante, cujo poder de mobilização e de reivindicação

está ausente.

“Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos

membros vivem em condições semelhantes mas sem estabelecerem relações

multiformes entre si. Seu modo de produção isola uns dos outros, em vez de

criar entre eles um intercâmbio mútuo. (...) Seu campo de produção, a

pequena propriedade, não permite qualquer divisão do trabalho para o

cultivo, nenhuma aplicação de métodos científicos e, portanto, nenhuma

21

GRYNSZPAN, Mario. „Campesinato‟. In: MOTTA, Márcia (organização). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.

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- 23 -

diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de talento, nenhuma

riqueza de relações sociais. (...) Uma pequena propriedade, um camponês e

sua família; ao lado deles outra pequena propriedade, outro camponês e

outra família. Algumas dezenas delas constituem uma aldeia, e algumas

dezenas de aldeias constituem um departamento. A grande massa da

população francesa é, assim, formada pela simples adição de grandezas

homologas, da mesma maneira porque batatas em eu saco constituem um

saco de batatas (...) São conseqüentemente, incapazes de fazer valer seus

interesses de classe e seu próprio nome, quer através de um parlamento, quer

através de uma convenção. Não podem representar-se, têm que ser

representados.”22

A célebre citação dos 18 Brumário, de Karl Marx, ilustra bem a suposta

impossibilidade do surgimento de movimentos sociais no campo, freqüentemente a

mobilização dos camponeses é carregada com uma adjetivação negativa: passivos,

conservadores, incapazes, etc. o que, não raramente, caracteriza estas mobilizações como

motins ou revoltas, ou seja, terminologias que servem para esvaziar de sentido político a

organização destes movimentos.

Deste modo, levando em conta os limites deste trabalho, cabe aqui fazer uma

denúncia do que pode ser uma leitura apressada do trabalho histórico de Karl Marx,

impedindo o desmonte de pré-construções, que impedem a representação dos rurais como

classe passível de participação política autônoma. Mas ao contrário do que possa supor a

expressão „saco de batatas‟, a visão de Marx sobre o campesinato francês no período do

golpe de Luis Bonaparte é muito mais complexa. E ao destacar que estes camponeses

apoiaram o golpe de Luis Bonaparte, estavam também se posicionando no campo da

política em defesa de seus próprios interesses. De modo que, ao afirmar que estes

camponeses tomavam uma postura reacionária, é importante enfatizar que esse

conservadorismo não é algo essencial à categoria camponesa, mas sim um posicionamento

22

MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 127

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- 24 -

conservador fruto de uma determinada conjuntura política e econômica. Marx atenta ainda

para outros camponeses que tomaram medidas radicais em relação à mesma questão se

posicionando contra os primeiros, o que demonstra que os camponeses franceses não eram

nada homogêneos, bem diferentes das „batatas‟.

Para este tipo de análise é necessário um aprofundamento das peculiaridades

presentes na vida rural, o que nos dará uma idéia das motivações, das disposições que

levam este camponês à luta. Luta travada pela sobrevivência e pela conservação de seu

modus vivendi, o que envolve de significado e legitimidade a mobilização comunitária e a

ação violenta contra a expropriação e a usurpação dos costumes, dos direitos à posse e a

exploração da terra.

Na tentativa de entendermos os conflitos no campo, mais especificamente em

Cachoeiras de Macacu, cabe resgatar com mais ênfase a contribuição de E. P. Thompson

para a proposição de novos temas e olhares. Interessa-nos aqui o tratamento dado por

Thompson às revoltas populares23

, onde não são encaradas como simples adição de pobreza

à um nível insuportável (como se fosse uma resposta meramente econômica).

Thompson se preocupa em situar a participação do camponês no complexo conjunto

de relações comunitárias que são, diariamente, solapadas pela pobreza e pela quebra das

suas concepções de mundo e modo de vida. No nosso caso, podemos perceber esta quebra

através da inoperância dos antigos contratos (orais) entre os lavradores e os

proprietários/grileiro, que intentam reorganizar o campo em Cachoeiras de Macacu, o que

resulta, para o trabalhador, na sensação de perda das suas condições de existência.

23

THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:

Companhia das Letras, 1998.

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- 25 -

Partindo da experiência concreta das lutas que resultam nas sublevações populares

da Inglaterra, Thompson formula sua concepção de classe social, o que para ele é um

conceito que precede a formulação teórica, e que só se é possível perceber onde há uma

associação ao conceito prévio e universal de „luta de classes‟. Desse modo, a denominação

em classes sociais associada simplesmente à inserção de um indivíduo a determinado modo

de produção é arbitrário.

“A classe acontece quando alguns homens, como resultado de

experiências comuns (herdades ou partilhadas), sentem e articulam a

identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos

interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe

é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os

homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe

é a forma com que essas experiências são tratadas em termos culturais:

encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais.

Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não acontece com a

consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas reações de grupos

profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não

podemos aplicar nenhuma lei. A consciência de classe surge da mesma

forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma

forma.”24

É importante percebe a forma com que ele articula a questão da luta de classes com

o sentimento comunitário e a construção da identidade social, forjada na inserção do

indivíduo numa sociedade de interesses. A partir da quebra dessa tradição surge a

legitimação da violência como um instrumento para a manutenção do modo de existir.

A repetição dos padrões de comportamento remete a uma tradição, apontada como

elemento chave para o entendimento da ascensão de movimentos sociais. Thompson

defende que as motivações e as justificativas que conferem legitimidade à violência e a luta

como mecanismos de defesa da tradição devem ser procuradas no consenso comunitário

24

THOMPSON, 1987, p.10.

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- 26 -

proposto a partir de uma crença racional no funcionamento das relações sociais

costumeiras.

No nosso caso mais especifico, os lavradores que movem uma luta pela terra em

Cachoeiras de Macacu, a legitimidade está ligada à noção de injustiça com que eles vêem

os despejos promovidos pelas autoridades e por jagunços, suas identidades são criadas a

partir daí, a revitalização do sentimento de pertencimento à comunidade (aquela mesma

comunidade de interesses que falamos a pouco).

Também nos parece importante a referência ao estudo de George Rudé25

, cujo

trabalho sobre a história da multidão nos dá algumas reflexões sobre o que ele denomina

como „ideologia do protesto popular‟, presente em movimentos de grupos sociais, como o

dos camponeses, que não se encaixam nos dois grandes grupos que são comumente

privilegiados pelas análises marxistas (burgueses e proletários).

E este entendimento se faz a partir da ação recíproca entre a ideologia „inerente‟,

aquela que é vivenciada diretamente a partir da memória dos grupos sociais, e as idéias

„derivadas‟, fundadas a partir de um conjunto de crenças externas, mas que passam a se

relacionar e a dialogar com a ideologia inerente, interferindo no conjunto de práticas sociais

e estruturas políticas e religiosas que são adotadas pela comunidade.

Estes grupos sociais não são „tabulas rasas‟, não é um papel em branco, onde uma

nova ideologia pode ser escrita como se nada houvesse antes. Longe disso, estes grupos

absorvem as idéias derivadas a partir de seu próprio conjunto de representações e de suas

práticas cotidianas, aquelas responsáveis pela formulação das idéias inerentes. Também não

25

RUDÉ, George. A multidão na história: estudo dos movimentos populares na França e Inglaterra, 1730-

1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

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- 27 -

há nenhum pressuposto de progressão, não se trata de idéias simples que tendem a se tornar

mais complexas e sofisticadas.

Tema que nos é muito caro, já que toda a documentação relacionada aos conflitos

em Cachoeiras de Macacu, se esboçam no sentido de culpabilizar lideranças externas ao

movimento dos lavradores, e tratá-los como um grupo pacato, que estava sofrendo uma

influência „maligna‟ dos grupos subversivos (Partido Comunista Brasileiro e Partido

Trabalhista Brasileiro) realizadores de uma espécie de „lavagem cerebral‟.

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- 28 -

Capítulo 2 – O Recorte geográfico e cronológico: a delimitação do objeto em seu contexto

espaço-temporal;

“Esta terra é desmedida

E devia sê comum,

Devia sê repartida,

Um taco pra cada um,

Mode morá sossegado.

Eu já tenho maginado

Que a baxa, o sertão e a serra,

Devia sê coisa nossa;

Quem não trabaia na roça,

Que diabo é que qué com terra?”

(Patativa do Assaré. Cante lá

que eu canto cá)

Cachoeiras de Macacu: a ocupação humana e suas contribuição para o estudo

Com o objetivo de integrar às discussões aos renovados horizontes da chamada

„História Nova‟, faremos um esforço para aproximar nossas considerações históricas com

seu contexto espacial, tomando por base uma determinada escola geográfica francesa, na

qual se incluem geógrafos como Vidal de la Blache e A. Demangeon, que segundo

Phelippe Ariès, “... utilizaram, ao mesmo tempo, o estudo da paisagem contemporânea e

dos documentos dos arquivos antigos a fim de individuar as „características originais‟ de

uma região, características que proporcionavam a ela sua unidade...”26

.

26

ARIES, Phelippe. „A História das Mentalidades‟. In: LE GOFF, Jacques (org.). A História Nova. Sao

Paulo, Martins Fontes:

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- 29 -

Cabe-nos resgatar uma história preocupada com as peculiaridades regionais e atenta

ao fato de que a delimitação, a escolha do espaço e da escala têm uma relação direta com a

os tipos de interpretações possíveis e devem ser submetidas à comparação, para uma

redefinição metodológica, capaz de se lançar além de uma história generalizante

preocupada em criar grandes modelos deterministas (de qualquer que seja a natureza:

econômico, político, cultural, etc.) que pouco levam em consideração a peculiaridade do

local.

O que de fato devemos fazer, para além da humanização do espaço, é perseguir os

processos sociais que se delineiam a partir da relação entre tempo e espaço, articulando a

observação mais apurada do detalhe microscópico com a análise dos processos sociais de

maneira mais ampla. Partiremos em direção à utilização da geografia apontada por José

Mattoso27

, onde o espaço e a descrição do quadro territorial aparecem como a enunciação

das premissas de onde tudo deriva, é a apresentação de um quadro que, ao mesmo tempo,

envolve e limita o homem, que lhe fornece o elemento que consome e que transforma;

compõe e recria.

Atentando para toda a abrangência espacial das lutas pela terra do Estado do Rio de

Janeiro, cabe-nos a tarefa de delimitar uma região onde tenha ocorrido uma mobilização

significativa e nos forneça fontes para nossa análise.

Dentre estas diversas áreas litigiosas, elegemos a região de São José da Boa Morte

(Cachoeiras de Macacu), que hoje integra o núcleo de assentamento criado através da

desapropriação de terras pelo decreto nº 85.661, assinado em janeiro de 1981, pelo então

presidente General João Figueiredo.

27

MATTOSO, José. A Escrita da História: Teorias e métodos. Lisboa, Editorial Estampa: 1997.

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- 30 -

O litígio ocorrido na região que tem seu início por volta de meados dos anos

cinqüenta e sobrevive até o inicio dos anos oitenta, tornando-se assunto de segurança

nacional para o regime militar de 1964. As origens da mobilização e da contestação

camponesa dos anos cinqüenta, assim como seus desdobramentos, no período mais

dramático, que antecedem imediatamente ao golpe militar, constituem as coordenadas

norteadoras, no que diz respeito ao seu recorte no tempo e no espaço.

Para o caso de Cachoeiras de Macacu, mais especificamente para a região de São

José da Boa Morte, onde ocorreu a maior parte dos conflitos rurais, vale a pena se ater na

descrição da paisagem e fazer um pequeno bosquejo histórico a respeito das formas de

ocupação humana em que este espaço esteve submetido ao longo dos tempos.

Ao adentrar a pequena estrada de terra, que parte da RJ-122 (que liga Cachoeiras de

Macacu à Teresópolis), indicada por uma antiga placa do INCRA, o que se percebe é uma

grande planície pintada pela seqüência de modestas casas dos assentados, que só é

interrompida pela anunciação das ruínas da capela de São José da Boa Morte.

Trata-se de uma grandiosa construção, tombada pelo Instituto Estadual do

Patrimônio Cultural (INEPEC) em 1989. Suas paredes do XVIII, em ruínas, formam um

cenário imponente no alto de um terraço sedimentar. Possui nave única e capela-mor em

disposição convencional. Na fachada simples destacam-se a grande porta, as três janelas

superiores e o frontão de ponto elevado. Restam ainda os vestígios da antiga torre lateral

acoplada ao corpo da igreja e do antigo cemitério, aos fundos.

A solidez da Igreja, que resiste à ação tempo e ao abandono, foi cenário de

momentos ímpares da luta em Boa Morte. Como o „paredón‟ simulado, no qual os

lavradores (supostamente) ameaçaram de fuzilamento administradores e grileiros da

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- 31 -

Fazenda São José28

, também foi palco da resistência, servindo de abrigo para os lavradores,

como noticiou o Jornal Ultima Hora na matéria „Igreja em ruínas é trincheira para rebelião

em Cachoeiras‟:

“Cerca de 500 lavradores, com mulheres e filhos, tangidos pelo

drama de quem não tem um palmo de chão para plantar, guardam dia e noite,

com animo forte e dedo no gatilho de suas toscas espingardas pica-pau, as

terras devolutas que ocupam, na Fazenda São José da Boa Morte. Onde estão

sendo ameaçados pelos grileiros da companhia brasileira de investimentos,

do grupo Agro-Brasil, do ex-senador Coimbra Bueno. Construída pelos

jesuítas, primeiros senhores da região, é a trincheira dos sem-terra sentinelas

armadas, firmes na pontaria, postam-se nas altas torres, nos nichos onde

outrora repicaram os sinos.” 29

O seu uso como ponto central da defesa das terras ocupadas deve-se em parte a sua

localização estratégica, situada em uma elevação, livre das inundações freqüentes na bacia

do Macacu e de onde era possível avistar a aproximação de indivíduos hostis a permanência

dos lavradores.

Em tempos remotos, a possibilidade de domesticação da natureza era fator

indispensável para a ocupação do interior, no caso dessa região circunvizinha à Baía de

Guanabara , os rios Macacu e Guapiaçu facilitaram a penetração através da navegação, ao

mesmo tempo, a presença de uma vasta depressão sedimentar que comporta uma planície,

entrecortada por terraços, ladeada por morros cristalinos e irrigado por vários rios,

dificultou a exploração dos recursos naturais, pelo acumulo de água, devido à grande

quantidade de chuvas e mais ainda pela grande quantidade de águas carregadas de

sedimentos que descem pelas encostas das serras.30

28

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873. 29

Jornal Ultima Hora (1º ed.), “Igreja em ruínas é trincheira para rebelião de camponeses”, 11/12/1963, pág.

12. 30

GEIGER, Pedro & MESQUITA, Myriam. Estudos Rurais na Baixada Fluminense (1951 - 1953). Rio de

Janeiro: IBGE, 1956.

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- 32 -

Tal descrição relata um problema freqüente nas grandes planícies da Baixada

Fluminense e que mereceu atenção das autoridades: a formulação de um plano de drenagem

e saneamento dos pântanos que eram formados pelo alagamento das áreas baixas do

entorno dos rios. Vale a pena frisar que as providências administrativas tomadas pelas

autoridades aceleraram em muito o fenômeno da especulação imobiliária, já que houve uma

valoração da terra31

, que mais tarde será um dos grandes responsáveis pelos despejos dos

posseiros. Nesse ponto é importante ressaltar a importância deste fenômeno no caso de São

José, onde as terras compradas (ou griladas) no período das obras de saneamento são

vendidas anos depois, com um valor inúmeras vezes maior, retomaremos este assunto mais

tarde, para explicar a situação da terra em Cachoeiras de Macacu.

Nos primórdios da povoação dessas áreas que se configuram como baixada

fluminense, o emprego da mão-de-obra cativa foi crucial para a contenção dos rios, na

construção de diques, canais e represas, para prevenir as cheias e tornar as terras

cultiváveis. As construções eram feitas nos terraços sedimentares, que ficavam livres das

cheias.

A exemplo da região onde se encontra Cachoeiras de Macacu, território originário

de uma sesmaria atravessada pelo rio Macacu, medindo nove mil braças de largura por

doze mil de comprimento, doada por Mem de Sá ao escrivão da Fazenda de El-Rei, Miguel

de Moura, como presente pelos serviços prestados à Coroa na expulsão dos franceses e na

pacificação dos Tamoios. Miguel de Moura cedeu essas terras aos jesuítas, em 1571, que se

tornaram responsáveis pelo povoamento e desenvolvimento daquela área. A região ficou

economicamente centrada na produção agrícola, uma produção diversificada e voltada para

31

FERNANDES, Leonardo Jefferson. O remédio amargo: as obras de saneamento na Baixada Fluminense.

Dissertação de mestrado. CPDA/UFRRJ: Rio de Janeiro, 1998.

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- 33 -

o abastecimento da promissora cidade do Rio de Janeiro e das fazendas monocultoras dos

entornos.32

Na região próxima à antiga capela, via-se uma prosperidade baseada no cultivo de

milho, mandioca, feijão, arroz, cana-de-açúcar e fabricação de aguardente. Culturas

responsáveis pela elevação de São José da Boa Morte à categoria de freguesia, em 1837.

No entanto, o crescimento da região que se afirmava como importante centro de

produção agrícola é interrompido pela difusão de uma epidemia que ficou popularmente

conhecida como „febre do macacu‟ (malária). Grande foi o estrago causado pela epidemia a

partir de 1839. A doença que foi provocada pela ausência de saneamento e medidas para

controlar a reprodução do mosquito vetor nas áreas sujeitas a enchentes, representou uma

brusca queda na produção de Cachoeiras, o abandono de fazendas e um intenso êxodo dos

habitantes.

Simultaneamente à propagação da malária, houve também um esvaziamento da

navegação dos rios, que fora gradativamente substituída pelas estradas de ferro, novas

responsáveis pelo escoamento da produção de café das terras além das serras. O trecho

ferroviário que ligava Porto das Caixas (pequeno porto em Itaboraí, que servia para escoar

a produção agrícola para a Baía de Guanabara) a Cachoeiras, que se estendeu

posteriormente até Cantagalo, foi inaugurado em 1860. A emergência da estrada de ferro e

sua posterior extensão para além da serra, explicam a elevação de Cachoeiras à categoria de

Vila, em 1923, e a sua posterior substituição, enquanto sede do município, da vila de

Sant‟Anna de Japuíba.

32

Para este pequeno histórico de Cachoeiras de Macacu, usamos o trabalho de CARDOSO, Vinícius M.

Páginas da História Macacuana: de Santo Antonio de Sá à Cachoeiras de Macacu. Cachoeiras de Macacu:

Trielli Editorações, 1995

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- 34 -

Dessa forma, é possível perceber o quanto, desde suas origem, a proximidade com a

cidade do Rio de Janeiro sempre imprimiu suas marcas no perfil econômico e no

povoamento de Cachoeiras de Macacu, pensada como parte de um „cinturão verde‟, cuja

finalidade era a de abastecer o Rio de Janeiro, o que atrai sitiantes, colonos, posseiro, e todo

o tipo de trabalhador envolvido com o cultivo da terra e com a criação de animais.

Distante, cerca de 97 quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, Cachoeiras de

Macacu faz divisa com outros seis municípios do Estado (Nova Friburgo, Itaboraí, Silva

Jardim, Rio Bonito, Guapimirim e Teresópolis).

Inserido no contexto produtivo da Baixada Fluminense, Cachoeiras é atingida pelo

diagnóstico de decadência da agricultura no pós-abolição. Segundo a análise de alguns

estudiosos, o esvaziamento da região como resultado da abolição da escravidão teria

precipitado a crise econômica da região e o abandono das fazendas, interpretação que

oculta a falência do modelo monocultor e escravista, que foi incapaz de adaptar sua forma

de exploração e desatento às diversidades de atividades, antes da queda da produção para o

mercado externo.

Para um olhar mais minucioso e uma leitura mais completa sobre o campo e as

atividades produtivas rurais em Cachoeiras nos anos 50, bem como os reflexos disso na

ocupação e distribuição das terras, são relevantes as considerações feitas pelos geógrafos

Pedro Geiger e Myriam Mesquita, que defendem um novo olhar sobre a historiografia que

usa como argumento fundamental para a decadência a abolição:

“Não se deve supor que a abolição da escravatura tenha acabado com

a lavoura, onde antes havia muitos escravos. A agricultura, em muitas das

áreas, continuou; mais do que isso, conquistou novas terras e só mais tarde

foram abandonadas lavouras em certos trechos da região, devido à outras

fases do processo contínuo de transformações. Recentemente, devido a

valorização das terras que foram tornando vizinhas das grandes cidades, pela

expansão constante das mesmas, a agricultura antes existente foi sendo

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- 35 -

abandonada. Companhias imobiliárias adquiriram estas terras, mesmo nas

áreas onde o governo fazia obras de drenagem e saneamento. Não foi,

portanto, a abolição da escravatura que, pela falta de mão-de-obra, acarretou

o abandono dos trabalhos de drenagem e conseqüentemente o surto de

malária, provocando a decadência econômica da região...”33

Desse modo, a decadência e o abandono das lavouras em Macacu são explicadas,

não em decorrência da abolição da escravatura, como ficou marcado na interpretação de

alguns pesquisadores, mas pela emergência de uma especulação imobiliária. Mesmo em

terras onde estavam sendo realizadas as obras de saneamento, que tinham por função

reduzir a incidência dos constantes surtos de malária e febre amarela, doenças ocasionadas

pelo acumulo de água e conseqüente reprodução do mosquito vetor, e responsável pelas

constantes baixas na população rural, seja pela mortandade fruto das doenças, seja pelo

êxodo, quando os lavradores saíam à procura de áreas menos perigosas.

Mesmo com todas estas mudanças em sua paisagem rural, Cachoeiras de Macacu

se manteve como importante fornecedor de gêneros agrícolas para outras cidades do

Estado, ainda que e houvesse uma alternância, com momentos de baixa produtividade. As

fontes revelam que, em 1925, Cachoeiras já havia retomado a produção agrícola,

produzindo milho, feijão e farinha de mandioca.

No pós Primeira Guerra Mundial, as zonas rurais da Baixada presenciam um

verdadeiro boom da fruticultura, principalmente pela conquista dos mercados europeus.

Essa nova cultura atraiu um grosso investimento, de empresários e comerciantes da cidade

do Rio de Janeiro, Cachoeiras de Macacu tornou-se um importante produtor de banana e

abacaxi, essas lavouras alcançaram as áreas de cultivo de cereais e tubérculos, se

sobrepondo a estas.

33

GEIGER, 1956, p. 32.

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- 36 -

“A fruticultura fez reviver determinadas áreas; em certos municípios,

como Itaboraí, Cachoeiras de Macacu, onde as lavouras de cereais voltaram

a ter importância em seguida à decadência do engenho, a cultura das frutas

voltou a reduzi-las.”34

Nos parece aqui, que há uma maior concentração de terras em clara relação com o

avanço da fruticultura, em detrimento dos cereais e tubérculos, gêneros preferenciais do

pequeno produtor familiar, que não tinha titulação para suas terras e acaba sendo expulso

pela produção de frutas e pelos interesses dos proprietários, até mesmo com a proibição da

pequena lavoura dentro da grande propriedade, onde antes, o sitiante (ou meeiro) tinha

maior liberdade para escolher os gêneros a serem produzidos.

Como reflexo direto das mudanças sofridas pela economia do município, percebe-

se, permanentemente, uma migração nos limites de Cachoeiras de Macacu, de lavradores

vindos dos municípios próximos. A hipótese é confirmada quando recuperamos dados

estatísticos sobre a distribuição da população no município, segundo o Recenseamento

Geral de 1950, dos 16.272 habitantes, 84% residem em zona rural.35

A chegada de migrantes é apontado como um dos fatores para o salto populacional

nos anos cinqüenta com uma taxa de crescimento demográfico bem acima da média

estadual.

POPULAÇÃO

ANOS

ESTADO (RJ)

MUNICÍPIO

1950 – 60

3,7

5,2

Taxa média anual de crescimento (%) 1960 – 70 3,0 2,3

1970 – 75 3,0 2,2

34

GEIGER, 1956, p. 35. 35

IBGE. Enciclopédia dos municípios brasileiros – Volume XXII. Rio de Janeiro: IBGE, 1959. p. 217.

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- 37 -

Um dado significativo, para nossos estudos, é a taxa de crescimento entre 1950 –

60, muito elevada, se comparada com a média estadual e com as médias municipais das

décadas seguintes, que sofrem um considerável recuo.

Informação que merece destaque para o entendimento do acentuado crescimento nos

anos cinqüenta é a criação do Núcleo Colonial de Papucaia, em 1951, pela Divisão de

Terras e Colonização do Ministério da Agricultura36

.

A possibilidade de aquisição de um dos terrenos no Núcleo, que mediam entre 10 e

15 hectares, rapidamente chamou a atenção de lavradores residentes nos municípios

próximos, chegando à cifra de seis mil pedidos.

A criação deste Núcleo Colonial se encaixa num contexto maior, o da formação de

um „cinturão verde‟ capaz de abastecer, de gêneros alimentícios, a região metropolitana do

Rio de Janeiro, para tanto, foram criados diversos outros Núcleos, sempre em áreas

próximas à região central.

A presença do Núcleo Colonial de Papucaia é uma referência freqüentemente citada

pelos participantes da mobilização camponesa de Boa Morte. Havia a alegação de que

terras devolutas, de propriedade da União, e terras compradas pelo INIC para a formação

do Núcleo haviam sido confiscadas por pretensos proprietários, que forjavam os títulos de

propriedade (grilagem) nos cartórios locais.

36

A Divisão de Terras e Colonização (DTC) do Ministério da Agricultura com o passar dos anos passou a ser

chamada de Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC). Mais tarde, no governo João Goulart,

cedeu lugar a Superintendência de Política Agrária (SUPRA), que passa por nova reformulação durante o

Regime Militar, com a criação do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), que mais tarde passou a

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

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- 38 -

Capítulo 3 – O conflito pela terra em Boa Morte

“Guerra pela terra,

a pedra contra o tanque,

guerra altera a terra,

nada será como antes”

(Cordel do fogo encantado. A pedra e

a bala)

São José da Boa Morte no contexto das mobilizações camponesas no Rio de Janeiro

O conflito a ser estudado, em São José da Boa Morte, se insere num plano maior, o

das mobilizações camponesas que ocorreram em diversos municípios do Estado do Rio de

Janeiro durante toda a década de cinqüenta até meados dos anos sessenta.

Para um melhor entendimento deste conflito em especial, torna-se importante

contextualizá-lo num quadro mais amplo, ou seja, o das mobilizações camponesas. Um

trabalho nos será especialmente caro na tarefa de relacionar o conflito no seu quadro mais

geral, a dissertação de mestrado do pesquisador Mario Grynszpan37

. Preocupado em

desvendar o significado da crescente mobilização camponesa que surge em todo o cenário

rural do Rio de Janeiro no período estudado.

Uma primeira constatação, facilmente correlacionada com o caso macacuano, é o

papel decisivo que terão os despejos promovidos pelos grileiros contra os lavradores

37

GRYNSZPAN, Mario. Mobilização camponesa e competição política no Estado do Rio de Janeiro (1950 -

1964). Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia

Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Page 39: monografia_ailton

- 39 -

(situação que se torna cada vez mais freqüente no decorrer dos anos cinqüenta) para a

formação de uma identidade camponesa forjada a partir da participação ativa, pela própria

luta, além das relações de competição política travadas no campo pelos partidos que

também disputavam o controle desses camponeses em franca mobilização.

Desse modo, a idéia de que a identidade é construída ativamente no próprio

processo de luta nos leva às indicações fornecidas anteriormente por Thompson. A

possibilidade de destruição de um modo de vida comum àquela comunidade desperta,

através da vivência de um problema, a viabilidade da organização de um grupo de

interesses, até então ausente. A existência de um intruso, responsável pelos despejos, leva-

os ao enfrentamento e a própria designação do grupo em „camponês‟, percebendo o termo

como algo positivo, capaz de enunciar a organização e o entendimento de classe.

É, portanto, a superação do termo „camponês‟ destituído de sentido, para uma nova

conceituação, na qual o „camponês‟ se envolve de sentido e torna-se o termo privilegiado

para a busca da identidade e o reconhecimento do grupo que nos dá a tônica. O importante

é perceber essa identidade como fruto construído cotidianamente na luta pela manutenção

de um modo de vida e pelo direito de produzir a partir da terra.

A organização política camponesa em associações (ou sindicatos) formadas a partir

da resistência aos despejos, estimulam a identificação de um campo autônomo de

mobilização política. Mas de certo modo, acabam constituindo-se em portas para a entrada

de partidos e agremiações externas ao modo de vida dos lavradores.

“Trata-se de pessoas que, apesar de muitas vezes terem uma origem

camponesa, tiveram uma passagem pela cidade, por movimentos de

trabalhadores urbanos e eram, muitas delas ligadas ao Partido Comunista

Brasileiro (PCB). Seus objetivos, portanto, não eram os mesmos dos

grileiros. Buscavam, dentro de uma estratégia mais ampla de transformação

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- 40 -

da ordem social, promover a organização dos lavradores, orientando-os em

suas lutas.”38

Não há, porém, uma certeza de que estes indivíduos retornavam ao campo por uma

deliberação direta do partido, nem mesmo podemos afirmar que as lideranças camponesas,

necessariamente, tiveram dentro de suas trajetórias uma experiência urbana, na qual

tomariam o conhecimento que seria posteriormente usado na mobilização e na educação de

seus pares no campo. Pensar desse modo seria adotar o conceito de „massa ignara‟, cuja

crítica de George Rudé foi citada anteriormente, seria qualificar o camponês como receptor

das „idéias derivadas‟, quando na verdade a própria luta pela posse da terra já é, por si

mesma, um elemento capaz de definir e redefinir as características do agrupamento social,

onde as „idéias derivadas‟ não são meramente recebidas, mas lidas a partir da perspectiva

das „idéias inerentes‟.

Devemos então, mensurar realmente qual o papel que as lideranças externas

desempenharam na mobilização camponesa e no conflito. Tendo em vista que o quadro

político traçado na ocasião é fortemente marcado pela divergência de projetos políticos

progressistas e conservadores. Lembrando que, mesmo os setores da „esquerda‟ abrem-se

num espectro que vai desde o grupo petebista, que no Rio de Janeiro nem sempre está

afinado com as medidas do então presidente João Goulart; aos pecebistas, que, apesar da

histórica preferência pela via pacifica para a revolução, é também impulsionado à

radicalização pelas invasões promovidas pelos lavradores.

Essas lideranças partidárias, logicamente, levaram algumas de suas táticas e

estratégias para a luta camponesa, mas isso não quer dizer que os lavradores se

posicionaram como simples massa de manobra diante da liderança de figuras externas à

38

GRYNZSPAN, 1987, p. 96

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- 41 -

luta. Muito pelo contrário, pois serão os laços cotidianos forjados por aqueles que

vivenciam a luta cotidianamente e a dedicação integral à resistência que levará ao

reconhecimento do indivíduo enquanto líder.

A documentação estudada para o caso de São José da Boa Morte, onde os supostos

líderes externos são identificados „aos montes‟ pelos militares responsáveis pelo andamento

do inquérito, pode mostrar ainda uma particularidade da própria documentação, uma clara

tentativa dos militares em criar ligações e lideranças, forjando uma relação artificial (ou

dando maior solidez à relações que em muitos dos casos eram extremamente frágeis) com a

finalidade de incriminar o maior número de indivíduos possíveis e abarcar vários setores da

sociedade civil que poderiam, porventura, estar sob a alcunha de „subversivo‟, ainda que

nada tivessem feito em relação às invasões de Boa Morte. Devemos procurar avaliar a

efetiva relação que se consolida entre as instituições externas que se solidarizam com a luta

dos posseiros e os próprios lavradores.

Há ainda o reconhecimento de algumas lideranças locais para o nível estadual e

mesmo nacional. Situação, em parte, explicada pela crescente ação invasora dos grileiros na

região da baixada fluminense, principalmente no que diz respeito às regiões circunvizinhas

à cidade do Rio de Janeiro, onde a especulação imobiliária ganhou força nos anos

cinqüenta.

Dentre esta ascensão de lideranças locais para nível estadual, podemos marcar a

fundação da FALERJ (Federação das Associações de Lavradores do Estado do Rio de

Janeiro), em 1959; e mesmo a nível nacional, a partir da ULTAB (União dos Lavradores e

Trabalhadores Agrícolas do Brasil) e da CONTAG (Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Agricultura). Onde muitas lideranças acabaram por se tornar, de certo

modo, sinônimo da luta pela terra no Rio de Janeiro, como é o caso de José Pureza e

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- 42 -

Manoel Ferreira, para citar dois nomes conhecidos. Muito embora não tiveram, num

primeiro momento, uma participação efetiva na mobilização em Cachoeiras de Macacu.

Nesse contexto de intensa mobilização camponesa, se torna interessante, e por que

não, vital, para o Governo Federal, extrair algum tipo de vantagem política, principalmente

para dar base de sustentação às chamadas Reformas de Base, dentre elas a própria reforma

agrária e a possibilidade de rever algumas das medidas disciplinadoras no campo. Uma das

medidas mais perceptíveis é a transformação do INIC (Instituto Nacional de Imigração e

Colonização) em SUPRA (Superintendência de Política Agrária), órgão que fez multiplicar

os sindicatos rurais e promoveu a desapropriação de algumas das áreas de litígio.

O litígio em São José da Boa Morte

“Leve ao vosso conhecimento que a situação política no município de Cachoeiras de

Macacu, não é boa, pois o srs. Ubirajara Muniz, vem incitando o povo em geral para a

subversão, tentando implantar o Socialismo no município, após ter assumido à prefeitura se

tornou um perigoso agente de Fidel Castro”39

. Foi essa a forma pela qual o comissário

chefe do Departamento de Polícia Social tomou conhecimento sobre a situação política em

Cachoeiras de Macacu, toda essa preocupação deve-se, em grande parte, aos conflitos de

terras que se desenrolam em São José da Boa Morte.

São José faz parte do segundo distrito do Município de Cachoeiras de Macacu,

segundo relatos (entre os depoimentos de acusados, informantes e as matérias de jornal

consultadas), a área de litígio abrange terras pertencentes ao INIC (adquiridas com a

finalidade de compor o Núcleo Colonial de Papucaia), terras devolutas da União e as terras

39

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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- 43 -

pertencentes à Fazenda São José, cuja propriedade era disputada por inúmeros supostos

proprietários, dentre eles destacaremos a Agrobrasil Empreendimentos Rurais S/A, de

propriedade do Senador da República Jerônimo Coimbra Bueno (essa informação é

particularmente interessante e será revisitada ao longo do capítulo). Mesmo quando há

registros dessas áreas em cartório, há uma grande dificuldade em precisar a localização e a

extensão exata dessas propriedades, bem como seus limites, que são dados pela existência

de algum acidente geográfico, ou mesmo por uma árvore. A indefinição destes limites

contribui assim para a existência de tantos pretensos donos, geralmente grileiros.40

O Plano de Ação Agrária do Governo do Estado, cuja proposta consistia na

desapropriação de sete fazendas por todo o Estado, além da liberação de crédito para os

pequenos produtores assentados, via Banco do Brasil, que deveria ser iniciado em 1962,

previa também a desapropriação de um trecho da Fazendo São José. A informação que

surge daí é a reclamação de terras em São José pelo INIC, que alega ter comprado terras de

propriedade de Adalberto Correia, em 1952, para a implantação do Núcleo Colônia de

Papucaia.

Essa discussão sobre a propriedade das terras em São José da Boa Morte, e sobre a

compra das terras de Adalberto Correia pelo INIC, nos dão um pouco da dimensão da

gravidade do problema que existe em toda a Baixada Fluminense durante os anos

cinqüenta, a dificuldade de definir o quadro fundiário. O tema foi analisado por Mario

Grynszpan, que usou os dados levantados pelos geógrafos Pedro Geiger e Myriam

Mesquita em seu „Estudos Rurais na Baixada Fluminense‟ para associar a crescente

especulação imobiliária sobre as terras com a realização das obras de saneamento.

40

Para uma melhor definição das práticas de grilagem ver HOUSTON, James. Legalizando o ilegal:

propriedade e usurpação no Brasil. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. N° 21, ano 8, fevereiro de 1993

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- 44 -

Conclusão, as obras de saneamento e infra-estrutura, pensadas (oficialmente, ao menos)

para favorecer o desenvolvimento agrícola, acabou por enriquecer grileiros, que se

beneficiaram com a valorização das terras pela construção de estradas, a retificação e

drenagem de rios (como Macacu e o Guapiaçu), além da erradicação de epidemias (como a

malária, responsável por um elevado número de mortes na região), tornando cada vez mais

comum a expulsão de lavradores.

Com base nas informações levantadas por Mario Grynszpan, nos chama a atenção a

possibilidade de acobertamento do Estado à ação especulativa. Onde pessoas próximas ao

poder central, com o conhecimento prévio, teriam adquirido terras nas áreas que mais tarde

seriam beneficiadas pelas obras de infra-estrutura. Esse caso, teria sido, segundo indicações

do autor, o de Adalberto Correa, deputado gaúcho, muito ligado a Getulio Vargas.

Adalberto adquiriu terras no Município de Cachoeiras de Macacu, por volta de 1933,

mesmo ano em que foi criada a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense41

.

Em 1952, o Governo Federal comprou uma área de 1.300 alqueires em Cachoeiras

de Macacu, com o intuito de formar o Núcleo Colonial de Papucaia, o que nos chama mais

atenção é que estas terras compradas pela União eram de propriedade de Adalberto Correa

e em 1952, o Governo estava novamente sob o comando do presidente Getulio Vargas.

Deste modo, os lavradores que haviam se apossado de terras abandonadas ou

devolutas e que, nelas cultivaram suas roças, ficaram nas mãos dos grileiros que chegaram

junto com as melhorias das rodovias e das drenagens que abriram novas áreas de cultivo

nas regiões alagadiças. A incompetência do poder público em resolver os problemas

fundiários, ou muitas vezes, o não interesse em resolvê-los, possibilitou o avanço da

especulação e dos loteamentos, obrigando os camponeses a buscar as suas próprias

41

GRYNZSPAN, 1987, p. 55.

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- 45 -

soluções para o problema, a partir da organização do grupo. Iniciando um período em que a

organização dos camponeses e as invasões de propriedades improdutivas se tornaram

episódios comuns em todo o Estado do Rio de Janeiro, principalmente no que diz respeito

aos últimos anos da década de 1950 até as vésperas do golpe militar em 1964.

Em São José da Boa Morte, o principal motivo para as disputas e conflitos é o atrito

com a companhia Agrobrasil Empreendimentos Rurais S/A, intensamente acusada pelos

lavradores de ser a maior responsável pela grilagem das terras da União. Seus proprietários

são de uma tradicional família de fazendeiros e políticos, os Coimbra Bueno, proprietários

de vastas extensões de terras em Goiás.

Jerônimo Coimbra Bueno, ex-governador de Goiás (1947-1950) e senador da

república (1955-1963) pela União Democrática Nacional (UDN), juntamente com seu

irmão Abelardo Coimbra Bueno, proprietários da Agrobrasil, foram os responsáveis por

inúmeras ordens de despejo movidas contra os lavradores em São José, desde 1958. Para

obter respaldo legal, alegaram haver adquirido propriedades na região pertencentes ao

espólio de Adalberto Correa.

Nos será útil evidenciar alguns dados da vida de Jerônimo Coimbra Bueno, formado

engenheiro em 1933 pela Escola de Engenharia do Rio de Janeiro, esteve envolvido, na

função de auxiliar técnico, no Serviço Sanitário da Baixada Fluminense42

. Tal cargo,

certamente, facilitou seu acesso aos planos de saneamento e às obras de infra-estrutura.

Outro dado a ser mencionado é a ativa intervenção, na condição de Senador da República,

contra as propostas de desapropriação de terras para a reforma agrária, assunto muito em

pauta, dado o debate das Reformas de Base.

42

ABREU, Alzira Alves de (Org.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro:

Editora FGV, 2001.

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- 46 -

Nos depoimentos coletados em São José, que foram anexados aos IPM, quem

aparece com maior evidência é o sócio e irmão de Jerônimo, Abelardo Coimbra Bueno.

Outro indivíduo constantemente citado é Marino Monteiro de Barros, administrador da

Agrobrasil, freqüentemente acusado pelos lavradores como o responsável por comandar os

„capangas‟ contratados para expulsar a força os trabalhadores das terras.

Mesmo antes da Agrobrasil, as terras de São José foram disputadas por grande

número de indivíduos que se apresentavam como proprietários, portando, muitas vezes,

títulos de propriedade. Os relatos indicam que estes indivíduos chegam, vez ou outra, nas

terras, se apresentam enquanto donos e permitem que os lavradores permaneçam lá,

mediante à produção de determinada quantidade de „matagem‟43

para o pretenso

proprietário.

Uma constatação importante é que, ao mesmo tempo em que realizavam a expulsão

dos lavradores, estes pretensos proprietários também brigavam entre si, sendo a posse

dessas terras alvo de inúmeras disputas judiciais. O quadro de conflitos entre esses

proprietários se reverte quando os lavradores passam a resistir aos despejos e permanecer

nas terras, mesmo depois das ações judiciais de despejo, as diferenças verificadas entre os

pretensos proprietários são momentaneamente esquecidas para enfrentar uma ameaça

comum, a mobilização camponesa.

É difícil, porém, determinar o tipo de envolvimento das autoridades locais (juízes,

delegados, etc) nos conflitos. O que percebemos é o elevado número de processos

movidos: ações de despejo, de manutenção e reintegração de posse, além das medidas para

indenização por benfeitorias. Todos estes processos significam um considerável aumento

43

O mais comum era a utilização dos lavradores, pelos grileiros, para a extração de madeira na floresta e a

fabricação de carvão vegetal, além da abertura das áreas de floresta para o plantio. Sendo a matagem, o

pagamento de uma parte da produção aos grileiros;

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- 47 -

na atuação destes setores, constantemente convocado para manter a ordem em Cachoeiras

de Macacu.

A partir das fontes estudadas, levando em conta o recorte temporal adotado,

podemos dividir o conflito em dois momentos.

Um primeiro momento, onde a mobilização responde diretamente às expulsões,

atingindo seu cume no fim de 1961. Este conflito teve a misteriosa participação de Mariano

Beser, e se fortaleceu com a chegada de lavradores sem terras de municípios vizinhos, ou

mesmo de outros Estados.

E um segundo conflito, em dezembro de 1963, provocado pela ocupação de áreas da

Agrobrasil, por camponeses. Esse segundo confronto, o qual temos maiores dados e

disponibilidade de fontes, contou com o apoio do então prefeito Ubirajara Muniz (PTB),

além da participação direta de diversos membros da FALERJ.

Evidentemente, os dois conflitos, separados aqui com fins de análise, se relacionam

entre si e indicam uma persistência dos problemas enfrentados pelos camponeses, ou seja,

os freqüentes despejos aos quais estavam submetidos.

Em março de 1961, o Jornal Terra Livre já noticiava os primeiros movimentos de

expulsão, onde 30 famílias foram despejadas de forma violenta, pela Polícia Estadual44

.

Segundo os jornais, a violência, com destruição de casas, plantações e instrumentos de

trabalho eram práticas correntes da polícia ou de quem quer que seja o executor dos

despejos, muitas vezes realizados pelos próprios grileiros, com o auxílio de jagunços.

Ao que nos parece, os conflitos de novembro de 1961, têm origens num episódio no

qual, após a prisão, pelos lavradores e sob liderança de Mariano Beser, de indivíduos

ligados à grilagem, realizou-se um júri onde os acusados teriam sido condenados à morte.

44

Jornal Terra Livre, SP, março de 1961, p. 1.

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- 48 -

Chegando mesmo a realizarem um „paredón‟ simulado nas paredes das ruínas da antiga

Igreja de São José da Boa Morte.

As fontes policiais consultadas dão muito poucos detalhes sobre esse primeiro

momento, de 1961, com mínimas referências à Mariano Beser. Que aparece em raríssimas

ocasiões, sempre em algum depoimento, e de forma obscura.

“(...) disse que, conheceu Mariano Beser no ano de mil novecentos e

sessenta e um, quando Beser procurou o depoente em sua residência com o

fito de receber o apoio do depoente no plano de invasão ao campo; que, o

depoente não o conhecia antes desta data; que, o depoente não lhe deu o

apoio solicitado uma vez que não o conhecia, nem a suas idéias; que, durante

a invasão de São José da Boa Morte, de propriedade do INIC, o depoente,

apaixonado que é do problema agrário, lá apareceu inúmeras vezes, mas

sempre em oposição a Beser; que o Beser, nos primeiros dias da invasão da

fazenda encontrou boa receptividade por parte dos lavradores, porém com o

decorrer do tempo foi perdendo aquele prestigio sendo até acusado de agente

do „ponto 4‟ (...)”45

.

Mesmo as informações fornecidas pela imprensa não dão conta de explicar as

origens de Mariano Beser, tampouco sua penetração e liderança na região de Boa Morte46

.

As indicações mais pertinentes dizem que, atraído pela mobilização dos camponeses em

Boa Morte interessados em se manter nas terras de onde haviam sido paulatinamente

expulsos, Beser teria aparecido na região. Dias antes das capturas que dariam origem ao

episódio do „paredón‟, Beser se apresentou aos lavradores como presidente da União das

Ligas Camponesas do Estado do Rio de Janeiro e assessor FALERJ.

A prisão realizada pelos lavradores, dos pretensos proprietários e de um oficial de

justiça encarregado de entregar a ordem de despejo, acabou por acirrar os ânimos e

45

Extraído do depoimento prestado por Ubirajara Muniz ao DOPS, no dia 26 de junho de 1964. IN: APERJ,

Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873. 46

Jornal do Brasil. “Líder de motim de Macacu constitui mistério”, 22/11/1961, pág. 5.

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- 49 -

provocar uma reação nas autoridades. Mesmo a cobertura dos fatos pela imprensa vai à

tônica de noticiar o andamento e a resolução do impasse.

Após a intervenção da polícia e a libertação dos reféns, o juiz de Cachoeiras, Gastão

de Alencastro Rush, emite mandato de prisão preventiva para Mariano Beser, que foge da

região, sendo preso e Niterói no dia vinte e sete de novembro de 1961, quando tentava

encontrar-se com o Governador Celso Peçanha.

Outro líder muito procurado na ocasião e que, a exemplo de Mariano Beser, quase

não é mencionando no IPM, é José Cabral. Após o desfecho dos episódios de 1961, fugiu

para as matas da região, de onde concedeu uma entrevista ao Jornal Ultima Hora:

“vencemos, ninguém tenha dúvidas”, parece, portanto, convicto de que a mobilização foi

vitoriosa e insiste em ameaçar àqueles que se dispuserem a grilar terras, pois “a ordem de

fuzilamento continua de pé”.47

No dia sete de dezembro de 1961, é concedido a Mariano Beser e mais dois

lavradores, Francisco de Assis e Antonio Xavier, o habeas-corpus. Após ser posto em

liberdade, Beser não mais é visto na região de Boa Morte, embora a mobilização

camponesa tenha permanecido ativa.

A continuidade da luta pela terra em Cachoeiras de Macacu muito tem a ver com as

novas investidas dos fazendeiros, interessados em expulsar os lavradores. Beneficiados pela

desarticulação dos camponeses em decorrência da intervenção militar, os fazendeiros

investem novamente contra os lavradores, agindo com violência e lançando mão de

jagunços e pistoleiros.

47

Jornal Ultima Hora. “Com prisão de camponeses surgem novos focos de rebelião”, 30/11/1961, pág. 7.

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- 50 -

“Mal circulou por Cachoeiras de Macacu a notícia de que a polícia

invadira o reduto dos lavradores amotinados sem encontrar qualquer

resistência, diversos indivíduos armados e a mando do „grileiro‟ Marino de

Monteiro de Barros, administrador da fazenda Agrobrasil, invadiram e

destruíram as terras e plantações do lavrador Arlindo dos Santos”.48

Os acontecimentos de São José da Boa Morte, de 1961, e sua ampla divulgação na

imprensa chamam a atenção para os problemas enfrentados no campo em Cachoeiras de

Macacu, fazendo com que líderes de sindicatos urbanos e de associações camponesas

voltem-se para aquela localidade.

Por outro lado, a liderança dos lavradores, conquistada por Beser, é alvo de

inúmeras críticas oriundas das associações de lavradores e de militantes políticos. Após a

prisão de Mariano Beser, torna-se comum a presença de dirigentes da FALERJ, com a

intenção de estreitar laços com o movimento dos camponeses da região e fortalecer

movimento.

No depoimento de Ubirajara Muniz, citado a pouco, é feita uma referência de que

Beser seria um agente ligado ao „Ponto 4‟, uma seção Agência Central de Inteligência

norte-americana (CIA). Nos meses seguintes, inúmeras foram as reportagens veiculadas na

imprensa que tenderam a noticiar a relação de Beser com grupos estrangeiros.

Beser jamais admitiu qualquer ligação com setores da direita reacionária. Muito

embora, reconheceu mais tarde ter participado de reuniões com o empresariado, segundo

ele, interessados em auxiliar os lavradores em luta.

Uma análise mais detalhada será feita adiante, por ora, exporemos apenas o quadro

mais geral do conflito.

48

Jornal Ultima Hora. “Polícia invadiu QG camponês em Macacu: líder José Cabral fugiu para as matas”,

29/11/1961. pág. 7.

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- 51 -

Num segundo momento, a luta dos lavradores em Cachoeiras de Macacu retorna aos

noticiários após a ocupação da mesma área litigiosa por 500 lavradores49

, em dezembro de

1963. Cansados de esperar por uma intervenção do Governo Estadual, ou Federal, na

solução dos problemas evidenciados em 1961, e insatisfeitos com configuração de um

quadro fundiário cada vez mais desigual, os lavradores ocuparam uma área de

aproximadamente 200 alqueires de terra que, segundo relatos dos camponeses, eram terras

pertencentes originalmente ao Núcleo Colonial de Papucaia. Ou seja, as terras que eles

ocupavam eram, supostamente, públicas e a alegação era de que elas estavam sendo

usurpadas pela Agrobrasil.

Quando a questão relativa à ocupação das áreas chega à justiça em Cachoeiras de

Macacu, o então juiz da comarca, José Rodrigues Lema, decide por conceder a reintegração

de posse para a Agrobrasil, dando aos lavradores o prazo até o dia 13 de dezembro de 1963

para deixarem o local, o que ocorreria com a colaboração de contingentes policiais, caso

fosse necessário.

A nova ameaça de despejo mobiliza lideranças, do campo e da cidade, para divulgar

as reivindicações dos lavradores, que denunciavam as condições de abandono em que as

terras se encontravam, dispondo-se a cultivá-las de imediato.

Essa mobilização contou com o amplo apoio da FALERJ e a participação direta de

seus líderes. Outro aliado importante foi o então prefeito Ubirajara Muniz, eleito em 1962

pelo PTB. Com boas relações dentro de seu partido, Ubirajara funcionou como um elo entre

as demandas camponesas e a SUPRA.

49

Esta cifra é relacionada no Jornal Ultima Hora. “Igreja em ruínas é trincheira para rebelião de camponeses”,

11/12/1963, pág. 12.

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- 52 -

Nas fontes do IPM, ao lado de Ubirajara, aparecem também como grandes líderes

da ocupação camponesa na Fazenda de São José da Boa Morte em 1963, os dirigentes do,

já legalizado, Sindicato dos Lavradores de Cachoeiras de Macacu, Anézio de Freitas,

presidente do sindicato e Alicídio Salvador, secretário.

Embora contassem com o apoio de sindicatos e lideranças políticas, no dia 13 de

dezembro, os lavradores são novamente despejados. Aceitando as instruções do

superintendente da SUPRA, Pinheiro Neto, que prometera uma solução rápida com a

assinatura de um decreto de desapropriação pelo presidente João Goulart, os lavradores

saíram pacificamente, sem nenhum tipo de embate com a polícia.

“Cachoeiras de Macacu, 13 (de Emanuel Bragança, enviado de UH)

– um contingente de 30 soldados da PM, armados de metralhadoras,

despejou, ontem das serras da Fazenda Boa Morte, sob torrencial chuva, 2

mil lavradores, cumprindo determinações do juiz da comarca, Sr. José

Rodrigues Lema. (...) ESTRADA E CHUVA – os camponeses decidiram

acampar na principal estrada do município e afirmaram que esta é a segunda

vez que são despejados das terras das fazenda Agro-Brasil, sob intensa

chuva. Na ultima vez, morreram mais de dez crianças, pois os colonos

passaram dias ao relento e sem receber quaisquer alimentos. O prefeito do

município, Sr. Ubirajara Muniz, solidarizou-se com os lavradores e afirmou

que, hoje, partirá com uma comissão para Itaguaí, onde pedirá ao presidente

da republica a desapropriação das terras da Agro-Brasil que a justiça diz

pertencer ao ex-senador Coimbra Bueno. Alegando não ter lugar para alojar

todos os lavradores despejados, o prefeito afirmou que se o impasse

continuar, vai promover uma campanha na cidade, com a finalidade de

arrecadar recursos para os colonos e suas famílias.”50

A demora do Governo Federal em realizar a desapropriação prometida obriga os

lavradores a intensificar a mobilização, que culmina num acampamento nos jardins do

Palácio das Laranjeiras.

50

Jornal Ultima Hora. “Sem-terras expulsos da Boa-Morte”. 14/12/1963. pág. 7.

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- 53 -

“Como a solução demorasse, um grupo de lavradores resolveu rumar

para o Palácio das Laranjeiras, e iniciou o longo caminho às 2 horas da

manhã de segunda-feira. Fizeram vários quilômetros a pé à estação de

Macacu, onde tomaram um trem para Niterói; ali caminharam da estação

Presidente Dutra às Barcas, e no Rio vieram a pé desde a Praça XV até o

Palácio das Laranjeiras”.51

No dia 13 de janeiro, então, o Presidente João Goulart decreta de interesse social

para fins de desapropriação, os 1790 alqueires geométricos nas terras litigiosas. O decreto

foi recebido como a grande vitória, fruto da mobilização camponesa e o reconhecimento do

real direito pela terra, como consta no próprio decreto:

“(...)CONSIDERANDO as graves ocorrências verificadas no lugar

denominado São José da Boa Morte, no Município de Cachoeira de Macacu,

entre posseiros e proprietários, em áreas contíguas ao Núcleo Colonial de

Papucaía;

CONSIDERANDO que o grave dissídio em causa envolve mais de

quinhentas (500) famílias de modestos lavradores e que, em parte, decorre

do excessivo povoamento da área original do Núcleo Colonial de Papucaia,

conseqüente à inelutável e cada vez mais numerosa instalação de

desamparados lavradores em busca de terra para cultivar, de modo a terem

como atender, pelo cumprimento da obrigação social do trabalho, à própria

subsistência e à de seus familiares; ” 52

A expectativa criada pela emissão da posse e a lentidão da SUPRA em realizá-la,

manteve os lavradores em constante mobilização, retornando paulatinamente às manchetes

da imprensa. Todo esse quadro favorável aos lavradores, com a assinatura do decreto de

desapropriação, modifica-se radicalmente com o advento do golpe militar, no dia 31 de

março de 1964.

51

Jornal Novos Rumos. “300 famílias acampam no Palácio do Governo por 1790 alqueires”, 09/01/1964. 52

Decreto número 53.404, de 13 de janeiro de 1964. Publicado no Diário Oficial da União no dia 14 de

janeiro de 1964, Seção I, Parte I, pág. 345.

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- 54 -

Mesmo o decreto presidencial declarando a desapropriação em janeiro de 1964 é

revogado posteriormente, pelo Presidente Costa e Silva, legando a responsabilidade pela

execução ao Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), órgão que substituiu a

SUPRA no pós-golpe, e revogou grande parte dos decretos concedidos à ela.

“Art. 1º Ficam excluídas dos efeitos expropriatórios do Decreto nº

53.404, de 13 de janeiro de 1964, as áreas descritas nas alíneas „a‟ e „b‟ do §

1º, do art. 1º do mencionado decreto;

Art. 2º O IBRA - Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, deverá

promover a execução das medidas necessárias à salvaguarda dos interesses

da União perante o Juízo da Vara da Fazenda Pública, em Niterói, no Estado

do Rio de Janeiro. ”53

Mesmo não tendo conseguido comprovar a propriedade total das terras envolvidas

na querela judicial anterior ao decreto de desapropriação de janeiro de 1964, a principal

fazenda atingida pela desapropriação, a Fazenda São José da Boa Morte, pertencente a

Agrobrasil Empreendimentos Rurais S/A, retoma as terras mediante acordo com o Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), datado de 17 de março de 1975.

53

Decreto número 60.807, de 2 de junho de 1967

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- 55 -

Capítulo 4 – O conflito sob a ótica militar

“A fim de que este possa cumpri a missão de restaurar

no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as

urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão

comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não

só na cúpula do Governo como nas suas dependências

administrativas”.

(Ato Institucional Número Um)

Os acusados

O processo de número 7.477, relativo às disputas de terra nos últimos meses do ano

de 1963, no Município de Cachoeiras de Macacu, foi aberto em 7 de abril de 1969. Tendo

por base um primeiro Inquérito Policial Militar (IPM) iniciado em 26 de julho de 1964,

pelo Departamento de Polícia Social da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio

de Janeiro.

O primeiro inquérito apresentou denúncia, em 14 de novembro de 1966, contra 45

indiciados acusados de envolvimento na „invasão‟ da Fazenda São José da Boa Morte,

reivindicada pela Agrobrasil S/A. No entanto, a concessão de habeas-corpus pelo Superior

Tribunal Militar, determinado a exclusão de Cleber Viana Fontes, com a alegação de

inépcia da denúncia, acabou estendendo o beneficio ao restante dos acusados. O processo

foi interrompido, ficando o Ministério Público responsável por reapresentar a acusação no

futuro.

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- 56 -

Daqueles 45 acusados em 1966, 16 foram excluídos do processo reapresentado em

1969, restando apenas 29 acusados. Vamos fazer aqui um levantamento desses acusados, a

partir dos autos de qualificação. Muito embora o processo não tenha uma relação nominal

com todos os participantes da „invasão‟, ao todo aproximadamente 500 famílias, mas

apenas daqueles que foram denunciados, traçaremos um perfil geral destes acusados, a fim

de perceber a lógica da acusação militar e as prioridades tomadas nessa situação.

Dentre os 16 denunciados que constam no processo de julho de 1964, e que são

acusados em novembro de 1966, conseguimos dados mais detalhados de 15, excetuando-se

o acusado Antonio Enedino. Os dados relacionados são: profissão, naturalidade, residência,

estado civil, etc.

Uma questão relevante é a da área de residência, onde 8 dos 15 acusados residem na

sede do município, Cachoeiras de Macacu e de ocupação urbana. Sendo cinco deles

pertencentes à categoria dos ferroviários, um vereador, um carteiro e um funcionário

público ligado ao Ministério da Agricultura (e que havia exercido a função de delegado de

polícia, à época do conflito).

Essa distribuição dos acusados nos faz perceber que o Inquérito aberto em julho de

1964, não por acaso, poucos meses após o início do governo militar, tende a ampliar ao

máximo os horizontes da investigação. Procurando abarcar na investigação, pessoas das

mais variadas camadas sociais, muitas delas, que não tinham nenhuma ligação direta com

os eventos de Boa Morte.

A exclusão destes acusados, supostamente, envolvidos nos conflitos de Boa Morte

nos leva a crer que a situação do Judiciário em 1966 ainda era de certa autonomia. O golpe

ainda não havia criado os mecanismos para barrar as brechas em que, anteriormente, os

acusados poderiam recorrer, como o habeas-corpus, ausente no pós-AI5. Soma-se aí o fato

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- 57 -

de um desses acusados, o Josafá Lima, ter sido delegado de polícia, fato que o dá, além de

credibilidade frente às autoridades militares, a chance de influenciar o andamento das

investigações.

De todo modo, um novo processo é aberto em 7 de abril de 1969, agora com 29 dos

45 denunciados no primeiro momento. Tendo por base as informações coletadas

anteriormente, esse novo Inquérito contava com uma substancial diferença, o AI5 havia

eliminado muitas das liberdades e dos direitos, nas palavras do historiador Daniel Aarão:

“O novo ato conferia poderes ao General-presidente para decretar o

estado de sitio, dissolver câmaras legislativas em todos os níveis, intervir no

judiciário e nas unidades da federação, suspender os direitos políticos e

cassar mandatos legislativos, demitir ou aposentar (ou reformar)

funcionários civis e militares. O habeas-corpus foi suspenso e a Lei de

Segurança Nacional ganhou formidável amplitude... ” 54

Para o nosso caso especifico fica patente a necessidade militar de acabar com

qualquer sombra da autonomia judiciária.

Novamente a acusação é feita levando em consideração os mais diversos setores,

onde, segundo o denunciante (representante do Ministério Público Militar) afirma que os

eventos que se desenrolaram em Cachoeiras de Macacu em novembro/dezembro de 1963

tinham como base o tripé: Prefeitura Municipal, Sindicato dos Ferroviários e Sindicato dos

Lavradores de Cachoeiras de Macacu, que organizavam um grupo armado de lavradores e

semeavam o caos na região.

54

REIS FILHO, 1987, p. 196.

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- 58 -

Segundo consta na denúncia, mais de 500 lavradores invadiram, saquearam,

sacrificaram animais e devastaram as plantações da fazenda de propriedade da Agrobrasil

S/A “numa demonstração do instinto perverso dos invasores”55

.

Nos relatos que se seguem, muitos indivíduos que são apontados como grileiros

pelos lavradores aparecem como colonos da Agrobrasil. A titularidade das terras da

Agrobrasil também não é, em momento algum, alvo de dúvida nos autos do processo.

Os lavradores aparecem ainda como sendo „gente sem escrúpulos‟, capazes de

submeter a todo tipo de constrangimento aqueles que se opõem aos seus objetivos. A

violência passa a ser uma exclusividade dos lavradores, nenhum capanga da Agrobrasil é

mencionado, e quando o é, aparece como colono. A área ocupada toma contornos de um

„campo de concentração‟, onde os lavradores se distribuem em pelotões, com sentinelas e

senhas para acesso.

Também fica claro, a partir da leitura dos processos que há uma tentativa de

caracterizar as terras da Agrobrasil como áreas cultas e produtivas, principalmente quando

dão a lista dos prejuízos ocasionados pelas „invasões‟: o sacrifício de animais, queima das

plantações, destruição de casas e maquinários, todos pertencentes a Agrobrasil.

Essa evidência é importante, levando em conta que, segundo alegam os lavradores

despejados, as terras reivindicadas estavam, há anos, incultas. Sendo o argumento da não

produtividade, um importante motivo para a exigência da desapropriação.

A discussão que se trava a respeito da produtividade da terra é mais complexa do

que aparenta, pois engloba concepções distintas de aproveitamento do solo. Há aqui uma

contraposição entre a típica lavoura de alimentos, muitas vezes ligada à pequena produção

familiar; e a pecuária extensiva, normalmente vinculada ao grande proprietário.

55

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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- 59 -

A expansão da criação de animais, assim como da produção de frutas, reduz a área

disponível para o plantio de alimentos, reduzindo também a possibilidade do próprio

lavrador de reproduzir suas condições de vida. Não obstante, a criação de gado, muitas

vezes serve de fachada para a especulação imobiliária, onde a terra é mantida „produtiva‟,

mas com o mínimo de mão-de-obra possível.

Voltando aos acusados pelo IPM, no segundo momento, o processo aberto em 1969,

são mantidos 29 dos 45 acusados inicialmente. Percebemos dentro do inquérito uma

preocupação em vasculhar e classificar minuciosamente cada um destes que foram

acusados de envolvimento com o conflito de terras em 1963 – 64.

No que diz respeito à ocupação profissional destes acusados, podemos perceber que,

dentre os 29 acusados, 19 trabalhavam como lavrador (muito embora alguns deles já

haviam exercido outras atividades antes).

A maior parte destes tinham residência no Núcleo Colonial de Papucaia,

constatação que está de acordo com a versão camponesa, na qual havia uma

superpopulação no Núcleo. E que, as denúncias de grilagem da Agrobrasil em terras que

haviam pertencido ao INIC motivou o protesto e a resistência promovida pelos camponeses

para permanecer (ou adquirir) com a posse das terras.

No que concerne à origem destes lavradores, 14 deles são naturais do Estado do Rio

de Janeiro, e 4 tinham como origem estados diversos, sendo: um do Maranhão, um do Rio

Grande do Norte, um de Minas Gerais e um da Paraíba. Este lavrador paraibano, Alfredo

Barbosa, era natural do Município de Sapé, local conhecido como berço das ligas

camponesas, porém não há indícios de nenhuma militância prévia.

O restante dos acusados foram qualificados pelo IPM nas seguintes profissões: três

ferroviários, todos eles membros do Sindicato de Cachoeiras; dois Motoristas; um

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- 60 -

comerciante; um advogado que trabalhava para a FALERJ; um professor e vereador eleito

pela UDN em 1962; um economista e funcionário público; e um técnico em topografia e

prefeito de Cachoeiras.

Ao que consta nos relatórios encontrados no IPM, este ultimo mencionado, o

prefeito de Cachoeiras de Macacu, Ubirajara Muniz, sempre aparece como o grande

articulador das „invasões‟ de novembro de 1963. Segundo os dados descritos, mesmo sua

eleição ao executivo municipal foi marcada pela realização de inúmeros comícios em zonas

rurais, sempre com o discurso da reforma agrária e da distribuição de terras, pela exibição

em praça pública de filmes de propaganda cubana e pela intervenção junto a SUPRA, a fim

de atender às demandas camponesas. Como aparece no relatório do Departamento de

Polícia Social, anexado ao IPM:

“Ontem houve um comício em Papucaia, onde fez parte vários

correligionários do PTB, fazendo uso da palavra, Ubirajara Muniz que em

viva voz alertava aos trabalhadores, contra os gorilas e latifundiários e que

iria a Pernambuco ter entendimento com Miguel Arraes, Governador Leonel

Brizola para conseguir maquinas e sementes para os lavradores da região, e

que se eleito for a reforma agrária no Município, será realizada nem que seja

à bala, estando disposto a lutar contra as autoridades corrompidas, que vêm

furtando os direitos dos lavradores”56

Ao que parece, nos meses que antecedem a ocupação de novembro de 1963,

Ubirajara e seus aliados teriam realizado uma série de reuniões no Núcleo Papucaia,

visando preparar a mobilização. E o inquérito prossegue, em relatório datado de

24/08/1964:

56

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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“Tão logo iniciamos as tomadas de depoimentos, não se pode ter

qualquer dúvida que o nome UBIRAJARA MUNIZ, ex-prefeito municipal

de Cachoeiras de Macacu, seria o elemento preponderante no que diz

respeito a subversão da ordem, pois sempre se fazia presente em todo e

qualquer movimento dessa natureza. Valendo-se de sua autoridade e de seu

prestígio político, conseguia arrebanhar com a maior felicidade inúmeros

adeptos. Tinha ele como „lugares-tenentes‟ as seguintes pessoas: ANÉZIO

DIAS FREITAS, ALÍCIDIO SALVADOR, ANTONIO JORGE XAVIER,

LUIZ BASILIO AGUIAR, ADÃO CLEMENTE e JOÃO NUNES DA

SILVA, no campo”57

Dois dos nomes citados como „lugares-tenentes‟ de Ubirajara também se

sobressaem no inquérito, são Anézio Dias de Freitas e Alicídio Salvador, respectivamente

presidente e secretário do Sindicato dos Lavradores de Cachoeiras de Macacu.

Responsáveis, segundo o inquérito, por arregimentar e mobilizar os camponeses, além da

culpa pelos abusos cometidos contra os „colonos‟ e as propriedades da Agrobrasil.

Há no inquérito a informação de que Anézio Dias de Freitas era filiado ao PCB,

tendo inclusive, viajado à União Soviética na condição de militante. Segundo os relatos,

Anézio fugiu de Cachoeiras no dia 1 de abril de 1964, em uma ambulância da prefeitura,

cedida por Ubirajara Muniz.

Ao que consta nos periódicos consultados, a figura de Anézio é muito pouco

mencionada (o que não ocorre no IPM), já Alicídio Salvador, secretário do Sindicato,

aparece como o grande articulador das „invasões‟, no inquérito, é acusado de dar aulas de

guerrilha e de fazer parte do tribunal revolucionário que condenou à morte o administrador

da Agrobrasil, Marino Monteiro.

Em seguida o IPM relaciona os demais vinte e seis acusados, fazendo um resumo

sobre o tipo de atuação dos acusados nos conflitos de 1963. O que percebemos é que no

geral as acusações seguem uma fórmula que se repete, acusando lavradores e membros do

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APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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sindicato dos ferroviários. Há ainda a acusação de invasão e saque de alguns

estabelecimentos comerciais que se localizavam próximos às áreas de conflito, como

descrito nos relatos de „invasão‟, feito por proprietários de três armazéns (São José, Popular

e Horito), aparentemente os lavradores estavam em busca de gêneros alimentícios para

manter a ocupação.

Uma evidência surpreendente é que o inquérito tem um certo pudor em caracterizar

estes lavradores com a alcunha de „comunista‟, apesar do movimento ter sido extensamente

caracterizado como comunista pelo processo. Parece haver uma dificuldade destes militares

enxergarem os lavradores como possuidores de uma ideologia política, considerando-os

„ignorantes‟.

Esse possível preconceito não ocorre quando o IPM se refere ao advogado do

Sindicato dos Lavradores de Cachoeiras, Anderson Fontes. Pelo contrário, Anderson, a

exemplo do Ubirajara, acusado de ser um dos „cabeças‟ por trás dos acontecimentos,

principalmente por comparecer diariamente na região do conflito, com a intenção de

orientar os ocupantes.

Curiosamente, em nenhum momento o IPM reconhece a necessidade de um

advogado entre os lavradores, não percebem essas visitas diárias como uma obrigação

profissional, mesmo sabendo de todas as ações movidas pela Agrobrasil na justiça contra os

ocupantes. E dessa maneira era descrita a sua participação em Boa Morte:

“Quando teve notícia que os invasores seriam despejados por ordem

judicial, dirigiu-se à eles, em inflamado discurso, dizendo que iria,

juntamente com o Ubirajara Muniz, ao Presidente da SUPRA, tratar a

respeito da desapropriação da Fazenda São José, o que, não representando

nenhuma surpresa na época, logrou êxito.”58

58

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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O depoimento das testemunhas

Após mapear os acusados pelo IPM e evidenciar aqueles que foram denominados,

pelos próprios militares, como os supostos líderes, passaremos para o segundo momento do

processo. O recolhimento de depoimentos de testemunhas com finalidade de montar a peça

de acusação.

Consta no processo um total de dezenove testemunhas, entre numerárias e

informantes. Quatro delas são mencionadas naquela primeira listagem de acusados (que

tinha quarenta e cinco nomes) e foram retirados da segunda.

Primeiro vamos dar um panorama geral para as testemunhas urbanas, para depois

citar e ver de maneira mais minuciosa os depoimentos prestados pelos lavradores na

qualidade de testemunhas.

Quatro testemunhas são funcionários da Estrada de Ferro Leopoldina, sendo três de

cargos de chefia e um que havia sido retirado da primeira lista de acusados As questões

apresentadas a eles vêm no sentido de avaliar o grau de relação entre o Sindicato dos

Ferroviários de Cachoeiras de Macacu com o Executivo Municipal e o Sindicato dos

Lavradores, além de esclarecer quais as influências dos „subversivos‟ no conjunto dos

ferroviários.

Uma dessas testemunhas incluídas na primeira listagem de acusados é Henrique

Mourão, cujo depoimento garante que a sua inclusão naquela lista se deve a uma confusão.

No momento dos conflitos, exercia a função de sub-delegado de Papucaia, estando presente

na ocupação para resolver algumas questões sob ordem as SUPRA.

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Outra testemunha interrogada é João Lyra, industrial, dono de uma gráfica no centro

de Cachoeiras de Macacu, a única da cidade, diga-se de passagem. O seu relato visa

esclarecer um episódio muito específico, a impressão e distribuição de um panfleto de

caráter „subversivo‟, cuja autoria é relegada a Adino Lota, professor e vereador, acusado no

inquérito. João Lyra acusa Adino Lota de pagar pelos serviços de impressão, mas no

decorrer do depoimento transfere a culpa para Ubirajara Muniz. Apesar da imprecisão do

depoimento, voltaremos a ele mais tarde, quando tratarmos dos acusados, inclusive do

vereador Adino Lota.

Os depoimentos seguintes nos parecem mais importantes para a acusação, pois

conta com o testemunho de lavradores. Estes são relatos cruciais, vários dos depoentes em

questão estiveram nas áreas de litígio durante todo o tempo das ocupações. Um depoimento

que vale a pena ser citado, por servir de base para inúmeras acusações e descrever a

violência das ocupações, é o de Antonio Vargas, lavrador:

“Declarou que por sugestão de Ubirajara Muniz, as terras que

deveriam ser invadidas, seriam as pertencentes à Agrobrasil, visto que,

segundo Ubirajara, ofereciam as melhores condições aos lavradores; que no

dia que não pode precisar do mês de novembro do citado ano de 1963,

achava-se o declarante dormindo em sua casa existente num dos lotes do

INIC (Núcleo Papucaia), quando, cerca de duas horas da madrugada, João

Nunes, que se fazia acompanhar de outros desconhecidos do declarante,

todos que pareciam ser lavradores, ali chegou dizendo que acabava de ser

invadida a Agrobrasil e que ele, João Nunes, fora à casa do declarante a fim

de buscá-lo para ir também se localizar na Agrobrasil e fazer parte do

pessoal invasor; que João Nunes portava uma winchester calibre „44‟ e os

demais portavam revolveres e espingardas; que o declarante, face as ameaças

de João Nunes, foi obrigado a acompanhá-los, ou melhor, à rumar a frente

do mesmo, com as mãos para trás, enquanto João Nunes e os demais

seguiam atrás do declarante; que João Nunes foi passando nas casas de

outros lavradores, procedendo da mesma maneira como procedeu com o

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declarante e mais cerca de cinqüenta lavradores que se viram obrigados a

atender a João Nunes e de seus comandados;” 59

Segundo os relatos de Antonio Vargas, a escolha da área a ser „invadida‟ foi feita

por Ubirajara, assim como as motivações para a escolha, sendo um local que oferecia aos

lavradores as melhores condições. Tal motivação nos permite perceber que havia uma

proposta de permanência, após a superação do primeiro confronto.

A descrição de como os „invasores‟ cooptavam outros lavradores para engrossar as

fileiras está em consonância com a tese militar de que a coerção era a forma usada para

manter a ocupação. O depoimento prossegue com grande riqueza de detalhes e informações

sobre os dezoito dias em que esteve nas terras ocupadas na Fazenda São José da Boa Morte:

“Disse que durante o período de cerca de dezoito dias em que

permaneceu junto aos invasores da Agrobrasil, o declarante viu, por diversas

vezes, a chegada de armas e munições, as quais eram trazidas por pessoas de

fora da cidade e de categorias sociais as mais diversas, inclusive o Deputado

Afonso Celso, que teve seu mandato cassado na Assembléia Legislativa do

Estado do Rio de Janeiro; que o declarante pode esclarecer que havia

instrução militar em Agrobrasil e inclusive treinamento de guerrilha; que

diversos chineses foram colaborar no ensinamento das guerrilhas, os quais,

segundo o declarante veio saber, teriam vindo do Rio de Janeiro; que nas

instruções de guerrilha, ensinavam inclusive o fabrico de bombas molotov,

ataque a punhal e luta corpo a corpo, bom como passar um dia sem comer

nem beber;”60

O decorrer do depoimento lista uma série de fatos que teriam acontecido no curto

prazo de dezoito dias de ocupação da fazenda São José: destruição de lavouras, sacrifício

de animais, espancamentos, suborno mediante a filiação no PCB, treinamento de guerrilha

ministrado por chineses, etc.

59

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873. 60

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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No que diz respeito à ocupação das terras e a procedência da testemunha anterior, o

depoimento de João Azeredo nos será particularmente caro:

“Disse que chegou no Município de Cachoeiras de Macacu no ano de

1955, vindo do Estado do Espírito Santo e passando a trabalhar na Fazenda

São José; que nessa época toda a terra dessa Fazenda era composta por matas

e matagal, não havendo plantações nem criações; que cerca de três anos após

assumiu o cargo de administrador do plantio da Fazenda o senhor Antonio

Crisóstomo Vargas; que o declarante começou a trabalhar na Fazenda mais

ou menos na mesma época em que o senhor Marino Monteiro de Barros

passou a administrar a Fazenda; que mais ou menos em 1961, o

administrador de plantio, Antonio Vargas, fixou-se num lote do Núcleo

Papucaia, terras essas que fazem rumo com a Fazenda São José; que as terras

visadas para a invasão sempre foram as terras da Agrobrasil, ou seja,a

fazenda São José, visto que Ubirajara Muniz e Alicídio Salvador propalavam

a invasão das mesmas; que as primeiras terras atingidas pelas invasões foram

as pertencentes a Agrobrasil, denominadas „Fazendinha‟, que também fazem

divisas com o INIC; que depois das invasões da Fazendinha, as atingidas

foram as da Fazenda São José, também de propriedade da Agrobrasil; que a

invasão da Fazenda São José ocorreu precisamente no dia 5 de novembro de

1963; que, nessa época, era o declarante o responsável pela citada Fazenda

São José;”61

Um dos dados importantes contidos neste depoimento é o momento em que o

declarante chega a Cachoeiras, 1955, e segundo ele, já existe a Fazenda São José, mas

afirma que não havia ali „plantações nem criações‟, tratando-se apenas de matas e matagais.

João Azeredo declara ainda conhecer Antonio Vargas, o mesmo que prestou as declarações

que foram citadas a pouco, e que o mesmo Antonio era administrador de plantio da

Agrobrasil e que havia trabalhado para a empresa até 1961, momento em que consegue um

lote no Núcleo Colonial de Papucaia. As declarações de João Azeredo não dão o mesmo

61

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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retrato de violência descrito por Antonio Vargas, mas ele mantém informação sobre a

veiculação de propaganda soviética e cubana.

Outro testemunho nos será importante, o de Marino Monteiro de Barros,

administrador da Agrobrasil Empreendimentos Rurais S/A. Este depoimento reveste-se de

especial significado, dado o número de acusações feitas pelos „posseiros‟ contra o

administrador, sendo amplamente incriminado pela grilagem das terras do Núcleo Colonial

e pela expulsão dos lavradores. Declarou no dia 3 de agosto de 1964:

“declarou que: quando lá chegou, passou a administrar as fazendas do

doutor Adalberto Correa; que falecendo o doutor Adalberto Correa, em mil

novecentos e cinqüenta e quatro, a Agrobrasil adquiriu do espólio as

fazendas de São José, Carmo e Fazendinha, situadas nos Municípios de

Itaboraí e Cachoeiras de Macacu; que nessa ocasião,as Fazendas de São José

e Fazendinha eram despovoadas, todas em mata e sem meios de

comunicação, pois não havia estradas; que a Fazenda do Carmo, naquela

época, era a única que tinha plantações e criações de gado, sendo esta

localizada parte em Itaboraí e parte no 2° distrito de Cachoeiras de Macacu;

que somente em 1957 começou a Agrobrasil a se dedicar a plantação de

pastagens e cereais; que a época da primeira invasão, verificada no ano de

1958, a Fazenda São José já tinha bastante pasto, como também plantações

de mandioca, milho, arroz, plantações estas que já tinham originado até

colheitas; que lideraram esta invasão os indivíduos Alicídio Salvador, Itamar

Silva, João Nunes, os quais tivera, cobertura do então Governador do Estado,

doutor Roberto Silveira e apoio da polícia militar do Estado, em sinal do

incentivo ao Plano Agrário do Estado do Rio de Janeiro, criado por este

Governador...; que em princípios de novembro do ano passado a firma

Agrobrasil teve sua propriedade de nome Fazendinha invadida pelos

conhecidos agitadores do Município: Alfredo Nunes da Silva, João Nunes,

Ione Nunes da Silva e José Nunes da Silva, que tiveram ampla cobertura por

parte do ex prefeito Ubirajara Muniz, do delegado local Josafá Lima, pelos

representantes da Delegacia Sindical dos Ferroviários de Cachoeiras de

Macacu e pelo Sindicato dos Pequenos Lavradores Autônomos do Município

de Cachoeiras de Macacu, que era presidido por Anézio Dias de Freitas; que

imediatamente foi requerido ao Juiz desta comarca, medida judicial, como

sendo reintegração de posse, o que por sentença foi concedido; que essa

medida não chegou a ser cumprida em Fazendinha; o mesmo se verificar na

Fazenda São José da Boa Morte, pertencente a mesma firma, que teve suas

terras invadidas por mais de quinhentas pessoas...; foi dado cumprimento ao

mandato de despejo, o que se verificou „in totum‟, tendo esse pelotão da

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policia militar do Estado permanecido durante uns trinta, quarenta dias, a fim

de oferecer a devida garantia ao patrimônio da citada Fazenda; que o ex

prefeito Ubirajara Muniz vendo da impossibilidade dos invasores retornarem

àquela localidade, em virtude do reforço policial que ali se encontrava,

conseguiu três ou quatro ônibus, lotando-os e conduzindo-os ao Estado da

Guanabara, no Palácio das Laranjeiras, a fim de pleitear junto ao Governo

Federal a desapropriação das ditas terras, o que, aliás, conseguiu, sendo, aí,

retirado o contingente da polícia militar e retomando os invasores as suas

antigas posições, até o dia trinta e um de março , data do movimento

revolucionário, quando em debandada se retiraram da Fazenda;”62

Este depoimento é muito informativo, primeiro o administrador nos dá a informação

de estar naquela Fazenda desde o período em que Adalberto Correa era seu proprietário,

vale lembrar que o Adalberto já foi mencionado no capítulo anterior, como um dos

beneficiados pelas obras de saneamento da baixada, sua proximidade com Getúlio Vargas

lhe garantiu informações preciosas sobre as terras que seriam (e foram) beneficiadas pelas

obras, facilitando a aquisição das terras e a espera pela valorização futura.

Afirma ainda que quando as fazendas foram compradas pela Agrobrasil do espólio

de Adalberto, em 1954, suas terras eram desocupadas e incultas, com exceção da Fazenda

do Carmo. Informação relevante é também a da primeira invasão das terras da Agrobrasil,

que teria acontecido em 1958, e que contaria com o apoio do Plano de Execução Agrária do

Governo Estadual.

No mais podemos perceber que o tom calmo das declarações não ameniza a situação

dos acusados, muito pelo contrário, são citados no depoimento os envolvidos Ubirajara

Muniz, Alicídio Salvador, Anézio de Freitas e, posteriormente, Cleber e Anderson Fontes.

Ao Ubirajara é creditada ainda a organização do comboio que acampou nos jardins do

Palácio das Laranjeiras, situação que complica ainda mais a vida do ex-prefeito.

62

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Os trechos de depoimentos que foram citados têm uma característica fundamental

em comum, todos eles eram funcionários da Agrobrasil, mesmo o Antonio Vargas que não

cita essa relação com a Agrobrasil em seus depoimentos. A escolha dessas testemunhas é

importantes para entender a estrutura da acusação, boa parte da peça é montada a partir das

declarações de Antonio Vargas, cuja continuidade do depoimento, que não foi citado na

íntegra, revela inúmeras violências praticadas pelos lavradores, e reproduzida no decorrer

do processo em várias ocasiões.

O depoimento dos acusados

Deixemos um pouco a ordem em que os depoimentos se conformam no inquérito,

para evidenciar um ou outro ponto de depoimentos específicos. O primeiro depoimento que

relataremos aqui é daquele, que segundo o IPM, figurou constantemente entre os principais

acusados pelas constantes agitações no Município, o prefeito de Cachoeiras de Macacu.

Aos vinte dias de junho, do ano de mil novecentos e sessenta e quatro, Ubirajara Muniz,

interrogado pelo delegado Mauro Fernando de Magalhães, e prestou o seguinte termo de

declaração:

“respondeu que: ingressou na política no ano de mil novecentos e

cinqüenta,pelo partido social progressista, no Município de Cachoeiras de

Macacu por intermédio do senhor Símaco de Almeida, que nesta época o

depoente exercia a função de agrimensor (topografo) do Departamento

Nacional de Estradas e Rodagens e tinha sido designado para o Município de

Cachoeiras de Macacu; que pertencia a mesma linha política do senhor

Símaco, uma vez que apoiava o mesmo candidato; que o depoente exerceu

de cinqüenta em diante os seguintes cargos políticos: Presidente do PSP

Cachoeiras, Delegado de Polícia designado pelo Governador Roberto

Silveira, Presidente do PTB Cachoeiras, Candidato a Prefeito derrotado nas

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- 70 -

eleições de cinqüenta e oito e Prefeito eleito pelo PTB nas eleições de

sessenta e dois;”63

Nesse ponto, o interrogatório segue a dar os antecedentes do acusado, desde a sua

inserção na política os cargos ocupados. O depoimento segue ainda esclarecendo onde o

depoente prestou o serviço militar, em quais Estados esteve e quantas vezes esteve em

viagem para fora do país.

A primeira referência importante é à ocupação de 1961, quando menciona conhecer

o Mariano Beser, em trecho do depoimento já citado no capítulo três desta monografia, mas

garante não manter relações e apoio ao Beser.

Além de relatar o não-apoio ao Beser, Ubirajara, delega a responsabilidade do

conflito de 1963 ao Sindicato dos Lavradores de Cachoeiras de Macacu, se ausentando de

qualquer comprometimento que pudesse ir além da sua jurisdição Prefeito.

“que a partir dessa data [episódios de 1961] o depoente ativou ainda

amais suas atividades políticas, uma vez que era candidato pelo PTB, ao

cargo de prefeito, realizando uma serie de comícios em toda a zona rural;

que o depoente só teve notícias de duas invasões de terras em Cachoeiras de

Macacu, ambas na Fazenda São José da Boa Morte; que o depoente sempre

interferia para evitar atritos entre policiais e camponeses, mas nunca partiu,

do depoente, as idéias das invasões; que o depoente sempre deu preferência a

ficar do lado dos camponeses, ficando assim, obrigatoriamente, em oposição

a ação policial e judicial; que, o depoente sabe que a primeira invasão foi

encabeçada por Mariano Beser, no ano de mil novecentos e sessenta e um e a

segunda liderada pelo Sindicato Ruralista do Município que tinha como

presidente Anézio de Freitas e como secretário Alicídio Salvador e como

tesoureiro Severino de Tal; que o depoente não sabe se tais invasões eram

planejadas;”64

63

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873. 64

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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Para desviar das possíveis acusações, Ubirajara diz não saber se as „invasões‟ eram

planejadas e aponta os líderes dos movimentos anteriores. Sobre a participação destes

outros acusados, o depoimento prossegue da seguinte maneira:

“que conhece Anézio de Freitas desde que ingressou para a política

sabendo de que o mesmo é comunista confesso e atuante; que é do

conhecimento do depoente que Anézio esteve na Rússia, não sabendo a

finalidade; que o depoente chegou a receber um cartão postal da cidade de

Praga, de Anézio, porém, não manteve outra qualquer correspondência; que

o depoente não pode afirmar que na residência de Anézio de Freitas exista

reuniões do Partido Comunista; que o depoente atendeu, como prefeito, a

várias solicitações de Anézio; que o depoente e Anézio, mantinham laços de

amizade; que o depoente era contrário às idéias políticas de Anézio,pois o

mesmo era um homem de nível cultural bem inferior; que o depoente

conhece o cidadão Cleber Fontes como corretor naquele município e

simpatizante da ideologia comunista sendo irmão do doutor Anderson

Fontes, advogado do Sindicato Ruralista e comunista confesso; que as

relações do depoente com os irmãos Fonte, era boa sendo inclusive, o

depoente, intermediário entre os camponeses que se julgavam prejudicados

em seus direitos e o Doutor Anderson Fontes; que o depoente declara que o

encaminhamento dos camponeses para o Doutor Fontes eram para fins

jurídicos; que não é do seu conhecimento serem Cleber Fontes e Anézio de

Freitas, integrantes do „grupo dos onze‟; que declara conhecer bastante

Josafá dos Santos de Pontes Lima, sabendo não ser, o mesmo comunista

mas sim secretario do PTB no Município de Cachoeiras de Macacu, tendo

sido delegado de policia no mesmo Município e tam,bem administrador do

Núcleo Colonial de Papucaia; que o declarante declara conhecer muito,

Alicídio Salvador,sendo inclusive um grande inimigo do depoente; que, sabe

o depoente, que Alicídio Salvador é tido como elemento perigoso, agitador

comunista pregador da revolução camponesa no Município de Cachoeiras;

que o depoente teve conhecimento de que Alicídio desejava ver o depoente

morto por motivo de ser Alicídio político aproveitador não realizando a sua

devida missão dentro do plano agrário; que o depoente afirma ser de suas

relações de amizade, José Cabral o qual possui um sitio na localidade

denominada „Boa Água‟; que o depoente era ajudado politicamente por José

Cabral; que o depoente geralmente visitava José Cabral, em seu sítio,em

Água Boa, em companhia de amigos como por exemplo Charles Neto;que o

depoente declara ser ponto de reunião de políticos, o bar denominado „Bar

Naby‟, no centro da cidade; que o depoente afirma que no Município de

Cachoeiras de Macacu não existia em parte alguma, estoque de armamento

destinado á subversão da ordem pública; que o depoente declara ter

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- 72 -

conhecido Enedir Gonçalves, mantendo boas relações de amizade e política

sabendo ser o mesmo, simpatizante comunista.”65

Ubirajara revela uma ampla gama de comunistas, desde confessos até os

simpatizantes, complicando a vida de alguns deles.

Comecemos pelo Anézio, presidente do Sindicato dos Lavradores, é citado por

Ubirajara como „comunista confesso e atuante‟, cuja discordância política consiste no

„nível cultural bem inferior‟ de Anézio, fato curioso, pois ao observar a documentação dos

Autos de Busca e Apreensão, foi encontrado na casa de Anézio um acervo bibliográfico,

quantitativamente e qualitativamente, muito mais amplo do que fora encontrado na casa do

prefeito, além das provas sobre uma recente viagem a Rússia e planos de uma viagem a

Cuba.

Os irmãos Cleber e Anderson Fontes, também são relacionados, por Ubirajara, à

ideologia comunista, mas é negado o envolvimento deles com o „grupo dos onze‟,

afirmando que a relação com o Anderson e com os camponeses se dava dentro dos limites

profissionais e sempre sobre assuntos judiciais.

Ao citar Josafá Lima, acusado de omissão pelos administradores da Agrobrasil,

Ubirajara procura retirar dele a rotulação de comunista, informando que o mesmo era

petebista. O desligamento do PTB aos ideais comunistas favoreceria também o próprio

prefeito.

O relato sobre Alicídio Salvador nos importa pela forma cujas características são

descritas pelo declarante, primeiro por Alicídio ser seu inimigo, um „elemento perigoso,

agitador comunista pregador da revolução camponesa‟ e desejar, inclusive, a sua morte,

dando uma proporção das querelas que se instalaram entre os dois. É importante ressaltar,

65

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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que em diversos outros depoimentos, como das testemunhas Antonio Vargas e João

Azeredo, Ubirajara e Alicídio aparecem como amigos, e que haviam realizado alguns

comícios juntos para a eleição de 1962, quando o primeiro concorria ao cargo de prefeito e

o segundo, de vereador.

José Cabral não parece ser, pelos militares, digno de grandes menções, a aparição

deste nome, na verdade, se limita a este depoimento. Apesar de ser uma figura facilmente

encontrada nas reportagens do Jornal Ultima Hora.

Outro depoimento que nos traz particular interesse é o do ex-delegado de polícia de

Cachoeiras de Macacu, Josafá Lima, acusado de omitir informações sobre as „invasões‟ e

atrasar o andamento do processo na época. Suas declarações nos chamam a atenção por

dois motivos: primeiro, por ser um ex-delegado, trata-se de um indivíduo acostumado com

interrogatórios e com os procedimentos de manipulação e sugestionamento inerentes ao

recolhimento dos depoimentos; segundo, Josafá, nos esclarece diversos pontos que

passaram à vista dos outros indiciados.

“que por ocasião da invasão às terras da Fazenda São José, em

novembro do findo, na mesma data, o declarante veio a saber que a mesma

fora levada a efeito, sendo a comunicação feita por José Vitorino dos santos,

mais conhecido como José Tiano, residente em São José da Boa Morte, nas

proximidades da citada fazenda; que em virtude de haver o mencionado

Auxiliar de Polícia esclarecido os invasores em cerca de hum mil, e não

contando, o declarante, com qualquer recurso na Delegacia Municipal,

imediatamente levou o fato ao conhecimento do Gabinete do Secretário de

Segurança Pública, ao que o declarante saiba, não tomou qualquer

providencia, que no dia seguinte da invasão, foi procurado o declarante pelo

promotor público do Município, doutor Roberto Sanches, determinando a

abertura do Inquérito Policial para apurar os fatos referentes a invasão; que o

declarante em companhia do referido promotor, foi as terras invadidas,

sendo ambos recebidos por um grupo de invasores aos quais desconhecia;

que foi esta a única vez que esteve em São José, no momento das invasões;

que viu cerca de trezentos camponeses ao redor do escritório da Fazenda, e

não mil homens, conforme José Tiano lhe dissera; que não viu qualquer dos

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- 74 -

invasores portando armas, assim como também não viu qualquer arma na

citada Fazenda São José; que a Fazenda São José permaneceu invadida cerca

de dezoito dias, quando foi procedido o despejo dos invasores; que em

fevereiro, conforme já declarou, licenciou-se do cargo de Delegado,

passando-o ao primeiro suplente, para ir ao Ceará, em virtude do falecimento

do seu pai, havendo retornado em princípio de março, quando foi nomeado

administrador do Núcleo Colonial de Papucaia, permanecendo nesse cargo

até o dia trinta e um de março, quando da eclosão do movimento

revolucionário; disse que Ubirajara Muniz nunca teve influência sobre a

Delegacia de Cachoeiras e que sempre deu conhecimento as autoridades

superiores da Secretaria de Segurança Pública de todos os fatos que não

pudessem ser reprimidos pela polícia local”.66

As declarações prestadas por Josafá em agosto de 1964, esclarecem informações

sobre a quantidade de „invasores‟ e a posse de armamento por estes.

Versão que é corroborada pelo depoimento dos ferroviários, que afirmam não haver

ocorrido nenhuma greve em solidariedade aos lavradores, e que a solidariedade se resumia

a recolher e distribuir alimentos na área ocupada. Nesse caso, nenhum dos depoimentos faz

uma acusação clara a qualquer dos participantes, nem acrescenta qualquer novidade ao

processo.

Entre o depoimento dos lavradores acusados, a maior parte diz ter sido alvo de

coerção e que foram coagidos a engrossar as fileiras da subversão, permanecendo „presos‟

nos dezoito dias em que durou a ocupação.

Cabe-nos, enquanto observadores, refletir e questionar, até que ponto era possível

um reduzido número de quinze ou vinte líderes manterem sob seu julgo cerca de trezentas

famílias camponesas67

, além de controlar os constantes ataques realizados por jagunços e

funcionários da Agrobrasil. Até que ponto, não foram estes camponeses sugestionados a

reproduzir isto em seus depoimentos? Até que ponto estes depoimentos não foram

66

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873. 67

Dependendo das fontes, o número de lavradores varia, desde trezentas famílias, podendo chegar ao número

de mais dois mil lavradores, informação amplamente veiculada por diversos jornais.

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- 75 -

manipulados para servir exatamente aos ideais da repressão? Responder a estas questões é

uma tarefa de veras ingrata, não sendo possível para além do plano da mera especulação.

No entanto, o depoimento da família Silva, pode nos servir para um melhor

entendimento dessas questões. Um dos lavradores mais mencionados no IPM e

supostamente um integrante dos partidários de Alicídio é João Nunes da Silva, mas também

seu pai e irmão (Alfredo Nunes da Silva e José Nunes da Silva). Ao que consta, todos eram

moradores do Núcleo Papucaia e interessados em resolver o problema da escassez de terras

para o plantio, reafirmando a tese de saturação do Núcleo. Vamos reproduzir um trecho do

depoimento de José Nunes, pela particularidade de não ser alguém envolvido diretamente

na „invasão‟.

“declarou que em meados do ano de mil novecentos e sessenta e um,

o declarante e seu pai, Alfredo Nunes da Silva, passaram a residir em terras

do INIC, situadas em Papucaia, distrito de Cachoeiras de Macacu,

procedentes do Município de Bom Jesus do Itabapoana; que cerca de três

meses depois, passaram a morar com o declarante e seu pai, seus irmãos

João Nunes da Silva e sua irmão, Ione Nunes da Silva; que no ano próximo

passado, passou a residir no INIC também, com o declarante e seus

familiares, seu primo Joair Nunes; que a principio moravam em um casebre

de palha e, posteriormente, construíram duas casas; que cerca de três meses

antes da invasão ás terras da Fazenda São José, o declarante ausentou-se do

INIC, indo ajudar na lavoura um cunhado seu em Bom Jesus; que retornou á

sua terra no INIC em janeiro do ano em curso; que nessa ocasião, veio a

saber que as terras invadidas já haviam sido desapropriadas pelo Governo

Federal; que o declarante e seu irmão, João Nunes, forma procurados por

Anézio Freitas e Alicídio Salvador, os quais informaram que já haviam

reservado os lotes do declarante e de João nas terras desapropriadas; que

dois dias ante do movimento revolucionário, passou a roçar seu lote na

Fazenda São José; que nunca presenciou agitação de subversão da ordem

pública nas terras do INIC, na Fazenda São José; que desconhece o que

ocorreu nas terras da Fazenda São José, por ocasião da invasão e durante a

mesma;que não conhece qualquer ferroviário que trabalhe em Cachoeiras de

Macacu.”68

68

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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O interessante neste depoimento é o fato de ser um indiciado que nada teve de direto

com o movimento, trata-se de alguém que nem mesmo estava no Município durante o

momento da ocupação. Entretanto, isso não impede de ser citado e acusado no corpo do

processo, talvez pelo fato de estar incluído entre aqueles que receberam um lote na Fazenda

desapropriada.

De início, José retrata a gradual chegada da família ao INIC, primeiro ele e o pai,

depois de conquistar maior estabilidade, a chegada dos outros irmãos e de um primo.

Parece ser este o caminho trilhado por muitas famílias. A existência do Núcleo agia como

um chamariz, que atraía àqueles que sonhavam com a possibilidade de poder cultivar a

própria terra. José afirma também que, após a obtenção do decreto de desapropriação do

Governo Federal em janeiro de 1964, os lavradores começaram a preparar as suas terras

para o plantio.

João Nunes da Silva, irmão de José Nunes, citado no depoimento, aparece como um

dos principais responsáveis pela „invasão‟, em seu relato afirma que aderiu à „invasão‟ por

convite de Alicídio Salvador, e que passou a exercer uma função de fiscal, evitando brigas

entre os lavradores, assim como ingestão de bebidas alcoólicas, e nega qualquer tipo de

depredação do patrimônio da Agrobrasil, saques, ou maltrato a animais.

Por ultimo vamos analisar o depoimento de um caso bem específico, o vereador

Adino Lota, eleito em 1962 pela UDN. A especificidade do caso vem justamente pela

orientação ideológica de Adino, membro do partido que fora base de apoio para o Golpe

Militar de 1964. A peculiaridade está na argumentação desenvolvida, pelo discurso que visa

legitimar a intervenção militar.

Sua inclusão no IPM se deve a possível autoria de um panfleto tido, pelos militares,

como altamente subversivo. Sua justificativa é a de que, por tratar-se de um panfleto da

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Comissão de Energia Elétrica, da qual fazia parte, sua tarefa era custear as despesas

gráficas do panfleto, que segundo ele, não teve a sua participação na elaboração do texto.

A ênfase dada pelas autoridades ao simples panfleto fez com que Adino fosse

forçado a reunir uma ampla gama de declarações, que comprovariam o seu afastamento de

qualquer atividade subversiva. É essa documentação complementar o alvo de um olhar

mais apurado, pois ela mostra a consonância de Adino com os ideais repressivos.

A documentação apresenta atestados e certidões dos mais diversos: entre

declarações do promotor de justiça da Comarca de Cachoeiras, de Diretores de colégios

onde havia trabalhado, do chefe da Seção de Cinema da Embaixada Americana, do

Presidente do Diretório Municipal de Cachoeiras de Macacu da Aliança Renovadora

Nacional (ARENA), do Presidente da Câmara Municipal, do pároco local, uma série de

autoridades que poderiam certificar que Adino Lota era um „cidadão perfeitamente

entrosado com os ideais democráticos da Revolução de 1964‟69

.

Além disso, outra documentação, encontrada na Câmara Municipal de Cachoeiras,

sobre a cassação do Prefeito Ubirajara Muniz, em dois de abril de 1962. Mostra a atuação

de Adino Lota, na qualidade de Vereador e 1° secretário da referida sessão extraordinária,

para a cassação do Prefeito Ubirajara Muniz e de outros dois Vereadores, a saber, José

Custodio de Souza (cujo nome consta entre os 16 denunciados que são posteriormente

retirados do processo) e Ayram Ribeiro Fernandes, todos cassados sob a justificativa de

terem realizado atos atentatórios aos preceitos democráticos e cristãos.70

69

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873. 70

Câmara Municipal de Cachoeiras de Macacu. Processo n° 18.061, p. 18.

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Toda a defesa de Adino é feita a partir da explicitação de sua atuação enquanto

braço da repressão e da perseguição política a que estava sujeito, lançada por seus inimigos,

com a finalidade de incriminá-lo sem provas.

A sentença

No decorrer do processo, uma série de documentos é anexada para viabilizar a culpa

daqueles que foram acusado, estes documentos são dos mais variados, como: material

fotográfico, laudos de perícia para comprovar a depredação da Fazenda e o treinamento de

guerrilha, fichas policiais dos acusados (antecedentes criminais); documentos que são

amplamente utilizados pelo judiciário.

Estes documentos nos dão uma noção de como o IPM interferiu radicalmente no

cotidiano dos indiciados e de seus familiares. Se considerarmos a atmosfera opressiva que

se instaurou com o golpe, marcado principalmente pelo desrespeito aos direitos humanos,

percebemos que inúmeras foram as limitações enfrentadas pela defesa. A situação ainda é

agravada pelo teor político das acusações, de um modo que a maioria dos indicados são

acusados de forma arbitrária, sem provas cabais do envolvimento, submetidos à constante

averiguação, à prisões não justificadas, torturas, etc. Muitos daqueles que estavam no

serviço público foram demitidos pelo Ato Institucional n° 1 (AI1), políticos foram

cassados.

Apesar da ampla gama de acusados no total do processo, contemplando os mais

diversos grupos sociais, a dinâmica do IPM privilegiou a argumentação de acusação

daqueles tidos como „profissionais da subversão‟, ou seja, aqueles cujos antecedentes de

agitação já eram patentes, principalmente os líderes sindicais e políticos.

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Na Ficha de Referência Policial de Anézio de Freitas, constam inúmeras prisões por

subversão. A primeira prisão em Cachoeiras é do ano de 1956, efetuada por „agitações

comunistas‟. Essa é uma pista importante, que nos remete à hipótese de que as

reivindicações pela terra em Cachoeiras de Macacu vão bem além da apresentada pelo IPM,

na qual a „invasão‟ de 1963 foi uma agitação causada por um pequeno grupo de

„subversivos profissionais, mas aparenta ter raízes históricas muito mais profundas.

Quando o processo é reaberto em 1969, tendo por base o arquivo do ano de 1964, a

velha tese dos militares é antecipada, prenunciando o caminho a ser tomado no decorrer da

acusação:

“Agitadores profissionais, alguns já conhecidos, outros, até então não

participantes de movimentos subversivos da ordem pública, se

acumpliciaram para transformar o pacato e ordeiro Município de Cachoeiras

de Macacu num foco de revolta e valhacouto de inescrupulosos políticos que

ali se estabeleceram e se firmaram zombando das autoridades constituídas.

Ocorrências semelhantes tiveram como palco outros municípios do

Estado, nos mesmos moldes que originou o presente inquérito.

Infere-se na leitura dos autos que os elementos mais perigosos

constituem minoria dos indiciados, pois conseguiram fazer proselitismo e

impor suas idéias subversivas a gente humilde e pobre que não possue uma

gleba para plantar.”71

O delegado encarregado pelo processo associa o evento ocorrido em Cachoeiras de

Macacu com casos semelhantes em vários municípios do Estado, enquadrando a

mobilização em São José num contexto mais amplo de luta pela terra no Estado do Rio de

Janeiro. Essa associação termina por aí, não é feito nenhum esforço especial em

caracterizar o delicado quadro fundiário em que o Estado estava emerso, mas sim atribuir a

responsabilidade aos „inescrupulosos políticos‟.

71

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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Percebemos também a confirmação de que não havia terra para plantio, porém isso

não serve para sensibilizar e de certo modo, justificar a luta pela terra. Serve, ao contrário,

para explicar a manipulação de „gente humilde e pobre‟, por aqueles que pregavam o

reformismo petebista. Atualização do secular discurso preconceituoso acerca do „caipira

ignorante‟ que é facilmente manipulável.

A insistência em por armas nas mãos dos lavradores e o desrespeito à propriedade

privada somam-se, configurando uma clara oposição aos preceitos constitucionais, um

crime contra a Lei de Segurança Nacional. O relatório relaciona Ubirajara enquanto o

„único e verdadeiro líder de Cachoeiras de Macacu‟, o pedido de prisão preventiva é feito,

sem muita surpresa, para deter vários dos acusados.

Nas petições anexadas pelos acusados há uma busca por mostrar as contradições e

os abusos cometidos pelo processo. Em petição realizada pelo advogado de Anézio de

Freitas, que requeria a exclusão deste e de outros acusados sob a alegação de „coisa

julgada‟, baseia-se no anterior julgamento de Anézio, Alicídio, Antonio Xavier e Epifânio

Guilhermo pelo IPM da SUPRA, realizado pelo Conselho Permanente de Justiça da 2°

Auditoria da Aeronáutica, cuja sentença foi anexada ao IPM de Cachoeiras:

“Trata-se o presente processo de uma ação penal iniciada contra 38

indivíduos,acusados de colocarem em risco a Segurança Nacional, face a

agitação promovida nos campos, na área sob ação da SUPRA. O referido

IPM apesar de volumoso, destaca-se apenas pela prolixidade e falta de

objetividade, já que, no afã de conseguir o maior número possível de provas

ou mesmo de indícios contra o maior número de pessoas, criou um

verdadeiro clima de confusão, não conseguindo a final, nenhuma prova

contra nenhum dos indiciados (...) Assim, considerando o que acima se

expôs e mais o que dos autos consta, resolve o Conselho Permanente de

Justiça da 2° Auditoria da Aeronáutica, Absolver todos os acusados, das

imputações feitas na denúncia por absoluta falta de provas.”72

72

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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O texto declara, de forma muito clara, não haver nenhum tipo concreto de provas

contra nenhum dos acusados. A ausência de objetividade e prolixidade abalam de forma

irremediável a formulação de uma sentença de culpa aos acusado. O texto da Aeronáutica

segue os mesmos moldes do que já havíamos visto: a manipulação inescrupulosa de pobres

lavradores por autoridades demagógicas ligadas ao governo petebista destituído pela

revolução democrática.

Em outra petição, três acusados de saque, juntaram ao processo uma certidão da

Associação Industrial Comercial e Agro-pastoril de Cachoeiras de Macacu, que afirmava

desconhecer qualquer tentativa de saque na cidade, no período entre 1960 e 1966.

Anderson Fontes, advogado do Sindicato dos Lavradores, conhecedor dos meandros

judiciais, também juntou ao processo uma série de documentos, entre eles: registro na

OAB-RJ, cópia da carteira de advogado, certidões do Cartório de Cachoeiras de Macacu,

atestando o exercício legal de advocacia no período 1962/1963, contrato de locação de

serviços entre Anderson Fontes e a Federação das Associações de Lavradores do Estado do

Rio de Janeiro (FALERJ).

Os documentos apresentados visam comprovar, oficialmente o porque das

freqüentes visitas do advogado à área litigiosa, ou seja, a obrigação profissional assumida

quando foi contratado pela FALERJ.

Apesar das contradições citadas, o Ministério Público alega, em 16 de outubro de

1970, que espera e pede a condenação de todos os acusados nas sanções dos artigos em que

se viram denunciados.

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No dia 25 de novembro, é dada a sentença final do IPM. Na fala dos advogados de

defesa, percebemos a incorporação da lógica militar, na assimilação do discurso

preconceituoso, visando beneficiar a maior parte dos acusados:

“Os ilustres advogados afirmaram, em síntese, que seus defendentes

à época das ocorrências descritas na denúncia, em 1963, foram também

envolvidos pelo clima de desordem que imperava ao fim do Governo João

Goulart, quando as próprias autoridades governamentais incentivavam os

movimentos reivindicatórios populares, autênticos ou não, assim, a

credibilidade e a ignorância de pequenos funcionários e camponeses,

principalmente dos residentes no interior do país.

Considerando com exceção do então Prefeito da cidade de

Cachoeiras de Macacu, Ubirajara Muniz e de dois outros acusados – um

advogado e um vereador – os demais acusados não possuía capacidade

intelectual e meios materiais para planejarem. Promoverem e executarem a

invasão de propriedades privadas, com o fim de atentarem contra a

Segurança do Estado, como parte de um plano global de implantação da

República Sindicalista preconizada por João Goulart e seus seguidores.”73

Ao que foi exposto pela sentença, o tribunal acatou a defesa daqueles que já haviam

sido anteriormente absolvidos pelo IPM da SUPRA (Anézio de Freitas, Alicídio Salvador,

Antonio Xavier e Epifânio Gilhermo), além de atestar a inocência daqueles que não

poderiam ser incriminados por, nas palavras do IPM, falta de capacidade intelectual e

material. A responsabilidade pela organização das ações é delegada a três únicos

indivíduos: Ubirajara Muniz, Anderson Fontes e Adino Lota;

Adino Lota, vereador eleito em 1962 pela UDN, cujo caso já foi devidamente

analisado, foi retirado dos autos, após apresentação de inúmeros documentos, atestando sua

boa conduta e fidelidade aos preceitos da „revolução democrática de 1964‟.

73

APERJ, Fundo Polícias Políticas no Rio de Janeiro. Prontuário 20.873.

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Anderson Fontes, advogado da FALERJ e do Sindicato, é inocentado. O tribunal

recebe seus argumentos de que a sua participação em Boa Morte se limitou à assessoria

jurídica, obrigação profissional do mesmo.

A sentença volta-se para um único indivíduo, Ubirajara, caminho apontado desde o

início, pela constante citação de seu nome nos mais diversos depoimentos. Fora do país, em

exílio, Ubirajara não cumpre os três anos de prisão ao qual é condenado em 1970, pedindo,

em 1977, através de seu advogado, a prescrição da pena, sob a alegação que já havia

decorrido um tempo superior ao dobro da pena, pedido que foi atendido.

Dessa forma se encerra o Inquérito Policial Militar, fonte imprescindível para o

estudo sobre os eventos ocorridos em Cachoeiras de Macacu, a documentação que nos

possibilitou a inserção de inúmeros elementos para a compreensão das relações e dos

olhares que se moldam sobre o campo. Mesmo tendo em mente os problemas e limites

impostos por uma documentação formulada no seio da repressão, com a clara intenção de

desacreditar as mobilizações que se conformam no período pré-64, e que reivindicam as

„Reformas de Base‟.

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- 84 -

Considerações Finais

Edward Palmer Thompson, em seu clássico estudo sobre o processo histórico de

formação da classe trabalhadora inglesa acaba enumerando alguns dos fatores essenciais ao

processo e que nos serve de referência para iniciar a reflexão sobre a formação da classe em

outras conjunturas.74

Como já foi dito antes, Thompson nos indica que a classe passa: primeiro por um

momento de conscientização, ou seja, toma consciência de que existe uma identidade de

interesses em comum (identidade que se define a partir da contraposição dos interesses de

outra classe); segundo por uma ampliação das formas de organização política (sindicatos,

sociedades de auxílio mútuo, movimentos educacionais, periódicos, etc.) e enfatiza que a

formação da classe é tanto um fato da história econômica como da história política e

cultural.

Assim sendo, o processo particular da integração da economia brasileira às

transformações do capitalismo internacional nas primeiras décadas do século XX, além da

transição interna da mão-de-obra escrava para o trabalho livre assalariado, foram dois

fenômenos que, aliados às mudanças produtivas da expansão do capitalismo no campo

acabaram por gerar o contexto sócio-econômico necessário ao „fazer-se‟ da classe

campesina.

74

THOMPSON, 1987.

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- 85 -

A luta pela terra em Cachoeiras de Macacu entre os anos de 1960 – 64 enriquece

uma discussão acerca das intervenções dos elementos urbanos dentro do universo rural. A

relação destes agentes, e as diferentes postura no plano das concepções e das ações políticas

marcam os eventos, redefinindo, em diversos casos, a identidade do agrupamento social

que luta pela posse da terra.

É importante acrescentar que a experiência urbana de alguns dos elementos

envolvidos, inclusive com a militância partidária e a liderança do Sindicato, tende a afinar

estes indivíduos com setores à esquerda na conjuntura pré-64, ou seja, o ideário estava

intimamente ligado ao conceito de revolução, de forma mais ou menos radical, do modelo

capitalista dominante.

Atentar para o quadro conjuntural do Brasil pré-64 também é um fator importante

dentro da investigação. Como uma marca do período, o desenvolvimento das tensões

sociais, a própria discussão da reforma agrária que extrapola os limites do congresso

nacional, se apresentando com um impressionante vigor nos discursos da presidência e dos

movimentos sociais. O argumento da necessidade de uma brusca mudança no perfil

fundiário do Brasil surge como resposta às expectativas de melhorias na distribuição de

renda.

Por outro lado, ainda há o problema das lideranças e do verdadeiro papel destas na

mobilização dos lavradores. Os noticiários jornalísticos nos dão uma boa imagem da

mobilização. Deixando um pouco de lado os periódicos mais progressistas, e atentando o

olhar para os periódicos mais liberais, é possível perceber a tentativa de denegrir as

reivindicações camponesas.

Mesmo entendendo tais periódicos como porta-vozes da lógica liberal, é perceptível

que a postura coloca em evidência a possibilidade da manipulação dos camponeses, tal qual

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toda a retórica do IPM. Essa manipulação se dá, ora pelos setores conservadores, ora pelos

progressistas.

Freqüentemente essa manipulação é retratada na imprensa conservadora, com a

nítida necessidade em culpar os „políticos inescrupulosos‟ de se aproveitar da ignorância e

da miséria dos lavradores com fins meramente eleitoreiros. Como se a mobilização e a luta

pela terra tivesse a mera finalidade de recriar uma nova versão do „voto de cabresto‟, desse

modo, os „políticos demagogos‟ saíam das cidades para buscar o apoio do camponês,

colocando-o contra o „coronel‟ que o havia expulsado. O objetivo desses políticos, aliados

de João Goulart e simpáticos às reformas, seria o de incorporar à sua clientela tradicional

um vasto e inexplorado eleitorado, o lavrador fluminense.

Novo e velho, moderno e arcaico;mais uma vez seremos norteados pelas reflexões

acerca desta dicotomia. Trabalhar com os discursos produzidos para se referir ao camponês,

este foi nosso ponto central.

Seja na produção acadêmica, onde tantas leituras se apoiaram na máxima do „saco

de batatas‟75

de Marx. O camponês ficava fadado à condição de classe acessória, quando

não, em vias de extinção. Por vezes, tido como incapaz de produzir uma cultura política,

uma consciência de classes.

Ou nos jornais liberais, que ainda hoje noticiam as „invasões‟ do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a coisa não era diferente. O camponês teria sido

tratado como massa de manobra daqueles que, na falta de escrúpulos, recorriam aos

artifícios possíveis para utilizar aqueles que estavam abandonados à própria sorte, o pobre

lavrador que nada tinha a perder.

75

MARX, 1997.

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Linguagem em total consonância com que pudemos ver no IPM, cujos acusados

foram aqueles que tinham condições intelectuais e materiais suficientes para planejar,

mobilizar e, por que não, manipular os camponeses.

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