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Maria João Broa Martins Marçalo

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Maria João Broa Martins Marçalo

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Maria João Broa Martins Marçalo

2019

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Uma

língua é o lugar

donde se vê o mundo

E em que se traçam os

limites do nosso

pensar e sentir.

Vergílio Ferreira

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROReitorRuy Garcia MarquesVice-ReitoraMaria Georgina Muniz Washington

DialogartsCoordenadoresDarcilia SimõesFlavio García

Conselho Editorial

Estudos de Língua Estudos de LiteraturaDarcilia Simões (UERJ, Brasil) Flavio García (UERJ, Brasil)

Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP, Brasil) Karin Volobuef (Unesp, Brasil)Maria do Socorro Aragão (UFPB/UFCE, Brasil) Marisa Martins Gama-Khalil (UFU, Brasil)

Conselho Consultivo

Estudos de Língua Estudos de Literatura

Alexandre do A. Ribeiro (UERJ, Brasil) Ana Cristina dos Santos (UERJ, Brasil)Claudio Artur O. Rei (UNESA, Brasil) Ana Mafalda Leite (ULisboa, Portugal)

Lucia Santaella (PUC-SP, Brasil) Dale Knickerbocker (ECU, Estados Unidos)Luís Gonçalves (PU, Estados Unidos) David Roas (UAB, Espanha)

Maria João Marçalo (UÉvora, Portugal) Jane Fraga Tutikian (UFRGS, Brasil)Maria Suzett B. Santade (FIMI/FMPFM, Brasil) Júlio França (UERJ, Brasil)

Massimo Leone (UNITO, Itália) Magali Moura (UERJ, Brasil)Paulo Osório (UBI, Portugal) Maria Cristina Batalha (UERJ, Brasil)

Roberval Teixeira e Silva (UMAC, China) Maria João Simões (UC, Portugal)Sílvio Ribeiro da Silva (UFG, Brasil) Pampa Olga Arán (UNC, Argentina)

Tania Maria Nunes de Lima Câmara (UERJ, Brasil) Rosalba Campra (Roma 1, Itália)Tania Shepherd (UERJ, Brasil) Susana Reisz (PUC, Peru)

DialogartsRua São Francisco Xavier, 524, sala 11007 - Bloco DMaracanã - Rio de Janeiro - CEP 20550-900http://www.dialogarts.uerj.br/

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Copyright© 2019 Maria João Broa Martins Marçalo

EdiçãoDarcilia Simões

CapaRaphael Fernandes

DiagramaçãoDarcilia Simões

RevisãoDarcilia Simões

ProduçãoUDT LABSEM – Unidade de Desenvolvimento Tecnológico Laboratório Multidisciplinar de Semiótica

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FICHA CATALOGRÁFICA

MARÇALO, Maria João Broa Martins. Uma Língua é um lugar donde se vê o mundo. A segunda articulação e outras questões de Linguística Portuguesa e de Teoria da Linguagem.Rio de Janeiro: Dialogarts, 2019.

Bibliografia.

ISBN 978-85-8199-137-5

1.Linguística 2. Pesquisa. 3. Ensino. I. Universidade de Évora II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. III. Departamento de Extensão. IV. Título.

M313

Índice para catálogo sistemático410 – Linguística400 – Linguagens e línguas 370 – Educação

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Nota Prévia

A publicaça o digital afirma-se como um espaço

de partilha alargada e sem fronteiras, sobretudo

quando os textos sa o disponibilizados em acesso livre,

sem quaisquer custos para o leitor. A possibilidade de

dar visibilidade a este texto, sobre questo es de

Linguí stica Portuguesa e de Teoria da Linguagem que

nos foi oferecida pela Dialogarts, pareceu-nos da

maior pertine ncia, pois permite chegar a pu blicos

muito distintos e de forma fa cil. E certo que o texto

fala do espaço de leccionaça o da unidade curricular de

Linguí stica Portuguesa I, na Universidade de E vora.

Mas e tambe m verdade que os conceitos e questo es

aqui abordadas podem revelar interesse para leitores

de outras geografias e de diferentes normas da lí ngua

portuguesa.

Um agradecimento especial a Profª Doutora

Darcí lia Simo es que dirige a Dialogarts.

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Dados da autora

Maria João Marçalo tem doutoramento e Agregaça o

em Linguí stica pela Universidade de E vora, Portugal. E

docente no Departamento de Linguí stica e Literaturas,

foi a primeira directora do Master em Traduça o da

Universidade de E vora e e actualmente diretora do

Programa de doutoramento em Linguí stica na mesma

universidade. E autora dos livros Introduça o a

Linguí stica Funcional, Grama tica Pra tica da Lí ngua

Portuguesa e de Fundamentos para uma Grama tica de

Funço es Aplicada ao Portugue s, e editora com Emilio

Ortega do volume Linguí stica e Traduça o na

Sociedade do Conhecimento e autora de va rios artigos

em publicaço es portuguesas e estrangeiras. E

investigadora do Centro de Estudos em Letras CEL-EU.

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Sumário

Nota Prévia ................................................................. 6

Dados da autora ......................................................... 7

As unidades de segunda articulação: do som ao fonema

................................................................................. 10

Introdução ................................................................ 10

1. A definição de língua ......................................... 18

1.1. As unidades de segunda articulação ............ 24

2. O fonema como conceito linguístico ................. 34

2.1. Pré-história do conceito ................................. 34

2.2. Baudouin de Courtenay .................................. 36

2.3. Nicolas Troubetzkoy ....................................... 38

3. A análise fonológica ........................................... 41

3.1. Variantes individuais e variantes contextuais . 51

3.2. Fonema e traços pertinentes .......................... 55

3.3. Arquifonema e neutralização ......................... 62

3.4. Relações sintagmáticas e paradigmáticas ....... 64

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4. Resumindo ......................................................... 67

Referências ................................................................ 69

Sítios na Internet: ...................................................... 77

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As unidades de segunda articulação: do

som ao fonema

Introdução

Na sequencia dos conhecimentos adquiridos no

primeiro ano da licenciatura em Lınguas, Literaturas e

Culturas, nas disciplinas propedeuticas de Estudos

Linguısticos I e II, esta liçao e a primeira de uma serie

de quatro sobre Fonologia do Portugues. Cumpre, em

primeiro lugar, partir da realidade fısica dos sons da

fala humana, os fones, rever os sımbolos (IPA –

International Phonetic Alphabet e outros alfabetos

foneticos) usados para a notaçao fonetica e fazer

exercıcios que permitam aos alunos a destreza

necessaria a essa mesma tarefa de transcriçao

fonetica. Da unidade Fone partiremos, por contraste,

para a caracterizaçao do Fonema e das oposições

fonológicas.

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A liçao tem por objectivo dar uma perspectiva

real do sistema fonológico do Portugues Europeu.

Contrastaremos com as manifestaçoes alofonicas,

introduzindo aqui o conceito de variação.

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Plano da Exposição

1. As unidades de segunda

articulação: do som ao fonema

1.1 Como descrever e analisar

as unidades de segunda

articulaçao: definiçao de LIÉNGUA.

1.2 O Fonema como conceito linguıstico,

sua implantaçao e uso actual.

1.3 Variaçao e variantes: as regras de Troubetzkoy

O plano curricular das licenciaturas em Ensino

de Portugues e Frances e Ensino de Portugues e Ingles

apresenta, no 2º ano dos cursos referidos, a disciplina

anual de Fonologia e Morfologia do Portugues. Nao

tendo o aluno, ao longo do seu percurso escolar no

Ensino Secundario, tido qualquer contacto directo

com disciplinas 1a area da linguıstica. EÉ no 1º ano do

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Ensino Universitario que esse encontro acontece, mais

especificamente na disciplina de Introduçao aos

Estudos Linguısticos, onde e confrontado com uma

nova ciencia, o seu objecto e metodologia(s).

Ao frequentar a cadeira de Linguıstica

Portuguesa I o aluno devera ter ja adquirido certas

noçoes gerais sobre a instituiçao humana que e a

linguagem, sobre as suas funçoes, de entre as quais e

essencial a funçao de comunicaçao, e sobre a

especificidade de cada lıngua, que se reflecte nas

diferentes unidades de primeira e de segunda

articulaçao.

A cadeira de Linguıstica Portuguesa I centrara,

num primeiro tempo, a atençao do aluno

precisamente na segunda articulaçao da linguagem,

constituıda pelas unidades mınimas distintivas e

sucessivas - os fonemas, e num segundo tempo, nos

traços prosodicos ou suprassegmentais.

A nossa abordagem coloca-se na linha da

fonologia de Praga, inserindo-se concretamente na

perspectiva funcional. Convictos de que toda a

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pesquisa cientıfica se baseia numa dada pertinencia, e

de que e a pertinencia comunicativa que melhor

permite compreender a natureza e o funcionamento

das lınguas, adoptaremos consciente- mente o ponto

de vista funcional. No entanto, serao fornecidas ao

aluno outras perspectivas de abordagem do mesmo

objecto, tal como as diferentes metodologias

propostas pelas diferentes Escolas.

O objectivo desta disciplina sera familiarizar o

aluno com os metodos e tecnicas que permitem

conduzir com sucesso a analise fonologica e

morfologica, respeitando a natureza dos factos

linguısticos, ou seja, a sua dinamica permanente. No

que respeita a Fonologia, o aluno tera tambem

contacto com as diferentes teorias e conceitos

fundamentais, de modo que no final do ano se sinta

dominador dos conhecimentos teoricos e praticos que

respeitam a segunda articulaçao da linguagem.

Pretende-se ainda uma interacçao permanente

entre teoria e pratica pelo que amiude serao

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analisados "corpora" representativos de varias

lınguas, em especial da lıngua portuguesa.

A presente liçao debruça-se sobre o conceito de

fonema, considerando que previamente se estudou ja

o que respeita ao aparelho fonador, produçao de sons

e sua analise acustica. Ocupa o espaço da aula 6,

conforme o plano sucinto da disciplina infra:

Plano sucinto Aulas de Linguística I

Conteúdos Programáticos de Linguística Portuguesa I

Calendarização Nº horas

Da Fonética à Fonologia do Português

Fonética

Objecto da Fonética e seus domínios de aplicação

Aula 1 3

Conceitos básicos de Fonética Articulatória, de Fonética Acústica e de Fonética Perceptiva

Aula 2 3

Conceitos básicos de Prosódia Aula 3 3

Continuação da aula anterior.

Exercícios de transcrição fonética.

Aula 4 3

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Fonologia

Objecto da Fonologia. A relação entre a

Fonética e a Fonologia Conceitos e

princípios fundamentais da Fonologia.

Aula 5 3

As unidades de segunda articulação: do som ao fonema.

Fonemas e oposições fonológicas. As regras de Troubetzkoy para a identificação de fonemas e variantes.

Neutralização e arquifonema.

Sistemas fonológicos do Português europeu. Fonemas vocálicos e fonemas consonânticos. Estruturas silábicas.

Variação diatópica, diastrática e diafásica no Português europeu.

Aulas 6 e 7 3 +3

O Português no mundo: África, América (Brasil) e Ásia.

Transcrição fonológica e representação gráfica: discussão e reflexão sobre o Acordo Ortográfico

Aula 8 3

Continuação das aulas anteriores. Revisões Aula 9 3

Prova de frequencia Aula 10 3

Morfologia Relaçoes da Morfologia com a Fonologia, a Sintaxe, a Semantica e as

Aula 11 3

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Ciencias do Lexico

Conceitos basicos de Morfologia: as unidades de primeira articulaçao.

Princıpios de analise morfologica. Morfema, alomorfia, oposiçoes e alternancias morfologicas.

As partes orationes: criterios morfologicos de

identificaçao

Morfologia do Portugues Morfologia flexional

A flexao nominal e verbal: padroes flexionais nominais e padroes flexionais verbais

Aula 12 3

Continuaçao da materia da aula anterior Aula 13 3 Morfologia derivacional - sintematica

Processos e construçao de palavras

Paradigmas genolexicais: o lexico existente e o lexico potencial.

Aula 14 3

Continuaçao da materia da aula anterior e esclarecimento de duvidas.

Aula 15 3

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1. A definição de língua

Um unico axioma se impoe em linguıstica: a

definiçao de lıngua. Operamos aqui com a formulaçao

de Martinet1: uma lıngua e um instrumento de

comunicaçao segundo o qual, de modo variavel de

comunidade para comunidade, se analisa a

experiencia humana em unidades providas de

conteudo semantico e expressao vocal - os monemas;

esta expressao vocal articula-se por sua vez em

unidades distintivas e sucessivas - os fonemas, de

numero determinado em cada lıngua e cuja natureza e

relaçoes mutuas tambem diferem de lıngua para

lıngua.

1 Elementos de linguística geral, Lisboa, Sa da Costa, 10ª ediçao, 1985, p.24 . Procedemos a alteraçao de “fonico” por “vocal” e de “fixo” para “determinado”, de acordo com o texto de Martinet de 1982 “Pour une approche empirico-deductive en linguistique”, in Fonction et dynamique des langues, Paris, Armand Colin, p. 12, 1989.

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As lınguas analisam de modos diversos a mesma

experiencia humana. Para comprovar que cada lıngua

organiza a seu modo os dados da experiencia basta

relembrarmos algumas das distinçoes que se fazem

em relaçao ao espectro solar, onde se nos apresenta

um contınuo de cores que vai do roxo ao vermelho.

Comparemos, de acordo com os dados fornecidos por

H. A. Gleason, em Introducão à Linguística Descritiva

(1985:4) como o portugues, o schona (lıngua da

Zambia) e o bassa (lıngua da Liberia) estruturam a

mesma realidade:

Português Roxo Azul Verde Amarelo Laranja Vermelho

Schona Cipswuka

Citema Cicena Cipswuka

Bassa Hui Zĭza

Os mais diferentes nıveis da experiencia humana

sao diversamente articulados pelas lınguas. Estas nao

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sao nomenclaturas, nao sao simples repertorios de

palavras, nem tao pouco decalcam a realidade. Como

constata Georges Mounin em relaçao a concepçao de

lexico “...la linguistique moderne a ... ebranle

profondement la vieille notion tout empirique et tout

implicite, du lexique considere comme un repertoire,

un inventaire, un sac-a-mots" (1963:71). Tal

constataçao e extensıvel as lınguas na sua globalidade.

Mas, dentro de uma mesma lıngua encontramos

tambem provas da arbitrariedade linguıstica. Aquilo a

que um habitante da cidade chamara erva um

agricultor aplicara algumas dezenas de outras

designaçoes, distinguindo varias realidades no que

para outros falantes constitui um todo. O mesmo

acontecimento, por exemplo, podera ser construıdo

linguisticamente de diferentes modos por diferentes

falantes ou pelo mesmo. Falando de um baptizado, um

falante dira "A bebe ia de branco.", outro podera dizer

“O vestido da bebe era branco.” Ou “A bebe vestia de

branco.”, etc.

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Sublinhamos, pois, que as lınguas se

caracterizam pela arbitrariedade, afirmando com

Martinet que "na realidade, cada lıngua organiza a sua

maneira os dados da experiencia, e por isso aprender

uma lıngua nova nao consiste em colocar novos

rotulos em coisas conhecidas, mas sim em

habituarmo-nos a analisar de outro modo o objecto de

comunicaçoes linguısticas" (1985:17).

As lınguas sao duplamente articuladas: significa

isto que se articulam em monemas, unidades mınimas

de dupla face - face significante e face significada - a

que Saussurre chama signos. Os monemas, por sua

vez, articulam-se em unidades distintivas e su-

cessivas, ou seja, unidades desprovidas de conteudo

semantico, que formam a face significante dos

monemas e constituem a segunda articulaçao da

linguagem.

A arbitrariedade linguıstica atras referida

caracteriza tambem intrinsecamente as unidades de

primeira articulaçao. Se a relaçao que une o monema

a realidade extralinguıstica e, como vimos, puramente

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arbitraria, arbitraria e tambem a relaçao que existe

entre as duas faces do monema, entre significante e

significado. Esta relaçao nao e motivada por qualquer

razao natural ou logica e ja Ferdinand de Saussure

insistiu no caracter arbitrario da uniao existente entre

as duas faces dos monemas (1976 [1916]: 100-102).

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So quando fazemos coincidir um corte do real

com um que a lıngua nos oferece e possıvel

comunicar2. Este corte linguıstico e imotivado, pois a

lıngua interpreta soberanamente a realidade nao

linguıstica, sendo as unidades de segunda articulaçao

que garantem a independencia da lıngua face a

realidade.

Tentemos imaginar uma "lıngua" onde os

significantes fossem inarticulados, um sistema de

comunicaçao onde a cada significado correspondesse

uma produçao vocal distinta, como um todo, de todas

as outras. Nesta "lıngua" desde que se mantivessem as

2 Ver Jeanne Martinet, 1976, Chaves para a semiologia, Lisboa, Dom Quixote, p. 78 “Uma professora da escola primaria, para levar as crianças a comunicar, desenhara, e depois recortara animais segundo partes bem identificadas: a cabeça, as orelhas, as patas, o ventre, etc. Um grupo de crianças segurava os pedaços, um outro tinha de os reclamar um por um para reconstituir os diversos animais…No fim de alguns dias, para estimular a sua habilidade complicando o jogo, a professora propos-lhes pedaços recortados aleatoriamente…Nao podendo ja identificar os pedaços por meio de palavras, as crianças acharam-se perante a impossibilidade de reclamar este ou aquele pedaço…portanto so quando fazemos coincidir um corte do real com aquele que uma lıngua nos oferece e que podemos comunicar alguma coisa a respeito deste real”.

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distinçoes entre os signos, nada impediria os falantes

de alterar a pronuncia dos significantes de acordo

com o significado. A arbitrariedade do monema

rapidamente deixaria de existir. O que impede, entao,

que tal aconteça? Respondemos com as palavras de

Martinet: "Ce qui empeche ces glissements des

signifiants et assure leur autonomie vis-a-vis des

signifies est le fait que, dans les langues reelles ils sont

composes de phonemes ... " (1974:34).

As unidades de segunda articulaçao, os fonemas,

revelam-se deste modo, como os "guardioes" da

arbitrariedade linguıstica.

1.1. As unidades de segunda

articulação

Sao as unidades de segunda articulaçao que

permitem distinguir os monemas uns dos outros, quer

dizer, sao as unidades distintivas e sucessivas que

permitem diferenciar os significantes das unidades

significativas.

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Os fonemas sao em numero determinado em

cada lıngua, fala-se em geral de um numero fixo de

fonemas, nao sendo, no entanto, esse numero

rigidamente fixo, uma vez que pode variar consoante

as regioes e os idiolectos. Tais variaçoes nao impedem,

na sua maioria, a compreensao, mas podem motivar

inventarios diferentes de fonemas. No que respeita ao

portugues, nao considerando aqui as diferenças

teoricas entre “dialectos” e “falares”, limitamo-nos a

constatar, como faz Aniceto dos Reis Gonçalves Viana

em Exposição da Pronúncia Normal Portuguesa Para

Uso dos Nacionais e Estrangeiros, ha quase um seculo

atras, que “a pronuncia da lıngua portuguesa nao e

uniforme, nem mesmo no continente” (1892:43).

No Alentejo, por exemplo, nao temos o fonema

/c/ que aparece em certas regioes do norte: [‘cavƏ],

[‘cuva]; ou ainda a indistinçao entre a bilabial [b] e a

labio-dental [v]. A distinçao entre /b/ e /v/ e a

inexistencia da africada palatal surda /c/

caracterizam o portugues do Centro e do Sul, por

oposiçao ao portugues do Norte, onde nao se faz a

distinçao /b/ - /v/, e onde, em certas zonas se atesta a

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existencia de /c/. Estas duas caracterısticas sao

tratadas por dois consagrados linguistas, Paiva Boleo

e posteriormente por Lindley Cintra.

Para a perda de caracterısticas regionais em

muito tem contribuıdo a crescente escolarizaçao, a

comunicaçao radiofonica e televisiva e ainda o

incremento da mobilidade de pessoas.

Mas, independentemente das variaçoes de

ordem geografica que se possam verificar dentro da

mesma comunidade linguıstica, deve-se acrescentar

que um mesmo locutor nao conserva sempre um

sistema fonologico identico, podendo aos 20 anos

fazer distinçoes que nao fazia antes ou que deixa de

fazer aos 30 ou 40 anos. Martinet exemplifica com o

seu testemunho pessoal tal facto ao afirmar: "Entre les

ages de 24 et 34 ans, j'ai perdu certaines distinctions

phonologiques en français" (1989:16).

Nao e possıvel uma resposta directa a pergunta

“Quantos fonemas ha em portugues?" (ou em

qualquer lıngua). Na resposta teremos de ter em

consideraçao nao so as variantes geograficas, mas os

proprios idiolectos. Estes tambem estao sujeitos a

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variaçoes, havendo momentos em que cada falante

podera nao saber exactamente de quantos fonemas

dispoe. Cada sistema fonologico sofre interferencias

de outros sistemas, seja pela influencia dos meios

radiofonicos e televisivos de comunicaçao, seja fruto

da escolaridade, ou de varios outros factores como o

prestıgio ou desprestıgio de um dado sistema. Todos

os aspectos de interferencia de sistemas ou

coexistencia numa mesma zona geografica de

Portugal, de idiolectos que usam sistemas nao

totalmente identicos poderao ser explicados tambem

pela propria dinamica fonologica. Em "Notas sobre a

pronuncia portuguesa nos ultimos cem anos"

(1988:335), Morais Barbosa testemunha varias

inovaçoes no portugues de hoje. Por exemplo em

Cernache, povoaçao pouco distante de Coimbra,

assiste-se a perda da africada surda nas geraçoes mais

novas por oposiçao a geraçao dos setenta anos que

ainda a conserva. Morais Barbosa afirma ainda:

"Conhecem-se inclusive casos de pessoas que utilizam

perfeitamente os dois registos, o tradicional nos meios

onde ele e praticado e o moderno nas situaçoes em

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que ele poderia fazer-se apreciar negativamente"

(1988:336).

Colocar-se-a, entao, a pergunta, "Que e afinal

uma lıngua do ponto de vista fonologico?" Uma lıngua

e uma estrutura, melhor dizendo, uma estrutura de

estruturas, onde cada um dos seus componentes e

solidario com os outros e nao o autonomo: "Chacun

des elements linguistiques n'est pas conçu comme

autonome, mais comme solidaire d'autres elements de

meme type fonctionnel" (Martinet 1974: 67).

Uma perspectiva funcionalista retera do

ensinamento de Saussure a necessidade de distinçao

entre sincronia e diacronia, porem, nao caira no erro

de identificar sincronico e estatico. As lınguas estao

perpetuamente em mudança, nao sao, em

momento algum, homogeneas. A sincronia dinamica

sera, pois, o conceito indispensavel para reflectir

sobre a dinamica inerente ao funcionamento das

lınguas.

A afirmaçao de que as lınguas nao sao

perfeitamente homogeneas em nenhum momento da

sua historia implica, como anteriormente referido e

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exemplificado, que ao considerarmos determinada

comunidade linguıstica tenhamos a hipotese muito

provavel de nos confrontarmos com a coexistencia de

varios sistemas e nao com um sistema rıgido.

Os fonemas, alem de unidades distintivas e

sucessivas, sao ainda unidades discretas.

Consideremos as palavras bica e pica. Estas

distinguem-se apenas porque numa ocorre o fonema

/b/, em /'bika/, e na outra ocorre /p/, /'pika/. Se

reduzirmos as vibraçoes das cordas vocais,

passaremos insensivelmente da articulaçao

caracterıstica de

/b/ a /p/, mas a palavra pronunciada sera

sempre percebida ou como bica ou como pica. Nunca

como algo entre as duas. Nao ha uma realidade

linguıstica que seja "mais /b/" e uma outra que seja

"menos /b/". Os fonemas sao, assim, considerados

unidades discretas, uma vez que o seu valor

linguıstico nao e afectado por variaçoes de realizaçao

ditadas pelo contexto ou outras circunstancias. Na

verdade, a pronuncia de um dado fonema nao so varia

de sujeito para sujeito como o mesmo falante pode

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variar de uma emissao a outra essa pronuncia. Tal

variaçao e geralmente imperceptıvel, no entanto

nao podemos falar de duas pronuncias estritamente

identicas. Esta variaçao pode, porem, ser consideravel,

o que nao impedira a comunicaçao, uma vez que tais

variaçoes, quer sejam mınimas ou de maior

importancia, inserem-se no que Martinet chama

"campo de dispersao"(1955:47). Cada fonema tera um

campo de dispersao em que se podera realizar, sendo

condiçao que nao se confunda com outros. Utilizando

as palavras de Martinet, diremos de cada fonema que,

pelo menos num dado contexto, "il doit y avoir un

optimum que nous pourrions appeler le centre de

gravite de son champ de dispersion"(id:48). As

realizaçoes dos fonemas poderao afastar-se mais ou

menos de tal "optimum". Martinet fala de mudança

fonetica desde que a margem de segurança que separa

um fonema dos outros se altere, crescendo ou

decrescendo. Havera, assim, mudança fonetica quando

o campo normal de dispersao de um fonema se

desloca.

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Todas as lınguas conhecidas ate hoje sao

duplamente articuladas. Este tipo de estruturaçao

permite ao homem dispor de um instrumento de

comunicaçao altamente economico, pois permite "di-

zer tudo" com um baixo custo: um numero limitado de

unidades permite-nos falar de uma infinidade de

experiencias. A economia da primeira articulaçao

acrescenta-se a da segunda articulaçao, que

representa ainda o garante da independencia do

significante em relaçao ao seu significado. Cada

fonema constituinte de um significante nao ve a sua

natureza condicionada pelo significado que transmite,

mas sim pelos outros fonemas da lıngua com os quais

mantem relaçoes de oposiçao e contraste, como

referimos ja anteriormente.

A economia e, em conjunto com o princıpio de

pertinencia, a noçao fundamental em linguıstica

funcional. Ela pressupoe, em primeiro lugar, uma

concepçao dinamica das lınguas. De acordo com a tese

de Martinet, apresentada em Économie des

changements phonétiques, cada lıngua encontra-se em

constante equilıbrio entre duas forças opostas. Por um

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lado as necessidades de expressao exigem um maior

numero de unidades, mais especıficas e proporcio-

nalmente menos frequentes, em oposiçao a inercia

natural aponta para um numero mais restrito de

unidades mais gerais e de emprego mais frequente.

Modificando-se as necessidades comunicativas atra-

ves dos tempos, modifica-se tambem esse equilıbrio,

que se estende as duas articulaçoes da linguagem,

como sublinha Martinet: "En fait, en tout point de la

chaine parlee, sur les deux plans des elements

significants et des elements distinctifs et contrastifs,

besoins de communication et inertie entrent

constamment en conflit" (1955:97).

A analise da economia de uma lıngua sera o

estudo sincronico do dinamismo da sua estrutura. O

conceito de economia e de dinamica linguıstica estao,

pois, intimamente relacionados.

A economia verifica-se em ambas as

articulaçoes. Diz-se que a primeira articulaçao e

economica dado que permite construir as mais

diversas mensagens, em numero muito superior ao

das unidades que a constituem. A segunda articulaçao

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e igualmente economica, na medida em que permite

formar significantes distintos em numero bastante

mais elevado do que o de fonemas, que se situa em

algumas dezenas. Os fonemas sao ainda analisaveis

em varios traços fonicos nao sucessivos. De tais

traços, em numero menor do que os fonemas, resulta

uma nova economia.

Dissemos ate aqui que os fonemas sao unidades

mınimas de segunda articulaçao, unidades discretas,

distintivas e sucessivas que valem por oposiçao e

contraste com outros fonemas. Existem em numero

restrito em cada lıngua, sendo uma fonte de economia

e o garante da arbitrariedade do signo. Nem sempre,

porem, o conceito de fonema viu os seus contornos

assim definidos.

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2. O fonema como conceito linguístico

2.1. Pré-história do conceito

O conceito de fonema so toma forma na

sequencia de um longo processo e poderemos ate

considera-lo uma aquisiçao do seculo XX. Contudo, a

ideia que se encontra na origem da sua genese e

bastante remota, dirıamos ate que se liga ao primeiro

momento em que o homem se serviu da expressao

vocal para comunicar.

As primeiras tentativas do homem para registar

o discurso sao nos testemunhadas pelas pinturas

rupestres. Mas o discurso so e realmente analisado

em unidades quando a escrita pictorica da lugar a

escrita em palavras. A escrita silabica, utilizada nas

lınguas semıticas ou no japones, e um avanço decisivo

que conduz ao sistema de escrita alfabetico. EÉ a

criaçao do primeiro alfabeto que cremos dever fazer

remontar a consciencia da existencia de unidades

distintivas. As grafias, no momento em que sao

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concebidas, procuram fazer corresponder letras a

fonemas, e usam a mesma letra para dois fonemas

quando estes, por exemplo, em determinada posiçao

nao se opoem. A grafia portuguesa utiliza o grafema

<o> para representar tres fonemas distintos. A

evoluçao fonica da lıngua face ao conservadorismo

caracterıstico da escrita leva, em muitos casos, a que a

correspondencia grafemas/fonemas original deixe de

se verificar, como, por exemplo, em frances onde au,

hoje /o/, originariamente representava /aw/.

Apesar de nenhum alfabeto ser completamente

fonetico, alguns deles revelam um alto grau de

correspondencia aos sons, interpretados em termos

de unidades distintivas, que formam os significantes

dos monemas da lıngua considerada.

Os primeiros indıcios de reflexao linguıstica

sobre o fonema, encontramo-los nos gramaticos

indianos, por exemplo, nas obras de Pantajali, seculo

II a.C. (ap. Kramsky 1974:11). Na Grecia concebe-se a

linguagem como sendo constituıda por unidades

fonicas indivisıveis capazes de formar entidades com

significado. Aristoteles, na Poética (1964:137), define

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tais unidades, chamadas elementos primarios, como

sons indivisıveis, desprovidos de significado, fazendo

parte da sılaba, e servindo para fazerem unidades

maiores. Os sons da fala continuaram a ser alvo de

atençao durante a Idade Media, embora a gramatica

constituısse o objecto privilegiado de estudo. Sao

Tomas de Aquino refere os sons da fala como nao

tendo significado, mas cuja funçao primeira e veicular

significado (Kramsky 1974: 12).

Necessario foi, contudo, esperar pelo seculo XIX

para que os sons da fala fossem estudados em relaçao

com a sua funçao numa determinada lıngua.

2.2. Baudouin de Courtenay

As ideias do linguista polaco Josef Mrozinski

(1784-1839) sobre os princıpios da estrutura

linguıstica inspiraram, certamente, Baudouin de

Courtenay (1845-1929), outro linguista polaco,

contemporaneo de Saussure, mas bastante menos

conhecido no ocidente, que por muitos e considerado

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o fundador da fonologia3. Mrozinski observa ja nos

seus escritos que o linguista deve caracterizar as

relaçoes entre os sons da fala e com base nelas3

estabelecer uma classificaçao desses sons. Baudouin

de Courtenay apresenta-nos, em germe, o conceito de

fonema. Opoe o fonema ao som, definindo-o como “o

equivalente psıquico do som”. O fonema e concebido

em termos de imagem acustica por oposiçao a sua

realizaçao fısica, ou seja, o som. Embora nao tenha

sido o primeiro a utilizar o termo fonema (o primeiro

a utiliza-lo parece ter sido Dufriche-Desgenettes em

1873), Baudouin de Courtenay e o primeiro a defini-lo

e o primeiro a investigar a sua natureza4.

O conceito de fonema estende-se por toda a

Europa, mas leva o seu tempo a impor-se. Saussure

emprega o termo em 1879 e tambem no Cours de

3 Veja-se Pierre Leon, Henry Schogt e Edward Burtynsky, 1977, La phonologie - les écoles et les théories,Paris, Klincksieck, p.15 4 Sobre Courtenay e Dufriche-Desgenettes cf. Jiri Kramsky, 1974, The phoneme – Introduction to the history and theories of a concept, Munique, Wilhelm Fink.

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linguistique générale, mas nao define qual o campo

por ele abrangido. Em 1925, Edward Sapir fala de

fonemas de um modo pouco claro, nao estabelecendo

distinçoes nıtidas relativamente as variantes.

EÉ , sem duvida, o impulso dado aos estudos

fonologicos pela Escola de Praga que se revela

decisivo para a definiçao do conceito de fonema.

2.3. Nicolas Troubetzkoy

O Cırculo Linguıstico de Praga foi criado em

1926. Os seus membros desde logo dispensaram

particular atençao a fonologia. De entre eles destaca-

se o prıncipe russo Nicolas Sergueevitch Trou-

betzkoy (1890-18391), cujas teorias iniciais sobre o

fonema sao fortemente influenciadas pela concepçao

de Baudouin de Courtenay, que definia o fonema como

"a imagem psıquica do som".

Em 1931, por exemplo, no XXII Congresso

Internacional de Linguistas, realizado em Geneve,

Troubetzkoy caracteriza o fonema como uma

"intençao de som" (Lautintentionen, Lautabsichten),

ou de forma lata como "conceito de som"

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(Lautbegriffe). Estas tendencias psicologicas na

concepçao de fonema sao alvo de certa crıtica interna

no CLP (nomeadamente por parte de Doroszewski). O

proprio Troubetzkoy acaba por se tornar um paladino

na libertaçao da teoria linguıstica em relaçao a

psicologia. Assim, na sua obra Grundzüge der

Phonologie (Princıpios de Fonologia) procura banir

todos os traços psicologistas e a definiçao que nos da

de fonema e uma definiçao funcionalista: o fonema e o

som que preenche uma funçao numa dada lıngua e

sera estudado pela fonologia, enquanto a fonetica

estudara o som em geral nas suas particularidades

acusticas e articulatorias. A fonologia ocupar-se-a da

funçao linguıstica dos sons e a fonetica da perspectiva

fenomenologica desses sons. Troubetzkoy define os

fonemas como "as unidades fonologicas que, numa

dada lıngua, nao se deixam analisar em unidades

fonologicas mais pequenas e sucessivas"

(Troubetzkoy 1949 [1939]: 37). Ainda em Grundzüge

der Phonologie, escrevera: "o fonema e a soma das

particularidades fonologicamente pertinentes" (idem:

40). E reforça a ideia de que nao se devera recorrer a

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psicologia para definir o fonema, uma vez que se trata

de uma noçao linguıstica e nao psicologica. Para

Troubetzkoy o fonema e acima de tudo um conceito

funcional, devendo, portanto, ser definido em relaçao

a sua funçao.

A contribuiçao de Troubetzkoy e decisiva para a

implantaçao do conceito de fonema, tal como o foram

tambem a de Leonard Bloomfield, que, especialmente

a partir de 1926, utiliza o termo, e ainda as varias

contribuiçoes que nos anos 30 versaram o tema. Toda

essa reflexao gerada em torno do fonema garantiu-lhe

a afirmaçao e um certo consenso, consenso esse que

nao se estende, no entanto, aos metodos de analise

fonologica.

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3. A análise fonológica

O fonema nao e um equivalente do som. O

termo som designa uma realidade fısica. Bertil

Malmberg diz que "o som consiste em ondas que se

propagam no ar a uma velocidade de cerca de

340m/s" (1954:15). Raquel Delgado Martins define o

som como "uma deslocaçao do ar que atinge o ouvido"

(1988:25), e e produzido por uma fonte vibratoria. A

produçao de sons da fala, ou seja, de voz, de acordo

com a autora, "para alem de ser controlada pelo

sistema nervoso central, passa na sua produçao por

tres etapas: a respiraçao, a fonaçao e a articulaçao". Os

inumeros sons concretos que o aparelho fonador do

homem permite produzir nao correspondem, pois,

directamente, aos fonemas de uma lıngua, que sao

necessariamente em numero limitado como referimos

atras. Na cadeia sonora, fisicamente considerada, nao

ha propriamente sons: ela pode ser segmentada de

diferentes modos, conforme as caracterısticas que

servirem de criterio. Os sons de uma língua sao, na

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maior parte dos casos, o correspondente a consciencia

que temos do fonema. O termo fonema refere-se a

uma unidade funcional. Pelas palavras de Martinet

diremos que "la phonologie nous enseigne qu'une

chose est la realite physique et qu'autre chose est la

realite representee par les habitudes linguistiques

propres a chaque communaute" (1974:47).

Podemos ter, por exemplo, casos em que um

fonema e constituıdo por dois sons. Na palavra

mucho da lıngua espanhola os sons [t] e [s] sao a

realizaçao de um unico fonema, /c/. Nesta lıngua o

som [s] e sempre precedido de [t], nao tendo

individualidade fonologica, nao e, portanto, um

fonema. A consciencia dos fonemas correspondentes

fara com que um falante do portugues ouça dois sons

[t] e [s] em mucho e um falante do espanhol apenas

um5. O contrario pode verificar-se tambem, ou seja,

um unico som pode corresponder a mais do que um

fonema. EÉ o que acontece em portugues com as

5 Sobre a “percepçao”, cf. Maria Raquel Delgado Martins, 1986, Sept études sur la perception, Lisboa INIC.

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chamadas "vogais nasais", que se interpretam fonolo-

gicamente como "fonema vocalico + fonema nasal"

(esta questao sera desenvolvida posteriormente). Aos

quatro sons ['petƏ] ou tres ['pet] de pente

correspondem cinco fonemas /'pENte/. No caso da

terminaçao registada ortograficamente e, diremos,

com Morais Barbosa (39), que se traduz no

discurso como [∂] ou como zero fonico: assim

teremos ['kɔm∂] ou ['kɔm]. Como devera ser interpre-

tado fonologicamente esse [∂] ou zero fonico?

Depois de uma reflexao sobre o problema, Barbosa

conclui que so podera ser interpretado como um

fonema que se opoe quer a /u/ e /a/, quer a ausencia

de qualquer fonema.

O linguista, perante o material sonoro de uma

dada lıngua, tem de examina-lo de um ponto de vista

funcional, ou seja, verificar se os varios sons

desempenham ou nao uma funçao: "Decrire une

langue, ce nest pas enumerer tous les traits physiques

qui ont pu frapper l’ouie de lobservateur, mais bien

degager la pertinence prope a la langue observee”,

dirıamos com Martinet (40).

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O inventario de fonemas de uma lıngua faz-se

partindo de um corpus representativo. Para fazermos

o inventario dos fonemas da lıngua portuguesa

socorrer-nos-emos da gravaçao de varios textos junto

de falantes oriundos de varias regioes do paıs, com

idades, grau cultural e educaçao diferentes, de modo a

que o conjunto de textos reunido seja efectivamente

representativo da lıngua portuguesa. Uma vez os

textos gravados, faremos a sua notaçao fonetica,

utilizando um alfabeto fonetico, sabendo que a cada

som corresponde um unico sımbolo e a cada sımbolo

sempre o mesmo som. Como ja vimos em aulas

anteriores, por exemplo, [s] representara o som inicial

de “Xavier”, de “chavena”, o som final de “luz”, etc.,

assim como [z] representara o som intervocalico de

“coser”, de “cozer” ou de “exame”, o som inicial de

Zacarias, etc. Constituıdo o corpus, passaremos a sua

analise, sabendo que se este for representativo da

lıngua portuguesa nos permitira inventariar todas as

entidades que constituem o sistema fonologico

portugues. Nesta fase da analise agruparemos todas

as ocorrencias de uma mesma entidade fısica. Por

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exemplo, relativamente ao som [z] registaremos todas

as posiçoes em que o som ocorre: inıcio de palavras

[‘zebra], intervocalico [´meza], etc. Perante o conjunto

de unidades inventariadas cabe-nos, seguidamente,

verificar quais as que tem valor distintivo, isto e, quais

as unidades que, substituindo outras, conduzem a

uma alteraçao de significado – os fonemas. Utilizamos

para tal a operaçao de comutaçao: em portugues se

substituirmos o som inicial de ['patu] pelo som [g],

obteremos um novo significante ['gatu], ao qual

corresponde tambem um novo significado. Se

substituirmos [g] por [f], por [l] ou por [m] obteremos

os seguintes novos significantes ['ratu], ['latu],

['matu], que veiculam tambem significados diferentes.

Poderemos entao concluir que / g m r l / sao fonemas,

uma vez que a sua substituiçao faz variar o

significado. A substituiçao de um fonema por outro

podera dar lugar a um significante nao existente na

lıngua, como ['satu] ['datu]. Tal facto leva-nos a por

em discussao o problema dos pares mınimos como

criterio de identificaçao dos fonemas, como o fez

Henriette Walter na comunicaçao que apresentou ao

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XVIIIº Coloquio Internacional de Linguıstica Funcional

(1995:81).

Consideremos um outro exemplo, as palavras

caro e carro, respectivamente ['karu] e ['kaRu]. Pela

prova de comutaçao verificamos estar perante dois

fonemas /r/ e / R /, uma vez que a substituiçao de um

pelo outro implica mudança de significado. Esta

operaçao pressupoe a operaçao paralela da

segmentaçao, que tem em conta as relaçoes que as

unidades linguısticas desenvolvem entre si no eixo

sintagmatico, relaçoes ditas de contraste.

Em Cours de linguistigue générale, Ferdinand de

Saussure estabelece que nas lınguas nao ha senao

diferenças e oposiçoes entre elementos sem qualquer

valor positivo:

"Dans la langue il n'y a que des differences. Bien

plus: une difference suppose en general des termes

positifs entre lesquels elle s'etablit; mais dans la

langue il n'y a que de differences s a n s termes positifs."

(1976 [1916]:166)

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Se na linha da tradiçao saussuriana,

concebermos as unidades linguısticas como

opositivas, relativas e negativas, os fonemas serao

identificados pelas relaçoes que estabelecem com os

outros fonemas do sistema a que pertencem. Diremos,

de acordo com Martinet, que "chaque phoneme

contribue a determiner la nature phonologique de ses

voisins, et voit la sienne propre determinee par

eux"(1974:61). Consideramos, porem, que os fonemas

nao sao meras entidades negativas, contrariamente ao

que afirma Saussure (1976[1916]:44). Cada fonema

possui uma identidade propria, e constituıdo por um

numero de traços que o distinguem dos outros. Esta

nossa posiçao esta em sintonia com o pensamento de

Martinet, de que sao testemunha as seguintes

palavras:

On sait que toute unité distinctive peut être

définie de deux façons différentes. D'une part en

référence aux contextes ou elle apparait ..., iI s'agit

allors d'une définition syntagmatique. D'autre part, en

notant les traits de substance phonique ... qui

distinguent cette unité des autres unités du même plan

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... il s'agit ici d'une défdinition paradigmatique qui met

en valeur ce qui oppose les unités qui peuvent figurer

dans le mêmes contextes (1974:130).

Tambem Herculano de Carvalho postula um

valor peculiar e proprio para cada unidade linguıstica,

valor esse que sera em simultaneo "absoluto e

relativo":

Integrado no complexo de relações, que constitui a estrutura do seu sistema, cada uma das unidades fónicas ou significativas possui um valor funcional ao mesmo tempo absoluto e relativo, isto é, um valor que, sendo- lhe peculiar e próprio - permitindo-lhe exercer uma função específica em cada uma das suas ocorrências na fala concreta é simultaneamente determinado e delimitado pelo valor das outras entidades com as quais está imediata ou mediatamente relacionada (1988:409).

Em relaçao a [‘karu] poderemos, porem, ouvir a

realizaçao de /ṟ/ com diferentes caracterısticas, como

vibrante apical multipla /ṟ/, como vibrante uvular /

R/ ou como constritiva dorso-velar [x]; tal alteraçao

nao corresponde a diferentes significados, logo,

concluiremos que nao estamos em presença de

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fonemas distintos, mas sim de variantes. O mesmo se

verifica ao pronunciarmos o monema “dor”,

geralmente pronunciado [‘dor], iniciado pela oclusiva

apico-dental [d], utilizando a constritiva [ɗ]. Nao

existe, em portugues, uma distinçao de significado

expressa pelos sons [d] e [ɗ ]. Estamos tambem

perante variantes de um mesmo fonema.

Resumindo, so deveremos considerar fonemas

as unidades que na lıngua em causa se oponham a

outras para formar significados diferentes. Acabamos

de comprovar que nem todas as unidades fısicas que

se realizam no discurso, ou seja, nem todos os sons

correspondem a fonemas distintos, embora a cada

fonema corresponda necessariamente uma unidade

fısica no discurso.

Procuramos identificar todos os fonemas da

lıngua portuguesa, de modo a responder a pergunta

de quantos fonemas existem em portugues. Contudo,

e preciso levar em conta que quando se consideraram

falantes de varias regioes, se consideraram sistemas

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linguısticos diferentes, uma vez que as unidades

valem pelas oposiçoes que estabelecem.

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3.1. Variantes individuais e

variantes contextuais

Apresentamos, ha pouco, exemplo de sons que

dissemos nao poderem ser identificados como

realizaçoes de fonemas diferentes na lıngua

portuguesa, dado que a sua substituiçao nao produz

alteraçoes de significado. Em ambos os exemplos

estamos perante variantes. No caso da vibrante

multipla, a sua realizaçao como apical, uvular ou

constritiva dorso-velar nao acarreta alteraçao de

significado (Barbosa 1962: 211-226). O falante pode

optar livremente por qualquer delas, captando o seu

interlocutor a mesma mensagem. Tais variantes

dependem exclusivamente do locutor e chamam-se,

por isso, variantes individuais ou livres. Cada um de

nos utiliza constantemente variantes livres. Estas

podem ainda ser designadas por variantes

facultativas. Elas podem existir em todas as posiçoes

onde o fonema e atestado ou aparecer so em certas

posiçoes. Convem distinguir entre as variantes livres,

as que resultam de variaçoes fortuitas, e as ditas

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estilısticas, as que sao dotadas de uma funçao

expressiva e que resultam de uma escolha mais ou

menos consciente do sujeito falante.

Algumas variantes podem começar por se

verificar em certos termos soltos e estender-se

gradualmente a outros, sao casos de "difusao lexical".

As variantes livres testemunham por vezes

modificaçoes foneticas em curso, conhecida que e a

lentidao dos processos da mudança linguıstica. As

variaçoes entre as pronuncias [ks] e [s] registadas em

termos como Maximina ou sintaxe demonstram que

esta ainda em curso a substituiçao progressiva de [s]

por [ks] nas formas que na ortografia apresentam <x>

(Barbosa 1988:363).

[d] e [ɗ] sao tambem variantes de um mesmo

fonema, mas nao variantes livres. A realizaçao [d] ou

[ɗ] depende da posiçao que o fonema ocupa na

sılaba: realiza-se [ɗ] em posiçao intervocalica. [d]

nas outras posiçoes: [‘daɗu]. O mesmo se passa com

[b] e [β]. Estamos perante variantes contextuais

ou posicionais, tambem chamadas variantes

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combinatorias, dado que se excluem mutuamente.

Outro exemplo de variantes contextuais, na nossa

lıngua, e o de [l] e [ł]. [l] realiza-se em inıcio de sılaba

e [ł] em posiçao final de sılaba, por exemplo, [‘lus] e

[´sał].

Em Grundzüge der Phonologie (1976 [1939]:47)

Troubetzkoy enuncia quatro regras que nos permitem

distinguir fonemas e variantes do seguinte modo:

1ª regra: Se dois sons da mesma lıngua

aparecem exactamente no mesmo contexto fonico e

podem ser substituıdos um pelo outro sem que se

produza uma alteraçao na significaçao intelectual da

palavra, entao esses dois sons sao variantes

facultativas de um fonema unico.

2ª regra: Se dois sons aparecem exactamente na

mesma posiçao fonica e nao podem ser substituıdos

um pelo outro sem modificar a significaçao das

palavras ou sem que a palavra se torne

incompreensıvel, entao esses dois sons sao

realizaçoes de fonemas diferentes.

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3ª regra: Se dois sons de uma lıngua, proximos

do ponto de vista acustico ou articulatorio nao se

apresentam nunca no mesmo contexto fonico, entao

devem ser considerados variantes combinatorias de

um mesmo fonema.

4ª regra: Dois sons, ainda que satisfazendo as

condiçoes da regra 3, nao podem ser considerados

variantes de um mesmo fonema se na lıngua em

causa puderem aparecer um junto ao outro, ou seja, se

forem membros de um grupo fonico, e isso nas

condiçoes onde um dos dois aparece isoladamente.

As diferentes realizaçoes de sistemas

fonologicos, parcial ou totalmente identicos, em

diferentes regioes, podera atingir um grau tal que

ponha em risco a propria intercompreensao, sera

talvez o caso das variedades insulares do portugues,

as quais, por vezes, temos dificuldades em

compreender. Diremos que tais pronuncias se situam

nos limites, ou nas zonas marginais, dos campos de

dispersao dos fonemas considerados; para la de

outros fenomenos de outra natureza, como a melodia,

que contribuem para a difıcil compreensao.

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3.2. Fonema e traços pertinentes

Definimos o fonema como a unidade mınima

distintiva e sucessiva. Sublinhamos sucessiva dado que

existem outras unidades fonologicas menores do que

os fonemas, mas que nao sao, contudo, sucessivas -

falamos dos traços pertinentes. Um fonema pode ser

considerado como um conjunto de traços pertinentes

que se realizam em simultaneo. O fonema /b/ da

lıngua portuguesa define-se pelos seguintes traços

pertinentes: "bilabialidade", "sonoridade", "nao-

nasalidade" e "nao-lateralidade". EÉ tambem aqui a

comutaçao que nos vai permitir distinguir, com base

na pertinencia distintiva, quais os traços fısicos da

realizaçao dos sons que desempenham uma funçao,

isto e, aqueles que tem uma existencia linguıstica.

Para que consideremos linguisticamente pertinente

um dado traço e necessario que ele seja objecto de

escolha por parte do falante. Retornando o fonema

/b/ e comparando-o com / p/ , em /'batu / e /'patu/,

por exemplo, concluımos que sao ambos "oclusivos",

"nao-nasais" e "bilabiais", distinguindo-se apenas pelo

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traço da "sonoridade" que caracteriza o /bl mas nao o

/v/. Diremos, portanto, que a "sonoridade" e um traço

pertinente de /b/, pois escolho-o ao pretender

pronunciar ['batu] e nao ['patu].

Sera por este processo que verificaremos quais

os traços pertinentes das diferentes unidades. O

traço "sonoro" e pertinente para distinguir varios

pares de fonemas em portugues: /b/ de /p/, /d/ de

/t/, /g/ de /k/, /v/ de /f/, /z/ de /s/ e / z/ de / s/.

Nao o e, porem, para distinguir /m/, /n/ e /n/, pois o

traço “sonoro” aparece automaticamente junto ao

traço “nasal”. Em portugues nao ha nasais surdas

opostas a nasais sonoras. O locutor ao seleccionar o

traço “nasal” selecciona tambem o traço “sonoro”. Do

mesmo modo, o traço “oclusivo” nao e pertinente, pois

nao ha qualquer fonema que, reunindo as

caracterısticas dos fonemas que vimos analisando, se

distinga deles por ser “nao oclusivo”.

Nao queremos deixar de sublinhar que os traços

pertinentes para os fonemas de uma lıngua podem

nao o ser para os fonemas de outra lıngua. Por

exemplo, o fonema /l/ em portugues caracteriza-se

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por dois traços pertinentes: a “lateralidade” que o

distingue de /r/, de /n/, etc, e a “apicalidade” que o

distingue de um outro fonema tambem “lateral”, o /λ/.

Em frances, a “lateralidade” e suficiente para

distinguir o /l/ de outros os outros fonemas da lıngua,

pois nao existem outros fonemas com o traço

pertinente da “lateralidade”.

As relaçoes que os fonemas estabelecem entre si

tornam-se mais nıtidas pela analise em traços

pertinentes, permitindo estabelecer um sistema de

proporçoes agrupando os fonemas que se

caracterizam por um determinado traço pertinente.

Em portugues, identificaremos as classes “surda” - / p

t k f s s /; “sonora” - / b d g v z z /; “nasal” - / m n n /;

“nao-nasal” - / p b t d l r .../ etc. Os termos utilizados

para designar os traços sao colocados entre aspas,

significando que nao devem ser tomados a letra da

substancia fısica que sugerem. A designaçao de um

traço, por exemplo "sonoro", implica

proporcionalidade das relaçoes entre a classe das

"surdas" e a classe das "sonoras". As designaçoes dos

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traços revestem-se de um caracter convencional e nao

descritivo.

O princıpio de pertinencia esta na base de toda a

linguıstica funcional. Cada ciencia fundamenta-se

numa pertinencia, para nos, para a linguıstica

funcional, a pertinencia e a pertinencia comunicativa,

que se articula em outras pertinencias. No que

respeita as unidades de segunda articulaçao dissemos

ja que elas tem uma pertinencia distintiva. A

classificaçao e hierarquizaçao dos factos fonicos de

acordo com a sua funçao estende-se tambem aos

traços. So os traços que desempenham uma funçao em

ordem a pertinencia distintiva, ou seja, aqueles que

desempenham uma funçao distintiva tem uma

existencia linguıstica. Estes devem ser identificados

entre os factos da substancia fonica. Tal operaçao

permitira separar o que e decisivo do que o nao e.

Para nos, funcionalistas "degager les traits pertinents,

c'est-a-dire ceux des faits de substance phonique qui

assurent la fonction distinctive, fonction fondamentale

du langage humain, est precisement le moyen de faire

le depart entre ce qui est decisif et le reste" (Martinet

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1974: 144). O recurso a substancia fonica que e

necessariamente suposto pela identificaçao de traços

pertinentes, e considerado por Martinet como sendo,

talvez, a operaçao fonologica mais delicada, pois o

investigador pode ser tentado a atribuir a essa

substancia um lugar maior do que aquele que lhe

compete. O unico meio de proteger a lıngua da

arbitrariedade do linguista sera impedi-lo de fazer a

sua escolha entre as caracterısticas fonicas que

contribuem para a distinçao dos fonemas, o que

significa que "un trait pertinent est un ensemble de

caracteristiques phoniques distinctives qui ne se

trouvent dissociees nulle part dans le systeme"

(Martinet 1974:144). Este o entendimento que

devemos ter de traço pertinente, obrigatoriamente

diferente do que fazia Troubetzkoy, que considerava

como traços pertinentes de um fonema todos os que

fossem comuns as variantes desse fonema.

Convem sublinhar que para Troubetzkoy o

fonema era a unidade de base da fonologia, enquanto

para nos, funcionalistas, esta e o traço pertinente. EÉ

essa a unica unidade para a qual postulamos uma

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existencia real, o que implica que "des que nous avons

degage les traits pertinents d'un idiome et que nous

passons a l'examen de leurs rapports et de leurs

groupements, nous operons avec des concepts qui

peuvent paraitre correspondre a une certaine realite

materielle, comme le phoneme, mais qui n'existent

pour nous que pour autant que nous les avons definis

en fonction du trait pertinent" (Martinet 1974:75). O

termo que designa um traço distintivo deve, pois,

como dissemos antes, ser entendido como

convencional e nao descritivo (59).

As classes de fonemas caracterizadas por um

mesmo traço pertinente, mas cujas realizaçoes

ocorrem em pontos diferentes, formam uma série. Os

fonemas que partilham o mesmo ponto de articulaçao,

sendo este o traço pertinente que os agrupa numa

classe, formam uma ordem. Em portugues temos, por

exemplo, a ordem das "bilabiais" / p b m / e a série

das "surdas" / p t k f s s/.

Quando duas series de fonemas se distinguem

por um unico traço diremos que formam uma

correlação. O traço pertinente que distingue essas

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duas series recebe o nome de marca da correlação. A

"sonoridade" e a marca de correlaçao entre as series /

p t k f s s / e / b d g v z z /.

A proporcionalidade das relaçoes estabelecidas

entre os fonemas consonanticos do portugues pode

ser visualizada no seguinte quadro, onde se colocaram

na horizontal os fonemas que constituem series e na

vertical os que constituem ordens:

bila- labio api- sibi- chian- pala- dorso- uvu

bials dentais cais lantes Tes tais velares lar

surdas P f t s SŠ k

Я

sonoras

b

v

d

z

g

nasais m n η

laterais l λ

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A identificaçao dos fonemas resulta assim da

enumeraçao dos seus traços pertinentes, aqueles que

lhes garantem uma existencia distinta dos outros da

mesma lıngua. Os traços pertinentes sao, tal como os

fonemas, unidades distintivas, porem realizam-se em

simultaneo e nao sucessivamente como os fonemas.

3.3. Arquifonema e neutralização

A existencia de fonemas diferentes implica

relaçoes de oposiçao. Se a relaçao de oposiçao deixar

de se verificar em certos contextos. Estaremos

perante uma neutralizaçao. Em portugues os dois

fonemas vibrantes, simples /r/ e multiplo / Я /, so se

opoem em posiçao intervocalica no interior da palavra

(/'karu/ - /'karu/). Em inıcio e final de sılaba e depois

de consoante homossilabica, por exemplo, [' Яamu], ['

bilЯu], [' kortaJ isso nao se verifica e por isso diz-se

que se neutraliza a oposiçao. Nos contextos em que a

oposiçao se neutraliza falaremos do arquifonema

vibrante, uma entidade constituıda pelos traços

comuns aos fonemas membros da oposiçao. O modo

como o arquifonema se realiza e irrelevante de um

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ponto de vista teorico. No caso das vibrantes, em

inıcio de palavra, depois de consoante heterossilabica

e de vogais foneticamente nasais (que deveremos

interpretar fonologicamente como sequencias de

vogal + arquifonema nasal, /N/ (consulte-se sobre

este assunto, que sera posteriormente aprofundado, o

artigo de Morais Barbosa “Les voyelles nasales

portugaises: interpretation phonologique”

(1962:691), o arquifonema realiza-se sempre como

vibrante multipla: [‘Яatu] , [‘gεłЯα]. Em inıcio de

sılaba, em final de sılaba e depois de outra consoante

homossilabica realiza-se sempre a vibrante simples:

[‘bar], [’ɔrtα], [‘mastru], etc. Em portugues falaremos

ainda do arquifonema "lateral" /L/, do arquifonema

"sibilante" /S/ e do arquifonema "nasal" /N/, bem

como de arquifonemas "vocalicos", nomeadamente

/E/, /A/ e /0/ antes de /N/ (o arquifonema e hoje

referido somente devido a sua relaçao estreita com o

fonema, constituira materia de estudo mais

aprofundado numa proxima liçao).

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3.4. Relações sintagmáticas e

paradigmáticas

A identificaçao das unidades de segunda

articulaçao deve ter em conta a maneira como as

entidades linguısticas se relacionam entre si. Por um

lado, encontram-se ordenadas em sucessao,

estabelecendo relaçoes directamente observaveis no

enunciado; as relaçoes deste tipo, que se desenrolam

no eixo sintagmatico, denominam-se relaçoes

sintagmaticas. Por outro lado, as mesmas unidades

estabelecem relaçoes de oposiçao com aquelas que,

nao estando presentes, poderiam figurar no seu lugar,

produzindo uma alteraçao de significado. Estas

relaçoes ocorrem no eixo paradigmatico e sao

chamadas relaçoes paradigmaticas ou oposiçoes. Por

exemplo, diremos que / p /, /b /, / l / e /g / se opoem

na medida em que podem ocorrer em posiçao inicial

seguidos da sequencia / -ata /, formando diversos

signos: / 'pata/, / 'bata /, /'lata / e /'gata/.

Os signos linguısticos realizam-se linearmente,

sucedendo-se os seus constituintes uns aos outros,

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numa dada ordem. A ordem pela qual as unidades

distintivas se sucedem e fundamental para a

identificaçao do signo, a sequencia / 'tapa /,

constituıda pelos mesmos fonemas de /'pata /, forma

um outro signo da lıngua portuguesa. Importa ainda

sublinhar que certas sequencias sao possıveis e outras

nao: assim nao se atesta em portugues a sequencia

*/tpaa/. Toda e qualquer mensagem se organiza com

base em relaçoes deste tipo, relaçoes sintagmaticas,

relaçoes estas que decorrem do princıpio da

linearidade do significante, enunciado por Saussure. A

importancia das relaçoes paradigmaticas nao deve,

porem, ser menosprezada. Os dois eixos sao

complementares e so tendo em conta a ambos se

podera fazer a correcta identificaçao dos elementos

de uma lıngua.

A analise fonologica, numa perspectiva

funcional, deve fazer uma distinçao explıcita entre as

relaçoes de contraste na cadeia falada e as relaçoes de

oposiçao no sistema.

A analise fonologica visa classificar os elementos

fonicos de uma lıngua segundo a sua funçao nessa

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lıngua. A principal funçao dos fonemas e a funçao

opositiva ou distintiva que permite identificar um

signo por oposiçao a outros.

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4. Resumindo

Retomando os principais pontos focados,

diremos que os fonemas sao unidades de segunda

articulaçao, unidades mınimas distintivas e sucessivas

que estabelecem entre si relaçoes de oposiçao e

contraste a nıvel paradigmatico e sintagmatico,

respectivamente. Um conjunto de traços caracteriza o

fonema. Nao esqueceremos que o termo que designa o

traço tem um caracter convencional e nao descritivo, e

que o traço pertinente e, para nos, um conjunto de

caracterısticas fonicas que nao se encontrem

dissociadas em parte alguma do sistema. A perda do

traço pertinente que distingue os membros de uma

oposiçao coloca-nos perante um caso de

neutralizaçao, e consequentemente perante um

arquifonema.

O metodo de descriçao fonologica socorre-se das

operaçoes de comutaçao e de segmentaçao para

classificar os elementos fonicos de uma lıngua de

acordo com a sua funçao na comunicaçao. A funçao

principal dos fonemas e a funçao distintiva que

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permite identificar os monemas por oposiçao a

outros. Os sistemas fonologicos variam de lıngua para

lıngua, dado que, como dissemos, tudo nas lınguas,

excepto o exposto na sua definiçao, e especıfico da

lıngua em causa.

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Sítios na Internet:

Alfabeto Fonetico Internacional http://www.arts.gla.ac.uk/IPA/ipachart.html

Atlas Linguıstico de la Penınsula Iberica http://www.alpi.ca

Atlas Multimedia Prosodico do Espaço Romanico

http://pfonetica.web.ua.pt/AMPER-POR.htm#2

Biblioteca Nacional de Lisboa http://bnd.bn.pt/memorias/ecrans/lingua.html

Centro de Linguıstica da Universidade de Lisboa http://www.clul.ul.pt Instituto Camoes

http://www.institutocamoes.pt/cvc/hlp/index.html

Museu da Lıngua Portuguesa http://www.estacaodaluz.org

Revista Lusitana

http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/etnologia/revistalusitana/index.html