mendonÇa, fernando de. a modernidade em diálogo - o fluir das artes em Água viva
DESCRIPTION
Tese de Mestrado da Universidade Federal de Pernambuco, na área de literatura e cinema. Clarice Lispector e a modernidade em sua obra Água viva.TRANSCRIPT
-
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAO
PS-GRADUAO EM LETRAS E LINGSTICA MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA
FERNANDO DE MENDONA
A MODERNIDADE EM DILOGO: o fluir das artes em gua Viva
RECIFE 2009
-
8
FERNANDO DE MENDONA
A MODERNIDADE EM DILOGO: o fluir das artes em gua Viva
Dissertao de Mestrado apresentada no Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingustica da UFPE, com linha de pesquisa em Intersemiose, para obteno do grau de Mestre em Teoria da Literatura.
Orientadora: Prof Dr MARIA DO CARMO NINO
RECIFE 2009
-
9
Mendona, Fernando de
A modernidade em dilogo: o fluir das artes em gua Viva / Fernando de Mendona Recife: O Autor, 2009.
137 folhas: il., fig.
Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Letras/Teoria da Literatura, 2009.
Inclui bibliografia. 1. Literatura comparada. 2. Semitica e as artes. 3.
Lispector, Clarice (1920-1977). 4. Arte moderna sc. XX. 5. Msica sc. XX. 6. Schoenberg, Arnold (1874-1951). 7. Pintura. 8. Arte abstrata. 9. Pollock, Jackson (1912-1956). 10. Cinema. 11. Resnais, Alain (1922- (cineasta). 12. Robbe-Grillet, Alain (1922-2008)- (roteirista). I. Ttulo. 82.091 CDU (2.ed.) UFPE
809 CDD (21.ed.) CAC2010-01
-
10
-
11
In Memorian prof Maria da Piedade de S, que descansou seus dias no meio de minha jornada,
mas enxergou o resultado deste trabalho muito alm de meus olhos revelando ser este percurso apenas um abrir de porta, em espera pelo futuro. Em mim, como o prprio livro gua Viva, Piedade jamais encontrar um fim...
-
12
AGRADECIMENTOS
Ao meu amado Deus, razo maior de minha existncia, por ter me permitido
chegar at aqui, dando-me esse sonho to lindo, hoje realizado. Em cada porta
aberta, desde o incio do curso, a Sua mo foi presente, fiel, concedendo-me a fora
e a disposio para enfrentar todos os obstculos. Sem o Senhor eu no teria
conseguido. Por mais que digam que os mritos so meus, Paizinho, eu sei muito
bem quem Tu s em minha vida e o que fazes por mim. Obrigado por seu amor.
minha me, Elisama (Temo), e minha av, Nomia, razes que Deus
tambm me deu para motivar a vida. Por aguentarem essa correria intelectual, que
eu sei, difcil de ser entendida, por isso agradeo tanto. Essa vitria tambm de
vocs! E vou avisando: a jornada ainda no acabou! Amo vocs!
Universidade Federal de Pernambuco, especialmente ao Programa de Ps-
Graduao em Letras e Lingustica e todo o quadro de funcionrios que o compem,
desde a Coordenadora Prof ngela Dionsio, como o corpo docente, passando
pelos queridos Jozaas e Diva, e incluindo todos os bolsistas sempre to atenciosos,
seja no prprio Departamento, no Laboratrio ou na Sala de Leitura, onde tambm
lembro o carinho da bibliotecria Paula e seus excelentes auxiliares.
CAPES, pelo apoio financeiro concedido no decorrer do curso, o qual me
permitiu dedicar-me exclusivamente a essa pesquisa e conclu-la em tempo hbil.
Prof Maria do Carmo Nino, que muito mais do que uma Orientadora, foi a
amiga que acreditou e compartilhou toda a minha paixo nesse percurso. Voc
bno em minha vida! O aviso tambm fica pra voc: isso s o comeo...
Prof Ermelinda Ferreira, pelas imprescindveis recomendaes durante a
Pr-Banca, mas principalmente por toda a paixo pela arte e ensino. s contagiante!
Ao Prof Fbio Andrade, que acompanhou a fecundao dessa pesquisa, h 5
anos atrs. Quem imaginava que eu chegaria aqui?
Prof Ceclia Nazar, da UFMG, pela excepcional ateno e contribuio ao
domnio musical de minha pesquisa. Suas correes foram fundamentais!
A todos os demais que me acompanharam nesses ltimos meses: familiares
e parentes, amigos do Mestrado, amigos da Graduao, da Igreja, do Dissenso,
vizinhos do Alfa, amigos distantes e prximos, reais e virtuais, e claro, minha
turma querida... Nheeem!
Amo vocs!!! Deus nos abenoe!
-
13
No, nunca fui moderna. Clarice Lispector
gua Viva
-
14
RESUMO
Constatar o dilogo entre as artes como uma prtica corrente na Modernidade foi o ponto de partida para a abordagem deste trabalho a respeito de gua Viva (1973), livro de Clarice Lispector que alm de exacerbar o peculiar estilo da escritora, representa por sua linguagem os principais interesses artsticos manifestados durante o sculo XX. Na identificao de recursos que servem como ponto de contato entre o objeto literrio e outras linguagens artsticas, foram encontradas caractersticas que aproximam gua Viva do imaginrio de outras formas de expresso, a saber: msica, pintura e cinema. O dilogo, baseado numa postura intersemitica de anlise, estabelece-se na msica, com a obra do compositor Arnold Schoenberg, atravs dos princpios do Dodecafonismo; na pintura, pela obra de Jackson Pollock, atravs do conceito da Action Painting conquistado em sua fase Expressionista Abstrata; e no cinema, com o filme O Ano Passado em Marienbad (Alain Resnais & Alain Robbe-Grillet, 1961), pela aliana firmada com o estilo do Novo Romance Francs. A partir de uma perspectiva esttica comum a esse corpus, busca-se averiguar como a introspeco e a subjetividade modernas se revelam por meio de recursos formais caractersticos de cada linguagem.
Palavras-Chave: Clarice Lispector; gua Viva; Intersemiose; Modernidade; Sculo XX.
-
15
ABSTRACT
To acknowledge the dialogue between the arts as a current practice in Modernity was the starting point for the approach of the present study about gua Viva (1973), a novel by Clarice Lispector which not only exacerbates the authors peculiar style but also represents through its language the main artistic interests manifested during the XX century. By identifying the resources that serve as a contact point between the literary object and other artistic languages we found features that draw gua Viva close to the imaginary of other forms of expression such as music, painting and cinema. The dialogue based on an intersemiotic analytical approach is established in music with the work of composer Arnold Schoenberg and the principles of Dodecafonism; in painting with the work of Jackson Pollock and the Action Painting, technique achieved in his abstract expressionistic phase; and in the cinema with the film LAnne Dernire a Marienbad (Alain Resnais & Alain Robbe-Grillet, 1961) and the alliance with the style of the French Nouveau Roman. From an aesthetic perspective common to this corpus, we seek to evaluate how the modern introspection and subjectivity are revealed by the formal resources of each artistic language.
Keywords: Clarice Lispector; gua Viva; Intersemiosis; Modernity; XX century.
-
16
SUMRIO
INTRODUO (No um recado de idias...)...................................................................................8
1. gua Viva... Sons... Silncios... Schoenberg....................................................16
1.1. A Musicalidade dos sentidos.......................................................................18
1.2. Ecos Dodecafnicos.....................................................................................26
2. gua Viva... Cores... Gestos... Pollock..............................................................57
2.1. Literatura em Ao........................................................................................59
2.2. Figurando o Inominvel................................................................................71
3. gua Viva... Imagens... Palavras... Marienbad..................................................87
3.1. O Pensamento Cinematogrfico..................................................................89
3.2. Espelhos de Si e do Eu...............................................................................100
CONSIDERAES FINAIS (O que te escrevo continua...)...............................................................................129
REFERNCIAS........................................................................................................132
-
8
INTRODUO (No um recado de idias...)
No um recado de idias que te transmito e sim uma instintiva volpia daquilo que est escondido na natureza e que adivinho.
E esta uma festa de palavras. Escrevo em signos que so mais um gesto que voz.
/.../ Tenho uma voz. /.../ Deixo-me acontecer. gua Viva, Clarice Lispector1
A marcante impresso de introspectividade, presente nos pensamentos e nas
representaes desenvolvidas no sculo XX, na maneira como esse momento
histrico configurou a Modernidade, imprime um estilo muito particular em todas as
formas de criao artstica realizadas pelo homem, permitindo e sobressaindo em
diversas obras uma tnica que prima pelo subjetivo, ainda no esgotada na
avaliao e anlise praticadas pelos que refletem a arte. O que pode ser percebido,
nas criaes mais representativas desse perodo, uma dialtica entre a
experimentao e o mtodo sistemtico, pois, tudo que aparenta existir como
arbitrrio e intuitivo concretizado com a plena conscincia das finalidades e dos
efeitos provocados.
Autora de uma obra toda caracterizada com o que h de notavelmente
moderno em literatura, Clarice Lispector (1920-1977) assina um texto paradigmtico
no que concerne a essa voz subjetiva e pessoal, o aclamado gua Viva (1973).
Surgida quase um sculo aps os primeiros experimentos modernos europeus (anos
de 1880), a empreitada que Clarice desbrava nesse livro consegue sintetizar os
principais elementos definidores da arte moderna, alcanando, com esse exemplo,
uma inquestionvel ruptura aos principais recursos e padres utilizados dentro da
prosa literria, tanto no domnio formal (principal interesse aos modernos) quanto no
de contedo, tornando esta obra um romance de sntese no processo narracional
da autora (MARTINS, 1988, p. 21).
A tnue trama da obra impulsionada pelos pensamentos de uma
protagonista que resolve escrever ao amante no momento em que decide pintar um
1 Todas as transcries de gua Viva apresentadas no decorrer deste trabalho referem-se primeira edio do
livro, publicada em 1973, pela editora ArteNova.
-
9
quadro. Em seu discurso, ela se vale de conceitos e terminologias advindos de
outras artes alm da literatura, configurando um vocabulrio e um universo
intimamente ligados ao artstico. Ao invocar as funcionalidades de cada expresso
(literatura, pintura, msica, cinema, etc.), a narradora transmite uma inteno de
lapidao da linguagem, da palavra, como se por meio dela e, somente nela, j
fosse possvel o que seria supostamente especfico para cada suporte. Em gua
Viva um desaguar dos sentidos. Nele, no a dependncia a uma imitao de algo,
mas, sim, uma explorao do Logos enquanto potencialidade sensorial (sonora e
imagtica) que d a ver/ouvir/sentir o interno do texto e de sua linguagem em
direo ao catrtico. Centrar os eixos temticos, assim como os significados
possveis, convergindo-os pelo tratamento do Logos o meio que gua Viva dispe
para configurar valor narrativa moderna.
Objetivando analisar a introspeco modernista, quando particularmente
apresentada pela experimentao formal da linguagem, e, apoiando-nos no
imaginrio interartstico desenvolvido com nfase por Clarice Lispector, identificamos
em gua Viva uma sntese, uma representao significativa do pensamento
moderno em Arte. As possibilidades de dilogo com outras artes surgem a partir do
interesse escritural clariceano, configurando-se assim como possibilidades de leitura
da obra em si. Atravs disso, propomos o levantamento de um trip intersemitico,
constitudo por trs relaes em contato direto com gua Viva, cada uma atuando
em expresses artsticas distintas, com msica, pintura e cinema. A seguir,
discriminamos cada uma delas:
1) Relao com a Msica:
So inmeros os momentos em gua Viva que a narradora se apropria de
conceitos aparentemente significantes apenas dentro do discurso musical (adgio,
allegro, ria), incluindo as inmeras referncias a gneros especficos e seu
processo de criao/execuo (jazz, msica de cmara). Em todos eles, fica
evidente que a luta da personagem para com seu prprio texto, desenvolvendo e
ultrapassando as convenes do logos, restituindo-lhe a soberania atravs
justamente da experincia intersemitica.
Foi a partir da constatao terica, incluindo aquilo que pode ser percebido
atravs da simples audio musical, que encontramos o nome do compositor
-
10
austraco, Arnold Schoenberg (1874-1951), como o mais adequado para ecoar a
sensibilidade intersensorial presente no livro de Clarice. As ousadias formais do
compositor e suas intenes, diante do que executa e experimenta na linguagem
musical, marcadas por uma interminvel elaborao em busca do novo,
assemelham-se intimamente com o labor textual da autora, alm de expressarem
com suas tcnicas vrios dos anseios apresentados pela personagem central.
As curiosas relaes que o texto de Clarice traa com caractersticas do
domnio sonoro-musical, podem, com essa referncia, alcanar uma elucidao de
maior impacto, haja vista o grande nmero de elementos presentes na prpria
escrita da autora que remetem s tcnicas de criao e, principalmente,
intencionalidade do dodecafonismo, experincia musical desenvolvida a partir do
atonalismo livre por Schoenberg entre 1920 e 1936, j apontada por Olga de S
como um paralelo de gua Viva; suas palavras, atestam num comentrio especfico
a este livro: Uma escritura sem figura (o objeto), sem enredo. Um trao existencial,
uma escritura do sonho, um balbucio subterrneo que se coagula em palavras
soltas, deslizantes, num ritmo de msica dodecafnica. (S, 2004, p. 232).
No discutem-se aqui, dentro de um contexto metodolgico, meras aluses,
mas, analogias musicais, no sentido definido por H. A. Basilius (apud OLIVEIRA,
2002, p. 17): referncias a obras ou gneros musicais que conservam, na criao
literria, o complexo conativo-afetivo prprio da composio mencionada.
A caracterstica dodecafnica que mais nos interessa, inicialmente, reside na
quebra com os princpios harmnicos e meldicos, presentes na msica ocidental
dos ltimos sculos. O conceito de dissonncia, propositalmente no resolvido em
Schoenberg, existe, no como um simples ato de rebeldia tradio, mas, como
uma continuidade, por trabalhar sobre os princpios bsicos da mesma. Todo o
desenvolvimento de seus impulsos meldicos e harmnicos, pautados
intencionalmente na subverso dos padres, foi determinado por regras internas de
elaborao que s podem ser compreendidas se analisadas luz da teoria musical
da composio. A rigor e previamente, esclarecemos que o dodecafonismo
necessita de doze sons definidos para que se inicie uma composio. Diante da
seqncia (srie) determinante citada j no h espao para notas livres; todas
esto condicionadas umas s outras, acima da harmonia, da melodia, ou do ritmo,
coexistindo a todo o momento, sem possibilidade de reverso.
-
11
Assim, apesar da aparncia de informalidade criativa, num universo
rigorosamente estabelecido, em padres e em totalidade de obra, que se baseia a
desconstruo dodecafnica. Exatamente como na escrita de Clarice, onde so
necessrios todos os recursos sintagmticos utilizados para uma adequada
apreenso de sentido. Nossa aproximao de gua Viva com o pensamento
schoenbergiano observa o uso que ambos fazem dos elementos musicais em sua
negao, ou melhor, numa problematizao que anseia pelo inverso das coisas.
Dessa forma, as analogias feitas entre essas obras contribuiro para desvendar a
escrita da autora, impregnada do que contrrio aos padres narrativos
convencionais da prosa, assim como, perscrutar o esprito modernista, igualmente
preocupado em subverter os interesses formais da tradio na representao do
mundo contemporneo.
2) Relao com a Pintura:
O primeiro ponto de contato entre gua Viva e as artes plsticas salta aos
olhos pela ocupao da narradora: uma pintora. Dos aspectos visuais mais diretos
s intenes estticas, caractersticas da Modernidade, so quase incontveis os
momentos no livro que nos permitem levantar o norte-americano Jackson Pollock
(1912-1956) como o nome mais evidente a entrar em dilogo com a obra de Clarice,
em estreita convergncia de pensamentos e realizaes. Tal relao, foi aqui
impulsionada pela significativa contribuio encontrada no artigo de Amaury Leal
(1998), autor que j havia apontado as semelhanas entre o texto de Clarice e a
obra de Pollock, dentro de uma interseco plena no modo do fazer artstico, no
mais calcado em conceitos preestabelecidos, mas que se sedimentam, sobretudo,
no momento de elaborao do texto literrio ou do quadro (p. 53-55).
Em diversas passagens de seu texto, Clarice escreve como se estivesse
diante de um quadro de Pollock, recriando o estilo e imprimindo pela palavra escrita
os prprios movimentos do pintor (apesar de no cit-lo diretamente). A
convergncia das formas finais, em ambas as obras, deve ser observada no que
cada um intencionou fazer, em quais aparentes objetivos, texto e telas insistiram em
se concentrar; e se possvel discernir ambies artsticas afins, dentro do contexto
exterior a eles (geral), tambm no so poucos os elementos em dilogo no interior
de cada um (particular).
-
12
A fase urea de produo do pintor abriga as telas realizadas entre 1947 e
1951, perodo de experimentaes, responsvel pela criao do termo que
nominaria a vanguarda do Expressionismo Abstrato por parte de Harold
Rosenberg, entre 1951-52, assim como da expresso Action Painting (pintura em
ao), atribuda a Pollock pela maneira como ele pintava suas telas (destaque para
a utilizao do Dripping). A Action Painting est to fortemente vinculada ao
fazendo da tela que se torna difcil compreend-la sem ter em mente o momento
criativo do pintor, o instante de vida em que ele se debruou e registrou na matria
da tela a ao de seu corpo, o envolvimento de si prprio com a criao, a um ponto
em que se tornam indissociveis. Isso, porque a obra representante do
Expressionismo Abstrato acumula valor no s de objeto finalizado, mas de
acontecimento em andamento, como se na visualizao da mesma estivesse
disposta no somente uma representao do, e, pelo autor, mas, ele, nela se
apresentasse.
No por acaso que Clarice se debrua sobre uma prosa abstrata para o
desenvolvimento de seu livro. Ela, Pollock e muitos outros artistas, entenderam que
o discurso pautado pelo abstrato seria o mais apropriado para responder s
necessidades do homem nesse momento de sua histria. Muito mais do que negar
uma forma concreta de representao, os meios dispostos nas telas e no texto em
questo, revelam-se importantes em si mesmos, com significados independentes de
identificao, seno aquela que sua mera presena insinua. A subjetividade do autor
dilui-se na subjetividade do prprio objeto artstico. Evidencia-se assim o dilogo
entre os autores, atravs da (re)criao que objetiva capturar o movimento da ao,
o instante, que independe da noo convencional de tempo para ambicionar a
permanncia de um estado presente. E nesse tempo fragmentado, mais uma marca
da Modernidade.
3) Relao com o Cinema:
no mnimo espantoso que a faceta cinematogrfica oferecida por gua Viva
seja habitualmente relegada a um segundo plano de anlise, ou mesmo esquecida
por muitos, principalmente se considerarmos nesse gancho artstico utilizado pelo
livro, um dos mais importantes meios para desvendar o misterioso universo a
criado. verdade; so poucos os momentos em que Clarice dirige-se diretamente
-
13
ao discurso cinematogrfico, mas, em vrias passagens de sua obra, percebemos a
presena da imagem em movimento como um dos elementos da escritura. Por tudo
isso, propomos um relacionamento do imaginrio de Clarice com um exemplo prtico
advindo da prpria arte cinematogrfica.
Quebra dos valores narrativos, impossibilidade de um resumo eficaz; a mente
humana como ambientao, numa constante aparncia de sonho; forte uso de
repeties e monlogos interiores; fragmentao do mundo e do pensamento;
multiplicao dos nveis da realidade atravs do recurso especular; todas estas, so
apenas algumas das caractersticas que permitem uma relao direta entre gua
Viva e o filme O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais (1961), ambas as
obras voltadas para o que pode ser considerada a construo de uma arquitetura da
memria. Com roteiro de Alain Robbe-Grillet (1922-2008), um dos principais
expoentes do Novo Romance Francs (Nouveau Roman), o filme em questo
tambm lembrado na histria do cinema, como uma experincia limite que alia os
recursos visuais e sonoros, numa busca que no objetiva uma simples
representao narrativa, mas uma sensao de onrico, de quase abstrao formal.
Nossa aproximao entre as obras, valendo-se da interao que a prpria escrita
clariceana nutre com a escola literria francesa, encontra no estilo compartilhado por
Marienbad a melhor maneira de problematizar a imagem e a palavra, no interesse
cinematogrfico, dentro de um suporte literrio.
Se optamos por estabelecer a relao com o cinema tomando apenas um
filme por corpus, e no um movimento, ou, a Obra de um autor especfico, como nas
relaes anteriores, isso se justifica na devida proporo em que assim como gua
Viva para com a literatura, Marienbad tambm se erige numa criao sem
paralelos dentro do cinema. At mesmo na carreira de Resnais ou Robbe-Grillet no
encontramos semelhante intento ou resultado formal equivalente. Com isso,
arriscamos dizer que a base desta relao seja o ponto culminante da pesquisa
proposta, pois, aps o dilogo da literatura com a msica e a pintura (numa
sucesso que termina por abranger cronologicamente o sc. XX), o encontro final
com o discurso cinematogrfico proporcionar uma reflexo no apenas sobre o
perodo moderno, mas pautada na trajetria da necessidade artstica humana
atravs da multiplicidade de suportes de expresso.
-
14
Levantar o Estado da Arte a respeito da obra de Clarice Lispector , sem
dvida, um enorme trabalho. Isso, porque em pouco mais de meio sculo, a fortuna
crtica sobre a escritora tem se proliferado em incontveis estudos, a partir dos mais
diversos pontos de vista e intenes cientficas. Porm, inegvel que seu livro
gua Viva (1973) seja um dos menos revisados pelos leitores clariceanos, sendo
possvel afirmar que nele ainda existe um vazio crtico desafiador.
Deve ainda ser mencionado como primeiro responsvel pela inspirao da
presente pesquisa, o trabalho de Danilo Lbo (1999), que, ao identificar gua Viva
como uma obra de arte total [...] fundamentada no trip literatura pintura msica
(p. 125), permitiu um leque de abordagens mltiplas a ser completado pela relao
com o cinema. A recorrncia a artes no-narrativas, conduzida pela autora no
decorrer do livro, apresenta-se em coerente questionamento, ocupado pela habitual
desconstruo formal presente na arte moderna. Com isso, a necessidade de uma
comparao prtica dessa obra com outras artes, analisando no apenas os
aspectos tericos da Modernidade, como a inteno de Clarice na escrita desse
indecifrvel objeto, mostrou-se imperativa e urgente para o desenvolvimento da
crtica clariceana atualmente praticada. O dilogo de gua Viva com as
composies de Schoenberg e as pinturas de Pollock vem, inicialmente, concretizar
este estudo, desaguando na relao com o cinema, sob uma motivao maior.
Entre as abordagens que gua Viva j recebeu, podem ser encontrados
alguns breves comentrios que o relacionam de perto com exemplos em pintura e
msica, por serem formas frequentemente mencionadas na escritura. Porm, so
raros (para no dizer inexistentes) os estudos que apresentam uma ligao entre
gua Viva e a arte cinematogrfica; algo curioso, pois deve se considerar que, pela
ordem narrativa, o cinema a arte habitualmente trabalhada quando em relao
com a literatura. Constatar a carncia dessa abordagem e levantar as semelhanas
entre gua Viva e O Ano Passado em Marienbad, permite-nos localizar, nessa
relao especfica, uma contribuio indita para uma leitura da obra de Clarice.
Diante disso, trabalharemos o corpus institudo a partir da seguinte linha de
ao: a definio de pontos de ligao, em cada uma das trs relaes, ser
aplicada, tanto individualmente como em conjunto, identificando os elementos que
concorrem para a construo da linguagem e conseqente desconstruo
narrativa/formal, para que todos os objetos possam ser confrontados entre si e seus
pontos de dilogo sejam discriminados e analisados; tais procedimentos permitiro
-
15
constatar o desenvolvimento da subjetividade moderna e sua relao com a
tradio, verificando como se d a permanncia do elemento mtico nesse novo
universo esttico, contribuindo, enfim, com uma compreenso do esprito modernista
(sc. XX) e uma reflexo do ato criativo em arte, atravs da anlise intersemitica.
Importa salientar que a perspectiva intersemitica aqui adotada, longe de
pretender limitar seus objetos em conceitos rigorosos, busca, antes de tudo,
experimentar o livro de Clarice com uma postura flexvel, verdadeiramente pedida
pelo texto. Se nos dedicamos a esse tipo de leitura (intersemitico) porque
ouvimos o pedido do prprio livro e, como ele, no podemos nos render ao
desenvolvimento de um mero recado de idias. O estabelecimento dos dilogos,
voltado para o que Philippe Chardin (2004) elenca, numa temtica comparatista,
como estado de crena numa poca e sociedade concretas e presena ou
ausncia de consideraes formais, ser desenvolvido buscando interesses
comuns; poca, s sociedades e s formas Modernas.
Assim posto, a contribuio desta pesquisa rea da Intersemiose, sob os
princpios da perspectiva interartstica, preencher parte do que ainda no foi
observado nos objetos de estudo, valorizando tal tipo de abordagem como um
importante recurso para a compreenso e o desenvolvimento crtico de uma obra. O
estudo aqui iniciado levar no apenas ao que toca a especificidade de cada arte
estudada, ou de cada autor, ou, obra selecionada; muito mais, iluminar questes
que refletem uma poca, uma sociedade; questes ainda longe de serem
encerradas, pois, acima de tudo, questes que tocam o humano.
-
16
1 gua Viva... Sons... Silncios... Schoenberg
Os registros legados desde a Antiguidade esclarecem que nossa concepo
de sociedade ocidental baseia-se em alguns elementos comuns a todo o percurso
da histria humana. Fatores que se destacam na formao do homem do ocidente,
como a iniciativa poltica, a reflexo filosfica, a f religiosa, a manifestao artstica,
entre tantos outros, tambm marcam presena em todo e qualquer contexto
organizado pela vida racional. Com isso, bastante curioso observar como uma
prtica especfica, inserida atualmente quase apenas ao domnio da inquietao
artstica, j participou de tantos contextos de dilogo. Referimo-nos, exatamente, ao
lugar da msica.
J no perodo dos pr-socrticos, a prtica musical era realizada em unidade
com os jogos esportivos, os rituais espirituais e os questionamentos polticos e
filosficos ento disseminados e, no por acaso, toda a herana do fundamento
terico da msica ocidental se alicera na msica grega antiga, onde o lugar da
msica incidia diretamente na vida cotidiana da sociedade, refletindo muito daquele
contexto e influenciando ativamente o desenvolvimento histrico ento praticado.
Compreender tais prerrogativas revela-se essencial para esclarecermos um perodo
muito mais prximo de ns e que, talvez por essa pouca distncia, ainda se
apresente muito nublado.
O homem moderno, ao enfrentar a natural imposio das transformaes
histricas em sua maneira de viver e se organizar socialmente, tambm se valeu,
desde o princpio, da expresso artstica para a formao de sua nova conscincia e
posio diante do mundo e das coisas. Nesse sentido, e em prosseguimento
indisfarvel aos modelos da Antiguidade, a msica tambm veio encontrar lugar
privilegiado de atuao, gerando o que podem ser considerados os primeiros
questionamentos definitivamente modernos dentro de um discurso orientado pela
comunicao esttica.
Diversos tericos da Modernidade observaram nos conflitos que a msica, a
partir do tradicional conceito de tonalidade, fez vigorar na abertura do sculo XX (em
franco desenvolvimento desde o sculo anterior), um ponto de partida para todo o
empreendimento moderno de reflexo e expresso. Na obra Fundamentos
Racionais e Sociolgicos da Msica, publicada originalmente em 1921, o socilogo
Max Weber o primeiro a apontar a msica daquele perodo como um padro de
-
17
racionalizao a ser seguido no campo das artes, determinando os experimentos
sonoro-musicais ento iniciados como portadores de uma ontologia formal
agregadora do nascente esprito moderno. Ao levantar esse percurso terico
oferecido por Weber, o professor Vladimir Safatle constata:
A msica teria imposto, s outras artes, uma noo de modernidade e de racionalizao do material vinculada autonomizao da forma e de suas expectativas construtivas. Autonomia que teria se afirmado contra qualquer afinidade mimtica com processos e elementos extra-musicais. (SAFATLE, 2007, p. 80)
A autonomia da msica. No queremos nos limitar aqui a uma filiao
involuntria da corrente absolutista2 que polariza a atividade musical como uma
linguagem autnoma a qualquer contedo exterior. Pelo contrrio, quando nos
valemos das palavras do professor Vladimir, apoiamo-nos principalmente nessa
conscincia da msica quando, na relao com as outras artes, seja a de apenas
dialogar ou mesmo influenciar (termo que nos parece mais adequado do que impor)
o projeto artstico da Modernidade. Esse projeto, como veremos no decorrer de toda
a pesquisa, no se orientar por uma negao ao externo, ao alm da forma, mas
ir encontrar nessa mesma forma a possibilidade de uma problematizao do que
interior obra e seu criador, ambos sob a imposio de um contexto exterior.
sabido que desde a Antiguidade, e especialmente em Aristteles, h uma
associao cosmolgica na atividade musical e, com o decorrer dos tempos, essa
ligao, apesar de atenuada, no deixou de se desenvolver sob uma perspectiva
ainda metafsica, tambm relacionada interioridade humana. Rousseau e
Nietzsche, para ficarmos apenas em nomes mais evidentes, se debruaram sobre o
elemento musical compreendendo na exterioridade do som um dos contatos mais
ntimos e reveladores da subjetividade humana, e aqui tocamos de fato no
questionamento central pesquisado: a introspeco modernista e os aspectos
formais das linguagens artsticas desse perodo. Analisar o impulso proporcionado
pela msica do sculo XX nos parece, assim, a melhor maneira de trilhar os
primeiros passos do Modernismo, investigando a complexidade formal dos
interesses musicais luz de nosso objeto primeiro: o livro gua Viva.
2 Corrente esttico-filosfica oposta vertente referencialista da msica, que por sua vez relacionava o
significado musical a contedos no-musicais. Desenvolveu-se no debate entre os formalistas e os
expressionistas musicais. Sobre o conceito absolutista indicamos, de Leonard Meyer, Emotion and Meaning in
Music (1956).
-
18
1.1 A Musicalidade dos Sentidos
bom que o pensamento, quando adota a msica como objeto, preste ateno na literatura. O enigma desta ltima no ,
sem dvida, alheio ao paradoxo musical (...) Jean-Franois Lyotard
O dilogo entre msica e literatura j dono de um histrico com incontveis
precedentes. Tanto uma como outra arte j afetou ou se deixou afetar pela prxima,
enriquecendo a histria das artes com questionamentos que sempre visaram a
ultrapassar os limites de uma linguagem nica. O sculo XX participa nesse contexto
com valiosos exemplos oriundos do domnio musical pois, como vimos, essa foi uma
expresso paradigmtica para o universo artstico a envolvido. Com isso, nos
propomos a observar a utilizao que a escrita de Clarice Lispector faz da linguagem
musical, remetendo, comparando e percebendo a msica numa continuidade
incessante dentro de gua Viva, instaurando, atravs do dilogo entre as artes, um
dilogo entre os sentidos, fazendo ecoar a voz da prpria autora, que declara: Bem
sei que o que escrevo apenas um tom. (p. 33)
A respeito da msica e dos sentidos, debruamo-nos inicialmente nas
significativas reflexes de um pensador do sculo XVIII que podem nos auxiliar aqui:
o violonista, compositor e filsofo, Michel-Paul-Guy de Chabanon (1730-1792).
Numa meticulosa abordagem de sua obra, Lvi-Strauss aborda os principais pontos
convenientes ao estudo da msica e dos sons desenvolvidos pelo filsofo.
Espantamo-nos com ele: Por que a poesia, a pintura e a escultura tm de
apresentar imagens fiis, e a msica, infiis? Mas, se a msica no imitao da
natureza, o que ento? (apud LVI-STRAUSS, 1997, p. 73) A eterna polmica em
torno do debate Mimese X Realidade no objeto de arte encontra aqui a afirmao
de que a msica no atua para imitar os efeitos percebidos pelos sentidos, at
porque, segundo esse raciocnio, ela nem exprimiria sentimentos, mas apenas a
formalidade dos sons. O que o questionamento de Chabanon vem suscitar, alm de
um evidente pendor ao absolutismo musical, uma falsa questo, ou antes, uma
questo retrica, que conclui: como a viso e o olfato, o ouvido tem gozos
imediatos, e, por isso, a msica agrada independentemente de qualquer imitao.
Na referncia ao gozo, ao prazer, uma ntima associao ao que pode ser
-
19
vivenciado pelos sentidos de um corpo, de algum que se atm ao objeto musical e
somente nele permanece.
Ainda em Chabanon, a filosofia da arte encontra como misso mais elevada
fazer com que cada sentido isoladamente perceba aquilo que os outros sentidos lhe
transmitem. o esprito quem, situado entre os sentidos, compara e combina as
sensaes, percebendo as relaes invariantes, no sendo necessrio buscar um
contedo para tais relaes, j que elas so formas. Nessa unidade dos sentidos,
possibilitada a partir de um dilogo de reaes, desaguamos justamente em gua
Viva, obra que institui o flerte interartstico como principal recurso para efetuar sua
intencionalidade, valendo-se, para isso, de uma defesa central da narradora ao que
pode ser considerada uma intersensorialidade do corpo.
Apresentamos agora quatro dos principais momentos de gua Viva em que
Clarice proclama a integrao dos sentidos atravs do domnio musical dentro de
seu texto. Exp-los conjuntamente facilitar a anlise posterior e servir, desde j,
para comprovar a faceta musical como um dos objetivos centrais do livro,
proclamados desde sua primeira pgina.
1) No se compreende msica: ouve-se. Ouve-me ento com teu corpo
inteiro. (p. 11)
2) Vejo que nunca te disse como escuto msica apio de leve a mo na
eletrola e a mo vibra espraiando ondas pelo corpo todo: assim ouo a
eletricidade da vibrao, substrato ltimo no domnio da realidade, e o
mundo treme nas minhas mos. (p. 12)
3) As mos tambm olham. (p. 92)
4) um som elevadssimo e sem frisos. [...] a nota mais alta e feliz que
uma vibrao poderia dar. Nenhum homem da terra poderia ouvi-lo sem
enlouquecer e comear a sorrir para sempre. (p. 110)
A leitura desses fragmentos suficiente para perceber a maneira como
Clarice lida com a apreenso dos sentidos em seu texto, e melhor, como o elemento
sonoro-musical admirado, por conduzir ao catrtico e dar a possibilidade de ter o
mundo nas mos. A comunicao dos sentidos requerida pela personagem-
narradora invoca o corpo a uma postura ativa diante desse mundo, diante das coisas
que se apresentam e entram em contato com os sentidos; assim, importa que nos
debrucemos mais atentamente aos trechos transcritos para que no escapem as
ressonncias possveis e imediatas.
-
20
Desde o incio, fica claro que a compreenso racional das palavras no o
intento da autora. Valer-se da msica e jogar com a idia de abstrao inerente ao
objeto musical, associada com nfase a partir do Romantismo, assumir o objetivo
sensvel de seu texto como motivao maior. A ausncia de um suporte concreto e
palpvel na expresso musical o que leva Clarice a discorrer sobre o
funcionamento da apreenso do corpo, particularmente seu, quando do contato
musical, e solicitar de seu leitor uma postura semelhante de entrega e unidade
sensrio-corporal. Presentificar seu corpo ofertado audio (p. 11) no nega por
completo o desejo de uma compreenso por parte do ouvinte, pois essas aes
(ouvir e compreender) estariam essencialmente interligadas, encontrando na
desconfiana cientfico-racional da Modernidade um fator de esclarecimento para
essa situao provocada pelo texto.
Os fragmentos que abordam diretamente a atividade dos sentidos (p. 12 e
92), por sua vez, explicitam a interao do corpo com a msica e consigo prprio.
Ela ouve com as mos. Suas mos enxergam. No restando outra sada para a
percepo do que atravessar-lhe a carne e as sensaes conseqentes de um
toque. Aceitar tal necessidade concordar com a hiptese emprico-psicolgica dos
que defendem as artes como extenses dos sentidos, no tempo e no espao, o que
justifica seu encontro na percepo humana. Ora, nada mais evidente aqui do que a
importncia de se trabalhar uma viso fenomenolgica do mundo. Nesse sentido,
somos auxiliados por toda a filosofia de Merleau-Ponty, que considera a obra de arte
como um campo privilegiado do sensvel, lugar onde ele pode ser refletido em
plenitude. Ao assumirmos como verdade a idia de uma camada originria do sentir
anterior diviso dos sentidos (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 306), encontramos em
gua Viva uma expresso prtica dessa espcie de pr-estesia, onde a percepo
humana ultrapassa os limites dos sentidos especficos e unitrios, conjugando as
reaes do corpo rumo a um significado que pulsa exatamente no objeto de arte, no
texto que organiza as palavras no como um mero agrupamento de signos a serem
interpretados, mas como se cada palavra fosse membro de um corpo indivisvel. No
corpo escritural clariceano a pluralidade de sentidos e de valores artsticos o que
d forma e (re)forma a disposio sempre inventiva das palavras em jogo. Nesse
corpo e somente nele, um acesso imediato ao catrtico.
A presena em gua Viva da nota mais alta e feliz (p. 110) o catrtico
remete-nos ao gozo imediato de Chabanon, agora possibilitado pela iminente
-
21
organizao das palavras. E, quando Clarice recorre ao suporte musical, o faz com
uma f que no duvida do poder existente at mesmo na nota mais isolada, pois
para que essa nota se perceba ser preciso sentir muito alm da audio,
exacerbando todos os limites que a percepo humana aparenta ter. A explorao
sinestsica dos signos abarca, ento, suas possibilidades sonoras e imagticas,
num constante direcionamento de linguagem que extrapola a sintaxe cannica,
como podemos visualizar em todo o conjunto da obra da autora. Relembramos com
isso, que em nenhum momento gua Viva se afasta da necessidade intersemitica
existente em sua linguagem, j que a fuso de sentidos se concretiza paralelamente
conexo entre as artes, fundamentada na estrutura de todo o livro.
Justamente pela percepo somos conduzidos a um pensador que se
aprofundou substancialmente na anlise da memria: Henri Bergson (1859-1941).
Considervel parte de sua obra filosfica debrua-se sobre o processo da memria
humana desde a conceituao de preceitos bsicos como lembrana, percepo,
memria, imagem, todos em direo a uma sensvel reflexo sobre o corpo e o
esprito humanos, a alma e a matria. Em sua fundamental obra Matria e Memria
(2006), temos uma primeira indicao necessidade de se educar os sentidos para
a percepo do mundo, e por meio dela (a educao) atingir a finalidade de
harmonizar os sentidos entre si, restabelecendo em seus dados uma continuidade
que foi rompida pela prpria descontinuidade das necessidades do corpo, enfim
reconstruindo aproximadamente a totalidade do objeto material.
A prosa de Clarice Lispector nos parece, sob esse ponto de partida, lidar com
uma educao diferenciada dos sentidos ou, ao menos, realizada com maior
intensidade. A autora insiste em evocar um corpo que ignore a descontinuidade
natural mencionada por Bergson, coordenando suas sensaes no apenas para
apreender o que a exterioridade das coisas tem a lhe oferecer, mas sendo-lhe
possvel perceber a particularidade de seus estados internos a partir delas. A ao e
a reao do corpo afirmando-se a cada frase, em todo desejo expresso pelo que
ultrapassa a normalidade do mundo. Mas at mesmo nessa normalidade, a
presena do que transcende.
Na dinmica dos sentidos exercitada por Clarice encontramos um pertinente
exemplo para todo o processo de criao e estabelecimento da memria
delimitado/ampliado por Bergson. Os sentidos que se confrontam e completam,
influindo em tudo que percebem e, por sua vez, sendo tambm influenciados,
-
22
relacionam-se direta e inquestionavelmente com o conceito de corpo como centro
de ao, definido pelo autor (BERGSON, 2006, p. 162). O embate entre o corpo e a
matria efetua-se numa troca de impresses que se transformam em movimento
contnuo, em permanente estado de devir, exatamente como vemos no corpo
clariceano, sempre em vias de formao. Transitar os sentidos entre si uma forma
de apreender o tempo, contornar as lembranas e comprovar que pela intromisso
da memria no estado presente de percepo nosso corpo nunca cessa de existir
como uma entidade dinmica de significados e sensaes. por isso que Clarice
nos convoca a uma nova utilizao dos sentidos.
A pesquisadora e professora Jacineide Travassos Cousseiro, ao desenvolver
uma significativa dissertao a respeito de gua Viva, manteve como um dos
principais objetivos analisar a intersemiose na natureza interna da obra, ou seja, a
utilizao feita por Clarice Lispector do universo de outros suportes artsticos que
no a literatura, na maneira como sua linguagem se influenciou a si prpria. A
respeito da msica, ela afirma:
A msica para a narradora-pintora, ao modo da teoria das esferas pitagricas, ensinamento sobre o movimento do cosmos, sobre a ordenao do mundo. Da o anseio de apreend-la atravs do corpo, das mos, temos o sentido tctil do abstrato-musical, do incorpreo. uma tentativa de capturar e concretizar o som, de oferec-lo uma visualidade corporal [...]. (COUSSEIRO, 1998, p. 117, grifo nosso)
Interessante a aplicao dos termos que sugerem na apreenso da msica
pela personagem uma percepo dialtica de conhecimento. Parece mesmo irnico
que se precise do corpo inteiro em seus sentidos para captar a arte mais
reconhecidamente marcada pelo incorpreo, pela ausncia de forma materialmente
concreta. O pendor de Clarice em se expressar com o que aparenta inexprimvel
condiz com a negao mimtica que Chabanon levantou para a arte dos sons. O
gozo imediato desejado pelo corpo que ouve o texto clariceano s pode ser
alcanado com a transcendncia do corpreo, e tal alcance s poder se
concretizar na presena da escritura, pois a o texto literrio d-se sempre em um
dilogo com outros cdigos, opera-se em um espao intersensorial sinestsico,
onde a palavra escrita acorda os sentidos e dimensiona possibilidades artsticas
vrias. (COUSSEIRO, 1998, p. 71)
atravs da dimenso mencionada (intersensorial sinestsica) que somos
alertados para a importncia de se avaliar gua Viva a partir de uma perspectiva
intersemitica. A intensidade sinestsica contida no livro remete-nos justamente a
-
23
essa sinestesia de artes que ele proclama como fundamento escritural. muito
importante salientar que a proposta intersemitica a contida, em nenhum momento
lida com a hiptese de uma unidade artstica indissolvel, pois mesmo o conceito de
unidade deve ser utilizado com cautela. A mltipla abordagem das manifestaes
artsticas se d, aqui, num respeito individualidade de cada expresso, onde o
todo final valer-se- de uma noo de mltiplo que no descarta as peculiaridades
das partes.
O encontro entre as artes a partir da msica, analisado com nfase pela
musicista Yara Borges Caznok, uma prtica que acompanha toda a histria da
arte. Como sua obra Msica: entre o audvel e o visvel (2008) indica desde o ttulo,
a escritura musical lida com peculiaridades que transcendem o sentido humano
auditivo3 apontando para a hiptese de uma criao sonoro-visual originariamente
fundida. Ainda em seu estudo encontramos duas consideraes sobre a percepo
sinestsica que nos interessam para prosseguir, inclusive, na discusso sobre o
contato entre as artes. A respeito da comunicao dos sentidos, ela afirma: no
simplesmente uma associao, uma interpenetrao, uma troca, e dessa forma
que a percepo se abre coisa. (CAZNOK, 2008, p. 133); ela parte do
diferenciado evento ou registro sensorial para, depois, uni-los e fundi-los em uma
sntese. (idem, p. 224).
Evidentemente, toda a iniciativa de Caznok tambm se debrua numa
abordagem fenomenolgica das artes, o que nos motiva a lembrar mais uma vez os
pensamentos do filsofo com relao ao objeto esttico. Um dos fundamentos da
Fenomenologia do Esprito atribuir ao sujeito sensvel uma potncia que co-nasce
em um certo meio de existncia ou se sincroniza com ele. (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 285) Tal potncia desencadeada quando o sujeito se depara com o
evento, aquilo que se manifesta entre o olho e a coisa, entre o ser e o mundo,
interligando-os e injetando-lhes (em ambos) novas possibilidades de significado.
Ora, a sincronia entre ser e mundo assemelha-se igualmente sincronia entre os
sentidos e entre os discursos semiticos da esttica, pois o evento encontra na
obra de arte uma das maiores possibilidades de vir a ser, fazendo da obra um lugar
potencial para o acontecimento do sujeito enquanto ser sensvel. Tal raciocnio o
3 O conceito de imagens sonoras (BERGSON, 2006), aqui pertinente de ser lembrado, ser trabalhado
posteriormente, no terceiro captulo deste trabalho.
-
24
que nos permite identificar gua Viva como um evento mpar voltado para o homem
moderno, pois, dentro dele, assim como no sujeito que lhe apreende, tambm co-
existem valores de percepo do mundo, preceitos de uma subjetividade que no
tem por funo fechar o ser em si, mas coloc-lo e revel-lo dentro desse mesmo
espao.
Nossa anlise reveste-se, com isso, de maior responsabilidade, pois a
discusso intersemitica de gua Viva, no mais apenas no interior do texto como o
pretendeu a pesquisadora anteriormente citada, mas em contato direto e ativo com
outra linguagem semitica, como a msica a partir de um exemplo prtico para
essa relao caracteriza-se como uma iluminao de parte do que abrangeu o
mundo moderno, de sua posio histrica e da manifestao do homem em seu
meio.
Contudo, antes que a anlise pretendida seja realmente iniciada, convm
estabelecermos as linhas bsicas de pesquisa aqui adotadas, pois alm de a prtica
metodolgica envolvida na relao entre literatura e msica no ser muito difundida
no meio da crtica literria, importante que se esclaream, desde j, as intenes
reais da presente pesquisa.
Em sua obra Literatura e Msica, Solange Ribeiro de Oliveira (2002)
apresenta uma metodologia do estudo melopotico proposta por Steven Paul Scher,
autor que cunhou o termo melopotica para estudos dedicados iluminao
recproca entre literatura e msica (do grego mlos/canto + potica). Ao delinear as
tipologias dessa relao intersemitica, Scher distinguiu trs tipos de estudos,
classificados de acordo com a natureza do objeto4. As trs principais formas de se
abordar um estudo melopotico so: msica e literatura, literatura na msica e
msica na literatura. Por ser a abordagem aqui utilizada, ater-nos-emos apenas ao
ltimo tpico.
Tambm denominada (nesse caso pela prpria OLIVEIRA) como estudo
msico-literrio, essa modalidade a de maior interesse para a literatura. Entre os
vrios objetos de anlise utilizados na perspectiva levantada, destacamos a msica
nas palavras, as recriaes literrias com efeitos musicais e a estruturao de textos
literrios sugestiva de tcnicas de composio musical, justamente por serem
elementos que fazem parte de nossa pesquisa. Tal abordagem investiga questes
4 Detalhamento da estrutura nas obras Interrelations of Literature (1982) e Music and Text (1992). A proposta
desses estudos foi apontada originalmente por Calvin Brown em Music and Literature (1948).
-
25
de mbito literrio pelo vis da msica e pode receber contribuies de outras
disciplinas do conhecimento, como a esttica, que investiga a dimenso filosfica do
fenmeno artstico.
Seguindo princpios semelhantes, Luiz Piva (1990) trabalha com duas formas
de influncia nas relaes entre literatura e msica: a influncia horizontal, onde se
observam referncias a instrumentos musicais, formas, harmonias; e a influncia
vertical, que analisa a utilizao de tcnicas e modos de estruturao de uma arte
em outra, por isso de ordem mais profunda e real. Identificamos na ltima maiores
possibilidades de auxlio analtico.
Dentro da abordagem metodolgica apresentada por Oliveira, Jean-Louis
Cupers ainda distingue quatro linhas de pesquisa especficas que podem contribuir
no foco analisado. A que nos diz respeito aquela que define o estudo como de tipo
histrico, tcnico ou esttico, investigando afinidades analgicas e paralelas ou
divergncias estruturais entre artistas e obras diversas. As possibilidades
intersemiticas a estabelecidas, no que concerne ao intrnseco desse tipo de
relao, so valorizadas pela autora:
Uma esttica intersemitica, que inclui a melopotica, ao sublinhar diferenas e semelhanas, contribui para a investigao da natureza especfica de cada arte e do fenmeno esttico em geral, alm de representar uma resposta para as incertezas e rupturas da arte contempornea. (OLIVEIRA, 2002, p. 11, grifo nosso)
Com isso, o que importa esclarecer que no pretendemos trabalhar a
hiptese de uma traduo, mas sim de uma relao intersemitica, pois nenhuma
das obras presentes no corpus faz meno direta ou indireta prxima. Essa
explicao vale, inclusive, para as relaes com as outras artes alm da msica.
Nosso profundo interesse pela estrutura intersemitica de gua Viva corresponde
proporcionalmente ao que constatamos com as ltimas palavras de Oliveira,
acreditando que com esse livro Clarice Lispector arrisca uma resposta ao homem
moderno e seu mundo.
-
26
1.2 Ecos Dodecafnicos
A arte [...] no mera expresso da natureza exterior,
mas tambm da interior. Arnold Schoenberg
gua Viva, ao mencionar enfaticamente aspectos do domnio musical,
permite-se usufruir de diversos elementos dessa linguagem, valendo-se de seu
vocabulrio, sua lgica, referenciando gneros, tcnicas e obras oriundas da arte
dos sons. Encontramos no texto a citao direta a dois importantes compositores:
Mozart (p. 18) e Stravinski (p. 71). A meno ao primeiro deles, muito breve e
objetiva (Quero a iseno de Mozart.), parece-nos indicar apenas um lugar comum
do imaginrio musical erudito, sem pretender maiores vinculaes de significado
entre o texto e o artista citado. J a referncia ao outro, mais complexa, pois
indicada pelo ttulo de uma de suas obras (Ouvi o Pssaro de Fogo e afoguei-me
inteira.), surge como carregada de um direcionamento particular ao nome de Igor
Stravinski (1882-1971), compositor moderno reconhecido por vincular um
considervel grau de experimentao formal em suas prestigiosas criaes.
O bal Pssaro de Fogo (1910), uma das primeiras obras do compositor,
ainda est distante da dissonncia e do ritmo assimtrico que ele alcanaria, por
exemplo, em Sagrao da Primavera (1913), mas apenas sua meno j nos parece
suficiente para apontar as intenes de Clarice em se reportar ao dissonante, ao que
remete a uma desconstruo de linguagem. Nenhum outro nome seria mesmo mais
indicado para nos conduzir ao compositor escolhido para a anlise intersemitica
entre gua Viva e a msica que buscamos: Arnold Schoenberg. Esses dois autores,
cada um a sua maneira e estilo so os mais importantes nomes da msica moderna
do incio do sculo XX, tambm chamada msica nova.
Temos conscincia de que, aqui, o questionamento por que Schoenberg e
no Stravinski? deve ganhar espao, e isso muito pertinente, afinal, se o ltimo
quem efetivamente aparece citado no texto de Clarice, nada mais evidente que
fosse ele o objeto a ser trabalhado numa comparao de linguagens e significados.
Por isso, a necessidade de elucidar o caminho escolhido urge em se cumprir desde
j, possibilitando-nos esboar uma mnima apresentao do artista que ser, daqui
em diante, nosso objeto central de estudo para o dilogo com gua Viva.
-
27
Ao falarmos de Arnold Schoenberg (1874-1951), compositor austraco que
fundou o mtodo5 do dodecafonismo, ningum melhor a ser lembrado em suas
reflexes do que o filsofo Adorno. Respeitvel pensador das artes e manifestaes
culturais surgidas no sculo XX, Adorno dedicou um considervel perodo (anos 30 e
40) de sua vida e obra aprofundando-se especialmente nas motivaes filosficas
da arte musical, interesse que permaneceria como objeto de destaque por toda sua
vida e produo. Um de seus mais importantes trabalhos nessa rea, intitulado
Filosofia da Nova Msica (1941), interessa-se justamente em relacionar a obra de
Schoenberg e Stravinski, localizando as semelhanas e divergncias neles, para
assim, compreender o novo patamar que a msica alcanou atravs de suas
experincias. Parece-nos obrigatria a transcrio de suas palavras, nesse estudo e
em outro momento de seus pensamentos, a respeito da comparao levantada, para
que uma reflexo sobre a pergunta inicial seja possvel:
[...] fez-se ressaltar com razo, por parte da escola de Schoenberg, o fato de que o conceito de ritmo adotado em geral demasiado abstratamente ainda restrito no prprio Stravinski. A verdade que nele a articulao rtmica como tal se apresenta livre, mas somente custa de todas as outras aquisies da organizao rtmica. No somente falta a flexibilidade expressiva e subjetiva do tempo musical, que Stravinski sempre tornou rgida a partir do Sacre, como tambm faltam todas as relaes rtmicas com a construo, com a combinao da composio interna e com o ritmo geral de toda a forma. O ritmo acentuado, mas separado do contedo musical. (ADORNO, 2004, p. 122)
Em Schoenberg, a objetivao do impulso subjetivo tornou-se crucial. Ele pode ter aprendido com Brahms o trabalho de variao de temas e motivos, mas a polifonia, graas qual a objetivao do subjetivo adquire em Schoenberg um aspecto incisivo, pertence inteiramente a ele, literalmente a lembrana de algo enterrado h duzentos anos. (ADORNO, 1998, p. 154, grifo nosso)
Se muitos acreditam esses compositores como adeptos de uma mesma
enunciao formal, pela proximidade cronolgica e objetivos equivalentes no trato
com a msica e sua desconstruo do clssico, Adorno vem esclarecer que a
estilstica em cada um no s desenvolve-se por princpios diferentes como alcana
resultados de nveis distintos (deixando clara sua preferncia). Destacamos o
pendor subjetivo schoenbergiano nas palavras do filsofo justamente para
posicionar a temtica do indivduo na Modernidade como uma preocupao tambm
5 H uma grande discusso a respeito da melhor nomenclatura aplicvel ao Dodecafonismo. Termos como
tcnica ou sistema so adotados e rejeitados pelos mais diversos tericos, com os devidos fundamentos de suas opinies. Escolhemos aqui o termo mtodo a partir deste que tem sido considerado um tratado dodecafnico, Apoteose de Schoenberg (MENEZES, 2002); o autor aponta tal definio como a mais pertinente ao interesse dodecafnico, principalmente sob a perspectiva conceitual de John Cage (1958), onde mtodo o caminho de nota para nota, atravessado pelos sons e os silncios da composio.
-
28
da msica e de seus expoentes. na expresso sonora e em sua potencialidade
formal que um nome como Schoenberg encontrar sua maneira de refletir e externar
essa interioridade do esprito.
Quando Adorno se detm na fixao da subjetividade dentro da obra de arte,
faz-nos perceber que a obra subsiste nesses tempos modernos como meio de
conciliao entre o homem e o mundo, entre o sujeito e o real. Uma perspectiva
como a de Schoenberg, assumidamente formalista, no se vale de tal ttulo
ignorando a expectativa subjetiva que a representao esttica nutre para com seu
criador e apreciador. Pelo contrrio, tambm aclamado como msico do expressivo,
Schoenberg prope um projeto para a msica que apreenda nessa mesma forma o
ncleo de uma dimenso notoriamente interna ao ser, que assuma e invoque uma
posio crtica perante a individualidade do ouvinte.
Visando a uma contextualizao histrica mais especfica do perodo que
estamos trabalhando, dispomos a seguir uma sntese cronolgica da obra de
Schoenberg com seus principais momentos criativos, colhida nos escritos de seu
discpulo, Anton Webern (1984), que auxiliar no desenvolvimento a ser analisado
posteriormente:
At 1908 referncias tonais;
1908 Trs peas para piano, primeiras peas atonais;
1920 primeiro uso consistente do princpio serialista;
1920-1936 fase serial ou dodecafnica;
1922 primeira obra escrita segundo o mtodo de composio com doze sons;
1923 Valsa, emprego sistemtico do princpio serial;
A partir de 1936 diversidade estilstica e ocasionais retornos composio tonal;
Continuando nas consideraes de Adorno sobre o compositor e a nova
postura criativa que ele imps no princpio do sculo XX ao pensamento musical,
encontramos no ensaio do professor Vladimir Safatle (2007, p. 83-85) a constatao
de que o olhar adorniano sobre a obra de Schoenberg se preocupa em reconhecer,
como aspecto verdadeiramente novo para os padres, uma mudana de funo da
expresso musical. Tal compreenso no pequena, principalmente se
considerarmos que grande parte dos admiradores de Schoenberg lhe percebe como
-
29
novidade apenas a ausncia, ou melhor, a problematizao do sistema tonal6. A
idia de esgotamento desse modus operandi da msica (sistema tonal), enfatizada
por Schoenberg em paralelo a um esgotamento do sistema de representaes at
ento utilizado para a exteriorizao dos afetos, daquilo que a msica sempre teve
por funo apresentar do humano. O homem moderno, dotado de novos interesses
e necessidades internas, no poderia mais ser refletido a partir da mesma premissa
ou, pelo menos, da mesma forma como essa premissa j servia h sculos. O
professor arremata:
Procurar uma forma capaz de ser a transposio direta da idia musical na dimenso do que aparece, idia que procura realizar exigncias expressivas que no se reconhecem na gramtica dos sentimentos reificada pelo tonalismo, o que leva Schoenberg ao dodecafonismo. (SAFATLE, 2007, p. 85, grifo nosso)
possvel perceber, pela preocupao que o compositor tem com o sistema
tonal, que em nenhum momento se intenciona um distanciamento ao que a msica
objetivou por toda sua histria, ou seja, com aquilo que se considera tradio7; muito
antes, o que Schoenberg prope justamente um intensificar da aparncia musical
a partir de elementos internos, legando ao aparente o poder de revigorar a
naturalizao do antigo sistema. Com o estabelecimento da srie dodecafnica, a
idia musical (conceito que aprofundaremos mais adiante) se far notar no prprio
processo de construo da composio, como se a estrutura interna da obra
rompesse a superfcie das formas sonoro-tonais para se impor como objeto primeiro
ao ouvinte. Essa a resposta que ele acreditava melhor frente ao esgotamento das
representaes, e que vem esclarecer suas prprias palavras quando da publicao
de Problemas da Harmonia (1934), onde declarou: o material musical rico de
possibilidades infinitas [...] toda nova possibilidade exige um novo tratamento, pois
implica novos problemas, ou ao menos exige uma soluo nova de problemas
antigos. (apud MENEZES, 2002, p. 94).
A partir das consideraes at aqui realizadas, que visaram a uma breve
iniciao ao nome e fora da obra de Schoenberg, acreditamos j ser possvel
6 Apesar de recorrente entre a crtica e o pblico, o conceito de atonalidade sempre foi muito discutido.
Schoenberg, por exemplo, era contrrio a ele, pois tal nomenclatura designaria, em sua opinio, a idia de privao de som. Ele sempre preferiu a expresso tonalidade suspensa ou pantonalidade. Stravinski, igualmente contrrio, valorizava mais o que entendia por antitonalidade.
7 No artigo Das Werk Arnold Schoenberg (1931), o compositor esclarece os parmetros de sua tradio pessoal,
citando mestres que influenciaram suas experincias e o que ele apreendeu da obra de cada um; so eles: Bach, Mozart, Beethoven, Wagner e Brahms, alm de Schubert, Mahler, Strauss e Reger.
-
30
traar os primeiros paralelos entre o universo criativo do compositor e a textualidade
de gua Viva. O impulso subjetivo, em ambos, manifesta-se exatamente de acordo
com o ltimo aspecto citado do projeto schoenbergiano, por isso o interesse em
retornar quilo que Clarice Lispector proporcionou com sua obra. Assim como a
msica dodecafnica depositou na aparncia da forma sonora a essncia de suas
estruturas e valores internos de composio, gua Viva tambm vem explorar
atravs de rebuscados procedimentos de escrita os mais complexos fundamentos
da criao potica, expondo a eloqncia da tradio literria a uma inevitvel
fragilidade representacional, em consonncia ao pensamento e situao humana
contextualizados por aquele sculo.
Um primeiro aspecto capaz de aproximar Clarice e Schoenberg, anterior ao
mtodo musical j mencionado, pois at dentro dele contido, consiste na
apropriao de um gnero musical que se revela como fundamento na obra de
ambos os autores: a Msica de Cmara. Ren Leibowitz (1981) enfatiza a
importncia no uso que Schoenberg faz desse tipo musical, desde seus primeiros
anos de aprendizado at suas mais complexas obras. Enquanto a maior parte dos
jovens compositores se deslumbra facilmente com as potncias opersticas ou
sinfnicas da tradio musical, Schoenberg se destacou pela precoce maturidade ao
saber evoluir modesta e progressivamente seus exerccios de composio atravs
de situaes elementares comumente presentes na execuo da Msica de
Cmara. Mesmo ao servir-se de arranjos orquestrais, com ampla diversidade
instrumental, Schoenberg sempre permaneceu fiel ao esprito da Msica de Cmara,
conferindo vozes prprias e individuais ao tecido polifnico, impedindo, assim, os
efeitos frequentemente atribudos ao som orquestral de simplesmente esconder as
fraquezas da composio, pois sob a nova perspectiva, a orquestra se valoriza por
clarificar o pensamento musical. Mesmo suas obras de influncia mais wagneriana
(Sinfonias de Cmara, Friede auf Erden, Segundo Quarteto) nunca se afastaram
dessa sensibilidade intimista peculiar ao tratamento da Msica de Cmara. Isso o
que permite identificar, no desenvolvimento de cada uma, descobertas que
subsistem precisamente no domnio da pura sonoridade.
Sobre o conceito de Msica de Cmara, encontramos no Dicionrio GROVE
(1994, p. 251), a seguinte definio:
Msica executada por pequeno conjunto e destinada a auditrio relativamente pouco numeroso, o que lhe confere um carter de intimidade que a distingue da msica de solo, orquestral ou coral [...] A principal forma
-
31
de msica de cmara o quarteto de cordas, seguido de vrias combinaes para cordas, instrumentos de sopro e piano.
Selecionamos esse tipo de msica como um primeiro elo entre as intenes
de Schoenberg e Clarice Lispector porque a prpria escritora no nos deixa outra
alternativa seno encarar sua escrita em gua Viva como uma prtica de cmara.
Ao mencionar essa forma de execuo musical, Clarice sabia muito bem as
implicaes que trazia para a forma de seu universo textual, j que tal recorrncia
ecoa sobremaneira a constituio do livro em si. Importa observarmos mais
atentamente os principais momentos de gua Viva em que ela deixa isso evidente:
1) De vez em quando te darei uma leve histria ria meldica e cantbile para
quebrar este meu quarteto de cordas: um trecho figurativo para abrir uma
clareira na minha nutridora selva. (p. 39)
2) Que msica belssima ouo no profundo de mim. feita de traos
geomtricos se entrecruzando no ar. msica de cmara. Msica de cmara
sem melodia. modo de expressar o silncio. O que te escrevo de
cmara. (p. 56, grifo nosso)
3) Meu amadurecimento de um tema j seria uma ria cantbile outra pessoa
que faa ento outra msica a msica do amadurecimento do meu quarteto.
Este antes do amadurecimento. [...] Quase no existe carne nesse meu
quarteto. Pena que a palavra nervos esteja ligada a vibraes dolorosas,
seno seria um quarteto de nervos. Cordas escuras que, tocadas, no falam
sobre outras coisas, no mudam de assunto so em si e de si, entregam-
se iguais como so, sem mentira nem fantasia. (p. 97)
O destaque na segunda citao atesta plenamente a associao direta entre
o conceito musical que levantamos e a escritura clariceana, pois a relao
instituda pela prpria autora. Ora, a Msica de Cmara faz parte mesmo da
essncia de gua Viva, j que uma das condies desse texto ser de cmara. A
conscincia conceitual de Clarice na utilizao do termo se afirma todas as vezes
em que ela cita a formao do quarteto, como vimos, a principal forma de executar
esse tipo de msica. Ouvi-la no profundo de mim, alm de concordar com o carter
de intimidade evocado pela msica, age diretamente sobre o texto conferindo-lhe
uma significao cada vez mais interiorizada, representativa daquilo que interno
tanto ao narrador/autor como ao prprio recurso escritural encadeado pelas
palavras. Palavras que pedem para serem ouvidas em cmara.
-
32
no incio da jornada que ela promete a leve histria (primeira citao),
promessa que ser cumprida apenas parcialmente, pois a descoberta de que uma
histria pode corromper sua voz permear todo o decorrer do livro, deixando a
narradora numa permanente hesitao sobre o se entregar ou no a um enredo. A
ltima citao mostra exatamente isso. Ao falar de pouca carne no quarteto j
sabemos que o quarteto a prpria obra gua Viva , Clarice est se referindo a
pouca histria, a pouca trama que encarna seu livro. A idia de uma carnalidade
escritural reveladora principalmente com a continuidade do texto, pois, a, a
superfcie da carne precisar ser penetrada at que se alcancem os nervos, j que
so eles os correlatos das palavras, das frases que se esticam por toda a obra numa
tenso contnua que nunca se deixa suspender. Ainda que gua Viva no seja
identificado por Clarice com a entranha da carne (o nervo), pois esta uma parte
muito sensvel e dolorosa, ele deve sim, ser encarado como uma vibrao, uma
espcie de suspenso da prpria experincia ficcional literria. Como se um silncio
a houvesse. Um vibrato oscilante, inaudvel, que expe na superfcie do texto aquilo
que lhe mais particular, ntimo.
O modo de expressar o silncio abordado por Clarice termina indo de
encontro diretamente ao projeto musical adotado pela Modernidade no sculo XX,
pois a partir de Schoenberg esse interesse movimentou consciente ou
inconscientemente uma larga variedade de compositores, todos eles (Berg, Webern,
Boulez, Cage, entre outros) devedores das conquistas que nosso compositor logrou.
A prpria definio de Dodecafonismo, analisada mais adiante, varia numa
compreenso entre o que pode ser chamado de srie de doze sons e srie de
doze intervalos, pois o intervalo musical (a pausa e a permanncia sonora devida
a uma durao) um dos elementos mais responsveis pela distribuio dos sons de
forma que eles no se repitam. Da mesma forma, os recursos sintagmticos
utilizados por Clarice em seu texto, responsveis pelos contornos do intervalo
literrio, desde a pontuao, flexo verbal, passando pela quebra nas oraes e
pargrafos, rompem com a prtica literria convencional distribuindo as palavras de
forma que elas no repitam algo experimentado anteriormente em literatura. O
silncio das palavras em Clarice ultrapassa o sensvel desinteresse narrativo do livro
(a falta de carne) atingindo o mago da configurao escritural com um
estranhamento que se percebe corrente em toda a obra da escritora, mas aqui ainda
mais evidente, pois nico e em unidade com os objetivos de sua criao.
-
33
Estranhamento que produz silncio. Silncio que perpassa tudo que ela produziu
anteriormente, para aqui, enfim, se fazer ouvir8.
No por acaso que ela afirma repetidamente estar gerando uma ria
cantbile por todo o livro (a tentativa do enredo). Se nos lembrarmos de que a ria
constitui, na maior parte das composies musicais, um canto que representa parte
de um todo maior, iluminamos gua Viva da melhor maneira como ele pode ser lido:
uma parte que significativamente vem representar o todo maior da obra clariceana,
concentrando em si tudo que pode, reconhecidamente, ser atribudo como
caracterstico da autora, seu estilo inconfundvel, sua voz, que do incio ao fim se
eleva como um vibrato na literatura brasileira, ainda mais, na literatura moderna.
Numa entrevista, Clarice exps sua percepo da afinidade entre a escrita e a
msica, pertinente de ser lembrada aqui:
As palavras que me impedem de dizer a verdade. Simplesmente no h palavras. O que no sei dizer mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da msica imprescindvel para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita so como a msica, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal tambm. Sim, mas a sorte s vezes. Sempre quis atingir atravs da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranqilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecer quando eu de todo no escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. (apud BORELLI, 1981, p. 84-85)
No h dvida de que gua Viva pode ser considerado o livro em que ela
chegou mais perto de cumprir esse desejo confesso, pois o resultado da escritura,
atravessado de ponta a ponta pela expresso do silncio, no deixa de emanar uma
aparncia de no escrito. As incurses dentro do domnio musical encontradas no
livro refletem primeiramente as convices da autora, que semelhana do
pensamento aristotlico, atribuem ao efeito musical harmnico uma profunda relao
com a alma humana, capaz de desloc-la de seu nvel terrestre e obrigatoriamente
material.
por isso que, para a transmisso da tranqilidade desejada, Clarice investe
sua linguagem na direo de um estranhamento que no compactua simplesmente
com um vocabulrio rebuscado ou uma pesquisa estilstica hermtica; ao contrrio,
8 A aplicao do termo estranhamento, corrente na crtica sobre Clarice Lispector, tambm encontra lugar em
nossa pesquisa. Conhecido desde a retrica clssica, foi retomado com vigor justamente no sc. XX, atravs dos formalistas russos. Segundo Vitor Erlich, o estranhamento (priem ostrannenija) consiste em introduzir alteraes no signo convencional, at que ele se torne polissmico, aumentando assim sua carga informacional. Representa um desvio da norma, uma ruptura com o significado, uma expanso do significante.
-
34
uma das marcas mais reconhecidas de seu texto a primazia por um efeito
impressionante de naturalidade na linguagem, como se a diferena clariceana
flusse tranquilamente no ato de criao. No por acaso, tambm exatamente isso
que acompanhamos na criatividade de Arnold Schoenberg, e que Leibowitz (1981)
deixa bem claro ao descrever a notvel facilidade com que o compositor multiplicava
suas obras em to rpido tempo. Ora, o prprio compositor renegava o jargo de
que sua msica fosse somente para intelectuais, de que a apreenso sonora se
desse apenas dentro de parmetros racionais de recepo. Consciente da
impopularidade de sua msica (pelos menos nos anos iniciais), ele mesmo registrar
posteriormente9 a necessidade de se encarar inclusive as composies
dodecafnicas com uma sensibilidade voltada para o emocional, pois como suas
palavras afirmam, a compreenso musical est ligada no apenas ao interesse
intelectual, mas satisfao das emoes. Talvez, por isso, ele nunca tenha se
afastado, nem em sua maturidade autoral, das influncias que a Msica de Cmara
oferecia para enriquecer seu experimentalismo com a simplicidade devida.
Nunca, por mais que o projeto dodecafnico aparentasse uma ruptura total
com os padres musicais clssicos, em nenhum momento Schoenberg trabalha com
a inexistncia de harmonia, a dimenso vertical gerada pela simultaneidade de sons,
at porque sem ela o prprio objeto da msica impossvel de se concretizar. O
controle da harmonia na produo do compositor est sempre implcito,
sedimentando toda a idia da nova e inusitada construo meldica. To inusitada
como a obra de Clarice; Inusitada, no entanto, apenas no sentido imagtico e
semntico, no na sintaxe. (SANTANA, 1975, p. 207) E mais: A linguagem de
Clarice Lispector no nada obscura. Obscura a experincia do que ela trata.
(NUNES, 1976, p. 111) As palavras utilizadas pela autora, assim como os doze tons
selecionados por Schoenberg, no diferem daquelas de que todos os escritores e
msicos se valem. O que lhes confere o inusitado resultado das obras pois toda a
crtica unnime em reconhecer essa caracterstica como uma constante nos dois
artistas ultrapassa a constituio dessas matrias-primas para concentrar-se na
manipulao delas, na maneira como se dar sua organizao, seu encadeamento.
9 Form in the arts, and especially in music, aims primarily at comprehensibility. The relaxation which a
satisfied listener experiences when he can follow an idea, its development, and the reasons for such development is closely related, psychologically speaking to a feeling of beauty. Thus, artistic value demands comprehensibility, not only for intellectual, but also for emotion satisfaction. He asserts that composition with twelve tones has no other aim than comprehensibility. (apud CRANOR, 2007, p. 25)
-
35
O levantamento de tais consideraes, originado pela adoo da Msica de
Cmara como um parmetro comum, abre-se para o domnio do dodecafonismo
muito naturalmente, pois, como visto, j no tem sido possvel prosseguir a anlise
sem recorrer ao mtodo que se ergue como nosso interesse principal no
pensamento de Schoenberg. Urge uma conceituao mais precisa do mtodo
dodecafnico, pois se at aqui ele tem sido mencionado algumas vezes, a partir da
relao proposta com gua Viva, ser ele agora o principal ponto de contato entre
os dois autores. Temos em Adorno, um excelente ponto de partida analtico:
No se deve entender a tcnica dodecafnica como uma tcnica de composio, como por exemplo, a do impressionismo. Todas as tentativas de utiliz-la desta maneira conduzem ao absurdo. Pode-se melhor compar-la com a disposio das cores sobre a paleta do pintor do que com um verdadeiro procedimento pictrico. A ao de compor s comea, na verdade, quando a disposio dos doze sons est pronta. Por isso a composio neste caso no mais fcil e sim mais difcil. Exige, quer se trate de um tempo singular ou de toda uma obra em mais tempos que cada composio derive de uma figura fundamental ou srie. Entende-se por isto uma determinada ordenao dos doze sons disponveis no sistema temperado, como por exemplo, d sustenido, l, si, sol, l bemol, f sustenido, si bemol, r, mi, mi bemol, d, f que a srie da primeira composio dodecafnica publicada por Schoenberg. Em toda a composio cada som est determinado por esta srie; j no existem notas livres, e somente em casos limitados e bastante elementares, que se apresentaram nos primrdios da tcnica dodecafnica, esta srie se expe em toda uma obra sem variaes. (ADORNO, 2004, p. 55, grifo nosso)
Um limite. Ao mesmo tempo em que o dodecafonismo ilumina um novo
horizonte para os parmetros musicais, subvertendo as expectativas de criao at
ento utilizadas, em nenhum momento ele sinaliza trabalhar sem a necessidade de
um parmetro ou limitao formal. Como podemos perceber j em sua definio, a
idia de um limite criativo acompanha toda a estrutura dodecafnica como um
elemento ontolgico de sua prpria forma. A sntese de procedimentos apontada por
Adorno equilibra-se sobre um tnue contato entre a liberdade e o rigor, pois ao
mesmo tempo em que esse mtodo participa de um projeto reconhecidamente
notado por ultrapassar as fronteiras formais da composio, ele lida com novos
limites a serem obedecidos, ainda dentro de uma concepo esttica formal, mas j
em outra ordem de interesses, visto que esse limite consiste como objetivo e mtodo
de criao agora almejado.
A organizao das composies de Schoenberg jamais tolerou qualquer
gratuidade ou ornamento, como ele preferia dizer. As dissonncias e a proeminente
polifonia sempre se do dentro de uma rigorosa lgica que s aparentaria
-
36
despreocupao formal em ouvidos despreparados. Por isso, natural o senso de
estranhamento causado pela audio de sua obra. O rebuscamento meldico que
praticamente nos impede de sequer assobiar qualquer composio dodecafnica,
pois toda ela permeada por uma sensao de imprevisibilidade, nos parece
intrinsecamente ligado ao que experimentamos na estranha prosa que Clarice
desenvolve em gua Viva, impossvel de ser narrada ou resumida por terceiros.
Por mais que encontremos profundas semelhanas entre esse livro e o
restante da produo da autora, ou vislumbremos algumas recorrncias estilsticas
na prosa contempornea de outros escritores, gua Viva permanece revestido por
uma espcie de aura criativa associada impresso de plena liberdade literria
(em continuidade ao que vinha sendo desenvolvido pela literatura moderna mundial).
Porm, absolutamente nada pode ser apontado nessa obra, apesar da constante
sensao de improviso, como algo no planejado ou arbitrrio, pois o prprio texto
indica a necessria presena de um limite para sua elaborao: Quero a
experincia de uma falta de construo. Embora este meu texto seja todo
atravessado de ponta a ponta por um frgil fio condutor qual? O mergulho na
matria da palavra? o da paixo? Fio luxurioso, sopro que aquece o decorrer das
slabas. (LISPECTOR, p. 31-2)
Se o fio condutor de gua Viva pode ser encontrado na matria da palavra,
essa uma resposta que no teremos, pois nem interesse do mistrio clariceano
oferecer repostas; mas somente a abertura existente na indagao feita suficiente
para confirmar a importncia que a palavra, enquanto matria-prima escritural,
adquire dentro desse contexto, onde pela palavra a personagem se liberta e ao
mesmo tempo se restringe a uma expresso que a limita. Qualquer dilogo iniciado
com outras artes s poder se efetuar dentro do domnio semntico da palavra
escrita, sendo esse um dos limites mais sensveis que o texto transmite, e que nos
reporta realidade da expresso musical. Assumir que cada nota de um tema
meldico reflete vagamente o tema inteiro (BERGSON, 2006, p. 136), mxima
perfeitamente aplicada para o raciocnio dodecafnico, reitera nossa associao
com gua Viva, pois, a, cada palavra parece refletir o texto inteiro, assim como as
demais artes mencionadas.
A presena do fio luxurioso, elemento limitador de Clarice, tambm chamado
de sopro que aquece o decorrer das slabas (interessante notar como at o limite a
se revela exuberantemente potico), pede que um parntese seja aberto para se
-
37
escutar o que Lyotard discutiu em sua anlise do sopro (souffle). Segundo ele, o
sopro um vento vazio que passa e no passa, atravessando pela sua existncia
todos os obstculos que geram o audvel. Declara: O sopro atonal. [...] A msica
no pode fazer com que se oua o sopro, no pode imit-lo, pois nada de audvel
pode se parecer com ele. (LYOTARD, 1996, p. 202) Assim, curioso que a
liberdade criativa de Clarice seja guiada justamente por um sopro. Mais uma vez
encontramos no somente um questionamento s convenes da tonalidade
musical, mas tambm um forte interesse pelo silncio, por aquilo que ouvido para
alm do sentido auditivo. Se a msica no pode imitar o sopro, tambm no
pertence literatura a capacidade de imitar o que Clarice realiza em gua Viva.
Os impulsos meldicos em Schoenberg, igualmente no mais includos na
ordem musical do audvel, mas sim no complexo estrutural das composies,
ganham espao acentuando uma coerncia interna composio, conhecendo uma
nova possibilidade de sntese formal atravs da dialtica entre a disciplina e a
liberdade, e fazendo com que o uso da polifonia10 ultrapasse o domnio dos sons no
dodecafonismo, para instaurar o primado da subjetividade, tambm inimitvel.
Se retomarmos o trecho j citado onde Clarice escreve: Cordas escuras que,
tocadas, no falam sobre outras coisas, no mudam de assunto so em si e
de si, entregam-se iguais como so, sem mentira nem fantasia. (p. 97, grifo nosso);
nele encontraremos os mesmos princpios que norteiam o mtodo de Schoenberg. O
apoio intersemitico que a palavra clariceana vai buscar na msica encontra na
expresso desse compositor um exemplo prtico de aplicao ao que consta no
texto. Assim como Clarice recusa-se a mudar de assunto, pois ele nem representa
uma hiptese para a continuidade de sua escrita, a srie dodecafnica no lida com
opes que estejam fora da mesma, da origem em si. A conseqente circularidade
desse princpio o que termina por abrir as obras em questo a indagaes que no
objetivam nada alm da linguagem, pois toda possibilidade de um alm no poder
mais habitar um lugar que no seja a prpria linguagem.
Um dos desenhos feitos por Schoenberg para ilustrar didaticamente essas
noes do princpio serial, trabalhando as possibilidades de variao a partir da srie
de origem, pode, em muito, contribuir no assunto que discutimos:
10
Tcnica tradicional de composio, formada lentamente numa evoluo de vrios sculos a partir da melodia gregoriana, que une duas ou mais vozes (vocais ou instrumentais) dentro de uma linha meldica e rtmica com princpio dinmico individualizado.
-
38
Figura 1 (LEIBOWITZ, 1981, p. 98)
a partir da srie fundamental de doze sons que a composio dodecafnica
deriva todos os seus elementos, oriundos dos motivos, variaes e transposies
dessa srie original11. Nenhum desses sons pode se elevar acima dos outros onze,
nenhum pode ser repetido mais vezes que qualquer outro, pois somente assim o
tonalismo ser desconstrudo para que uma nova expresso se concretize. Os
significados formais abstrados da ilustrao acima, toda esta constituda por
quadrantes simetricamente elaborados, fazem reflexo ao que percebemos em gua
Viva. Por mais que Clarice institua uma perspectiva escritural interartstica, nunca
seu texto consegue fugir dos limites impostos pela palavra e dos resultados que ela
implica. As notas de uma composio serial intercalam-se dentro de uma s partitura
da mesma forma que as palavras de gua Viva se relacionam, em constante e
repetida auto-referncia; e essa recorrncia se d, pelo menos, em dois nveis: num
nvel estilstico propriamente dito, pela utilizao de anforas e no nvel simblico,
reempregando as mesmas imagens convertidas em motivos recorrentes.
(SANTANA, 1975, p. 205)
Todos os nveis de uma narrativa (sintagmtico e paradigmtico) so assim
colocados por Clarice em permanente estado de alerta. No h signo ou vocbulo
que no tenha seu momento de especial ateno dentro de gua Viv