memória e divino: uma análise sobre a história da...
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Memória e Divino: uma análise sobre a história da "Festa de Agosto" de
Bom Jesus do Itabapoana1
Valéria de Fátima Ribeiro Gomes2
Resumo
Esse trabalho tem como objeto de pesquisa a Festa do Divino Espírito Santo, na
cidade de Bom Jesus do Itabapoana, noroeste do Estado do Rio de Janeiro,
conhecida na região como “A Festa de Agosto”. A festa, será analisada na
concepção dos teóricos que tratam da memória individual e coletiva; Henri
Bergson, Maurice Halbwachs e Philippe Joutard, tendo por base o trabalho dos
memorialistas da cidade de Bom Jesus do Itabapoana.
Palavras-chave: Memória, História, Festa do Divino.
Abstract
The research object of this work is the feast of Divine Holy Spirit in the city of Bom
Jesus do Itabapoana, northwest of the State of Rio de Janeiro. The feast is called
in the region as "Feast of August" and will be analyzed in the conception of
theorists of individual and collective memory: Henri Bergson, Maurice Halbwachs
and Philippe Joutard and the research will be based on the work of the
memorialists of the city of Bom Jesus do Itabapoana.
Keywords: Memory, History, Feast of the Divine.
1 Este artigo constitui-se no trabalho de conclusão de curso da Pós-Graduação Lato Sensu em “Literatura, Memória Cultural e Sociedade” do Instituto Federal Fluminense, Campus Campos-Centro. No ano de 2017, desenvolvido sob a orientação do Professor Ronaldo Adriano de Freitas, Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense – UFF. 2 Licenciada em Artes Visuais pelo Centro Universitário Fluminense – UNIFLU / Campus II, 2014. Pós-graduação Lato Sensu em Museografia e Patrimônio Cultural/ Centro Universitário Claretiano, 2015. E-mail: [email protected]
Introdução
De acordo com um artigo de jornal de Antônio Soares Borges (2017-b),
memorialista3 da cidade de Bom Jesus de Itabapoana, noroeste do estado do
Rio de Janeiro, a Festa do Divino Espírito Santo – conhecida na cidade como a
Festa de Agosto – é comemorada durante os dias 13 à 15 do referido mês. Por
motivos econômicos, essa festa tradicional desloca-se do calendário religioso
para o municipal, tendo no seu último dia a celebração do padroeiro da cidade,
Senhor Bom Jesus. Conforme o Censo Demográfico do IBGE (BOM JESUS,
2010, sp), a cidade possui uma população de 35.384 habitantes e como a
festividade tornou-se parte da identidade cultural da cidade, é considerada um
importante Patrimônio Cultural do município. A organização do evento é feita por
membros da Igreja Católica e pela prefeitura municipal e conta com missas
solenes, procissões, visitas dos símbolos sagrados (coroa, cetro e bandeira) às
residências, além dos eventos culturais, desfiles cívicos e shows.
Segundo Mariano (2012, p.58) a festa do Divino Espirito Santo reporta às
tradições católicas onde alicerça o culto. A presente pesquisa perderia sua lógica
se fosse analisada sobre um olhar unívoco no contexto do cristianismo católico,
embora a crença baseie-se nessas tradições. Neste artigo analisaremos a Festa
do Divino Espirito Santo, sobre o ponto de vista histórico oral e escrito.
No primeiro momento, o artigo tratará da concepção da memória
individual do filósofo Henri Bergson que divide a memória em memória do
espírito e memória do hábito; a memória coletiva do sociólogo Maurice
Halbwachs; e a memória histórica do historiador Philippe Joutard. Após essa
discussão, a partir dessas concepções, falaremos da Festa do Divino Espírito
Santo, como cultura popular, na cidade de Bom Jesus do Itabapoana, conhecida
como “A Festa de Agosto”.
O corpus da pesquisa é constituído por meio de jornal local e pela
oralidade dos considerados memorialistas, enquanto o referencial teórico
compõe-se de bibliografias e artigos que fazem menção ao estudo de memória
3 Autor de memórias históricas. Nesse trabalho, o termo está ligado a história contada oral e a publicações que contam a história da festa por via dessa tradição, em geral pessoas ligadas a igreja ou à família que introduziu essa festa no município.
e festas populares. O trabalho busca entender os motivos que levaram a
tradicional festa do Divino Espírito Santo de Bom Jesus do Itabapoana, cultuada
pela igreja católica, tornar-se “ A Festa de Agosto”. Considerando, que o evento
faz alusão a devoção do Divino Espírito Santo do Arquipélago de São Miguel,
Açores, Portugal.
Os registros dos memorialistas da “Festa de Agosto” de Bom Jesus do
Itabapoana encontram-se apenas em documentos locais e na memória
perpassada entre gerações. Halbwachs (1990, p.25) afirma que quando uma
pessoa relata que não acredita em seus próprios olhos, há nela dois seres: a) o
ser sensível, o autor compara esse ser a uma testemunha, que depõe sobre o
eu que viu, perante b) o “eu” que não viu no presente, mas, possivelmente pode
ter visto no passado, ou essa pessoa pode ter sustentado, sua opinião em relatos
de outras pessoas; o que ocorre no trabalho dos memorialistas aqui analisado.
1 Memória e História
O levantamento de memórias sobre “a Festa de Agosto” apresentado
nesse trabalho se dá sob a reflexão do que se pode entender por memória. De
acordo com Bergson (1999, p.83) a memória espiritual encontra-se em um
primeiro momento, o corpo como um ser vivo tem sensações: alegria, tristeza,
dor ao mesmo tempo que tem sensações tem percepções, o corpo é colocado
entre objetos que o tocam e que ele influencia, o autor chama de afecção a essa
modificação sofrida pelo corpo.
O autor supracitado (ibid. p.86) aponta alguns aspectos da memória
individual, e definiu-a como memória do espírito, que são as lembranças;
percepção seguida de registro: cada momento é registrado na memória do
espírito. A memória do hábito ou corpo, ocorre pela repetição sensório motora:
andar, comer, estudar decorar uma lição, no sensório motor estão ações que
ocorrem simultaneamente.
A cada nova leitura efetua-se um progresso; as palavras ligam-se cada
vez melhor; acabam por se organizar juntas. “Nesse momento preciso, sei minha
lição de cor; dizemos que ela se tornou lembranças, que ela se imprimiu em
minha memória” (BERGSON,1999, P.85). “A lembrança da lição, enquanto
apreendida de cor, tem todas as características de um hábito”. (ibid. p. 86)
Para o autor citado acima, a memória espiritual, são as percepções e
registros; o indivíduo vê e automaticamente registra. “Esses movimentos, ao se
repetirem, criam um mecanismo, adquirem a condição de hábito e determinam
em nós atitudes que acompanham automaticamente nossa percepção das
coisas”. (ibid. p.91)
Joutard (2007, p.223) remete a Maurice Halbwachs, ao tratar memória
individual como as lembranças, e a fatos pessoais, experimentados, de forma
reta, sem desvios. O historiador afirma que a memória antes de qualquer coisa
é individual, lembrança de cada um, de fatos vivenciados, embora não seja
arbitrário falar de forma análoga em memória coletiva, as experiências com a
prática em colher depoimentos orais torna pertinente a memória coletiva.
Halbwachs (1998, p.26) afirma, que uma única pessoa não é garantia para
ratificar uma lembrança, os detalhes passarão despercebidos, é necessário
recorrer a outras memórias. Para o sociólogo, a lembrança individual precisa do
outro, ela não está isolada; o indivíduo precisa da memória do grupo social em
que está inserido. A memória coletiva para o sociólogo agrega memórias
individuais, é importante diferenciá-las, a memória coletiva progride conforme
suas leis; se ocasionalmente a lembrança pessoal atingir o cerne da coletiva,
muda de aspecto ao ser introduzida no coletivo.
Joutard marca seu discurso sobre a memória afirmando que, antes de
qualquer coisa, a memória é individual com as lembranças individuais ligadas
aos momentos afetivos do passado “a memória tem uma relação direta, afetiva
com o passado, visto que ela é, antes de tudo, memória individual”
(JOUTARD,2007, p.223)
Halbwachs (1998, p.73-74) questiona Bergson, ao analisar o modo de
pensar do filósofo sobre a memória individual. Para o sociólogo, a memória
analisada por Bergson é individualista, ao criticar o filósofo, o sociólogo (1998)
centra a valorização na memória coletiva, marcada pelas relações interpessoais.
O posicionamento do autor supracitado (1998, p.99) quanto ao meio, espaço e
matéria aponta que os objetos, que estão no entorno dos indivíduos, levam a
marca individual e interpessoal, opondo-se a Bergson (1999, p.98) que considera
que os objetos que transitam em meio ao corpo compõe a memória do hábito,
que se forma de modo individual e não coletiva.
A memória coletiva, por outro, envolve as memórias individuais,
mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo suas leis, e
se algumas lembranças individuais penetram algumas vezes
nela, mudam de figura assim que sejam recolocadas num
conjunto que não é mais uma consciência pessoal.
(HALBWACHS,1998, p.44)
No que tange a memória histórica, Joutard (2007, p.224) assevera que as
instituições Estado e escola, entre outras, conduzem o indivíduo a um
engessamento histórico, promovem o esquecimento de fatos históricos
relevantes, enaltecendo uns acontecimentos, em detrimento a outros. O autor
aponta para o vácuo que algumas vezes se instaura entre a história e o
historiador. Muitas vezes o historiador relata períodos que não viveu. Não há, de
acordo com o autor, uma naturalidade entre o historiador e a história, mesmo
que o objeto de pesquisa do historiador tenha algo comum com sua vida.
Concordando com a visão de Joutard, Halbwachs (1998,) afirma que nem
sempre o sujeito participou fisicamente do período histórico vivido pela nação,
no entanto, ao evocá-lo este tem por obrigação, acreditar na memória do
semelhante, que poderá não acrescentar algo a sua memória, mas é a única
fonte que deseja repetir. “Carrego comigo uma bagagem de lembranças
históricas, que posso ampliar pela conversação ou pela leitura. Mas é uma
memória emprestada e que não é minha” (HALBWACHS,1998, p.45)
A respeito da relação entre memória e História oral, Joutard considera
que o essencial na memória é o esquecimento. A historiografia surge a partir da
crítica a oralidade tradicional, visto que a memória comete erros. A oralidade
nem sempre respeita as mesmas coisas, há falhas de datas, nomes,
acontecimentos; a memória muitas vezes concentra-se em apenas um recorte,
dá-se à desconfiança de muitos profissionais de História, frente a memória oral.
“Memória e história são assim duas vias de acesso ao passado paralelas e
obedientes a duas lógicas distintas”. (JOUTARD, 2007, p.225)
Segundo Halbwachs (1998, p.66), a memória coletiva se difere da história:
só há uma história. O sociólogo questiona que a história privilegie uma parte da
história em detrimento de outra. O que justificaria os recortes feitos pelo
historiador é que ao pegar cada recorte deste estudo e agrupá-los, formará um
conjunto, nenhum destes recortes são insignificantes, todos os acontecimentos
possuem sua relevância.
2 Origem da Devoção ao Espírito Santo
Tendo em vista essas concepções de memória, passamos ao
levantamento dessas memórias sobre a Festa do Divino em Bom Jesus do
Itabapoana a partir do trabalho dos memorialistas que falam sobe ela.
Segundo Mariano (2012, p.54) a devoção ao Divino Espírito Santo, surge
com as comemorações dos Judeus durante a festa de Pentecostes, cinquenta
dias depois da Páscoa, tornou-se uma das maiores manifestações da cultura
popular. “Pentecostes” significa a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos.
Conforme Corrêa (2012) a devoção ao Espírito Santo ganha notoriedade
em terras portuguesas (Alenquer) no século IV após uma promessa da Rainha
Dona Isabel de Aragão (1271-1336), esposa de Dom Dinis (1261-1325)
conhecida como a Rainha Santa, ao interceder o Divino Espírito Santo para que
paz retornasse à sua família, em reconhecimento a graça alcançada a Rainha
sairia em procissão pelas ruas de Portugal com os símbolos sagrados que
representam a devoção - a Coroa, o Cetro a Bandeira e uma criança na
representação do Imperador. A partir desse momento a devoção ao Divino
Espírito Santo repercutiu por toda Europa.
Em Açores, a comemoração ao Divino Espírito Santo tornou-se uma das
principais festividades da região. A força da festa popular levou o governo da
região a decretar no ano de 1980 um dia dedicado ao Espírito Santo, conhecido
como “o dia da Pombinha”, ou dia dos Açores, comemorado na segunda-feira
feira posterior ao Pentecostes, com isso o governo municipal de Açores apropria-
se da festa religiosa, para divulgar e promover o turismo na região (CORRÊA,
2013).
Além disso, com a intenção de tornar independente o arquipélago de
Açores, na década de 1970, à Frente de Libertação dos Açores (FLA), criou uma
rádio ilegal que transmitia a ideologia dos governantes sob o som do Hino do
Espírito Santo conforme menciona (CORRÊA, 2013). De acordo com Borges
(2017-b) o Hino do Espírito Santo que veio de Açores para o Brasil, Tornou- parte
da identidade da cidade de Bom Jesus do Itabapoana.
3 O Divino no Brasil
Segundo Čajánková (2016) a festa do Divino Espírito Santo possivelmente
chegou ao Brasil no século XVI com os colonizadores e pelas missões Jesuítas,
e espalhou-se por inúmeras cidades do território brasileiro, especialmente de
Minas Gerais e Goiás. No Sul do país há uma grande possibilidade de ter
chegado no século XVII, pelos imigrantes açorianos. De acordo com Abreu
(1999, p.39) no Rio de Janeiro, a festa chegou na segunda metade do século
XIX. A principal concentração da festa do Divino Espírito Santo, no Rio de
Janeiro era o Campo de Santana.
Mary Del Priore (1994 apud Abreu (1999), p.34), em sua análise sobre a
festa do Divino Espírito Santo, diz que a festa é uma representação teatral,
organizada pela sociedade, que busca dar ênfase aos grupos sociais,
subordinados à elite: índios, populares, negros e escravos, o que torna a festa
uma pluralidade cultural, regada de muitas recreações, divertimento, assimilação
cultural; e uma originalidade, pela quantidade de cultura envolvida. Embora
houvesse um sincretismo religioso entre os participantes, a festa era um território
de conflitos, discussões hostilidades e manipulação entre dominantes e
dominados, tendo como controle o Estado e a Igreja.
3.1 A festa do Divino no século XXI
Segundo Althusser as organizações que aspiram manter-se no poder por
tempo indeterminado, buscam caminhos, para garantir sua permanência,
apoiando-se nos Aparelhos Ideológicos de Estado. O autor citado, afirma não
haver Aparelhos genuinamente ideológicos (estes funcionam secundariamente
pela repressão) as organizações, usam da ideologia para reprimir. “Assim a
escola e as igrejas ‘educam’ por métodos apropriados de sanções, de exclusões,
de seleção, etc., não só os seus oficiantes, mas as suas ovelhas. Assim a
família... assim, o Aparelho Ideológico cultural (a censura, para só mencionar
esta) etc.” (ALTHUSSER,1985, p.47)
Conforme Abreu (1999, p.36) a igreja, junto ao Estado, no final do século
XIX transformou a festa do Divino Espirito Santo em uma festa tipicamente de
paróquia. Prevaleceu uma cultura (religiosa) em detrimento da outra (popular),
no entanto, Segundo o Iphan (2013) no século XXI, a cultura de massa integra-
se a cultura popular, na festa do Divino de Paraty, no litoral Sul do Rio de Janeiro,
o Shows da cultura kitsch4, em Alcântara no Maranhão, as mulheres caixeiras, e
em Pirenópolis, Goiás, as máscaras utilizadas no carnaval, reintegrando a
cultura popular na festa do Divino.
Esse movimento faz com que a festa adquira características do que se
pode denominar cultura popular. Segundo Chauí:
Embora de difícil definição, a expressão Cultura Popular tem a
vantagem de assinalar aquilo que a ideologia dominante tem por
finalidade ocultar, isto é, a existência de divisões sociais, pois,
referir-se a uma prática cultural como Popular significa admitir a
existência de algo não –popular que permite distinguir formas de
manifestação cultural numa mesma sociedade. A noção de
Massa, ao contrário, tende a ocultar diferenças sociais, conflitos
e contradições. (CHAUÍ, 1996, p.28)
Segundo o memorialista Antônio Borges, na festa do Divino Espírito Santo
de Bom Jesus do Itabapoana, também conhecida como a “Festa de Agosto”, por
incompatibilidade ideológicas, há duas organizações, uma municipal e outra
religiosa.
4 Bom Jesus do Itabapoana e a devoção ao Divino Espírito Santo
A memória da devoção ao Divino Espírito Santo, também conhecida pela
“Festa de Agosto” da cidade de Bom Jesus do Itabapoana, noroeste do Estado
do Rio de Janeiro, é contada a partir dos considerados memorialistas da região,
Monsenhor Paulo Pedro Serôdio Garcia, pároco, atualmente (2017), da paróquia
do Sagrado Coração de Jesus, na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ) e
4 O termo Kitsh, segundo o dicionário Priberam está associado a estereótipos sociais e culturais
e a um tipo de sensibilidade que se adequa ao gosto majoritário da população não erudita.
Antônio Soares Borges, Historiador e memorialista da cidade de Bom Jesus do
Itabapoana (RJ). Por conter pouca documentação que comprove a festa,
basicamente a mesma é contada pela oralidade. Citando Joutard:
A história, já de saída, instaura uma distância; na grande maioria
dos casos, o historiador não viveu o passado que descreve, a
ligação afetiva e pessoal não é espontânea, mesmo que o
assunto estudado pelo historiador tenha alguma relação com
sua própria história. (JOUTARD,2007, p.224)
Conheceremos a festa do Divino Espírito Santo de Bom Jesus do
Itabapoana através do ponto de vista dos memorialistas a quem a história foi
perpassada. A história nunca é acompanhada de uma verdade absoluta, faz-se
necessário mais de uma fonte, na cidade de Bom Jesus do Itabapoana, a história
é contada através do ponto de vista da família, Teixeira.
Imagem 1 – Cartão de lembrança da Festa do Divino em Bom Jesus do Itabapoana
de 1924
Fonte: Arquivo do memorialista Antônio Soares Borges
Conforme Borges (2017-b) e Garcia (2017) a festa do Divino Espírito
Santo em Bom Jesus do Itabapoana tem raízes em Portugal e em Açores, Ilha
de Portugal.
De acordo com Teixeira (2005, p.38) a memória da festa do Divino Espírito
Santo na cidade de Bom Jesus emana da sua família, pois o português Francisco
Teixeira de Siqueira, trouxe para o Brasil, (1780) as relíquias que representam a
devoção ao Divino Espírito Santo, a Coroa e o Cetro5. Em 1810, Francisco
Teixeira casa com a brasileira Felicíssima D`Roza morando na localidade do Rio
Pomba (MG). No ano de 1863 o casal muda-se para Bom Jesus do Itabapoana.
“Deste casal se originou a família Teixeira de Siqueira que, mais tarde, muito
concorreu para povoar e fazer progredir Bom Jesus do Itabapoana, na Província
do Rio de Janeiro e São José do Calçado, na Província do Espírito Santo”
(TEIXEIRA, 2005, p.37)
Imagens 2 e 3 - Relíquias da devoção ao Espírito Santo em Bom Jesus do
Itabapoana
Fonte: Arquivo do memorialista Antônio Soares Borges
Garcia, em entrevista aberta, no dia 5 de março de 2017, declara que a
Coroa e o Cetro, foi parar na casa de uma senhora muito religiosa, de nome
Felicíssima, de acordo com Garcia, Dona Felicíssima foi precursora da devoção
ao Divino Espirito Santo na região de Bom Jesus, por ocasião de uma
enfermidade em sua família, dona Felicíssima recorre ao Espírito Santo que
5 Segundoá Čajánková (2017), a Coroa simboliza a divindade e a Pomba representa o Espírito Santo. Mariano (2012) apresenta o Cetro e a Bandeira como símbolos imperiais.
interceda, obteve, a graça e a devoção difundiu pelo Arraial de Bom Jesus, nova
residência da família.
Segundo Garcia (2017) a enfermidade que possivelmente teria quase
levado o menino Pedro Teixeira Reis a óbito seria a tuberculose, doença de
acordo com o mesmo, naquela época, século XIX, não tinha cura: “Dona
Felicíssima criou vários filhos e depois um dos seus netos teve uma doença
muito grave, o livro que tem a história não fala da doença que era, mas poderia
ser (pausa) naquela época tuberculose por exemplo, que não tinha cura”
(GARCIA, 2017, sp).
Contudo Borges (2017.b) relata que a doença que atingiu o menino citado
acima seria meningite.
A Festa de Agosto onde existe a imponente figura do Imperador,
acrescida à Festa em 1891, por uma promessa feita, à época,
pelo Festeiro, deste ano Joaquim Teixeira de Siqueira Reis, que
se encontrava muito doente, acometido por uma meningite”
(BORGES, 2017- b, sp)
Essas divergências confirmam Joutard. Segundo o Autor, a memória é
feita de esquecimentos. Ele ainda classifica essas memória em memória
modesta e memória orgulhosa, as memórias modestas são daqueles que se
julgam inferiores, que muitas vezes acreditam que o que sabem não tem valor,
ao serem interrogados pelo pesquisador, de forma informal a história começa a
ser evocada, sem que haja a necessidade de recorrer aos “detentores da
história” sem a presença de um pesquisador, essa história ficaria no passado,
ao ser entrevistado as lembranças surgem. Enquanto a memória orgulhosa
afirma o autor citado acima, recorre a citações, frases prontas; essas pesquisas
pouco têm de lembranças.
Quando o analisamos, percebemos que a parte das lembranças
pessoais é frágil, preponderando as referências escritas,
frequentemente obtidas por empréstimos à história ou ao
menos, a uma certa forma de história que se presta à
simplificação memorialista. (JOUTARD,2007,p.230)
Conforme Antônio Borges (2017-b) não há uma previsão exata do início
da devoção, calcula-se que entre o ano de 1860 e o ano de 1863. Já Teixeira
(2005, p.39) afirma, que com parte da família morando em Bom Jesus do
Itabapoana, as relíquias foram doadas, de Minas Gerais para a Capela do Arraial
de Bom Jesus, com recomendação de Dona Felicíssima, para continuar a
devoção que iniciou em Pirapetinga, com “Orações, novenário, visitas às casas
de família e oratória”. A devoção passou pelas fazendas da região do Arraial de
Bom Jesus, em cada fazenda, havia um oratório, para realização das devoções
religiosas, acrescenta o autor.
O autor registra que a partir da promessa que Francisco Reis, pai de
Pedro Teixeira Reis, fez ao Divino Espírito Santo, em prol da saúde do seu filho
se o mesmo ficasse curado de uma grave doença o vestiria de Imperador da
guarda do Divino. E assim, com a cura do menino Pedro Teixeira Reis, o
Imperador começou a fazer parte da devoção na cidade de Bom Jesus, como
afirma Antônio Borges, no jornal “O Norte Fluminense, do dia 17 de agosto de
2016”.
Até aqui se entendia e, assim era passado ao longo de tantos
anos que o Imperador era uma figura que surgia desde início da
nossa festa. Porém hoje podemos dizer com muita segurança,
respaldado em pesquisa e fatos, que tal se sucede somente no
ano de 1891...e o primeiro Imperador, Pedro Teixeira Reis
(BORGES, 2017-a).
Bergson (1999, p.84) afirma que as lembranças evocadas estão na
memória natural, ou seja, espírito, enquanto na memória do hábito encontram-
se o real. A memória contada pelo memorialista, possivelmente fez parte da
memória do hábito por ser da categoria motora, feita por repetição, enquanto o
pároco, ao falar livremente recorreu as lembranças passadas, vindo através da
memória do espírito.
a operação prática e consequentemente ordinária da memória,
a utilização da experiência passada para a ação presente, o
reconhecimento, enfim, deve realizar-se de duas maneiras. Ora
se fará na própria ação, e pelo funcionamento completamente
automático do mecanismo apropriado às circunstâncias; ora
implicará um trabalho do espírito, que irá buscar no passado,
para dirigi-las ao presente, as representações mais capazes de
se inserirem na situação atual. (BERGSON,1999, p.84)
Segundo Halbwachs (1968, p.25) a memória é a lembrança do passado,
reproduzido, na atualidade, mas não é uma recordação estática, é uma
reconstrução a partir das contribuições que a comunidade, congregação ou
povo, passa, de uma geração para outra. A memória coletiva da festa do Divino
Espírito Santo de Bom Jesus do Itabapoana, também conhecida como “A Festa
de Agosto” foi e está sendo construída a partir de relatos, de uma família e
repassado oralmente para as gerações. Maurice Halbwachs chama esses
relatos de “memória emprestada”.
4.1 A Festa de Agosto
De acordo com Borges (2017-b) a festa do Divino Espírito Santo tornou-
se “A Festa de Agosto” por causa da colheita do café, quase a única fonte de
renda na época - a colheita acontecia durante o mês de julho, como o
Pentecostes acontece cinquenta dias depois da Páscoa, o mês de maio seria o
dia de comemorar o Divino, somente desta forma, transferindo a comemoração,
aponta o memorialista, a população teria condições financeiras para investir na
festa, além de ser o mês das comemorações do padroeiro da cidade, Senhor
Bom Jesus, agosto é também o mês da “Assunção de Nossa Senhora”.
Teixeira (2005, p.40) afirma que a mudança aconteceu no ano de 1899,
com a chegada de um novo pároco, para a igreja matriz do Senhor Bom Jesus,
na referida cidade, este de nome Antônio Francisco de Mello, ao chegar à cidade
encanta-se com a festa, por ser semelhante à de sua cidade natal. Conforme
Teixeira, o novo pároco, introduziu nos festejos o hino “Alva Pomba”, marca da
influência de Açores na festa. Todavia, o novo pároco, contesta a versão
apresentada por Teixeira (2005, p.127) ao afirmar que quando chegou à cidade
de Bom Jesus do Itabapoana, a festa já havia sido deslocada para o mês de
agosto, e intitulada “Festa de Agosto”.
Antônio Borges (2017-a), no jornal “O norte Fluminense” do dia dezessete
de agosto de 2016, confirma a versão do padre Mello, segundo Antônio Borges,
não foi o Padre Mello, protagonista dessa mudança, ocorrida provavelmente, em
(1875). Joutard, (2007, p.223) afirma, que a memória tem uma ligação com o
que já vivemos anteriormente, posto que, primordialmente a memória é individual
o que torna essencial na memória é o fato de esquecer, a memória é exigente,
fica centralizada em alguns acontecimentos.
Segundo Garcia (2017), no ano de 1958, a Festa de Agosto foi
interrompida, possivelmente o que levou a interrupção, de acordo com o padre,
foi o fato de que o clero da época considerou a festas uma “crendice” ignorando
sua história. Teixeira (2005, p.40) confirma a versão do sacerdote e diz: ” A
tradição e até hoje, da festa do Divino Espírito Santo foi interrompida em 1956,
quando, havendo sido substituído o Vigário de Bom Jesus”. A discordância, entre
a fala desses memorialistas, está na data, 1958 e 1956.
Essas diferentes versões comprovam o dizer de Halbwachs:
A história é um quadro de mudanças, e é natural que ela se
convença de que as sociedades mudam sem cessar, porque ela
fixa seu olhar sobre o conjunto, e não passam muitos anos sem
que dentro de uma região desse conjunto, alguma
transformação se produza (HALBWACHS,1968, p.68)
Segundo Garcia (2017) e Teixeira (2005, p.40) a “Festa de Agosto “ficou
interrompida por vinte sete anos, por incompatibilidade ideológica, Halbwachs
(1968) afirma que as transformações acontecem, a sociedade muda, e assim a
forma de pensar de cada grupo social, e muitas vezes as transformações
acontecem dentro do próprio núcleo social. A “Festa de Agosto” retornou no ano
e 1983.
No par de fotos apresentado a seguir, vemos uma foto de um “menino
Imperador” de 1947 e ao lado, em 1994, o filho do memorialista Antonio Soares
Borges participa da festividade como Imperador do Divino. Na terceira foto,
vemos um encontro de gerações: o Imperador de 2017 com o que foi Imperador
em 1947.
Imagens 4 e 5 – crianças representando o Imperador (1947 e 1994)
Fonte: Arquivo do memorialista Antônio Soares Borges
Imagem 6 – Imperador de 2017 ao lado do Imperador de 1947
Fonte: Arquivo do memorialista Antônio Soares Borges
De acordo com Borges (2017.a) A festa nos dias atuais reúne elementos
das tradições religiosas desde suas gens, Portugal, que são: a Coroa o Cetro e
a bandeira, o festeiro (organizador da festa) e o Imperador na figura do menino
(criação de Rainha Isabel de Aragão). Na Festa de Agosto o Imperador é
escolhido pelo pároco que pode ser um menino ou adolescente desde que o
mesmo faça parte da paróquia, e não através do pelouro (sorteio) comum em
muitas festas dedicada ao Divino Espírito Santo, o autor citado acima afirma que
mesmo com o crescimento da cidade a celebração manteve-se no mês de
agosto além de agregar elementos da cultura popular, como shows, desfiles
cívicos e leilões.
Considerações Finais
As comemorações ao Divino Espírito Santo, após a sua notoriedade no
século XIV, com a Rainha Isabel de Aragão (1271-1336), tornou-se uma das
maiores expressões da cultura popular. No Brasil, a comemoração se inicia no
século (XVI) com a chegada dos colonizadores, possivelmente no século (XVII)
com os imigrantes açorianos. Na cidade de Bom Jesus do Itabapoana, a festa
do Divino Espírito Santo, ganhou uma nova conotação, tornou-se “A Festa de
Agosto” . A referida festa traz influências de Portugal e Açores, é considerada
pelos memorialistas da região como uma das únicas cidades do Brasil a ter um
Hino “Alva Pomba” tocado pela filarmônica nos moldes de Açores.
Todavia há elementos que compõe a cultura da festa do Divino, que em
Bom Jesus do Itabapoana perderam-se ao longo dos tempos ou foram
substituídos; a distribuição de alimentos muito comum nos festejos, de acordo
com o memorialista Antônio Borges há uma possibilidade de se retomar o
costume na Festa de Agosto e as “domingas” que são as sete semanas que
existem entre o período da Páscoa e Pentecostes. Com o deslocamento da festa
para o mês de agosto perdeu-se a tradição, mas também é outro fator que
diferencia, na “Festa de Agosto” as mesmas foram substituídas pelos dias da
semana, mas são traduzidas como as “domingas”; a escolha do Imperador
também se difere, normalmente esse é escolhido através de sorteio, conhecido
por “pelouro”, em Bom Jesus é escolhido pelo pároco. São as diferenças que
fazem da cultura algo extraordinário.
Este artigo procurou analisar a “Festa de Agosto” sob a ótica dos
considerados memorialistas da região, através da oralidade já que há pouca
documentação, que faz menção a devoção do Divino Espírito Santo, na cidade
de Bom Jesus do Itabapoana. O fio condutor para analisar a “Festa de Agosto”
foi fornecido pelos teóricos que tratam da memória individual, coletiva e histórica
pelos quais se buscou analisar os considerados memorialistas da cidade de Bom
Jesus do Itabapoana.
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