marcus claúdio acquaviva - teoria geral do estado - 3º edição - ano 2010
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MARCUS CLÁUDIO ACQUAVIVA
TEORIA GERAL DO
Teoria Geraldo Estado
3a ed ição
Teoria Geraldo Estado
M A R C U S C L Á U D I O A C Q U A V I V AProfessor na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie
3a edição
Manole
€> Editora Manole Ltda., 2010, por meio dc contrato com o autor.
Capa: Departamento de Arte da Editora Manole
Imagem da capa: Giuseppe Cesari
Este livro contempla as regras do Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa dc 1990, que entrou cm vigor no Brasil.
Dados Internacionais de Catalogação 11a Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Acquaviva, Marcus Cláudio
Teoria geral do Estado / Marcus Cláudio Acquaviva. - 3. ed. -
Barucri, SP : Manole, 2010.
ISBN 978-85-204-3026-2
1. O Estado 2. Estado - Teoria I. Título.
09-12088 CDD-320.101
índice para catálogo sistemático:
1. Teoria geral do Estado : Ciência política 320.101
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3:‘ edição - 2010
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“PRAXÁGORAS - Quero que todos tenham
um quinhão dos bens comuns, que a propriedade seja de todos;
de hoje em diante, deixará de haver distinção entre pobres e
ricos; não se repetirá o caso de possuir um homem vastas
extensões de terras, enquanto outro não tem sequer o suficiente
para cavar a sua sepultura... É meu propósito que seja um só o
modo de vida de todos... Para começar, farei que toda a
propriedade particular se torne bem comum.
BLÉPIRO - Mas... quem fará todo o trabalho?
PRAXÁGORAS - Para isso haverá escravos.”
(Da comédia de Aristófanes Kcclesiazusae, apud Pitigrilli,
Dicionário anti-loroteiro, Rio de Janeiro, Vecchi, 1956, p. 44)
RÔMULO E REMO E AS ORIGENS MÍTICAS DE ROMA1
Roma, cidade eterna! Este conhecido axioma insinua a alta antiguidade des
ta metrópole, que um dia foi a capital do mundo. A tradição a fez fundada aos 21
de abril de 753 a. C., por obra dos irmãos Rômulo e Remo. De onde vinham os
dois? Vejamos. Quando os gregos conquistaram e destruíram Tróia, restaram pou
cos sobreviventes entre os vencidos. Dentre estes, um príncipe, Enéias, que após va
gar sem destino pelo mundo, chegou à Itália, onde, na região do Lácio desposou a
jovem Lavínia, filha do rei Latino, com a qual teve um filho, Ascânio, que fundou
Alba Longa. Após oito gerações, Numitor e Amúlio, dois irmãos descendentes de
Ascânio, passaram a disputar o trono da cidade, com vantagem para Amúlio, que
expulsou seu concorrente e mandou matar todos os filhos deste, menos a menina
Réia Sílvia, constrangendo-a, porém, a se tornar sacerdotisa da deusa Vesta, mú-
nus que a obrigava a preservar a virgindade e, com isto, não ter filhos que pudes
sem se vingar no futuro.
Acontece que o deus Marte se apaixonou por Réia Sílvia, engravidando-a e
suscitando a cólera de Amúlio que, apesar de tudo, aguardou o resultado, que con
sistiu em dois robustos garotos. Mandou colocar os gêmeos num cestinho de vime
e soltá-los 110 rio Tibre, para que se afogassem na correnteza. Entretanto, o vento
soprava forte e o cesto encalhou a pequena distância; os recém-nascidos faziam ta
manho berreiro que atraíram a atenção de uma loba, que cm vez de matá-los, os
amamentou! Os dois cresceram e conheceram sua história, pelo que retornaram a
Alba Longa, depuseram Amúlio e fizeram retornar Numitor, a quem deram o tro
no. Sequiosos de aventura, não esperaram para receber a herança e o trono do avô,
indo em busca de novas terras, acabando por se fixarem no mesmo local onde o
cestinho em que embarcaram encalhara. Fundaram uma pequena cidade, em per
feita harmonia de ideais; porém, quando se tratou do nome a ser dado à povoação,
começaram a discutir, até que combinaram o seguinte: aquele que adivinhasse o
número de pássaros que num dado momento sobrevoariam o local, daria seu nome
à nova urbe. Rômulo ganhou a aposta, por isso a cidade chamar-se-ia Roma. De
marcaram os muros da cidade, jurando que matariam quem ousasse transpô-los.
Remo, despeitado pela derrota ou por infeliz gracejo, derrubou, com um pontapé,
os primeiros lances da construção, ao que Rômulo, fiel ao juramento e friamente,
o matou com um golpe de enxada!2
É evidente que, hoje, um estudo mais sério dos fatos não admite mais tanta
fantasia. Ainda que verdadeiro o episódio do abandono à morte dos gêmeos, a pro
1 Imagem da capa: Rômulo e Remo amamentados pela loba, de Giuseppe Cesari. Ilustração extraí
da de p o t t e r , David. Empcrors ofRonte: the story of imperial Rome from Julius Caesar to the last
emperor, Londres, Quercus, 2007, p. 17.
2 m o n t a n e l l i , Indro. História de Romay Sào Paulo, Ibrasa, 1961, p. 1-3.
teção que lhes teria dado uma loba, literalmente um animal, é pura lenda, pois a
44loba” não passaria, na verdade, de uma mulher chamada Aca Larência, malcria
da, violenta e adúltera, comportamento selvagem que lhe teria valido ser chamada,
zombeteiramente, “a loba”.
O fato é que os primeiros romanos, sempre orgulhosos dc si mesmos, preci
savam passar para os filhos uma origem nobre, heróica, ate sobrenatural, para que
a sociedade nascente criasse personalidade forte, dominadora. Foi o que ocorreu,
criando-se, desde logo, uma simbologia própria, inconfundível e perene, na qual se
destaca, sem dúvida, a imagem da loba romana, identificada com a cidade. Os gê
meos que ela amamenta foram acrescentados no Renascimento.
Quanto às verdadeiras origens de Roma, as coisas não se passaram de forma
tão romântica. Parece que os primeiros habitantes da região, paludosa e insalubre,
não tinham, absolutamente, origem nobre; tratava-se de gente humilde ou foragi
da que se ocultava nos pântanos e sobrevivia com dificuldade. É provável que as
agruras por que passaram tenham forjado seu caráter rude, seus costumes auste
ros, seu apego à terra, o espírito guerreiro e, consequentemente, seu expansionis-
mo.3
Por outro lado, a cidade parece ser bem mais antiga do que conta a tradição,
pois numerosos testemunhos arqueológicos, de muito antes de 753 a. C., revelam
a existência de comunidades remotas, da era do bronze médio e recente, na área
em que se assenta Roma.4
O fato é que a cidade ingressa na História oficial com seus sete reis (753-509
a. C.), especialmente a partir da tomada do poder pelos monarcas etruscos, no fim
do século VII a. C. Tem início, logo mais, no período republicano, talvez a mais glo
riosa epopeia de um povo, que civilizaria o mundo em nome do Direito e da Pax
Romana, criando um Estado em que a forma de governo alcançaria a perfeição, se
gundo Políbio de Megalópolis, tangida por cidadãos cuja probidade e amor ao bem
público esclarece, melhor que qualquer outra circunstância, a longa e profícua tra
jetória do Estado romano.
3 a c q u a v iv a , Marcus Cláudio. Notas introdutórias ao estudo do Direito, 3. ed., São Paulo, ícone,
1992, p. 48-9.
4 c a b a n e s , Picrre. Introdução à história da antiguidade, Pcrrópolis, Vozes, 2009, p. 142.
ÍNDICE GERAL
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................. XV
1 A DISCIPLINA.........................................................................................................................1Natureza, conceito e evolução histórica da Teoria Geral do Estado............................1
2 A SOCIEDADE E O ESTADO................................................................................................ 41) Fundamento da sociedade...........................................................................................42) Definição de sociedade ............................................................................................... 83) Espécies de sociedades............................................................................................. 10
3 0 ESTADO............................................................................................................................ 121) Conceito e evolução histórica do Estado................................................................... 122) 0 Estado de Direito....................................................................................................... 173) Direito e Estado.............................................................................................................204) Causas constitutivas do Estado................................................................................. 23
4.1) Causas materiais...................................................................................................... 244.1.1) Povo.....................................................................................................................244.1.2) N a ç ã o ................................................................................................................. 274.1.3) Territó rio ............................................................................................................. 314.1.4) Natureza das relações entre o Estado e seu território enquanto base física:teorias do direito real institucional, do imperium e do domínio em inente.............. 37
4.2) Causas fo rm a is ........................................................................................................ 394.2.1) Poder político...................................................................................................... 394.2.2) 0 princípio da separação de Poderes no Estado..........................................43
4.2.2.1) Antecedentes.................................................................................................434.2.2.2) O princípio da separação de Poderes segundo Montesquieu................. 45
IX
X Teoria Geral do Estado
4.2.2.3) 0 Poder Legislativo........................................................................................474.2.2.4) 0 Estado contemporâneo e a delegação de funções.............................. 474.2.2.5) 0 caso brasileiro: medida provisória e lei delegada................................48
4.3) Soberania....................................................................................................................514.3.1) A doutrina pactista medieval............................................................................. 534.3.2) A doutrina do contrato s o c ia l........................................................................... 534.3.3) A doutrina da soberania lim itada......................................................................564.3.4) Globalização e soberania ..................................................................................57
4.4) Ordem juríd ica........................................................................................................... 574.5) Causa final: o bem comum........................................................................................61
4.5.1) 0 liberalismo e o bem comum ......................................................................... 624.5.2) Concepção social do bem comum ..................................................................66
4 A CONSTITUIÇÃO.................................................................................................................741) Conceito e evolução h is tó rica ..................................................................................... 742) Espécies........................................................................................................................... 773) Conteúdo político das Constituições........................................................................... 804) Revolução, golpe de Estado e insurreição..................................................................82
5 FORMAS DE ESTADO........................................................................................................... 861) União pessoal................................................................................................................. 862) União real......................................................................................................................... 863) Estado u n itá r io ............................................................................................................... 874) Estado federa l................................................................................................................. 89
6 FORMAS DE GOVERNO....................................................................................................... 931) Classificações antigas e modernas............................................................................. 93
1.1) Platão (Arístocles).................................................................................................... 931.2) A ris tó te les ................................................................................................................951.3) Políbio de Megalópolis............................................................................................ 971.4) C ícero ........................................................................................................................991.5) Nicolau M aquiavel................................................................................................ 1001.6) M ontesquieu.......................................................................................................... 1021.7) Rousseau................................................................................................................1041.8) Kelsen...................................................................................................................... 108
2) Formas de governo clássicas...................................................................................... 1112.1) M onarqu ia ...............................................................................................................1112.2) República................................................................................................................1132.3) A ris tocrac ia ............................................................................................................1162.4) Democracia............................................................................................................ 118
índice Geral XI
2.4.1) Introdução ao tem a............................................................................................1192.4.2) Democracia direta..............................................................................................1192.4.3) Democracia representativa.............................................................................. 1212.4.4) Democracia sem id ire ta ....................................................................................1282.4.5) Sufrágio e voto....................................................................................................1332.4.6) Partidos políticos................................................................................................139
2.4.6.1) Os partidos políticos no Brasil.................................................................... 1452.4.7) Democracia e comunicação de massa.......................................................... 149
3) Tirania..............................................................................................................................1514) Oligarquia....................................................................................................................... 1545) Demagogia e oc locracia ............................................................................................... 1556) D itadura......................................................................................................................... 1577) Caudilhismo....................................................................................................................165
7 REGIMES DE GOVERNO....................................................................................................1731) Presidencialismo..........................................................................................................173
1.1) In trodução............................................................................................................... 1731.2) Presidencialismo histórico e direito comparado................................................1761.3) Presidencialismo versus parlamentarismo na América L a tin a ...................... 1771.4) Presidencialismo, militarismo e Igreja na América L a t in a .............................. 179
2) Parlamentarismo........................................................................................................... 180
8 IDEOLOGIAS....................................................................................................................... 1861) Conceito de ideo log ia ................................................................................................. 1862) Socialismo utópico....................................................................................................... 1873) Materialismo histórico e ditadura do proletariado.................................................. 1914) Anarquismo e sindicalismo......................................................................................... 2035) Mecanicismo e organ ic ism o......................................................................................2116) Totalitarismo: fascismo e nacional-socialismo........................................................214
6.1) Características do totalitarismo........................................................................... 2196.1.1) Ideologia o fic ia l................................................................................................ 2196.1.2) Sistema de partido único, sob o comando de um líder...............................2196.1.3) Controle policial pelo Estado.......................................................................... 2206.1.4) Concentração da propaganda nas mãos do Estado...................................2206.1.5) Concentração dos meios militares.................................................................2216.1.6) Direção estatal da economia .........................................................................2216.1.7) A doutrina nacional-socialista...................................................................... 2266.1.8) O Estado nacional-socialista e os direitos subjetivos.................................2266.1.9) 0 princípio da liderança (Führung) no Estado nacional-socialista...........227
7) Humanismo s o c ia l .......................................................................................................228
XII Teoria Geral do Estado
8) Social-democracia.................................................................................................... 2299) Neoliberalism o.......................................................................................................... 230
9 0 ESTADO ENTRE ESTADOS: AS ORGANIZAÇÕES INTERESTATAIS....................... 2331) Natureza das Organizações Interestatais.............................................................2332) A Organização das Nações Unidas - O N U .......................................................... 2353) Direito comunitário: antecedentes da União Européia - UE...............................2354) O Mercado Comum do Sul - Mercosul...................................................................2385) Os tratados internacionais (natureza e e ficác ia ).................................................2386) 0 Tribunal Penal Internacional - TPI.......................................................................242
10 LEITURAS COMPLEMENTARES...................................................................................... 2431) Marco Túlio Cícero (Dos deveres)...........................................................................2432) Santo Tomás de Aquino (Suma teológica e Suma contra os gentios)................ 2463) Nicolau Maquiavel [O príncipe)...............................................................................2474) William Shakespeare (Júlio César)........................................................................ 2495) Henry David Thoreau (Desobediência civil)...........................................................2556) Joseph De Maistre (O pensamento social cristão antes de M arx)...................2577) Simón Bolívar (Discurso perante o Congresso Constituinte de B o lív ia -1825). 2598) Karl Marx e Friedrich Engels (O manifesto com unista).......................................2679) Ferdinand Lassalle (Que é uma Constituição?).....................................................26910) Fustel de Coulanges (A cidade antiga).................................................................27711) Gustave Le Bon (Leis psicológicas da evolução dos povos) ...........................28012) Almeida Garrett (Obras).......................................................................................... 28813) Alberto Torres (A organização naciona l)............................................................ 28914) Francisco José de Oliveira Vianna (O ocaso do Im pério).................................29215) Jacques Maritain (O homem e o Estado) ............................................................ 30016) Georges Sorel (Reflexões sobre a violência).......................................................30117) Nikolaj Lênin (Como iludir o povo com os slogans de liberdade eigualdade)......................................................................................................................... 30318) Léon Duguit (Os elementos do Estado).................................................................30919) Benito Mussolini (Prelúdio a O príncipe, de Maquiavel)...................................31020) Varlan Tcherkesoff (Erros e contradições do marxismo)...................................31221) Hans Kelsen (Teoria geral do Direito e do Estado).............................................31722) Alípio Silveira (Da interpretação das leis na Alemanha nacional-socialista eh itle ris ta )........................................................................................................................... 32023) José Pedro Galvão de Sousa (Conceito e natureza da sociedade política)... 32524) M.A. Krutogolov (Palestras sobre a democracia soviética).............................33225) S.l. Kovaliov (História de Roma)............................................................................ 339
índice Geral XIII
11 DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA............................................................. 3411) Convocação da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa(Decreto de 03.06.1822)......................................................................................................3412) Dissolução da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa (Decreto de12.11.1823).........................................................................................................................3423) Decreto n. 13, de novembro de 1823...................................................................... 3424) Proclamação de D. Pedro 1........................................................................................ 3435) Manifesto de S. M. o Imperador aos brasileiros.................................................... 3446) Proclamação do Governo Provisório, em 15.11.1889 ...........................................3477) Decreto n. 1, de 15.11.1889 (Proclamação da República)...................................3488) Decreto n. 119-A, de 07.01.1890 (Liberdade de culto).............................................3499) Decreto n. 19.398, de 11.11.1930 (Institui o Governo Provisório da República dosEstados Unidos do Brasil)................................................................................................. 35010) Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10.12.1948 ...........................35311) Emenda Constitucional n. 4, de 02.09.1961 (Sistema parlamentarista)...............35712) Preâmbulo do Ato Institucional n. 1, de 09.04.1964...............................................36313) Emenda Constitucional n. 26, de 27.11.1985.......................................................... 364
ÍNDICE ALFABÉTIC0-REMISS1V0................................................................................... 367
APRESENTAÇÃO
Esta nova edição da obra Teoria Geral do Estado, do Prof. Marcus Cláudio
Acquaviva, acha-se inteiramente revista e ampliada, de modo a atender praticamen
te a todos os programas da disciplina determinados por universidades e faculdades
de Direito.
O autor, conhecido mestre de Direito, é advogado e leciona na Faculdade de
Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. No exercício de
seu magistério, recebeu, por parte de colegas e alunos, inúmeros pedidos e incenti
vo para a reedição do livro, esgotado há vários anos. Consciente da necessidade de
republicar a obra, o Prof. Acquaviva passou a dedicar grande parte de seu tempo
na revisão e na ampliação substancial do conteúdo do livro, tendo em vista a dinâ
mica do mundo globalizado e seus novos questionamentos.
Dentre os tópicos constantes da obra, cumpre mencionar a natureza, o con
ceito e a evolução histórica da disciplina Teoria Geral do Estado, o fundamento, a
definição e as espécies de sociedade, o conceito e a evolução histórica do Estado, o
Estado de Direito, as causas constitutivas do Estado (povo e nação, território, po
der político, soberania, ordem jurídica, bem comum), a Constituição política (con
ceito, evolução histórica e espécies), as formas de Estado, as formas de governo an
tigas e modernas, a democracia, o sufrágio e o voto, os partidos políticos, os regimes
de governo (presidencialismo e parlamentarismo), as ideologias políticas (anarquis
mo, sindicalismo revolucionário, marxismo-leninismo, social-democracia e outras)
e as organizações interestatais.
Várias inovações enriquecem a obra, com destaque para uma abordagem aos
partidos políticos no Brasil, análise minudente sobre o princípio da separação das
funções do Estado e um capítulo sobre as organizações interestatais, que muitos
denominam “internacionais”, incluindo tópicos como o Direito Comunitário (an
tecedentes da União Européia) e o Mercosul. Além desse nobre material de pesqui
XV
XVI Teoria Geral do Estado
sa, o autor promoveu inúmeros acréscimos ao próprio texto, dentre esses oportu
nas referências a autores de nomeada.
Um dos maiores atrativos da obra, a antologia de clássicos da Política e da
Teoria Geral do Estado foi, também, aumentada, passando a contar com mais ex
certos de obras famosas e de difícil acesso para o estudante, cm face dc sua rarida
de ou alto custo. Isso permitirá ao aluno, e mesmo ao professor, uma pesquisa com
mais conforto e rapidez. Participam da antologia, dentre outros clássicos, Cícero,
Santo Tomás de Aquino, Shakespeare, Maquiavel, Karl Marx e Friedrich Engels,
Lênin, Gustave Le Bon, Benito Mussolini e Hans Kelsen, isso sem mencionarmos
outros textos de grande valor doutrinário constantes da primeira parte da obra.
Encerrando o conteúdo desta, e também para enriquecer a informação aca
dêmica, uma oportuna documentação histórico-legislativa pertinente à Teoria Ge
ral do Estado, a partir do Primeiro Império brasileiro até a atualidade, valendo des
tacar o Decreto n. 1, de 15.11.1889 (Proclamação da República), o Decreto n.
19.398, de 11.11.1930 (Governo Provisório da República), a Declaração Univer
sal dos Direitos do Homem, de 10.12.1948 c a Emenda Constitucional n. 4, de
02.09.1961 (Sistema parlamentarista dc governo).
A DISCIPLINA
NATUREZA, CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA TEORIA GERAL DO ESTADO
Bibliografia: DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado, São Pau
lo, Saraiva, 1981. f i s c h b a c i i , O. G. Teoria general dei Estado, México, Nacional, 1981.
l i m a , Paulo Jorge de. Curso de teoria do Estado, 2. ed., São Paulo, Bushatsky, 1970.
s i l v e i r a n e t o , Honório. Teoria do Estado, 7. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1985.
Ao ingressar na Faculdade de Direito, o iniciante do curso jurídico se depara
com uma série de disciplinas denominadas básicas, cuja finalidade é orientá-lo quan
to aos fundamentos do Direito e da sociedade. Da mesma forma que a Biologia, a
Anatomia e tantas outras matérias congêneres constituem a base dos estudos espe
cíficos no campo das Ciências Médicas, a Teoria Geral do Estado, a Introdução ao
Estudo do Direito, a Sociologia e a Economia visam propiciar conhecimentos bá
sicos para a compreensão e a própria justificação de disciplinas mais específicas,
como o Direito Administrativo, o Direito Penal e o Direito Tributário, entre tantas
outras.
Quando um juiz comina pena de prisão, um fiscal de rendas impõe multa ao
contribuinte faltoso, uma autoridade judicial intima alguém para depor em proces
so ou para atuar como mesário ou apurador de votos cm uma eleição ou, ainda,
proíbe o fumo em bares, restaurantes e condomínios e o álcool nas rodovias, é o
F^stado, entidade imaterial, mediante seus órgãos concretos, como magistrados, fis
cais e servidores públicos, que faz valer a vontade da lei, à qual todos devem sub
meter-se em prol do interesse público.
1
2 Teoria Geral do Estado
Estado e Direito são, portanto, ideias inseparáveis, sendo a lei a formalização
da vontade estatal. Ora, se o instrumental de trabalho do bacharel em Direito é a
lei, como sonegar ao estudante uma sólida formação ética a respeito dos funda
mentos do Estado, do Direito e da própria sociedade? Daí plenamente justificada
a existência, no curso jurídico, dc uma disciplina como a Teoria Geral do Estado,
também denominada Teoria do Estado, Doutrina do Estado ou, ainda, Direito Cons
titucional I, como Parte Geral do Direito Constitucional Positivo.
A denominação Teoria Geral do Estado, proveniente da expressão alemã Alt-
gemeine Staatslehre, criada em 1672 pelo holandês Ulric Huber, sempre recebeu
críticas pelo adjetivo geral que contém, pecando por redundância, uma vez que, não
podendo haver ciência do particular, uma teoria é, inevitavelmente, gerai Daí as
vertentes Teoria do Estado (Staatslehre), adotada por Hermann Heller, e Doutrina
do Estado, preferida por Alessandro Groppali. Todavia, ingleses e norte-america-
nos denominam essa disciplina Political Science, e os franceses, Science Politique.
Sendo eminentemente teórica, a Teoria Geral do Estado é especulativa, e não
prática, sendo seu objeto não a análise dc um Estado concreto, específico, mas o
estudo do Estado em abstrato, como instituição universal, sob os mais variados
pontos de vista, como origem, evolução, organização e ideologias políticas. Daí a
precisa definição da Teoria Geral do Estado formulada por Paulo Jorge de Lima:
“disciplina de caráter teórico e geral, que tem por objeto o estudo do Estado como
fenômeno social e histórico, não só quanto ao seu conteúdo econômico-social
como no tocante às suas formas jurídicas e, inclusive, às suas manifestações ideo
lógicas”.
Quanto à evolução histórica da Teoria Geral do Estado, vale observar que as
obras ancestrais dessa disciplina são as de Platão (429-347 a.C.), Aristóteles (384-
322 a.C.) e Cícero (106-43 a.C.), embora Aristóteles seja considerado seu funda
dor, devido ao seu tratado Política (de polis, cidade), em que analisa as origens do
Estado e as formas de governo existentes em seu tempo. Conta-se que Aristóteles
visitou nada menos do que 150 países, estudando suas instituições e leis, do que re
sultou a mais famosa de suas obras.
Na Idade Média destacam-se Santo Agostinho (354-430), com o tratado A ci
dade de Deus, e Santo Tomás de Aquino (1225-1274), cujos escritos apresentam
robusto matiz político, o primeiro buscando conciliar o platonismo com os dog
mas cristãos, a inteligência com a fé; e o segundo enaltecendo a ortodoxia católi
ca, sendo suas obras principais a Suma teológica e a Suma contra os gentios. Am
bos dissertaram sobre temas referentes às relações entre o poder social e o poder
espiritual.
No ocaso da Idade Média surge Marsílio de Pádua, reitor da Universidade de
Paris, com a obra Defensor pacis (1324), na qual recomenda a separação e a mú
tua independência entre Igreja e Estado, livro este considerado precursor da mo
derna ideologia totalitária, como o demonstra o Prof. José Pedro Galvão de Sousa
1 A disciplina 3
em tese primorosa intitulada O totalitarismo nas origens da moderna teoria do Es
tado, publicada em 1972.
A evolução histórica da Teoria Geral do Estado recebe considerável impul
so com Nicolau Maquiavel (ou Machiavelli), célebre escritor político florentino
que viveu entre 1469 e 1527, como se constata em suas obras O príncipe e Dis
cursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Após Maquiavel, destacam-se Tho-
mas Hobbes (1588-1679), com Leviatã e Do cidadão, John Locke (1632-1704),
com Tratado sobre o governo civil, Montesquieu (1689-1755), com O espírito das
leis, e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), com O contrato social, que buscaram
revelar o fundamento do poder político e da sociedade na própria natureza hu
mana e na vida social.
Somente no século X IX , na Alemanha, com Georg Jellinek (1851-1911), ju
rista emérito e fundador do Direito Público alemão, a Teoria Geral do Estado tor-
nou-se uma disciplina independente. No Brasil, até 1940 não se falava em Teoria
Geral do Estado, mas em Direito Piíblico e Constitucional. Nesse ano ocorreu a
separação: a Teoria Geral do Estado passou a ser disciplina autônoma e o Direito
Público e Constitucional a denominar-se apenas Direito Constitucional.
2 A SOCIEDADE E O ESTADO
1) FUNDAMENTO DA SOCIEDADE
Bibliografia: Ar i s t ó t e l e s . A política, 2. ed., tradução de Roberto Leal, São Paulo, Mar
tins Fontes, 1998. c a l a m e -g r i a u l e , Geneviève. Manual de philosophia, tradução e adap
tação de D. Ludgero Jaspers O.S.B., São Paulo, 1926; e “A palavra e o discurso”, in His
tória dos costumes, Jean Poirier (org.), v. 5, Lisboa, Editorial Estampa, 2000. h o b b e s ,
Thomas. Leviatan, 2. ed., México, Fondo de Cultura Econômica, 1984. So u z a , José Pe
dro Ciai vão de. Conceito e natureza da sociedade política, São Paulo, 1949.
Fjnbora seja o Estado a mais complexa das sociedades, manifestação suprema
do espírito objetivo no mundo, como queria Hegel, é indispensável abordar a socie
dade em geral, dada a vinculação daquele a esta. Pois bem, já vivenciou o leitor a
desagradável experiência de permanecer trancado, durante horas, num velho eleva
dor, quem sabe, no 12° andar? Fim de semana, expediente encerrado, prédio vazio
e silencioso, sem celular ou qualquer outro meio de comunicação. O pânico e a de
sesperança acabam quando, do lado de fora, uma voz amiga e trêmula pelo susto
das pancadas na porta nos acalma e garante que a assistência técnica não demora e
que tudo está sob controle... Por nascermos em sociedade, em convívio cotidiano
com outras pessoas, conhecidas ou não, raramente nos damos conta da importân
cia disso para nossa realização plena. A interação mais ou menos intensa que man
temos com todos torna-se repetitiva e, por isso mesmo, despercebida, pouco valori
zada, porque nos consideramos ilimitadamente autossuficientes. Quando, porém,
em face de um infortúnio, isolamo-nos de forma involuntária, despertamos para a
assustadora realidade da solidão e da impotência para sobreviver! Sozinhos, afasta
4
2 A sociedade e o Estado 5
dos de todo o conforto que a sociedade tecnológica proporciona, damo-nos conta
de nossa fraqueza perante o mundo natural. Temos a nosso favor apenas a inteli
gência, o bom-senso e os conhecimentos que a própria sociedade nos transmite, con
firmando a assertiva de Blaise Pascal de que o homem não passa de um caniço pen
sante, que se quebra na mais leve brisa. Nada pior que o isolamento forçado,
portanto. Pois bem, nascendo e vivendo em sociedade, o homem se mostra uma cria
tura eminentemente gregária e comunicativa por meio de uma linguagem articula
da, o que levou o filósofo Aristóteles a considerá-lo um ser social e comunicativo
por natureza, denominando-o por isso zoon politikon, ou seja, um ser sociável por
natureza. Em sua obra clássica Política, Aristóteles nos ensina:
É, portanto, evidente que toda Cidade está na natureza c que o homem e natu
ralmente feito para a sociedade política. Aquele que, por sua natureza e não por obra
do acaso, existisse sem nenhuma pátria seria um indivíduo detestável, muito acima ou
muito abaixo do homem, segundo Homero: “Um ser sem lar, sem família e sem leis”.
Aquele que fosse assim por natureza só respiraria a guerra, não sendo detido por ne
nhum freio e, como uma ave de rapina, estaria sempre pronto para cair sobre os ou
tros. Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros
animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o
dom da palavra, que não devemos confundir com os sons da voz. Estes são apenas a
expressão de sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os outros animais são,
como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limitado a este único efeito; nós, po
rém, temos a mais, senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento obs
curo do bem c do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a mani
festação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala. Este comercio da
palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil. O Estado, ou sociedade política,
é até mesmo o primeiro objeto a que se propôs a natureza. O todo existe necessaria
mente antes da parte. As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as par
tes integrantes da Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas distintas por seus
poderes e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas, semelhantes às mãos e
aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem a
realidade, como uma mão de pedra. O mesmo ocorre com os membros da Cidade: ne
nhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens, ou não
pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto. Assim, a inclinação na
tural levou os homens a este gênero de sociedade.
Santo Tomás de Aquino (1225-1274), o maior filósofo da Cristandade, inspi
rando-se no próprio Aristóteles, considera que o homem, sociável por natureza, vi
veria em solidão apenas em três hipóteses:
a) hipótese da natureza divina (excellentia naturae), vale dizer, a do indivíduo
que, dotado de carisma (graça divina), deixa o convívio social e retira-se para um
6 Teoria Geral do Estado
local isolado, entregando-se à meditação, como fez Jesus em seu retiro 110 deserto,
e como fazem os ermitões, indivíduos que, desiludidos pelas mazelas do gênero hu
mano, optam pela purificação e pelo aperfeiçoamento do espírito, ingressando num
monastério isolado, felizes na frugalidade da vida monástica e no silêncio austero
que convida à espiritualidade.
b) hipótese da natureza doentia (corruptio naturae), qual seja, a dos indivíduos
atingidos por anomalias físicas 011 mentais (moléstias contagiosas, loucura), as quais
criariam uma barreira entre eles e a sociedade. E o que ocorria, como é sabido, com
os leprosos durante a Idade iMédia, escorraçados das cidades e obrigados a viver
isolados, formando comunidades indesejáveis a grandes distâncias dos centros ur
banos. Também os alienados mentais, como foi dito, viveriam isolados da socieda
de, pois 11a sua desgraça não teriam noção do mundo real, vivendo inconscientes,
alheios à realidade (daí, a expressão alienado, alheio).
c) hipótese da má sorte, azar (mala fortuna), em que o indivíduo se vê privado
do convívio social por um capricho do destino, como ocorreria com o sobreviven
te de um naufrágio, da queda dc uma aeronave ou, caso mais comum do que se
pensa, do excursionista que se perde 11a mata espessa durante uma caminhada mais
ousada. As vicissitudes da clássica personagem Robinson Crusoé e, no cinema con
temporâneo, do náufrago vivido por Tom Hanks, ilustram bem a hipótese, sem fa
larmos no impressionante O senhor das moscas, filme em que um grupo de garotos,
sobreviventes a um desastre aéreo, torna-se selvagem, formando grupos inimigos e
chegando ao assassinato.
Para outros autores, entretanto, o homem, muito menos que a sociedade e,
nesta, o próprio Estado, é resultado de um instinto, ou seja, da natureza gregária
do ser humano. Ao contrário, a natureza agressiva deste o leva a investir fisicamen
te contra seus semelhantes, de modo que somente 11111 governo severo, autocrático
e disposto a punir seus excessos sem contemplação poderia tornar possível a vida
em sociedade. Tal a posição deThomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês para
quem, 11a aferição das origens do Estado, o ser humano é impelido, por natural in
clinação, a destruir seus semelhantes. O homem, segundo Hobbes, é lobo do pró
prio homem (homo homini lupus), frase criada pelo cronista latino Apuleio. Um
apetite natural e irracional, fundado em ambição, orgulho e vaidade (superhia vi-
tae), leva o homem a conquistar poder e glória a qualquer custo, mediante uma vio
lenta submissão do próximo. Em sua visão pessimista, Hobbes adverte que esse fre
nesi de dominação encontra sério obstáculo: o medo de morrer (timor mortis). Com
efeito, a ameaça da morte imprevista e dolorosa, sempre presente, é a origem da
lei e do Estado, formas que exprimem o desejo de autoconservação. Enfim, para
Hobbes, a necessidade de sobreviver impele o homem à vida comunitária. Ora, por
não ter fundamento naturala sociedade pressupõe uma disciplina férrea, imposta
pelo Estado, que Hobbes denomina Leviatã, monstro bíblico que empresta o nome
à sua obra mais conhecida.
2 A sociedade e o Estado 7
Uhotnme est né libre et partout il est dans les fers (O homem nasce livre, mas
em todo lugar se acha acorrentado). Com esta preocupante sentença, Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778), grande inspirador ideológico do individualismo da Revo
lução Francesa e mesmo das democracias liberais modernas, procura demonstrar,
logo no início do primeiro capítulo de seu famoso livro O contrato social, que o
ser humano nasce bom, livre e feliz, le bon sauvage (o bom selvagem) típico do ro
mantismo do referido pensador. Todavia, para realizar seus objetivos, o homem pre
cisa do auxílio de seus semelhantes e, por isso, tangido pela razão, e não por uma
suposta inclinação natural, celebra um pacto social com esses, perdendo sua liber
dade natural e ingressando em outra espécie de liberdade, limitada, a civil. No con
vívio com o próximo, o homem, bom por natureza, corrompe-se. Cabe a lei preser
var, a todo custo, a liberdade individual, que passa a ser um fim em si mesma.Como
se vê, Rousseau toma orientação semelhante à de Flobbes quanto à origem da so
ciedade, num pacto ou contrato social, e não como decorrência de uma natural in
clinação do ser humano. Diferem, já percebe o leitor, na concepção do próprio ho
mem: para Hobbes, este nasce individualista, sequioso de poder e glória, à custa de
seu semelhante; já para Rousseau, ele nasce bom, mas a sociedade o corrompe de
tal modo que e necessário restaurar sua primitiva liberdade individual, tão preco-
cemente perdida.Na verdade, a própria natureza humana se inclina para a vida em
sociedade. Como poderia o homem, por si só, prover sua subsistência, especialmen
te na infância? Ao contrário de muitas espécies animais, desde o nascimento aptas
à luta pela vida, o ser humano recém-nascido carece de total proteção, pois sem
esta, sucumbe. A par disso, outro indício marcante da sociabilidade humana é a
própria linguagem articulada, cuja finalidade não poderia ser outra senão a comu
nicação entre as pessoas. Observa Cieneviève Calame-Griaule:
A linguagem, como fenômeno universal, é ao mesmo tempo a condição necessá
ria e suficiente para a definição do homem, de quem ela é um privilégio. “Fala, e eu
batizo-te”, teria dito o cardeal de Polignac a um orangotango de aspecto muito huma
no. Esta célebre historieta, relatada por Diderot, ilustra bem a antiquíssima convicção,
nada abalada pelos estudos, cada vez mais avançados nos dias que correm, sobre a co
municação animal. Por outro lado, vindo à luz, é graças à adaptação paulatina ao
modo de ser da sociedade que o ser humano vai sendo condicionado a agir conforme
os valores desta, num processo assimilativo denominado socialização, iniciado no lar,
passando pela escola e pelos grupos sociais de variada natureza. Enfim, como adverte
Lahr, o homem nutre simpatia (do grego syrnpathia) pela vida cm sociedade, empre
gada tal expressão no seu sentido rigorosamente filosófico, a saber, a disposição pura
mente passiva dos seres sensíveis de compartilhar espontaneamente as emoções daque
les com que vivem. (Manual de philosophia, p. 91)
8 Teoria Geral cio Estado
2) DEFINIÇÃO DE SOCIEDADE
Bibliografia: DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito, São Paulo, Saraiva,
1948. j o l i v e t , Regis. Curso de filosofia, 13. ed., São Paulo, Agir, 1979. l e m p e r e u r ,
Agnes e t i i i n e s , George. Dicionário geral das ciências humanas, Lisboa, Edições 70,
1984.
Como definir a sociedade? Do ponto de vista puramente biológico, advertem
Agnes Lempereur e Georges Thines, a sociedade é a comunidade animal natural
que agrupa indivíduos da mesma espécie, ligados entre si pela potência dos fenô
menos interatrativos, e ocupando um biótopo que a comunidade condiciona estrei
tamente. Em princípio, consideramos oportuno estabelecer uma discriminação con
ceituai entre a sociedade propriamente dita (união estável de seres humanos), e o
agregado animal (união estável de outros seres), pois a sociabilidade humana impli
ca uma complexidade de relações muito mais profunda que a observada no agrega
do animal. A sociedade propriamente dita, a humana, mostra-se dinâmica e mutá
vel, ora evolui, ora regride, mas sempre em perpétuo movimento. Fruto da cultura
e da experiência acumulada pelo homem, ela segue no rumo de formas de convi
vência cada mais complexas. Haverá erros, retrocesso, degeneração, todavia a so
ciedade estará, sempre, renovando seus valores, mudando na busca da perfeição,
da ordem absoluta. A definição de sociedade nos impõe, desde logo, esclarecer o
que é definir. Definir é revelar a essência do definido. O que é essência, entretanto?
É tudo o que identifica o objeto a ser definido. Sem seus elementos essenciais, o ser
ou coisa careceria de existência, portanto, devem constar de toda definição apenas
as causas essenciais do que está sendo objeto de definição. Assim, quando Anício
Mânlio Torquato Severino Boécio ou, simplesmente, Boécio (474-524 d.C.), filóso
fo e teólogo romano, define o homem como substância indivisível dotada de racio
nalidadey percebe-se que a razão é o elemento essencial da definição do ser humano,
pois seria inconcebível um gênero humano desprovido de racionalidade. Acontece
que, a par dos elementos essenciais, existem outros, denominados acidentais ou con
tingentes, que integram casualmente o objeto a definir, e sem os quais este preserva
sua essência, não sendo, portanto, indispensáveis à definição. Por exemplo, se defi
nirmos o homem como ser racional, estaremos revelando a própria essência da es
pécie humana. Sem racionalidade, não há que se falar em ser humano. Entretanto,
se definíssemos o homem como um ser racional bom ou mau, humilde ou arrogan
te, honesto ou desonesto, estaríamos pecando por acidentalidade, porque o homem,
embora sempre racional, pode ser bom ou mau, humilde ou arrogante, honesto ou
desonesto, características e atributos meramente acidentais. Muito cuidado, por
tanto, quando formos definir o que quer que seja. Omnia definitio periculosa est,
2 A sociedade e o Estado 9
já proclamava a sabedoria latina... Tentemos, não obstante, definir a sociedade. Há
quem a defina como agrupamento duradouro, dotado de um espaço territorial, de
finição que peca pela acidentalidade, ao incluir o espaço territorial (base física)
como elemento essencial, quando sabemos que pode haver sociedades desprovidas
de base física, como os nômades, ou, exemplo mais concreto do Direito Privado
brasileiro, uma associação (entidade sem fins econômicos) ou uma sociedade stric-
to sensu (entidade com fins econômicos), que venha a ser despojada, temporária ou
definitivamente, de sua sede ou estabelecimento por motivo de dívidas. Regis Joli-
vet, conhecido filósofo contemporâneo, define a sociedade como a união moral es
tável, sob uma única autoridade, de várias pessoas, físicas ou morais, que tendem
a fim comum. Satisfatória se mostra essa definição, pois nela não se inclui nenhu
ma causa ou elemento acidental, ressaltada, apenas, a essência da sociedade. Ou
tra definição reconhecida é a do jurista e filósofo italiano Giorgio Del Vecchio, para
quem a sociedade é um complexo de relações, graças ao qual vários seres indivi
duais vivem e trabalham conjuntamente, daí surgindo nova e superior unidade.
Nesta definição fica salientada a expressão relações, no sentido dc que a vida co
munitária pressupõe um relacionamento que os sociólogos denominam, sugestiva
mente, interação, definida esta como a ação exercida mutuamente entre duas ou
mais pessoas. Ação recíproca, enfim. No período convivem e trabalham conjunta
mente, fica evidenciada a permanência, a estabilidade, o desejo de todos de conviver
permanentemente em sociedade, intenção que os romanos já denominavam affec-
tio societatis. Sim, para que um conjunto de indivíduos possa ser qualificado como
sociedade, é indispensável a característica de permanência, vale dizer, estabilidade.
Deve a sociedade, portanto, ser criada com a intenção de preservá-la, fazê-la durar
na consecução do bem social, sua causa última. Com a expressão nova unidade,
Del Vecchio deixa claro que a sociedade passa a ter existência própria, autônoma,
independente da figura dos indivíduos que a integram, enfim, passa a ter persona
lidade jurídica, sob a forma de pessoa coletiva, dotada, como seus filiados, de di
reitos e deveres, embora inconfundível com a pessoa natural (ser humano dotado
de direitos e deveres reconhecidos juridicamente) de cada um deles. A sociedade ou
pessoa coletiva comporta-se como uma pessoa natural, e os indivíduos que dela
participam, considerados isoladamente, destacados dos outros, poderiam deixar a
sociedade por vontade própria ou por morte, e nem por isso a existência jurídica
da sociedade seria afetada. De todo modo, a sociedade reconhecida pela lei consti
tui uma nova unidade, ou seja, tem vida própria. Quanto ao trecho superior uni
dade, Del Vecchio proclama que, tendo existência própria, a sociedade tem um ob
jetivo, uma finalidade transcendente, superior a cada um dos objetivos individuais
dos sócios. De fato, o objetivo social está acima das ambições individuais, muitas
vezes egoístas, mesquinhas, de cada sócio.
10 Teoria Geral do Estado
3) ESPECIES DE SOCIEDADES
Bibliografia: CAETANO, Marccllo. Manual de cicncia política e direito constitucional,
Lisboa, Coimbra, 1972, r. 1. c o s t a j r ., Paulo José da e p e l l e g r i n i , Angiolo. Crimi
nalidade organizada, São Paulo, Jurídica Brasileira, 1999. d i n i z , Maria Helena. Di
reito civil brasileiro - Teoria geral do direito civil, 18. ed., São Paulo, Saraiva, 2002,
v. 1. g r o p p a l i , Alessandro. Introdução ao estudo do direito, 3. ed., Coimbra, Coim
bra, 1978. r o d r i g u e s , Sílvio. Direito civil - Parte Geral, 32. ed., São Paulo, Saraiva,
2002, v. 1. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 6. ed., São Paulo, Sa
raiva, 1984. t õ n n i e s , Ferdinand. Princípios de sociologia, México, Fondo de Cultura
Fxonómica, 1942. v e n o s a , Silvio de Salvo. Direito civil - Parte Geral, 2. ed., São Pau
lo, Atlas, 2002, v. 1. w a i .d , Arnold. Curso de direito civil brasileiro - Introdução e Par
te Geral, 9. ed., São Paulo, Saraiva, 2002. w e b e r , Max. Economia y sociedade, Méxi
co, Fondo de Cultura Econômica, 1992.
Classificar as sociedades é tão difícil como defini-las. Sociólogos e juristas su
gerem inúmeras tipologias que, embora respeitadas, não conseguiram, ainda, una
nimidade. Do ponto de vista sociológico, duas orientações se tornaram clássicas, a
de Ferdinand Tõnnies e a dc Max Weber, ambos alemães. Tõnnies apresentou, em
1877, uma classificação das relações sociais, dividindo-as cm comunidades e socie
dades (associações). A comunidade seria um produto espontâneo da vida social,
correspondente à vida real, orgânica, ao passo que a associação resultaria da vonta
de tangida pela razão, diante de um interesse material. Marcello Caetano observa
que as diversas formas de sociedade são comunidades quando, existindo indepen
dentemente da vontade de seus membros, os indivíduos se acham a elas vinculados
pelo simples fato do nascimento, ou por um ato que não tenha por fim imediato
aderir a elas; e serão associações quando, criadas pela vontade dos indivíduos, re-
sultarem da união daqueles que a elas resolvam aderir, e que delam possam sair
quando queiram. Seguindo este critério, caracterizam exemplos de comunidades: a
nação, a família, o meio residencial (a escolha de um local para viver integra, au
tomaticamente, a pessoa num meio social), o meio profissional. Exemplos dc asso
ciações: um clube esportivo, uma irmandade religiosa, uma sociedade comercial,
uma academia científica, uma entidade beneficente. Curiosa a observação do autor
citado: encontramo-nos nas comunidades, mas entramos nas associações. Na co
munidade os membros se acham unidos, apesar de tudo quanto os separa; na as
sociação permanecem separados, apesar de tudo quanto fazem para se unir. Quan
to a Max Weber, considera a comunidade o fruto de um sentimento subjetivo, de
caráter emotivo, de simpatia, que impele os indivíduos a constituir um todo, ao pas
so que a associação seria resultante da vontade manifestada por um impulso racio
2 A sociedade e o Estado 11
nal. Assinala Weber, todavia, que comunidade e associação correspondem a tipos
ideais, raramente realizáveis quando consideradas de maneira isolada, porque numa
determinada sociedade acham-se mesclados valores afetivos e objetivos racionais.
Outra classificação é aventada por Pedro Salvetti Netto, que as tipifica em neces
sárias c contingentes. Das sociedades necessárias - a própria denominação adota
da revela seu sentido - o homem não pode prescindir, por exemplo, a sociedade fa-
milial, a religiosa e a política, ao passo que as contingentes, embora concorram,
circunstancialmente, para o aprimoramento e o conforto do homem, não se mos
tram indispensáveis à sua existência, podendo deixar de existir (quod potest non
esse). Observa o autor citado que o maior traço distintivo entre as sociedades ne
cessárias e as contingentes é o fato de que aquelas preexistem ao homem, o qual,
tão logo vem à luz, a elas se vincula, ao passo que essas constituem obras da von
tade humana. Do ponto de vista jurídico, porém, nem sempre tais classificações são
satisfatórias. Basta dizer que a Sociologia se interessa, sem preconceitos, por toda
espécie de sociedade, mesmo aquelas inimigas da ordem jurídica e, portanto, do
próprio Estado, reprimidas pela lei, ilícitas, tais como a Máfia siciliana, a Camor-
ra napolitana, a Yakuza (máfia japonesa) e a Russkaja (máfia russa), cuja estrutu
ra “administrativa” já recebeu um brilhante estudo dos juristas Paulo José da Cos
ta Jr. e Angiolo Pellegrini, ao passo que a lei exige, das sociedades regulares, uma
série de pressupostos inafastáveis para sua atuação.
3 0 ESTADO
1) CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO
Bibliografia: g u m p l o w i c z , Louis. Précis de sociologie, Paris, Léon Chailley, 1896. d u -
g u i t , Léon. “UÉtat, les gouvernants et les agents”, in Études de droit public, Paris,
Fontemoing, 1903. m a q u i a v e l o , Nicolás. El príncipe, Barcelona, Bruguera, 1979.
m a r x , Karl. Manifesto do Partido Comunista, São Paulo, Global, 1981. n a r a n j o v i l l e -
g a s , Abel. Filosofia dei derecbo, Bogotá,Temis, 1959. m e j í a , Hugo Palacios. Introduc-
ción a Ia teoria dei Estado, Bogotá, Temis, 1965. p l a t Âo . A República ou da justiça,
Madri, Aguillar, 1979, Livro I,Título XII, p. 672-3. p r é l o t , Mareei e b o u l o u i s , Jean.
Institutions politiques et droit constitutionnel, 7. ed., Paris, Dalloz, 1978. r a d b r u c h ,
Gustav. Filosofia do direito, 6. ed., Coimbra, Armênio Amado, Sucessor, 1997; Leyes
que no son derecbo y derecbo por encima de Ias leyes, Madri, Aguilar, 1971. SOUZA,
José Pedro Galvão dc, g a r c i a , Clóvis Lema c c a r v a l h o , José Fraga Teixeira dc. Di
cionário de política, São Paulo, T. A. Quciróz, 1998. s p e n g l e r , Oswald apud Paulo
Bonavides, Ciência política, 6. ed., Rio dc Janeiro, Forense, 1986.
A palavra estado apresenta vários sentidos inconfundíveis. Em princípio, o
termo surge do latim status, condição pessoal do indivíduo perante os direitos ci
vis e políticos (status civitatis, status familiae). x\4odernamcntc, a expressão estado
civil identifica o indivíduo solteiro ou casado, ao passo que status é um termo apli
cável ao estado econômico daqueles bem-sucedidos no mundo dos negócios. Toda
via, a palavra Estado, agora com E maiúsculo, denomina, modernamente, a mais
complexa e perfeita das sociedades civis, qual seja, a sociedade política, que pode
ria ser conceituada como a “sociedade civil politicamente soberana e internacio
12
3 0 Estado 13
nalmente reconhecida, rendo por objetivo o bem comum aos indivíduos e comuni
dades sob seu império”.
Gregos e romanos denominavam a sociedade política polis e res publica, res
pectivamente. A palavra Estado passou a identificar a sociedade política a partir
do Renascimento, graças a Nicolau Maquiavel, que, no seu livro clássico O prín
cipe, dizia: “Tutti gli stati, tutti /’ domini che hanno avuto e hanno impero sopra
gli uominiy sono stati e sono repuhliche o principatr (“Todos os estados, todos os
domínios que tiveram e têm poder sobre os homens, foram e são repúblicas ou prin
cipados”). Km William Shakespeare (1564-1616), nas pegadas de Maquiavel, tam
bém encontraremos a expressão Estado indicativa da sociedade política, mais pre
cisamente na tragédia Hamlet, pela boca da personagem Marcelo, que diz: “Há
algo de podre no reino da Dinamarca” (“[...] in the State of Danemark”). Na Fran
ça, o termo estat ou état foi recebido do latim a partir do século XIII, no sentido
de situação de alguma coisa e, dois séculos depois, como estado, posição de uma
pessoa. No século XVI, passou a ser empregado no sentido de sociedade política,
embora alguns escritores, como Jean Bodin, tenham preferido o termo república
(Republique) ou, como Charles Loyseau, senhoria (Seigneureries). Execrado por
uns (comunistas c anarquistas), endeusado por outros (fascistas e nazistas), o Esta
do sempre foi objeto de estudo dc seus defensores (Hobbes, Hegel) e dc seus detra
tores (Marx, Fjigels, Bakunin), e hoje, com o crescente intervencionismo estatal, ele
se faz presente nos mínimos detalhes de nossa vida cotidiana. Por que somos obri
gados a fazer o serviço militar (CF, arts. 5o, VIII, e 15, IV), pagar imposto sobre a
renda, trabalhar como mesário ou apurador nas eleições, usar cinto de segurança),
pagar pedágio quando em viagem, não fumar em locais públicos ou ouvir, compul-
soriamente, o programa A Voz do Brasil ou, ainda, o notório horário político, dedi
cado aos candidatos a cargos públicos? Por que sem nossos documentos pessoais,
como o cartão de identidade, a carteira de trabalho, tornamo-nos ilustres desco
nhecidos perante a autoridade que no-los pede, com cara de poucos amigos? É que
todos esses devores nos são impostos pelo Estado, e somente ele tem a prerrogati
va de nos dar a quitação respectiva. Houve época, conta-nos Fustcl de Coulanges,
em sua obra imortal A cidade antiga (Capítulo XVIII), que, na antiga Grécia, o Es
tado sufocava por inteiro a liberdade natural do indivíduo, a ponto de - em algu
mas cidades-Fstado helênicas - os homens serem obrigados a deixar crescer a bar
ba e as mulheres não poderem levar, em viagem, mais do que três vestidos. Fjn
outras cidades, as mães, que recebiam os cadáveres dos filhos mortos em batalha,
deviam mostrar alegria, mesmo forçada, pois, se chorassem, estariam cometendo
crime contra o Estado. Modernamente, a exacerbação do poder do Estado se mos
tra cristalina e aterradora no delírio de dominação dos Estados fascista, na Itália,
e nacional-socialista, ou nazista, na Alemanha, sem falarmos os horrores da dita
dura totalitária do proletariado, na União Soviética, estalinista.
14 Teoria Geral do Estado
Sabemos que o Estado é uma sociedade necessária e condicionante das demais,
e conhecemos detalhadamente sua evolução histórica. Como, porém, defini-lo? As
definições são tantas quanto os autores que as formulam, a ponto de um grande
publicista do século XIX, chamado Bastiat, propor vultosa recompensa a quem for
mulasse um conceito de Estado unanimemente aceito... O próprio Hans Kelscn
(1881-1973), inspirador da célebre doutrina pura do Direito, já advertia que a vo
lumosa soma de definições do Estado dificulta a precisão do termo, reduzindo-o
a mero juízo de valor, desprovido de caráter científico (Teoria general dei Estado,
p. 3-4).
Seja como for, não podemos deixar de fazer algumas referências a tais defini
ções, colhendo-as na seara do próprio Direito ou da Sociologia. Assim, Giorgio Del
Vecchio define o Estado, do ponto de vista jurídico como “o sujeito da Ordem Ju
rídica, na qual se realiza a comunidade de vida de um povo” (Pbilosopbie du droit,
Paris, Dalloz, p. 351-2). Para Georges Burdeau, eminente publicista contemporâ
neo, o Estado se forma quando o poder torna-se uma instituição, não se confun
dindo mais com aquele que o encarna, mediante o fenômeno da institucionaliza
ção do poder (Traité de science politique, t. 2, p. 128). No plano da Sociologia,
Oswald Spengler, citada por Paulo Bonavidcs, surpreende no Estado a História em
repouso, e na História o Estado cm marcha (Ciência política, 6. ed., Rio de Janei
ro, Forense, 1986, p. 52).
Quanto às origens históricas do F'stado, cumpre observar, de imediato, que
não se pode confundir uma única origem para todos os Estados, idealizada pela or
todoxia doutrinária, e a origem histórica de cada um destes. Em vez de um fenô
meno recorrente, peculiar a todas as sociedades, o surgimento de cada Estado se
acha ligado a toda sorte de circunstâncias, dentre estas o próprio meio ambiente.
Não obstante, várias doutrinas procuram demonstrar uma só origem, embora re
mota, da sociedade política, sendo as principais a patriarcalista, a teocrática, a con-
tratualista, a patrimonialista e a da força. Vamos resumi-las. A teoria patriarcalis
ta, preconizada por Bossuet e Robert Filmer, observa que, da mesma forma que na
família os filhos devem obediência aos pais, todos eles devem obediência ao Esta
do, pois este nada mais é que a união de muitas famílias. Daí a natural inclinação
desta doutrina para a monarquia, devendo o rei governar como um pai para os sú
ditos. Ademais, o gênero humano teria uma natural inclinação para a forma mo
nárquica, como ocorre em certos agregados animais complexos, por exemplo o das
abelhas, cujo instinto as leva a viver em função de uma abelha-rainha. Em que pese
a razoabilidade de sua argumentação, o fato é que o patriarcalismo acabou por se
tornar mera justificativa do poder monárquico.
A doutrina teocrática, desenvolvida ao longo do tempo por Demóstenes, Luís
XIV, Bossuet e J. F. Stahl, dentre outros, apresenta inúmeras variantes, que têm em
comum a ideia de que é da vontade de Deus o Estado existir, vontade esta manifes
tada concretamente pela Providência, sendo esta a atuação de Deus na História.
3 0 Estado 15
Assim, natural a defesa de um direito divino dos reis pelos adeptos dessa doutrina,
com fundamento na afirmação de que Deus, ao eleger determinada forma de go
verno, qual seja, a monarquia, demonstrou à Humanidade ser esta sua Vontade, ra
zão pela qual, cm qualquer estágio histórico, aquela deve ser adotada.
Quanto à doutrina contratualista, ao contrário do que se pensa, é uma das
mais antigas no tocante à origem do Estado. Jean-Jacques Rousseau, tido por mui
tos como seu inspirador é, na verdade, um dos últimos, como assinala Leopold
Uprimny (apud Hugo Palacios Mejía, Introducción a Ia teoria dei Estado, p. 45).
Antes dele, Platão, Santo Agostinho, Suárez, Hobbes e Grócio, entre outros, desen
volveram a ideia de que o Estado resulta de um contrato, um acordo entre os ho
mens. A tese do contrato social surgiu de pontos de vista diversos e, muitas vezes,
conflitantes, ora para explicar a origem do Estado (Hobbes), ora para justificar o
poder do príncipe, como ocorreu na Idade Média, período em que era usual reconhe
cer a existência de um contrato entre o governante e o povo, pelo qual este se com
prometia a obedecer àquele (pacta sunt servanda). Seja para garantir um mínimo
de liberdade (Rousseau), ou para evitar a guerra dc todos contra todos (Hobbes),
os homens, tangidos pela razão, foram paulatinamente se congregando e abdican
do de uma liberdade natural perigosa e irrealizável, para adotar uma liberdade ci
vil que, embora limitada, garantiria a liberdade (Rousseau), a paz (Hobbes) e a pro
priedade (Locke).
No que tange à doutrina patrimonialista, defendem-na, entre outros, John
Locke e Adam Smith. Para Locke, o Estado existe principalmente para proteger a
propriedade individual, havendo uma corrente do patrimonialismo que justifica
sua teoria pelo fato de o próprio Estado ter o direito natural de defender sua pro
priedade.
Por fim, a teoria da força, desenvolvida, mais remotamente, por Charles Darvvin
e, mais tarde, dentre outros, por razões radicalmente opostas, Gobineau, Marx e En-
gels,Thomas Carlyle, Gumplowicz, Franz Oppenheimer e Léon Duguit. Segundo tal
doutrina, haveria uma tendência natural, inevitável, da dominação dos fracos pe
los fortes, seja por razões genéticas, raciais (Gobineau) ou econômicas (Marx e En-
gels). Franz Oppenheimer, situa a origem do Estado na violência imposta por um
grupo social a outro, definindo-o como a “instituição social que um grupo vitorio
so impôs a um grupo vencido, com o objetivo de organizar o domínio do primei
ro sobre o segundo e resguardar-se contra rebeliões intestinas e agressões estran
geiras” (Der Staat, Stuttgart, 1954, p. 5, apud Paulo Bonavides, Ciência política,
cit., p. 53). Léon Duguit, respeitável publicista do início do século XX , mostra o
mesmo pessimismo de Oppenheimer ao conceituar o Estado como o “grupo huma
no estabelecido em determinado território, onde os mais fortes impõem sua vonta
de aos mais fracos” (Droit constitutionnel, 4. ed., Paris, p. 14-5). Em suas próprias
palavras,
16 Teoria Geral do Estado
o Estado não é uma pessoa jurídica nem soberana. () Estado é o produto histórico de
uma diferenciação social entre os fortes e os fracos cm determinada sociedade. O po
der pertencente aos mais fortes, indivíduo, classe, maioria, é mero poder de fato, ja
mais legítimo em sua origem. Os governantes que detêm este poder são indivíduos
como tantos outros, sem nunca possuir, na qualidade de governantes, o poder legíti
mo de impor suas ordens. Como todos os indivíduos, encontram-se submetidos à re
gra de direito, que encontra seu verdadeiro fundamento na solidariedade social e se
impõe a todos, governantes e governados. Toda manifestação de vontade dos gover
nantes é legítima quando está conforme o direito; neste caso, eles podem, de forma le
gítima, pôr em prática a força de que dispõem, porque esta é empregada na realização
do direito. Os governantes não têm o direito subjetivo de comandar, mas apenas o po
der objetivo de querer conforme o direito e de assegurar a realização deste. (“L’État,
les gouvernants et les agents”, in Études cie droit puhlic, 1903, p. 1-2)
O pai do socialismo científico, Karl Marx (1818-1883), e seu companheiro de
ideias e de lutas Friedrich Engels (1820-1895), conceituam o Estado como um fe
nômeno histórico transitório, mero resultado do aparecimento da luta de classes
sociais, a partir do momento em que, da propriedade comunista, passou-se à apro
priação privada dos meios de produção, em detrimento da maioria explorada. Tra
ta-se de instituição passageira, pois nem sempre existiu e nem sempre existirá. Com
o Estado desaparecerá o poder político, definido por Marx como “o poder organi
zado de uma classe para oprimir outra” (Manifesto do Partido Conmnista, 1981).
Curioso sc mostra, neste cipoal doutrinário, o diálogo em que Platão coloca
na boca de Trasímaco o seguinte:
- Ouça, disse então [Trasímaco]: Para mim o justo não c outra coisa que o con
veniente para o mais forte. Entretanto, por que você não aprova esta resposta, que aca
bo de dar? Não vai querer responder, simplesmente? - Não duvide que vou dá-la, res
pondi, depois que entender o que você quis dizer. No momento, confesso, não sei. Você
diz que o justo c o que interessa ao mais forte? Pois bem, o que você quer dizer com
isso, Trasímaco? Não vai querer dizer, por exemplo, que sc Polidamante, o campeão
da luta, e mais forte que nós c lhe convem comer carne bovina para sustentar sua for
ça física, tal alimento será conveniente e, também, justo para nós, mais fracos que ele?
- Você fala com despudor Sócrates, disse Trasímaco, ao tomar minhas palavras de for
ma tendenciosa, prejudicial. - Nada disso, querido amigo!, eu disse, só desejo que você
explique mais claramente o que significam suas palavras. - Não sabe, porventura -
respondeu - que algumas cidades são governadas tiranicamente, outras de forma de
mocrática e, ainda, outras por uma aristocracia? - Claro que sei! - Pois bem, em cada
cidade não exerce o poder quem possui a força? - Sem dúvida! - Portanto, cada go
verno estabelece as leis conforme o que lhe convier: as democráticas, de forma demo
crática; as tirânicas, de forma tirânica e, assim, todas as outras. Uma vez estabelecidas,
3 0 Estado 17
estas leis declaram que será justo para os governados apenas o que os governantes qui
serem, e aqueles que se afastarem deste ditame serão punidos como infratores das leis.
O que eu quero dizer, meu bom amigo, é que em todas as cidades será justo tudo o que
os governantes, que são aqueles que mandam, assim entenderem, de modo que, para
quem quiser discutir este assunto com seriedade, o justo c sempre o mesmo, ou seja, o
que convem ao mais forte.
2) 0 ESTADO DE DIREITO
Ubi societas ibi jus (onde houver sociedade haverá direito), disse Aristóteles
há 2.500 anos. Tal afirmação ainda é plenamente verdadeira. Vivendo em socieda
de, o homem pode ficar privado do conforto material c das utilidades que a tecno
logia oferece, como energia elétrica, automóvel e mesmo educação escolar ou em
prego fixo. Com alguma dificuldade ele viverá. Sem um mínimo de ordem, porém,
ou aquilo que Jeremias Bentham denominava mínimo ético de convivência, a vida
não seria possível nem por um instante. A insegurança, a incerteza e os abusos des
truiriam a sociedade quase na rapidez de um terremoto. Por isso, dentre os atribu
tos essenciais do Estado, refulgem o poder amparado na força, e o Direito que mo
dela o exercício desta. Rudolph von Ihering, em sua obra clássica A luta pelo
Direito, afirmava, com inteira razão, que o Direito desprovido de força “é fogo que
não queima, luz que não ilumina”. Ora, se o Direito é uma qualidade essencial de
qualquer sociedade, a fortiori do Estado, a expressão Estado de Direito seria tau-
tológica.
Antes de mais nada, para revelarmos o sentido da expressão Estado de Direi
to, é imprescindível formularmos outra indagação: o que se deve entender por Di
reito? Sabemos que esse vocábulo não é unívoco, mas plurívoco-analógico, ou seja,
apresenta uma pluralidade de sentidos conexos. Observam José Pedro Galvão de
Souza, Clóvis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de Carvalho, em obra primorosa:
As concepções que tem idealizado o Estado dc Direito prescindindo do direito
natural c encerrando-se nas perspectivas estreitas do positivismo jurídico, reduzem o
direito à lei, não distinguem o que c legal do que c legítimo e não vão alem dc um Es
tado dc legalidade, que nem sempre c um Estado dc justiça. Daí a razão pela qual, para
conceituar e justificar o Estado de Direito, importa, antes de mais nada, saber o que é
o direito. Cumpre partir do seu significado originário: o iu$ (de iustum), o que é por
justiça devido a outrem. É preciso entender que a lei não cria o direito, mas o reconhe
ce e estabelece as condições de exercício dos direitos subjetivos. É necessário compreen
der que o direito subjetivo é uma faculdade ou um poder moral essencialmente vincu
lado ao justo objetivo, e depende deste. É indispensável ter presente que no Estado não
reside a fonte única das normas de direito, pois há na sociedade política, em correla
ção com os grupos ou corpos intermediários que a constituem, uma pluralidade de or
18 Teoria Geral do Estado
denamentos jurídicos. Ora, o justo objetivo é inerente à ordem natural, por isso a lei
só é justa sc conforme a essa mesma ordem. F. os direitos subjetivos fundam-se na pró
pria natureza humana, na dignidade pessoal do homem, na liberdade do ser racional,
no seu destino transcendente e eterno. Consequentemente só poderá haver Estado de
Direito desde que haja respeito ao direito natural, respeito à ordem superior, à vonta
de dos detentores do poder c dos que fazem a lei. Então, o Estado de Direito, na ple
nitude do seu significado, será um Estado de Justiça. (Dicionário de política, 1998, p.
208-9)
A concepção tradicional do Estado de Direito provém de Emmanuel Kant
(1724-1804) e de Jcan-Jacqucs Rousseau (1712-1778), como se depreende de sua
concepção individualista, racionalista c voluntarista do Direito, que cairia como
uma luva nos interesses de uma nascente burguesia. Daí a expressão Estado de Di
reito Liberal Burguês para denominar a concepção de Estado intransigentemente
vinculado às garantias individuais, proteção absoluta da propriedade privada, im
plantação do sufrágio censitário (só teria direito a voto quem tivesse um conside
rável patrimônio econômico), abolição da representação profissional e outras me
didas de caráter notoriamente individualista. Kant separava o Direito da Moral,
sendo aquele apenas um conjunto de condições destinadas, simplesmente, a garan
tir a coexistência das liberdades. O Estado subordinado ao Direito, prossegue Kant,
assim procede para reger os atos externos do homem, independentemente da lei
moral, pois esta, segundo o kantismo, disciplina exclusivamente os atos internos,
de foro íntimo.
Das teses de Kant exsurgem duas doutrinas bem conhecidas pelos publicistas
a de Georg Jcllinck c a de Hans Kelscn. Jellinek considerava a possibilidade da au-
tolimitação do poder do Estado pelo próprio direito positivo, o que acarreta notó
ria aporia: se o Estado se limita pelo Direito que ele mesmo cria, e que pode alte
rar via poder constituinte, então é o Direito que depende do Estado, não o inverso...
Quanto a Hans Kelsen, acredita - e fez escola - na identidade da ordem jurídica e
da estatal, ideia que desenvolve à luz do formalismo positivista da sua famosa Teo
ria Pura do Direito. Os chamados elementos formadores do Estado, povo, territó
rio, poder, pertencem ao mundo exterior e passam a ter sentido apenas quando re
lacionados ao Direito. Quanto a este, na visão kelseniana, seria, simplesmente, o
conjunto das normas emenadas do Estado, disso resultando que o Estado cria seu
próprio Direito e impõe à sociedade a ordem jurídica a que esta deve amoldar-se.
Logo, todo Estado é Estado de Direito. Nesse caso, haveria um Estado de Direito
liberal, um Estado de Direito social-democrático, um Estado de Direito marxista-
leninista e, até mesmo, um Estado de direito nacional-socialista.
Mais moderada é a ponderação de Gustav Radbruch, que, tentando superar
a visão estreita do neopositivismo kelseniano, disserta:
3 0 Estado 19
somos sempre necessariamente compelidos, se quisermos achar uma solução para o
problema da anterioridade ou posteridade do Direito com relação ao Estado, a colo-
carmo-nos mais para além dum e doutro, isto é, mais para além do direito positivo e
mais para além da realidade do Estado. Isto é: seremos levados a buscar essa solução
num outro plano que não poderá deixar dc ser constituído, não por fatos e realidades,
mas por normas, que não poderão ser as normas do direito positivo do Estado c só
poderão ser as dum direito natural. Na verdade, o positivismo jurídico c político pres
supõe sempre, quando levado logicamente às suas últimas conseqüências, como já foi
mostrado (§ 10), um preceito jurídico de direito natural na base de todas as suas cons
truções. Eis esse preceito: quando numa coletividade existe um supremo governante,
o que ele ordenar deve ser obedecido. (Filosofia do direito, 1997, p. 354-5)
Na verdade, embora haja valores universais e perenes, que a própria razão assi
mila e que, por isso mesmo, toda a Humanidade reconhece e institui juridicamente,
v. g.f o direito à vida, à expressão do pensamento ou de constituir família, não é me
nos verdade que o direito positivo dos povos acha-se impregnado de notória relati
vidade. Conforme as peculiaridades de cada povo, será instituída sua ordem jurídi
ca. No Brasil, v. g., a Constituição entroniza um Estado Democrático de Direito (art.
I o, caput), cujas premissas serão encontradas em vários dispositivos, como o art. 4o,
cujos incisos II e VIII preconizam, respectivamente, a prevalência dos direitos huma
nos e o repúdio ao terrorismo e ao racismo, ou a soberania popular (arts. Io, parágra
fo único, e 14). Uma ordem jurídica, já se vê, representa a cosmovisão do legislador
constituinte num Estado em particular e em dado momento histórico, não podendo
haver suas ordens jurídicas idênticas sem prejuízo da identidade dos povos.
Assim, quando algumas Constituições adotam o sufrágio universal, como a
brasileira (art. 14, caput), tal fato não desqualifica aquelas que, na União norte-
americana, adotam o sufrágio cultural. Quando a maior parte das legislações oci
dentais veda a poligamia, considerando-a, como o faz nosso Código Penal, crime
contra a família (art. 235), tal fato não pode servir de argumento para considerar
o regime familiar do sultanato oriental, que permite ao homem ter várias esposas
(poliginia), desde que tenha condições financeiras para isso, um atentado ao Esta
do de Direito. Reitere-se, todavia, que, se valores humanos universais são violados
por um suposto Direito, surge, tenebroso, um espectro de bom Direito, ou, na fe
liz imagem de Gustav Radbruch:
Quando nem sequer se aspira a realizar a justiça, quando na formulação do di
reito positivo se deixa de lado conscientemente a igualdade, que constitui o núcleo da
justiça, então não estamos ante uma lei que estabelece um direito defeituoso, mas o
que ocorre é que estamos ante um caso de ausência do direito. (Le)>es que no son de
recbo y derecbo por encima de Ias leyes, 1971, p. 14)
20 Teoria Geral do Estado
De qualquer forma, e concluindo, podemos extrair alguns princípios da con
cepção dominante de Estado de Direito: a) princípio da supremacia da lei (nde of
law), com a limitação do poder pelo direito positivo; b) princípio da legalidade,
mediante o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar dc fazer alguma coisa se
não em virtude de lei; c) princípio da irretroatividade da lei, para resguardo dos di
reitos adquiridos; d) princípio da igualdade jurídica ou isonomia, pelo qual a lei
vale para todos e, portanto, a todos deve ser aplicada; e) princípio da independên
cia funcional dos magistrados, consolidado pelas garantias inerentes ao Judiciário
(vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos). A tais princípios
acrescentem-se as garantias constitucionais de direitos, v. g., babeas corpus e man
dado de segurança, e a responsabilidade dos agentes públicos quanto a prejuízos
causados aos particulares.
3) DIREITO E ESTADO
Bibliografia: a m a l i ó n , Enrique R., o l a n o , Fernando Garcia e v i l a n o v a , José. Intro-
ducción al derecho, Buenos Aires, Coop. de Derecho y Ciências Sociales, 1972. k e l -
s e n , Hans. Teoria pura do direito, São Paulo, Acadêmica, 1939; Teoria general dei de-
recho y dei Estado, México, Unam, 1979. r o m a n o , Santi. Uordinamento giuridico,
Firenze, Sansoni, 1967.
Quanto às relações entre o Direito e o Estado, surgem duas teorias principais:
a) teoria dualística, pela qual o Estado e o Direito são duas realidades distin
tasy não relacionadas, como dois mundos separados que se ignoram mutuamente;
b) teoria monista, que reduz o Estado e o Direito a uma só entidade, sendo
ambos unum et idem. Esta teoria se biparte em outras duas, conforme seja o Direi
to considerado criador do Estado, como um prius deste, ou como criação do Esta
do, como um posterius deste.
Um grande jurista italiano, Santi Romano, afirmou a existência de uma plu
ralidade de ordens jurídicas, de um pluralismo jurídico. O Direito, diz Santi Roma
no, deve ser considerado não como um produto exclusivamente estatal, mas como
um fenômeno verificável em todas as organizações sociais, as quais, como o pró
prio Estado, são verdadeiros centros de produção de normas, mesmo porque ubi
societas ibi jus (onde houver sociedade haverá direito). Para Santi Romano, por
tanto, onde houver qualquer sociedade haverá, sempre, direito. Qualquer institui
ção, diz ele, qualquer organização estável e individuada tem o seu ordenamento ju
rídico próprio e, portanto, assim como ao lado do Estado existe uma pluralidade
de outras instituições mais amplas ou mais restritas, assim também ao lado do Di
reito Positivo ou estatal se encontram o Direito Canônico ou Eclesiástico, os esta
3 0 Estado 21
tutos da Máfia ou de qualquer outro bando organizado fora da lei. Então, prosse
gue Santi Romano, não só o Estado, mas qualquer grupo social, é fonte do Direito,
e se o Direito estatal é Direito, nem por isso o Direito deve ser sempre e necessaria
mente estatal. Poder-se-ia acrescentar à tese de Santi Romano que o Estado somen
te aparece depois de um lento processo evolutivo, ao passo que formas primitivas
do Direito já regulavam a sociedade primitiva. O Estado surgiria tão somente para
servir e manter o Direito, portanto é o Direito que atribui e limita ao Estado seu
poder de império. Depreende-se, da teoria de Santi Romano, que podem coexistir
várias ordens jurídicas: uma estatal, uma infraestatal (sociedades civis e comerciais),
uma supraestatal (ONU, OEA) e uma paraestatal (indiferente ou contrária ao Es
tado).
Contra a doutrina de Romano se posiciona a teoria monística, esposada, en
tre outros, por Hans Kelsen e Alessandro Groppali.
Hans Kelsen, um dos grandes juristas do século XX , autor da obra clássica
intitulada Teoria pura do direito, afirma, desde logo, que Direito e Estado se confun
dem. O estudo do Direito e do Estado deve ser depurado, purificado - daí o título
de sua obra - de toda contaminação emocional, ideológica, metafísica, sociológica
ou política. Ora, um conhecimento ideologicamente livre, portanto desembaraça
do dc toda metafísica, não pode reconhecer a essência do Estado a não ser como
uma ordem coercitiva de normas. Ora, se o Estado é um sistema normativo, não
pode ser outra coisa que a própria ordem jurídica positiva (imposta), já que é im
possível admitir a validade simultânea de várias ordens normativas igualmente coer
citivas. O Estado vem a ser, com efeito, a personalização da ordem jurídica.
Poderíamos complementar tal pensamento deduzindo o seguinte:
a) o Direito da sociedade arcaica, diluído no costume, se achava tão distante
das formas claras, distintas e acabadas do Direito atual, como sua organização es
tava longe do Estado moderno.
b) o Direito é elaborado seguindo um roteiro traçado pelo Estado ou, pelo me
nos, reconhecido por este (processo dc elaboração das leis e processo judicial). En
tão, fora do Estado não pode haver Direito.
c)a coercibilidade do Direito depende da atuação do Estado e, portanto, a
atuação do Direito depende do Estado.
d) a formação originária do Direito nos tratados confederativos e na revolu
ção triunfante tem por base os Estados contratantes ou o Estado em que se impôs
um novo regime político. l ogo, tais fenômenos jurídicos supõem a existência do
Estado.
Também para Alessandro Groppali, fora do Estado não pode haver Direito.
As normas que qualquer outra sociedade expedir para sua própria organização e
funcionamento são normas de caráter meramente social, e somente se tornam jurí
dicas quando reconhecidas pelo Estado ou admitidas na ordem jurídica estatal. Os
grupos sociais menores que existem no Estado, diz Groppali, podem ser regulados
22 Teoria Geral do Estado
por um sistema próprio de normas, mas estas somente serão consideradas como or
dens jurídicas válidas apenas 110 âmbito interno, pois, consideradas do lado de fora,
isto é, do ponto de vista da ordem estatal, ficam imediatamente privadas de autono
mia, pois sc forem contrárias à ordem jurídica estatal serão eliminadas. Mesmo uma
quadrilha bem organizada, denominada societas sceleris, pode apresentar uma hie
rarquia com especificação de “direitos” c “deveres”, c suas normas podem, ate, ser
análogas às normas do Estado, mas nunca serão idênticas, pois não são verdadei
ras, autênticas normas jurídicas; são o contrário disso. Seus membros agem em aber
to contraste com a ordem jurídica que tutela um determinado conjunto de valores
sociais. Aliás, prossegue Groppali, somente rendo como referência o Direito estatal
é que podemos qualificar como ajurídicas, antijurídicas ou jurídicas as várias ordens
normativas existentes. Em face de uma longa evolução histórica, ao cabo da qual
seu poder tornou-se soberano (do latim superanus, supremitas, supremacia), o Es
tado se impôs como entidade dotada de um poder incontrastável 110 âmbito inter
no, assegurando para si, com hegemonia, o monopólio da criação das normas jurí
dicas. Tendo Santi Romano afirmado a juridicidadc das normas do Direito
Canônico e do Direito Internacional, Groppali opôs as seguintes observações: quan
to ao Direito Canônico, de fato, é um autêntico Direito, que encontra sua fonte 110
poder originário c independente da Igreja, poder que, embora de caráter espiritual,
tem sobre os seguidores da religião católica uma notável eficácia. Entretanto, os fins
do Direito Canônico são diversos dos fins do Estado, além do que, complementan
do o pensamento de Groppali, lembraríamos o caráter de generalidade do Direito
Estatal, seu alcance muito maior se comparado com os cânones eclesiásticos.
Quanto ao Direito Internacional, Groppali afirma ser uma ordem normativa
ainda em formação, sendo seus dispositivos desprovidos da eficácia que caracteri
za as normas estatais. O Direito Internacional não possui outras fontes além dos
tratados e do costume. Suas normas não são dotadas de poder coercitivo que ca
racteriza a ordem estatal. Enquanto os ramos do Direito Positivo já apresentam um
certo grau de estabilidade, o Direito Internacional nem codificado se acha, impos
sibilitado, portanto, de atuar coercitivamente. O Estado totalitário, nas pegadas de
Kelsen, considerou Direito apenas as normas estatais, sendo confrontados pela dou
trina corporativista cristã, que afirma a necessidade de o Estado atuar apenas su-
pletivamente perante os indivíduos e as sociedades menores, uma vez que o Esta
do não seria a única fonte de normas jurídicas. Na verdade, Estado e Direito são
irmãos xifópagos, predestinados a viver unidos, sem poder separar-se. Se, na ver
dade, a ideia de um Direito difuso, espalhado pela comunidade primitiva, represen
tado pelo totem ou mana, entidade espiritual que governaria os destinos da comu
nidade, pode ser uma hipótese encantadora para explicar a precedência do Direito
sobre o Estado, na verdade, quando surge este, passa tal entidade a ser a fonte su
prema do Direito, superior em poder e eficácia a todas as outras, embora a existên
cia destas não possa ser negada.
3 0 Estado 23
4) CAUSAS CONSTITUTIVAS DO ESTADO
Bibliografia: a b b a g n a n o , Nicola. Dicionário de filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1982.
ARISTÓTELES. Obras, Madri, Aguilar, 1982; Tratado dei alma. b a c o n , Francis. “Afo
rismos sobre a interpretação da natureza e o reino do homem”, in Os pensadores, São
Paulo, Abril Cultural, 1973, v. 13. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de ciência política,
Teoria Geral do Estado, São Paulo, Tribuna da Justiça/Hemeron, 1977, v. 1.
O conhecimento científico, verdadeiro, só é possível mediante a apuração das
causas dos fatos naturais e humanos. Aristóteles, pioneiro na demonstração da ver
dade pelas causas, já delimitara, em sua Metafísica, o termo princípio como causa
em sentido amplo, abrangendo as causas formal, eficiente e final, às quais o médi
co Galeno acrescentou a causa instrumental. Conhecer verdadeiramente, disse Fran
cis Bacon séculos mais tarde, é conhecer pelas causas. Forte em Aristóteles asseve
ra: “Afirma-se corretamente que o verdadeiro saber é o saber pelas causas. E, não
indevidamente, estabelecem-se quatro coisas: a matéria, a forma, a causa eficiente,
a causa final”. Nesta esteira de pensamento, Pedro Salvetti Netto adverte: “Não se
conhece, cientificamente, pela verdade revelada nos livros sagrados, como se fizera
durante a Idade Média, mas sim pela explicação causai do objeto do conhecimen
to. Todas as coisas se explicam, considerando-lhes as causas”. Acrescentaríamos ao
exposto o conceito dc causalidade, a saber, a conexão entre duas coisas, em virtu
de da qual a segunda é univocamente previsível a partir da primeira, como assina
la Nicola Abbagnano.
Do exposto, podemos indicar quatro causas suscetíveis de revelar a natureza
das coisas e dos seres: eficiente, material, instrumental, formal e final. A causa efi
ciente (do latim facere, fazer, criar) revela o criador, o autor de algo, de modo que,
num exemplo rudimentar, podemos dizer que a causa eficiente da mesa que tenho
diante de mim é o marceneiro que a fez. Causa ou causas materiais vêm a ser a ma
téria, o material com que este confeccionou a mesa (madeira, cola, pregos). Causa
ou causas instrumentais, por sua vez, seriam os instrumentos utilizados no traba
lho (martelo, serrote, formão). Causa formal seria a própria forma, aparência da
mesa, permitindo-nos distingui-la de uma cadeira ou de outras mesas, embora to
das resultantes da mesma causa eficiente, material e instrumental, faculdade ine
rente mesmo aos deficientes visuais. Finalmente, a causa final, que nos revela o por
quê da mesa, ou seja, sua finalidade. Para um selvagem, a mesa pode significar
simplesmente um abrigo contra a chuva; para um homem civilizado, é um objeto
para colocar alimentos e tomar refeições, redigir ou ler.
Pois bem, se transportarmos essas ponderações para a sociedade em geral, per
cebemos que essa nos revela, com clareza, sua causa eficiente (fundadores), causas
24 Teoria Geral do Estado
materiais (seres humanos e base física), formais (órgãos diretivos e normas regula
doras) e a final (pode ser de várias naturezas, conforme a espécie de sociedade). Em
certas situações, seria polêmico, quando não embaraçoso, demonstrar a causa efi
ciente da primeira sociedade, na verdade do próprio ser humano: Deus? Obra do
acaso? Qual teria sido a primeira causa material? O barro, com que o Criador fez
o homem e, de uma costela deste, a mulher? Questão de fé!
Quanto ao Estado, se quisermos estudá-lo cientificamente, devemos fazê-lo
mediante o estudo de suas causas constitutivas. Tal estudo se mostra indispensável,
pois nos permite desconstruí-lo, estudando, pormenorizadamente, cada um de seus
elementos.
As causas constitutivas do Estado são materiais, formais e final. São causas
materiais do Estado o povo, ou o elemento humano, e o território, ou base física,
área material ou ideal em que o Estado faz valer seu Direito positivo. Quanto às
causas formais, vale dizer, aquelas que identificam o Estado quanto à sua forma ju
rídica ou constituição política, graças à qual um Estado não se confunde com ou
tros - daí, a importância dc conhecer o Estado por sua constituição! - são a ordem
jurídica e o poder político, exercido pelos governantes (do grego kubernetes, pilo
to dc embarcação) que o encarnam em dado momento histórico. Quanto à causa
final do Estado, vale lembrar que cada sociedade tem, conforme sua natureza, uma
causa final específica. Assim, uma sociedade beneficente tem por causa final a prá
tica da benemerência; outra, esportiva, tem por finalidade o aperfeiçoamento físi
co e o lazer de seus filiados, enquanto uma sociedade empresarial tem por objeti
vo o lucro, mediante a prática habitual de atos mercantis.
Quanto ao Estado, tem por causa final o bem comum de todas as sociedades
menores que atuam em seu território. O adjetivo comum atribuído ao bem visado
pela sociedade política é bastante sugestivo: o Estado existe, por evidente, para rea
lizar o bem-estar geral de todos, no tocante, por exemplo, à educação, à saúde e à
segurança.
Analisemos cada uma destas causas.
4.1) Causas materiais
4.1.1) Povo
Bibliografia: a z a m b u j a , Darcy. Teoria geral do Estado, 4. cd., Porto Alegre, Globo,
1966. b o n a v i d e s , Paulo. Ciência política, Rio dc Janeiro, Forense, 1978. f a l c ã o , Al-
eino Pinto. Parte CeraI do Código Civil, Rio de Janeiro, Konfino, 1959. m a l u f , Sahid.
Teoria geral do Estado, 13. ed., São Paulo, Sugestões Literárias, 1982. o l i v e i r a , Denni-
son. Os soldados brasileiros de Hitler, Curitiba, Juruá, 2008. s a l v e t t i n e t t o , Pedro.
3 0 Estado 25
Curso de teoria do Estado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981. s il v a , José Afonso da. Cur
so de direito constitucional positivo, 2. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1984.
População é a totalidade das pessoas que se acham, num dado momento, em
determinado Estado. Tal conceito inclui toda e qualquer pessoa, independentemen
te de nacionalidade, idade, situação política etc. Por isso, quando dizemos que o
Brasil tem uma população de quase duzentos milhões de habitantes, estamos em
pregando corretamente o vocábulo. População é conceito eminentemente numéri
co, quantitativo, demográfico e, portanto, não interessa, de imediato, ao Direito.
Povo, todavia, é termo que pode revelar um conceito jurídico ou um conceito po
lítico. São conceitos análogos, porém inconfundíveis. Com efeito, a palavra povo
sugere pluralidade de sentidos análogos, sendo, portanto, plurívoco-analógica. Em
sentido vulgar, ela pode designar as pessoas residentes de um bairro qualquer ou
uma comunidade unida pela religião, pelo idioma ou pela etnia. Pode, até, ser em
pregada pejorativamente, ao designar a parte menos instruída da sociedade, ou
aquela colocada em posição hierarquicamente inferior das categorias sociais. Por
exemplo, na França pré-revolucionária, havia três estamentos, pela ordem, clero,
nobreza e povo, o célebre Terceiro Estado.
A democracia grega, quando se referia à assembleia do povo, indicava uma
minoria seleta que, pelos dotes intelectuais e pela origem, podia deliberar politica
mente durante todo o dia. Tal atividade era denominada ócio, bastante respeitada
então e longe de sofrer o sentido pejorativo de hoje. Aqueles que não tinham o di
reito de deliberar, que não podiam nem mesmo residir na cidade, eram os nec ócio,
isto é, os negociantes, escravos e estrangeiros.
Montesquieu afirmava que o povo não podia ser confundido com a ralé, o
populacho, devendo ser proibido o direito de voto àqueles que se encontrassem
num estado demasiadamente profundo de baixeza. Dizia este notável pensador que,
mesmo no governo do povo, o poder não poderia cair nas mãos do baixo povo.
Madame de Lambert, discípula de Montesquieu chegou a definir o povo: “Chamo
povo todos aqueles que pensam de maneira baixa e vulgar”.
Não foi à toa, portanto, que a palavra povo já foi tida como o grande troca
dilho da História.
Classificada a palavra povo como plurívoco-analógica, sua análise torna-se
mais fácil, cm que pese a diversidade de sentidos que ela apresenta. Ao Direito, em
especial o direito constitucional, interessam os sentidos jurídico e político. Povo, no
sentido jurídico, é o conjunto de indivíduos qualificados pela nacionalidade. Nele
não sc incluem, já sc vê, estrangeiros e apátridas. Todavia, o sentido político é ain
da mais restrito, pois exclui não só estrangeiros c apátridas, como também os me
nores de 16 anos (CF, art. 14, §§ I o, II, c, e 2o), estando o povo político, tido como
o conjunto dos cidadãos do Estado, vinculado à ideia de cidadania. Como se vê, não
26 Teoria Geral do Estado
basta ser nacional para se obter a cidadania; a nacionalidade é pressuposto, condi
ção necessária, mas não suficiente para alcançar o status de cidadão. A idade do na
cional se mostra o grande empecilho à obtenção da cidadania, como se observa no
art. 14, §§ I o, 1, e 3o, VI, a a d, da Constituição Federal. Todavia, há outras restri
ções, como aquelas impostas aos militares no art. 14, § 8°, e a cassação de direitos
políticos, nas hipóteses do art. 15. A nacionalidade, então, e vínculo meramente ju
rídico, pertinente a direitos civis, em razão do local de nascimento ou da ascendên
cia paterna (nacionalidade originária), ou, ainda, de manifestação de vontade do
próprio interessado (nacionalidade secundária, obtida mediante naturalização). Na
cional, portanto, é o brasileiro nato ou naturalizado, que integra o conceito jurídi
co do povo, ao passo que cidadão é o nacional no gozo dos direitos políticos. Há
dois critérios para a determinação da nacionalidade: o jus soli e o jus sanguinis. O
jus soli leva em conta o local de nascimento do indivíduo, o solo, enfim. Trata-se de
um critério normalmente adotado por Estados de forte contingente imigratório, isto
é, que recebem imigrantes, estimulando-os a se radicarem, para compensar a rare-
fação demográfica. Por outro lado, o jus sanguinis é um critério dcterminativo da
nacionalidade que considera a ascendência, o sangue paterno do indivíduo, para
conferir-lhe a nacionalidade. Trata-se de critério típico de Estados de forte emigra
ção, com o que se busca preservar a nacionalidade mediante a consangüinidade.
O fundamento do jus sanguinis pode resvalar, perigosamente, o racismo, como
ocorreu na Alemanha nacional-socialista, por acaso com cidadãos brasileiros. O pro
fessor de História Dennison de Oliveira, em original e elucidativa monografia, tomou
o depoimento dc um brasileiro descendente de alemães que, achando-se na Alemanha
em 1943, foi convocado para o serviço militar em plena Segunda Guerra Mundial,
pior, quando a derrota do país já se avizinhava. Assim o autor descreve o episódio:
Tendo atingido a idade para alistamento, ele compareceu diante da junta do ser
viço militar local. Sua primeira inspiração foi alegar a condição de brasileiro (brasilia-
ner), nascido em São Paulo, como demonstravam seus documentos de identidade. Em
resposta teria ouvido a seguinte pergunta do encarregado do alistamento: “Mas se você
tivesse nascido na África isso faria de você um negro?”. Desconcertado, respondeu que
não, ouvindo em seguida a decisão de que ele teria de se alistar, uma vez que era des
cendente de alemães. De fato, nos termos da jurisprudência alemã relativa à naciona
lidade prevalece o princípio do jus sanguinis, isto é, aquela que deriva da nacionalida
de dos pais, independentemente do local de nascimento (jus solis) que é típica da
cultura brasileira, por exemplo.
De nada adiantou a alegação do pobre recruta de que lhe seria penoso lutar
até a morte contra outros brasileiros; na iminência de uma condenação à morte por
desobediência, acabou sendo salvo por um oficial médico nascido de pais alemães,
imaginem, na Namíbia. O facultativo, sensibilizado pela situação do nosso brasi-
3 0 Estado 27
lianer, conseguiu para este uma internação hospitalar por suposta moléstia conta
giosa, que acabou livrando-o do processo...
Um caso banal como este esclarece, mais que muitos livros sobre a matéria,
como o nacional-socialismo encarava o ser humano; para ser um bom alemão, o
importante era o sangue, não importava o local de nascimento, tanto que o pró
prio Hitler não era natural da Alemanha, e sim austríaco. Daí, a política dc anexa
ção, à Grande Alemanha, de territórios em que habitariam os chamados alemães
raciais, residentes fora do Terceiro Reich, levando à prática o lema nacional-socia-
lista: “Povos do mesmo sangue devem pertencer ao mesmo Estado
A Constituição do Brasil adota um critério intermediário, pois faz concessões
ao jus soli (art. 12,1, a), e ao jus sanguinis (art. 12,1, b e c). Pode ocorrer que o indi
víduo não tenha nacionalidade, sendo, então, apátrida (sem pátria), submetido, em
tal caso, à Convenção sobre o Estatuto dos Apátridos, adotada em 28.09.1954, pela
Conferência de Plenipotenciários convocada pelo Conselho Econômico e Social das
Nações Unidas, em sua Resolução n. 526-A (XVII), de 26.04.1954, tendo entrado
em vigor no dia 06.06.1960. Se tiver mais dc uma nacionalidade, o indivíduo será
polipátrida. Os critérios atributivos da nacionalidade decorrem da própria sobera
nia do Estado, não da vontade dos interessados, de maneira que o apátrida estará
nesta condição independentemente dc sua vontade, valendo o mesmo para o polipá
trida. Quanto à naturalização (CF, art. 12, II), é forma de aquisição secundária ou
derivada da nacionalidade. Pode ser expressa ou tácita. A naturalização expressa é
aquela que resulta de pedido do interessado (CF, art. 12, II, a e b); a tácita, aquela
que se confere ao indivíduo por iniciativa do próprio Estado (CF, art. 12, § 1°).
No que se refere ao povo político, reitere-se que tal conceito liga-se, de imedia
to, ao de cidadania. Com efeito, sendo proveniente do latim civitas (de eives, cida
dão), o termo cidadania denomina o vínculo político que liga o indivíduo ao Estado,
fruindo o cidadão de direitos e deveres de natureza política, com evidente exclusão
dos estrangeiros. O termo povo contido no art. Io, parágrafo único, da Constituição
Federal confunde-se com o conceito de cidadania, pois congrega exclusivamente os
nacionais dotados de direitos políticos, nas diferentes gradações apontadas pela Cons
tituição (art. 14, §§ I o a 9o). Portanto, nunca será demasiado repetir que, ao decla
rar, no art. 1°, parágrafo único, que “todo o poder emana do povo”, a Constituição
Federal refere-se ao conceito político do povo, excluindo estrangeiros, apátridas, me
nores de idade, e, nos termos do art. 14, § 2o, os conscritos durante o período do ser
viço militar (do latim conscriptu, recrutado, alistado, recruta).
4.1.2) Nação
Bibliografia: a z a m b u j a , Darcy. Teoria geral do Estado, 4. ed., Porto Alegre, Globo,
1968. b o n a v i d e s , Paulo. Ciência política, Rio de Janeiro, Forense, 1986. d e l o s , J . T .
28 Teoria Geral do Estado
La nación, Buenos Aires, Desclée Brouwer, s.d. r e n a n , Ernesto. Que es tina nación
Madrid, Centro de Estúdios Constitucionales, 1983. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de
teoria do Estado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981. s i l v a , José Afonso da. Curso de di
reito constitucional positivo, 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1989.
Para muitos autores, a nação não pode ser satisfatoriamente definida, porque,
como afirma Sestan, ela ostenta “caráter fugaz, plurissignificante e até equívoco”.
Certo, porém, é que a nação não se confunde com o Estado, pois este envolve um
conceito eminentemente jurídico, ao passo que aquela tem caráter tipicamente so
ciológico. Com efeito, o Estado pode surgir até dc modo abrupto, mantendo-se gra
ças à coação exercida sobre cidadãos ou súditos, mas a nação somente se forma
mediante demorada gestação. Dizia Ernesto Renan (1823-1892):
Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Uma encontra-se no passado;
a outra, no presente. Uma é a posse comum de um rico legado de tradição; a outra, o
consenso atual, o desejo de viver junto, a vontade de prosseguir fazendo valer a heran
ça por todos recebida. O homem não sc improvisa. A nação - como o indivíduo - c
conseqüência dc longo passado dc esforços, dc sacrifícios c dc desenvolvimento. O cul
to dos antepassados, dentre todos, c o mais legítimo. Nossos ancestrais nos moldaram
o que hoje somos. Um passado heroico, de grandes homens, de glória, eis o capital so
cial em que se assenta a ideia nacional. Possuir glórias comuns no passado e vontade
comum no presente; ter realizado grandes obras em conjunto e querer realizá-las ain
da, eis a condição para se ser um povo!
E prossegue:
Ama-se a casa que se construiu e se transmite. O canto espartano: Somos o que fos-
tes, seremos o que sois é, na sua simplicidade, o hino abreviado dc toda pátria. O homem
não c cscravo nem dc sua raça, nem dc sua língua, nem dc sua religião, nem do curso dos
rios, nem da direção das cadeias dc montanhas. Uma grande agregação dc homens, sã dc
espírito e cálida dc coração, cria uma consciência moral que sc chama nação!
A nação é, pois, uma realidade eminentemente sociológica, que se forma com
o passar do tempo, até que se sedimente aquele espírito nacional oriundo das tra
dições e costumes comuns. Por isso, Hans Kelsen distingue, com sutileza, entre povo
c nação: “a noção de povo não sc refere às qualidades físicas ou psíquicas dos ho
mens. O povo, como objeto dc estudo da Teoria Geral do Estado, é entidade pura
mente normativa”. Que será, entretanto, uma nação?
Seria a raça o único ingrediente a compor a receita da nação? Vacher da Lapou-
ge, Gobineau e Houston Stewart Chamberlain, assim como o principal ideólogo do
3 0 Estado 29
nacional-socialismo, Alfredo Rosenberg, achavam que sim. Haveria, nas raças hu
manas, uma hierarquia, representada por nações superiores a outras. O nacional-
socialismo, inspirando-se nestes autores, confundiu povo, nação e raça com uma
unidade biocspiritual de sangue e solo (blutt und boden), comandada por um úni
co líder, sem contestação (Der Führer hat immer recht). Na verdade, não há uma
só raça pura e, como adverte Renan, “assentar a política na análise etnográfica é
pretender assentá-la sobre uma quimera”.
Se a raça não é o elemento imprescindível da nação, seria este a religião?
Também não. Pode haver uma só religião em vários Estados, como há Esta
dos em que se professa mais de um credo religioso. A Alemanha é metade protes
tante e metade católica. Por outro lado, o catolicismo predomina em toda a Amé
rica Latina. Daí as palavras de Ernesto Renan: “Já não há religião de Estado; é
possível ser francês, inglês, alemão, sendo protestante ou católico ou israelita ou
mesmo ateu. A religião é individual, contempla a consciência de cada um”.
Se a religião não é o elemento imprescindível para formação da nação, seria
este o idioma?
Também não, se tomado isoladamente. Há Estados ou comunidades nacio
nais onde se falam vários idiomas. Na Suíça, fala-se italiano, francês c alemão. E
quem poderia recusar ao povo suíço sua condição de nacional?
Diz Renan: “Será que não é possível ter os mesmos sentimentos e pensamen
tos e amar as mesmas coisas em línguas diferentes?”.
Pedro Salvetti Netto afirma que dos elementos constitutivos da nação, preco
nizados por Mancini, apenas as tradições e os costumes devem ser levados em con
ta quanto à criação de um espírito nacional.
Seria das tradições comuns, dos fatos heroicos, que restam no passado, que
resultaria a identidade de sentimentos que leva uma comunidade a querer, espon
taneamente, permanecer existindo. É das tradições comuns que brota o espírito da
nacionalidade e o patriotismo.
Dizia Thomas Carlyle (1795-1881), eminente historiador e biógrafo, que a
“História Universal é no fundo a História dos grandes homens”, isto é, “uma su
cessão de biografias que representam o espírito de cada nação de que cada grande
homem faça parte”. O que é a Itália, se não César, Dante, Mazzini? O que é a Gré
cia, se não Péricles, Platão? O que é a Inglaterra, se não Shakespeare? Tal linha de
pensamento talvez seja a mesma de Hegel (1770-1831), para quem tais grandes ho
mens seriam o instrumento da evolução histórica, pois que a História é mais sábia
que qualquer razão individual.
Jean Bodin (1530-1596), autor da célebre obra Dos seis livros da República,
afirmou que “de muitos cidadãos se faz um Estado (república), quando governa
dos pela potência soberana de um ou diversos senhores, ainda que estejam diversi
ficados em leis, línguas, costumes, religiões e nações”. Portanto, para Bodin, o Es
tado precede à nação.
30 Teoria Geral do Estado
Para Friedrich von Hardenberg (1772-1801), conhecido como Novalis, o Es
tado deve confundir-se com a nação. Diz ele:
A nação é um organismo histórico vivo, que encerra em si o espírito e a vida,
elaborados no decurso das idades. Por isso, a nação é uma ideia. A nação deve ser con
cebida à maneira de um corpo místico ou de um organismo internamente animado
pela vida espiritual, formada pela cultura e pela religião. A sociedade nada mais e que
uma vida comum: uma pessoa indivisível que pensa e sente.
Segundo Novalis, a organização do Estado deve ser confundida com o espíri
to nacional. A mesma vida que anima a nação há de vitalizar o terreno político,
pois a política não é senão a forma de que se reveste a ação em sua vida pública.
Para Friedrich von Schlegel (1772-1829), ardente inimigo das concepções me-
canicistas e racionalistas do Estado, a sociedade c o Estado são organismos vivos,
formados pela História. Diz ele: “Para que se possa dizer que um Estado forma um
todo vivente e que c uma grande individualidade, é preciso que o Estado ou nação
continuem vivendo sua vida histórica e que desenvolva e mantenha a vitalidade em
seus órgãos”.
Novalis c Schlegel influenciaram o conceito naturalístico dc nação, levado às
últimas conseqüências durante o nazismo, sob o aspecto raça.
Portanto, para Novalis e Schlegel, a nação deve estar identificada ao Estado.
Também para o fascismo, que segue Bodin em tal pensamento, o Estado for
ja a nação. Benito Mussolini (1883-1945) não se preocupa em definir a nação; esta,
a seu ver, é antes de mais nada um mito. O que é um mito? O mito, diz o Duce, “é
uma fé, uma paixão, nem mesmo é necessário que seja real, como essência. Será
uma realidade 110 sentido de que é uma fé, uma esperança, um valor”. “Nosso mito
[prossegue] é a nação” (Escritos e discursos, t. 3, p. 187). “A nação [diz ele] é fun
damentalmente espiritual” (cit., t. 2, p. 370). E o espírito, na concepção fascista não
é algo pretérito, arquivado no museu da História. O espírito deve ser presente, ação
atual, criadora e conquistadora. Para Mussolini, o Estado pode forjar a consciên
cia coletiva, a solidariedade psicológica (expressão de Miguel Reale).
Apesar das restrições a um conceito universal de nação, não faltam definições
formuladas por autores de peso. Dentre estes, Pasquale Estanislao Mancini (1817-
1 888), um dos chefes do Partido Liberal italiano e autor de uma obra célebre, in
titulada Vida dos povos na humanidade, que definia a nação como “uma socieda
de natural de homens, na qual a unidade de território, de origem, de costumes, de
língua e a comunhão de vida criaram a consciência social” . O próprio Mancini
aponta os elementos formadores de uma nação: a) elementos naturais: nação, lín
gua, território; b) elementos históricos: costumes, tradições, religião e leis; c) ele
mento psicológico: consciência nacional. Contemporaneamente, André Hauriou
define a nação como “o grupo humano 110 qual os indivíduos se sentem mutuamen
3 0 Estado 31
te unidos por laços tanto materiais como espirituais, bem como conscientes daqui
lo que os distingue dos indivíduos integrantes de outros grupos nacionais”. Outro
autor moderno, Aldo Bozzi, define a nação como: “o sentimento derivado da co
munhão dc tradição, de história, dc língua, de religião, de literatura e dc arte, to
dos estes fatores agregativos e pré-jurídicos”. Note-se a expressão pré-jurídicos nes
ta definição, a atestar que a nação precede o Estado.
Quanto à nacionalidade, consiste no vínculo jurídico que liga o indivíduo ao
Estado, em razão do local de nascimento, da ascendência paterna ou da manifes
tação de vontade do interessado.
José Afonso da Silva diz que “nacional” é o brasileiro nato ou naturalizado,
ou seja, aquele que se vincula, por nascimento ou naturalização, ao território do
Brasil, cujo conjunto forma o povo; cidadão é o nacional no gozo dos direitos po
líticos”. Há dois princípios básicos para a aferição da nacionalidade: o jus soli, que
leva em conta o local de nascimento, o solo (CF, art. 12,1, a); e o jus sanguinis, que
considera a ascendência do indivíduo, não importando o local de nascimento (CF,
art. 12 ,1, b e c). A Constituição Federal, como se vê, adota um critério misto, fa
zendo concessões ora ao jus soli, ora ao jus sanguinis.
4.1.3) Território
Bibliografia: b o n a v id e s , Paulo. Ciência política, Rio de Janeiro, Forense, 1978. g r o p p a
l i , Alessandro. Doutrina do Estado, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1968. m e j í a , Hugo Pa-
lacios. Introducción a la teoria dei Estado, Bogotá, Tcmis, 1965. r o d r i g u e s , Dirccu
A. Victor. Dicionário de brocardos jurídicos, 9. ed., São Paulo, Sugestões Literárias,
1979.
A palavra território apresenta uma etimologia à primeira vista estranha; não
provém, conforme se poderia pensar, dc nada ligado à terra, espaço geográfico, mas
do verbo latino terreo, territo, isto é, intimido, causo medo, receio, mesmo porque
o Estado exerce o seu poder antevendo a possibilidade de, a qualquer momento,
utilizar a força (coerção) para ver suas determinações cumpridas pelos súditos. Di
ga-se o mesmo no âmbito externo, quando o Estado, para manter a soberania ín
tegra, procura, na força das armas, impor respeito às demais sociedades políticas.
Por isso, diziam os romanos: “Territorium est universitas agrorum intra fines
cuiusque civitatis quod ab eo dictum quidam aiunt, quod magistratus eius loci in
tra eos fines terrendi, id est, submovendi ius babet” (“Território é a universalidade
das terras dentro dos limites de cada Estado; alguns o chamam assim porque o ma
gistrado desse lugar tem o direito de, dentro destas terras, aterrorizar, isto é, de
afugentar”). Diziam, também: “Se vis pacem para bellum” (“se queres a paz, pre
32 Teoria Geral do Estado
para-te para a guerra”), e a modernidade, no mesmo diapasão, atenta ao estado de
tensão política que lateja entre os Estados contemporâneos, cunhou, com rara fe
licidade, o jargão: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Hitler costumava
afirmar - bazófia ou ameaça - que “onde fosse ouvida uma canção alemã, aí esta
ria a Alemanha”. Era o prenuncio do cxpansionismo nacional-socialista, cm nome
do chamado espaço vital...
Tais arroubos e brocardos constituem um sintoma inevitável de que o Estado
se mantém permanentemente em atitude de defesa ou dc ataque, sempre com o in
tuito de intimidar, impor-se às outras sociedades políticas, seja para conservar-se
íntegro, seja para expandir-se à custa de seus vizinhos. Por isso, como veremos mais
adiante, a faixa de fronteira de um Estado tem caráter muito mais estratégico do
que político. Então, o conceito de território é jurídico-político, não simplesmente
geográfico. Conceito geográfico é o de base física e o de país, designando, este úl
timo vocábulo, as características telúricas da base física de uma sociedade política.
Assim, quando nos referimos à influência do solo, do clima, sobre os homens de
determinada região, estamos referindo-nos a um país e não a um território propria
mente dito. Se o território fosse mero espaço geográfico, mera base física, como ex
plicar que um navio militar, em águas territoriais pertencentes a estado diverso, faz
parte do território do Estado cuja bandeira ostenta?
Assim, pode o território ser definido como a área física ou ideal em que o Es
tado exerce, com exclusividade, seu poder de império ou seu direito de proprieda
de sobre pessoas e coisas.
Com efeito, o território tanto pode ser uma parcela do solo, na qual o Esta
do exerce seu poder soberano, como uma ficção jurídica, isto é, um dado eminen
temente abstrato, ideal. Daí o espaço aéreo, as belonaves militares e as embaixadas
serem considerados partes integrantes do território do Estado. Nesse sentido, faz-
se oportuna a disposição do art. 5o, § I o, do Código Penal brasileiro, in verbis:
Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as
embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo bra
sileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasi
leiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espa
ço aéreo correspondente ou em alto-mar.
Por outro lado, o Estado exerce jurisdição sobre pessoas (poder de império)
e direito de propriedade sobre seus bens. Ademais, o Estado manifesta o seu poder
de império também sobre seus súditos que se encontram em outros Estados; é o
caso da extraterritorialidade das leis.
O Direito Romano já fazia uma distinção entre o território e o elemento hu
mano nele vivente; a urbs era o conjunto de edifícios, ruas e logradouros, ao pas
so que a civitas era o elemento humano vivente na urbs.
3 0 Estado 33
Dois elementos do território apresentam, modernamente, importância muito
grande: o espaço aéreo e o mar territorial
Sobre o espaço aéreo, a soberania do Estado alcança uma altitude que justi
fica um interesse público que possa reclamar a ação do poder político. Nesse sen
tido, tal espaço compreende quatro camadas, bem determinadas: a troposfcra, de
10 a 12 km de altitude; a estratosfera, com cerca dc 100 km; a ionosfera, de 100 a
600 km, e a exosfera, zona de transição para o espaço cósmico. Neste predominam
as normas de Direito astronáutico, também denominado interestelar, interplanetá
rio, espacial ou cósmico. Firmou-se a doutrina de que o espaço cósmico fica sob o
império do Direito Internacional, com a criação, em 1958, pela Organização das
Nações Unidas - ONU -, da Comissão para o uso pacífico do espaço cósmico. Em
1961 foi criada a Resolução n. 1.721, que proclamou a extensão, ao espaço exte
rior e aos corpos celestes, dos princípios do Direito Internacional e da Carta das
Nações Unidas, bem como o direito dc todos os Estados levarem a cabo explora
ções cósmicas e a inapropriabilidade jurídica dos corpos celestes. Depois, em 1967
foi firmado o Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na
Exploração e Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua c os demais corpos celestes.
Este tratado determina que a exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da
Lua e demais corpos celestes, deverão ter em mira o bem c o interesse de todos os
países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico,
e são incumbência de toda a Humanidade. O espaço cósmico, inclusive a Lua e os
demais corpos celestes, poderá ser explorado e utilizado, livremente, por todos os
Estados, sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformida
de com o Direito Internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as re
giões dos corpos celestes. O espaço cósmico, inclusive a Lua e os demais corpos
celestes, estará aberto às pesquisas científicas, devendo os Estados facilitarem e en
corajarem a cooperação internacional naquelas pesquisas (art. Io). Por outro lado,
o espaço cósmico, inclusive a Lua e os demais corpos celestes, não poderá ser ob
jeto dc apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação,
nem por qualquer outro meio (art. 2°).
No espaço aéreo predomina a teoria de Westlake (soberania plena), devendo,
entretanto, ser reservada uma zona de passagem inocente do território às aerona
ves estrangeiras. Desta forma, os aviões civis de natureza pública usufruem de in-
tangibilidade ao sobrevoarem ares estrangeiros, bem como de isenções fiscais, nor
malmente não conferidas às aeronaves particulares.
Navios ou aviões civis que se encontrem fora do território de um Estado, em
águas ou ares que não pertençam a outro Estado, estão sob a jurisdição do primei
ro, dando-se o inverso caso tais navios ou aviões estejam em águas ou ares do segun
do. Quanto aos navios ou aeronaves militares, encontrar-se-ão sempre sob a jurisdi
ção do Estado a que pertençam, independentemente do local onde se encontrem.
34 Teoria Geral do Estado
A Convenção Relativa a Infrações e a Certos Outros Atos Praticados a Bordo
de Aeronave, de 1963, determina, 110 art. III, item I o, que o Estado de matrícula da
aeronave será competente para exercer a jurisdição sobre infrações e atos praticados
a bordo. Por outro lado, diz o art. IV que o Estado contratante que não for o da ma
trícula não poderá intervir no voo de uma aeronave a fim de exercer sua jurisdição
penal em infrações cometidas a bordo, a menos que: a) a infração produza efeitos no
território desse Estado; b) a infração tenha sido cometida por ou contra um nacio
nal desse Estado ou pessoa que tenha aí sua residência permanente; c) a infração afe
te a segurança desse Estado; d) a infração constitua uma violação dos regulamentos
relativos a voos ou manobras de aeronaves vigentes nesse Estado; e) seja necessário
exercer a jurisdição para cumprir as obrigações desse Estado, em virtude de um acor
do internacional multilateral. O art. VI contém importante disposição, qual seja, quan
do o comandante da aeronave tiver motivos justificados para crer que uma pessoa
cometeu ou está na iminência de cometer a bordo uma infração ou um ato previsto
110 art. 1°, § I o, poderá impor a essa pessoa medidas razoáveis, inclusive coercitivas,
que sejam necessárias: a) para proteger a segurança da aeronave e das pessoas e bens
a bordo; b) para manter a boa ordem e a disciplina a bordo; c) para permitir-lhe en
tregar essa pessoa às autoridades competentes ou desembarcá-la dc conformidade
com as disposições da Convenção que disciplinam a matéria.
Quanto ao mar territorial, vem a ser a faixa marítima que acompanha, em
largura variável, as sinuosidades da linha litorânea, e que integra o território do Es
tado. Em outras palavras, é a faixa marítima que banha as costas de um Estado e
que se acha sob o poder de império deste. Normalmente, a largura do mar territo
rial é calculada a partir da linha de baixa-maré (baixa-mar), que é a altura mais
baixa atingida pela maré.
Inicialmente, predominava a doutrina de que a soberania do Estado sobre o
mar iria até onde a vista humana tivesse alcance; depois, com a evolução do arma
mento, passou a predominar a doutrina de que o poder do Estado no mar territo
rial cessaria onde terminasse o poder das armas, isto é, onde alcançasse um tiro de
canhão: terrae potestas finitur ubi finitur armorum vis, ou: onde bá força, aí o di
reito (ubi vis ibi jus).
Ora, com a evolução do armamento bélico, atualmente bastante sofisticado,
esta teoria ruiu, porque, se aplicada, todos os mares seriam águas territoriais ou, sim
plesmente, já não existiriam tais águas. A observação dos infinitos recursos do mar
ensejou a ampliação do mar territorial. Como acentua Salvetti Netto, o interesse eco
nômico sobrepujou o fator político, visto que os Estados alargaram a extensão de
seu mar territorial na proporção inversa de seu desenvolvimento tecnológico, pois
com muito maior facilidade os Estados mais desenvolvidos tecnologicamente pode
riam buscar as riquezas submersas, distantes de seu litoral.
Desta forma, realizou-se em Montevidéu, no ano de 1970, a Primeira Confe
rência Latino-Americana sobre Direito Marítimo, com a participação de nove Es
3 0 Estado 35
tados: Brasil, Uruguai, Nicarágua, El Salvador, Panamá, Argentina, Equador, Chi
le e Peru. A conferência debateu a exploração das riquezas do mar, a segurança
nacional, a repressão ao contrabando, o controle de navegação para evitar polui
ção das águas e outros temas.
Já em 25.03.1970, o Brasil acompanhava Peru c Equador na ampliação de
seu mar territorial para 200 milhas - não esquecer que um dos principais produ
tos de exportação daqueles dois Estados é o atum! - mediante o Decreto-lei n. 1.098,
do qual transcrevemos, agora, os arts. I o e 3° e o § 1° deste:
Art. 1° O mar territorial do Brasil abrange uma faixa dc 200 (duzentas) milhas
marítimas dc largura, medidas a partir da linha da baixa-mar do litoral continental c
insular brasileiro adotado como referencia nas cartas náuticas brasileiras.
Art. 3° É reconhecido aos navios dc todas as nacionalidades o direito de passa
gem inocente no mar territorial brasileiro.
§ 1° Considera-se passagem inocente o simples trânsito pelo mar territorial, sem
o exercício de quaisquer atividades estranhas à navegação e sem outras paradas que
não as incidentes à mesma navegação.
A Lei n. 8.617, de 04.01.1993, revogou este decreto. O art. I o desta lei diz
que
o mar territorial brasileiro compreende uma faixa dc 12 (doze) milhas marítimas de
largura, medidas a partir da linha dc baixa-mar do litoral continental c insular brasi
leiro, tal como indicada nas cartas náuticas dc grande escala, reconhecidas oficialmen
te no Brasil.
Esta norma acompanhou a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do
Mar, de 1982, conhecida por Convenção de Montego Bay, cujo art. 3o, referente à
largura do mar territorial, diz: “Todo Estado tem o direito de fixar a largura do seu
mar territorial ate um limite que não ultrapasse 12 milhas marítimas, medidas a
partir de linhas de base determinadas de conformidade com a presente Conven
ção”. Importante ressaltar que já em 1958 e 1964, duas Conferências sobre o Di
reito do Mar, realizadas por iniciativa da ONU, preconizavam a largura do mar
territorial de 3 a 12 milhas.
A ampliação unilateral do mar territorial provoca dificuldades nem sempre
solucionadas, em que pesem os esforços desenvolvidos por organismos internacio
nais. Assim, os Estados Unidos, que, já em fevereiro de 1970, emitiram nota de
apoio ao limite de 12 milhas apenas, advertiam que, enquanto este limite não fos
se fixado, não reconheceriam águas territoriais mais amplas do que 3 milhas, limi
te aceito sem objeção por todos os Estados. Vale lembrar que os principais oposi
36 Teoria Geral do Estado
tores às 200 milhas marítimas para o mar territorial sempre foram Estados Unidos
e União Soviética.
Oportuno lembrar, também, a seqüela resultante da guerra das ilhas Malvi
nas, que colocou frente a frente, em 1982, a Inglaterra c a Argentina, que disputa
vam o domínio daquelas, sorrindo a vitória militar para os ingleses. Recentemen
te, a pretexto dc preservar a pesca nas Malvinas, a Inglaterra, que já mantinha uma
faixa de mar territorial na região, de 150 milhas, ampliou unilateralmente esta
largura em mais 50 milhas. A verdadeira razão que levou os britânicos a esta me
dida temerária foi, porém, tornar sem efeito prático os acordos de atividade pes
queira na área, celebrados entre a Argentina, a Bulgária e a União Soviética. Com
a tomada daquela medida, a Inglaterra tornou obrigatória uma licença para bar
cos pesqueiros de qualquer país que esteja em atividade num raio de 150 milhas,
impondo formal e unilateralmente sua soberania num raio de 200 milhas! Agindo
de maneira análoga na sua possessão de Gibraltar, os ingleses teriam um mar ter
ritorial que invadiria nada menos do que sete territórios de países diversos, nos
quais sc incluem, aliás, portos europeus de grande movimento. Do território argen
tino, a Inglaterra atingiu, com tal medida, a ilha de Los Estados, situada no sul da
Argentina. Do exemplo referido, fica a conclusão, agora mais clara, certamente, de
que o território, muito mais do que uma expressão geográfica, revela, mesmo, o po
derio militar e estratégico de um Estado quando em confronto com outro.
Vale, agora, distinguir entre fronteira e limite no território do Estado. A pala
vra fronteira vem do latim fronsy frontis (fachada, frente). A fronteira é uma faixa
de largura considerável, conforme o caso, e que se confronta com a linha de limi
tes, na qual termina a ação jurisdicional do Estado. São finalidades da faixa de fron
teira a delimitação do território, a intercomunicação com povos vizinhos e a pro
teção contra a hostilidade externa.
Ao tempo do Império, a legislação marcava para a faixa de fronteira do Brasil
uma largura de 10 léguas (60 km), a partir da linha de limite. A Constituição de 1934
(art. 166) estipulou uma faixa dc fronteira de 100 km, e as Constituições dc 1937 c
1946, 150 km. Atualmente nos termos da Lei n. 6.634, de 02.05.1979, art. I o, é
considerada área indispensável à segurança nacional a faixa interna dc 150 km de
largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, que será designa
da como faixa de fronteira. Como se percebe, foi mantida a largura de 150 km para
a faixa de fronteira. Por outro lado, do teor deste artigo ressalta a noção de limite:
é a linha que separa a superfície do território de um Estado da superfície perten
cente aos Estados vizinhos. Fronteira é faixa, limite é linha. Entre dois Estados con-
frontantes existem, portanto, duas faixas de fronteira opostas e divididas por uma
linha divisória, a linha de limite. O conceito de fronteira liga-se à estratégia, ao pas
so que o conceito de limite vincula-se ao Direito propriamente dito.
Questão que despertou polêmica momentânea entre dois notáveis juristas ita
lianos, Donato Donati e Alessandro Groppali, é a seguinte: a base física é elemento
3 0 Estado 37
integrante do Estado? Donato Donati afirmou que o território (base física) não se
ria elemento do Estado, exemplificando sua assertiva com Estados que foram des
pojados temporariamente de sua base física, como Atenas, que, invadida pelos per
sas, foi abandonada por seus habitantes, os quais se refugiaram nos navios de
Milcíadcs, sendo possível acrescentar a tal exemplo o da França de 1940, vencida e
ocupada pela Alemanha nazista, durante quatro anos. Tais ocupações teriam afeta
do a existência dos Estados que as sofreram? Se adotarmos o pensamento de Dona
to Donati, para quem o território (como sinônimo de base física) não é elemento
constitutivo do Estado, mas simples condição da existência deste, aqueles F'stados -
Atenas e França - permaneceriam existindo. Alessandro Groppali contesta a dou
trina de Donato Donati, afirmando que a perda de fato, temporária, da base física,
não acarreta a desaparição do Estado, o que certamente ocorreria em caso de per
da definitiva. Adepto da opinião de Groppali, Pedro Salvetti Netto lembra que, em
todos os casos apontados por Donato Donati, não houve sequer perda temporária
do território (base física), porém mera ocupação do solo, e este não constitui, por si
só, como visto, a amplitude do território estatal. No exemplo da França ocupada
pela Alemanha, argumenta, permanecia o Governo da Resistência, sediado na In
glaterra, a impor suas determinações às forças da restauração, às embaixadas situa
das em outros Estados c aos navios e aeronaves dc guerra. Ocorreu, assim, mera
ocupação do solo, e não submissão total e definitiva, sendo a República de Vichy,
vassala do Terceiro Reich, uma organização política anômala. Donato Donati, fina
liza Salvetti Netto, considerou tão somente uma parcela do território (base física),
já que a este se encontram integrados, além do solo, o subsolo, o espaço aéreo, o
mar territorial, os navios e as aeronaves de guerra, onde quer que se encontrem os
navios mercantes em alto-mar, as aeronaves comerciais sobrevoando o espaço livre
e as embaixadas.
Conclui-se, portanto, que o território, tomado como a expressão do poder de
fato do Estado, constitui um elemento essencial do Estado, pois não há Estado sem
poder soberano, e a soberania pressupõe a força necessária a sua autoconservação.
O território, ao lado do elemento humano e do poder soberano, integra a pró
pria essência do Estado. Sem território, portanto, o Estado sucumbe. A base física,
contudo, é um elemento contingente, não essencial, do Estado. A sociedade política
pode existir, embora, temporariamente, sem ele. A base física está para o Estado como
a água está para um ser aquático. Aquela não faz parte da essência deste, o qual, po
rém, despojado daquele elemento vital, sucumbe ao cabo de algum tempo.
4.1.4) Natureza das re lações entre o Estado e seu te rr itó r io enquanto base fís ica: teo rias do d ire ito real ins tituc iona l, do im perium e do domínio em inente
Quando se diz que determinado Estado cedeu a outro uma parcela de seu ter
ritório, está-se fazendo referência a um autêntico direito de propriedade do Estado?
38 Teoria Geral do Estado
Partindo da velha distinção romana entre direitos reais (aqueles que incidem sobre
os bens) e direitos pessoais (aqueles que incidem sobre as pessoas), sem considerar
as teses unitárias que defendem a existência apenas de direitos pessoais, a teoria do
direito real institucional parte do pressuposto de que o direito do Estado sobre seu
território é verdadeiro direito dc propriedade. Trata-se, porém, de um direito de pro
priedade especialíssimo, ou melhor, institucional, distinto do regime jurídico da pro
priedade particular. Somente assim poderíamos admitir expressões como território
do Estado e aceitar a possibilidade de cessões territoriais pelo Estado. Entretanto,
esta concepção não explica como é possível coexistirem dois direitos de propriedade
- do Estado e dos particulares - incidentes sobre um mesmo objeto. Uma segunda
doutrina, propugnada por Georg Jellinek, denominada doutrina do imperium, afir
ma que não existe um direito real (dominium) do Estado sobre seu território, mas
tão somente um direito pessoal sobre os indivíduos que vivem em seu território. Jelli
nek considerava descabida a adoção de um conceito de direito civil 110 campo do
direito público, propondo, por isso, a substituição do conceito de dominium pelo de
imperium (direito dc compelir os habitantes do território a adotar certa conduta, di
reito pessoal, portanto). O publicista colombiano Copcte Lizarralde propôs, na ten
tativa de solucionar a questão, a expressão domínio eminente do Estado, lembran
do que, quanto ao direito do Estado, na qualidade de pessoa jurídica, de exercer
poder soberano sobre seu território e bens nele situados, a ênfase recai justamente
na ideia de soberania, característica do poder do Estado que incide primeiro sobre
as pessoas e, apenas secundariamente, sobre os bens. Mas isso pouco difere do pa
recer de Jellinek, com ressalva da originalidade da expressão domínio eminente. Na
verdade, como observa Hugo Palacios Mejía, a vida jurídica do Estado deve estar,
sempre, enfocada na perspectiva do Direito Público. O território, prossegue, é um
elemento do Estado, pelo qual, mais que um “direito do Estado sobre o território”,
há um condicionamento territorial da vida do Estado, que enseja diversas situações
jurídicas. Estas são, basicamente, de duas classes. A primeira refere-se à faculdade
dc exercer o poder sobre as pessoas que vivem dentro de certas fronteiras, e a segun
da expressa uma verdadeira relação direta entre o Estado e certas partes do territó
rio, mas sem recorrer à figura do direito particular de propriedade, dando a uma a
denominação imperium e à outra domínio público.
A nosso ver, há que distinguir o direito de propriedade do Estado, direito este,
vale lembrar, inerente a qualquer pessoa jurídica, do poder de império que, em face
do interesse público, o Estado exerce sobre a propriedade privada. Os bens de pro
priedade do Estado são especificados pela própria Constituição que lhe dá forma,
ficando a propriedade particular restringida por sua função social, sob administra
ção do próprio Estado, que apenas dá cumprimento às normas de desapropriação,
requisição ou confisco.
3 0 Estado 39
4.2) Causas formais
4.2.1) Poder político
Bibliografia: BORJA, Rodrigo. Enciclopédia de la política, México, Fondo de Cultura
Econômica. 1997. b u r d e a u , Georges. Método de la ciência política, Buenos Aires, De-
palma, 1964. c a b r a l d e m o n c a d a , L u ís . Problemas de filosofia política, Coimbra,
Armênio Amado, Sucessor, 1963. f e r r e i r a f i l h o , Manoel Gonçalves. Curso de direi
to constitucional. 11. ed., São Paulo, Saraiva, 1982. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de
teoria do Estado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981. s c h m i t t , Carl. Teoria de la Cons-
titución, México, Nacional, 1981.
Poder é a capacidade de impor obediência. A palavra tem origem no latim ar
caico potis esse, contraída em posse e, daí, potere. Poder, então, é possibilidade, é
potência, potencialidade para a realização de algo. O poder não é ação, é potência.
O poder é, também, a força a serviço de uma ideia, como define Burdeau. Ele se
sustenta pela ideologia cristalizada na consciência coletiva de um grupo social. Em
sua obra Método de la ciência política, assim se expressa este publicista:
O poder é uma força a serviço de uma ideia. Trata-se de uma força nascida da
vontade social preponderante, destinada a dirigir a comunidade a uma ordem social
que considera benéfica, bem como impor aos seus integrantes o comportamento ne
cessário para tanto. Nesta definição se destacam dois elementos: força e ideia se inter-
penetram estreitamente; parece-nos, portanto, que ela apresenta uma ideia exata da
realidade. Sc aquilo que pretendemos, como efeito, c isolar o duradouro no fenômeno
do poder; enquanto se sucedem as figuras que exercem seus atributos, veremos que o
poder é menos a força exterior que se coloca a serviço dc uma ideia do que a potên
cia mesma de tal ideia.
Em outra obra de grande repercussão sobre a matéria, intitulada singelamen
te O Estado, Burdeau assinala:
Na sua essência profunda, o Poder é a encarnação de uma tal energia provoca
da no grupo pela ideia de uma ordem social desejável. É uma força nascida da cons
ciência coletiva e destinada simultaneamente a assegurar-lhe a perenidade do grupo, a
conduzi-lo na busca do que ele considera como coisa sua, e capaz, em tais circunstân
cias, de impor aos membros a atitude requerida por esta busca. A definição que pro
pomos emprega os dois elementos do Poder: uma força c uma ideia. Ora, se afastar
mos momentaneamente os fenômenos concretos pelos quais se revela o Poder c cujo
40 Teoria Geral do Estado
fulgor se arrisca a obliterar a reflexão, se procurarmos o que é permanente no Poder
enquanto passam as figuras que nele exercem as atribuições, vemos que ele não é tan
to uma força exterior que viesse pôr-se ao serviço de uma ideia como a mesma potên
cia dessa ideia. Não é, pois, exato que a realidade substancial do Poder seja o mando,
o imperium; ela reside na ideia que o inspira.
A força, com efeito, é inerente ao poder. A possibilidade de sua aplicação efe
tiva chama-se coercibilidade. A cocrção é o emprego efetivo da força inerente ao
poder; temos, aqui, a vis materialis ou corporalis. A simples expectativa do empre
go da força chama-se coação (vis compulsiva).
Sc transportarmos a palavra poder para o campo da Ciência Política, encon
traremos o poder público ou do Estado definido por Alípio Valencia Vega como a
força pública organizada coativamente, a fim de impor o cumprimento de um or
denamento jurídico-político, obtendo a obediência geral às regras deste. Se o po
der fático é a capacidade de se fazer obedecer, o poder público nada mais é do que
a capacidade de se fazer obedecer exercida pelo Estado.
Daí a distinção entre poder público e governo. O governo é o complexo de
normas que disciplinam o exercício do poder. O governo é a dinâmica do poder. O
poder é potência, o governo é ação. Quem exerce ativa o poder, governa, enfim. Os
governantes são a encarnação do poder. A própria etimologia da palavra governo
(conduzir, dirigir, administrar) transmite-nos esta ideia. Por isso, é comum denomi
narmos os chefes do Poder Executivo governantes, em especial aqueles do Poder
Executivo estadual, chamado governadores.
Embora essencialmente sustentado pela força, o poder público somente se legi
tima quando seu exercício é consentido por aqueles que lhe obedecem. O assentimen
to, o consenso social, enfim, e pressuposto para a legitimação da ideia que anima
aqueles que encarnam o poder. Com efeito, assinala Georges Burdeau que o poder
repousa numa ideia oriunda da consciência coletiva existente no grupo social.
Ubi societas ibi jus, dizia Aristóteles; a este brocardo Pedro Salvetti Netto acres
ceu a expressão ac potestas, vale dizer, onde houver sociedade haverá direito e po
der. Exceção feita à utopia dos anarquistas, que pretendem ver extinto o poder na
vida em sociedade, o poder é essencial a qualquer sociedade. Poder social (socieda
des condicionadas) ou poder político (poder do Estado, sociedade condicionante)
são formas de poder inerentes ao convívio social. Vale frisar, porém, que o poder,
amparado pela força, nem sempre disporá do assentimento social, da reverência dos
governados, do respeito que estes, eventualmente, lhe votariam. Faltará, se for o
caso, autoridade. O vocábulo autoridade, do latim auctoritas, deriva do verbo ait-
gere, que significa aumentar, vale dizer, algo que se acrescenta, contingencialmente,
ao poder. Autoridade é possibilidade de suscitar obediência espontânea c conscien
te, sem recurso à força, à coerção. As pessoas simples, quando se referem, respeito
samente, às palavras de um sábio, as denominam argumentos de autoridade.
3 0 Estado 41
No dizer de Cabral de Moncada, a evolução do termo autoridade foi a seguinte:
A palavra autoridade, derivada do latim auctoritas, teve sempre nesta língua as
mais variadas significações, antes de se fixar na de poder. Exemplos: as de produção,
criação, exemplaridade, modelo, prestígio, conselho, etc. Etimologicamente deriva de
auctor e de augere. Auctor era não só o autor, como o consultor, o conselheiro, o ga
rante, o promotor, aquele que promove com o seu exemplo e conselho o bem de uma
coisa (alem. Befõrdern). Augere, de que auctum é um particípio-adjetivo, significava,
por sua vez, aumentar, desenvolver, fazer crescer, tornar mais forte e poderoso alguém
ou alguma coisa. Presume-se que sc cncontrc aí também a origem semântica da pala
vra para significar mais tarde, mediante uma transposição dc sentidos, aquele ou aqui
lo que constituía a força e o vigor duma comunidade.
O direito público romano já fazia uma distinção entre imperium e auctoritas;
aquele era a força em potência, a qualquer momento desencadeada; esta era a tra
dição e o respeito, encarnados num órgão, no caso, o Senado, símbolo vivo dc um
fastígio secular alcançado pela altivez, bravura e talento dos pais da pátria. César
jamais teve a autoridade de um Cincinato, embora dispusesse da força; por isso,
foi assassinado.
Os líderes carismáticos - a palavra carisma vem do grego cbarisma, que sig
nifica dom divino, graça divina - são chefes necessariamente religiosos que fruem
do respeito social, embora desprovidos da força. E o caso de Moisés, de Cristo e
dos profetas. Por vezes o líder carismático pode ter consigo também a força; eis
Maomé e os aiatolás contemporâneos.
Vejamos, agora, o conceito de poder constituinte, com a singeleza recomen
dada pelo caráter meramente introdutório desta obra.
Poder constituinte é a capacidade de criar ou de alterar a ordem jurídica do
Estado.
Para Schmitt, poder constituinte é a vontade política cuja força ou autorida
de é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre o modo c a forma da
própria existência política, determinando, assim, a existência da unidade política
como um todo. Com efeito, conforme ele próprio esclarece:
Uma Constituição não se apoia numa norma cuja justiça seja fundamento de sua
validade. Acha-se apoiada, isto sim, numa decisão política surgida dc um ser político,
accrca do modo c da forma do próprio ser. A expressão vontade revela cm contraste
com qualquer dependência referente a uma justiça normativa ou abstrata - o essen
cialmente existencial deste fundamento de validade.
O conceito de poder constituinte formulado por Schmitt, acentua Salvetti
Netto, não se vincula a tendências ideológicas ou a princípios norteadores deste ou
42 Teoria Geral do Estado
daquele regime político. Desde que o povo seja capaz de organizar o Estado e exer
cer o governo, soberanamente, é ele o titular do poder constituinte: se for o rei, dele
será este mesmo poder. Não se trata, aqui, prossegue, do melhor regime. Alude-se
ao que é e não ao que deve ser. Não passou despercebido a este autor que a pró
pria soberania reside no querer irrecusável do poder constituinte, sendo este a cau
sa eficiente, e a Constituição a causa instrumental da ação deste poder.
O poder constituinte é distinto dos poderes estabelecidos pela própria Cons
tituição por ele criada. No dizer de Burdeau, ele é
aquela potência criadora da ordem jurídica da qual fixa os princípios c estabelece os
instrumentos. Ele se encontra situado num ponto de intersecção entre a política c o di
reito, entre a turbulência das forças sociais c a serenidade dos procedimentos legais,
entre a aparente desordem revolucionária e dos regimes seguros de si próprios.
Em muitos Estados da Antiguidade Oriental, teocráticos, a soberania não re
sidia propriamente no monarca, como geralmente se pensa; o rei era, em verdade,
mero executor de uma vontade superior; de caráter sagrado, vontade fundada na
coletividade e imposta igualmente a governantes e a governados.
Mais tarde, na Grécia clássica, em Atenas e Esparta, já se fazia uma distinção
entre ato constituinte e ato legislativo. O ato constituinte seria aquele de natureza
originária, mediante o qual se criava a nação e sua estrutura político-social, surgin
do o povo, nestes dois Estados laicos, como o titular da soberania.
Séculos mais tarde, na Inglaterra, mais precisamente como documento deno
minado Agreement ofthe people (Acordo ou Pacto Popular), promulgado no ano
de 1953, por Oliver Cromwell, sob a denominação Instrumento de Governo, en
contraremos, segundo Carlos Sanchez Viainonte, o antecedente mais remoto rela
tivo à doutrina da separação entre poder constituinte e poderes constituídos.
Importante, aqui, distinguir entre a mera legalidade e a legitimidade do poder
constituinte. Quando tal poder se manifesta mediante o emprego da força, no pla
no do Direito Positivo, ele será sempre ilegal, ate o momento em que, vitorioso, se
institucionalize.
A obra revolucionária é sempre ilegal, inconstitucional. Entretanto, mesmo
sendo ilegal, ela pode ser legítima, desde que esteja de acordo com a ideia do justo
que o sistema de referência social professa. A obra revolucionária, contudo, pode
rá ser ilegítima, se não estiver de acordo com o consenso social.
Se os revolucionários alcançam o poder, empunhando a bandeira de um ideá
rio legítimo, que é aquele, repito, seguido pela comunidade, resta unicamente a le
galização do movimento. Concretizada esta, é evidente que o poder constituinte
derrubado incorrerá na ilegalidade e na ilegitimidade. Como o movimento vitorio
so é legalizado? Pela edição de uma nova Constituição.
3 0 Estado 43
Se o movimento triunfante não contar com a legalidade, tentará legitimar-se,
obtendo a aceitação dos governados, num esforço de legitimação daquilo que era
ilegítimo.
Que vem a ser a legalização do movimento vitorioso? É o estabelecimento de
normas positivas que justifiquem o conteúdo da obra revolucionária do poder cons
tituinte. Tal medida, lembra Ferreira Filho, é beneficiária dc um mecanismo psico
lógico: o respeito à lei, sentimento que nos é incutido desde a mais tenra infância.
O homem é induzido a obedecer à lei, não a discuti-la.
Quanto a suas espécies, o poder constituinte pode ser originário e instituído
ou derivado. No primeiro caso, ele dá origem a uma nova Constituição; no segun
do, apenas a modifica parcialmente.
Tomemos como exemplo o seu art. 60. O poder constituinte originário é in-
condicionado, não se acha submetido a nenhum princípio que não seja o daqueles
que o encarnam, não se encontra vinculado a nenhuma condição. Flá, também, o
poder constituinte decorrente, que é o poder dos Estados-Membros, no caso do Es
tado federal (Constituição brasileira, art. 25).
4.2.2) 0 princíp io da separação de Poderes no Estado
Bibliografia: Ar i s t ó t e l e s . Política, 3. ed., Livro IV, Capítulo II, tradução de Mário da
Gama Cury, UNB, 1997. b a s t o s , Celso. Curso de teoria do Fstado e ciência política,
4. ed., São Paulo, Saraiva, 1999. f e r r e i r a f i l h o , Manoel Gonçalves. Do processo le
gislativo, 3. ed., São Paulo, Saraiva, 1995. l o c k e , John. Dois tratados sobre o governo,
10. ed., São Paulo, Martins Fontes, 1998. m e i r e l l e s , Hely Lopes. Direito administra
tivo brasileiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1984. m o n t e s q u i e u . O espírito das
leis, tradução de Cristina Murachco, São Paulo, Martins Fontes, 1993. v i s s c i i e r , Paul.
Les nouvelles tendances de la démocratie anglaise, Paris, 1947.
4.2.2.1) Anteceden tes
Desde que, por natural tendência, o homem passou a viver em sociedade, uma
de sua maiores preocupações foi evitar o arbítrio dos governantes e seus indesejá
veis efeitos, dentre estes a insegurança imposta à liberdade individual. Por isso, os
mais antigos e respeitadores pensadores já buscavam delinear soluções para o con
trole do poder político. Assim Aristóteles (384-322 a.C.), em sua obra clássica Po
lítica, prenuncia a separação de funções no Estado, ideia que seria retomada, sécu
los depois, por Montesquieu. Assim se expressa Aristóteles:
44 Teoria Geral do Estado
Todas as formas de Constituição apresentam três partes em referências às quais
o bom legislador deve examinar o que é conveniente para cada Constituição; se estas
partes forem bem ordenadas a Constituição será necessariamente bem ordenada, e na
medida em que elas diferem uma das outras as Constituições também diferem entre si.
Destas três partes uma trata da deliberação sobre assuntos públicos; a segunda trata
das funções públicas, ou seja: quais são as que devem ser instituídas, qual deve ser sua
autoridade específica, e como devem ser escolhidos os funcionários; a terceira trata dc
como deve ser o Poder Judiciário. A parte deliberativa é soberana quanto à guerra c a
paz e a formação e dissolução de alianças, quanto às leis, quantos às sentenças de mor
te, de exílio e de confisco da propriedade, e quanto à prestação de contas dos funcio
nários.
Observa Celso Bastos que as três funções de que falava Aristóteles são as mes
mas que hoje conhecemos. Talvez a sua linguagem fosse um pouco diferente. Fala
va ele numa função consultiva que se pronunciava acerca da guerra e da paz e acer
ca das leis; uma função judiciária e de um magistrado incumbido dos restantes
assuntos da administração.
Embora autores que sucederam Aristóteles tenham dissertado a respeito do
tema, como fez Cícero, o fato é que a separação de Poderes só voltaria a ser anali
sada muito tempo depois, mais precisamente nos séculos XVII e XVIII, por John
Locke, Bolingbroke e o próprio Montesquieu, considerado por muitos, equivoca-
damente, o inspirador original da separação de Poderes.
John Locke (1632-1704), pensador inglcs, já desenvolvera, em sua obra Dois
tratados sobre o governo, uma doutrina mais detalhadas da separação de Poderes,
privilegiando, notoriamente, o Legislativo. Ouçamo-lo:
Sendo o principal objetivo da entrada dos homens em sociedades eles desfruta
rem de suas propriedades em paz e segurança, e estando o principal instrumento para
tal nas leis estabelecidas naquela sociedade, a lei positiva primeira e fundamental de
todas as socicdadcs políticas c o cstabclccimcnto do Poder Legislativo - já que a lei
natural primeira e fundamental, destinada a governar ate mesmo o próprio Legislati
vo, consiste na conservação da sociedade e (até onde seja compatível com o bem pu
blico) dc qualquer um dc seus integrantes. Esse Legislativo e não apenas o poder su
premo da sociedade política, como também é sagrado e inalterável nas mãos em que
a comunidade o tenha antes depositado; tampouco pode edito algum de quem quer
que seja, seja de forma concebido ou por que poder apoiado, ter força e obrigação de
lei se não for sancionado pelo Legislativo escolhido e nomeado pelo público. Pois, não
fosse assim, não teria a lei o que é absolutamente necessário à lei, o consentimento da
sociedade, sobre a qual ninguém pode ter o poder de elaborar leis salvo por seu pró
prio consentimento, e pela autoridade dela recebida.
3 0 Estado 45
Quanto ao Poder Executivo, Locke observa:
como as leis elaboradas de imediato e em pouco tempo têm força constante e duradou
ra, e requerem uma perpétua execução ou assistência, é necessário haver um poder per
manente, que cuide da execução das leis que são elaboradas e permanecem vigentes. E
assim acontece, muitas vezes, que sejam separados os Poderes Legislativo e Executivo.
A par do Poder Executivo, Locke vislumbra certo Poder Federativo, apto a
cuidar da guerra e da paz, firmar alianças e acordos com todas as pessoas e socie
dades políticas internacionais. Esses dois Poderes, Executivo e Federativo, embora
distintos, compreendendo um a execução das leis municipais da sociedade dentro
de seus próprios limites sobre todos os que dela fazem parte e outro a gestão da se
gurança e do interesse e o público externo, com todos aqueles de que ela pode re
ceber benefícios ou injúrias, quase sempre estão unidos.
4.2.2.2) 0 princíp io da separação de Poderes segundo M ontesqu ieu
Quanto a Montesquieu (1689-1755), mais precisamente Charles Louis dc Se-
condat, Barão dc La Brède et de Montesquieu, no clássico O espírito das leis, após
considerar o Poder Legislativo como o mais importante dos três Poderes, até por
que o povo, não podendo exercer o autogoverno, pode, todavia, fazer valer sua
vontade soberana mediante seus representantes, assim se expressa no Livro 11,
§ 6° (Da Constituição da Inglaterra):
Existem cm cada Estado trcs tipos dc poder: o poder legislativo, o poder execu
tivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que
dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou magistrado cria leis por um
tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo,
ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne
invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particu
lares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder exe
cutivo do Estado [...]. Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratu
ra, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque
se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para exe
cutá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for sepa
rado do poder legislativo c do executivo. Sc estivesse unido ao poder legislativo, o po
der sobre a vida c a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador.
Sc estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo
estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres,
ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções pú
blicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.
46 Teoria Geral do Estado
Desde logo, a doutrina da separação de Poderes foi prestigiada em célebres
legislações, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26.08.1789,
que já dizia no art. 16: “Toute societé dans laquelle Ia garantie des droits riest pas
assurée, ni Ia séparation des pouvoirs determinée, ria point de constitutiori\ ou
“Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separa
ção dc Poderes determinada, não tem constituição". Não demoraria, entretanto, a
se delinear uma crítica robusta e profunda a seus princípios, que ocasionaria seu
declínio e sua transformação num mito. Com efeito, criou-se em torno do ideário
de Montesquieu a ideologia de um modelo político em que os três Poderes deve
riam estar rigorosamente separados: o Executivo (o rei e seus ministros), o Legisla
tivo (primeira e segunda câmaras, câmara baixa e câmara alta) e o Judiciário (cor
po de magistrados). Cada um destes “Poderes” exerceria suas atribuições sem
qualquer interferência dos demais. Ora, mesmo nos primórdios da aplicação práti
ca das ideias de Montesquieu, já se reconhecia que o Executivo poderia interferir
no Legislativo, em face do direito de veto concedido ao monarca; por outro lado,
o Legislativo exerceria pressão sobre o Executivo, na medida em que controla as
leis que vota, podendo exigir aos ministros prestação de cotas dc sua administra
ção; por sua vez, o Poder Legislativo interferiria nas atribuições do Judiciário quan
do do julgamento dos nobres pela Câmara dos Pares, na concessão de anistias e
nos processos políticos que deviam ser apreciados pela câmara alta sob acusação
da câmara baixa.
Num dos maiores clássicos da Ciência Política, intitulado O federalista (The
federalist), Alexander Hamilton, James Madison eJohnJay advertem que a tripar-
tição das funções do Estado não é apenas divisão, mas também equilíbrio. Madi
son pregava a necessidade de disciplinar o relacionamento entre as funções do Es
tado, mediante um sistema de freios e contrapesos (checks and balances), a fim de
estabelecer uma interdependência entre elas. Tal interdependência autoriza qual
quer das três funções a exercer atribuições naturalmente peculiares a um dos res
tantes, sem ferir, com isso, a Constituição. Assim, sc tomarmos como exemplo a
Constituição brasileira, veremos que o Poder Executivo pode legislar (art. 62), o
Legislativo julgar (art. 52, I e II), c o Judiciário legislar (art. 96 ,1, a). Assim, a ex
pressão separação de Poderes passa a ter conotação meramente política, porque ju
ridicamente é equivocada. Não há, na verdade, separação de Poderes no Estado,
porque o poder político é, naturalmente, uno, indivisível. Daí, ser mais apropriado
o termo função, em vez de poder. O próprio Montesquieu, diga-se de passagem,
não disse haver três Poderes mutuamente isolados, mas em equilíbrio, inspirando,
assim, a doutrina dos freios e contrapesos, já mencionada, de modo que cada “po
der” limitaria os demais: Le pouvoir arrete le pouvoir.
O eminente publicista Hely Lopes Meirelles adverte que apressados seguido
res de Montesquieu interpretaram mal seu pensamento, falando em divisão e sepa
ração de Poderes, como se esses fossem estanques, quando é certo que o Governo
3 0 Estado 47
é resultante da interação dos três Poderes do Estado. No mesmo sentido, Paul
Visscher, para quem atribuir a Montesquieu a separação absoluta de Poderes é ver
dadeira escroqueria intelectual, que representa falsear totalmente o pensamento do
ilustre autor dc O espírito da leis.
4.2.2.3) 0 Poder Legislativo
O Poder Legislativo, como o entendemos hoje, teve origem na Inglaterra, du
rante a Idade Média, quando a nobreza e o próprio povo tentavam limitar a auto
ridade absoluta dos reis. Com a doutrina de Jean-Jacques Rousseau, perenizada em
sua obra O contrato social, o enfraquecimento do poder real se acentuou em pro
veito do Parlamento. Com efeito, segundo Rousseau, a soberania reside no povo,
que a exprime por meio da lei. Todavia, não podendo votá-la diretamente, pessoal
mente, o povo se vê compelido a eleger seus representantes, parlamentares, que agi
rão em nome do corpo eleitoral.
Ao Poder Legislativo se confere, por definição, a competência de elaborar nor
mas segundo um processo previamente estabelecido (processo legislativo), as quais
inovam a ordem jurídica. Isto não significa que apenas o Legislativo elabora nor
mas jurídicas, pois também o Executivo e, mesmo, o Judiciário, como já vimos. To
davia, as normas emanadas do Legislativo têm primazia sobre as outras, em face
do princípio da legalidade, pelo qual ninguém se obriga a fazer ou deixar de fazer
algo, senão em virtude de lei, vale dizer, lei em sentido estrito, ou seja, diploma le
gal discutido e referendado no próprio Legislativo.
4.2.2.4) 0 Estado con tem porâneo e a de legação de funções
A doutrina clássica da separação de Poderes não admite a delegação de fun
ções de um aos outros, como se observa nesta sugestiva passagem de John Locke:
não pode o legislativo transferir o poder de elaborar leis para outras mãos, não sendo
ele senão um poder delegado pelo povo, aqueles que o detêm não podem transmiti-los
a outros. Somente ao povo é facultado designar a forma da sociedade política, que se
dá através da constituição do legislativo, e indicar em que mãos será depositado. E
quando o povo disser: submeter-nos-emos às regras e seremos governados pelas leis
estabelecidas por tais homens e sob tais formas, ninguém mais poderá que outros ho
mens devam elaborar leis para o povo, e tampouco pode ser este submetido a nenhu
ma lei, senão àquelas promulgadas pelos indivíduos escolhidos c autorizados para for
mular as leis da sociedade. Uma vez que o poder do legislativo deriva do povo, por
uma concessão ou instituição positiva e voluntária, não pode ser ele diverso do poder
transmitido por tal concessão positiva, que é apenas o de elaborar leis e não de fazer
48 Teoria Geral do Estado
legisladores, dc sorte que não pode ter o legislativo nenhum poder de transferir sua
autoridade de elaborar leis e colocá-la em mãos de terceiros.
N ão obstante, a realidade hoje é outra, bem diferente dos tempos de Locke e
Montesquieu.
O papel proeminente do Legislativo acarretou-lhe, em contrapartida, um acú
mulo de funções, dentre as quais, na França, a prerrogativa de anular decisões ju
diciais, por intermédio da Corte de Cassação. Com o passar do tempo, este acúmu
lo de tarefas trouxe consigo a própria paralisia do Legislativo. Por outro lado, como
assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a ascensão das massas ao processo de
decisões políticas agravou a situação:
O sufrágio universal, que para os democratas radicais do século passado lsic],
parecia ensejar a plena realização da democracia, veio, assim, abalar a estrutura des
ta que lhes parecia perfeita, agravando gravemente o órgão no seu entender principal.
Em verdade, o sufrágio universal trouxe a divisão para o seio das assembleias. Deixa
ram estas de ser grupos primários, como eram enquanto só a burguesia participava in
tensamente da vida política, onde as discordâncias não iam alem dos pormenores, para
se tornarem o campo dc batalha onde cosmovisões hostis c interesses dc elasses irre
dutíveis, ou aparentemente irredutíveis, se digladiavam.
Por outro lado, o recrudescimento das reivindicações sociais no final do sécu
lo X IX , inatendidas em face da paralisia parlamentar, obrigou os governos a repen
sar o processo legislativo, buscando agilizá-lo, na medida do possível, permitindo
a rápida edição de normas jurídicas de alcance social. Tal fenômeno mostrou-se
ainda mais evidente a partir de 1920, com a inevitável delegação dc funções pelo
Legislativo ao Executivo, em face das maiores possibilidades de legislar, com rapi
dez, por parte deste. Observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
Incapazes dc fazer o que se torna imprescindível, sem coragem para tomar deci
sões inadiáveis, porem impopulares, as câmaras dão plenos poderes ao Executivo, para
que este faça o que tem que ser feito, inclusive modificando, por decreto, as leis do país,
e aguente as conseqüências [...]. A decadência do Parlamento teve como contrapartida
o engrandecimento do Executivo. De tal evolução, não mostra mais ostensiva do que a
retratada nalgumas Constituições posteriores à Segunda Guerra Mundial. Nestas, o an
tigo Executivo passou a ser visto como poder governamental, como governo.
4.2.2.5) 0 caso brasile iro: medida provisória e lei delegada
N o Brasil, o fortalecimento do Executivo se manifestou mediante três espé
cies de normas: decreto-lei, lei delegada e medida provisória.
3 0 Estado 49
A natureza do decreto-lei é a de um diploma híbrido entre o decreto (mero
ato administrativo) e a própria lei, já que o decreto-lei tem força de lei. Trata-se,
em resumo, de uma lei em sentido material, pois embora não tenha forma de lei,
seguindo processo legislativo próprio, tem força dc lei. O decreto-lei surge no Di
reito brasileiro com a Constituição autoritária de 1937, outorgada por Getúlio Var
gas. Este passou a legislar sozinho, mediante decretos-lei, valendo lembrar que inú
meras leis importantes da época - ainda em vigor - são decretos-lei, v. g.y o Código
Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Contravenções Penais, a Consolidação
das Leis do Trabalho e a Lei de Introdução ao Código Civil.
Repudiado na Constituição de 1946, o decreto-lei retornou na de 1967, emen
dada em 1969, nos seguintes termos:
Art. 55. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse públi
co relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis
sobre as seguintes matérias: 1 - segurança nacional; II - finanças públicas, inclusive
normas tributárias; e III - criação de cargos públicos e fixação de vencimentos. § 1°
Publicado o texto, que terá vigência imediatamente, o Congresso Nacional o aprova
rá ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não
houver deliberação, o texto será tido por aprovado. § 2° A rejeição do decreto-lei não
implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência.
Observa-se, no § I o, que não sendo o decreto-lei aprovado em sessenta dias,
ou seja, não havendo deliberação, o texto seria tido por aprovado. Assim, não dese
jando os parlamentares aprovar medidas eventualmente antipáticas, ou não desejan
do comprometer-se com o todo-poderoso Governo Militar, deixavam aquele pra
zo fluir in albis, sem manifestação, ficando o decreto-lei definitivamente aprovado
por decurso de prazo.
Por outro lado, conforme advertia o § 2o, mesmo que rejeitado pelo Congres
so, os atos praticados durante a vigência do decreto-lei se tornavam plenamente vá
lidos, pois a negativa do Legislativo tinha efeito meramente ex nunc, ou seja, sem
retroatividade.
Ora, a redemocratização do País, em meados dos anos de 1980, culminaria
na Constituição de 05.10.1988 e, com esta, na medida provisória, velada sucesso
ra do decreto-lei, assim dispondo o art. 62, caput e § 3o:
Art. 62. Em caso dc relevância c urgência, o Presidente da República poderá ado
tar medidas provisórias, com força dc lei, devendo submetê-las dc imediato ao Congres
so Nacional. [...] § 3° As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 per
derão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias,
prorrogável, nos termos do § 7°, uma vez por igual período, devendo o Congresso Na
cional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.
50 Teoria Geral do Estado
Comparemos o decreto-lei da Constituição de 1967 e a medida provisória da
Lei Magna de 1988. Percebe-se, de imediato, que a atual Constituição favoreceu o
Poder Legislativo, pois este, na Constituição anterior, em matéria de decretos-lei fi
cava limitado a uma atitude passiva: aprovava o texto, cuja vigência era imediata
(art. 55, § I o), ou o rejeitava sem poder emendá-lo, sempre no prazo de sessenta
dias contados de seu recebimento. Além disso, como vimos, a rejeição de um de
creto-lei não implicava nulidade dos atos praticados na sua vigência, o que refor
çava, consideravelmente, o Poder Executivo. Entretanto, com a medida provisória
a situação se inverteu, já que se esta não for apreciada pelo Legislativo perderá sua
eficácia “desde a edição, se não for convertida em lei no prazo de sessenta dias”,
prazo este prorrogável (§ 3o).
No direito comparado, constatam-se institutos assemelhados ao decreto-lei e
à medida provisória, claro, com variantes compatíveis com as peculiaridades de
cada ordem jurídica. Nesse sentido, dispõem os arts. 77 da Constituição italiana,
86 da Constituição espanhola, e o I o da Lei britânica sobre o Parlamento, de
18.08.1911:
Art. 77. Não pode o Governo, sem delegação das Câmaras, ditar decretos com
força de lei ordinária. Quando, em casos extraordinários de necessidade e de urgência,
o Governo adotar, sob sua responsabilidade, medidas provisórias (provvcdimcntiprov-
visori) com força de lei, deverá apresentá-las no mesmo dia para sua conversão em lei
às Câmaras, as quais, mesmo dissolvidas, serão devidamente convocadas e reunir-se-ão
dentro dos cinco dias seguintes. Os decretos perderão todo o efeito desde o início, se
não forem convertidos cm lei (convertiti in legge) dentro dos sessenta dias de sua pu
blicação. As Câmaras poderão, todavia, regular mediante lei as relações jurídicas sur
gidas em virtude daqueles decretos que não forem convertidos em lei [...]. Art. 86. [...]
§ 1° Em caso de extraordinária e urgente necessidade, o Governo poderá editar dispo
sições legislativas provisórias, as quais tomarão a forma de decretos-lei e não poderão
conflitar com as instituições fundamentais do Estado, os direitos, deveres e liberdades
dos cidadãos sob as normas do Título Primeiro, ao regime das Comunidades Autôno
mas, nem ao Direito Eleitoral Geral. § 2° Os decretos-lei deverão ser imediatamente
submetidos a debate e votação pela totalidade dos membros do Congresso de Deputa
dos, convocado para tanto, se não estiver reunido, no prazo dos trinta dias seguintes à
sua promulgação. O Congresso deverá pronunciar-se expressamente, dentro de referi
do prazo, sobre sua convalidação ou derrogação, para o qual o Regulamento estabele
cerá um procedimento especial c sumário. § 3° Durante o prazo estabelecido no pará
grafo anterior, as Cortes poderão faze-los tramitar como projetos dc lei, mediante o
procedimento de urgência [...]. Art. 1° [...] § 1° Sc um projeto dc lei, sobre matéria fi
nanceira, aprovado pela Câmara dos Comuns, for enviado à Câmara dos Lordes, pelo
menos um mês antes do término da sessão legislativa, e nesta não for aprovado sem
emendas dentro do mês seguinte, ele será apresentado à Sua Majestade, salvo se a Câ
3 0 Estado 51
mara dos Comuns decidir em contrário, e converter-se-á em ato do Parlamento, me
diante sanção real, independentemente do voto da Câmara dos Lordes.
4.3) Soberania
Bibliografia: a c c i o l i , Wilson. Teoria geral do Estado, Rio dc Janeiro, Forense, 1985.
a z a m b u j a , Darcy. Teoria geral do Estado, Porto Alegre, Globo, 1968. b o n a v i d e s , Pau
lo. Ciência política, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986. d a l l a r i , Dalmo de Abreu.
Elementos de teoria geral do Estado, 28. ed., São Paulo, Saraiva, 2009. m a l u f , Sahid.
Teoria geral do Estado, 13. ed., São Paulo, Sugestões Literárias, 1982. s a l v e i t i n e t t o ,
Pedro. Curso de teoria do Estado, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 1964.
O termo soberania deriva do latim medieval superanus e, mais recentemente,
do francês souveraineté. As duas palavras latinas das quais parece derivar, realmen
te, o vocábulo souveraineté são, com efeito, superanus e supremitas.
A soberania é o atributo do poder do Estado que o torna independente no
plano interno e interdependente no plano externo. No âmbito interno, o poder so
berano reside nos órgãos dotados do poder de decidir em última instância; no âm
bito externo, cada uma mantém, com os demais, uma relação em que a igualdade
se faz presente. Referindo-se à posição do estado na ordem internacional, observa
o professor Dalmo de Abreu Dallari:
O mundo é uma sociedade de Estados, na qual a integração jurídica dos fatores
políticos ainda se faz imperfeitamente. Para o jurista, o Estado é uma pessoa jurídica
de direito público internacional, quando participa da sociedade mundial. Na prática,
entretanto, apesar de todas as restrições dos teóricos e dos próprios líderes políticos, o
reconhecimento dc um Estado como tal não obedece a uma regulação jurídica precisa,
ficando na dependência da comprovação dc possuir soberania. Com efeito, indepen
dentemente dc atos formais de reconhecimento, o que se exige c que a sociedade polí-
rica tenha condições dc assegurar o máximo de eficácia para sua ordenação num deter
minado território c que isso ocorra dc maneira permanente, não bastando a supremacia
eventual ou momentânea. Assim, pois, o que distingue o Estado das demais pessoas ju
rídicas de direito internacional público é a circunstância de que só ele tem soberania.
Esta, que do ponto de vista interno do Estado é uma afirmação de poder superior a to
dos os demais, sob o ângulo externo é uma afirmação de independência, significando a
inexistência de uma ordem jurídica dotada de maior grau de eficácia.
Fnfim, o poder soberano é um elemento essencial do Estado. Não há Estado
sem poder soberano, pois a soberania é a qualidade suprema do poder estatal; é ela
52 Teoria Geral do Estado
que distingue este poder daquele observado nos grupos sociais condicionados pelo
Estado. Conclui-se disso que, nas situações em que houver poder de decisão em úl
tima instância, haverá soberania. Vimos, por outro lado, que a soberania é um atri
buto essencial, uma qualidade do poder do Estado, do poder político, enfim. Se o go
verno é uma das causas formais do Estado, a soberania é a diferença específica dc tal
governo, é seu traço identificador. Haverá soberania nos casos em que houver poder
de decisão em última instância, sendo este o único critério distintivo do Estado.
Graças à soberania, o Estado torna-se uma sociedade condicionante, ao pas
so que as sociedades menores tornam-se condicionadas pelo Estado.
Daí a assertiva do professor Pedro Salvetti Netto:
Assim como todas as sociedades possuem normas, mas as leis, que se originam
do Estado, se sobrepõem àquelas emanadas de outros organismos sociais, estes tam
bém, não dispensando o poder, sujeitam-se ao mando que caracteriza a sociedade po
lítica. E isso porque o Estado é soberano, não reconhecendo nenhum outro poder que
se lhe iguale, no limite de seu território.
A Antiguidade já intuía a diferença entre as leis que estruturavam a organiza
ção política e as que eram criadas por órgãos do governo, isto e, já havia uma dis
tinção fugaz entre as leis constitucionais e as leis que poderíamos denominar leis
ordinárias.
Em sua obra A política, Aristóteles faz tal distinção, e no direito público de Ate
nas havia a noção de que certas leis pertinentes à própria estrutura política da polis,
como as que estabeleciam a cidadania, eram superiores às demais. Tal superioridade
era garantida por um procedimento que poderia ser tido como o ancestral da nossa
ação direta de inconstitucionalidade, que, geralmente se pensa, é uma criação do Di
reito Constitucional moderno. Por intermédio daquele procedimento era possível im
pugnar a criação de leis que contradissessem as normas fundamentais, concernentes
à estrutura fundamental da cidade-Estado ateniense.
Séculos depois, com as invasões dos bárbaros no Império Romano, fenôme
no que assinala o início da Idade Média, surge o Feudalismo, como resultado des
te marco histórico. O feudalismo, sistema político, social e econômico, fundava-se
numa economia agrária, na qual cada castelo feudal buscava, mesquinhamente,
perdurar independentemente dos demais. Surge a classe dos senhores feudais, de
um lado, e a dos servos da gleba, de outro. Politicamente, o poder não se conser
vou centralizado como no Império Romano, mas fragmentou-se em miríades de se
nhorios feudais. Cada senhorio possuía, por direito próprio, uma parcela do poder
político, e nas suas lides impunha seus costumes e suas leis. Na Alta Idade Média,
a partir do século XI da Era Cristã, a sociedade feudal converteu-se em estamentá-
ria, vale dizer, formada por estamentos. Que vem a ser um estamento? É uma ca
mada social que compete com outras, dentro de uma rigidez relativa. Naquele pe
3 0 Estado 53
ríodo histórico o rei, a nobreza, o clero e o povo formaram estamentos que lutavam
para ascender politicamente e exercer o poder soberano. Supremus, ou sovrain (na
França), tornava-se o estamento que passasse a exercer seu poder soberano sobre
os demais. Daí a expressão soberania, como já vimos.
Mais tarde, as lutas religiosas causadas pela Reforma ameaçaram destruir a
própria sociedade civil; na França, tal perigo foi conjurado com o surgimento de
uma sociedade intitulada “Os Políticos”, que pregava a necessidade de um poder
supremo, soberano, que reinasse sobre os litigantes, sobre toda a nação, enfim. Nes
sa sociedade pontificou Jean Bodin, autor de uma obra intitulada Os seis livros da
República, precursora do Estado absolutista.
4.3.1) A doutrina pactista medieval
Quanto à titularidade da soberania, são inúmeras as doutrinas a respeito. A
doutrina pactista medieval ensinava que todo o poder vem de Deus: Omnis potes-
tas a Deo; mas, dc tal poder, tinha um intermediário: o povo. Então, Omnis potes-
tas a Deo sed per populum, isto é, “Todo poder vem de Deus, por intermédio do
povo”. O consentimento popular, tacitamente manifestado, seria a fonte do poder
político. Tal consentimento importaria num verdadeiro pacto, o chamado pactum
subjectionis.
4.3.2) A doutrina do con tra to social
A doutrina pactista medieval não deve ser confundida com a do contrato so
cial, que se desenvolve a partir do século XVI, para acentuar-se nos séculos XVII e
XVIII.
Há uma diferença sutil entre a doutrina pactista medieval e a doutrina do con
trato social: A doutrina pactista medieval via no acordo de vontades a fonte do go
verno, apenas; mas a doutrina do contrato social via em tal acordo de vontades a
fonte da própria sociedade.
Para a doutrina pactista medieval a fonte da sociedade era a inclinação natu
ral do homem, como predicava Santo Tomás de Aquino, era a sociabilidade inata
do homem; mas os autores que difundiram a ideia do contrato social viam, neste
contrato, a própria fonte da sociedade. A doutrina do contrato social pode ser ana
lisada na célebre Escola do Direito Natural e das Gentes, encabeçada por Hugo
Grócio, e nos três mais significativos autores da doutrina contratualista: Thomas
Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau.
Afirmava Hobbes que, se não existisse a sociedade, os homens estariam em guer
ra continuamente: o homem seria lobo do próprio homem (homo homini lupus).
Para evitar tais males, os homens abdicariam de sua liberdade em favor de um
monarca, cuja função seria manter a paz. O monarca não seria parte no contrato
54 Teoria Geral do Estado
social; seria mero beneficiário de uma delegação. Haveria um ato que, em direito
civil, denominaríamos estipulação em favor de terceiro.
Com a Revolução Francesa, são consagradas duas doutrinas de relevo sobre
a soberania: a da soberania popular; segundo Jean-Jacques Rousseau, e a da sobe
rania nacional, de Emmanuel Joseph Siéyès.
Em sua obra clássica O contrato social, Rousseau afirma que o poder só é le
gítimo quando se origina da vontade de todos os que serão governados. Para que
o Estado seja legitimado, o poder estatal deverá estar em mãos de todos os indiví
duos que compõem o povo. Haverá, portanto, legitimidade somente se houver iden
tificação entre governantes e governados, vale dizer, as decisões fundamentais de
vem partir da vontade geral, sendo esta a vontade dos cidadãos sobre problemas
de interesse comum. Segundo Rousseau, já se vê, todo cidadão, no Estado consti
tuído legitimamente, é um soberano, é parte da soberania. Cada cidadão é deten
tor de uma fração da soberania. Se o Estado possuir 10 mil cidadãos, cada um des
tes será titular da fração correspondente da soberania. Conclui-se, então, que a
participação política do cidadão não deve ser compulsória, pois o direito de votar
não implica um dever de votar. Por outro lado, sendo a soberania uma prerrogati
va personalíssima, ela é, por via de conseqüência, indelegável. Por isso Rousseau
não acreditava na representação política e refugava os chamados representantes do
povo. Vale notar, porém, que a ideia rousseauniana de que o governo só é legítimo
quando todos os cidadãos participam da tomada das decisões fundamentais deve
ser apreciada em termos. Não pretende Rousseau que todo o povo tome e execute
as decisões; com efeito, todos os cidadãos devem participar da formação da von
tade geral, mas a aplicação das medidas decorrentes desta vontade pode ser feita
por todos, por alguns ou, mesmo, por um único homem. Considera Rousseau, em
face disso, que as três formas básicas de governo, monarquia, aristocracia e demo
cracia, poderiam ser legitimadas, com exceção da democracia, porque somente um
povo de deuses poderia, simultaneamente, tomar as decisões e aplicá-las: “Se hou
vesse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Governo tão perfeito
não convém aos homens” (O contrato social, Livro III, Capítulo IV, parte final).
Esta doutrina de Rousseau, então, é a doutrina da soberania popular. Ela não se
confunde com a doutrina da soberania nacional, preconizada por Emmanuel Jo
seph Siéyès (1748-1836), a qual, na verdade, tem uma importância prática muito
maior. Afirma Siéyès que o poder do Estado não é exercido em nome do povo, mas
em nome da nação. O que é a nação, entretanto? Para conceituar a nação, Siéyès
começa por dizer que, numa sociedade historicamente considerada, existem inte
resses momentâneos, os quais não se confundem com os interesses permanentes das
gerações que se sucedem no tempo. Povo, em tal concepção, seria uma comunida
de concreta, presente, historicamente considerada; seria o conjunto das pessoas con
temporâneas que formaria o elemento humano do Estado num dado momento.
Ora, se o fundamento da soberania fosse a vontade do povo, comunidade limita
3 0 Estado 55
da no tempo, os interesses permanentes das gerações em sucessão poderiam ser ir
remediavelmente lesados. O supremo poder do Estado, adverte Siéyès, deve estar
dirigido aos interesses permanentes da sociedade. As gerações que se sucedem cons
tituem a nação, entidade espiritual que é o fundamento da soberania. A nação, en
tretanto, é uma entidade imaterial. Como fazer valer a sua vontade? Diretamente,
como na doutrina da soberania popular, seria impossível. É preciso, então, que a
nação seja representada por aqueles que atuem em seu nome, segundo os interes
ses permanentes e definidos da sociedade. Quem escolherá, entretanto, os represen
tantes da nação? Tais representantes serão escolhidos por aqueles que a nação de
signar como eleitores. Então os representantes da nação serão eleitos pelo povo
todo, ou por uma parcela deste, conforme institucionalizado em lei. Disso decorre
que o voto não representa um direito, mas um dever, um munus. Além disso, se é
a nação quem vai selecionar o corpo eleitoral destinado a eleger seus represen
tantes, é evidente que ela pode restringir ou ampliar o número de participantes
do sufrágio. Em face disso, por influência do próprio Siéyès, todas as Constitui
ções da França revolucionária adotaram o chamado sufrágio censitário. Somen
te em 1848 foi instituído, neste país, o sufrágio universal, ainda assim sem parti
cipação das mulheres. O destaque dc maior importância no raciocínio de Siéyès
é que, sendo a representação fundada na Constituição, e não na vontade do eleito
rado, e levando-se em conta que os representantes da nação representam esta, e não
seus eleitores, fica rompido um possível vínculo jurídico entre eleitor e eleito, pas
sando a representação política a ter natureza institucional e não consensual. A res
cisão da investidura do representante da nação não parte mais da vontade do elei
tor, mas apura-se, tão somente, nos termos da Constituição. Já se vê que o
representante da nação não tem instruções de seus eleitores a cumprir, nem contas
a prestar, a menos que infrinja a Constituição. Antes da Revolução Francesa, havia
o mandato imperativo, pelo qual o representante de cada estamento comparecia às
reuniões apenas para formalizar a vontade de seus representados perante o gover
no e, se não cumprisse sua obrigação, seria substituído. Com Siéyès, entretanto, o
representante do povo passou a ser representante da nação, incumbido de repre
sentar, com total liberdade e sem a pressão do eleitorado, os interesses permanen
tes da nação. Modernamente, em face do progressivo declínio dos parlamentos, en
sejado por fatores que não vêm, por ora, à balha, percebe-se que a doutrina da
soberania nacional originou, em verdade, não uma democracia com fundamento
na nação, mas uma oligarquia parlamentar, totalmente divorciada dos interesses
populares, não sendo de todo falso afirmar que soberana não é a nação, mas o par
lamento.
Com o passar do tempo, as doutrinas da soberania popular e da soberania
nacional acabaram por se fundir, mesmo porque, como se tornara difícil definir a
nação, esta foi identificada com o povo, afirmando-se que o povo é o soberano (!),
nos termos, porém, do pensamento do Siéyès, vale dizer, com total independência
56 Teoria Geral do Estado
para os seus representantes, perante o eleitorado. É o que se constata, de imediato,
por exemplo, da leitura conjunta dos arts. 53, 55 e 56 da Constituição brasileira.
Como reação aos princípios da soberania nacional, Constituições modernas volta
ram-se para o mandato imperativo, buscando vincular, juridicamente, o eleitorado
aos seus representantes, podendo estes scr afastados do cargo pelos próprios elei
tores. Assim fizeram algumas Constituições modernas, que, embora desaparecidas,
são recentes, como a da extinta União Soviética e, ainda em vigor, a de Cuba.
Se, para alguns, a soberania pode ter por fundamento o povo (Rosseau) ou a
nação (Siéyès), há quem afirme que a soberania pertence ao próprio Estado, como
o fazem Georg Jellinek e Hans Kelsen. O Estado precede o Direito; este é criado
por aquele. Só há um Direito: o Direito Positivo, criado e imposto pelo Estado. Não
existe, portanto, um direito natural e, mesmo, um Direito Internacional, em face da
ausência da coercibilidade, inerente à norma de direito positivo, estatal. Depreen
de-se disso que não há limitação ao poder do Estado.
Vale notar que a soberania é una e indivisível, características que lhe são es
senciais.
Em princípio, a soberania é una porque não pode existir mais de um poder
soberano num mesmo Estado. Se o adjetivo “soberano” significa “supremo”, “su
perior”, como admitir duas entidades “soberanas”, concomitantemente, numa mes
ma sociedade política? A indivisibilidade da soberania é corolário de sua unidade.
Como adverte Sahid Maluf, o poder soberano delega atribuições, reparte compe
tências, mas não divide a soberania. Não há que falar, portanto, em poderes do Es
tado, como na célebre tripartição de Poderes que nos vem de Aristóteles a Montes-
quieu, e que se consagra na Constituição brasileira, art. 2°. Não há, em verdade,
três Poderes, mas três órgãos, cada qual atuando, de forma soberana, na esfera de
sua competência.
4.3.3) A doutrina da soberania limitada
Trata-se de uma doutrina formulada pela União Soviética, durante a chama
da “Guerra Fria” conseqüência imediata da Segunda Guerra Mundial, caracteriza
da por uma tensão permanente entre os dois grandes blocos ideológicos vencedo
res, o comunista soviético e o capitalista ocidental. A ideia de soberania “limitada”
foi afirmada pelo líder soviético Leonid Brezhnev em 1968, por ocasião da invasão
militar da Checoslováquia pelas tropas soviéticas, consistindo, basicamente, no rí
gido controle político dos Estados socialistas “satélites” da hoje extinta União So
viética, que fruiriam de uma liberdade ou soberania meramente relativa, para evi
tar a desintegração do império soviético. Na verdade, a doutrina de Brezhnev foi,
simplesmente, uma reação contra a chamada Doutrina Truman, divulgada em mar
ço de 1947, pelo próprio Truman, no Congresso norte-americano, e que preconi
zava a intervenção dos Estados Unidos naqueles Estados que, apoiando a política
3 0 Estado 57
norte-americana, estivessem ameaçados por minorias ativistas paramiiitares pró-
soviéticas.
4.3.4) Globalização e soberania
O fenômeno da globalização da economia mundial se expressa na abertura
dos mercados, no livre comércio, na eliminação de barreiras fiscais em favor deste,
no fluxo internacional de capitais, no fortalecimento das empresas multinacionais,
na internacionalização da tecnologia e, mesmo, no notável incremento do turismo
internacional. Como observa Rodrigo Borja, nesta nova ordem econômica interna
cional o capital criou sua própria “soberania”. Com efeito, o capital, especialmen
te o especulativo, move-se com espantosa rapidez e total liberdade, escolhendo os
Estados que adotará como fonte de renda. Conforme suas conveniências, em ques
tão de segundos salta as fronteiras dos Estados, emigrando cm busca de maior lu
cro. Quando um Estado deixa de oferecer condições vantajosas para este capital, é
imediatamente sancionado com a desinversão, formando-se o pânico nas suas bol
sas. Impossível evitar, então, a perda do controle de sua economia e criar alterna
tivas independentes da especulação internacional. Assim, forçoso reconhecer que o
poder político dos Estados vem a ser superado pela planificação econômica das
grandes empresas multinacionais, que dispõem da economia mundial em favor de
seus interesses, sem considerar as conveniências sociais (Enciclopédia de la políti
ca, México, Fondo de Cultura Econômica, 1997).
4.4) Ordem jurídica
Bibliografia: k e l s e n , Hans. Teoria pura do direito, São Paulo, Acadêmica, 1939. s a l -
v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 1984. t e l -
les j r ., Goffredo. O direito quântico, São Paulo, Max Limonad, 1985.
O homem é um ser social. Em sociedade, ele alcança seus objetivos individuais
e satisfaz sua tendência gregária, formando, a partir da célula familiar e o municí
pio, o próprio Estado, sociedade condicionante das demais e dotada de poder so
berano. Ao viver comunitariamente, entretanto, o homem não apenas age, mas tam
bém interage, passando por um processo de integração paulatina denominado
socialização, sendo disciplinado em suas relações de amizade, cortesia e, principal
mente, em suas relações jurídicas, estas garantidas pelo Estado. Assim, o poder po
lítico tem por missão principal ordenar a vida em sociedade, sendo seu fundamen
to, diga-se de passagem, manter a paz social. Disciplinando as relações jurídicas
58 Teoria Geral do Estado
entre as pessoas, o Estado ordena a vida humana, conferindo-lhe uma direção con
sagrada por determinada concepção dc ordem.
O vocábulo ordem traz consigo um radical antiquíssimo, de origem sânscri-
ta: ory que significa diretriz, rumo a seguir. Por isso, ele sempre está presente cm ter
mos análogos, conexos; por exemplo, oriente, orientar, nortear, formar, forma, con
tornar. Assim, ordem implica a ideia de forma, podendo ser definida como a unidade
na multiplicidade ou a conveniente disposição de elementos para a realização de
um fim.
E como o Estado ordenaria, coativamente, a vida em sociedade? Mediante a
imposição de normas jurídicas. E o que é uma norma? Norma é uma diretriz de
conduta socialmente estabelecida. Quanto à norma jurídica, é uma diretriz dc con
duta socialmente estabelecida pelo direito positivo.
Curiosamente, o vocábulo norma, de origem latina, significava régua, esqua
dro, algo que é direito, reto, e não sinuoso, incerto.
No direito romano, o jus positum era o direito criado pelo Estado e, portan
to, posto, imposto, positivo. Daí direito positivo, isto é, direito imposto, norma es
tatal dotada de cocrcibilidadc.
Veja-se que o termo norma traz, como não poderia deixar dc ser, o mesmo ra
dical sânscrito or, encontrado na palavra ordem, daí a analogia. Para que haja or
dem, é preciso que existam normas que definam o que pode e o que não pode ser
feito ou deixado de fazer. Se observarmos, com atenção, quantas normas, das mais
variadas naturezas, cumprimos durante nosso cotidiano, ficaremos impressionados.
Normas de polidez, de afeto, de caráter religioso e, principalmente, jurídicas. Es
tas, já se disse, são dotadas de coercibilidade, vale dizer, possibilidade do emprego
da violência física (vis materialis), pelo Estado, para que alguém faça ou deixe de
fazer algo, restando evidente que a coerção somente pode ser exercida quando au
torizada pela norma jurídica, por exemplo, a legítima defesa.
Coercibilidade deriva de coerção, violência corporal, ao contrário de coação
(coatividadc), que denomina a pressão meramente psicológica, por exemplo, a sim
ples ameaça.
Não houvesse ordem jurídica e teríamos o caos, a desordem.
Alguns filósofos do Direito não admitem a existência da desordem, pois sen
do o conceito de ordem eminentemente subjetivo, ideológico, a desordem seria, tão
somente, uma ordem inconveniente.
Não foi sem razão que Aristóteles, o grande filósofo da Antiguidade Clássica,
afirmou que, “onde houver sociedade haverá direito” (ubi societas ibi jus). Viven
do em sociedade, os homens poderão dispensar uma série de bens úteis, mas não
essenciais; entretanto, não poderão, jamais, dispensar a ordem jurídica. Mesmo os
regimes políticos mais despóticos e injustos não podem deixar de se amparar num
mínimo de legalidade; em caso contrário eles próprios naufragariam na desordem
e na insegurança. Então, deve haver uma ordem imposta na vida em sociedade.
3 0 Estado 59
Um dos maiores teóricos do absolutismo monárquico, o inglês Thomas Hobbes,
enfatizava, no seu livro célebre intitulado Leviatã, que o homem é lobo do próprio
homem (horno homini lupus), vale dizer, o ser humano é perverso por índole, e seu
instinto pernicioso somente pode ser controlado por um poder político severo, am
parado numa ordem jurídica férrea.
Esta ordem se formaliza, toma forma de normas jurídicas. Pois bem, todas as
normas jurídicas de uma ordem jurídica consistem no elemento multiplicidade, que,
como vimos, integra o conceito de ordem. Mas é preciso que haja outro elemento
neste conceito, qual seja, a unidade, fornecido pela razão. Já se percebe que a ordem
jurídica é uma estrutura. O que vem a ser, entretanto, uma estrutura? É uma dispo
sição harmoniosa das partes para a realização do todo. Várias notas musicais emi
tidas ao léu não formam, necessariamente, uma melodia pois, embora formando o
elemento multiplicidade, carecem de unidade até que o compositor lhes dê uma dis
posição estética conveniente. Vejam a paleta na qual um pintor derrama suas tintas,
a fim de iniciar a pintura da paisagem que contempla. Essas tintas estão em desali
nho; formam uma multiplicidade que não satisfaz, por si só, o artista. Mas quando
elas forem dispostas, convenientemente, na tela em branco, teremos, sem dúvida,
complementado o conceito de ordem, dc estrutura. Ora, a ordem jurídica é uma es
trutura análoga a uma estrutura musical ou plástica, mas não idêntica. Sim, a or
dem jurídica não é idêntica às demais estruturas, pois possui uma característica que
lhe é essencial e que, portanto, a distingue das outras: a hierarquia entre suas partes
(normas) integrantes. As normas jurídicas de uma ordem jurídica não estão no mes
mo plano de eficácia, de força; estão, isto sim, dispostas hierarquicamente, sob o im
pério da Constituição. Qual o fundamento desta ideia?
Se abrirmos uma coletânea de legislação e a analisarmos detidamente, vere
mos que ela apresenta uma estrutura, uma ordem que pareceu conveniente ao le
gislador. Cada um dos dispositivos se relaciona, direta ou indiretamente, com os
demais. Inicialmente, um preâmbulo, contendo epígrafe, parágrafos, incisos e alí
neas, tudo disposto harmoniosamente, ordenadamente. O complexo de normas ju
rídicas em vigor numa sociedade não sc acha disposto mecanicamente, mas sim de
modo organizado, ordenado, formal. As normas jurídicas não sc acham soltas, iso
ladas umas das outras; umas dependem de outras, umas complementam outras. A
ordem jurídica é uma estrutura, um conjunto harmônico, orgânico, e não mera
soma de partes simplesmente justapostas, em desconexão. Assim, a ordem jurídica
bem se assemelha às notas de uma melodia, à disposição ordenada dos capítulos
de um livro. Ela possui, contudo, uma característica sui generis: a hierarquia entre
as normas. Uma norma só é válida se não conflitar com a ordem jurídica da qual
faz parte. Uma lei, um contrato, uma sentença judicial somente são válidos se esti
verem em conformidade com os demais diplomas legais. Foram Hans Kelsen e Adolf
Merkel que interpretaram a ordem jurídica como uma pirâmide escalonada, no
topo da qual se acha a Constituição. Desta derivam todas as demais normas, sem
60 Teoria Geral do Estado
pre hierarquicamente. Assim, a Constituição não pode ser ferida por uma lei ordi
nária, nem um decreto regulamentar pode dispor de modo contrário à lei que ele
próprio está regulamentando. Numa passagem de grande vigor intelectual e de cla
reza, Hans Kelsen (1939, p. 60-1) sintetiza seu pensamento a respeito:
O Direito, como ordem - a ordem jurídica - é um sistema de normas jurídicas.
E a primeira pergunta a que é preciso responder, formula-a a Teoria Pura do Direito
pela maneira seguinte: o que é que estabelece a unidade de uma pluralidade de nor
mas jurídicas? Por que razão uma determinada norma jurídica pertence a um certo sis
tema dc Direito? Uma pluralidade dc normas constitui uma unidade, um sistema, uma
ordem, se a sua validade puder ser referida a uma norma única como último funda
mento dessa validade. Essa norma fundamental constitui, como última fonte, a unida
de da pluralidade de todas as normas que constituem uma ordem. E se uma norma
pertence a uma determinada ordem, é porque a sua validade pode ser referida à nor
ma fundamental dessa ordem. Conforme a espécie de norma fundamental, isto é, con
forme a natureza do princípio de validade, podemos distinguir duas espécies de ordem
(sistemas normativos). As normas da primeira valem por si, quer dizer, a conduta por
elas prescrita ao homem impõe-se pelo seu conteúdo, o qual possui uma determinada
qualidade, de evidência imediata, que lhes confere essa validade. E as normas obtêm
esta qualificação concreta pelo fato de estarem relacionadas com uma norma funda
mental, a cujo conteúdo está submetido o conteúdo das normas constitutivas da or
dem em questão, como o particular se subsume ao geral. São desta espécie as normas
da moral. Por exemplo, as normas “não deves mentir”, “não deves enganar”, “deves
cumprir tuas promessas” etc. derivam da norma fundamental da veracidade. Suponha
mos a seguinte norma fundamental: “deves amar o próximo”; podemos referir-lhe uma
enorme quantidade de normas derivadas: “não deves prejudicar os outros”, “deves au
xiliar o teu próximo em caso de necessidade” etc. Não nos interessa saber, aqui, qual
é a norma fundamental de um determinado sistema de moral. Trata-se, na verdade, de
compreender que as diversas normas da moral já se acham compreendidas numa nor
ma básica, da mesma maneira que o particular está contido no geral e que, por isso,
todas as normas particulares da moral podem fazer-se derivar, mediante uma opera
ção lógica, da norma fundamental, procedendo a uma dedução do geral para o parti
cular.
As normas jurídicas criadas pelo Estado são incontrastáveis, somente limita
das por outra norma estatal. Essas normas jurídicas, cuja fonte é o Estado, formam
um todo denominado direito positivo, isto é, o direito impositivo, posto, imposto,
enfim. O conjunto de todas as normas jurídicas no Estado chama-se, então, direi
to objetivo. Direito objetivo é o conjunto de todas as normas jurídicas em vigor no
Estado; são normas de direito objetivo a Constituição, o Código Civil, os contra
tos e os atos administrativos. Porém, é preciso fazer uma distinção: somente a Cons
3 0 Estado 61
tituição, o Código Civil, o Código Penal e outras leis oriundas do Estado formam
o direito positivo. Todas as normas jurídicas são de direito objetivo, mas somente
as normas jurídicas provenientes do Estado são normas de direito positivo, porque
se impõem a todas as outras.
4.5) Causa final: o bem comum
Bibliografia: b i g o , Pierre. A doutrina social da Igreja, São Paulo, 1969. c a b r a i . d f .
m o n c a d a , Luís. Problemas de filosofia política, Coimbra, Armênio Amado, Sucessor,
1963. d a l l a r i , Dalmo dc Abreu. O futuro do Estado, São Paulo, Moderna, 1980. d u -
v e r g e r , Mauricc. Os regimes políticos, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966.
f e r r e i r a f i l h o , Manoel Gonçalves. A democracia possível, São Paulo, Saraiva, 1979;
e Curso de direito constitucional, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 1982. g a l v Ão , Paulo
Braga. Os direitos sociais nas constituições, São Paulo, 1981. k e l s e n , Hans. Teoria
pura do direito, Coimbra, Armênio Amado, Sucessor, 1979. l a s k i , Harold J. O mani
festo Comunista de Marx e Engels, Rio de Janeiro, Zahar, 1978. m o n t e s q u i e u . Oeli
vres completes, Paris, Hachette, 1859. p i o x i . Encíclica Quadragésimo Anno, 3. ed.,
São Paulo, 1981. r u i t e n , O. P. Ci. C. A doutrina social da igreja segundo as encíclicas
Rerum Novarum e Quadragésimo Anno, São Paulo, 1946. s a l v e t t i n e t t o , Pedro.
Curso de teoria do Estado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981. s o u z a , José Pedro Gal-
vão de. Conceito e natureza da sociedade política, São Paulo, 1949. t e l i .f.s j r . Goffre-
do. O direito quãntico, 6. ed., São Paulo, Max Limonad, 1985.
Bem é tudo o que seja objeto do desejo humano. As coisas não constituem
bens em si mesmas, sendo necessário que se lhes atribua um valor. Que é valor? É
a importância que se atribui a um bem. Neste sentido, elucida o professor Goffre-
doTclles Júnior:
De fato, a palavra valor quando empregada corretamente, em seu sentido pró
prio, não designa a essência e a existência de coisas. Uma coisa não pode ser um va
lor. Não se pode dar a uma coisa o nome de valor, a não ser que se falsifique o senti
do da palavra valor. Quando dizemos os valores estão no cofre, o que realmente
queremos dizer é que os bens de valor estão no cofre. Nem mesmo seres ideais podem
ser valores. A santidade (ou o santo), por exemplo, não e um valor. Afirmar que a san
tidade é um valor e o mesmo que afirmar que uma joia e um valor. Mas uma joia não
é um valor. Ela e um bem. É um bem a que se atribui valor. É uma coisa valiosa. Igual
mente, a santidade é um bem de valor. Mas não é um valor em si. A santidade tem va
lor, mas somente para quem vê nela um ideal de vida, um ideal mais alto do que os ou
tros ideais.
62 Teoria Geral do Estado
Ora, a valoração dos bens varia no tempo e 110 espaço. Os valores sociais têm
uma existência histórica, não são perpétuos nem imutáveis numa mesma socieda
de, alterando-se conforme o ensejarem novas circunstâncias. Cada sociedade, em
diferentes épocas, adota uma tábua de valores c, desta formulação, concebe e ado
ta as normas jurídicas c morais. A norma jurídica não se origina apenas do fato e
da inteligência, pois, quando o intelecto valora um fato, o faz com fundamento nos
valores adotados pela comunidade.
A moral social, tida como o conjunto dos valores sociais, confunde-se com a
concepção do que é justo em determinada sociedade. Tal concepção chama-se con
senso social. Não é difícil depreender, então, que nem sempre a ordem jurídica é
justa, embora seja, necessariamente, legal. A ideia de justo ou de legitimidade de
uma ordem jurídica fundamenta-se no consenso social. A norma jurídica, essencial
mente legal, somente será legítima se estiver conforme o consenso social. Embora
a ordem jurídica tenha por objetivo final o bem comum, consubstanciado 11a ideia
de justo, nem sempre tal finalidade é alcançada, pois, justa ou injusta, nem por isso
a norma jurídica, enquanto válida, deixa de ser legal.
Conclui-se dessa breve digressão introdutória que o conceito de bem comum
varia no tempo e no espaço. Causa final da sociedade política, o bem comum deve
ter como objetivo a plena realização espiritual e física do homem. O Estado não é
mais do que um meio de realização do bem comum, e para tanto deve atuar inci
sivamente, sem ferir, contudo, a liberdade e a iniciativa individuais, caso contrário
cairíamos no totalitarismo, mesmo porque, se a concepção totalitária de bem co
mum supera, inquestionavelmente, a visão limitada do individualismo, o preço a
ser pago por essa superação é de tornar cada ser humano mera parcela do todo so
cial, puro instrumento de um todo. Por outro lado, houve época, mais precisamen
te o século XVIII, em que o bem comum foi definido como a ordem jurídica, como
sinônimo de paz social. Sim, bem comum era, então, a mera conservação da ordem
social. Estávamos, na oportunidade, em pleno apogeu do Século das Luzes, perío
do de esplendor do Iluminismo, doutrina que, como o próprio nome revela, pre
tendeu libertar o homem “das trevas da superstição medieval”, mostrando-se o reto
caminho das luzes da razão. Foi aquele o século do racionalismo, que culminaria
na Revolução Francesa, e também do individualismo e do cidadão abstrato.
4.5.1) 0 libera lismo e 0 bem comum
Absoluta e unanimemente, todos os sistemas políticos se declaram adeptos da
liberdade individual. Infelizmente, o conceito de liberdade não é unívoco; ele varia
com o tempo. Há uma liberdade de tempos de guerra que não é, absolutamente, uma
liberdade de tempos de paz; há uma liberdade de época de fartura que não é, evi
dentemente, a mesma liberdade de tempos de escassez. Enormes divergências entre
os homens residem, com certeza, 11a disparidade das interpretações da liberdade.
3 0 Estado 63
Aquilo que para uns é liberdade, para outros é exatamente o oposto desta. Aliás, a
renúncia à liberdade c, para alguns, a suprema liberdade. No campo da doutrina, a
essência da liberdade também está longe de ser revelada.
Observa, acuradamente, o grande Montesquieu, que não há palavra que te
nha mais acepções e que tenha tanto impressionado os espíritos como a palavra li
berdade. Cada homem denomina liberdade ao governo que mais sc ajusta aos seus
costumes e inclinações pessoais; porém, é mais freqüente que a coloquem os povos
na república, não a percebendo nas monarquias, porque naquela não têm, sempre,
diante de seus olhos, os motivos de seus males. Afinal, como nas democracias o
povo tem mais facilidade para fazer quase tudo o que deseja, colocou a liberdade
nos governos democráticos e confundiu o poder do povo com a sua liberdade.
Afirma, ainda, que é verdade que, nas democracias, o povo, aparentemente,
faz o que deseja. A liberdade política, porém, não significa fazer o que se quer. Em
qualquer Estado, em qualquer sociedade dotada de leis, a liberdade consiste em po
der fazer o que se deve querer e em não ser obrigado a fazer o que não se deve que
rer. É preciso distinguir, prossegue, entre independência c liberdade. A liberdade é
o direito de fazer o que as leis permitem, e, se cada um dc nós pudesse fazer o que
as leis proíbem, não haveria mais liberdade, porque todos teriam o mesmo poder.
Hans Kelsen, criador da célebre teoria pura do direito, definiu, num primeiro
momento de sua vida, a liberdade como a ausência de quaisquer laços obrigatórios
para o indivíduo, posição esta reformulada mais tarde, quando passou a ver na li
berdade política uma autodeterminação conseguida pela participação do indivíduo
na criação da ordem social. Outro eminente publicista francês, Léon Duguit, defi
nia a liberdade como o poder que pertence ao indivíduo de exercer e desenvolver
sua atividade física, intelectual ou moral, sem que, com isso, o Estado lhe possa de
terminar outras restrições senão aquelas necessárias à proteção da liberdade de to
dos. Ainda assim, a exemplo de Kelsen, Duguit mudaria, mais tarde, sua concep
ção de liberdade, redefinindo-a em forte matiz socialista, declarando que cada vez
mais o Estado faz penetrar em seu ordenamento jurídico o elemento socialista. Tal
postura revela bem a intervenção do poder político no domínio econômico-cultu-
ral, a fim de impedir que a liberdade dos fracos seja sufocada pela liberdade de uma
minoria, proporcionando, ademais e a todos, um nível de vida que ofereça um mí
nimo de decência aos menos favorecidos. Já para Harold Laski, a liberdade será
inatingível até que a paixão da igualdade seja satisfeita. Georg Jellinek afirmou, por
sua vez, que a vida do gênero humano gira, perpetuamente, em torno de dois valo
res: indivíduo e coletividade. O equilíbrio entre ambos ainda não foi alcançado:
ora predomina um, ora outro. Silva Telles, publicista pátrio, afirma que as duas
ideias essenciais da democracia, liberdade e igualdade, assim como foram apresen
tadas pelos pensadores da era do lluminismo e assim como se desenvolveram na
teoria política das ideologias modernas, são dois conceitos que, na prática, se hos
tilizam e se excluem. A liberdade - prossegue - possibilita o desenvolvimento das
64 Teoria Geral do Estado
diferenças entre os homens, e estes, dotados de inclinações diversas e deixando-se
plasmar por perspectivas diferentes, criarão condições em que alguns poucos do
minarão os muitos, e estes, dominados, deixarão de ter a liberdade apregoada. O
resultado de certa concepção dc liberdade, então, é a desigualdade econômica. Dian
te da pressão social, o Estado intervém para nivelar as condições de vida; interfe
rindo, ofende a liberdade dc alguns ou dc muitos c, quanto mais procura impor a
justiça igualitária, mais reduz a liberdade, até suprimi-la de vez.
Não é à toa que o individualismo excessivo acarreta males gravíssimos para
a vida em sociedade, propiciando tiradas muito bem postas, como esta: “O Estado
que quisemos fraco demais para não nos oprimir foi também fraco demais para
nos defender”, de Bossuct. Ou esta outra: “Entre o fraco e o forte, a liberdade opri
me e a lei liberta”, de Lacordaire. Lenin, o grande revolucionário inspirador da re
volução socialista da Rússia, costumava dizer: “A liberdade é um bem tão precio
so que deve ser racionada”.
Crítica bem posta, consciente e esclarecedora é a formulada pelo eminente ju-
risfilósofo Cabral de Moncada, cm preciosa síntese:
São conhecidos os excessos a que conduziu o liberalismo econômico e político,
justamente pelos meados do século XIX: o egoísmo desenfreado dos chefes de empre
sa; o seu espírito de lucro insaciável; a baixa constante dos salários a um nível incom
patível com toda a dignidade da vida humana; o desemprego das multidões proletá
rias, com a destruição, por vingança, das máquinas da indústria algodoeira em Inglaterra;
o trabalho desumano das mulheres c das crianças nas fábricas; o dia de trabalho das
doze c mais horas sem limite; as regulamentações artificiais do mercado pelos trusts c
grandes monopólios; a superprodução, as depressões econômicas; enfim, a imensa mi
séria das massas operárias entre os anos de 30 a 50 desse século. Tudo conseqüência
do individualismo econômico apoiado no seu poderoso aliado, o liberalismo político
da democracia reinante. Para se defender destas conseqüências, a democracia viu-se
obrigada a procurar uma ideia nova que lhe servisse de base. Era preciso deslocar ago
ra o acento tônico da ideia de liberdade para outro elemento. E a ideia nova para a
qual ficava agora aberto o caminho, que era preciso também hipostasiar e sublimar,
como antes se fizera com a de liberdade, era a da igualdade - a outra irmã gêmea da
liberdade e, no dizer de Herculano, afinal a mais forte paixão da democracia. Mas ago
ra uma igualdade, não de pura teoria, mas de verdade.
Para Dallari, a própria afirmação de que a liberdade de cada um termina onde
começa a de outro é inaceitável, pois as liberdades dos indivíduos não podem ser
tomadas isoladamente e colocadas uma ao lado de outra, uma vez que, na realida
de, acham-se entrelaçadas e necessariamente inseridas no meio social.
Claro que existem várias espécies no gênero liberdade: liberdade política, li
berdade pessoal, liberdade econômica, liberdade religiosa, liberdade de reunião etc.
3 0 Estado 65
É inegável, porém, que a liberdade política - que foi, até agora, a tratada neste ca
pítulo - é a mais ampla de todas e que, ipso facto, compreende muitas liberdades,
despertando, em razão disso, um interesse mais incisivo do leitor. E à liberdade po
lítica que o filósofo Karl Jaspers se refere, ao dizer: a liberdade começa com a vi
gência dc leis registradas do Estado em que se desenvolve. Esta liberdade se chama
liberdade política e o Estado em que ela existe se chama Estado dc Direito. Referi
do Estado é aquele em que as leis não podem ter vigência nem ser modificadas se
não por via legal. Esta via legal depende do povo, de sua cooperação e participa
ção direta ou indireta, por intermédio de representantes periodicamente substituídos
em eleições livres e sinceras. Já se disse até, com Royer-Collard, ser a liberdade a
coragem de resistir...
Já percebe o leitor a dificuldade existente na formulação de um conceito uni
forme de liberdade, válido para todas as épocas e todos os lugares.
Reagindo contra o absolutismo monárquico (deturpação do exercício legíti
mo do poder e, portanto, da autoridade), a Revolução Francesa destruiu o concei
to tradicional dc poder político, exaltando o indivíduo em detrimento do social.
Na verdade, a liberdade apregoada pelo liberalismo era uma liberdade sem pers
pectivas, sem fundamento na própria natureza humana, pois colocava o indivíduo
contra o Estado, transformado este em mero fiscal da manutenção da ordem pú
blica, enquanto os desajustes econômicos se agravavam.
Tal liberdade era, ainda, um fim em si própria, e não um meio para o aperfei
çoamento do homem. A liberdade não é o valor supremo da vida humana; ela pres
supõe sempre uma razão que a justifica. Por outro lado, a vida em sociedade, ine
rente à natureza do homem, impõe restrições aos possíveis excessos das liberdades
civis e políticas. Não foi sem fundamento que Montesquieu - corifeu do liberalis
mo - definiu a liberdade como o direito de fazer aquilo que as leis permitem.
A concepção de liberdade do liberalismo acabou por se autodestruir. O exces
so de livre-concorrência gerou a exploração dos fracos pelos fortes e, com esta, a
formação de um capitalismo monstruoso e a proletarização dos produtores, todas
estas, paradoxalmente, condições propícias para o aparecimento dos totalitarismos
e do socialismo exacerbado.
Como acentua com muita clareza Dalmo de Abreu Dallari, no século XVII a
afirmação da necessidade de liberdade foi feita em favor dos que já eram dotados
de poder econômico. Por esse motivo entendia-se que bastava impedir a interferên
cia do poder público para que os indivíduos fossem livres. Nas sociedades indus
triais do fim deste século XX, contudo, o principal inimigo da liberdade individual
nem sempre é o Poder Público. Com frequência um indivíduo muito rico ou um
poderoso grupo econômico reduz seriamente a liberdade de muitos indivíduos, ou
até de um povo inteiro, por meio da dominação econômica, havendo mesmo inú
meros casos em que o Poder Público se vê subjugado e inteiramente controlado por
grupos econômicos. Em razão disso, prossegue o autor citado, não se pode colocar
66 Teoria Geral do Estado
o controle do Poder Público de um Estado como necessário e suficiente para garan
tir a liberdade dc todos os indivíduos. Muitas vezes é indispensável o fortalecimen
to do Poder Público para impedir que os economicamente fortes reduzam a liber
dade dos economicamente fracos e estabeleçam uma profunda desigualdade entre
os indivíduos. Além disso, finaliza, a experiência tem demonstrado que a simples
declaração dc que todos são livres torna-se completamente inútil sc apenas alguns
puderem viver com liberdade. Ademais, é necessário corrigir o sentido egoísta da
liberdade individual. Se todos os homens são livres e iguais e se os homens não vi
vem isolados uns dos outros, é preciso que a convivência, a repartição dos bens e
o acesso aos benefícios da vida social não permitam grandes desníveis.
Enfim, o liberalismo fez da liberdade ilimitada o valor supremo do ideal de
mocrático, ao sustentar que o melhor meio de realizar a felicidade do homem é do
tá-lo da maior liberdade possível, sendo o Estado mero coordenador desta liberda
de. Por outro lado, partindo da premissa de Emmanuel Kant, de que a finalidade
do Direito Objetivo não seria mais do que realizar a coexistência dos Direitos Sub
jetivos, vale dizer, restringindo-se a limitar a liberdade dc cada um ao mínimo exi
gido pela sociedade, o liberalismo consagrou a escola clássica do Direito Natural,
ou seja, o homem seria dotado dc direitos imprescritíveis, anteriores ao surgimen
to da própria sociedade, direitos estes ditados pela própria natureza, por isso na
turais. Referidos direitos transcenderiam a própria lei escrita, seriam direitos abso
lutos que o Estado deveria reconhecer e preservar. Os seguidores dessa escola não
levaram em conta que o direito tem seu fundamento na própria sociedade; o ho
mem isolado é mera abstração, não existe juridicamente, porque despojado de di
reitos e deveres. Com efeito, o direito só frutifica no relacionamento humano, e este
pressupõe a sociedade. Por outro lado, a concepção eminentemente individualista
da sociedade ensejaria a própria eliminação dos mais fracos pelos mais fortes, acen
tuando as desigualdades naturais e, por via de conseqüência, as desigualdades so
ciais.
4.5.2) Concepção socia l do bem comum
Os erros do liberalismo acarretaram, embora tardiamente, uma série de pro
vidências por parte do Estado, que, de mero espectador do drama humano que sua
passividade havia desencadeado, se tornou um organismo dinâmico, atuante e in-
tervencionista. A mera legalidade, apanágio da liberal-democracia, cedeu espaço ao
moderno Estado de justiça, que, à luz de três metas políticas, jurídica e social, bus
ca reequilibrar a vida em sociedade, dando ênfase à igualdade e restringindo os ex
cessos da liberdade. Por isso, Alexis de Tocqueville já previra, com muita proprie
dade, que a liberdade é um valor destinado a oferecer seus benefícios apenas de
quando em vez, ao passo que as vantagens da igualdade brilham, diuturnamente,
com esplendor incomparável. Seria trágico, porém, adverte, antever a possibilidade
3 0 Estado 67
de efetivação de uma sociedade estandardizada, na qual todos vivessem e pensas
sem da mesma forma, sob o acicate de um poder irrestrito.
É inegável que o valor igualdade atrai, hoje, muito mais do que o valor liber
dade, na ânsia dc correção dos desajustes sociais. O adjetivo social tornou-se uma
palavra mágica; a democracia passou a ser muito mais atraente quando adjetivada
dc social. A própria doutrina da tripartição dc Poderes, oriunda dc Aristóteles e de
Cícero, bem como de Locke e, depois, definitivamente sistematizada por Montes-
quieu, foi colocada em questão no Estado contemporâneo. Tal doutrina, baluarte
na luta contra a concentração do poder num órgão apenas, sofreu um abalo mui
to grande com o desenvolvimento da tecnologia. Como acentua Silveira Neto, se o
uso da pólvora liquidou o sistema das guerras medievais, o uso dos computadores
revolucionou a administração moderna. Todos os governos procuram adaptar-se
às novas circunstâncias sociais. O reforço do Poder Executivo é, hoje, universal.
Fruto disso é a delegação legislativa, hoje freqüentíssima e inevitável, ás ocultas ou
ãs escancaras, como bem frisa Ferreira Filho. O crítico mais mordaz do princípio
da tripartição dc poderes, Mareei dc La Bignc de Villcncuvc, que se batia tenazmen
te pela unidade c unicidade do poder estatal, tornou-se mais atual do que nunca.
Quando o Welfare State substituiu o État gendarme, adverte Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, o Estado iniciou a sua atividade interveniente na vida econômica
dos indivíduos, em busca do bem-estar social. O caráter essencialmente técnico de
muitas decisões e a inconveniência do debate público, pertinente a certos assuntos,
conduziram os parlamentos ao dilema de paralisar sua atividade ou delegar pode
res, sendo acolhida, é claro, esta última alternativa. O Executivo, órgão capaz de
decisões mais rápidas, em razão de sua própria estrutura, passou a ter, então, preemi-
nência notável. Novas tarefas ingressaram em sua esfera de ação; outras, de sua
competência, foram substancialmente ampliadas, como a criação e a gerência de
serviços assistenciais.
Os Estados em desenvolvimento, mais do que os outros, sentiram os reflexos
dos novos tempos. A concepção secularmente arraigada do elemento político tor
na-se menos importante que o elemento econômico. A ideia do governante super-
gerente, êmulo do executivo das empresas privadas, começa a substituir a figura do
estadista convencional.
Mesmo nos Estados Unidos da América, como acentua Duverger, o interven
cionismo estatal foi ignorado durante um século e meio porque o Estado represen
tava um papel secundário, numa comunidade em que o liberalismo econômico,
triunfante, dava aos chefes de indústria o poder real. Por outro lado, o mundo nor
te-americano, isolado dos demais povos, dos quais não necessitava intensamente,
podia dar-se ao luxo de cometer seus erros ao abrigo de suas riquezas. Durante
anos o talento de Roosevelt ocultou um mal que, com sua morte, veio bruscamen
te à luz: o sistema governamental norte-americano pareceu não estar mais à altu
ra das novas tarefas político-econômicas. Percebeu-se que o Estado deve, hoje mais
68 Teoria Geral do Estado
do que nunca, intervir, com ou sem vontade, na vida econômica e social, além de
definir e aplicar uma política exterior e manter um exército formidável.
Como acentua Salvetti Netto, as profundas alterações ocorridas nas estrutu
ras sociais motivaram a revisão do conceito de democracia e de representação. De
um lado, a liberdade continua a ser valor transcendente do ideal democrático; dc
outro, o fator econômico motivou a hipertrofia do Estado moderno; à liberdade
agregou-se a igualdade. Em oposição ao cidadão abstrato, livre por excelência, sur
ge o homem concreto, o operário, o homem do cotidiano, com seus problemas e
sentimentos.
O governo democrático, afirma Salvetti Netto, nos tempos atuais, só atinge
seus fins quando logra realizar o bem-estar da comunidade. E regime muito mais
de conteúdo que de forma.
Logo após a Primeira Grande Guerra, surgem os direitos sociais, tutelados nas
mais avançadas Constituições da época.
A Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar em 1919 pre
viram direitos sociais, numa autolimitação do poder do Estado que evocava para
si deveres públicos subjetivos.
Em tal diapasâo, surgem em nossa Lei Magna de 1934 dispositivos referen
tes à matéria, com o título “Da Ordem Econômica e Social” (arts. 115 e 143), se
guida pela Constituição de 10.11.1937, que dispunha sobre a ordem econômica
nos arts. 135 a 155, sendo a seguinte a redação do art. 135:
Art. 135. Na iniciativa individual, no poder de criação, dc organização e de in
venção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza c a pros
peridade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para
suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de
maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições in
dividuais o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado.
Por sua vez, o art. 136 dispunha o seguinte:
Art. 136. O trabalho é um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual
tem direito a proteção e solicitude especiais do Estado. A todos é garantido o direito
de subsistir mediante o seu trabalho honesto, e este, como meio de subsistência do in
divíduo, constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições
favoráveis c meios dc defesa.
A Constituição Federal de 18.09.1946 dispunha sobre o assunto nos arts. 145
a 162, também sob o título “Da Ordem Econômica e Social”, assim:
3 0 Estado 69
Art. 145. A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da
justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho hu
mano.
Parágrafo único. A todos ó assegurado trabalho que possibilite existência digna.
O trabalho e obrigação social, [grifo nosso]
A Constituição brasileira de 24.01.1967, com a Emenda Constitucional n. 1,
de 17.10.1969, estabelecia, em seus arts. 160 a 174, a respeito da ordem econômi
ca e socialy dispondo o art. 160 o seguinte:
Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento
nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios:
I - liberdade de iniciativa;
II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana;
III - função social da propriedade;
IV - harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção;
V - repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos
mercados, a eliminação da concorrência c o aumento arbitrário dos lucros; c
VI - expansão das oportunidades dc emprego produtivo, [grifo nosso]
A Constituição Federal vigente, promulgada em 05.10.1988, demonstra re
dobrada preocupação com a questão social, como se depreende de vários de seus
dispositivos (arts. I o, III e IV, 3o, 6o - direitos sociais - e 170). Assim:
Art. I o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Di
reito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa c solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, ida
de e quaisquer outras formas de discriminação.
70 Teoria Geral do Estado
Art. 6° São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança,
a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desam
parados, na forma desta Constituição.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre-concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de
pequeno porte.
Até a eclosão da Primeira Grande Guerra, as Constituições dos diversos Es
tados só se preocuparam com a organização política, exceção feita à Constituição
mexicana de 1917, preocupada com questão social.
Somente com a Constituição de Weimar de 1919 e a Constituição espanhola
de 1931, houve uma tendência mais acentuada para acrescentar ao texto político
fundamental os princípios destinados a reger o campo econômico-social, buscan
do assegurar, dessa forma, por meio do plano econômico e social, o desenvolvimen
to e a segurança das próprias instituições políticas.
Vimos como as Constituições brasileiras de 1934 e 1937 trataram do proble
ma, sofrendo o influxo de vários diplomas legais estrangeiros, como a Constitui
ção de Weimar e a Carta do Trabalho da Itália fascista. A Constituição de 1967,
emendada em 1969, parece defender o princípio de que a democracia não pode de
senvolver-se, a menos que a organização econômica lhe seja propícia.
Vale assinalar que, embora situadas em pé de igualdade no caput do art. 170
da Constituição em vigor, o desenvolvimento nacional e a justiça social devem ser
considerados, respectivamente, meio e fim; o desenvolvimento nacional não deve
ser um fim em si mesmo, porém um meio de se alcançar a justiça social.
Que vem a ser justiça social? Eis uma expressão de difícil delimitação. Divul
gada principalmente pela doutrina social da Igreja, mesmo nesta, ela é bastante di
vergente. Por outro lado, cumpre fazer algumas observações sobre o conceito dc
justiça. Do latim justitia, dc justus (de acordo com o direito, jus), a justiça foi defi
nida por Ulpiano assim: “Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cui-
que tribuendr. A indevida repetição desse conceito terminou por desgastá-lo, trans
3 0 Estado 71
formando-se na fórmula: “A justiça consiste em dar a cada um o que é seu”. Qual
o “seu” de cada um, porém? Para se poder dar a cada um o seu, seria preciso sa
ber, desde logo, o que pertence a cada um. Ora, o princípio de justiça é invocado
exatamente para dirimir a disputa entre partes que invocam aquilo que é seu. As
sim, o elegante princípio de Ulpiano não resolve o problema, pois deveria fornecer
um critério para dizer qual “seu” devemos dar a cada um. A verdade é que, se o
ideal do justo nasceu com a própria humanidade, a revelação da essência desse
ideal ainda não ocorreu. A concepção de justiça varia com as ideologias predomi
nantes em cada momento histórico, ora se assentando na liberdade, ora na igual
dade. Platão, por exemplo, concebia a justiça como um princípio que impunha de
terminada estrutura social, determinando a cada homem que se limitasse a fazer o
que lhe fosse atribuído. Platão compara o Estado a um ser humano e, delineando
as premissas do moderno organicismo, afirma que os homens são naturalmente de
siguais, cabendo aos filósofos o papel de cérebro da sociedade, de governo, enfim.
Aos militares e operários, respectivamente, pulmões e estômago da sociedade, ca
beriam, respectivamente, a segurança e o abastecimento do Estado. Essa divisão de
classes e funções deve ser rígida, inafastável, pois, sendo a justiça uma ideia de har
monia e unidade, como o corpo humano, os órgãos sociais devem restringir-se a
suas atribuições impostas pela natureza. Aristóteles, discípulo dc Platão, divide a
justiça em espécies: distributiva, equiparadora, comutativa e judicial. A justiça dis-
tributiva preconiza a distribuição das benesses sociais entre os membros da comu
nidade, observada uma igualdade proporcional, visto que a distribuição deve ter
como referencial o mérito de seus destinatários. A justiça equiparadora leva em
conta o intercâmbio dos bens, a prestação de serviços e as relações entre todos, pre
conizando a exata correspondência entre a coisa dada e a recebida. A justiça co
municativa leva em conta as relações contratuais entre as pessoas, estabelecendo a
equivalência entre o que se dá e o que se recebe como compensação. A justiça ju
dicial é aquela dada pelo juiz, exigindo paridade entre o dano e a reparação, o cri
me e a pena a este cominada. Como assevera J. Flóscolo da Nóbrega, a justiça é a
ideia, a representação abstrata do estado de pleno equilíbrio da vida social. Ora,
tendo como pressuposto um valor, a ideia dc justiça varia constantemente: o que
era justo para os antigos talvez não o seja para nós, embora possa voltar a sê-lo no
futuro. Não resta dúvida de que, modernamente, o valor predominante é a igual
dade, como a liberdade o foi por ocasião da Revolução Francesa.
Em nosso entender, será em Aristóteles que vamos encontrar o moderno sig
nificado da justiça social, quando afirma o princípio da justiça distributiva, pelo
qual a comunidade distribui, com cada um de seus membros, os bens, recompen
sas, honras, cargos e funções, observada uma igualdade proporcional ou relativa.
Princípio regulador das relações entre a comunidade e seus membros, o princípio
da justiça distributiva disciplina a fixação dos impostos, a assistência social ao ho
mem da cidade ou do campo, a aplicação de recursos da coletividade etc. Os ins
72 Teoria Geral do Estado
trumentos de que se serve a justiça distributiva são o direito administrativo, o di
reito fiscal, o direito do trabalho e a previdência social. A justiça distributiva, vale
lembrar, invoca a proporcionalidade na distribuição das benesses sociais, visto que
estas devem ser distribuídas conforme o mérito dc seus destinatários. Devem-se dar
coisas iguais aos iguais, e coisas desiguais aos desiguais; se as pessoas são desiguais,
não se deve dar-lhes coisas iguais. Eis a doutrina da isonomia, fixada no art. 5°, I,
da Constituição Federal.
Por outro lado, a virtude moral que tem por objetivo o bem comum é o que
Aristóteles chama de “justiça legal”. Para ele, justo legal é aquilo que o bem co
mum justifica e exige. Aqui é importante notar que o “legalmente justo” não é, no
pensamento aristotélico, aquilo que o positivismo denomina com tal fórmula. Para
Aristóteles, a lei não consiste simplesmente 110 mandado por aqueles que têm, a seu
encargo, a função governamental, mas em requerer a prudência (Ética a Nicôma-
co, X, 1.180/21), e a prudência implica a retidão moral da intenção, ou seja, a von
tade deve estar inclinada à realização do bem moral.
Modernamente, essa orientação de Aristóteles é de grande atualidade, tendo
em vista o papel cada vez mais dinâmico que o Estado vem desenvolvendo em face
das novas c múltiplas reivindicações sociais.
Para horror dos defensores intransigentes da tripartição e separação absolu
ta dos poderes políticos, preconizados por Montesquieu, o problema do reforço do
Poder Executivo tornou-se uma realidade cristalina. A delegação legislativa é hoje
prática correntia e inevitável “às ocultas ou às escancaras”, como acentuou Ma
noel Gonçalves Ferreira Filho, cm seu Curso de direito constitucional
Tal delegação, repudiada unanimemente pelos ideólogos da liberal-democracia,
colocou em xeque o caráter ideológico da chamada indelegabilidade de poderes.
Quando o Welfare State substituiu o État gendarme, o Estado passou a ter
uma missão de intervencionismo na vida econômica individual, em busca do bem-
estar social. Como o caráter eminentemente técnico de muitas decisões que deve
riam ser tomadas em tempo recorde, bem como a inconveniência do debate públi
co relativo a certas matérias, conduziu os parlamentos ao dilema de paralisar a
administração ou delegar poderes, foi imediatamente escolhida esta segunda alter
nativa. O Poder Executivo, órgão capaz, por sua própria estrutura, de decisões mais
prontas, passou a ter,, então, uma ascendência cada vez maior. Novas tarefas foram
atribuídas ao Poder F^xecutivo, e aquelas que já eram de sua competência foram
bastante ampliadas. Por exemplo, a criação e a gerência de serviços assistenciais.
Conforme acentua Duverger em sua obra Os regimes políticos, o intervencio
nismo estatal foi ignorado durante cerca de 150 anos nos Estados Unidos, porque
o Estado representava um papel apenas secundário, numa época em que o libera
lismo econômico triunfante dava aos chefes de indústria o poder real. Além disso,
a América, isolada de um mundo do qual não tinha necessidade, podia dar-se ao
luxo de cometer todos os erros ao abrigo de suas riquezas e de seus oceanos. Quan
3 0 Estado 73
do, por exemplo, o Senado se recusava a ratificar o Tratado de Versalhes, apenas a
Europa suportava as conseqüências. Modernamente, as condições sofreram uma
mudança. O Estado deve intervir, queiram ou não queiram os governantes, na vida
socioeconômica dos indivíduos.
O aspecto político torna-se ate menos importante que o econômico. O Esta
do que providencia o desenvolvimento não pode deixar dc ser preponderantemen
te empreendedor, alcançando o campo da iniciativa privada. A ideologia do gover
nante supergerente, tão eficiente quanto o executivo da empresa particular, acha-se,
em muitos Estados, em desenvolvimento, substituindo a do estadista tradicional.
Do exposto, conclui-se que o conceito de bem comum foi bastante alterado
com o surgimento de novas circunstâncias sociais. Como fruto do século XVIII, o
século do individualismo, o bem comum nada mais era do que a manutenção da
ordem pública pelo Estado, cuja função, meramente passiva, seria aquela de um
gendarme (policial) na sarcástica imagem de Ferdinand Lassalle. Na verdade, vão
longe os tempos da mera tutela da ordem jurídica pelo Estado, preconizada pelo
liberalismo clássico de Emmanuel Kant, John Locke e outros. Não basta a garan
tia dos direitos subjetivos para que o bem comum esteja alcançado. Não, a moder
na concepção de bem comum exige a ação do Estado, que deve renunciar ao seu
caráter passivo, peculiar a uma fase da História da humanidade, que não pode, no
mundo moderno, continuar a ter guarida. Para o exercício de suas funções sociais,
a iniciativa privada pode, às vezes, ser restringida, por exemplo, quando uma fá
brica que causa poluição é obrigada a minorar este mal ou encerrar suas ativida
des, quando ocorre a vacinação compulsória ou quando surgem restrições à frui
ção irrestrita da propriedade, em nome de uma função social da propriedade. O
Estado, portanto, deve transcender a mera legalidade e buscar, de forma ativa, a
justiça social. Em princípio, aliás, todo Estado é Estado de Direito, pois toda so
ciedade tem, essencialmente, seu direito, seu ordenamento jurídico, que poderá ser
justo, isto é, amparado no consenso social ou não. Entretanto, se todo Estado é Es
tado de direito, ao manter a legalidade pura e simplesmente, nem todo Estado de
direito será Estado dc justiça, que é o Estado que transcende a mera legalidade, dei
xando de ser o Estado gendarme, mero cão dc guarda da ordem pública, e que pas
sa a atuar, a agir, em três planos bem definidos:
a) plano político, ao manter sua segurança interna e externa;
b) plano jurídico, ao construir o Estado de justiça;
c) plano social, ao atender às necessidades assistenciais, previdenciárias e edu
cacionais da coletividade.
4 A CONSTITUIÇÃO
1) CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Bibliografia: f e r r e i r a f i l h o , Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, 11.
ed., São Paulo, Saraiva, 1982. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 4.
ed., São Paulo, Saraiva, 1981. SOUZA, José Pedro Galvão de. História do direito polí
tico brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1962. v i a m o n t e , Carlos Sanchez. El poder consti-
tuyente, Buenos Aires, Bibliográfica Argentina, s.d.
A palavra constituição vem do latim cum + stituto, constitutio, de constitue-
re (constituir, construir, edificar, formar, organizar). Tem como sinônimo o vocábu
lo compleição, que também contém a ideia de um todo formado, estruturado, orde
nado, isto é, dc unidade na multiplicidade. O corpo humano tem uma constituição,
uma compleição; não é ele, porventura, um organismo? Não nos referimos, às ve
zes, ao vocábulo constituição como a ordenação que preside a organização dos cor
pos físicos?
Assim, a palavra constituição apresenta sentidos análogos; ela pode ser toma
da em um sentido amplo; e em outro, estrito. Tomada num sentido amploy pode-se
dizer que todos os seres apresentam uma constituição que os identifica. Tomada cm
sentido estrito, a palavra constituição vai revelar o modo pelo qual uma sociedade
se estrutura basicamente.
Aristóteles conceituava a politeia (Constituição) como a ordem da vida em
comum naturalmente existente entre os homens de uma cidade ou de um territó
rio ou, simplesmente, a ordenação dos poderes do Estado.
74
4 A Constituição 75
Em termos jurídico-políticos, a Constituição é a lei fundamental do Estado,
lei que um povo impõe aos que o governam, para garantir-se contra o despotismo
destes, conforme doutrina Romagnosi.
No dizer dc Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a constituição em sentido jurídi
co pode ser entendida como o “conjunto de regras concernentes à forma do Esta
do, à forma do governo, ao modo de aquisição c exercício do poder, ao estabelecimen
to de seus órgãos, aos limites da sua ação”. Ou seja, a base fixada juridicamente da
organização política.
Segundo Pedro Salvetti Netto, a Constituição política estrutura a organização
do Estado, disciplina o exercício do poder político e discrimina a competência para
tal exercício, definindo-a como o “conjunto de normas que, estruturando a orga
nização do Estado, estabelece relações de natureza política entre governantes e go
vernados” ou, levando-se em conta o advento dos direitos sociais no mundo mo
derno, o “conjunto de normas que, estruturando a organização do Estado, limita
politicamente o exercício do poder e declara os direitos individuais e sociais e suas
respectivas garantias”.
“ Ubi societas ibi jus”, já dizia Aristóteles, ou seja, onde houver sociedade have
rá normas dc conduta, haverá Constituição. Da mesma forma que todos os seres
têm uma Constituição própria (causa formal), a fortiori a sociedade terá, por sua
essência, uma forma de organização. Ser eminentemente social, o homem agrega-se
a seus semelhantes organicamente, formando grupos sociais estruturados, sendo in
concebível, mera abstração, a concepção mecânica da sociedade. Pois bem, as or
ganizações sociais surgem, inicialmente, no seio da família, do clã, da tribo, até que
cheguemos ao Estado, a mais perfeita forma de convivência social. As normas cons
titutivas das sociedades primárias repousam nos hábitos sociais consagrados pelo
tempo. Com o aparecimento do Estado, sociedade necessária dotada de poder so
berano e voltada para o bem comum, surge a Constituição política. Conforme aduz
Pedro Salvetti Netto, não há que se falar em Constituição política antes que o Es
tado se organize, antes que nele se integrem seus elementos constituintes. Somente
quando se verificam tais exigências é que aparece a Constituição política, justamen
te para, estruturando a organização do Estado, disciplinar o exercício do poder po
lítico e discriminar a competência para tal exercício.
A tendência das sociedades de se estruturarem sob a égide de uma lei funda
mental surge muito cedo na História humana. Inicialmente, ela tem caráter religio
so, místico, revelando a vontade divina (mana) sob a forma de tabu, como acentua
Viamonte. Tal norma fundamental tem natureza consuetudinária, costumeira, não
se apresenta sob a forma escrita.
Com maior razão, os gregos já distinguiam as normas jurídicas pela hierar
quia, classificando-as como leis constitucionais e leis comuns, a exemplo dos roma
nos, que, ao se referirem à elaboração daquelas, usavam a expressão rem publicam
constituere. As leis de Licurgo, em Esparta, de Drácon e de Sólon, em Atenas, são
76 Teoria Geral do Estado
verdadeiras Constituições, imperando sobre as demais normas. Conforme adverte
Carlos Sanchez Viamonte, essas leis fundamentais de Licurgo e de Sólon constituem
a expressão unificada da vontade nacional em cada caso, e com elas é criada a na
ção como unidade política e jurídica e atribui-se forma à sociedade e ao governo.
Nisso consiste a essência do ato constituinte.
No dizer de Pedro Salvetti Netto, as primeiras Constituições sistematicamen
te codificadas apareceram no século XVII, por influência, segundo alguns autores,
das tradições puritanas, cujas normas eram efetivamente escritas e codificadas - os
covernants -, destinadas à estruturação da igreja e do culto. Em razão disso, a In
glaterra foi estruturada, durante o governo do puritano Oliver Cromwell (1599-
1658), por uma Constituição escrita, única em sua História, o Instrument of Go
vernment, calcada numa doutrina absolutista do poder político, fundada, aliás, no
exacerbado puritanismo de Cromwell.
Na História constitucional inglesa encontraremos, ainda na Idade Media, pac
tos, forais e cartas de franquia. Conforme aduz Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
tais documentos firmaram a ideia de texto escrito destinado ao resguardo de direi
tos individuais, que a Constituição iria englobar a seu tempo. Tais direitos, contu
do, prossegue o autor citado, sempre se afirmaram imemoriais, fundados no tem
po passado, enquanto eram particulares a homens determinados e não apanágio
do homem, ou seja, do ser humano enquanto tal.
Ainda segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, próximos dos pactos, de
cujo caráter participavam pela sanção real, mas já bem próximos da ideia setecen-
tista de Constituição, situam-se os contratos de colonização, peculiares à História
das colônias da América do Norte. Chegados ao Novo Mundo, os peregrinos, mor
mente puritanos, imbuídos de igualitarismo, não encontrando na nova terra poder
estabelecido, fixaram, por mútuo consenso, as regras por que haveriam de se go
vernar. Os chefes de família firmam, a bordo do Mayflower; o célebre Compact
(1620); desse modo, são estabelecidas as Fundamental Orders of Connecticut (1639),
mais tarde confirmadas pelo rei Carlos II, que as incorporou à carta outorgada cm
1662. Transparece aí - finaliza - a ideia de estabelecimento e organização do gover
no pelos próprios governados, que é outro dos pilares da ideia de Constituição.
Profunda influência, além da tradição puritana, sobre o advento das Consti
tuições escritas, vai exercer a doutrina do contrato social, preconizada por Jean-Jac-
ques Rousseau. A cláusula pacta sunt servanda ou pacta quantumcumque nuda ser-
vanda sunt, isto é, os contratos devem ser cumpridos pelas partes, peculiar às
relações jurídicas de caráter privado, contida na forma escrita e solene exigida, é
transportada para o Direito Público, assegurando melhor direitos e deveres de go
vernantes e governados. Como acentua Pedro Salvetti Netto, a Constituição escri
ta revela a preocupação de asseverar, em seus artigos, compromissos recíprocos de
governantes e súditos.
4 A Constituição 77
Com efeito, adverte Manoel Gonçalves Ferreira Filho que somente no século
XVIII - o Século das Luzes, daí a expressão Iluminismo - é que se concretizou, na
Europa, a ideia de que o homem pode estabelecer a organização do Estado, segun
do sua vontade, numa Constituição. Antes do Iluminismo, ninguém ousara afirmar
que o homem poderia modelar uma organização política segundo um ideal racio
nalmente estabelecido. Daí reafirmar-se a importância dc Rousseau para a filoso
fia iluminista e para a Revolução Francesa e, como conseqüência, para a consoli
dação das Constituições escritas.
2) ESPÉCIES
Bibliografia: a c q u a v i v a , Marcus Cláudio. Constituição da República Federativa do
Brasil anotada, São Paulo, Global, 1987. b i s p o , Luís. Curso de direito constitucional
brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1981. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Esta
do, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 1984.
Quanto às espécies dc Constituições, sintetizando as várias classificações exis
tentes, podemos apresentar o seguinte esquema:
1. Quanto à forma: escritasorgameasinorgânicas
rígidas2. Quanto à estabilidade ou I possibilidade de reforma i sem.rng.das
flexíveis
3. Quanto à origemf editadas, também denominadas votadas
outorgadasíVejamos cada uma dessas espécies e subespécies. Inicialmente, as Constitui
ções escritas.
Constituições escritas orgânicas: são aquelas que se acham formalizadas ex
pressamente em um documento escrito ou em vários. No primeiro caso, teremos as
Constituições escritas orgânicas (um só documento); no segundo, as Constituições
escritas inorgânicas (várias leis escritas, de natureza constitucional).
A origem das Constituições escritas orgânicas encontra-se nos séculos XVII e
XVIII, inicialmente por influência dos covenants, documentos escritos que forma
lizavam os preceitos da religião puritana, na Inglaterra.
78 Teoria Geral do Estado
Depois, já no século XVIII, em razão da doutrina do contrato social desen
volvida por Jean-Jacques Rousseau, que vai inspirar, na França, a ideia de que uma
Constituição deve ser, necessariamente, escrita, para maior garantia dos direitos
dos governados.
As Constituições escritas orgânicas têm a natureza dc uma codificação, isto é,
de um corpo único e sistematizado de normas.
A Constituição escrita orgânica se acha contida, portanto, em uma única lei.
As inorgânicas, porém, não têm forma de uma única lei; com efeito, uma Consti
tuição escrita inorgânica é formada por várias leis, encontra-se espalhada por inú
meros diplomas legais de natureza constitucional.
Assim, enquanto a Constituição escrita orgânica tem a natureza de uma co
dificação, a Constituição escrita inorgânica se assemelha muito mais a uma simples
compilação, vale dizer, leis dispostas ordenadamente e atualizadas, sem que com
isto cada uma dessas perca sua existência autônoma. Dessa ordem é a Constitui
ção britânica, que muitos autores afirmam ser apenas costumeira. Existiria, entre
tanto, uma Constituição formada apenas por costumes e nada mais? Isto seria im
possível. A Constituição britânica se constitui em volumes e mais volumes dc leis e
acórdãos. O que a caracteriza não é o fato de não ser escrita, mas sim de não estar
sistematizada em um Código; não estar; enfim, codificada.
Nem por isso se negue o grande papel desempenhado pelo costume nas Cons
tituições. Diga-se de passagem que o costume pode influenciar a própria Constitui
ção escrita orgânica, por exemplo, o caso célebre da reeleição, por uma terceira vez,
dos presidentes da República norte-americana. Nos primeiros tempos da vigência
da Constituição dos Estados Unidos, o presidente podia candidatar-se à reeleição
quantas vezes quisesse. Bastou, contudo, que George Washington e, mais tarde,
Thomas Jefferson se recusassem a disputar uma terceira reeleição para que seus su
cessores não se sentissem encorajados a fazê-lo. Quando, três quartos de séculos
mais tarde, Ulysses Grant postulou sua reeleição pela terceira vez, sua candidatu
ra fracassou. Tempos depois, uma exceção: Theodoro Roosevelt seria reeleito vá
rias vezes, em face das vicissitudes da situação internacional; entretanto, depois de
Roosevelt, a Emenda XXII vetaria, expressamente, o terceiro mandato.
Constituições rígidas, semirrígidas e flexíveis: quanto à estabilidade ou possi
bilidade de reforma, as Constituições podem ser rígidas, semirrígidas e flexíveis. As
flexíveis podem ser modificadas sem a exigência de um procedimento mais comple
xo; assim, uma lei ordinária pode alterá-la; não é preciso um procedimento legis
lativo mais trabalhoso. Exemplos: as Constituições da Noruega, da França e a Cons
tituição do antigo Reino da Itália, chamada Estatuto Albertino.
Semirrígidas são aquelas que, em parte, podem ser alteradas mediante um pro
cedimento comum, ordinário, e, em outros artigos, somente por meio de um proce
dimento mais dificultoso. Exemplo: a Constituição do Império do Brasil, de 1824.
4 A Constituição 79
Finalmente, as Constituições rígidas, assim denominadas porque só podem
ser alteradas por intermédio dc um rito legislativo próprio, destinado a dificultar
os abusos reformistas. Exemplos: as Constituições dos EUA, da Austrália, da Di
namarca, da Suíça e do Brasil em vigor. Com efeito, a nossa Constituição só pode
ser alterada ou corrigida por via dc emenda (art. 60), sendo que este dispositivo
exige seja a proposta firmada por um terço, no mínimo, dos membros da Câmara
dos Deputados ou do Senado Federal (art. 60, I), pelo Presidente da República e
por mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, ma
nifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. Ademais, o
§ 4° introduz uma cláusula pétrea no tocante a determinados assuntos, cuja disci
plina jurídica não pode ser, em qualquer hipótese, modificada. Por exemplo, os dis
positivos do art. 5° sobre direitos e garantias individuais (art. 60, § 4°, IV).
Importante notar que a facilidade ou a frequência com que uma Constituição
pode ser alterada não depende, apenas, do disposto na lei, mas também de fatores
políticos, por exemplo, a predominância desta ou daquela ideologia num dado mo
mento histórico. Assim, a Constituição suíça, rígida, foi modificada muito mais fre
quentemente do que a Constituição francesa da III República, cuja alteração de
pendia apenas de uma sessão conjunta do Parlamento.
Ademais, o conceito de Constituição escrita não se confunde com o conceito
de Constituição rígida, pois o Estatuto Albertino (Constituição do antigo Reino da
Itália), embora escrito, era, como vimos, modificável por via de lei ordinária, por
tanto, flexível.
Constituições outorgadas e Constituições editadas ou votadas: quanto à ori
gem, as Constituições podem ser outorgadas e editadas, conhecidas estas últimas
também como votadas. As outorgadas são impostas à nação pelo próprio agente
do poder constituinte originário, sendo, posteriormente, submetidas a referendo
popular, pois o povo é, em última análise, o titular do poder político. Exemplos: as
Constituições brasileiras de 1824,1891,1937 e 1967.
Quanto às Constituições editadas (votadas), são discutidas pelo próprio povo,
diretamente ou mediante a eleição de uma assembleia constituinte, formada por re
presentantes da nação. Em nome desta, a assembleia irá elaborar, com total inde
pendência, uma nova Constituição. Se não houver independência da constituinte,
não se pode falar em Constituição editada. Por exemplo, quando D. Pedro I enviou,
logo após a Independência, uma recomendação à Assembleia Constituinte incumbi
da de elaborar a nova Constituição do Império, Assembleia depois desfeita, exigiu
que a nova Lei Magna deveria conservar a dinastia governante e a religião católi
ca apostólica romana na qualidade de crença oficial do Estado, tolhendo, portan
to, a liberdade da assembleia, que, por ser constituinte, deveria estar investida de
um poder incondicionado.
80 Teoria Geral do Estado
3) CONTEÚDO POLÍTICO DAS CONSTITUIÇÕES
Bibliografia: l a s s a l l e , Ferdinand. Que é uma Constituição?, São Paulo, Edições e Pu
blicações Brasil, 1933. m a r x , Karl e e n g e l s , Friedrich. O manifesto do partido comu
nista, 6. ed., São Paulo, Global, 1986. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Es
tado, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1981.
Uma Constituição não é apenas a mais política, como também a mais pole
mica das leis. Fundamento da ordem jurídica, dela derivam, por conseqüência, to
das as demais leis. Por isso, já dizia Ferdinand Lassalle, que a alteração das leis or
dinárias não desperta, via de regra, a atenção da sociedade, ao passo que a reforma
ou a substituição de uma Constituição por outra acarretam comoção social. Daí a
constatação evidente de que uma Constituição não é apenas um documento for
mal, pois que se reveste de um conteúdo ideológico, que espelha ou deve espelhar
os fatores de ordem política e econômica que prevalecem no momento de sua ela
boração. Tal conteúdo varia, portanto, na medida em que mudam as circunstân
cias históricas.
Como acentua Salvetti Netto, a uma Constituição de caráter liberal-democrá-
tico, vicejante à época do apogeu do liberalismo político e econômico, jamais ocor
reria declarar os direitos sociais ou disciplinar as relações entre o capital e o traba
lho, hoje as grandes preocupações das Constituições em vigor.
Assim, uma Constituição, para ser bem entendida, deve ser analisada sob dois
pontos de vista:
a) como ordenamento jurídico estruturador do Estado;
b)como objeto das ideologias que, predominantes num dado momento histó
rico, são recolhidas pelo legislador constituinte.
Pelo menos nos primórdios do movimento conhecido como constitucionalis-
mo, isto é, a aceitação unânime da Constituição como documento escrito, esta cui
dava apenas da estruturação política do Estado, vale dizer, da forma de Estado, da
forma de governo e do regime de governo. No Brasil, por exemplo, a forma de na
tureza monárquica sucede a dc natureza republicana.
Uma Constituição elaborada em disfunção com os valores sociais predomi
nantes num dado momento nada mais seria que um corpo sem alma, mera folha
de papel.
Qualquer Constituição, afirma Lassalle, deve representar a soma dos fatores
reais do poder existentes na sociedade. Os fatores reais do poder são essa força ati
va e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade, determi
nando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.
4 A Constituição 81
Lassalle é o típico representante da corrente doutrinária denominada socia
lismo constitucional. Para ele, os fatores reais do poder constituem-se fatores jurí
dicos quando, observados certos procedimentos, são transformados em uma folha
de papel, recebendo expressão escrita: a partir de então já não são mais simples fa
tores reais do poder, mas transmutam-se em direito, cm instituições jurídicas, e
quem atentar contra eles atentará, pura e simplesmente, contra a lei e será castiga
do. Segundo Lassalle, há, na verdade, duas Constituições num Estado: a real e efe
tiva, formada pela soma dos fatores reais e efetivos que imperam na sociedade, e a
escrita, mero documento ou folha de papel. Esta folha de papel, este documento,
enfim, só será durável se corresponder à constituição real, aquela que tem suas raí
zes nos fatores reais de poder.
Os problemas constitucionais, afirma Lassalle, não são, primariamente, pro
blemas de direito, mas de poder; a verdadeira Constituição é a real e efetiva; as
Constituições escritas não têm valor nem são duráveis, a menos que venham a ser
a expressão fiel dos fatores reais do poder. Acusado de professar uma doutrina que
afirmava o predomínio do poder sobre o direito, Lassalle defendeu-se afirmando
que sua teoria era desenvolvida 110 plano do que real e efetivamente é, e não no pla
no do dever ser.
A doutrina dos fatores reais do poder foi tacitamente comprovada por várias
obras de conhecidos autores, como Charles A. Beard e Harold Laski.
No surgimento dos EUA, a maior parte dos membros da Convenção de Fila
délfia reconhecia que a propriedade tinha direito especial na Constituição, assim
como esta não foi criada por todo o povo, como afirmam os juristas, e tampouco
pelos Estados, como sustentaram, por longos tempos, os que, no sul, desejavam
anulá-la. Foi obra de um grupo compacto, cujos interesses não reconheciam fron
teiras estaduais e que eram realmente de âmbito nacional.
Em seus Comentários à Constituição Federal brasileira, v. 1, p. 35, Ruy Bar
bosa afirmava que “as constituições são conseqüências da irreversível evolução eco
nômica do mundo”.
A exemplo da concepção de Lassalle, também a concepção marxista de Cons
tituição é sociológica. Para o marxismo, Estado e Direito são meras superestruturas
que se sustentam sobre as relações de produção da sociedade dividida em classes. Es
tado e Direito são o produto da divisão da sociedade em classes antagônicas e cons
tituem um instrumento nas mãos da classe dominante. Para o marxismo, qualquer
Estado é, antes de mais nada, a organização política da classe dominante, que garan
te seus interesses de classe, ao passo que o Direito representa a vontade desta classe.
Na concepção marxista, a Constituição é um produto das relações de produção e
visa assegurar os interesses da classe dominante, representando a norma suprema da
organização estatal, determinada pelas condições da existência material.
Em posição antagônica ao sociologismo constitucional de Lassalle e Marx sur
ge o normativismo metodológico de Flans Kelsen, estribado numa concepção me
82 Teoria Geral do Estado
ramente jurídica da Constituição. Para Kelsen a norma constitucional é norma pu
ra; o Direito deve ser concebido estritamente como direito positivo, sem nenhuma
pretensão a fundamentações sociológicas, políticas ou filosóficas. Embora Kelsen
admita que na base do Direito existem dados sociais, uma realidade social comple
xa que o explica, c que também o Direito é inspirado por teorias e princípios filosó
ficos, ele afirma que o estudo de tais fenômenos não compete ao jurista, e sim ao so
ciólogo e ao filósofo. A teoria pura do Direito busca justamente expurgar da ciência
jurídica toda classe de juízo de valor moral ou político, social ou filosófico.
4) REVOLUÇÃO, GOLPE DE ESTADO E INSURREIÇÃO
Bibliografia: c a e t a n o , Marcello. Manual de ciência política e direito constitucional,
Lisboa, Coimbra Editora, 1972. e r õ s , J. S. “Revolução”, in Dicionário de ciências so
ciais, Fundação Getúlio Vargas/MEC - Fundação de Assistência ao Estudante, 1986.
f e r r e i r a f i l h o , Manoel Gonçalves. Direito constitucional comparado, São Paulo,
Bushatsky/Edusp. g õ r l i t z , Axel. Diccionario de ciência política, Madrid, Alianza,
1980. p a r e t o , Vilfredo. Trattato di sociologia generale, Milano, Edizioni di Comuni-
tà, 1981. r e vo l m o li n a , Hugo. “Golpe de Estado”, in Dicionário de ciências sociais,
Fundação Getúlio Vargas/MEC - Fundação de Assistência ao Estudante, 1986.
O termo revolução denomina a mudança brusca e radical de convicções so
ciais. Tais convicções podem ter a mais variada natureza: política, econômica, ju
rídica, artística e até, soi disant, sexual. Interessa-nos, evidentemente, o conceito de
revolução política. Esta pode ser definida como a mudança repentina, violenta ou
não, das instituições e dos governantes. Com efeito, na revolução política tudo é
subvertido: os governantes são apeados do poder, e as leis que haviam consagrado
são substituídas, em nome de uma nova ideologia. Apontam-se, como exemplos tí
picos de revoluções violentas, a Revolução Francesa (1789) e a socialista russa
(1917). Como exemplo dc revolução não violenta podemos citar a Revolução Re
publicana do Brasil (1889), quando houve substituição dos governantes, bem como
da forma de Estado (de unitária para federal), da forma de governo (de monárqui
ca para republicana) e do regime de governo (de parlamentarista para presidencia
lista). Já se vê que, na revolução, o emprego efetivo da violência material (vis ma
terial is) ou coerção nem sempre é necessário, embora a violência psicológica (vis
compulsiva) seja inafastável nos movimentos de fato. Como negar, entretanto, o
poder revolucionário a uma Assembleia Constituinte? Sem o emprego da força,
pode esta Assembleia subverter, por inteiro, a ordem jurídica vigente, substituin
do-a por outra, bem como os próprios governantes, que a ela, soberana, devem cur
var-se. J. S. Erõs, em verbete intitulado “Revolução”, aponta três correntes moder
4 A Constituição 83
nas do estudo da revolução: a progressista ou evolucionária, a conservadora e a
positivista ou científica. A concepção progressista pontificou no século XIX, con
gregando homens de esquerda e liberais-democratas. Aqueles, afirmando que as re
voluções constituem etapas do progresso inevitável da Humanidade, rumo ao igua-
litarismo; estes, mais preocupados com o incentivo à sublevação das massas contra
os déspotas, mostrando mais preocupação com a liberdade individual. A corrente
conservadora mostra-se uma reação à Revolução Francesa, e suas concepções têm
natureza feudal, tradicionalista, teocrática ou monarquista. Para os conservadores,
as revoluções são meras explorações dos sentimentos populares, mostrando-se in-
controláveis e destrutivas, manifestações de regressão à mentalidade primitiva. Fi
nalmente, na concepção positivista, o termo revolução apresenta um matiz pura
mente descritivo, sem qualquer conotação ideológica. Para esta corrente, todas as
revoluções são genuínas, desde que se possa aferir que elas sejam apoiadas por uma
camada considerável da coletividade. Para os anarquistas, como Proudhon, Baku
nin e Kropotkin, uma revolução não passa da substituição de um déspota por ou
tro. Contudo, a somatória dos pequenos benefícios que cada movimento revolu
cionário irá incorporar às conquistas sociais acarretará, felizmente, a vitória da
igualdade no mundo.
Curiosas se mostram as doutrinas de Karl Marx e Vilfredo Pareto sobre a re
volução. Marx nega, veementemente, a teoria da revolução deflagrada em nome
dos direitos naturais, que ele considera não científica. Para ele, a revolução surge,
de forma inevitável, da confrontação entre classes sociais, como resultado da con
tradição entre as possibilidades de trabalho, as ferramentas correspondentes (for
ças de produção) e as relações de fortuna e trabalho (relações de produção). Ora,
tal contradição chega, inevitavelmente, a um ponto crítico, que não encontra mais
solução 110 modo de produção tradicional, acarretando o congelamento do desen
volvimento social e, por conseqüência, a tensão social. Temos, então, uma confron
tação entre o ordenamento social estabelecido, estático, e as forças de produção,
essencialmente dinâmicas. Isto só pode levar a uma solução revolucionária, mesmo
porque as classes possuidoras dos meios de produção estão, necessariamente, inte
ressadas na manutenção do status quo. Tais fatores são objetivos; na revolução, po
rém, haverá, segundo Lenin, uma parcela de subjetividade, vale dizer, a atividade
dos grupos sociais e dos partidos. A conjunção de todos estes fatores acarreta a re
volução.
No dizer de Pareto, conhecido sociólogo ítalo-francês que elaborou um ma
gistral tratado de sociologia, em todas as épocas e lugares, o Estado é dinamizado
por dois setores sociais, que vêm a ser, precisamente, uma elite que governa e ou
tra que é governada. Com ou sem sufrágio universal, diz Pareto, é sempre uma mino
ria que governa e que sabe dar a expressão que deseja à vontade popular. Quando
a elite dirigente se torna esclerosada e corrompida, surgem movimentos tendentes
a estabelecer uma nova ordem. Isto é inelutável. Com efeito, toda elite dirigente,
84 Teoria Geral do Estado
inicialmente jovem e vigorosa, cheia de ideais, traz consigo o vigor e a coragem dos
leões; entretanto, a influência de fatores negativos, como a corrupção econômica,
o abrandamento dos costumes, a ascendência de demagogos e pacifistas, a agita
ção política e a intranqüilidade social, tudo isso faz com que a elite dirigente, já a
par de sua própria debilidade, comece a confiar mais na astúcia do que na força.
Desta forma, os governantes de leões fazem-se raposas... É chegado, então, o mo
mento propício ao surgimento de uma nova elite dirigente, casta e portadora de
novos ideais, que, desde logo, põe abaixo o ordenamento corrompido, realizando
obra tão interessante como a destruição de animais daninhos.
A revolução caracteriza-se, quase sempre, pela manifestação violenta de for
ças sociais estranhas à organização do Estado, ao estahlishment, enfim. É a massa,
uma classe ou partido, com o apoio ou não das Forças Armadas, com o fito de mu
dar o regime político, a ideologia dominante, as leis e instituições e o pessoal gover
nante.
Quanto ao golpe de Estado, vem a ser a substituição de alguns ou de todos os
pressupostos da ordem jurídica vigente, imposta pelos próprios governantes, com
a finalidade de permanecerem no exercício do poder. Constitui, no mais das vezes,
a usurpação, pelo Poder Executivo, das prerrogativas do Legislativo e, ate, do Ju
diciário. O golpista ou golpistas contam, invariavelmente, com o apoio dc uma par
cela considerável das Forças Armadas para o reforço de seu poder. Podemos citar,
como exemplo típico de golpe de Estado, a outorga da Constituição de 1937, por
Getúlio Vargas, a qual instaurou o chamado Estado Novo. Ao perceber que seu po
der começava a esmaecer, pressionado pelos litígios partidários, e antecipando-se
a uma possível tentativa insurrecional por parte de uma pequena facção das For
ças Armadas, o caudilho antecipou-se a qualquer tentativa deste naipe, e reforçou
bruscamente o seu poder, impondo à Nação uma carta constitucional de caráter
autoritário.
Insurreição, rebelião, revolta 011 pronunciamento (do espanhol pronuncia-
miento) são as várias denominações que toma a manifestação das Forças Armadas,
apoiadas ou não em outras forças sociais, contra os governantes, a fim de substi
tuí-los ou lhes impor orientação política diversa.
Assim, se pelo golpe de Estado os governantes pretendem manter-se no poder
e, por isso, alteram as instituições neste sentido, na revolução ou na insurreição a
principal finalidade é substituí-los. A insurreição pode não alcançar as instituições,
pois visa apenas à derrubada dos governantes - por exemplo, no Brasil, a insurrei
ção de março de 1964 -, mas a revolução atinge, por definição, a própria ordem
constitucional, alterando a estrutura social, substituindo a ideologia dominante e
criando um novo ordenamento jurídico.
Seja como for, consoante advertência de Hugo Revol Molina, pode ficar difícil
para o analista estabelecer, desde logo, quando um movimento político repentino é um
golpe de Estado ou uma revolução, pois as primeiras ações e decisões do grupo que
4 A Constituição 85
toma o poder político resumem-se, via de regra, a medidas destinadas a consolidar a
posição alcançada. A diferença entre golpe dc Estado e revolução somente pode ser es
tabelecida ex post facto. Dessa forma, embora os grupos que, na América Latina, che
gam ao poder, mediante uma ação apoiada na violência ou na ameaça desta, qualifi
quem sua posterior ação governamental como revolução, a análise sociológico-política
encarada sob uma perspectiva histórica permitiu mostrar que, salvo raras exceções, a
maioria das ações desse tipo, ocorridas no século XX, resumiu-se a meros golpes de Es
tado, não obstante as manifestações verbais que as acompanharam.
FORMAS DE ESTADO
1) UNIÃO PESSOAL
Bibliografia: b o n a v i d e s , Paulo. Ciência política, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986.
s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, São Paulo, Saraiva, 1986.
A união pessoal de Estados vem a ser uma espécie de federação, em que, aci
dental e involuntariamente, as leis de sucessão monárquica ensejam a coincidência
de um só príncipe ocupar dois tronos, tornando-se o titular comum do poder em
F^stados que preservam sua soberania.
A união pessoal: a) é casual, fortuita, decorrendo de mera coincidência na or
dem sucessória dinástica; b) é transitória, pois cessa o vínculo com a extinção da
dinastia imperante; c) inexiste fundamento jurídico unitário entre os Estados par
ticipantes da união, os quais mantêm incólume sua soberania, sendo a União des
tituída de personalidade jurídica internacional.
A união pessoal, assim como a união real, constitui, hoje, mera figura histó
rica, em face do declínio da forma monárquica de governo. Constituem exemplos
históricos de uniões pessoais: Espanha e Portugal (1580-1640); Inglaterra e Hano-
vcr (1714-1837); Alemanha e Espanha (1519-1556).
2) UNIÃO REAL
Bibliografia: b o n a v i d e s , Paulo. Ciência política, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986.
SALVETTI n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, São Paulo, Saraiva, 1986.
86
5 Formas de Estado 87
A união real de Estados é uma espécie de federação consistente na celebração,
consciente e voluntária, da união de Estados em torno de um objetivo comum (res).
Cumpre ressaltar que o adjetivo real atribuído à união não se refere, necessaria
mente, a rei, monarca, mas a uma coisa (res)y um objetivo concreto.
A união real: a) não cria um novo Estado, limitando-se a formar uma união
de Estados; b) abrange, por via de regra, Estados contíguos; c) a soberania de cada
Estado permanece intacta; d) exclui administração uniforme e nacionalidade pró
pria, admitindo administração comum e economia societária; e) sua duração pode
ser permanente ou transitória, podendo dissolver-se por acordo entre os Estados
participantes, pela caducidade dos tratados ou pelo desaparecimento da dinastia
governante; f) criam-se exército e marinha comuns, e adota-se a mesma política ex
terna; g) o governante e seus ministros não atuam como representantes de cada Es
tado participante; h) as relações entre dois Estados da união real são relações in
ternacionais. Constituem exemplos de uniões reais: Suécia c Noruega (1815-1905);
Dinamarca e Islândia (de 1815 até a deflagração da Segunda Grande Guerra); Im
pério Austro-Hungaro (1867-1918), quando a Áustria e a Hungria se agregaram
sob a autoridade de Francisco José. Este monarca chamava-se Carlos I, na quali
dade dc Imperador da Áustria, e Carlos IV, como rei da Hungria.
3) ESTADO UNITÁRIO
Bibliografia: b o n a v i d e s , Paulo. Ciência política, 6. cd., Rio de Janeiro, Forense, 1986.
d a r a n a s , Mariano. Las constituciones europeas, Madrid, Nacional, 1979, v. 2. m a -
l u f , Sahid. Teoria geral do Estado, 13. cd., São Paulo, Sugestões Literárias, 1982. s a l -
VETO NETTO, Pedro. Curso de teoria do Estado, São Paulo, Saraiva, 1986. x i f r a i i e -
r a s , Jorge. Curso de derecbo constitucional Barcelona, Bosch, 1962, v. 2.
As formas de Estado podem ser resumidas a duas: simples e compostas. A for
ma simples de Estado é representada pelo Estado unitário, do qual trataremos a se
guir; as formas compostas de Estado correspondem às federações, que são: a união
pessoal, a união real, a confederação de Estados e o Estado federal.
Vejamos o Estado unitário. Essa forma de Estado mostra-se politicamente cen
tralizada, embora dotada de descentralização meramente administrativa. O poder
central irradia-se por todo o território, sem limitações de natureza política. Carac
teriza-se o Estado unitário, portanto, pela unicidade do poder.
Preleciona Sahid Maluf que o Estado unitário é aquele que apresenta uma or
ganização política singular, com um governo único de plena jurisdição nacional,
sem divisões internas que não sejam simplesmente de ordem administrativa. No di
zer de Jorge Xifra Heras, um Estado chama-se unitário quando suas instituições de
88 Teoria Geral do Estado
governo constituem um único centro de impulsão política. No Estado unitário, to
dos os cidadãos estão sujeitos a uma autoridade única, ao mesmo regime constitu
cional e a uma ordem jurídica comum. A forma política unitária corresponde a uma
exigência natural. O Estado, como sociedade necessária, estruturada sob uma or
dem e um objetivo social, tende à unidade. O problema surge quando se trata de
estabelecer o grau ou intensidade desta unidade. Se a centralização política c a des
centralização administrativa são as características marcantes do Estado unitário, a
verdade é que a moderna doutrina já distingue, no Estado unitário, entre centrali
zação concentrada e centralização desconcentrada. Na centralização concentrada,
os agentes das entidades administrativas são meros núncios das decisões do poder
central, de modo que não passam de simples cumpridores dessas determinações, sem
qualquer autonomia, tanto no que fazer quanto no como fazer,. Na centralização
desconcentrada, porém, já se observa certo grau de competência atribuído aos agen
tes periféricos do poder, embora persista a dependência hierárquica. O poder, ain
da aqui, é delegado, não autônomo. Por via de regra, portanto, observa-se que o
Estado unitário desconcentrado divide-se em departamentos e comunas, que go
zam de relativa autonomia quanto aos serviços dc seu interesse, tudo, porém, como
mera delegação do poder central, não como poder originário ou de auto-organiza-
ção (self-government). Não se confundem, por outro lado, a referida centralização
desconcentrada e a descentralização propriamente dita, porque naquela os agentes
atuam em nome do próprio Estado, ao passo que nesta os órgãos descentralizados
atuam em nome da entidade secundária da qual se originam. Análoga é a distin
ção, sempre válida, entre Estado unitário descentralizado e Estado federal aponta
da por Paulo Bonavides: naquele, temos a dependência dos órgãos descentraliza
dos quanto ao Estado unitário; neste, a independência desses mesmos órgãos, no
caso do Estado federal. Fenômeno intimamente ligado ao Estado unitário, e que
empolga, permanentemente, a doutrina, é o regionalismo, que enseja, por vezes, a
própria confusão entre Estado unitário e Estado federal. Com efeito, a região é uma
entidade orgânica dc caráter histórico, unidade lingüística e até racial, dotada de
leis próprias, a ponto de algumas regiões dc Estados unitários demonstrarem maior
unidade do que certos Estados federais. Assim, na Itália, não é tarefa das mais fá
ceis caracterizar este Estado como unitário, porquanto, embora a Constituição ita
liana proclame, no art. 5°, ser a Itália uma república una e indivisível, confere às
regiões a mais ampla autonomia político-administrativa (arts. 115 e 1 17). Quanto
ao Brasil, somente durante o Império tivemos como forma de Estado a unitária, de
centralização concentrada, desde a promulgação da Constituição de 1824, até 1834,
quando, mediante a Lei de 12 de agosto, chamada Ato Adicional, complementada
pela Lei de 3 de outubro do mesmo ano, que marcou as atribuições dos presiden
tes das províncias, promoveu-se alguma descentralização política, que permitiu a
cada província eleger suas próprias assembleias legislativas.
5 Formas de Estado 89
4) ESTADO FEDERAL
Bibliografia: b o n a v i d e s , Paulo. Ciência política, 6. cd., Rio dc Janeiro, Forense, 1986.
d a r a n a s , Mariano. Las constituciones europeas, Madrid, Nacional, 1979, v. 2. f e r
r e i r a f i l i i o , Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional 16. ed., São Paulo,
Saraiva, 1987. m a l u f , Sahid. Teoria geral do Estado, 13. ed., São Paulo, Sugestões Li
terárias, 1982. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, São Paulo, Saraiva,
1986. s o u z a , José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado, 2.ed., São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1976. x i f r a h e r a s , Jorge. Curso de dereebo constitucional Bar
celona, Bosch, 1962, v. 2.
Esta forma de Estado constitui uma espécie do gênero federação. Surgiu com
a Revolução norte-americana do século XVIII, que resultou no aparecimento dos
Estados Unidos da América do Norte, mediante a Constituição de 1787. As treze
colônias vitoriosas sobre o domínio inglês, inicialmente unidas em confederação,
conforme estabelecido no documento chamado Artigos de Confederação, de 1777,
mostravam-se frágeis neste tipo de união, levando George Washington a dizer: “A
Confederação não passa de uma sombra sem substância, e o Congresso, de um ór
gão inútil” . Por outro lado, como assinala Pedro Salvetti Netto, proibia-se à Con
federação impor tributos aos Estados confederados, de modo que se exauriam os
cofres daquela, empenhada cm gravames financeiros para sustentar a frágil união.
A situação mostrava-se insustentável. Para solucionar o impasse, reuniram-se os
representantes dos Estados confederados para rever os Artigos de Confederação,
na célebre Convenção da Filadélfia. Refulgem, então, os memoráveis escritos de três
jornalistas: Hamilton, Madison e Jay, que consolidaram a doutrina do federalismo,
reunida, posteriormente, no clássico O federalista, que esclarece a natureza e as
vantagens do Estado federal. Tal doutrina calou fundo na opinião pública, e logo
a Constituição terminou por ser ratificada pelos Estados, que exigiram fosse man
tida a denominação Estado para cada uma das colônias integrantes do pacto fede
rativo. Daí a tradicional epígrafe Estados Unidos da América. Como assinala José
Pedro Galvão de Souza, a partir de então o Estado era um só. Não mais os treze
Estados de logo após a Independência. Era um Estado constituído por Estados que
se haviam federalizado. Os doutrinadores norte-americanos que inicialmente cos
tumavam dizer: “The United States are...” acabaram por empregar o verbo no sin
gular, construção permitida na língua inglesa graças ao artigo invariável: “The Uni
ted States /s...”. Como lembra, oportunamente, o autor citado:
o nome do Estado aplicado a uma entidade não soberana explica-se, pois, no caso nor-
te-americano, em virtude das circunstâncias históricas. Não assim no caso brasileiro,
90 Teoria Geral do Estado
quando se começou a chamar de Estados as antigas províncias do Império, tal foi o
furor imitativo dos primeiros homens da República. Um Estado só havia sido, sempre,
o Brasil, desde os primórdios da colonização, salvo a malograda e efêmera experiên
cia das capitanias. A Argentina, apesar de Estado federal, adota a denominação pro
víncias para as unidades federadas. Tanto no caso do Brasil como no da Argentina,
chegou-se ao Estado federal partindo da unidade para a multiplicidade, ao passo que
no caso dos Estados Unidos partiu-se da unidade para chegar à unidade, através dc
uma confederação em seguida à qual surgiu o Estado federal. (Iniciação à teoria do
Estado, p. 62)
Fato curioso é que o Estado dc Nova Iorque somente ratificou a Constituição
norte-americana após um ano da vigência desta, cm 1788.
Pois bem, o Estado federal é uma espécie de federação, composta por unida
des que, embora dotadas de capacidade de auto-organização e de autoadministra-
ção, não são dotadas de soberania, submetendo-se a uma Constituição Federal.
Com efeito, o Estado federal não se confunde com a confederação, porque esta é
formada por Estados propriamente ditos, vale dizer, entidades políticas dotadas de
poder soberano, incondicionado, ao passo que no Estado federal os Estados-Mem-
bros renunciam ou são despojados de sua soberania, em proveito do próprio Esta
do federal. Os Estados-Mcmbros passam a dispor de mera autonomia, submeten
do-se a uma Constituição que lhes proíbe o direito de secessão, isto é, o direito de
se separarem da União. É célebre a Guerra da Secessão, deflagrada nos Estados Uni
dos da América do Norte entre 1861 e 1865, quando a Carolina do Sul separou-se
da União, seguida nesta atitude por outros Estados-Mcmbros.
Quanto à União, é a pessoa jurídica de direito público que representa o Esta
do federal. Tem suas próprias competências (CF, arts. 21 c 22), a par da competên
cia dos Estados-Membros (CF, art. 25, § 1°), e dos municípios (CF, art. 30), cada
qual dentro de seu campo de ação, sem poder interferir na competência das demais
entidades federadas, com ressalva da competência comum (CF, arts. 23,145 e 155)
e da intervenção federal da União nos Estados-Membros (CF, arts. 21, V, e 34), e
destes nos municípios (CF, art. 35), mas, ainda aqui, as entidades interventoras não
atuam em nome próprio, e sim com vistas à integridade do próprio Estado federal
como um todo. Vale lembrar, aliás, que a intervenção federal é uma exceção à re
gra da não intervenção, como se percebe do texto do art. 34.
O Estado-Membro ou Estado federado, para usar a terminologia da própria
Constituição, é a unidade básica do Estado federal, sendo dotado do poder de au-
to-organizar-se e dc autoadministrar-se limitado pela Constituição Federal. Tal po
der chama-se autonomia (do grego, autos = por si só + nomos = norma) e se sub
mete ao poder soberano do Estado federal, representado pela União. A doutrina
clássica é taxativa: os Estados federados não têm o direito de secessão, vale dizer,
o poder de se separar da União, como se observa do art. 1°, caput, da Constituição
5 Formas de Estado 91
Federal, na expressão união indissolúvel nele constante. Qualquer tentativa de se
paração ensejará a intervenção federal, promovida pela União (art. 21, V) nos ca
sos do art. 34.
Exceção ao princípio da indissolubilidade do Estado federal nos dava a extin
ta Constituição soviética de 1977, que, no art. 72, ao estruturar o Estado federal
socialista, admitia, expressamente, que “cada república da União conserva o direi
to de se separar, livremente, da URSS”. Se a União pode intervir no Estado federa
do, este pode intervir no município (art. 35), mas em qualquer caso, como vimos,
a intervenção é exceção, não regra.
A Constituição Federal assegura a autonomia política e financeira dos Esta
dos federados ao longo de vários artigos, pois de nada valeria a autonomia políti
ca (art. 25) sem a necessária autonomia financeira (art. 155), concedida esta, tam
bém, ao Distrito Federal (art. 155) e aos municípios (art. 156). A exemplo da
federação norte-americana (Constituição dos EUA, art. I o, Seção 3a, 17° Aditamen
to ao texto), o Estado federal brasileiro conta com a participação dos Estados fe
derados na formação da vontade nacional, mediante o Senado Federal (CF, art. 46),
no qual cada Estado federado e o Distrito Federal contam com três senadores (art.
46, $ I o).
A forma federativa de Estado surge no Brasil com o advento da República
(Decreto n. 1, de 15.11.1889), cujo art. I o estabelece: “Fica proclamada proviso
riamente e decretada como a forma de governo da nação brasileira - a República
Federativa”, e o art. 2°: “As províncias do Brasil, reunidas pelo laço da federação,
ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil”. Tal orientação será definitiva
mente confirmada com a primeira Constituição republicana, de 24.02.1891, arts.
I o e 2o.
Concluindo: no Estado federal brasileiro, em vez de duas, há três ordens de
competências: a da União, a dos Estados federados e a dos municípios. Nenhuma
dessas entidades federadas poderá invadir a competência das demais, sob pena de
inconstitucionalidade, com ressalva, como já foi visto, da competência comum a
todos (CF, art. 23).
No caso específico do Brasil, o Estado federado é entidade integrante do Es
tado federal (CF, art. 1°, caput), dotado de poder de auto-organização (art. 25, ca
put), limitado pela Constituição Federal (arts. 25, caput, parte final, e 34). Tal po
der de auto-organização chama-se autonomia, estando submetido, como vimos, à
Constituição Federal, sendo o próprio Estado Federal representado pela União, pes
soa jurídica de direito público (arts. 1°, caput, 2o, 21 ,1, e 84, VII, VIII, X IX, XX e
XXII). A doutrina clássica é taxativa: os Estados federados não têm o direito de se
cessão, vale dizer, o poder de se separar da União (art. 1°, caput); qualquer tentati
va separatista será tolhida pela intervenção federal (art. 34 ,1).
O Estado federado pode, por sua vez, intervir nos seus municípios (art. 35).
Em qualquer caso, porém, a intervenção é exceção, jamais regra, como se deduz,
92 Teoria Geral do Estado
claramente, do teor dos arts. 34 e 35. A par da autonomia política, a Constituição
confere, aos Estados federados, autonomia financeira (art. 155). A exemplo dos Es
tados Unidos da América (Constituição dos Estados Unidos da América, art. I o, Se
ção 3a e 17° Aditamento ao texto), a federação brasileira prevê a participação dos
Estados federados na formação da vontade nacional, por intermédio do Senado Fe
deral (art. 46). A Constituição Federal aponta, no art. 26, como bens dos Estados
federados:
I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalva
das, neste caso, na forma da lei, as decorrentes dc obras da União; II - as áreas, nas
ilhas oceânicas c costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob do
mínio da União, Municípios ou terceiros; III - as ilhas fluviais c lacustres não perten
centes à União; IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União.
Quanto à criação de novos Estados federados, assim dispõe o art. 18, § 3°, da
Constituição:
Os Estados podem incorporar-se entre si, subdividir-se ou desmembrar-se para
se anexarem a outros, ou formarem novos Estados ou Territórios Federais, mediante
aprovação da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congres
so Nacional, por lei complementar.
FORMAS DE GOVERNO
1) CLASSIFICAÇÕES ANTIGAS E MODERNAS
1.1) Platão (Arístocles)
Bibliografia: l i n a r e s q u i n t a n a , Segundo V. Sistemas cie partidos y sistemas políticos,
Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. p l a t Ão . La República, Madrid, Centro de Estúdios
Constitucionales, 1981, v. I; e Las leyes, Madrid, Centro de Estúdios Constituciona-
les, v. I. r o b i n , Léon. Platão, trad. Adolfo Casais Monteiro, Lisboa, Inquérito.
É imperioso distinguir entre forma de Estado, forma de governo e regime de
governo. A expressão forma de Estado indica a maior ou menor irradiação do po
der político. Se este é centralizado ou centrípeto, temos o Estado unitário, caracte
rizado pela centralização político-administrativa; se é descentralizado ou centrífu
go, teremos o Estado federal, de nítida descentralização político-administrativa. Em
face disso, as expressões Estado unitário e Estado federal indicam formas de Esta
do. Já a expressão forma de governo revela se o poder é exercido temporária ou vi-
taliciamente. No primeiro caso, teremos como forma de governo a República; no
segundo, a Monarquia. Ora, em cada forma de governo democrática desenvolve-se
um relacionamento peculiar entre as funções executiva c legislativa. Tal relaciona
mento é chamado regime de governo, dc modo que esta expressão afere qual ór
gão exerce a função governamental.
Na série de classificações de formas de governo que ora iniciamos, ocorre-nos
a sugestiva tirada do poeta inglês Percy B. Shelley (1792-1822): “Somos todos gre
gos”. Quis este famoso literato enfatizar a importância da herança cultural helêni-
93
94 Teoria Geral do Estado
ca, colocação à qual aderimos sem hesitar. Por isso, começaremos este tópico com
um panorama das ideias de Platão (429-347 a.C.), discípulo de Sócrates (470-399
a.C.) e mestre de Aristóteles (384-322 a.C.).
Platão, cujo verdadeiro nome era Arístocles (o apelido derivou do fato de este
filósofo ter as espáduas largas, evocando o termo omoplata), pertencia a uma famí
lia aristocrática, sendo, pelo sangue materno, parente do grande legislador Sólon.
Em 404 a.C., com a tomada de Atenas por Lisandro, a aristocracia chega ao poder,
favorecendo a ascensão política de Platão; entretanto, desiludido com a condena
ção de Sócrates, descrê da organização política tradicional de sua pátria. Dedica-se
à filosofia, viajando pelo Egito - do qual tornou-se grande conhecedor - e pela Mag
na Grécia. Em Siracusa, tentou persuadir o tirano Denis, o Antigo, a aceitar as ideias
que expôs no Livro Quinto de sua obra Da república, enaltecendo o valor dos filó
sofos e criticando a frivolidade e a devassidão da corte. Incomodado, Denis o ex
pulsou da cidade. Em 387 a.C., Platão fundou sua própria escola, às suas expensas,
numa bela propriedade arborizada e regada por nascentes, em meio à qual se eleva
va um ginásio, conhecida como o parque do herói Academus, nos arredores dc Ate
nas. Em homenagem a Academus, a escola platônica foi denominada Academia, ex
pressão que passou a designar as sociedades científicas, literárias ou esportivas.
Platão morreu em 347 a.C., aos 82 anos dc idade, quando concluía sua obra
As leis, que revela seu pensamento definitivo.
No livro Da república, Platão idealiza um processo dinâmico de rodízio das
formas de governo, fundado num determinismo inafastável. Da aristocracia (de
aristoi, melhores, e kratos, poder), forma que considera a melhor de todas, partem,
numa seqüência inevitável, outras formas. Assim: timocracia (de timos, honra, e
kratos, poder) ou autocracia militar, oligarquia (de oligoi, poucos, e arche, gover
no), democracia (dc demos, povo, e kratos, poder) e tirania.
Surge a timocracia quando indivíduos de condição social inferior enriquecem
e tentam chegar ao poder pela astúcia, no que são impedidos pelos militares, que
passam a exercer o poder oprimindo aqueles a quem deveriam proteção. Na timo
cracia surge agudo conflito entre o bem e o mal, mesclando-se uma sã filosofia dc
vida com a sede crescente de honras e bens materiais.
A timocracia, por sua vez, degenera em oligarquia, quando, então, uma mino
ria abastada impõe sua arrogância a toda a sociedade, sendo o dinheiro, secunda
do pela corrupção, a única chave para as portas da ascensão social e política, de
modo que logo a desordem campeia irrefreada. Tal situação insustentável vem abai
xo quando se instala a democracia, forma em que os ricos são expulsos do poder,
com a conseqüente ascensão da massa. Todavia, também ocorrem graves disfun-
ções sociais, pois além dos ricos são banidos os sábios, considerados perigosos para
a nova ordem, implantando-se a mais grosseira mediocridade. A corrupção cam
peia, as Constituições políticas abundam e as boas leis são desprezadas. Tudo isso
leva à tirania, pois a liberdade tornada licenciosa só pode levar à escravidão.
6 Formas de governo 95
Na obra As leis, Platão mostra-se mais realista, porque mais maduro; já não
pretende descrever um Estado ideal, mas aquele que mais se coadune com a praxe
política. Então afirma existirem, fundamentalmente, duas formas de governo: a
monarquia c a democracia, fundadas em princípios opostos, porém igualmente le
gítimos: a autoridade e a liberdade. Cada uma dessas duas formas de governo só
subsiste se faz concessões à outra: a monarquia à liberdade, e a democracia à obe
diência. Assim, não se configuram nem poder, nem liberdade excessivos. Em As leis,
Platão se antecipa a muitas classificações posteriores, ao preconizar uma forma mis
ta de governo, em que haveria, numa combinação harmoniosa de princípios opos
tos, um equilíbrio de forças políticas antagônicas.
1.2) Aristóteles
Bibliografia: Ar i s t ó t e l e s . Política, Madrid, Centro de Estúdios Constitucionales, 1983;
e La política (passi scelti e commentati da Giuseppe Saitta), Bologna, Zanichelli, 1947.
b a r k e r , E. The political thought of Plato and Aristotle, New York, Dover Publications,
s.d. l i n a r e s q u i n t a n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos, Buenos
Aires, Plus Ultra, 1976. s t e . c r o i x , G. E. M. de. Las luchas de clases en el mundo grie-
go antiguo, Barcelona, Editorial Crítica, 1988.
Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, era natural da Macedônia, con
terrâneo de Filipe e do filho deste, Alexandre Magno. Era um típico aristocrata, fi
lho de um médico abastado, Nicômaco, que soube dar ao filho refinada formação
intelectual. Aristóteles correspondeu por inteiro à expectativa do pai; conta-se, até,
que num dia em que faltou à aula, seu mestre Platão, ao observar os alunos presen
tes e constatar a ausência de Aristóteles, teria dito: “Hoje a inteligência faltou!”.
Depois de estudar durante vinte anos com Platão, foi encarregado por Filipe
da Macedônia de educar Alexandre, que se tornaria, graças às suas conquistas mi
litares, senhor de vasto império, sendo cognominado o Grande ou Alexandre Mag
no. Acompanhando seu discípulo nas expedições que caracterizaram a vida deste,
Aristóteles teve oportunidade de visitar e estudar cerca de 150 Constituições de po
vos diversos. Reunindo este valioso material em obra notável, intitulada Política,
formulou sua célebre classificação das formas de governo, adotando, para tanto,
dois critérios: o critério numérico, com o qual classificou tais formas consoante o
número de indivíduos que governam, e o critério moral, pelo qual classificou tais
formas em puras e impuras, levando em conta o intuito de o governante ou gover
nantes administrarem visando ao interesse geral ou ao benefício pessoal.
Quanto ao número de pessoas a exercer o poder (critério numérico), temos o
governo de um apenas, chamado monarquia (de monos, um, e arche, governo),
96 Teoria Geral do Estado
quando o poder é exercido no interesse geral, forma pura, portanto, ou tirania,
quando é exercido no próprio interesse do governante.
Sendo o poder exercido por uma minoria no interesse geral, temos a aristo
cracia (de aristoi, melhores, e kratos, poder), termo que, como se vê, tem sentido
original bem diferente do atual; porem, quando a minoria dominante se sustenta
na força do dinheiro ou na hereditariedade, visando tão somente seu próprio be
nefício, surge a oligarquia (de oligoi, poucos, e arche, governo), forma impura, cor
rupção da aristocracia.
Finalmente, quando o poder é exercido por muitos no interesse de todos, sur
ge a politeia, cujas formas corrompidas são a democracia (de demos, povo, e kra-
tos, poder), em que os pobres governam no próprio interesse, ou a demagogia (de
demos, povo, e agost orador), situação gravíssima em que todos se julgam aptos a
governar, sendo as massas, as multidões desorganizadas, levadas à deriva por aven
tureiros inescrupulosos, graças a uma empolgante e astuta oratória.
Em face do exposto, podemos esquematizar as formas de governo aristotéli-
cas assim:
Critério numérico
(Leva-se em conta o número dc pessoas que governam)
Monarquia: governo de um
Aristocracia: governo de poucos
Politeia: governo de muitos
Tirania: governo de um
Oligarquia: governo de poucos
Democracia: governo de muitos
Demagogia: governo de todos
Critério moral
(Leva-se cm conta a intenção dos que governam)
• Formas puras
Monarquia: governo de um no interesse geral
Aristocracia: governo de poucos no interesse geral
Politeia: governo de muitos no interesse geral
• Formas impuras
Tirania: governo de um no interesse pessoal
Oligarquia: governo de poucos no próprio interesse
Democracia: governo de muitos no próprio interesse
Demagogia: governo de todos, em que predominam as paixões e a desordem
6 Formas de governo 97
Aristóteles não propende, diretamente, para esta ou aquela forma pura de go
verno. Ele afirma que cada Estado deve adotar a forma de governo que mais se coa
dune com suas peculiaridades, até porque a melhor forma de governo é aquela que
tem os melhores governantes (Política, Livro III, Capítulo V). Sc, por um lado, a
monarquia é, na teoria, a forma ideal de governo, pois a aspiração maior do rei é
a virtude, enquanto a do tirano é o prazer, na prática, a monarquia é mais suscetí
vel de corrupção, porque a virtude e o poder raramente andam juntos. Por outro
lado, a própria democracia é mais estável que a oligarquia, porque nos regimes oli-
gárquicos a revolução pode operar contra os próprios governantes ou contra o
povo, ao passo que, na democracia, a subversão atua apenas contra a minoria oli-
gárquica. Um povo jamais se volta contra si próprio, e a politeia, forma cm que
predomina a classe média e que tem mais afinidades com a democracia do que com
a oligarquia, é também a mais estável de todas estas formas de governo (Política,
cit., Livro VIII, Capítulo I).
1.3) Políbio de Megalópolis
Bibliografia: l i n a r e s q u i n t a n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos,
Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. p o l í b i o d e m e g a l ó p o l i s . Historia universal duran
te Ia república romana, Barcelona, Iberia, Muntaner. p r é l o t , Mareei. As doutrinas po
líticas, Lisboa, Presença, 1973, v. 1. s t e . c r o i x , G. E. M. de. La Incha de clases en el
mundo griego antiguo, Barcelona, Editorial Crítica, 1988.
Natural da Arcádia, mais precisamente de Megalópolis, Políbio (205-125 a.C.)
foi um historiador grego que recebeu profunda influência das instituições romanas
de seu tempo. Embora bem-nascido e exercesse importante papel durante a guerra
entre Roma e a Macedônia (171 a 168 a.C.), ao comandar a cavalaria da liga aqueia,
foi conduzido à condição de escravo após o conflito. Todavia, seu talento logo foi
percebido nos altos círculos dc Roma e, obtendo a proteção dos Cipiões, viajou e
escreveu livremente, sendo-lhe conferida a administração da Acaia.
Impressionado com a organização da República romana, lançou-se à empre
sa de escrever a história deste período da civilização romana.
Em sua obra (da qual, num total de quarenta, restaram os primeiros cinco li
vros e anotações dos Livros I e XIII) tentou explicar como Roma, em menos de
duas gerações, conquistou o mundo conhecido na época, identificando na sadia
concepção e organização da ordem jurídico-política a razão maior de seu sucesso.
Seu trabalho, embora afetado em alguns pontos por naturais deficiências, acha-se
estribado em séria e copiosa documentação.
98 Teoria Geral do Estado
Assim como Aristóteles, Políbio reconhece três espécies boas de governo: a
realeza, a aristocracia c a democracia, distinguindo entre monarquia e realeza, sen
do aquela obtida pela força, e esta, pela equidade e a razão. Na sua História uni
versal durante a República romana, Políbio adverte que os conhecedores da Políti
ca veem três formas boas de governo: a realeza, a aristocracia c a democracia. Seria
dc sc perguntar, observa Políbio, se tais formas são as únicas ou as melhores. Em
qualquer caso há equívoco.
Não são as únicas nem as melhores, porque - e nisto reside a originalidade de
Políbio - a melhor forma de governo é aquela que sintetiza as virtudes das demais.
Como exemplo de Constituição política deste tipo, Políbio indica a de Licurgo, na
Lacedemônia. Por outro lado, como se disse, as três formas puras de governo não
são as únicas, pois, adverte Políbio, vemos certas monarquias ou tiranias distancia
rem-se muitíssimo da realeza, embora monarcas e tiranos procurem, na medida do
possível, fazer-se passar por reis. Da mesma forma, há muitos Estados governados
por uma minoria, que se busca passar por aristocracia, bem assim por democracia
(História, cit., Livro VI, Capítulo II). Observa Políbio que nem toda monarquia é
realeza, mas apenas aquela que conta com súditos voluntários, e que é exercida pela
razão, jamais por medo ou violência. Por outro lado, nem toda oligarquia merece
o cpíteto de aristocracia, mas apenas aquela em que governam os mais justos e sá
bios. Finalmente, não é a democracia a forma de governo em que o populacho faz
o que bem entende, mas apenas aquela em que o povo venera os deuses, respeita
os pais, reverencia os idosos e obedece às leis. Haverá democracia onde tais senti
mentos prevalecerem (História, cit., Livro VI, Capítulo II). Fique assentado, pois,
continua Políbio, que há seis formas de governo: três que todo mundo conhece e
outras três que com elas se relacionam, sendo que o governo pode ser exercido por
uma, por várias ou por muitas pessoas. O governo de um ou monarquia estabele
ceu-se sem arte, por mero impulso da natureza; dele deriva a realeza, que se im
planta com arte e correção. A realeza pode contrair vícios que a transformam em
tirania, de cujas ruínas surge a aristocracia. Desta, por natureza governo de pou
cos, surge a democracia, quando o povo, irritado, busca reparar os desvios dos go
vernantes, ou a oclocracia (de o cios, multidão, e kratos, poder), em que o povo se
torna insolente e menospreza as leis, implantando a irracionalidade e a inseguran
ça (História, cit., Livro VI, Capítulo II).
A Constituição da República romana, adverte Políbio, reúne as três formas
puras de governo: monarquia, aristocracia e democracia. Em relação aos cônsules
(magistrados eleitos anualmente que, em dupla, exerciam a administração pública
em substituição ao rei), o regime se assemelha ao monárquico; o Senado, por sua
vez, traz consigo a feição aristocrática da República romana e, no que tange aos
comícios populares e tribunos da plebe, o elemento democrático. Ora, tal sistema
misto, perfeitamente equilibrado, só pode trazer bons resultados, e foi durante sua
vigência que Roma conquistou Cartago e estendeu seu império pelo Mediterrâneo.
Outro grande mérito da forma mista de governo c o de resistir à natural deteriora
6 Formas de governo 99
ção pelo tempo, a que todas as outras estão sujeitas. Para Políbio, o Estado imóvel,
estacionário, é irrealizável, pois, fundado 11a filosofia de Heráclito, Políbio observa
que tudo está em movimento perpétuo; nada é estático. Toda Constituição políti
ca, por excelente que seja, tende à degeneração e ao perecimento, porque contém
em si o germe de sua própria morte.
1.4) Cícero
Bibliografia: c í c e r o . Da república, Rio dc Janeiro, Athcna, s.d. c o s t a , Emilio. Cice-
rone giure consulto, Bologna, Zanichelli, 1927, 2 v. l i n a r e s q u i n t a n a , Segundo V. Sis
temas de partidos y sistemas políticos, Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. p r é l o t , Mar
eei. As doutrinas políticas, Lisboa, Presença, 1973, v. 1.
Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), o príncipe dos jurisconsultos romanos,
além de notável orador, advogado e político, legou à posteridade escritos de gran
de valor para a literatura e a ciência política. Neste campo, escreveu Da república
e Das leis, obras importantíssimas para o Direito Público. Da república é um tra
tado formado por seis livros, do qual apenas em 1814 foi localizado, por Angelo
Mai, um antiquíssimo palimpsesto com o texto integral da obra. Quanto ao Das
leis, escrito em exaltação às leis romanas, ficou, ao que parece, inconcluso, com
apenas três dos seis livros para os quais a obra foi planejada.
Quanto às formas de governo, Cícero não se mostra muito original, ao seguir
a classificação tradicional de realeza, aristocracia e governo popular. Para Cícero,
qualquer destas espécies de governo se mostra a ideal, conforme as circunstâncias
existentes em cada Estado. Todavia, cada uma destas formas tem seus próprios de
feitos: na monarquia, todos, exceto o monarca, são privados quase completamen
te dc direitos e da participação nos negócios públicos, enquanto no governo aris
tocrático apenas o povo é livre, porque não precisa intervir nas assembléias, nem
detém qualquer poder. Finalmente, no Estado popular, embora se pense que tudo é
justo e moderado, a verdade é que prevalece a iniqüidade, visto que não há uma
natural desigualdade fundada no merecimento (Da república, cit., Livro I, Título
II). Embora considerando a monarquia a forma ideal de governo (Da república,
cit., Livro I, Título II), e o governo do povo a pior, afirmando, por outro lado, que
nenhuma forma de governo será a ideal se considerada isoladamente, propugna,
como Políbio, um sistema misto, catalisador das três formas apontadas, com recí
proca moderação (Da república, cit., Livro I, Título II). Curioso observar que no
Livro II, Título II, de Da república, Cícero se antecipa à moderna teoria de separa
ção de Poderes do Estado ao advertir que:
100 Teoria Geral do Estado
sc em determinada sociedade não são divididos equitativamente os direitos, cargos e
obrigações, de tal forma que os magistrados tenham poder excessivo, os poderosos ex
cessiva autoridade e o povo exagerada liberdade, não se pode esperar que a ordem es
tabelecida dure muito tempo.
1.5) Nicolau Maquiavel
Bibliografia: l i n a r e s q u i n t a n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos,
Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. m a c i i i a v e l l i . // príncipe e altri scritti, Novara, Edi-
pem, 1973. p r é l o t , Marcel. As doutrinas políticas, Lisboa, Presença, 1973, v. 2.
Niccolò Machiavelli (1469-1527) ou, em vernáculo, Nicolau Maquiavel, é o
famoso pensador italiano, de Florença, que deu origem ao substantivo “maquiave-
lismo”, para denominar, equivocadamente, uma suposta doutrina em que a má-fé
e a traição prevalecem, caracterizando o indivíduo “maquiavélico”. Na verdade, e
não é este o momento adequado para demonstrá-lo, em sua obra O príncipe, Ma
quiavel pôs a nu a dinâmica política, com realismo e frieza, vendo na Política uma
técnica de alcançar o poder e permanecer nele, empregando, para tanto, quaisquer
meios, desde que o objetivo fosse legítimo. Daí a frase que lhe é atribuída: “O fim
justifica os meios”. Nesse sentido, observe-se a clareza com que Marcel Prélot sin
tetiza o pensamento de Maquiavel:
A simulação e a dissimulação: o Príncipe é conhecedor das circunstâncias, é cola
borador avisado da Providência, mas é também o que engana a sorte, grande amador
da astúcia e grande adorador da força. A grandeza: o Príncipe está acima do comum.
O que o autoriza a escapar à moral é o fato de estar colocado acima da mediocridade
ambiente. Situa-se para além do bem e do mal. Cupidez, capacidade, fraude, dolo, rou
bo, libertinagem, deboche, velhacaria, perfídia, traição, que importam, visto que tudo
isso não deve ser julgado segundo a bitola comum que rege a vida privada, mas segun
do o ideal dc um Estado que sc tem dc constituir c dc manter. Desde que o Príncipe al
cance o resultado desejado, todos os meios são considerados honestos. (/\s doutrinas
políticas, v. 2, p. 40)
Quanto às formas de governo, Maquiavel formula suas espécies, e a dinâmi
ca respectiva, cm duas obras fundamentais: os Discursos sobre a primeira década
de Tito Lívio, publicada cm 1531, e O príncipe, dc 1532. Nos Discursos, Maquia
vel expõe seus conceitos referentes à forma republicana, ao passo que cm O prín
cipe o faz relativamente à forma monárquica. Logo na abertura desta última obra
adverte: “Tutti gli stati, tutti i domini cbe banno avuto e banno impero sopra li uo-
6 Formas de governo 101
I
Nicolau Maquiavel (1469-1527)
m ini, sono stati e sono o republiche o principati” (“Todos os Estados, todos os do
mínios que tiveram e tem poder sobre os homens, foram e são repúblicas ou prin
cipados”).
Nos Discursos Maquiavel lembra que pensadores antigos reconheciam três
espécies de formas de governo: a monárquica, a aristocrática e a democrática, de
vendo os legisladores de cada Estado optar por uma delas. Outros, todavia, classi
ficavam as formas de governo em seis, três péssimas e três boas - monarquia, aris
tocracia e democracia, porém estas, mesmo sendo boas, acham-se tão expostas à
corrupção que chegam a ser perniciosas também. Assim, quando o legislador orga
niza o Estado sob a égide de uma das três boas formas de governo, o faz por pou
co tempo, uma vez que não percebe que ela, fatalmente, se corrompe. Todas as for
mas de governo, isoladamente consideradas, são nocivas: as três consideradas boas,
por sua curta duração, e as demais pela malignidade que lhes é intrínseca. O legis
lador prudente não as levará em conta, estabelecendo uma forma mista de que to
das as formas boas participem , a qual será mais firme e estável, porque, numa Cons
tituição em que coexistam a monarquia, a aristocracia e a democracia, cada uma
destas formas vigia e reprime o abuso das demais (Discursos, cit., Livro I, Capítu
lo 11).
Ao contrário da maior parte dos autores clássicos, Maquiavel não reconhece
a existência de três ou seis formas de governo, mas apenas duas, como o faz em O
príncipe: a monarquia e a república. Aliás, em seu tempo, Maquiavel não conhe
ceu, na prática, mais do que duas formas de governo: república e tirania. Seu país,
dividido por lutas internas, onde as cidades formavam verdadeiros Estados em luta,
era um campo fértil para as ambições de tiranos e demagogos. Na obra Discurso
sobre a reforma da Constituição de Florença, assume postura diversa da adotada
102 Teoria Geral do Estado
nos Discursos, ao questionar a forma mista de governo, afirmando que não se pode
garantir a Constituição dc um Estado senão estabelecendo uma verdadeira repú
blica ou uma verdadeira monarquia, sendo defeituosos todos os sistemas interme
diários. A razão, prossegue, é evidente: tais governos concorrem para a destruição
tanto da república como da monarquia, conforme a forma mista deriva para uma
ou outra destas formas.
1.6) Montesquieu
Bibliografia: LINARES q u i n t a n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos,
Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. m o n t e s q u i e u . D o espírito das leis, São Paulo, Difu
são Européia do Livro, 1962, v. 1. p r é l o t , Marcel. As doutrinas políticas, Lisboa, Pre
sença, v. 3. STAHL, Federico Julio. Historia de la filosofia dei derecho, Madrid, La Es-
pana Moderna, s.d.
Charles-Louis dc Secondat, Barão dc la Brcde c dc Montesquieu (1689-1755),
nasceu em Bròdc, perto dc Bordéus. Pertencente à antiga nobreza, estudou Direito
sem ter ficado muito satisfeito, por não desejar ficar adstrito aos textos legais, mas
sim buscar o verdadeiro “espírito das leis’'. Talentoso, demonstrou pendor não só
pela História e pelas letras, sendo tido por muitos como o precursor da Sociologia,
enveredando, também, pelas ciências puras e pela própria anatomia. Em 1716 pu
blicou sua Dissertação sobre a política dos romanos na religiãoy criou um prêmio
para trabalhos sobre anatomia, publicando, também, comunicações sobre certas
doenças; escreveu sobre as glândulas renais e chegou a iniciar uma História física
da terra antiga e moderna. Conheceu toda a Europa, em especial a Inglaterra. Fez
excelentes relações de amizade, das quais poderia ter tirado grande proveito, toda
via, preferiu retirar-se para um castelo de sua cidade natal e trabalhar cm novas
obras, com base na experiência adquirida cm suas viagens. Em 1734 publica a mo
nografia Considerações sobre as causas da grandeza e da decadência dos romanos
e, em 1748, após nada menos do que vinte anos de esforços, sua maior obra O es
pírito das leis} seguida, dois anos após, de um suplemento intitulado Em defesa do
espírito das leis. Alquebrado pelo trabalho, já com mais de sessenta anos de idade,
vê sua saúde arruinada, vindo a falecer em Paris, em 1755.
Montesquieu foi o grande sistematizador do princípio da separação das fun
ções do Estado, mais conhecido como princípio da separação de Poderes, apaná
gio dos Estados democráticos contemporâneos.
Em O espírito das leis (Primeira Parte, Livro Segundo, Capítulo Primeiro),
Montesquieu afirma:
6 Formas de governo 103
Existem três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o despótico.
Para descobrir-lhes a natureza, é suficiente a ideia que deles têm os homens menos ins
truídos. Suponho três definições ou, antes, três fatos: um, que o governo republicano
é aquele em que o povo, como um todo, ou somente uma parcela do povo, possui o
poder soberano; a monarquia é aquele em que um só governa, mas dc acordo com leis
fixas c estabelecidas, enquanto no governo despótico, uma só pessoa, sem obedecer a
leis e regras, realiza tudo por sua vontade c seus caprichos.
Quando, numa republica, o povo como um todo possui o poder soberano, tra
ta-se de uma Democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte do
povo, trata-se de uma Aristocracia. O povo, na democracia, é, sob alguns aspectos, o
monarca; sob outros, o súdito.
O povo é admirável para escolher aqueles a quem deve confiar parte de sua au
toridade. Só pode decidir-se por coisas que não pode ignorar e por fatos que estão ao
alcance de seus sentidos. Sabe muito bem que determinado homem esteve muitas ve
zes em guerra e que obteve tais e tais êxitos; é, então, capaz de eleger um general. Sabe
que um juiz é assíduo, que muita gente sai dc seu tribunal satisfeita com ele, que nao
sc pode corrompc-lo: isso é suficiente para que eleja um pretor. Sc está impressiona
do com a magnificência ou com as riquezas de um cidadão, isso é suficiente para que
possa escolher um edil. Todas essas coisas sao fatos que o povo aprende melhor na
praça pública do que um monarca em seu palácio. Entretanto, saberá o povo dirigir
um negócio, conhecer os lugares, as ocasiões, os momentos e aproveitá-los? Não, não
saberá.
Tal como a maioria dos cidadãos que possuem suficiente capacidade para eleger
mas não a possuem para ser eleitos, igualmente o povo, que possui suficiente capaci
dade para julgar da gestão dos outros, não está apto para governar por si próprio.
Em cada forma de governo, adverte iMontesquieu, há que se identificar uma
natureza e um princípio. A natureza de um governo é o que faz com que ele seja o
que é, vale dizer, sua estrutura e seu mecanismo. Quanto ao princípio, vem a ser
aquilo que faz o governo agir, ou seja, a motivação das ações do cidadão, a mode
lar o espírito geral.
Da natureza do governo em Montesquieu, adverte Marcel Prélot, derivam as
“ leis políticas”, aquelas que têm como objetivo a organização governamental. Por
outras palavras, da natureza do governo procede aquilo a que chamamos, hoje, di
reito constitucional. Do princípio do governo provêm as leis civis e as leis sociais.
Estas visam a conservação dc certo meio e a escolha dc certas orientações. Diría
mos, atualmente, que princípio informa o direito público geral (As doutrinas polí
ticas, v. 3, p. 58-9).
104 Teoria Geral do Estado
Ora, o princípio das republicas é a virtude, termo que na obra de Montes-
quieu denomina a primazia dada ao interesse publico. Na república democrática,
a virtude chama-se civismo; na república aristocrática chama-se moderação por
parte dos governantes, a fim de que o povo tenha alguma participação política. Em
qualquer caso, a república e uma forma de governo adequada a Estados de peque
nas dimensões.
Quanto à monarquia, mostra sua natureza no fato de o poder político estar
nas mãos de um só homem, porém submetido ao império de leis previamente esta
belecidas. Hmbora o rei seja a fonte de todo o poder, não concentra em si toda a
autoridade, porque também é próprio da natureza da monarquia haver órgãos in
termediários subordinados e dependentes, que restringem a vontade momentânea
e caprichosa de um só homem, e assegurar a continuidade e o cumprimento das leis
fundamentais. O poder intermediário mais conveniente é o do clero; o mais natu
ral, o da nobreza, sendo um terceiro organismo um corpo de magistrados que zela
pela preservação das leis e que lembra ao monarca o dever de cumpri-las.
O princípio da monarquia vincula-sc à honra, a qual nos diz que um rei ja
mais deve ordenar uma ação que nos envergonhe, porque isto nos liberaria de ser
vi-lo.
Quanto ao despotismo, sua natureza reside no fato de o rei governar sem le
var em conta as leis, guiando-se apenas por sua vontade e seus caprichos. O prin
cípio desta forma de governo é o medo, e lembra, ironicamente: “Quando os indí
genas da Luisiana querem colher frutas, cortam uma árvore pela raiz e apanham-nas.
Eis o governo despótico”.
Por outro lado, referindo-se, indiretamente, à melhor forma de governo, as
sim doutrina íMontesquieu:
A força geral pode ser colocada nas mãos de apenas um ou nas mãos de muitos.
Alguns pensaram que, tendo a Natureza estabelecido o poder paterno, o governo de
um só estaria mais de acordo com a Natureza. Porém, o exemplo do poder paterno
nada prova, pois, se o poder do pai está relacionado com o governo de um só, depois
da morte do pai, o poder dos irmãos ou, depois da morte dos irmãos, muitos. O po
der político implica, necessariamente, a união de muitas famílias. É melhor dizer que
o governo mais de acordo com a Natureza é aquele cuja disposição particular melhor
sc relaciona com as disposições do povo para o qual foi estabclccido. (O espírito das
leis, cit., Primeira Parte, Livro Primeiro, Capítulo Segundo)
1.7) Rousseau
Bibliografia: l i n a r e s q u i n t a n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos,
Buenos Aires, Plus Ultra, 1976. m o r e a u , Joseph. Rousseau y la fundamentación de Ia
6 Formas de governo 105
democracia, Madrid, Espasa-Calpe, 1977. p r é l o t , Mareei. As doutrinas políticas, Lis
boa, Presença, v. 3. r o u s s e a u , Jcan-Jacques. O contrato social e outros escritos, São
Paulo, Cultrix.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filho de um casal de protestantes, Isaac
Rousseau e Suzanne Bernard, nasceu em Genebra. Sua mãe faleceu poucos dias
após o parto, e seu pai, premido por dificuldades financeiras, resolveu emigrar, dei
xando-o com sua tia, que orientou Jean-Jacques em suas primeiras leituras. Isaac,
emigrando, passa por uma vida atribulada, cheia de vicissitudes. Em 1753, Rous
seau publica o ensaio Origem da desigualdade entre os homens; em 1762, sua obra
mais conhecida: O contrato social. No seu trabalho sobre a origem e o fundamen
to da igualdade entre os homens, Rousseau expõe sua famosa teoria do “bom sel
vagem”, que influenciaria pensadores de todo o mundo. O único período realmen
te feliz da Humanidade, diz Rousseau, foi o estágio tribal, porque nele ainda não
existia a desigualdade social e econômica que viria depois. O contrato social, toda
via, foi tido por muitos como uma obra cheia de contradições, pecando, mesmo,
por falta de convicção do autor em determinadas passagens, cujas únicas motiva
ções seriam igualar-se a Montesquieu e adquirir prestígio fácil. Seja como for, a
obra continua a ser um clássico da literatura política e sociológica. O contrato so-
cial resume o ideal rousseauniano de um governo que limite ao mínimo sua intro
missão na liberdade dos indivíduos, conferindo a estes, todavia, a mais ampla par
ticipação política.
Em O contrato social Rousseau formula uma classificação das formas de go
verno nos moldes tradicionais:
O soberano pode, de início, confiar o depósito do governo ao povo em conjun
to ou à maioria do povo, de modo a haver maior número de cidadãos magistrados que
simples cidadãos particulares. Dá-se a essa forma de governo o nome de democracia.
Ou pode então restringir o governo às mãos dc um pequeno número, dc sorte a haver
maior número dc cidadãos particulares que dc magistrados, c esta forma dc governo
rcccbc o nome de aristocracia. Finalmente, pode o soberano concentrar todo o gover
no cm mãos dc um magistrado único, do qual todos os demais recebem o poder. Esta
terceira forma é a mais comum de todas, e chama-se monarquia, ou governo real.
Devo assinalar que todas essas formas, ou ao menos as duas primeiras, são sus
cetíveis de maior ou menor e mesmo de grande latitude, porque a democracia pode
abarcar todo o povo, ou então restringir-se até a metade. A aristocracia, por sua vez,
pode restringir-se da metade do povo até indeterminadamente ao menor número. A
própria monarquia é suscetível de alguma partilha. Esparta, de acordo com sua Cons
tituição, sempre teve dois reis, e houve, no Império Romano, até oito imperadores si
multaneamente, sem que por isso se pudesse dizer que o Império estava dividido. As
106 Teoria Geral do Estado
sim sendo, existe um ponto em que cada forma de governo se confunde com a seguinte,
e vê-se que apenas sob três formas dc domínio já se mostra o governo capaz de adqui
rir tantos aspectos diversos quantos cidadãos possui o Estado.
Há mais: podendo um mesmo governo subdividir-se, por diversos motivos, em
várias partes, uma administrada dc certa maneira, outra dc maneira diversa, pode re
sultar dessas trcs formas combinadas uma infinidade dc formas mistas, cada uma das
quais suscetível dc ser multiplicávcl por todas as formas simples. Discutiu-se cm todos
os tempos a melhor forma de governo, sem considerar que cada uma delas é a melhor
em determinados casos e a pior em outros. Se, nos diferentes Estados, o número de su
premos magistrados deve estar constituído em razão inversa do número dos cidadãos,
segue-se que, em geral, o governo democrático é o que mais convém aos pequenos Es
tados; o aristocrático aos Estados médios; e a monarquia aos grandes.
Um povo que jamais abusaria do governo também jamais abusaria da independên-
cia; um povo que sempre governasse bem, não teria necessidade de ser governado.
Rigorosamente falando, nunca existiu verdadeira democracia nem jamais exis
tirá. Contraria a ordem natural o grande número governar e ser o pequeno governa
do. É impossível admitir esteja o povo incessantemente reunido para cuidar dos negó
cios públicos; c c fácil dc ver que não poderia ele estabelecer comissões para isso, sem
mudar a forma da administração.
Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Tão per
feito governo não convém aos homens.
As primeiras sociedades governaram-se aristocraticamente. Os chefes de família
deliberavam entre si sobre os negócios públicos. Os jovens cediam sem dificuldade pe
rante a autoridade da experiência. Daí os nomes de padres, anciãos, senado, gerontes.
Os selvagens da América setentrional ainda assim se governam em nossos dias, e são
muito bem governados. Mas, à medida que a desigualdade de instituição sobrepujou
a desigualdade natural, a riqueza ou o poder foi preferido à idade, c a aristocracia pas
sa a ser eletiva. Finalmente, o poder, transmitido juntamente com os bens dos pais aos
filhos, cnobrcccndo as famílias, torna o governo hereditário, e viram-se então senado
res dc apenas vinte anos. Há, pois, trcs cspccics dc aristocracia: natural, eletiva c he
reditária. A primeira não convém senão a povos simples; a terceira é o pior de todos
os governos; a segunda é a melhor: é a aristocracia propriamente dita.
Quanto à monarquia, Rousseau demonstra sua ojeriza por tal forma dc go
verno, concedendo-lhe poucas virtudes:
Até aqui consideramos o príncipe como uma pessoa moral e coletiva, unida pela
força das leis, e depositária no Estado do Poder Executivo. Temos agora a considerar
6 Formas de governo 107
este poder reunido em mãos de uma pessoa natural, de um homem real, único investido
do direito de dele dispor segundo as leis. E o que se chama um monarca ou um rei.
Ao contrário das outras administrações, em que um ser coletivo representa um
indivíduo, nesta aqui é um indivíduo que representa um ser coletivo; desse modo, a
unidade moral que constitui o príncipe é simultaneamente uma unidade física, na qual
todas as faculdades que a lei reuniu na outra, com tantos esforços, sc achcm natural
mente reunidas.
Assim, a vontade do povo, e a vontade do príncipe, e a força pública do Estado,
e a força particular do governo, tudo enfim responde ao mesmo móbil; todas as molas
da máquina estão na mesma mão, tudo caminha para o mesmo objetivo: não há mo
vimentos adversos que se destruam mutuamente, e não se pode imaginar nenhuma es
pécie de constituição em que um esforço menor produza uma ação mais considerável.
Mas se governo não há mais rigoroso que este, também outro não há em que a
vontade particular seja mais respeitada e mais facilmente domine as outras; tudo ca
minha para o mesmo objetivo, é verdade, mas esse objetivo não é o da felicidade pú
blica; e a própria força da administração gira sem cessar em prejuízo do Estado.
Os reis desejam ser absolutos, c dc longe lhes bradamos que a melhor maneira dc
o scrcm consiste cm se fazerem amar por seus povos. Esta máxima é muito bela c ver
dadeira cm certo sentido. Infelizmente, sempre rirão disso nas cortes. O poder oriundo
do amor dos povos é sem dúvida o maior, mas precário e condicional; os príncipes ja
mais se contentarão com ele. Os melhores reis desejam ser malvados, quando lhes ape
tece, sem cessarem de ser os senhores. Por mais que se esforce um orador político em
adverti-los de que a força do povo é a sua própria e de que seu maior interesse deve
consistir em que o povo seja florescente, numeroso, temível, eles sabem perfeitamente
que tal coisa não é verdade.
Seu interesse pessoal está, antes de mais nada, em que o povo seja débil, miserá
vel, e jamais lhes possa resistir. Confesso que, imaginando os vassalos sempre inteira
mente submissos, me parece que o interesse dos príncipes residiria na existência de um
povo poderoso, a fim dc que, sendo dele tal poder, o tornasse temido dc seus vizinhos;
como, porém, tal interesse é secundário c subordinado, e as duas suposições sc mos
tram incompatíveis, é natural que os príncipes deem sempre preferência à sentença
mais imediatamente útil para eles; é o que Samuel, com vigor, apontava aos hebreus,
é o que Maquiavel demonstrou com evidência. Fingindo dar lições aos reis, deu-as ele,
e grandes, aos povos. O príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos.
Um defeito essencial e inevitável, que sempre porá o governo monárquico abai
xo do republicano, está em que, neste último, a voz pública quase nunca eleva aos
primeiros postos homens que não sejam esclarecidos e capazes e não os ocupem com
dignidade; ao passo que, nas monarquias, os que se elevam são, as mais das vezes, pe
quenos rixentos, pequenos velhacos, pequenos intrigantes, cujos pequenos engenhos,
108 Teoria Geral do Estado
que permitem, nas cortes, alcançar os grandes postos, só lhes servem para demons
trar ao público o quanto são ineptos, tão logo aí consigam chegar. No tocante a essa
escolha, o povo se engana bem menos que o príncipe, de sorte que é quase tão raro
encontrar um homem de real mérito no ministério quanto um tolo à testa de um go
verno republicano.
Um inconveniente mais sensível do governo de uma única pessoa consiste na fal
ta dessa sucessão contínua, que forma nos dois outros uma ligação ininterrupta. As
eleições abrem intervalos perigosos; são tempestuosas; e a menos que os cidadãos se
jam de um desinteresse, de uma integridade acima dos méritos desse governo, as dis
putas e a corrupção se misturam. É difícil que aquele, a quem o Estado foi vendido,
não o venda por seu turno, e não se indenize, à custa dos fracos, do dinheiro que os
poderosos lhe extorquiram. Cedo ou tarde tudo se torna venal sob semelhante admi
nistração, c a paz de que se desfruta sob o governo dos reis passa a ser então pior que
a desordem dos interregnos.
Na verdade, para Rousseau, a forma ideal de governo é a democracia, que ele
aprendeu a admirar observando a antiga Roma republicana e os cantões suíços.
Vale lembrar, entretanto, que a democracia eleita por Rousseau é a democracia di
reta, pois o governo representativo é uma forma de escravidão (O contrato social,
cit., Livro III, Capítulo XV); somente quando participa diretamente da elaboração
das leis o cidadão reafirma sua condição e é verdadeiramente livre. Quanto menos
numerosos forem os cidadãos mais a opinião de cada um terá peso, de modo que
o ideal democrático é viável apenas nos pequenos Estados da Antiguidade: “Quan
to maior o Estado, menor a liberdade”, adverte Rousseau (O contrato social, cit.,
Livro III, Capítulo I).
1.8) Kelsen
Bibliografia: a i .a d á r m é t a l l , Rudolf. Hans Kelsen (Vida y obra), Mcxico, Univcrsidad
Nacional Autônoma dc Mcxico, 1976. k e l s e n , Hans. Teoria general dei derecho y dei
Estado, Mcxico, Univcrsidad Nacional Autônoma dc Mcxico, 1979. l i n a r e s q u i n t a -
n a , Segundo V. Sistemas de partidos y sistemas políticos, Buenos Aires, Plus Ultra,
1976.
Hans Kelsen, o criador da famosa Teoria pura do direito, nasceu em 11.10.1881
c morreu cm Berkeley, na Califórnia, cm 11.04.1973. Não era austríaco, de Viena,
como geralmente se pensa, mas tchecoslovaco, de Praga. De ascendência israelita,
6 Formas de governo 109
sua vida foi pautada por perseguições raciais, em especial durante o período nacio-
nal-socialista. Conta-nos, a respeito, Rudolf Aladár Métall:
F. verdade que durante uma sessão sobre o tema Os judeus na ciência do Direi
to, o professor Erich Jung referiu-se a Kelsen como Kelsen Kohn. Certamente sessões
como esta, realizadas em 3 e 4 de outubro de 1936, sob a presidência de Karl Schmitt,
foram organizadas pelo Grupo de Professores de Educação Superior da Liga Nacio-
nal-Sociaiista dos defensores do Direito. O boato de uma pretensa mudança de nome
de Kohn para Kelsen foi repetido quase 30 anos depois, por um professor austríaco,
como sc fosse vergonhoso alguém sc chamar Kohn ou Cohn, ou como sc a importân
cia dc Hans Kelsen como cientista fosse ofuscada se ele próprio, seus pais ou mais re
motos ancestrais não sc chamassem Kelsen. (Hans Kelsen - Vida y obra, p. 9)
Tido por muitos como o grande jurista do século XX , Kelsen inovou, real
mente, ao criar uma originalíssima Teoria do Direito, não havendo nenhum exage
ro em afirmar que ele representa para a ciência jurídica o que Karl Marx represen
ta para a ciência econômica. Embora sua obra mais conhecida seja A teoria pura
do direito, é sobre a Teoria geral do direito e do Estado que nos debruçaremos para
observar como Kelsen aborda as formas de governo.
Afirma Kelsen (Teoria general dei dereebo y dei Estado, Universidad Nacio
nal Autônoma de México, 1979, p. 335) que o problema da teoria política é a clas
sificação dos governos. A teoria política da Antiguidade distinguiu três formas de
Estado (s/c): monarquia, aristocracia e democracia, e a moderna doutrina ainda
não superou essa tricotomia. A organização do poder é tida como o critério em que
a referida classificação se fundamenta. Quando o poder soberano de uma comunida-
Hans Kelsen (1881-1973)
110 Teoria Geral do Estado
de pertence a um indivíduo, afirma-se que o governo ou a Constituição são monár
quicos. Quando o poder pertence a vários indivíduos, a Constituição se diz repu
blicana. A república será uma aristocracia ou uma democracia conforme o poder
pertença a uma minoria ou a uma maioria do povo. Todavia, prossegue Kelsen, o
número dc indivíduos em quem reside o poder e um critério muito superficial (Teo
ria general, cit., p. 336). A vontade do Estado não pode ser uma vontade psicológi
ca, mas jurídica, pois a produção de um ato psíquico de vontade é uma questão psi
cológica, alheia, por natureza, à Teoria do Estado. Para Kelsen, o querer do Estado
é o dever ser de sua ordem jurídica, e a vontade estatal nada mais é do que a ima
gem do sistema normativo unitário da ordem estatal. O critério pelo qual a forma
monárquica se distingue da republicana, e a aristocrática da democracia, reside no
modo de criação da ordem jurídica. A classificação das formas de governo é, na
verdade, uma classificação das Constituições, usado este termo no seu sentido ma
terial. A distinção entre monarquia, aristocracia e democracia se refere, basicamen
te, à organização da legislação. Um Estado é considerado democracia ou aristocra
cia sc a sua legislação é dc natureza democrática ou aristocrática, mesmo que a
administração e o Poder Judiciário possam ter caráter diverso. Da mesma forma o
Estado sc classifica como monarquia quando o monarca é, juridicamente, o legisla
dor, mesmo quando seu poder nesta parcela do Executivo se ache rigorosamente
restringido e, no campo do Poder Judiciário, praticamente inexista (Teoria general,
cit., p. 336). Assim, se o critério de classificação consiste na forma em que, confor
me a Constituição, a ordem jurídica é criada, então é melhor distinguir, em vez de
três, apenas dois tipos de Constituição: a democracia e a autocracia, com funda
mento na ideia de liberdade política. Politicamente livre é o indivíduo que se encon
tra submetido a uma ordem jurídica de cuja criação tenha participado. Um indiví
duo é livre se aquilo que, de acordo com a ordem social, deve fazer coincide com
aquilo que deseja fazer. A democracia significa que a vontade representada na or
dem legal do Estado é idêntica às vontades dos cidadãos. A forma oposta à demo
cracia reside na servidão imposta pela autocracia. Nesta forma de governo, os sú
ditos se acham excluídos da criação da ordem jurídica, razão pela qual não há
garantia dc que esta se harmoniza com a vontade popular (Teoria general, cit., p.
337).
Assim definidas, a democracia e a autocracia não são realmente descrições de
Constituições historicamente consideradas, mas sim tipos ideais. Na realidade po
lítica não há nenhum Estado que se ligue, com exclusividade, a um ou outro des
tes tipos ideais. Cada Estado representa uma mescla de elementos de ambos, de tal
forma que algumas sociedades se aproximam mais do primeiro destes modelos, ou
tras do segundo. Entre estes extremos há uma infinidade de etapas intermediárias,
a maioria das quais não possui uma terminologia específica. Conforme a termino
logia usual, um Estado é democrático se nele prevalece o princípio democrático, e
autocrático se nele predomina o dogma autocrático (Teoria general, cit., p. 337).
6 Formas de governo 111
Segundo Kelsen, a democracia moderna sustenta-se nos partidos políticos,
cuja significação cresce com o fortalecimento progressivo do princípio democráti
co. Por isso considera natural a tendência a institucionalizar expressamente os par
tidos no texto constitucional, instrumentalizando-os juridicamente para o que são
há muito tempo: órgãos para a formação da vontade estatal.
2) FORMAS DE GOVERNO CLÁSSICAS
2.1) Monarquia
Bibliografia: a c q u a v i v a , Marcus Cláudio. Novíssimo dicionário jurídico, São Paulo,
Brasiliense, 1991, v. 2. b o r d e s , Jacqueline. Politeia, Paris, Les Belles Lettres, 1982.
e r r a n d o n e a , Ignacio. Diccionario dei mundo clásico, Barcelona, Labor, 1954, v. 2.
g o u v e a PINTO, Antonio Joaquim de. Os caracteres da monarquia, Lisboa, Impressão
Régia, 1824. f i g g i s , John Neville. El derecho divino de los reyes, México, Fondo de
Cultura Econômica, 1942. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 4. ed.,
São Paulo, Saraiva, 1981.
Monarquia (do grego monos, um, e ar che, governo) é a forma de governo vi
talícia em que apenas uma pessoa exerce o poder político. Quando a monarquia é
exercida visando ao bem comum, deve ser chamada realeza, mas, quando serve ape
nas de instrumento para os interesses do governante, denomina-se despotia ou des
potismo. Exercida sob a égide da legalidade, a monarquia chama-se realeza cons
titucional; todavia, se o monarca faz tábua rasa da lei, tornando-se arbitrário,
porém visando ao bem comum, deve ser denominada realeza absoluta.
Quando o governante, sem justo título de monarca, empolga o poder pela in
timidação ou pelo favorecimento de um estamento social, a forma de governo cha
ma-se tirania ou caudilhismo. Por outro lado, exercida em fraude à lei, no intuito
velado do monarca de se manter, sem legitimidade, no comando do Estado, temos
o cesarismo, porque foi Júlio César que, traindo a República, tentou perpetuar-se
no poder, sendo assassinado no ano de 44 a.C.
Pedro Salvetti Netto classifica as monarquias em absolutas ou constitucionais.
A monarquia absoluta caracteriza-se pela concentração do poder e pelo arbítrio do
rei, que governa desvinculado de qualquer limitação jurídica (solutus legibus). Por
outro lado, a monarquia constitucional mostra-se limitada pela lei: rex sub legem
quia lex faciat regem. A monarquia constitucional, a seu turno, divide-se em mo
narquia constitucional pura e monarquia constitucional parlamentar. Na primeira,
o rei exerce plenamente a função governamental, na condição de chefe de Estado
e chefe de governo, consagrado, porém, o princípio da separação e independência
112 Teoria Geral do Estado
dos poderes; na segunda, o monarca é apenas chefe de Estado, pois a chefia de go
verno é exercida pelo gabinete ou conselho de ministros.
Sem dúvida a mais antiga das formas de governo, a monarquia é tida por mui
tos como instintiva, sendo peculiar aos agregados de animais complexos, como o
das abelhas, em que uma tendência inata impele estes insetos a viver em função de
uma abelha-rainha.
A História Sagrada nos ensina que Adão foi o primeiro monarca, a ele pres
tando obediência Seth e sua família. Os títulos de pais de família, de príncipes e de
legisladores pertenceram aos patriarcas bíblicos. Os filhos de Heth (hititas) chama
ram a Abraão “senhor” e “príncipe de Deus” (Gênesis, 23, 6). A força de Moisés,
investido na Justiça de Deus para castigar a abominação e a idolatria do povo; o
poder absoluto de Josué em Socota; e em Fanuel, sem concelho popular nem con
firmação por senadores, demonstram que Deus lhes confiara sua autoridade: “Per
me Reges regnant, et Legum Conditores justa decernunt” ou “Por mim reinam os
reis, e os príncipes decretam leis justas” (Provérbios, 8, 15). Isto significa que rei
nam os reis não por convenção humana ou capricho, nem por necessidade ou aca
so, mas por Deus. Monarcas governaram egípcios, assírios, babilônios, medas, per
sas, gregos e macedônios. Entre os hebreus, a monarquia começou a sc firmar no
período dos juizes, consolidando-se com Davi c seu filho Salomão (1082-975 a.C.),
que implantou a centralização do poder. O monoteísmo hebraico proibia a divini-
zação do monarca, afirmando, por outro lado, que todo o poder vem de Deus, como
afirmavam os profetas.
Na Grécia antiga, a monarquia já era praticada na civilização micênica, rece
bendo referências nas obras de Homero (século IX a.C.). Roma inicia e termina sua
história sob a égide da monarquia, e os Estados que resultaram do esfacelamento
do Império Romano foram, todos, monárquicos: o dos francos, na França; o dos
godos, na Espanha; o dos anglos ou saxões, na Inglaterra; o dos vândalos, na Áfri
ca; o dos borgonheses, na Borgonha; o dos hérulos, ostrogodos e longobardos, na
Itália; o dos hunos, na Hungria; o dos búlgaros, na Bulgária; o dos sarracenos, na
Síria, Egito, Mesopotâmia c Arábia.
A monarquia teria passado por quatro estágios históricos, a saber: o familiar
ou patriarcal, o guerreiro, o teocrático e o civil. Todavia, para alguns autores, não
há que falar em monarquia patriarcal, pois a monarquia exige um Estado perfeita
mente integrado em seus elementos formadores, ao passo que o patriarcado era
exercido em comunidades pouco desenvolvidas, como a tribo.
Quanto à forma de sucessão, na monarquia há três: hereditariedade, eleição
e cooptação. Monarquia eletiva encontramos na história de Roma, durante o pe
ríodo monárquico (753-509 a.C.), até o rei Túlio Hostílio. Exemplo contemporâ
neo de monarquia eletiva temos na eleição do Papa, efetuada por um colégio car-
dinalício. Quanto à cooptação, trata-se de uma forma de investidura em que o
sucedido escolhe, livremente, o próprio sucessor. Como exemplo, o de Nerva, se
6 Formas de governo 113
nador romano, fundador da dinastia, que escolheu como sucessor Trajano, um de
seus generais. Também na história dos Incas, reis peruanos que criaram vasto im
pério na América do Sul pré-colombiana, temos exemplo de cooptação na escolha
aleatória, pelo rei Huayna Capac, dc seus filhos Huáscar e Ataualpa, que deveriam
governar um império fragmentado em duas metades. Os herdeiros, mutuamente
enciumados, ocasionaram sangrenta guerra civil, que ensejaria a fácil conquista do
Peru pelos espanhóis comandados por Francisco Pizarro.
2.2) República
Bibliografia: a n a n i a s n e v e s , Márcia Cristina. Nova terminologia jurídica, São Paulo,
Rideel, 1992. b e n e y t o p e r e z , Juan. Historia de las doctrinas políticas, 2. ed., Madri,
Aguilar, 1950. b o d i n , Jean. Les six livres de la republique, Aalen, Scientia Verlag, 1977.
c í c e r o , Marco Túlio. Delia repubblica, Garzanti, 1946. c r e t e l l a j r . , José. Curso de
direito romano, Rio de Janeiro, Forense, 1968. l a f e r r i è r e , M. F. Histoire des princi-
pes, des institutions 6c des lois pendant la Révolution Française, Paris, Libr. Cotillon,
1851-1852. m a l e t , Alberto. Historia romana, Buenos Aires, Libr. Hachette, s.d. m at-
t e u c c i , Nicola. “República”, in Diccionario de política, 3. ed., de Norberto Bobbio e
Nicola Matteucci, México, Sigla XXI, 1985, v. 2. m e i r a , Silvio A. B. Curso de direito
romano (História e fontes), São Paulo, Saraiva, 1975. m o n t e s q u i f . u . D o espírito das
leisy São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962, v. 1. p r é l o t , Mareei e b o u l o u i s ,
Jean. Institutions politiques et droit constitutionnei 7. ed., Paris, Dalloz, 1978. r o s s i ,
Pcllcgrino. Cours de droit constitutionnei Paris, Guillaumin, 1866, v. 1. s a m p a io d ó -
r i a . Direito constitucional 5. ed., São Paulo, Max Limonad, s.d., v. 1, t. 2.
Do latim res publica (aquilo que pertence ao povo), o termo república indica,
do ponto de vista semântico, o próprio interesse público, ou seja, tudo o que é ine
rente à sociedade. De modo usual, todavia, república significa uma forma de go
verno caracterizada, essencialmente, por não ser vitalícia como a monarquia, pois
seus cargos políticos são preenchidos, periodicamente, conforme a vontade do povo,
manifestada por eleições, em que a comunidade escolhe seus representantes políti
cos; ou votações, em que ela manifesta, por maioria, sua vontade a respeito de ou
tros assuntos de seu interesse. Então, a essência da república não reside, propria
mente, no fato de ser eletiva - porque há monarquias eletivas, como o Papado, por
exemplo -, mas no fato de seus cargos políticos não serem vitalícios.
Observa o Prof. Sampaio Dória:
República é governo do povo. Pelo povo, quando representativo. E, para o povo,
sempre. No governo republicano, qualidades há essenciais, e, entre elas, atributos pri
114 Teoria Geral do Estado
vativos. Não há republica representativa sem eletividade dos que fazem a lei. Mas esta
qualidade, embora essencial à república, que não prefira o governo, direto, não lhe é
exclusiva, pois que também pode existir na monarquia. O que realmente caracteriza a
república como elemento privativo é a eletividade e a temporariedade do chefe do exe
cutivo. Esta, sua qualidade específica. Não há república, senão quando c o chefe eleito
pelos governados, c por tempo certo. Onde houver governo com chefe eleito pelo povo,
por tempo determinado, aí se terá república. (Direito constitucional, v. 1, t. 1, p. 155)
Sendo popular; a república apresenta analogia com a democracia da antiga
Atenas, onde uma parcela da população deliberava, diretamente, sobre os negócios
dc Estado. Na verdade, como já foi dito, muito mais do que uma forma de gover
no como a monarquia, termo que ressalta a raiz arquia (do grego arche, governo),
república (latim) e politeia (grego) são expressões que denotam o próprio interes
se público, aquilo que é inerente à sociedade, e não apenas denominações de for
mas de organização do poder.
Foi Marco Túlio Cícero quem delimitou, com precisão, o sentido mais autên
tico de res publica, ao demonstrar que “res publica res populi, populis autem non
omnia hominum coetus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis iuris
consensu et utilitatis communione sociatus”, ou “a república é coisa do povo, e
povo não é mero ajuntamento de pessoas postas lado a lado, mas uma convivên
cia consciente de pessoas que se torna sociedade pelo reconhecimento de um direi
to e de um objetivo comuns” (Da república, Livro I, § XXV).
Ao destacar como elementos essenciais da república o interesse comum e, princi
palmente, o consenso sobre uma lei comum, mediante a qual uma comunidade afir
ma sua ideia dc justiça, Cícero opôs à república todas as formas dc governo injustas.
No plano histórico, a república surgiu como uma inovação revolucionária, re
sultante da queda da monarquia etrusca, por volta de 510 ou 506 a.C., quando o
rei Tarquínio, o Soberbo, foi deposto, fato este visto como mais um reflexo da de
cadência das monarquias então existentes na Itália, no final do século VI a.C.
Na época monárquica, a par do rei atuavam os cônsules e o Senado, este for
mado exclusivamente por patrícios, de modo que a derrubada da monarquia foi
vista com indiferença pela plebe.
O rei foi substituído por dois cônsules ou praetores, dos quais os primeiros
foram Lúcio Júnio Bruto, que comandou a deposição de Tarquínio, e Tarquínio Co-
latino.
Os cônsules - sempre patrícios - eram eleitos por uma assembleia em que pre
dominava, evidentemente, o patriciado. Entretanto, a investidura consular durava
apenas um ano, com que se esperava inibir dc vez qualquer tentativa de restaura
ção da monarquia. A investidura dos cônsules lhes dava o imperium (poder de man
do) e a auctoritas patrum, reconhecimento oficial e inapelável de sua investidura
pelo Senado. Então, o consulado apresentava duas características essenciais: cole-
6 Formas de governo 115
gialidade (eram dois os cônsules, atuando em conjunto), e a anualidade, que torna
va a república inconfundível com a monarquia.
Já na Idade Moderna, Jean Bodin emprega o termo república para denomi
nar, indistintamente, a monarquia, a aristocracia e a democracia, desde que dota
das de um droit gouvernement, distinguindo-as, portanto, das formas políticas fun
dadas na violência ou na desordem.
Com Nicolau Maquiavel, a tradicional classificação das formas de governo
(monarquia, aristocracia, democracia e governo misto) é substituída por outra, mais
singela: repúblicas e principados, cuja distinção reside no fato de, nas repúblicas,
os magistrados serem eleitos.
Maquiavel tratou do principado ou monarquia na sua obra mais conhecida,
qual seja, O príncipe, mas é no melhor de seus livros, Discursos sobre a primeira
década de Tito Lívio, que estuda a república.
Para Montesquieu, as formas de governo são a monarquia, a república - di
vidida em aristocrática e democrática - e o despotismo. A república floresce em Es
tados de pequena extensão territorial, ao passo que a monarquia exige uma área
física considerável, e o despotismo outra ainda maior. Por outro lado, prossegue,
sc na república há uma relativa igualdade, na monarquia a desigualdade em favor
da nobreza c verdadeiro pressuposto, integrando a natureza mesma desta forma de
governo, enquanto, no despotismo, a desigualdade se torna escravidão. Ademais,
numa república as leis vêm a ser a expressão da vontade do povo, porque se o povo
não é apto a legislar, sabe escolher seus representantes legisladores. Na monarquia,
entretanto, quem faz a lei é o monarca, embora tolhido em eventuais arbitrarieda
des pelas Constituições, ao passo que o déspota governa e julga mediante leis arbi
trárias e ocasionais.
Com a independência das colônias norte-americanas em 1776, surgiram os
Estados Unidos da América do Norte, trazendo uma nova forma de Estado, a fe
derativa, e uma robusta concepção de república, fundada, doutrinariamente, não
só no fato do repúdio à monarquia, mas também na implantação de uma demo
cracia representativa, portanto, popular, na qual haveria separação de poderes fun
dada num sistema de fiscalização mútua entre estes, denominado sistema de freios
e contrapesos ou checks and balances.
Quanto ao Brasil, adotamos com a independência e a primeira Constituição,
de 1824, a forma unitária de Estado e a monarquia constitucional como forma de
governo. Entretanto, a Proclamação da República, em 1889, representou verdadei
ra revolução política, pois todas as instituições foram subvertidas, substituindo-se
a forma unitária de Estado pela forma federativa; a forma monárquica pela repu
blicana; e o regime parlamentarista pelo presidencialista, sem falar no afastamen
to compulsório de Pedro II.
116 Teoria Geral do Estado
A partir da Proclamação da República, em 1889, já no dia mesmo da procla
mação, 15 dc novembro, o Governo Provisório emitia o Decreto n. 1, cujo art. I o
declarava: “Fica proclamada provisoriamente e decretada como a forma de gover
no da nação brasileira - a República Federativa”.
Tal decisão seria confirmada com a primeira Constituição republicana, de
24.02.1891, em seu art. 1°, assim:
A Nação Brasileira adota como forma de governo, sob o regime representati
vo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se,
por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias, cm Estados Unidos do
Brasil.
As demais Constituições brasileiras (1934,1937,1946, 1967 e 1988) adota
ram a república como forma de governo, sendo que a vigente, de 05.10.1988, trou
xe significativa inovação, qual seja, a possibilidade de o povo se manifestar, direta
mente, cm plebiscito, sobre a forma dc governo, conforme previsto no art. 2° do
Ato das Disposições Transitórias. Com isto, ficou abolida a cláusula pétrea ou de
imutabilidade da forma dc governo, mesmo por via de emenda, que constava dos
arts. 72 do Decreto n. 1, dc 15.11.1889, 90, § 4o, da Constituição de 1891, 178, §
5o, da Constituição de 1934, 217, § 6o, da Constituição de 1946, e 47, § I o, da
Constituição de 1967. Cláusula pétrea, como definida por Márcia Cristina Ananias
Neves, vem a ser a
norma constitucional que impede, dc forma absoluta, a revogação ou modificação dc
determinados artigos. Assim o art. 90, § 4°, da primeira Constituição republicana, dc
24.02.1891, que proibia a abolição da forma republicana federativa, vedando, com
isto, a atuação dos monarquistas em prol da restauração da realeza; da mesma forma,
o art. 60, § 4°, da atual Constituição, que impede qualquer emenda que vise a abolir
direitos e garantias individuais, embora permitindo, graças ao art. 2°, caput, das Dis
posições Transitórias, a volta da monarquia. (Nova terminologia jurídica, São Paulo,
Rideel, 1992, p. 70)
2.3) Aristocracia
Bibliografia: b o b b i o , Norberto e m a t t e u c c i , Nicola. Diccionario de política, Méxi
co, Siglo XXI, 1985, v. 1, c Dizionario enciclopedico dei diritto, Novara, Edipcm, 1979,
v. 1. GARNIER-PAGES, E. Dictionnaire politique, Paris, Pagncrre, 1848. g l o t z , Gusta-
ve. A cidade grega, 2. ed., Difusão Editorial, 1988. p o n s a t i , Arturo D. Lecciones de
6 Formas de governo 117
historia de las instituciones, Buenos Aires, Astrea, 1976. s c h o e m a n n , (J. F. Antiquités
grecques, Paris, Picard, 1884, t. 1.
Aristocracia (do grego aristoi, melhores, e kratos, poder, domínio) significa, li
teralmente, governo dos melhores, dos sábios, enfim, daqueles que apresentam su
perioridade não só intelectual, mas também moral. Aristóteles, que individualizou
com maestria essa forma de governo, afirmou que a aristocracia é o governo con
fiado aos melhores pelos cidadãos, sem distinções de nascimento ou riqueza (Polí
tica, IV, 5, 10).
Por outro lado, se definições clássicas de aristocracia as encontramos em Pla
tão e Aristóteles, já Heródoto (480-425 a.C.), cognominado o pai da História, men
cionava trcs formas de governo (de um, de poucos, dc muitos), orientação destinada
a enorme ressonância. A par da monarquia e da isonomia (em substituição à demo
cracia), Heródoto faz menção à oligarquia, quase não tratando da aristocracia.
Em Platão, o termo aristocracia não se funda nas virtudes militares (inerentes
à primitiva nobreza grega), mas na virtude e na sabedoria. Caberia aos sábios, aos
melhores, enfim, dirigir o Estado no rumo do verdadeiro bem (A república, II, V).
Segundo Platão e Aristóteles, os aristoi, por serem moral e intelectualmente superio
res, não podem deixar de ser aqueles que pertencem às classes mais elevadas da so
ciedade, em oposição aos kakói ou mal-nascidos, de má índole, enfim, a plebe.
Na antiga Grécia, as origens da aristocracia remontam aos tempos homéri-
cos, designando o estamento que limitava o poder do rei (basileus). Durante o sé
culo VII a.C. ocorreram sensíveis modificações socioeconômicas, surgindo uma
nova elite, estribada não mais na propriedade fundiária ou no sangue, mas na ri
queza pecuniária, e que seria denominada oligarquia, embora mantendo em seu
tempo, prudentemente, a denominação aristocracia.
Em Roma, a aristocracia teve seu maior destaque durante a república senato
rial (509-27 a.C.); por outro lado, como assinala Arturo D. Ponsatti, ao contrário
do que proclamaram Políbio e Cícero, o equilíbrio da Constituição romana já não
era o mesmo no século II a.C. A intermitência dos comícios populares, a periodici
dade e a colegialidade da magistratura transformaram o Senado no órgão estável
por excelência da República, o verdadeiro centro da estrutura política do Estado
romano. As minorias dirigentes, que sucessivamente exerceram o poder social e po
lítico em Roma, fizeram, portanto, do Senado o instrumento e símbolo de sua as
cendência; e ao transformar-se em minorias dominantes, em oligarquias socialmen
te disfuncionais que haviam perdido o fundamento moral de seu poder, encontraram
no Senado o reduto dc seus privilégios, o bastião largamente inexpugnável de sua
injustificável dominação (Lecciones de historia de las instituciones, Buenos Aires,
Astrea, 1976, p. 313).
118 Teoria Geral do Estado
A partir da Idade Média, a aristocracia deixou de ser, terminologicamente,
uma forma dc governo para indicar um estamento diverso da burguesia e do cle
ro, e que se sobressaía pelos altos postos militares e por privilégios transmitidos he-
reditariamente. Todavia, com o aparecimento do Estado moderno, as mutações eco
nômicas diminuíram substancialmente a importância da aristocracia, que veio a
perder para a burguesia a condição dc sustentáculo das monarquias absolutas. Com
a Revolução Francesa, a aristocracia, no seu sentido original, desapareceu, por com
pleto, da Europa.
2.4) Democracia
Bibliografia: b a s t o s , Celso Ribeiro. Curso de teoria do Estado e ciência política, São
Paulo, Saraiva, 1986. b o n a v i d e s , Paulo. Ciência política, Rio de Janeiro, Forense,
1978. c a b r a l d e m o n c a d a , Luís. Problemas de filosofia política, Coimbra, Armênio
Amado, Sucessor, 1963. d a i .l a r i , Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Es
tado,, 14. ed., São Paulo, Saraiva, 1989. d o m e n a c h , Jean-Marie. A propaganda polí
tica, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1963. f e r r e i r a f i l h o , Manoel Gonçalves.
A democracia possível, São Paulo, Saraiva, 1979, e Direito constitucional comparado%
São Paulo, Bushatsky/Universidade de São Paulo, 1974, v. I. f u s t e l d e c o u i .a n g e s ,
Numa Denis. A cidade antiga, São Paulo, Martins Fontes, 1981. m a i s c h , R. e p o h l -
h a m m e r , F. Instituciones griegas, Barcelona, Labor, 1931. m f .l l a , Vásquez dc. Obras
completas, Barcelona, Casa Subirana, 1931. m i c h e l s , Robcrt. Los partidos políticos,
Buenos Aires, Amorrortu, 1972, v. 2. o c t a v i o , Rodrigo c v i a n n a , Paulo D. Elemen
tos de direito público e constitucional brasileiro, Rio dc Janeiro, Briguict, 1927. p l a -
TÃo. Obras completas, Madri, Aguilar, 1979. p r é l o t , Marcel. Politique d'Aristote, Pa
ris, PUE, 1950. r u f f i a , Paolo Biscaretti di e c r e s p i , Reghizzi Gabriele. La constituzione
soviética dei 1977, Milano, Giuffrè, 1979. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do
Estado, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 1984, e 4. ed., 1981. s e i g n o b o s , Charles. História
sincera da França, São Paulo, Nacional, 1938. s i e b e r t , Fred S. e p e t e r s o n , Theodo-
re. Tres teorias sobre la prensa, Buenos Aires, Ed. de la Flor. s i é y è s , Emmanuel Joseph.
Quest-ce que le Tiers État?, Cíenève, Droz, 1970. s o u z a , José Pedro Galvão de. Polí
tica e teoria do Estado, São Paulo, Saraiva, 1957; Conceito c natureza da sociedade
política, São Paulo, 1949. t e l l e s j r ., Goffredo. A democracia e o Brasii São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1965. v a n i b e n f i c a , Francisco. Curso de teoria do Estado/Di
reito constitucional /, 2. ed., Rio dc Janeiro, Forense, 1984. v i e i r a , Roberto A. Ama
ral. Introdução ao estudo do Estado e do direito, Rio dc Janeiro, Forense, 1986. w h i -
t a k e r d a c u n i i a , Fernando. Teoria geral do Estado/Introdução ao direito
constitucional, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1990.
6 Formas de governo 119
2.4.1) In trodução ao tema
Dividiremos este capítulo, com finalidade didática, em duas partes: evolução
da doutrina democrática e espécies de democracia. Iniciemo-lo com a concepção de
democracia entre os antigos gregos.
À primeira vista, a Grécia parece formar uma unidade geográfica; um exame
mais atento, contudo, mostra-nos que a natureza dividiu aquele conjunto num gran
de número de vales e planícies, separados um dos outros por baías e cadeias de
montanhas. Neste país surgiram inúmeras pequenas comunidades, todas elas ani
madas dc fervoroso patriotismo. Para elas, o Estado não era uma abstração somen
te compreensível com o auxílio de um mapa, e sim uma realidade palpável. A cida
de não era um produto da razão; era, isto sim, um povo, um conjunto de cidadãos,
dotados de inabalável consciência social e de zelo pela tradição. O ateniense, em
especial, via na participação da vida pública o supremo bem a ser almejado por um
homem. A cidadania era grande objetivo do ateniense, pois, além de lhe assegurar
a participação efetiva na vida pública, lhe garantia os direitos subjetivos. Já se dis
se que a maioria dos ideais políticos modernos - justiça, liberdade, governo cons
titucional - surgiram na antiga Grécia. Foram os gregos os primeiros a lançar as
sementes da ideia democrática, sementes que foram conservadas pelos filósofos da
Idade Média e que frutificaram na modernidade.
2.4.2) Dem ocrac ia direta
Bibliografia: b o n a v i d e s , Paulo. Ciência política, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio
Vargas, 1974. N i r r i , Francesco. La démocratie, Paris, Alcan, 1933. m o s s h , Claude. Di
cionário da civilização grega, Rio dc Janeiro, Jorge Zahar, 2004.
Na Grécia, a democracia foi praticada na forma direta; era a chamada demo
cracia clássicay na qual os membros de uma comunidade deliberam diretamente,
sem intermediação de representantes. Isto era possível na prática porque a cidade
era de reduzidas dimensões e a população diminuta. Assinala Paulo Bonavides:
A democracia antiga era a democracia de uma cidade, de um povo que desco
nhecia a vida civil, que se voltava por inteiro à coisa pública, que deliberava com ar
dor sobre as questões do Estado, que fazia de sua assembleia um poder concentrado
no exercício da plena soberania legislativa, executiva e judicial. Cada cidade que se
prezasse da prática do sistema democrático manteria com orgulho um Agora, uma pra
ça, onde os cidadãos sc congregassem todos para o cxcrcício do poder político. O Ago
ra, na cidade grega, fazia pois o papel do Parlamento nos tempos modernos.
120 Teoria Geral do Estado
Para se ter presente o apego do antigo grego à sua cidade, basta lembrar que
a pólis não era dotada do exército permanente; sua defesa dependia dos próprios
cidadãos, que eram os únicos a possuir armas. Tão logo se desobrigava de suas ocu
pações habituais, o ateniense sc voltava para a atividade política. As assembléias
eram realizadas numa praça denominada agora (do grego agos, orador, aquele que
tem o direito de falar), costume já mencionado por Homero. Tais assembléias ti
nham caráter informal e não desfrutavam de poder relevante. Por outro lado, a par
tir de meados do século VIII a.C., um lugar privilegiado se reserva à ágora, na qual
se cruzam as principais artérias da cidade.
Em Atenas, com o triunfo da democracia direta, a ágora tem seu prestígio au
mentado e as reuniões passam a ser mais freqüentes, no bouleuterion e na tholos,
onde deliberavam os prítanes, magistrados que presidiam as sessões do conselho e
da assembleia. Os gregos, lembra Francesco Nitti, consideravam um povo sem ágo
ra um povo escravo, sem liberdade de opinião e de sufrágio.
Como os cidadãos eram frequentemente chamados a participar das assem-
bleias, aqueles que residiam fora da cidade não eram considerados cidadãos. Com
efeito, apenas aqueles que integravam um demos (município), dirigido por um de
marca, participavam da política. Daí a expressão democracia, que significa gover
no do demos. Por outro lado, o grande número de escravos existente em Atenas
permitia que o tempo do cidadão dedicado à política fosse quase integral. O cida
dão, que não era opulento, vivendo com simplicidade e modéstia, considerava o
ócio a mais pura atividade espiritual, voltada à contemplação e ao estudo dos te
mas filosóficos. Empregava-se então a expressão nec ócio (daí, as expressões negó
cio e negociante) para designar atividades lucrativas, puramente materiais, por ele
consideradas desprezíveis. A civilização contemporânea, pragmática e materialista,
perverteu o sentido original destes vocábulos de tal forma que seu valor foi inver
tido; hoje, o negócio desfruta, quase sempre, de um prestígio muito maior do que
o ócio, tido este como falta de vontade e entusiasmo para o trabalho, quando não
vadiagem pura e simples.
Aristóteles costumava dizer que todo c qualquer trabalho manual deveria ser
executado por escravos, de forma que os cidadãos pudessem dispor de seu tempo
para as atividades políticas. Assim, a pólis via seu elemento humano formado por
três estamentos: inicialmente, os cidadãos (enpátridas), dotados do direito de par
ticipação na vida política, sendo tal direito transmitido de pai para filho. O grego
era considerado cidadão da pólis a que pertenciam seus pais. O segundo estamen
to compreendia os metecos ou estrangeiros que não participavam da vida pública,
embora fossem livres e sua exclusão da política não significasse discriminação so
cial, mesmo porque na própria atualidade o estrangeiro não possui certos privilé
gios atribuídos ao cidadão nato. O terceiro e último estamento era formado pelos
escravos. Estes realizavam serviços manuais e eram benignamente tratados, poden
6 Formas de governo 121
do alcançar sua liberação em face de bons serviços prestados aos seus proprietá
rios. Frise-se que o próprio Estado podia ter escravos, que exerciam funções publi
cas menos significativas. A metecos e escravos em Atenas correspondiam, em Esparta,
periecos e ilotas, respectivamente. Ao eupátrida ateniense correspondia o esparcia-
ta ou lacedemônio.
Em Esparta, cidade situada no alto do vale do Eurotas, fertilíssima região da
Grécia, a organização política, fundada na monarquia, consagrava, entretanto, a re
pública aristocrática governada por um conselho de trinta membros, auxiliado por
dois reis. O eforato era um órgão importantíssimo na política espartana, tendo por
missão proteger os interesses dos esparciatas (cidadãos) nas relações com outros Es
tados, contra periecos e ilotas, estes últimos o estamento mais numeroso.
Quem nos dá uma visão realista da democracia grega é Fustel de Coulanges,
no capítulo XVIII de sua obra A cidade antiga. Percebe-se, pela leitura do texto,
que a participação do cidadão 110 processo político era muito mais um dever do
que um direito. O Estado intervinha em tudo, até mesmo no modo de trajar do ho
mem ou da mulher, de forma que não é difícil chegar-se à desagradável conclusão
de que o ideal totalitário se amalgamava com a própria democracia grega, não sen
do raras, diga-se de passagem, as tiradas organicistas de Platão e dc Aristóteles nas
respectivas obras. Não havia, então, a palavra aterradora totalitarismo, criada, mi
lênios depois, pelo fascismo. A mentalidade totalitária ou organicista, contudo, já
se fazia presente.
2.4.3) Dem ocrac ia representativa
Justificada, em parte, pelos excessos do absolutismo em França, a liberal-de-
mocracia, a par de inegáveis conquistas 110 campo da liberdade e da propriedade
individuais, fundamentou aberrações doutrinárias de malévolos efeitos. São figu
ras de realce no pensamento liberal individualista John Locke, Jean-Jacques Rous
seau e Emmanuel Joseph Siéyès. Locke é, 11a verdade, 11111 dos criadores da ideolo
gia iluminista, iniciada na Inglaterra por volta de 1680 e fundamentada cm rígido
racionalismo oriundo, cm especial, de Thomas Hobbes. Seus preceitos básicos po
deriam ser resumidos em três: a) o guia infalível da sabedoria é a razão; b) inexis-
te o pecado original: o homem é levado à corrupção pelo próprio poder político;
c) a vida do homem em liberdade absoluta, na própria natureza, é preferível à vida
em civilização, que, com suas ultrapassadas concepções criadas para manter o po
der do clero e da monarquia absoluta, torna-se insuportável.
Em sua obra Segundo tratado do governo civil, Locke procura fundamentar
a forma de governo parlamentar introduzida 11a Inglaterra pela Revolução de 1688,
condenando o absolutismo. No seu modo de ver, os homens viviam, originalmen
te, em liberdade e igualdade absolutas, numa sociedade anárquica, isto é, despro
vida de poder, imperando a lei da natureza. Para melhor alcançar seus objetivos in
122 Teoria Geral do Estado
dividuais, resolveram, mediante um pacto voluntário, instituir a sociedade política,
outorgando a esta um poder de mando destinado a executar a referida lei natural.
A comunidade teria, contudo, direito de, a qualquer momento, rebelar-se contra os
possíveis excessos dos governantes. A única função do Estado seria, portanto, man
ter a ordem, preservando a liberdade individual; era, por conseguinte, relegada a
um segundo plano toda a ideia dc progresso e de bem-estar social. Já se disse que,
se Locke tivesse de optar entre a desordem e o despotismo, escolheria, sem dúvida,
a primeira hipótese.
Rousseau, por sua vez, um dos corifeus da Revolução Francesa, dizia em sua
obra O contrato social: “O homem nasce livre e em toda parte se acha aprisiona
do'’. Como Locke, Rousseau afirma que o homem surge num estado de liberdade
absoluta, o chamado estado de natureza, no qual também a felicidade seria abso
luta. Quando surge a vida em sociedade, o homem perde tal liberdade e se corrom
pe. Essas ideias de Rousseau acham-se situadas especialmente em O contrato so
cial1, Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens e Nova Eloísa. O
homem, diz ele, é um bom selvagem, sua natureza é sã, mas a sociedade o corrom
pe. Ora, é a liberdade dos bons tempos que o faz bom: portanto, a sociedade polí
tica conveniente é aquela que garante a mais ampla autonomia individual; é aque
la que reduz ao mínimo os vínculos sociais c a pressão exercida pela sociedade
sobre o homem. Perdida a liberdade natural, a restauração do caráter do homem
se faz com a liberdade civil, ideal maior do Estado. A liberdade passa, então, a ser
um fim em si mesma, e a própria sociedade nada mais é que o objeto de um con
trato,, fruto da vontade e não de uma inclinação natural. A própria família somen
te se mantém em razão de laços contratuais. O individualismo, aliás, reduz o casa
mento a um contrato e, como tal, dependente de um acordo de vontades, que podem
dissolvê-lo livremente; daí o divórcio.
Emmanuel Joseph Siéyès (1748-1836)
6 Formas cie governo 123
Q U E S T - C E Q U E
LE T I E R S - É T A T ?
X j E plan d c cct E c m c ít aflèz fimplc. Noui avons trois queftions i nous faire.
1®. Q u cft-cc que le Tiers-Ecat » T o u t .
í®. Q ua-t-il & c jufqti a prcfcnt dans 1'ordrc politiquci RiEM.
3°. Qtiç dcmandc-c-il f A dcvcnir QUELQUE G H O S E .
O n v.i voirfi les reponfes font juftes. Nous cx i- mincrons cnluitc les rooyensquc 1 on a eflayés / íc c c u x q n c l on doic prendre, afin que IcTicrs- Etat devienne, en c ffc t, quclqu* chofe. Ainft nous d iron s: *
4 ° . C c que les Miniftrcs ont ttn ti, & c e q u ePrivilegies cux-m cm cs propofaic cn fa
faveur.
5°. C c q u o n auroit Jú fairc.
C °. Enfin , cc qui rtjle i fairc au Ticrs pour prendre U p h cc qvú lui cft dúc.
A i,
Frontispício da obra clássica de Siéyès Que é o Terceiro Estado?
Já estamos vendo que, tanto para Locke como para Rousseau, a liberdade é
o bem supremo do ideal democrático. Rousseau vai ao ponto de afirmar que o ho
mem, naturalmente independente, não pode participar da vida em sociedade a não
ser conservando sua soberania pessoal. Por isso, Rousseau era adversário ferrenho
da chamada democracia representativa, por ser contrária à lei natural a proposição
de que a maioria governa a minoria. Só pode haver democracia, dizia Rousseau,
onde houver deliberações tomadas diretamente pela comunidade, sem intermediá
rios.
Num dos mais valiosos capítulos de seu O contrato social (Livro Terceiro,
Capítulo XV), Rousseau é bastante claro e incisivo a esse respeito:
Logo que a função pública deixa de ser a principal atividade dos cidadãos, que
se preocupam mais com o dinheiro do que com sua própria pessoa, o Estado se encon
tra à beira do colapso. É preciso combater? Pagam a mercenários e ficam em casa. É
preciso ir ao parlamento? Nomeiam deputados e continuam a ficar em casa. Inércia e
dinheiro ensejam soldados para dominar a pátria e deputados para a venderem.
Num Estado verdadeiramente livre, os cidadãos fazem tudo com a força dc seus
braços, nada com o ouro; não pagam para se desobrigar dc suas obrigações, mas para
as cumprirem.
Num Estado bem dirigido, todos freqüentam as assembleias, mas com um mau
governo ninguém se interessa pelo que nelas se delibere. Todos estão certos de que ja
124 Teoria Geral do Estado
mais a vontade geral prevalecerá, mesmo porque as ocupações particulares ocupam
todo o tempo. Boas leis criam outras melhores; más leis acarretam outras piores. E
quando alguém diz: Que me importa o E s tad o este está perdido.
A soberania não pode ser representada, pois não admite alienação. Ela se expres
sa pela vontade geral, c esta não admite representantes; ou é ela ou não e; não há meio-
termo. Os deputados não são c nem podem ser representantes do povo; são, quando
muito, elementos de uma comissão e não podem concluir nada em definitivo. Toda lei
que o povo, em pessoa, não aprove, é nula, jamais será uma lei. O povo inglês pensa
que é livre, porém está enganado; só é livre durante a eleição dos membros do parla
mento; logo que estes são eleitos, passa a ser escravo e nada é. Nos poucos momentos
em que usufrui de liberdade, utiliza tão mal esta, que bem merece perdê-la.
Se Rousseau é inimigo figadal da democracia chamada representativa, Siéyès
será o grande inspirador desta. Emmanuel Joseph Siéyès foi um abade que teve uma
vida política destacada. Deputado do povo, presidente da Constituinte francesa re
volucionária, foi adversário de Robespierre. Apoiou Bonaparte no golpe do 18 Bru-
mário, mas não conseguiu que seu projeto de Constituição fosse adotado. Exilado,
voltou para a França em 1830.
Siéyès escreveu dois explosivos panfletos, considerados tão importantes para
a Revolução Francesa como o Manifesto comunista, de Marx e Engels, para a Re
volução soviética. Esses dois panfletos se intitulam Ensaio sobre os privilégios, no
qual Siéyès incrimina, como contrária à natureza, a própria ideia de privilégio, e
Que é o Terceiro Estado?, obra da qual se serve para combater a pluralidade de es
tamentos do ordenamento constitucional monárquico, propondo a unidade da na
ção e do chamado Terceiro Estado (o povo), elemento mais numeroso e mais sig
nificativo economicamente. Nesta segunda obra, com efeito, afirma que a soberania
do Estado reside na nação. A nação não é o conjunto de homens reais, concretos,
efetivamente existentes em dado momento histórico, mas sim o conjunto daqueles
que viveram, que vivem e que viverão.
A ideia de nação em Siéyès confunde-se, aparentemente, com todo o Terceiro
Estado. Que era, afinal, o Terceiro Estado, na França pré-revolucionária? Era o ter
ceiro estamento social, antecedido pela nobreza e pelo clero. Não havia, com efei
to, classes sociais na França, no sentido moderno que atribuímos à expressão clas
se social, pois uma sociedade estruturada em classes admite a mobilidade social, e
isto não ocorria então, sendo os três estados estanques, estratificados. Quem inte
grava um estamento inferior não podia galgar um estamento privilegiado. Aliás, as
palavras casta, estamento, estado, estratificação trazem consigo um semantema (ra
dical) st, de origem indo-europeia, que significa, exatamente, imutabilidade, per
manência, denotando a rigidez das sociedades estruturadas em estamentos.
6 Formas de governo 125
Clero e nobreza eram dotados de privilégios com os quais não era contempla
do o povo ou Terceiro Estado. Em razão disso é que Siéyès abre seu famoso apús-
culo com as incisivas palavras: “Que é o Terceiro Estado? Tudo. Que tem sido até
agora no ordenamento político? Nada. Que deseja ele? Chegar a ser algo”.
Mais adiante, no capítulo II:
É preciso entender por Terceiro Estado o conjunto dos cidadãos que se acham
submetidos a um ordenamento comum. Todo aquele que é privilegiado pela lei sai do
ordenamento comum e, consequentemente, não integra o Terceiro Estado. Já o disse
mos: uma lei comum c uma representação comum e o que constitui uma nação.
A nação, contudo, não se confunde com as gerações que passam, mas com os
interesses permanentes do Estado. Nação e Terceiro Estado confundem-se, no pen
samento de Siéyès. O Terceiro Estado, diz ele, é uma nação completa. Nada pode
progredir sem ele, e seria bem melhor se os outros Estados não existissem. A sobe
rania, que pertencia ao rei, passa a pertencer à nação, “da qual emanam todos os
direitos” (Constituição de 1791, preâmbulo do título terceiro, arts. I o e 2o).
Assim, a nação é uma entidade abstrata, que representa os interesses perma
nentes do elemento humano do Estado. Por isso, os interesses da nação suplantam
os interesses momentâneos do povo. Nisto, a posição de Rousseau é oposta à de
Siéyès, porque segundo ele é imprescindível a participação direta da comunidade
nas deliberações políticas, para que haja vontade gerai Entretanto, ambos concor
dam num ponto: todo e qualquer organismo intermediário entre os indivíduos e o
poder político deve ser eliminado, sendo que a participação do povo, segundo Rous
seau, deve ser direta, ao passo que, para Siéyès, a representação da nação será atri
buída a quem ela determinar. Ora, sendo a nação uma entidade abstrata, não po
derá haver mandato imperativo, isto é, vinculação jurídica entre representantes e
representados, e sim mera representação política. Em razão da doutrina de Siéyès,
a Constituição francesa de 1791 estabeleceu em seu art. 7°: “Os representantes elei
tos nos parlamentos não serão representantes de um departamento particular, mas
de toda a nação, c nenhum mandato lhes poderá ser atribuído”.
Enquanto o mandato imperativo tem natureza consensual, contratualística,
consistindo num vínculo contratual entre representante e representado, da mesma
forma que no direito civil temos um contrato denominado mandato (do latim ma-
nus dare), pois as mãos simbolizam a fidelidade (per dexteram era per fidem), for
malizando-se o pacto por um aperto de mãos, a representação política é obra do
poder constituinte, que fixará a competência e os deveres dos representantes da na
ção. A responsabilidade dos representantes apura-se nos termos da Constituição, e
a perda do exercício do cargo não decorre da vontade dos governados, mas das
próprias normas da Constituição. Não há, reitere-se, vinculação jurídica entre man
126 Teoria Geral do Estado
dante e mandatário. A representação nacional tem natureza institucionalvem de
cima para baixo, ao passo que o mandato imperativo tem natureza consensual, de
acordo de vontades.
Ora, tal concepção de democracia, procurando rebater os excessos do abso-
lutismo monárquico, incorreu no extremo oposto, colocando o indivíduo numa po
sição dc desamparo perante o poder político, a ele vedada uma participação efeti
va nas decisões dos governantes. Foi olvidada a ideia de que o Estado não tem no
elemento humano a mera soma dos indivíduos, e sim a formação de grupos sociais
que surgem espontaneamente, grupos que, muitas vezes, antecedem no próprio Fi
tado, por exemplo, a família e o município. Se as primitivas sociedades eram ho
mogêneas e a solidariedade social puramente mecânica, o processo denominado in
tegração ensejou a diferenciação paulatina de tais grupos, surgindo a solidariedade
orgânica e a divisão do trabalho. Surgem grupos das mais diversas espécies e fina
lidades; e surgem espontaneamente, revelando a inclinação do homem para uma
agregação orgânica e não puramente mecânica. De fato, o homem, animal social
por natureza (zoon politikon), somente se agrega aos seus semelhantes que tenham
os mesmos interesses, sejam estes dc natureza econômica, política, religiosa ou in
telectual. O Estado poderá ató desconhecer tais grupos; não poderá jamais, contu
do, faze-los desaparecer, como frisa Galvão dc Souza.
Vásquez de Mella adverte:
O que se deve representar é o homem de classe e de grupo; e como as classes são
categorias sociais permanentes, não podendo ser negadas sem que sc negue uma na
ção, é necessário que essas forças estejam representadas nas Cortes. É preciso que aí
estejam os interesses dc que vos falei: o interesse religioso c moral representado pelo
clero; o interesse docente, intelectual, representado pelas corporações científicas, pelas
universidades e academias; o interesse material, representado pelo comércio, pela in
dústria e a agricultura, bem como pelos operários; o interesse da defesa, representado
pelo Exército; e o interesse das superioridades, daquelas autoridades sociais que for
mam a aristocracia de todos: os méritos científicos, artísticos, da linhagem, da virtu
de, que, ainda saindo das camadas inferiores, têm direito a brilhar nas alturas. Quan
do o parlamento representar todas essas forças, então o espelho da sociedade será ele
mesmo, e não se dará esse caso vergonhoso - prova de que não são representativos os
parlamentos modernos - dc que, quando surge uma crise agrícola ou industrial, a pri
meira medida dos partidos que formam o parlamento é procurar uma informação pú
blica, para sc inteirar do que sc passa lá fora.
A representação por meio de partidos, pelo menos até o momento inexpressi
va e fictícia em nosso País e em quase toda a América Latina, apresentou bons resul
tados na Inglaterra, porque lá eles sempre estiveram identificados a classes sociais,
em perfeita integração com os organismos vivos da nação. Assim, o Partido Con
6 Formas de governo 127
servador sempre esteve ligado aos grandes proprietários, partido representante, por
tanto, da aristocracia; o Trabalhista, identificado com a classe operária e as agre
miações sindicais (trade unions); e, finalmente, o Liberal, representando a classe
média burguesa. Além disso, a Inglaterra, dc certa forma isolada do drama políti
co que se desenrolava no continente europeu, em especial na França, sofreu menos
o impacto das novas ideias revolucionárias. Fenômeno semelhante, bem apontado
por Maurice Duverger, ocorreu nos Estados Unidos da América do Norte, onde, no
tocante à representação partidária, o pragmatismo suplantou as abstrações ideoló
gicas, a ponto de não haver uma diferença bem definida nos dois grandes partidos
aí existentes.
Se na liberal-democracia os partidos apareceram para preencher o vazio dei
xado pelos corpos intermediários extintos em 1791, por influência de Siéyès, na
América Latina tornaram-se quase sempre órgãos deformados, meros instrumen
tos dc grupos ou de chefes políticos arrivistas.
Em preciosa monografia intitulada A democracia e o Brasil, Goffredo Telles
Jr. já escrevia antes mesmo da insurreição de 1964:
Os partidos políticos brasileiros, observados não em tese, não em doutrina, não
em abstrato, mas em concreto, isto é, em seu real funcionamento, são meras siglas, sim
ples rótulos, vazias embalagens, sem nenhum conteúdo doutrinário e programático,
incapazes, portanto, de orientar a opinião de quem quer que seja sobre os problemas
sociais. Servem apenas de instrumento para o registro de candidatos no tribunal com
petente.
Partidos políticos do tipo dos nossos não são órgãos naturais da sociedade. Não
são produtos das exigências comuns da vida humana. Em nada se prendem ao drama
quotidiano do cidadão. Nada dizem à alma popular. Um sindicato ou um clube de fu
tebol é, no sentimento do povo, muito mais importante do que um partido.
Galvão de Souza também se mostra incisivo e claro a esse respeito:
Os partidos podem ser indispensáveis num determinado tipo de democracia, não
em todos. Na democracia liberal e individualista surgem, como órgãos de expressão
da opinião pública, veículos que a representam, e também instrumentos para orientá-
la. Dissolvidos os órgãos naturais de representação da sociedade, isto é, os agrupamen
tos intermediários da família ao Estado, então aparecem os partidos para substituí-los.
Pois aí está o dc que muitos se esquecem. Por que não substituir a representação par
tidária pela representação corporativa? A representação feita através dos partidos é
inexpressiva e fictícia. Os quadros partidários não correspondem à organização natu
ral da sociedade que visam representar. Há casos que poderiam ser apontados como
exceções, por exemplo, o da Inglaterra. Entretanto, não devemos nos esquecer de que
os partidos ingleses se acham intimamente ligados a determinadas classes ou a grupos
128 Teoria Geral do Estado
sociais. Como se poderia compreender o desenvolvimento do Partido Trabalhista sem
a base sindical do “trade-unionismo”? E o Partido Conservador não tira a sua força
do elemento aristocrático?
As aberrações e os abusos cometidos cm nome da chamada democracia re
presentativa ensejaram uma série de providências saneadoras do Estado Moderno.
Inicialmente, a vinculação do parlamentar ao seu partido, em nome da fidelidade
partidária. Na democracia partidária, a função do partido político é preparar a de
cisão popular, formulando um programa de governo e designando candidatos que
se vinculam, obrigatoriamente, a tal programa. Deputados e senadores serão man
datários de seus partidos. O parlamentar, portanto, não decide mais por si próprio.
Ele se sujeita ao programa partidário. Isto marca, de certa forma, um retorno ao
mandato imperativo, pois o deputado pode ser desligado de seu partido caso sc des
ligue da linha de conduta que lhe for traçada.
2.4.4) Dem ocrac ia semidireta
A terceira espécie de democracia é a democracia semidireta, assim nominada
porque, ao lado da natureza representativa de seu sistema político, nela se admite
a utilização esporádica da intervenção direta dos governados em certas delibera
ções dos governantes. Esta intervenção compreende, basicamente, os seguintes ins
titutos: plebiscito, referendo, iniciativa popular, veto popular, recall e mandato im
perativo.
Plebiscito: a expressão denomina uma consulta prévia que sc faz à coletivi
dade, a fim de que esta sc manifeste a respeito de sua conveniência ou não. Os
governantes consideram oportuna a medida, mas antes dc efetivá-la consideram
necessário que o povo se manifeste. O termo plebiscito deriva de plebs, plebe, ten
do origem na Lex Hortensia (século IV a.C.), que concedeu aos plebeus o direito
de participar do processo político na antiga Roma republicana. Modernamente,
por intermédio de plebiscitos, o povo francês manifestou-se durante a Grande Re
volução, sendo, aliás, o instituto adotado por Napoleão Ikmaparte para obter o
aval popular das mudanças constitucionais dc seu governo, quando garantiu o
apoio da maioria para suas medidas, no que foi imitado por Napoleão III. Hitler
realizou vários plebiscitos, destacando-se aquele que ensejou a anexação (Anscbliiss)
da Áustria à Alemanha. Após a Segunda Guerra Mundial, os governantes france
ses usaram largamente do plebiscito. Embora adotando, tradicionalmente, a de
mocracia representativa, o constitucionalismo brasileiro ensejou a participação
popular direta em 1963, mediante um plebiscito no qual o eleitorado refugou o
regime parlamentarista de governo, que havia sido adotado em 02.09.1961, por
intermédio da Emenda Constitucional n. 4, manifestando-se favoravelmente, por
conseqüência, à volta do regime presidencialista, o que ocorreria com a Emenda
n. 6, de 23.01.1963.
6 Formas de governo 129
A Constituição brasileira prevê, expressamente, a realização de plebiscitos
como forma de exercício da soberania popular (art. 14,1) c como instrumento da
vontade popular na manutenção ou modificação da forma de governo e do regime
de governo (art. 2o das Disposições Transitórias).
Referendo: o referendo e o mecanismo da democracia semidireta pelo qual
os cidadãos são convocados para se manifestar a respeito da conveniência ou não
de medida já tomada pelos governantes. Nisto difere do plebiscito. Dá-se o nome
de referendo também à manifestação popular sobre a entrada em vigor de leis já
elaboradas pelo parlamento. Trata-se, então, de ratificação popular de algo que já
está feito. Também o referendo é previsto pela Constituição brasileira no art. 14,
II.
Iniciativa popular: eis o mais significativo instituto da democracia semidire
ta. Realmente, de todas as instituições da democracia semidireta, a que mais aten
de às exigências populares de uma participação efetiva no processo político é a ini
ciativa das leis pelo próprio povo. Como assinala Georges Burdeau, a iniciativa
popular obriga o parlamento a legislar, porque, se um determinado número dc ci
dadãos o exige, um projeto de lei determinado será exposto à Assembleia, que de
verá examiná-lo c emitir um parecer (/l democracia, Lisboa, Publicações Europa/
América, 1962, p. 133). Na iniciativa popular o povo exercc apenas um direito dc
petição “reforçado”, pelo qual pressiona o parlamento a reparar um projeto de lei
sobre determinado assunto, bem como a discuti-lo e a votá-lo. No caso, os cida
dãos não legislam, mas fazem com que se legisle. Lembra Salvetti Netto que o Le
gislativo não está obrigado a acatar a iniciativa popular, a moção, enfim. A iniciati
va popular foi empregada pela primeira vez nos EUA, no Estado de Dakota do Sul
(1898) e no Oregon (1904). Ressurgiu, depois, na Constituição de Weimar, na Ve
nezuela e na Itália. O art. 71, in fine, da Constituição italiana de 1947 determina
que cinqüenta mil eleitores podem obrigar o parlamento a discutir um projeto de
lei oriundo de iniciativa popular. A iniciativa popular é encontrada, também, no
art. 86, g, da Constituição de Cuba, que autoriza o seu exercício por um mínimo
de dez mil cidadãos.
Como acentua John Naisbitt cm sugestiva monografia:
Os projetos de lei originados das comunidades e os plebiscitos são as ferramen
tas da nova democracia. Estes instrumentos criam acesso direto à decisão política,
como desejam cidadãos informados e educados... A diferença entre os projetos de lei
originados da comunidade c os plebiscitos é que os primeiros aparecem na votação
através de ação direta do cidadão, c os plebiscitos são uma maneira dc os cidadãos
aprovarem ou não a ação do legislativo. O primeiro projeto dc lei estadual originado
da comunidade nos Estados Unidos ocorreu no Oregon em 1904. E uma das razões
para o seu fortalecimento recente é que as pessoas estão exigindo maior prestação de
contas. O aumento desses projetos, juntamente com o plebiscito e o recall (que permi
te aos eleitores revogarem o mandato de um representante eleito e que é legal em doze
130 Teoria Geral do Estado
estados), representa uma exigência inequívoca de parte dos eleitores de prestação de
contas do governo. Estes novos dispositivos, instrumentos-chave na nova democracia
participativa, permitem às pessoas passar por cima dos processos representativos tra
dicionais e moldar o sistema político com suas próprias mãos. (Megatendências, Li
vros Abril/Círculo do Livro, 1982, p. 162-3)
A vigente Constituição brasileira, promulgada em 05.10.1988, inovou na or
dem jurídica ao adotar a iniciativa popular nos arts. 14, III, 26, § 4o, e 61, caput e
§ 2°.Veto popular: do latim vetare (proibir, impedir), o veto popular significa a re
jeição, pelo povo, de uma medida governamental. Pode ocorrer no plebiscito ou no
referendo.
Recall: o termo recall significa revogar; reparar; anular; e c esta, verdadeira
mente, sua finalidade: permitir que o eleitorado possa destituir, em manifestação
direta, um órgão público que tenha afrontado a confiança do povo e a dignidade
do cargo. Nem o Poder Judiciário escapa ao raio de ação do recall, adotado em
doze Estados da Federação norte-americana. Como assinala, oportunamente, Darcy
Azambuja, se, com o referendum, o povo americano pode inutilizar certas leis, con
trárias ao interesse coletivo, e com a iniciativa popular pode obrigar o Legislativo
a fazer leis socialmente úteis, uma outra forma, arrojada e singular, de democracia
semidireta lhe permite anular a ação dos juizes, quando estes, alegando o vício de
inconstitucionalidade, negam-se a executar certas leis oriundas da iniciativa popu
lar. É o recall das decisões judiciárias. Quando um juiz se nega a aplicar uma lei,
por julgá-la inconstitucional, a maioria dos eleitores pode anular a decisão, decla
rar inconstitucional a lei e obrigar a sua aplicação. Isso se dá - prossegue Azambu
ja - principalmente em relação à legislação social que - segundo muitos autores
americanos - a magistratura eletiva de vários Estados tem entravado, por imposi
ção do capitalismo que a elege. E, sem dúvida - finaliza -, uma forma audaciosa e
perigosa, mas a única arma que o povo americano encontrou para combater um
perigo muito maior - a elegibilidade dos juizes.
Theodore Roosevelt foi, a partir de 1912, o pioneiro na inovação do recall
quanto às decisões judiciárias, sendo o instituto adotado, modernamente, nos Es
tados do Oregon e da Califórnia. Não se aplica, em nenhuma hipótese, às decisões
da Suprema Corte. William Bennett Munro, citado por Wilson Accioli (Teoria ge
ral do Estado, Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 321), caracteriza magistralmente
o recall dos cargos eletivos assim:
Comumente vinculado à democracia semidireta está o recall. Ele pode ser defi
nido como o direito de um determinado número de eleitores solicitar a destituição ime
diata de um governador ou de qualquer outro detentor de cargo eletivo, e obter que
seu pedido seja submetido aos eleitores para que estes possam decidir. Uma petição
6 Formas de governo 131
deste tipo, estabelecendo as razões indicadoras da ação pretendida, é redigida e posta
em circulação para receber as assinaturas; quando suficientes assinaturas (usualmen
te um número igual a cinco por cento do eleitorado registrado) forem obtidas, a peti
ção é submetida às próprias autoridades que, em razão disso, ordenam uma eleição
para decidir sobre a matéria. Sc a maioria dos eleitores sc pronuncia cm favor do re
call, o funcionário é destituído imediatamente; do contrário, ele continua no cargo. Ao
contrário do impeachment, que é um procedimento semijudicial normalmente usado
para livrar o governo de um funcionário culpado de atos criminosos, o recall é um ins
trumento político indicado para assegurar a mais rigorosa responsabilidade funcional
ao eleitorado. Permite ao povo destituir qualquer detentor de cargo público que dei
xou de atender à sua confiança. Torna a responsabilidade funcional permanente e di
reta. Por outro lado, o recall é 11111 instrumento que pode, de modo fácil, ser usado er
radamente. Mas ele tem sido, de fato, muito pouco usado. Desde sua introdução, em
1908 , apenas um governador e uma meia dúzia de outros importantes funcionários
estatais foram destituídos, o que pareceria indicar que é geralmente visto como uma
arma a ser mantida de reserva, mais para uma emergência do que para o uso mais in
tenso. (The govemment of United States, New York, MacMillan, 1959 , p. 672)
Entretanto, assinala Darcy Azambuja, o recall tem obtido, ultimamente, lar
ga aplicação em alguns Estados norte-americanos, sendo seus alvos os órgãos dos
três Poderes da União. Um percentual de 20 a 25% do total de eleitores de cada
Estado requer que o órgão seja submetido ao recall. O recalled pode apresentar-se
à reeleição, juntando à cédula do voto sua defesa. Se reeleito, os peticionários do
recall devem reembolsar o acusado das despesas feitas com a eleição, para o que,
aliás, prestar, previamente, caução.
Mandato imperativo: o mandato imperativo é o vínculo jurídico que liga o re
presentante do povo aos seus próprios eleitores, de modo que estes, 11a forma da
lei, podem rescindir\ dissolver esta ligação, em caso de o candidato eleito não estar
correspondendo aos anseios do eleitorado. Surgido por volta do século IX, na Es
panha, o mandato imperativo teve seu apogeu 11a França, até 1601, quando desa
pareceu na voragem do absolutismo nascente. Com o surgimento da chamada de
mocracia representativa, desfez-se, sob o impacto da doutrina de Siéyès, o vínculo
jurídico existente entre representantes e representados, porque o “mandato” polí
tico se referiria a toda a nação, e não apenas ao corpo eleitoral, e, em face disto, a
responsabilidade dos parlamentares apurar-se-ia tão somente nos casos rigidamen
te instituídos pela Constituição. Embora empregado a partir de então, o termo man
dato não casa bem com democracia representativa. Vejamos: a expressão manda
to vem do latim mandatum, espécie de pacto que, como já vimos no estudo da
democracia representativa, é reforçado pela vinculação jurídica, portanto obriga
tória, entre mandante e mandatário. Tem, evidentemente, natureza contratual, con
sensual, e não institucional, como ocorre no mandato político, cuja denominação
132 Teoria Geral do Estado
correta seria, então, investidura. Abolido violentamente pelo furor revolucionário
na França, o mandato imperativo vai, aos poucos, retornando à prática política,
menos por suas virtudes intrínsecas do que pela inegável desmoralização da repre
sentação política cunhada pela liberal-democracia.
Eis, portanto, três espécies de democracia: a direta ou clássica, a representa
tiva e a semidireta. Cada uma delas buscou alcançar o ideal democrático. Descar
tada a primeira hipótese, qual seja, a da democracia direta, por irrealizável no mun
do moderno, restaria indagar qual a verdadeira essência do ideal democrático.
Guizot, primeiro-ministro de Luís Felipe, costumava dizer que a confusão está a se
esconder numa palavra: democracia. Frederico II não fazia por menos e costuma
va resumir seu pensamento a esse respeito em poucas palavras: tudo para o povo,
nada pelo povo. Curiosa esta última posição: será a democracia o governo do povo
ou, como querem alguns, o controle do poder político pelo povo, em oposição a
arche (governo)?
Assegurar os meios da permanente penetração dos governados nas decisões
dos governantes, eis o grande desafio. Não foi à toa que Jacques Maritain afirmou,
com franqueza e pessimismo, que a tragédia das democracias contemporâneas con
siste em que elas não conseguiram, ainda, realizar o ideal democrático. Com efei
to, todos os Estados Modernos se proclamam ardentemente democráticos, da mes
ma forma que todos os políticos se proclamam honestos. Ora, a qualificação de um
Estado como democrático não se acha vinculada a nenhuma ideologia. Atualmen
te, é correntio ouvir falar em crise da democracia, quando o que está realmente em
crise é uma simples forma histórica da democracia, a liberal-democracia. Come
te-se o erro que, em lógica, consiste em tomar a parte pelo todo.
Um recente estudo levado a efeito pela Unesco revelou a existência de, pelo
menos, 250 definições de democracia, mas o sociólogo norte-americano Robert
Dahl catalogou nada menos do que quinhentas conceituações! Em pitoresca ima
gem, Cabral de Moncada nos diz que a democracia é um tecido com o qual se pode
tecer todo tipo de roupa, embora nunca de medida e padrão únicos, sob pena de
aberrante deformação da realidade. Uma coisa é certa: não pode haver democra
cia onde não houver uma participação permanente c consciente dos cidadãos or
ganizados em povo político, exigindo dos governantes a melhor orientação. Pela
própria etimologia da palavra democracia (demos = povo e kratos = poder), resta
claro que o termo não significa, propriamente, governo do povo, mas poder do
povo, que os romanos, com seu espírito pragmático, tão bem sintetizaram com esta
elegante expressão: popularii potentia.
Infelizmente, a liberal-democracia, que nada mais é do que uma espécie entre
as inúmeras que buscam alcançar o ideal democrático, transformou-se, para mui
tos, em tabu. Crise da liberal-democracia é crise do próprio ideal democrático, di
zem seus porta-vozes.
6 Formas de governo 133
Num mundo em que as realidades palpáveis se fazem cada vez mais canden-
tcs, as abstrações do passado vão, paulatina, mas inexoravelmente, perdendo ter
reno. Belas ficções, transformadas em dogmas da política, começam a perder o en
canto original. O súdito, o cidadão, o homem abstrato vão deixando o seu lugar
para um ser totalmente novo, o homem situado, que Georgcs Burdeau, com muita
graça, descreve em seu precioso opúsculo sobre a democracia. Então, o que vem a
ser democracia? Democracia é o processo político que autoriza a permanente par
ticipação, livre e consciente, direta ou indireta, da comunidade, nas deliberações
dos governantes.
2.4.5) Sufrágio e voto
Tanto a democracia representativa como a democracia semidireta apresentam
um pressuposto que se destaca de imediato, qual seja, o da existência de um corpo
eleitoral periodicamente renovado. No mundo moderno, quem se refere à democra
cia, refere-se, inevitavelmente, ao eleitorado, ao conjunto daqueles que são dota
dos de cidadania, enfim, àqueles que têm o direito dc votar. Entretanto, para se sa
ber quem terá o direito de votar c preciso, preliminarmente, estabelecer os requisitos
para a obtenção dc tal direito. Tais requisitos, estabelecidos na própria Constitui
ção, constituem o sufrágio. Que é, então, o sufrágio1 Do latim suffragari, é um pro
cesso de seleção daqueles que terão o direito de votar. Pelo sufrágio, fica esclareci
do quem terá o direito ao voto. O sufrágio é, portanto, um processo de escolha de
eleitores. Atendidos os requisitos constitucionais, o nacional passa a ser cidadão,
mediante o sufrágio. Pelo sufrágio, o nacional torna-se cidadão e começa a exercer
o direito de votar. Quanto ao voto, nada mais é do que o instrumento para exercer
o direito de deliberação ou de escolher candidatos a cargos políticos, mediante elei
ções. O sufrágio é um processo de escolha, mas o voto é um ato de escolha.
Quando o eleitorado, previamente selecionado por determinado tipo de su
frágio, decide diretamente a respeito dc determinado assunto, por exemplo, implan
tação do divórcio, legalização do aborto, adoção de determinado regime dc gover
no, diz-se que há votação, simplesmente. Entretanto, quando, ao votar, o eleitorado
está elegendo, escolhendo seus candidatos, é costume dizer que há eleição. Por isso,
afirmam alguns doutrinadores, pode haver votação sem eleição, embora na demo
cracia representativa e na semidireta não possa haver eleição sem prévia votação.
Quanto ao fundamento da soberania, o sufrágio apresenta duas espécies: o
sufrágio-direito e o sufrágio-função. O sufrágio-direito parte de Jean-Jacques Rous
seau, para quem, sendo cada cidadão uma parcela da coletividade política, e sen
do a soberania indelegável, é ele titular de parte ou fração da própria soberania.
Rousseau é muito claro a respeito: “a soberania não pode ser representada, pois
não admite alienação. Ela se expressa pela vontade geral, e esta não admite repre
sentantes”. Por isso, o célebre genebrino costumava dizer: “o voto é um direito que
134 Teoria Geral do Estado
ninguém pode subtrair aos cidadãos”. Ora, o direito ao voto, portanto, não cons
titui uma obrigação à qual corresponda, inarredavelmente, um vínculo dc compul-
soriedade, na participação política, entre indivíduo e Estado. Segundo a doutrina
do sufrágio-direito, participar do processo eleitoral é mais uma faculdade do que
um direito público subjetivo. Cada cidadão é titular da fração da soberania que lhe
cabe, e a exerce como lhe apraz. Bem diferente se mostra a teoria do sufrágio-fun
ção. Ela parte de Emmanuel Joseph Siéyès, com sua concepção de nação. A nação,
diz, não se confunde com o povo. Aquela é uma simples comunidade organizada e
considerada num dado momento histórico. Povo, segundo Siéyès, e para usar uma
terminologia de Ortega y Gasset, seria o conjunto das pessoas coetâneas (mesma
idade) e contemporâneas (mesma época), excluídas as gerações passadas e futuras.
A nação, porém, é mais do que isso; ela é a própria permanência da comunidade
no tempo, seus interesses permanentes, que se mostram nas gerações que se suce
dem, e que nem sempre coincidem com os interesses passageiros de uma única ge
ração. Assim, o povo, para fruir de um maior bem-estar material, em determinado
momento da vida da nação, poderá sacrificar, irremediavelmente, os interesses per
manentes da comunidade. A nação, portanto, é uma entidade espiritual, uma ideia,
enfim. Ora, como pode um ente abstrato manifestar sua vontade, e, no caso, uma
vontade coletiva? Não há outra alternativa: por intermédio de uma comunidade
concreta, perceptível aos sentidos. Em outras palavras, por intermédio do povo. O
povo transforma-se, então, no eleitorado que levará ao poder os representantes da
nação, e não apenas dele, povo. O eleitor é mero instrumento de manifestação da
vontade nacional, um órgão por intermédio do qual a nação expressa a sua vonta
de. O povo elegerá, consequentemente, os representantes de uma entidade ideal,
abstrata, mas permanente: a nação. Tais representantes serão os titulares do exercí
cio da soberania, mas o fundamento desta continua a residir na nação. Percebe-se,
do exposto, que, não podendo a nação manifestar-se diretamente, por ser uma en
tidade abstrata, aqueles que irão fazê-lo em seu nome, repita-se, o povo, devem ar
car com tal ônus. O voto deve, portanto, ser obrigatório. O eleitor não exerce ape
nas uma faculdade, mas cumpre uma função inafastável, compulsória: a de votar.
Daí a sugestiva denominação dada ao sufrágio que expressa a soberania nacional:
sufrágio-função.
Cada época histórica consagrou um tipo determinado de sufrágio. Assim, o
sufrágio censitário, fundado no volume de bens de que cada cidadão pode dispor.
Esta espécie de sufrágio teve seu apogeu com a liberal-democracia burguesa, no sé
culo XIX. Seu fundamento ideológico reside na argumentação de que o Estado deve
preparar uma elite governante, pois, restringindo-se o direito ao voto, mais rapida
mente a sociedade consolidará o governo dos melhores. Por outro lado, da mesma
forma que uns poucos demonstraram capacidade de trabalho e de realização pes
soal, amealhando considerável patrimônio e, com isto, destacando-se dos demais,
obtiveram o direito de dirigir a coisa pública, que estará, tem-se como certo, sob
6 Formas de governo 135
excelente gestão. A expressão ccnsitário deriva de censo, atribuição conferida, na
antiga Roma republicana, aos censores, e que consistia na exata aferição do nume
ro de pessoas, semoventes, e dos bens de cada cidadão.
O sufrágio ccnsitário existiu a partir de 1850, na Prússia, com a divisão dos
contribuintes cm três estamentos, dos quais o primeiro era composto pelos cida
dãos mais afastados, que dominavam, por completo, o parlamento. O terceiro e úl
timo estamento compunha nada menos do que 83% dos contribuintes, embora do
tado de ínfima representação. A Constituição do Império do Brasil, de 25.03.1824,
também consagrava o sufrágio censitário, excluindo do direito de voto, nos arts.
92 e 94, aqueles que não apresentassem uma renda mínima anual.
Outra espécie de sufrágio, adotada ainda hoje, é o sufrágio cultural ou capa-
citário, em face do qual somente votam aqueles que demonstrarem um nível míni
mo de erudição e informação política. Já se percebe que o fundamento desta espé
cie de sufrágio é afastar do processo político os inaptos, os ignorantes e os analfabetos,
permitindo a consolidação de uma elite intelectual. Ainda hoje, nos Estados Uni
dos, algumas entidades federadas exigem que o direito ao voto esteja vinculado à
capacidade de entender o disposto na Constituição. Nesta espécie de sufrágio, di
zem seus defensores, fica patente a distinção entre povo e massa: aquele, seria cons
tituído pela camada mais informada, realmente interessada no aperfeiçoamento das
instituições e na realização dos objetivos sociais; esta, entretanto, seria formada pe
los ignorantes, alienados, desinteressados de tudo, principalmente da política, mer
gulhados nas sombras de uma vida mesquinha e medíocre.
Uma terceira espécie de sufrágio restrito é o sufrágio masculino, cuja denomi
nação já revela que, nos seus termos, somente o homem pode votar. As mulheres
são excluídas do direito ao voto sob a alegação de sua “inabilidade congênita” e
“insensibilidade para as questões políticas”. No Ocidente, o direito de as mulheres
participarem do processo político aparece, pela primeira vez, nos Estados Unidos
da América do Norte, em 1869, no Wyoming, somente incorporado à Constituição
Federal em 1920, com a Emenda XIX. Na Suíça, apenas a partir de 1971. No Bra
sil, o voto feminino aparecc, inicialmente, em 1927, no Rio Grande do Norte. Os
votos foram anulados, pois as mulheres votaram para a escolha de senadores, c o
seu direito não devia ultrapassar o âmbito estadual... Fm 1928, com fundamento
no art. 7° da Constituição Federal, que definia os eleitores como os cidadãos maio
res de 21 anos, sem discriminação expressa da mulher, Mietta Santiago, estudante
de Direito, pleiteou e obteve, não apenas o direito de votar, mas também de ser vo
tada. Em 1929 foi eleita a primeira prefeita do Brasil, Alzira Floriano, mas a con
solidação do direito de a mulher participar do processo político, em sua plenitude,
veio somente em 1932, com Getúlio Vargas, por intermédio do Código Eleitoral
brasileiro.
Paulo Bonavides refere-se a uma odiosa espécie de sufrágio restrito, o sufrá
gio racial, adotado, no mais das vezes, de forma dissimulada. Por exemplo, quan
136 Teoria Geral do Estado
do a legislação do Estado do Mississipi, nos Estados Unidos da América do Norte,
obriga a ler, compreender e interpretar “convenientemente” a Constituição, o que
se pretendia era excluir os negros do processo político, obedecendo-se, veladamen-
te, a um critério menos capacitário do que racial.
Quanto ao sufrágio universal, é aquele que busca conferir o direito de voto
ao maior número possível dc nacionais. A própria expressão universal já revela que
deve ter o direito de voto a universalidade, isto é, a generalidade das pessoas, pois
cada qual, independentemente de sexo, raça, religião, nível de conhecimentos, con
tribui para com o aprimoramento da vida em sociedade. Evidente, contudo, que
mesmo o sufrágio universal comporta restrições ao direito de voto, e nem poderia
ser de outra forma. São restrições que - é bom notar - não são inexpugnáveis, pois
a cada momento da vida o nacional vai abatendo-as, em razão da idade e do con
seqüente amadurecimento pessoal, ou em face de seu esforço próprio, como a ob
tenção de níveis mais altos de escolaridade. A rigor todo sufrágio é restrito. Não
há sufrágio plenamente universalizado e não há, portanto, distinção essencial en
tre sufrágio restrito c sufrágio universal. A diferença é puramente quantitativa: os
impedimentos do direito de voto, no sufrágio restrito, são mais numerosos do que
no sufrágio universal.
É bom notar que as restrições ao direito de voto numa ordem jurídica que
consagra o sufrágio universal estão previstas somente na própria Constituição; tais
restrições não podem ser ampliadas mediante lei ordinária. Esta, portanto, não po
derá restringir o eleitoral além dos limites preestabelecidos na Constituição. No
Brasil, atualmente, constituem exceções ao sufrágio universal os menores de dezes
seis anos (CF, art. 14, § I o, II, c), os estrangeiros e os conscritos (art. 14, § 2o), sen
do inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos (art. 14, § 4o). Até a Emenda Consti
tucional n. 25, de 15.05.1985, que alterou a Constituição Federal de 1967, o
analfabeto não tinha o direito de votar, estando, portanto, excluído do sufrágio uni
versal. Com tal Emenda e, posteriormente, a Constituição de 1988, em vigor, ele
passou a ter o direito dc voto facultativo (art. 14, § I o, II, a).
Na verdade, a concessão do direito de votar ao analfabeto não se justifica, seja
qual for o ponto dc vista que se adote para o problema. Da mesma forma que cem
tolos não formam um sábio, não será aumentando o número de participantes do
sufrágio que este ficará, necessariamente, mais aperfeiçoado.
Poder-se-ia argumentar com o fato de que alguns analfabetos se interessam
muito mais pelos problemas políticos e sociais do que muitos cidadãos alfabetiza
dos. Tal invectiva não colhe, porque não se argumenta com exceções. A regra, qua
se absoluta, é que o analfabeto torna-se, infelizmente, um instrumento nas mãos
dos demagogos sequiosos de votos, aliás os grandes beneficiários desta infortuna-
da ampliação do sufrágio...
Oportuna a observação de Paulo Bonavides:
6 Formas de governo 137
Quanto ao argumento que gira ao redor da dialética qualidade-quantidade, não
resta dúvida que o princípio democrático envolve da parte do colégio eleitoral uma
compreensão política mais apurada, difícil de formar-se no seio da multidão espessa e
ignara. Daí pesar mais em favor do bom mecanismo institucional do governo demo
crático, como governo dc livre manifestação da vontade popular, o princípio qualita
tivo do que o princípio quantitativo.
Incisiva, a respeito, a observação dc Pedro Salvetti Netto, in verbis:
Como escolher-se, por exemplo, um senador ou um deputado, se não se tem co
nhecimento de suas atribuições e nem sequer se sabe o que é o Senado ou a Câmara
dos Deputados? Daí a razão por que julgamos absolutamente imprescindível para a
constituição de uma democracia qualitativa e real, onde cidadãos conscientes e politi
camente responsáveis participem do processo eleitoral, uma comprovação de habili
tação política, pela qual o candidato à cidadania demonstre conhecimentos mínimos,
mas necessários, à outorga do título de eleitor. De conseguinte deve ele submeter-se a
singela prova escrita - semelhante, na forma, à que se faz mister para a concessão da
carteira dc habilitação para dirigir - versando, porém, sobre rudimentos da organiza
ção político-constitucional. Tal como o candidato àquela outorga, que deve revelar um
conhecimento tcórico relativo aos sinais, siglas c regras básicas dc trânsito, sem o que
se tornaria evidente perigo à integridade física e ao patrimônio de todos, o postulan
te à cidadania, falto dos predicados essenciais ao seu exercício e néscio sobre os prin
cípios políticos institucionais que a informam, torna-se natural ameaça ao regime de
mocrático. A singeleza da prova eliminaria a formação de um colégio eleitoral elitista,
não se atribuindo a prerrogativa do sufrágio tão só a uma minoria qualificada por tí
tulos formais de sabedoria ou a uma aristocracia de classe. A exigência de um conhe
cimento mínimo relativo ao mecanismo de governo, assimilável por todos os que sai
bam ler e escrever, seria subsídio valioso para a constituição de um eleitorado consciente
e responsável. Com isto, qualificar-se-ia o regime democrático, sem impedir-se o defe
rimento da cidadania àqueles que demonstrassem possuir as condições elementares
para seu exercício racional. Por outro lado, tais providências valeriam para diminuir
os perigos da demagogia, forma impura do governo democrático c capaz dc, com fa
cilidade, impor-sc na proporção direta da dcsqualificação política do eleitorado. Não
seria absurdo dizer-se constituir a ignorância do cidadão terreno fértil à expansão de
magógica. Esta, com efeito, encontra dois caminhos para alastrar-se: a ignorância e a
crença. Ainda que se mostre mais difícil o afastamento da segunda, pois ninguém pode
dizer-se infenso ao poder pessoal, carismático e místico do demagogo, como ocorrido
na Alemanha intelectualizada de Hitler, é absolutamente certo que o germe da igno
rância não só pode ser combatido, como, também, eficazmente debelado. Um colégio
eleitoral qualificado pelo conhecimento necessário e básico da organização constitu
cional e do funcionamento do governo o eliminaria do processo político-elcitoral. Daí
138 Teoria Geral do Estado
porque não nos sensibiliza a pregação, para nós demagógica, dos votos do analfabe
to, porquanto, embora possa haver entre aqueles ignorantes no ler e escrever alguns
naturalmente sensíveis às coisas públicas e com elas preocupados, tal só pode consti
tuir situação excepcional e, como qualquer raciocínio lógico rejeita a exceção para a
pesquisa da verdade metodológica, não seria este o argumento hábil capaz dc refutar
a proposição por nós sustentada.
Quanto ao voto, classifica-se, na sua forma de expressão, em direto ou indi
reto e, em qualquer destas espécies, em secreto ou aberto, subdividindo-se este úl
timo em escrito e verbal.
O voto é direto quando o eleitor, sem intermediação, escolhe seus próprios re
presentantes. É a espécie adotada pela Constituição brasileira (art. 14, caput). Até
o advento da Emenda Constitucional n. 25, de 15.05.1985, entretanto, o voto para
a eleição do Presidente da República era indireto, sendo Tancredo Neves o último
candidato eleito por um colégio eleitoral restrito. Então, o voto é dito indireto quan
do o eleitorado elege, inicialmente, delegados, intermediários, que, por sua vez, fa
rão, em segundo grau, a escolha definitiva dos governantes. Paulo Bonavides apon
ta os seguintes argumentos a favor ou contra este tipo de voto: a) os graus interpostos
operam como filtros, de modo que os eleitores secundários - eles mesmos já uma
elite - ficam em condições de sufragar ou selecionar os mais capazes e competen
tes; b) atua o voto indireto como força moderadora, enfreando as paixões políti
cas, abrindo espaço à reflexão, ensejando a prudência das designações. Os argumen
tos em desfavor do voto indireto também são ponderáveis: a) caráter manifestamente
menos democrático que o sufrágio direto, portanto o poder de decisão da massa
sufragante se transfere, por inteiro, para o corpo eleitoral intermediário, cuja influên
cia toma, assim, proporção máxima; b) o voto indireto não raro é empregado como
meio de resistir ao sufrágio universal; c) o colégio eleitoral de segundo grau, em
face do pequeno número de seus integrantes, é mais suscetível a pressões e à cor
rupção; d) o voto indireto ocasiona volumosa abstenção por parte do eleitorado de
primeiro grau, pois este não se sente estimulado a participar de uma eleição que
não é decisiva.
O voto pode ser também, como já vimos, secreto ou aberto. O fundamento
do voto secreto é evitar pressões sobre o eleitorado. Como acentuam Rodrigo Octa-
vio e Paulo D. Vianna, a tendência moderna é francamente favorável ao voto secre
to, que melhor assegura a independência do eleitor a que se tem procurado cercar
de todos os elementos materiais para garantir o sigilo. Com efeito, o eleitor, por via
dc regra, está submetido à burocracia estatal e ao poder econômico, razão pela qual
o voto secreto acalmará as preocupações legítimas e reanimará os poltrões. Os ad
versários do voto secreto retrucam: ele é mais uma prova da desilusão das demo
cracias modernas, pois o eleitor que não tem coragem e senso de responsabilidade
para votar abertamente, de viseira erguida, não deve ter o direito de votar. Na ver
6 Formas de governo 139
dade, a solução satisfatória deveria estar no meio-termo. O art. 14 da Constituição
brasileira não deve ser interpretado literalmente. O voto é obrigatório, sim, mas
deve ser facultado ao eleitor manifestar secreta ou abertamente sua escolha. Vota
secretamente quem se achar coagido ou temeroso de manifestar de modo aberto
sua opinião; entretanto, aquele que, forte na sua ideologia, desejar expressar aber
tamente sua vontade, não deve ser impedido dc faze-lo. Aplica-se ao artigo em epí
grafe, portanto, a interpretação finalística ou teleológica, pois a finalidade do dis
positivo é garantir o sigilo do voto apenas para aqueles que acharem inconveniente
revelá-lo. Obrigar o eleitorado a votar secretamente parece-nos mais uma exacer
bação do formalismo, tão caro ao legislador pátrio. Análoga é a situação do voto
aberto, caso em que se obriga o eleitor ou o delegado a revelar, expressamente, sua
vontade, com grave risco para sua liberdade de manifestação de pensamento. O
voto aberto pode ser escrito ou verbal, este também conhecido como ostensivo.
Espécie de voto que vem amealhando número cada vez maior dc simpatizan
tes é o chamado voto distrital, pertinente ao âmbito espacial de atuação do candi
dato eleito. Por esta espécie dc voto o cidadão elege representantes dc seu próprio
distrito eleitoral (daí a adjetivação distrital).
O voto distrital funda-se no princípio de que a escolha dc parlamentares pelo
eleitorado deve ocorrer em âmbito o mais reduzido possível, dc modo a compati
bilizar população e território, ensejando um maior contato entre o candidato e even
tuais eleitores. Afirmam os defensores do voto distrital que este atrai os candidatos
para mais perto do eleitor, propiciando um controle mais efetivo dos candidatos
eleitos, de modo a minimizar a influência do poder econômico e dos meios de co
municação nas eleições. Por outro lado, afirmam, o voto distrital torna os partidos
políticos mais homogêneos, isto pelo seguinte: no sistema proporcional, candida
tos de um mesmo partido se digladiam na mesma região eleitoral, enfraquecendo
o próprio partido, ao passo que, pelo sistema distrital, cada candidato concorre
com outros candidatos de partidos diferentes.
2.4.6) Partidos polít icos
A formação de associações que visam alcançar um objetivo político determi
nado vai longe na História. As sociedades podem apresentar as mais diversas fina
lidades: culturais, esportivas, comerciais, econômicas e, no caso, políticas. É sabi
do que o homem, ser social, tende a se agregar aos seus semelhantes de forma
orgânica, formando grupos, que congregam indivíduos que, tendo inclinações co
muns, professam as mesmas ideias. Buscando sua realização pessoal, nem por isso
desdenha sua plena realização como ser social, em busca de objetivos mais eleva
dos. Assim, uma facção política, um movimento político e, finalmente, um partido
político revelam, no mais das vezes, a ânsia de participação efetiva do homem nos
problemas da comunidade em que vive. Na verdade, todos aqueles que, com apa
140 Teoria Geral do Estado
tia e indiferença, alegam desinteresse pela atividade política direta ou indireta não
cumprem um dever cívico inafastável c contribuem para o surgimento das dema
gogias, que são o desgoverno das massas despolitizadas.
O surgimento de facções políticas remonta, portanto, à Antiguidade Clássica,
a antiga Grécia e Roma, cada uma dela dirigida por um líder. Tais facções, contu
do, longe estavam dc possuir a estrutura, a burocracia c o reconhecimento legal de
que hoje desfrutam os partidos políticos. Seja como for, na Idade Média, questões
políticas gravíssimas ensejaram lutas entre suseranos e vassalos, originando o apa
recimento de inúmeras facções políticas. Até mesmo simples caprichos de família
provocariam dissensões formadoras de grupos políticos inimigos, como foi o caso
de guelfos e gibelinos na Alemanha e, depois, na Itália.
Ainda na sociedade estamentária medieval, as facções políticas surgem quase
sempre vinculadas aos seus estamentos, corroborando, no caso, a assertiva de Marx
de que o partido político é sempre um órgão de classe. Da mesma forma, no Esta
do absolutista, as facções estruturam-se à luz das dinastias reinantes, no interesse
destas c dos nobres. Com o aparecimento do Estado liberal-democrático, a diver
sidade de opiniões políticas não se manifestou mediante partidos como entende
mos, hoje, a expressão partido político, mas mediante facções da burguesia, sem
pre sob a liderança dc um homem virtuoso ou dc um mecenas disposto a financiar
uma ideia. Por isso, ainda nos séculos XVII e XVIII não se fazia distinção entre par
tido e facção política. Esta, dizia Bluntschli, é a caricatura do partido. Ela surge de
maneira autônoma, como uma entidade rebelde que se posiciona, muitas vezes, den
tro do próprio partido, procurando minar as diretrizes aprovadas pela maioria, a
fim de impor sua própria cosmovisão a todos. O partido político visa à conquista
do poder nos termos da lei; a facção utiliza-se de todos os meios para atingir e man
ter o poder.
Somente a partir de 1770, com Edmund Burke, a noção de partido político
começa a ser delineada: grupo de pessoas que se unem para promover, num pro
cesso de cooperação, o interesse nacional, mediante o emprego de um processo es
pecífico, com o qual todos os seus membros sc acham de acordo. Modernamente,
Georges Burdeau definiu o partido como a associação de caráter político organiza
da para dar forma e eficácia a um poder de fato.
Da mesma maneira que o partido político não se confunde com a mera facção
política, não se confunde, ademais, com o movimento político, que procura congre
gar o povo numa ideologia política exclusivista e intransigente, com a eliminação
de todo e qualquer ideário diverso. Ora, um partido não se confunde com a mera
facção política porque ou é reconhecido ou, pelo menos, tolerado pela lei, e não se
confunde, também, com o movimento político excludente dos partidos, porque a
própria ideia de partido pressupõe a existência de, pelo menos, duas partes (daí, a
expressão partido, do latim pars, que designa uma fração do todo). Daí a sugestiva
definição de partido político que nos oferece Povina: “agrupamento permanente e
6 Formas de governo 141
organizado de cidadãos que, mediante a conquista legal do poder público, se pro
põe a realizar, na direção do Estado, determinado programa político-social”.
Todo partido pressupõe dois elementos: o vínculo sociológico, representado
por uma ideologia comum ou dc interesses comuns, c a finalidade política, que vem
a ser a conquista do poder. O moderno partido político - assinala Ferreira Filho -
e, por excelência, o veículo utilizado por uma grande corrente dc opinião pública
para conquistar o poder. Na verdade, o partido digno desse nome é um grupo or
ganizado que disputa o poder para realizar uma política. E o instrumento median
te o qual uma ideia de direito busca sua realização.
A denominação atribuída ao partido é muito importante para sua imediata
identificação. A História registra casos curiosíssimos de denominações de partidos;
muitos se associaram às cores, e tivemos, então, os brancos, os negros e os verme
lhos; outros tomaram a denominação dos meses do ano, pelo que surgiram os polí
ticos setembristas, outubristas e dezembristas. Em outros casos, os partidos lembra
ram, em sua denominação, os nomes de seus inspiradores: orleanistas, bonapartistas,
saaverista, janista, ademarista etc. Denominações ainda mais pitorescas jamais fal
taram para tais agremiações: wbigs (escória), tories (bandidos) etc. Modernamen
te, entretanto, mais dinâmicos c objetivos, os partidos buscam revelar, cm sua no-
minação, a ideologia abraçada: monárquico, republicano, conservador, liberal,
socialista, fascista, comunista e assim por diante.
Aqueles que se inspiraram nas ideias de representações políticas de Jean-Jac-
ques Rousseau repudiaram o partido político, pois este pensador era adepto ferre
nho da democracia individualista, que rejeitava todo e qualquer corpo social entre
o poder e o cidadão. Em sua obra De eive, Hobbes afirmou, peremptoriamente, que
a divisão da sociedade em partidos geraria a revolta e a guerra civil, opinião ainda
lembrada por autores de renome, para os quais o regime de pluralidade partidária
descambaria, facilmente, para o predomínio de um partido sobre os demais. Cada
partido, considerando-se o verdadeiro porta-voz da comunidade, tenderia, natural
mente, a se tornar intolerante para com os outros. Tal observação não deixa de ter
fundamento na epoca dc partidos dc massas cm que vivemos. Como accntua Bur-
dcau, são os partidos ideológicos, em razão dc seu dogmatismo espiritual e seu im
perialismo político, irremediavelmente refratários à sua integração nos mecanismos
tradicionais da democracia, tendendo a impor à coletividade uma unificação espi
ritual pelo reconhecimento de sua infalibilidade. Tornaram-se, portanto, causas de
supressão da própria ideia de democracia, como é o caso dos movimentos de índo
le totalitária.
Por isso, John Adams, que demonstrava certo receio pela divisão da repúbli
ca norte-americana em dois grandes partidos, reconheceu, mais tarde, que a verda
deira solução para a existência destes residiria em controlar rigidamente sua ativi
dade. Seja como for, inteiramente válida se mostra a observação de Mac Iver de
142 Teoria Geral do Estado
que, sem os partidos políticos, as únicas formas de alcançar o poder seriam o gol
pe de Estado, a insurreição ou a revolução.
Pouco sentido prático teria, porém, nesta obra, uma longa digressão a respei
to da conveniência ou não dos partidos políticos. Eles aí estão c, portanto, só nos
resta analisá-los, sucintamente, em suas linhas básicas.
O Estado contemporâneo apresenta, fundamentalmente, dois sistemas partidá
rios:
a) monopartidário (partido único);
b) pluripartidário (dois ou mais partidos).
Por outro lado, a maioria dos autores afirma a existência de uma classifica
ção supostamente mais precisa:
a) bipartidário;
b) pluripartidário;
c) monopartidário.
A verdade é que haverá pluralidade partidária onde houver dois ou mais par
tidos. A própria palavra plural refere-se a mais de um, c a expressão pluralidade re
vela qualidade atribuída a mais de um ser ou coisa. A multiplicação desordenada
dc partidos, aparentemente consolidadora do ideal da representação política, na
verdade o condena. Ensejando a contraditoriedade dos princípios ideológicos cada
vez mais díspares, aumentam as divergências e a desorientação popular. Obrigados
a incluir sob seu manto protetor categorias sociais que envolvem os mais díspares
interesses, criam programas de ação absolutamente quiméricos, inexequíveis, des
vinculados da realidade, que jamais poderão ser cobrados pelo eleitorado.
Das mais oportunas é a advertência de Ferreira Filho:
Raramente o deputado escolhido para representar a ideologia predominante num
eleitorado é o mesmo homem que seria escolhido por seus eleitores, ou frações pon
deráveis destes, para representá-los enquanto horticultores ou artesãos, enquanto ope
rários ou industriais, junto aos órgãos de planejamento econômico e semelhantes. As
sim o ideologicamente representado não se sente representado quanto a seus interesses
econômicos, não raro sociais, profundamente afetados pelo Estado-providência.
Acentua Duverger que, embora não haja no Estado dualismo partidário, ha
verá, no mais das vezes, dualidade de tendências. Aliás, como lembra Bonavides,
seria imperdoável equívoco supor que o sistema bipartidário significa, literalmen
te, a existência tão somente de dois partidos, pois, na verdade, é possível que vá
rios partidos concorram às urnas, mas geralmente o sistema se encontra de tal for
ma estruturado que apenas dois partidos reúnem, permanentemente, condições de
chegar ao poder. E Manoel Gonçalves Ferreira Filho considera o bipartidarismo o
sistema partidário ideal, desde que os dois partidos sejam efetivamente homogê
neos e disciplinados.
6 Formas de governo 143
Os partidos políticos encontram fortes concorrentes nos grupos de pressão.
Estes, no transcorrer do século XX , surgem como o fruto de novas condições so-
cioeconômicas criadas pelo capitalismo e pela falta de representatividade dos par
tidos políticos. Não se confundem com os partidos porque seu objetivo não é a to
mada do poder, mas a utilização deste em proveito próprio; por outro lado, o
objetivo do grupo dc pressão é quase sempre econômico, enquanto o do partido é
político. Além disso, a existência de um partido deve ser permanente, ao passo que
o interesse do grupo de pressão é transitório. Mais: o partido político é reconheci
do ou tacitamente admitido pela lei, o que não ocorre, no mais das vezes, com o
grupo de pressão, que se acha, quase sempre, à margem do ordenamento jurídico.
Os métodos empregados pelos grupos de pressão variam conforme as circuns
tâncias: apoio eleitoral a um partido que com eles se ache comprometido, pressão
direta sobre os membros do poder executivo ou do legislativo. A legislação norte-
americana, não podendo eliminar os grupos de pressão, houve por bem reconhecê-
los, exigindo que os grupos empenhados em defender interesses particulares junto
ao Congresso estejam devidamente registrados e dotados da competente conta
bilidade.
A moderna concepção dc democracia não se compadece da democracia indi
vidualista; a partir do momento cm que os partidos de opinião vão cedendo terre
no aos partidos de massa, os representantes da coletividade têm enfraquecida sua
individualidade a favor da vinculação integral às diretrizes dos partidos, em verda
deiro mandato imperativo de índole partidária, como assinala Bonavides. A fideli
dade partidária consagra a chamada democracia partidária, pela qual o povo esco
lheria muito mais um programa de ação do que representantes. O partido, nova e
superior unidade, como diria Giorgio dei Vecchio, referindo-se às sociedades em
geral, passa a ter um objetivo mais palpável, que transcende os meros interesses in
dividuais de seus filiados.
Acentua Burdeau que à democracia política sucede a democracia social, a de
mocracia governante, dos homens situados e não mais dc cidadãos abstratos. Os
tradicionais partidos de opinião, que buscavam evitar dogmatismos compromete
dores dc suas transações políticas, adotando uma estrutura interna bastante maleá
vel para atrair o maior número de simpatizantes, sem considerar as condições eco
nômicas de cada um, passam a ser substituídos pelos partidos de massa, que reúnem
seus filiados com base na situação econômica de cada um. São partidos de massa
porque as individualidades renunciam à sua autonomia em proveito do partido,
que, por outro lado, se destaca em razão de sua disciplina e do seu dogmatismo
doutrinário.
Um partido político deve estar estruturado numa ideia e num programa exe
qüíveis. Embora organizado em torno dos interesses de uma parcela do povo, tais
interesses pertinem, pelo menos mediatamente, a toda a coletividade. Daí a impor
144 Teoria Geral do Estado
tância da interação partido-sociedade-interesses na propagação e cumprimento de
um sistema ideológico plausível, expresso sob quatro aspectos:
a) visão do mundo ou cosmovisão;
b) programa ideológico;
c) plataformas eleitorais;
d) motivações simbólicas (slogans).
Um partido político não deve ser o túmulo do pensamento, mas um organis
mo em permanente elucubração e modernização doutrinárias, mediante a adoção
de uma cosmovisão (Weltanschauung) que represente uma interpretação clara e
consciente do universo, devidamente transmitida aos eleitores. Quanto ao progra
ma ideológico, todo partido deve sustentar-se num conjunto de princípios ideoló
gicos sólidos e coerentes acerca dos problemas do Estado, estabelecendo soluções
exeqüíveis, nas quais impere a franqueza e a sinceridade, não a demagogia. No to
cante às plataformas eleitorais, os integrantes do partido deverão adequar o pro
grama geral do partido às tendências e necessidades de cada circunscrição eleito
ral. Tais plataformas exigem, também, a adaptação do programa geral às novas
situações. As motivações simbólicas (slogans) vêm a ser, numa sociedade de mas
sas, um cxcclcntc veículo para a transmissão simplificada das ideias. Poderão scr o
grito dc guerra, a palavra-chavc ou o sinal distintivo do partido.
Por outro lado, em seu funcionamento, o partido deve apresentar uma orga
nização administrativa e uma estrutura material destinadas a garantir a sua nor
mal atividade. Tais órgãos poderão ser diretivos e burocráticos.
No tocante à militância partidária, cada partido apresenta, via de regra, filia
dos e simpatizantes. Os filiados são aqueles regularmente inscritos ao partido e do
tados de direitos e deveres partidários. Os simpatizantes são aqueles que, por vá
rias razões, não podem filiar-se ao partido, mas que, indiretamente, o auxiliam.
O partido único, cujo apogeu foi alcançado no período compreendido entre
as duas Grandes Guerras, vem a ser muito mais um movimento de reação antipar-
tidária do que um partido propriamente dito, movimento este que tanto pode con-
gregar uma nação (Itália fascista c Alemanha nacional-socialista), como uma clas
se (proletariado, na URSS). Diga-se de passagem que a Itália fascista e, por via de
conseqüência, a Alemanha nazista encontraram inspiração para seu movimento no
próprio marxismo. Este afirma que a pluralidade partidária espelha a própria luta
de classes, pois cada partido representaria uma classe social. Um partido político
seria parte de uma classe social determinada; daí a existência de vários partidos
numa sociedade formada por classes antagônicas. No Estado socialista, contudo,
existiria apenas uma classe, a dos operários e camponeses, cujos interesses seriam
comuns. Não pode haver, portanto, para uma só classe, mais do que um partido,
qual seja, o próprio Partido Comunista. Disso os adeptos deste partido concluem,
com muita graça e sagacidade, que o Partido Comunista sempre afirmará o seu di
reito de lutar ao lado de - ou contra - outros partidos nas sociedades não marxis
6 Formas de governo 145
tas, em nome da pluralidade de classes nelas existentes, mas reivindicará sua exclu
sividade 110 advento do Estado socialista... Na verdade, a tese marxista torna-se
vulnerável quando se consta que não foi demonstrado, ainda, nos Estados de ins
piração marxista, que nclcs existe somente uma classe ou, o que vem a dar no mes
mo, tenham desaparecido as classes sociais. Nem por isso os marxistas deixam de
continuar afirmando que o proletariado deve estruturar-se num movimento políti
co destinado a sustentar sua missão de exercer uma ditadura que permitirá a abo
lição das classes e do Estado. Eis por que a vigente Constituição soviética se refere
ao Estado socialista como o Estado de todo o povo.
Doutrinariamente, o partido único foi enaltecido, de forma unânime, por to
dos os teóricos do marxismo. Joscph Stalin, por exemplo, afirmava que o partido
é parte da classe, sua parte mais progressista, sendo que o pluripartidarismo so
mente pode existir numa sociedade onde haja antagonismos de classes, cujos inte
resses se mostram, mutuamente, hostis e inconciliáveis. Franz Oppcnheimer, tam
bém marxista, declarava que o partido é, na sua origem e continuidade, apenas a
representação organizada de uma classe. Numa de suas escassas referencias aos
partidos políticos, Marx afirma, no célebre Manifesto comunista, ser dever do pro
letariado organizar-sc numa classe, ipso facto, num partido político, ao passo que
Lenin, em vigorosa expressão que seria encampada pelas Constituições soviéticas,
afirmava ser o partido a vanguarda organizada e disciplinada do proletariado re
volucionário.
2.4.6.1) Os partidos polít icos no Brasil
No Brasil, durante o Primeiro Reinado (1822-1831), ainda não se pode falar
em partidos políticos, mas cm facções que, na Assembleia Constituinte de 1823,
aglutinaram-se em dois grupos antagônicos, um situacionista, de apoio ao Impera
dor Pedro I e, o outro, oposicionista, formado por liberais. Por outro lado, com a
abdicação dc Pedro I, e em face da menoridade de seu filho, o Brasil passou por vá
rios períodos de governo denominados Regências, quais sejam Regência Trina Pro
visória (1831-1832), Regência Trina Permanente (1832-1835), Regência Una do
Padre Feijó (1835-1837) e Regência Una de Pedro de Araújo Lima (1837-1840),
nesta última proclamada a maioridade de Pedro II. Durante o período regencial as
posições políticas vão ficando mais bem definidas, principalmente desde 1826, com
a Assembleia Geral ou Parlamento. Formam-se espontaneamente dois grupos, os
absolutistas e os liberais, respectivamente apoiando ou se opondo ao Imperador.
Durante a Regência Trina Provisória prevalecem os oposicionistas, divididos
em duas facções, a dos moderados, que se apoderam dos principais cargos gover
namentais, levando a efeito uma política conciliatória, ao contrário dos exaltados,
atuantes de forma franca e aguerrida, propugnando uma descentralização mais sim
pática às províncias. Na Regência Trina Permanente, os moderados continuam a
146 Teoria Geral do Estado
controlar o poder, sob a pitoresca denominação de chimangos. A par dessas fac
ções surge uma terceira, cujos seguidores, denominados caramurus, tinham como
plataforma a volta de Pedro I ao poder.
Em 1835, com a institucionalização da ideia de Regência Una, foi eleito Re
gente o Padre Diogo Antonio Fcijó, chimango (moderado) que dedicou-se com fir
meza à criação do Partido Progessista, que serviria dc base para a fundação do Par
tido Liberal. Os adversários do Regente, por sua vez, concentraram suas forças em
torno do Partido Conservador. Os filiados a este partido passaram a ser conheci
dos por saquaremas, evocando o município fluminense de Saquarema, onde se acha
va a fazenda do líder conservador Visconde de Itaboraí, ao passo que os liberais,
alcunhados luzias porque ligados à Revolução Liberal de 1842, quando, na locali
dade de Santa Luzia, foram vencidos por Caxias.
Na verdade, os Partidos Conservador e Liberal foram os mais importantes -
para não dizer os únicos - partidos do Império, revezando-se, continuamente, no
poder. Enquanto os conservadores eram escravocratas e tradicionalistas, os liberais
desejavam a abolição e maiores liberdades para as províncias. Esta alternância no
poder durou até 1889, com a proclamação da República e a queda do Gabinete do
Visconde dc Ouro Preto, de orientação liberal. Vale lembrar que já cm 1870 fora
criado o Partido Republicano, o qual, embora sem grande prestígio de início, con
tou desde logo com a colaboração dc grandes figuras como Quintino Bocaiúva,
Benjamin Constante Lopes Trovão.
Que dizer dos partidos políticos do Império? Aquele que, com meridiana clare
za os retratou Oliveira Vianna, em obra clássica intitulada O ocaso do império, ain
da atual como perceberá o leitor neste parêntese dos mais oportunos. Ouçamo-lo:
O traço característico desse grande movimento da opinião, que se seguiu ao gol
pe do Imperador contra os liberais em 68, era o de uma irritação viva, ardente, explo
siva contra o Poder pessoal, considerado pelos liberais como uma deturpação do Po
der Moderador, que a Constituição confiava à Coroa. E a verdade é que esta irritação
era inevitável. Porque só os que ignorassem os nossos costumes políticos e a mentali
dade dos nossos partidos poderiam supor possível que o Poder Moderador, supremo
regulador do sistema parlamentar, pudesse funcionar aqui com a mesma perfeição com
que funcionava entre os ingleses. Faltavam à nossa sociedade todas as condições para
isto. O governo parlamentar, como já vimos, é essencialmente um governo de opinião,
isto é, um governo cuja instituição num dado povo pressupõe a existência de uma opi
nião pública organizada. Ora, esta opinião pública organizada, capaz dc governo, nun
ca existiu aqui, nem hoje, nem outrora; alhures, já o dissemos por que. Havia - como
ainda há hoje - uma opinião informe, difusa, inorgânica, que era a que se formava nos
centros universitários, nos clubes políticos, nas sociedade maçônicas e principalmen
te na Imprensa. Esta opinião, aliás, tinha sempre um caráter artificial, era quase sem
pre um reflexo americano das agitações europeias. Só exprimia realmente o pensamen
6 Formas de governo 147
to de uma pequena parcela das classes cultas do País. O Imperador não desdenhava
de atendê-la - e assim o fez no caso da eleição direta, no caso da Abolição, no caso da
Federação. Esta opinião, de origem habitualmente exótica, em regra, nunca aparecia
pura e extreme; sempre se mostrava, ao contrário, muito impregnada das animosida-
dcs do partidarismo, muito comprometida com o espírito de facção, para que sc pu
desse considerá-la sempre como um índice sadio da opinião nacional. E, justamente,
por isso, ela devia ter constituído para o Imperador, todas as vezes que era obrigado
a organizar novo Gabinete, um dos grandes motivos de perplexidade. Esta perplexi
dade do Imperador não devia ser menor quando ele, no intuito de conhecer a opinião
do País, buscava-a, ou tentava buscá-la, na opinião dos partidos. Porque os partidos
políticos do Império, imponentes embora pela sua massa, não tinham propriamente
uma opinião; eram simples agregados de clans organizados para a exploração em co
mum das vantagens do Poder. Certo, houve aqui uma fase em que os partidos tiveram
verdadeiramente uma opinião: foi o período da Independência, do 1° Reinado e da
Regência. Depois dessa grande fase histórica, pode-se afirmar com fundamento que os
partidos políticos não representavam realmente correntes de opinião; os programas
que ostentavam eram, na verdade, simples rótulos, sem outra significação que a de ró
tulos. O próprio liberalismo da Constituição tornara, aliás, difícil esta discriminação
muito nítida das opiniões. Zacharias exprimiu muito bem este fato no seu discurso dc
18 dc junho dc 1870, no Senado: “O argumento do nobre senador - dizia ele - envol
ve uma confusão de ideias manifesta: O conservador no Brasil é necessariamente libe
ral, porque a Constituição do Brasil contém instituições santas, liberais; o conserva
dor quer manter estas instituições; logo, é liberal. O argumento poderia ser invertido
pelos liberais, dizendo: A Constituição brasileira contém instituições santas, liberais;
o partido liberal quer mantê-las; logo, só o liberal é conservador”. Já em 53, aliás, a
chamada política da conciliação, de Paraná, é uma prova do vago, do indefinido, do
incerto contido nos programas dos dois grandes partidos do Império. O fato é que ne
nhum desses dois programas representava convicções definitivas e sinceras. Tanto que
os liberais, quando no governo, agiam sempre de maneira idêntica aos conservadores:
o inebriamento do poder como que os fazia olvidarem os seus mais caros ideais, calo
rosamente pregados quando nas agruras da oposição. O programa liberal era uma es
pécie dc trombeta sonora, que os liberais só sc lembravam dc clarinar com fogo, com
brio, com ímpeto, quando, como cm 68, o Imperador os atirava momentaneamente
no ostracismo. Então, todo o País acordava sob um estridor imenso de toques de alar
ma, de sonoridades marciais, de cânticos de guerra, chamando a postos as consciên
cias altivas para a defesa da Pátria, da Democracia e a Liberdade. Desde o momento,
porém, em que, ao aceno da Coroa, retornavam ao poder, cessavam de súbito o trom
betear formidável - e passavam a ser [...] como os conservadores.
Com a proclamação da República, extintos os partidos do Império e preser
vado, evidentemente, o Partido Republicano, formou-se, desde logo, a tendência à
148 Teoria Geral do Estado
criação de partidos locais, de modo que cada Estado contaria com seu próprio par
tido republicano, favorecendo governadores que apoiavam o governo central. Em
1922 foi fundado o Partido Comunista brasileiro, logo posto na clandestinidade.
Entre 1930 e 1937, foram criadas a Ação Integralista Brasileira (1932), nos mol
des dos movimentos fascista e nacional-socialista, e a Aliança Nacional Libertado
ra, dc tendência comunista, conduzida por Luís Carlos Prestes. Além destas duas
agremiações partidárias foram criadas outras, como a União Democrática Nacio
nal, que lançou como candidato à Presidência da República Armando Salles de Oli
veira, em oposição a Getúlio Vargas. Este, em 1937, deflagrou um golpe de Estado
para fortalecer seu poder e depurar as hostes inimigas. Dissolvidos os partidos exis
tentes e exilados seus principais líderes, fechado o Congresso Nacional e controla
da a imprensa, o Estado autoritário alcançava seu máximo prestígio. A derrota do
nazi-fascismo, contudo, prenunciava seu declínio, de modo que, após permanecer
durante quinze anos no poder, Getúlio foi deposto em 29.10.1945. A partir daí,
formaram-se inúmeros partidos, alguns notório significado, outros nem tanto. Ti
nham real prestígio, então, a União Democrática Nacional, o Partido Social Demo
crático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Na iminência do movimento militar de 1964, já havia treze partidos na ativa,
dissolvidos, porém, em 27.10.1965, pelo Ato Institucional n. 2. Tem início, a par
tir daí, uma febricitante elaboração legislativa, destacando-se o Código Eleitoral, a
Lei Orgânica dos Partidos Políticos e a Lei das Inelegibilidades, sem falarmos nas
inovações introduzidas pela Constituição de 1967, substancialmente emendadas
em 1969.
O Ato Complementar n. 4, de 25.11.1965, permitira a criação de duas agre
miações partidárias, a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento De
mocrático Brasileiro (MDB), transformadas em partidos desde 1967. Todavia, a Lei
n. 6.676, de 20.12.1979, ao extinguir a Arena e o MDB, permitiu a criação de no
vos partidos, dentre os quais o Partido Democrático Social (PDS), herdeiro da Are
na, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), sucessor do MDB,
sendo a nova denominação derivada do fato dc a Lei n. 5.682/71 (antigas Lei Or
gânica dos Partidos Políticos, revogada pela atual, Lei n. 9.096/95) determinar, no
art. 5°, § I o, exigir a expressão partido na sigla identificadora dos novos partidos,
o Partido Popular (PP), o Partido Trabalhista Brasileiro (P I B) e o Partido dos Tra
balhadores (PT). A partir daí, a legislação eleitoral foi se tornando mais e mais per
missiva, propiciando o surgimento de nada menos que trinta (!) novos partidos,
bastando lembrar que, em 15.08.1988, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou o re
gistro provisório de um Partido Humanista (?) Nacional e de um Partido Nacional
dos aposentados (!). Daí, o recrudescimento da perigosa patologia política do mui-
tipartidarismo, a pulverizar a opinião pública, afrontando a dignidade da Política
e o bom senso da cidadania.
6 Formas de governo 149
2.4.7) Dem ocrac ia e com un icação de massa
A comunidade nacional é soberana. Todo o poder emana do povo. Antes do
advento do liberalismo político, dizia-se que o poder vinha de Deus. Hoje, pratica
mente, todas as Constituições consagram a soberania popular ou nacional. Como
a democracia direta não é mais praticável atualmente, o povo ou a nação escolhem
seus representantes por meio de eleições. Eis a democracia representativa. O povo
ou a nação são soberanos e a soberania é indelegável, inalienável. A democracia re
presentativa deve, portanto, apoiar-se na opinião pública.
Mesmo nos Estados totalitários, como o Estado nacional-socialista alemão,
havia a realização do plebiscito, a fim de que o Führer auscultasse a chamada opi
nião pública. Auscultar a opinião pública que seja a lídima, a verdadeira opinião
pública, eis o ponto-chave da democracia.
Como acentua Salvetti Netto:
o mecanismo democrático, que se sustem na representação popular, será tanto mais
eficaz para atender aos fins da própria democracia, quanto mais propiciar as condi
ções necessárias a uma estreita conformidade entre as deliberações dos órgãos gover
namentais e os interesses da coletividade. Não pode haver representação onde inexis-
tirem cidadãos politizados, onde não houver fontes informativas da opinião pública,
livres, desobrigadas e autônomas...
Em face disso ocorrem na America Latina e nos Estados política e economi
camente subdesenvolvidos crises políticas incessantes.
Na maioria desses Estados existe uma democracia meramente formal, em opo
sição a uma democracia concreta, substancial.
Em razão do exposto percebemos a importância e a responsabilidade dos
meios de comunicação de massa na atualidade. Tais meios se confundem com aqui
lo que costumamos denominar imprensa. Nesta incluem-se todos os meios de co
municação de massa, embora seja instintivo nos referirmos aos meios de impressão
com maior frequência do que ao rádio ou ao cinema, mesmo porque aqueles são
mais antigos e acumularam ao seu redor a maioria das concepções teóricas da co
municação de massa. Em seu livro Tres teorias sobre la prensa, Siebcrt e Peterson
apresentam trcs teorias referentes à liberdade dc imprensa e as relações desta com
o Estado:
A teoria autoritária: esta teoria surgiu no clima autoritário do Renascimento,
pouco depois da invenção da imprensa. Acreditava-se, então, que a verdade era apa
nágio de alguns homens em posição de dirigir seus governados. A imprensa atuava
de cima para baixo. Somente mediante permissão especial era permitida a proprie
dade privada de órgãos da imprensa, e esta permissão podia ser cassada a qualquer
momento. As publicações abrigavam, então, uma espécie de contrato entre os go
150 Teoria Geral do Estado
vernantes e os editores, pelo qual aqueles concediam um monopólio e estes, em con
trapartida, deviam prestar “apoio'’ incondicional aos detentores do poder.
Ora, tal concepção da imprensa eliminava de pronto o que, 11a época, chegou
a ser uma dc suas funções mais comuns: controlar o governo. Esta teoria da im
prensa como mera servidora dos governantes foi accita universalmente no século
XVI e parte do século XVII.
A teoria libertária da imprensa: a liberal-democracia, a liberdade religiosa, a
expansão da liberdade de comércio, a aceitação da economia do laissez-faire e o cli
ma da ideologia iluminista minaram paulatinamente o autoritarismo, reclamando
um novo conceito de liberdade de imprensa. Esta nova teoria tem seu início no sé
culo XVII, alcançando seu apogeu no século XIX. A teoria libertária não concebe o
homem como um ser que deve ser dirigido, mas como ser racional capaz de discernir
entre o certo e o errado. A verdade deixa, então, de ser privilégio do poder. O direi
to de procurar a verdade torna-se um dos mais prestigiosos direitos naturais do ho
mem. A imprensa passa a ser considerada uma companheira em busca da verdade.
Na teoria libertária, a imprensa não é um instrumento dc governo, mas um recurso
para apresentar provas e argumentos sobre a atuação dos governantes c controlá-los.
Portanto, para esta teoria é indispensável que a imprensa esteja a salvo do controle
c influência governamentais. Para que possa surgir a verdade, é preciso aferir todas
as opiniões; deverá haver um “mercado livre” de ideias e informações.
A teoria de responsabilidade social da imprensa: a teoria da responsabilida
de social da imprensa resultou de um problema surgido há cerca de trinta anos,
com a revolução das comunicações. Quando as estações de rádio começaram a se
multiplicar, a exemplo dos jornais e livros, sua organização foi tornando-se cada
vez mais complexa, exigindo capitais de vulto. A imprensa - como nos tempos do
autoritarismo da imprensa - passou a cair nas mãos de uns poucos poderosos. Se
estes homens, muitas vezes apolíticos, buscavam de todas as formas uma indepen
dência de informação relativamente ao governo, não é menos verdade que a opi
nião pública passou a correr novo perigo, qual seja, o poder incontrastável da im
prensa cm mãos dc particulares. A proteção da imprensa contra a influencia do
governo deixou dc ser suficiente para garantir a oportunidade de alguém expressar
suas ideias, pois os donos e gerentes da imprensa determinariam as pessoas, os fa
tos, as versões destes que seriam dadas ao público. Foi este problema que consti
tuiu a base do desenvolvimento da teoria da responsabilidade social, 011 seja, a po
sição de poder e quase monopólio dos meios de comunicação. Deve haver então,
segundo esta teoria, a institucionalização da responsabilidade social das empresas
para que todas as opiniões se apresentem imparcialmente, para que o público pos
sa imparcialmente decidir.
Na verdade, o problema da liberdade de imprensa tem de ser cuidadosamen
te estudado, pois sua existência ou não sempre impele a nau do Estado pelos mais
inesperados caminhos. Seignobos, 11a sua magistral História sincera da França, e
6 Formas de governo 151
Domenach, em A propaganda política, demonstraram à saciedade o papel da im
prensa, especialmente a clandestina, na disseminação das ideologias na França ilu-
minista e na Rússia de 1917.
Nos dias em que vivemos, o problema agravou-se com o embate ideológico,
verdadeiro caleidoscópio político, pois os meios de comunicação, cada vez mais
perfeitos c objetivos, são dc fácil apreensão pela massa.
Abordando o tema, Ferreira Filho (A democracia possível) adverte que quem
controla os meios de comunicação de massa tem a possibilidade, mais que isso, a
tentação, de manipular o seu auditório, infundindo-lhe as próprias concepções.
3) TIRANIA
Bibliografia: b u r n , A. R. As cidades rivais da Grécia, Lisboa, Editorial Verbo, s.d. d e
c i c c o , Cláudio. Dinâmica da história, São Paulo, Palas Athena do Brasil, 1981. f e r -
r e i r a f i l h o , Manoel Gonçalves. O estado de sítio, São Paulo, Saraiva, 1964. f u s t e l
d e c o u l a n g e s , Numa Denis. A cidade antiga, São Paulo, Martins Fontes, 1981. l e r -
m i n i e r , Eugène. Histoire des législateurs et des constitutions de La Grèce antique,
Scientia Verlag Aalen, 1974, reimpressão da edição francesa de 1852, Paris, Amyot,
Rue da La Paix. m o s s í :, Claude. I.a tyrannie dans la Grèce antique, Paris, PUF, 1969.
RE iN A C H ,T héodo re . De 1'état de siège, Paris, F. Pichon, 1885.
A tirania é uma forma autocrática de exercício do poder político que tem ori
gem asiática, passando para a Grécia a partir do século VI a.C. O vocábulo tirania
tanto pode ser originário da Lídia, sendo o rei Giges o primeiro a ser chamado ti
rano, como de Canaã, de serens, nome bíblico atribuído aos filisteus de origem no
bre. Pode, até, ser originário dos etruscos, da expressão turan, que significa poder
ou senhoria, ou de nomes próprios da Etrúria (o rei Turuns ou a deusa Juturna).
Aliás, já sc disse que os etruscos, que desenvolveram a mais adiantada cultura da
antiga Itália, antes dos romanos, eram descendentes dos lídios, sendo sua origem
asiática, portanto.
Consequentemente, a palavra tirania não é grega; designa, antes de mais nada,
a forma de governo da moda existente na Ásia Menor, em dado momento históri
co, não tendo absolutamente, como sugere o vocábulo, sentido pejorativo, malévo
lo. Com efeito, a exemplo da ditadura romana, a tirania asiática não se apresenta
como uma forma de exercício do poder necessariamente perniciosa. Diga-se o mes
mo da sua versão grega que representou, no mais das vezes, os interesses coletivos,
como veremos adiante. Em detrimento da verdade histórica, a tirania passou, com
o tempo, a significar uma forma política essencialmente indesejável, preconceito
152 Teoria Geral do Estado
este arraigado até mesmo entre estudiosos da história política e que cumpre-se ex
tirpar de vez.
Vejamos, entretanto, a evolução da tirania grega. É durante o século VI a.C.
que desaparecem, em grande número dc cidades gregas, as velhas Constituições aris
tocráticas, como fruto do descontentamento dc comerciantes e industriais que, en
riquecidos em sua atividade, passam a almejar os cargos públicos. A aristocracia,
sem se renovar, é dividida por lutas internas e enfraquecida cada vez mais. Sua de
cadência vai ensejar o aparecimento de uma nova forma política, oriunda da Asia,
a tirania. Esta forma de governo vai permitir o restabelecimento da ordem e uma
política de expansão territorial e, consequentemente, de desenvolvimento econômi
co, como corolário do espírito empreendedor dos gregos do século VII a.C. A tira
nia, diga-se mais uma vez, não indicava uma ideia de dominação necessariamente
opressiva, mas a forma de poder exercido por um homem cujo direito de governar
era fundado não mais na religião ou na hereditariedade, como a antiga monarquia,
porém no prestígio pessoal, 110 apoio dos estamentos inferiores, comerciantes e gen
te humilde. Acrescentc-sc a isto um forte aparato militar. Claro, houve abusos por
parte dc inúmeros tiranos; muitos, contudo, criaram constituições democráticas, de
fendendo os interesses dos menos favorecidos, exercendo uma forma política em
muito semelhante à denominada ditadura proletária a que sc refere Burdeau.
Com efeito, as massas, em sua fraqueza, não encontraram outro meio de com
bater os excessos da aristocracia senão o de lhe opor uma nova espécie de monar
quia, seja na Grécia ou em Roma. Quando, em toda parte, os reis foram vencidos
e a aristocracia se firmou 110 poder, o povo não se limitou a lastimar a queda da
monarquia, mas procurou restaurá-la sob nova roupagem.
Em seus primórdios, a tirania vem a ser uma forma política responsável pelo
esplendor e pelo desenvolvimento econômico das cidades. Destacam-se tiranos no
táveis: Trasíbulo, em Mileto; Pitágoras, em Éfeso; Polícrates, 11a ilha de Samos. Este
cria uma potência marítima comparável à do Egito e da Pérsia, dedicando-se, ade
mais, a proteger sábios, cientistas c poetas e a edificar majestosas obras públicas.
Outro notável tirano, Pisístrato, governa Atenas com sabedoria e moderação, res
peitando a legislação de Sólon, impedindo a formação dc latifúndios, realizando
ampla reforma fiscal e embelezando a cidade.
O tirano não altera, geralmente, a Constituição. As magistraturas são manti
das, devidamente encarnadas em homens de sua inteira confiança. O conselho e a
assembleia determinam a nova política, embora severamente fiscalizadas pelo tira
no, que se faz acompanhar, prudentemente, de robusta guarda pessoal. A aristocra
cia é perseguida. O tirano Trasíbulo pediu, certa vez, conselho a Periandro, tirano
de Corinto, que era, por sinal, 11111 dos sete sábios da Grécia, a respeito da arte de
governar. Periandro não respondeu: como ambos se achavam num trigal, limitou-se
a cortar algumas espigas que se sobressaíam em altura das demais, insinuando, com
6 Formas de governo 153
isso, que a tirania não pode tolerar que os mais capazes adquiram demasiado pres
tígio.
Em Corinto, Cípselo confisca as terras aos nobres e as distribui entre as mas
sas desfavorecidas; em Mégara, Teágenes pura e simplesmente massacra os rebanhos
dos ricos, captando a simpatia popular. Os miseráveis vecm sua revolta c desdita mi
noradas, pois os grandes empreendimentos públicos oferecem trabalho c as terras
confiscadas lhes propiciam a fixação à terra. Tais situações atendem plenamente aos
interesses do tirano, preocupado permanentemente com a hostilidade potencial dos
aristocratas e com a sublevação das massas. Além disso, o tirano utiliza-se, frequen
temente, dos cultos religiosos, os quais, excelente veículo de propaganda, contribuem
para a estratificação do poder pessoal. Na verdade, à época das tiranias, comba
tia-se ou pela liberdade ou pela tirania. Liberdade, para o proletariado, quer dizer
governo dos ricos; tirania significava o governo de um líder antiaristocrático e, in
diretamente, popular. Segundo o próprio Aristóteles, o tirano não tinha por missão
mais do que proteger o povo contra os ricos, sendo da essência da tirania a guerra
à aristocracia. A tirania é oriunda, em última análise, dos anseios dc uma burguesia
florescente e, paradoxalmente, da miséria das massas e, claro, da audácia dc indiví
duos sequiosos dc poder e decididos a tudo para triunfar.
A tirania perduraria desde o século VI a.C. até meados do século seguinte, es
tendendo-se, por todo o mundo grego, mas em cada caso particular jamais durou
muito tempo. Em Esparta, aliás, a tirania jamais foi bem vista, talvez pela natural
desconfiança do espartano em relação ao indivíduo enquanto tal. Na expressão do
historiador ateniense Tucídides, Esparta não suportava os tiranos; tal aversão, de
nominada atyranneutos, revela-se plenamente quando a política exterior esparta
na intervém contra Polícrates e contra os Pisistrátidas, quando apeia do poder Lig-
damis de Naxos e quando repudia a aliança a Corinto e Sicione, enquanto estas
cidades são governadas por tiranos.
A tirania decadente tornar-se-ia hereditária; então, as qualidades de energia,
audácia e talento político, peculiares ao bom tirano, já se faziam escassas. A tira
nia arcaica continha em si mesma os germes de seu desaparecimento, ou seja, a
composição das crises sociais que a originaram. Com o desaparecimento destas,
mediante as próprias reformas tirânicas, os cidadãos desejariam o retorno a uma
forma de governo regular, em que o exercício do poder não se limitasse a um só
homem. A tirania foi, na verdade, uma etapa necessária no caminho da democra
cia, como acentua François Chamoux, pois à tirania se sucede uma aristocracia mo
derada.
O mundo moderno conheceu uma forma de exercício do poder político céle
bre, aquela exercida por Oliver Cromwell (1599-1658), que, fazendo condenar à
morte o rei Carlos I, em 1649, fez-se nomear Lorde Protetor da República da In
glaterra (Commonwealth). O poder de Cromwell lembra, estranhamente, as tira
nias gregas. Homem de caráter enigmático, ora iluminado, ora calculista, genero
154 Teoria Geral do Estado
so e cruel, dotado do mais refinado bom senso ou da mais escandalosa extravagância,
era, fanaticamente, puritano, dissolveu o parlamento 110 dia 30.04.1653, tratando
os parlamentares de ladrões e covardes, fechou as portas da casa legislativa e guar
dou as chaves no bolso... Proclamada a República em 16.12.1653, instalou-se no
palácio de Whitewall c iniciou um governo rude, que promoveu a dissolução de
quatro parlamentos sucessivos, mas que tornou a Inglaterra respeitada c temida,
adquirindo Dunquerque e apossando-se da Jamaica. Reprimiu revoltas na Irlanda
e na Escócia, e sua violência foi tamanha que os irlandeses se tornaram inimigos
latentes dos anglo-saxões. Cromwell, que sonhava, certamente, em se tornar rei,
não conseguiu seu desideraro, deixando seu posto para seu filho Ricardo, que, lon
ge de possuir as qualidades do pai, logo abdicou. Cláudio de Cicco, em síntese so
bre a História Universal, ressalta bem a influência da religião puritana sobre Cromwell,
que, aliás, vituperava o rei Carlos I, sob os epítetos de anticristo e dragão do apo
calipse. Os seguidores de Cromwell entremeavam seus combates com cânticos e
salmodias, sendo o respeito para com o chefe absoluto. Ainda Cláudio de Cicco
aponta, com muita agudeza, que o Navigation Acty promulgado por Cromwell, para
proteger a burguesia de armadores e proprietários de companhias mercantis, mos
tra bem o nexo entre o mercantilismo capitalista c o luteranismo dc Cromwell.
4) OLIGARQUIA
Bibliografia: Ar i s t ó t e l e s . Política, Madrid, Centro dc Estúdios Constitucionales, 1983.
b o b b i o , Norbcrto c m a t t e u c c i , Nicola. Diccionario de política, Mcxico, Sigla XXI,
1985, v. 2. b o d i n , Jean. Les six livres dc la republique, Aalcn, Scicntia Vcrlag, 1977.
g l o t z , Gustave. A cidade grega, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1988. m i c h e l s , Ro-
bert. Los partidos políticos, Buenos Aires, Amorrortu, s.d., 2 v. PLATÃO. La república,
Madrid, Centro de Estúdios Constitucionales, 1981, t. 3.
Do grego o l igo i, poucos, e arche, governo, oligarquia significa, literalmente,
governo de poucos. Entretanto, como aristocracia significa, também, governo de
poucos - porém, os melhores -, tem-se por oligarquia o governo de poucos em be
nefício próprio, com amparo na riqueza pecuniária. Em outras palavras, o termo
apresenta um conteúdo eticamente negativo ao denominar o governo dos ricos, em
bora possa indicar, também, o governo de poucos mantido pela intimidação, como
no caso da oligarquia militar. Modernamente, são usados mais dois termos para
denominar o governo pernicioso de uma minoria, quais sejam, plutocracia e nepo
tismo. Plutocracia é termo de origem grega (de ploútos, riqueza, e kratos, poder),
daí ploutokratía, plutocracia, ou governo fundado 110 dinheiro, na corrupção. Quan
to a nepotismo, a expressão é de origem latina, de nepote, neto 011 segundo sobri
6 Formas de governo 155
nho; nepote, por sua vez, deriva de ncpos, termo latino que denomina simplesmen
te o escorpião, aracnídeo cuja fêmea é devorada pela própria ninhada, como a
parentela se aproveita dos ascendentes bem situados, assumindo os melhores car
gos públicos, cm detrimento dos mais capacitados. Em suma, favorecimento de ami
gos e parentes da minoria governante.
Diz Platão: “A que tipo de Constituição - disse - chamas oligarquia? Ao go
verno baseado no censo - disse eu - no qual mandam os ricos, sem que o pobre te
nha acesso ao governo” (>4 república, 550, c). Aristóteles, por sua vez, doutrina:
“Há democracia quando os livres governam, com maior razão que há uma oligar
quia quando os ricos governam, e, geralmente, os livres são muitos e os ricos pou
cos (Política, 1290, b). Na distinção aristotélica entre formas de governo puras e
impuras, a oligarquia, como governo dos ricos, é a forma impura da aristocracia,
que é o governo dos melhores (Política, 1279, b). O sentido negativo da oligarquia
c uma constante no pensamento grego clássico, bem assim no pensamento moder
no e contemporâneo. Veja-se, por exemplo, Jean Bodin numa das mais festejadas
obras da teoria política: “Da mesma forma que a monarquia pode ser real, despó
tica, tirânica, assim a aristocracia pode ser despótica, legítima, facciosa; este tipo
dc governo, na Antiguidade, era chamado oligarquia, vale dizer, domínio cxcrcido
por uma minoria [...]. Por isso os antigos usavam este termo com significado nega
tivo, e aristocracia com sentido positivo (Les six livres de Ia république, Livro II,
Capítulo IV).
Muitos autores contemporâneos, como Robert Michels e Caetano Mosca, sus
tentam que em todas as organizações de massa brotam, naturalmente, facções oli-
gárquicas destinadas a se tornar verdadeiras elites. Robert Michels chama este fe
nômeno de “lei de ferro da oligarquia”. Quanto ao marxismo, considera a democracia
liberal uma oligarquia disfarçada, mesmo sendo assegurado o sufrágio universal.
Paradoxalmente, o marxismo-leninismo exige, no período de transição entre o ca
pitalismo e o comunismo, denominado ditadura do proletariado, o governo de uma
minoria seleta, investida dc plenos poderes, que evoca, sem dúvida, as elites diri
gentes da República de Platão.
5) DEMAGOGIA E 0CL0CRACIA
Bibliografia: AMARAL AZEVEDO, Antonio Carlos de. Dicionário de nomes, termos e con
ceitos históricos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990. Ar i s t ó t e l e s . Política, Madrid,
Centro de Estúdios Constitucionalcs, 1983. g l o t z , Gustavc. A cidade grega, Rio dc
Janeiro, Bertrand Brasil, 1988. l i n a r e s q u i n t a n a , Segundo V. Sistemas de partidos y
sistemas políticos, Buenos Aires, Plus Ultra, 1976.
156 Teoria Geral do Estado
Demagogia vem do grego demos, povo, e agein, conduzir pela palavra. Daí
agog-os, orador que conduz. Então, demagogo é aquele que conduz o povo, sendo
demagogia a arte de conduzir o povo. Ressalte-se que na antiga Grécia, o termo de
magogia não teve, durante muito tempo, a conotação pejorativa de hoje, sendo o
demagogo aquele que, impondo-se ao tirano, esclarecia o povo com sabedoria e
justiça. Foi com o grande historiador ateniense Tucídides (460-395 a.C.) que a de
magogia principiou a ter sentido negativo, denominando a atitude daqueles que
“conduzem o povo lisonjeando seus sentimentos”.
Aristóteles advertia para o fato de que a demagogia, forma corrupta da de
mocracia e que leva à implantação de um governo despótico das classes sociais
mais baixas, bem como à desordem e à corrupção, provoca a reação de comuni
dades organizadas, que acabam por implantar um governo autoritário. Ainda é
Aristóteles que adverte ser a demagogia a corrupção da politeia [Política, VI (IV),
2, 1]. Na demagogia, os cidadãos mais capazes são relegados ao esquecimento e
os aduladores cobram rápida ascensão, cortejando o populacho com leis inexe-
quíveis e uma sórdida campanha de calúnias e difamações contra os verdadeiros
magistrados.
Modernamente, a demagogia é tida como a política por meio da qual os go
vernantes buscam impressionar as massas com falsas promessas, deformação dos
fatos e adulações grosseiras. Tal estado de coisas é resultante do rápido desenvol
vimento industrial e tecnológico, e do papel cada vez mais ativo das massas. A atro
fia da individualidade criadora, causada pelo aparecimento da máquina, leva ao
isolamento das pessoas e à sua angústia permanente. Progressivamente, seu com
portamento torna-se uma conduta massificada, condicionada a atitudes políticas e
sociais não racionais.
Quanto à oclocracia (do grego oklos, multidão, e kratos, poder), não é, rigo
rosamente, uma forma de governo, mas uma situação crítica que vivem as institui
ções, ao sabor da irracionalidade das multidões. O termo oclocracia indica o jugo
imposto pelo populacho inorgânico ao poder legítimo e à lei, fazendo valer seus
mais insensatos caprichos. É neste sentido que Políbio emprega o termo.
A oclocracia é definida na famosa enciclopédia, elaborada pelos enciclopedis
tas franceses, como sendo o “abuso que se instala no governo democrático quan
do o populacho vil se torna o senhor dos negócios públicos”.
Platão, que não sentia grande atração pelas democracias (Apologia de Sócra
tes, 35 a-b), via na liberdade individual uma distorção da verdadeira convivência
social. E preciso, diz ele, impor a ordem no Estado e nas almas, eliminar as diferen
ças pessoais, eliminar as particularidades, impor que todos pensem da mesma for
ma sobre todas as coisas. Isto só será possível quando a casta dos filósofos, garan
tida pelos guerreiros e acima de todo e qualquer egoísmo pela comunhão de bens,
das mulheres e das crianças dominar a multidão ignara dos trabalhadores. A de
6 Formas de governo 157
mocracia, prossegue, é o oposto deste ideal, ao defender um individualismo em que
cada um age como bem entende. A igualdade de que ela se vangloria, ao colocar
na mesma casta homens desiguais, é uma gritante desigualdade. Ao reconhecer a
todos os desejos a mesma legitimidade, cria a desordem e a imoralidade, fazendo a
moderação passar por fraqueza e o escrúpulo por ingenuidade. Quando o Estado
sc encontra em tal situação, a sua Constituição é instável e deformada, sendo, mes
mo, falso falar de uma só Constituição, pois esta é alterada incessantemente, ao sa
bor dos interesses mesquinhos. A democracia culmina, inevitavelmente, na oclocra-
cia, e o domínio monstruoso que é a multidão (thrémma méga kai iskhurón) não
passa de um despertar da natureza tirânica (palaià gigantikê phúsis) (apud Gusta-
ve Glotz, A cidade grega, p. 123).
Quanto à diferença entre demagogia e oclocracia, reside no fato de que, na
primeira, há uma ordem viciosa imposta pelos demagogos, ao passo que a oclocra
cia implica a própria ausência de qualquer ordem.
6) DITADURA
Bibliografia: b u r d e a u , Georges. Droit constitutionnel et institutions politiques, Paris,
LGDJ, 1980. b u r d h s e , A. Diritto pubblico romano, Torino, Utet, 1977. f e r r e i r a f i
l h o , Manoel Gonçalves. O estado de sítio, São Paulo, Saraiva, 1964. m a c h i a v e l l i ,
Nicolò. II príncipe e discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, Milano, Feltrinelli,
1981. n e u m a n n , Franz. Estado democrático e Estado autoritárioy Rio dc Janeiro,
Zahar, 1969. p i n t o f e r r e i r a , Luiz. Teoria geral do Estado, São Paulo, Saraiva, 1975,
v. 1. p i t i s c u s , Samuel. Dictionnaire des antiquités romaines, Paris, 1766. r e i n a c h ,
Théodore. De Vétat de siège, Paris, F. Pichon, 1885. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de
teoria do Estado, São Paulo, Saraiva, 1979. s c h m i t t , Carl. La dieta dura, Madrid, Re
vista de Occidente, 1968. w i l l e m s , Pielte. Le sénat de la république romaine, Scientia
Verlag, 1968.
Ditadura é o exercício temporário do poder político, unipessoal ou colegia-
do, caracterizado pela concentração de atribuições prefixadas e destinado a sanar
mal público iminente ou real.
Tal definição pode parecer estranha a quem estiver habituado ao uso indiscri
minado do vocábulo, que, por ter natureza analógica - apresenta vários sentidos
correlatos, análogos, embora não idênticos, presta-se a uma série de preconceitos
e mal-entendidos.
Com efeito, a palavra ditadura pode ser tomada num sentido amplo ou num
sentido estrito. Em sentido amplo, denomina as medidas de emergência que toma
o Estado contemporâneo, quando suas instituições encontram-se ameaçadas por
158 Teoria Geral do Estado
um perigo interno ou externo (p. ex., a adoção do estado de sítio ou da lei marcial).
Em sentido estrito, refere-se a uma espécie de magistratura de caráter extraordiná
rio, prevista na Constituição da antiga Roma republicana. O próprio termo dita
dura origina-se do Direito Público romano, dc dictare, aumentativo dc dicere, to
mando-se a expressão no sentido enérgico dc comandar. Daí, conforme ensina
Théodore Reinach, dictator. Vale frisar, contudo, que a denominação dictator não
era a mais indicada para designar aquele que encarnava tal magistratura, e sim ma
gister populi. A missão do magister populi ou dictator consistia, basicamente, em
sanar graves crises sociais com medidas drásticas, em cuja aplicação dispunha da
mais ampla liberdade, nesta incluído o poder de vida e de morte sobre seus conci
dadãos. Já se percebe que a ditadura romana vinha a ser uma magistratura extra
ordinária\ prevista na Constituição, dotada de objetivos específicos e destinada a
salvar a República e as liberdades dos cidadãos, sob o lema salus rei publicae su
prema lex est. Situemos, entretanto, a ditadura romana 110 tempo e nas instituições
republicanas da antiga Roma. Reza a tradição que a História da Cidade Eterna co
meça aos 21 de abril do ano 753 a.C., e até o ano dc 509 a.C. adotou-se a forma
monárquica de governo; a partir de então, a república sc impõe, perdurando até 27
a.C., quando tem início o período denominado principado. O período dc transição
entre a monarquia e a república não ensejou, ao contrário do que sc pensa, a luta
armada e a sucessão violenta de instituições, pois sabe-se que muitas ideias de ori
gem republicana já vinham sendo experimentadas durante o reinado de Sérvio Tú
lio, nestas incluído o próprio consulado, como faz ver o historiador Tito Lívio: “[...]
duo cônsules inde comitiis centuriatis a praefecto urbis ex cornentariis Servii Tulli
creat sunt [...]” .
A expulsão dos reis beneficiou a aristocracia, que buscou, de imediato, rees
truturar o poder, de forma a impedir que fosse restaurado o poder pessoal dos mo
narcas, aprimorando-se, desde então, várias magistraturas. Substituindo o rei, apa
recem dois cônsules, que exercem o poder em colegiado e pelo período de um ano.
Nos tempos da realeza, o monarca postava-se acima da comunidade, sendo plena
mente irresponsável, mas agora o magistrado republicano achava-se subordinado
à lei, curvando-se, então, cm sua investidura, aos princípios da anualidade c da co-
legialidade, sendo responsáveis perante a lei e submetidos à intercessio, vale dizer,
ao veto do colega. Mediante a intercessio, vale acrescentar, um dos cônsules podia
anular qualquer medida tomada isoladamente pelo outro, desde que não houvesse
dado a esta, anteriormente, seu consentimento. Ora, o ditador não estava subme
tido à intercessio nem à provocatio, sendo irresponsável no exercício do cargo. Não
podia, é bem verdade, alterar a Constituição ou declarar a guerra, nem intervir em
demandas legais ou impor novos tributos. Fora destas restrições, concentrava nas
mãos todo o poder. Ele se achava, enfim, investido do imperium maximum ou ma-
juSy e durante sua atuação todas as magistraturas eram suspensas. O imperium, é
bom lembrar, significava a plenitude dos poderes judiciários e militares, a própria
6 Formas de governo 159
soberania encarnada pelos reis de Roma e transmitida aos magistrados republica
nos. A ideia de imperium, com nuanças religiosas, deriva, segundo Pallotino, da
monarquia etrusca, sendo seu símbolo o fasces, também de origem etrusca. Havia
um conceito primitivo de soberania, ligado à religião (auctoritas) e um poder jurí
dico c militar, mais recente (imperium). Os etruscos adotavam, como vocábulo cor
respondente a imperium, truna, que significava poder; daí, quem sabe, a palavra ti
rania?
Havia ademais uma distinção entre imperium e potestas. O imperium inclui
todas as atribuições da potestas e mais: o direito de tomar os auspícios fora de
Roma, o direito de organizar e comandar o exército; a jurisdição (poder de dizer o
Direito), repartida, paulatinamente, entre os magistrados; o direito de exercer coer-
ção (coercitio), consistente em deter o cidadão e obrigá-lo a comparecer perante a
autoridade; o direito de convocar o povo fora de Roma, nos comícios centuriados.
A potestas, por sua vez, compreende: o direito de tomar os auspícios dentro da ci
dade; publicar os editos (jus edicendi); impor multas (jus multae dictionis); direito
de convocar o povo dentro da cidade, para lhe dirigir a palavra e para fazê-lo vo
tar; direito de convocar e de presidir o Senado (senatum vocare), determinar que
este aprecie um caso determinado (referre ad senatum) e que delibere e vote (cum
patribus agere).
O império era atribuído, inicialmente, apenas aos magistrados stricto sensu:
cônsules, ditadores e pretores. iMais tarde, a atribuição estendeu-se aos censores,
aos questores, aos edis e aos tribunos, que eram dotados, originariamente, apenas
da potestas.
Além dos cônsules, inicialmente denominados praetores (de praetor, isto é,
aquele que ia à frente do exército), depois judices, havia outros magistrados que se
enquadravam em magistraturas de caráter ordinário ou de caráter extraordiná
rio.
Magistrados ordinários eram aqueles que exerciam funções inerentes à norma
lidade da vida administrativa, sendo suas funções delimitadas no tempo. Magis
trados extraordinários - a própria denominação faz ver - eram aqueles cujas
atribuições não tinham duração limitada pela lei, mas limitada em razão das circuns
tâncias.
As magistraturas republicanas eram, portanto, ad tempus certum e ad tempus
incertum. Admitir que uma magistratura fosse ocupada sem limite de tempo, eqüi
valeria a atribuir ao cidadão uma situação privilegiada que ofenderia o princípio
da isonomia, pois todo e qualquer cidadão tinha - pelo menos teoricamente - a
possibilidade de in vicem parere atque imperitare.
Cônsules e outros magistrados voltavam a ser, ao cabo de um ano, cidadãos
comuns. A ditadura, porém, era magistratura de caráter extraordinário e, portan
to, ad tempus incertumy sendo invocada, no mais das vezes, quando a salvação da
160 Teoria Geral do Estado
república exigisse a suspensão das prerrogativas pessoais (salus rei publicae supre
ma lex est, isto é, a lei suprema é a salvação da coisa pública).
Encontraremos uma das mais profundas raízes da ditadura 110 gênio pragmá
tico dos romanos. Com efeito, ainda nos primórdios do período republicano, já sc
percebia que os cônsules, embora resolvessem o problema da administração inter
na, encontravam inúmeras dificuldades para atuar no âmbito externo, pois Roma,
com suas tendências expansionistas, quase sempre em estado de guerra, vivia situa
ções que exigiam decisões rápidas, que a colegialidade do consulado não poderia,
evidentemente, propiciar. Em razão disso surge a ditadura, encarnada pelo magis
ter populi ou praetor maximus, assessorado pelo magister equitum, este desprovi
do do imperium majus, dotado apenas da potestas consularis. A expressão magis
ter populi significa, literalmente, chefe dos patrícios, da infantaria romana, e esta
era, basicamente, a função do ditador: comandar a infantaria, ficando o magister
equitum, como a própria denominação insinua, incumbido da cavalaria.
O ditador era investido 110 poder militar (gerundae causa e seditionis sedan-
dae causa) e, cm tais casos, tínhamos as ditaduras oprimo jure; mas podia haver
nomeação de um ditador para funções administrativas ou religiosas específicas e,
neste caso, tínhamos a ditadura imminuto jure. Acentua Pierrc Grimal que a dita
dura se apresentava muito aparentada à monarquia no tocante a certas funções ex
clusivas do rei (rex sacrorum) ligadas à religião. Por exemplo, fixar um prego numa
parede do Capitólio, estranha cerimônia cujo significado escapa à moderna pesqui
sa histórica. A própria nomeação do ditador seguia certos preceitos religiosos: o
cônsul procedia à escolha do ditador somente após tomar os auspícios, durante a
noite, em segredo (noctey oriens, silentio). Este curioso ritual demonstra bem o es
pírito do antigo romano: a elevação de um homem acima das leis, feita à noite e
em segredo, revelava, simbolicamente, ser um mal necessário, ao qual, embora não
se pudesse fugir, era, ao menos, levado a efeito com a máxima discrição.
Frisemos, por outro lado, que a ditadura não era uma criação inteiramente
do Direito Público romano, pois várias culturas vizinhas à Cidade Eterna
conheciam uma instituição semelhante, por exemplo, Alba Longa, Tusculum e La-
nuvium. Entretanto, a ditadura latina dessemelhava-se da romana por ser anual (ad
tempus certum), ordinária e colegiada.
Quem nomeava o ditador romano, como visto, eram os cônsules, mediante au
torização do Senado. Nos momentos de crises político-sociais, eles deviam consul
tar o Senado a respeito das medidas a tomar. Se fosse o caso, esse órgão autorizava
os cônsules a escolher, deliberando, em conjunto, um ditador ou tirando a sorte para
determinar qual deles faria a seleção. Se apenas um dos cônsules se encontrasse na
cidade, a ele caberia a escolha.
O ditador romano dispunha do direito de vida e morte, dirigia a guerra (rei
gerendae causa), dominava a sedição (seditionis sedandae causa) e podia permane
cer 110 exercício de suas funções até quando as necessidades o exigissem. É um erro
6 Formas de governo 161
pensar, portanto, que a ditadura não podia ultrapassar seis meses de duração, mes
mo porque a história romana é pródiga em exemplos de ditadores que encerraram
sua missão muito antes de se escoar o prazo de seis meses, constatando-se, em sen
tido inverso, vários casos dc permanência dilatada do ditador cm seu posto. Em
qualquer caso, contudo, o ditador não podia renunciar à sua missão antes dc com-
plctá-la.
Roma apresenta-nos exemplos de ditadores notáveis, cujo amor à pátria, co
ragem, desprendimento e consciência social deveriam inspirar a modernidade, à
qual, em grande parte por desconhecimento da História, repugna a palavra ditadu
ra. Da mesma forma que a célebre Cornélia, mãe dos Gracos, simboliza a virtude
da mulher romana, sustentáculo da família e do lar, e que Marco Pórcio Catão, o
Censor, personifica a probidade administrativa no combate à corrupção, Lúcio
Quíncio Cincinato vem a ser, no século V a.C., o arquétipo do herói romano. Polí
tico hábil, impediu a deflagração da guerra civil entre patrícios e plebeus; nomea
do ditador por mais de uma vez, sempre renunciou às honrarias após cumprida sua
missão, voltando, sempre, à sua vida austera c dc hábitos morigerados. Patrício dc
origem, sempre levou vida modesta. Reduzido à miséria por despender os poucos
recursos que possuía, tentando cobrir a fiança exigida por influência dc seus inimi
gos políticos, para libertar seu filho Ceson, que havia, culposamente, causado a
morte do filho de um senador, ficou reduzido à pobreza, passando a viver do culti
vo da terra, que amanhava numa tosca charrua, na pequenina propriedade agríco
la que lhe restara. Esquecido por todos, foi em inteira justiça, no ano de 458 a.C.,
lembrado por seus compatriotas, para tentar levantar o cerco que os équos impu
nham a Roma. Investido na função de dictator, levantou o sítio em apenas dezoito
dias, impondo severa derrota ao inimigo. Cincinato poderia, se o desejasse, cumu
lar poder e glória, ele que havia sido reduzido à humilhação c à pobreza por ten
tar libertar o filho, mas nem por isso pensou em locupletar-se ou em vingar-se. De
volveu, com altivez, as insígnias de dictator; e retornou à lavoura, até amealhar o
dinheiro necessário para afiançar a liberdade do filho. Aos 80 anos de idade, foi
novamente investido na ditadura, cumprindo sua missão ao cabo dc vinte c um
dias. Padrão dc honra, dignidade c perseverança, a memória do ditador Cincinato
é, hoje, perpetuada na pátria da Democracia ocidental, os Estados Unidos da Amé
rica do Norte, na cidade de Cincinatti.
A Ordem de Cincinato, sociedade patriótica fundada nos Estados Unidos da
América do Norte, em 1873, era formada por todos aqueles que se haviam desta
cado na Guerra da Independência. Seus membros, ao tomarem Cincinato como mo
delo de conduta, traziam uma medalha representando o ditador em sua charrua.
Entretanto, admitindo a hereditariedade na sucessão de seus membros, a socieda
de foi declarada incompatível com a República e desfeita.
Eis, com Cincinato, um exemplo da grandeza moral do antigo romano; e não
seria equivocado concluir que, para a felicidade e o progresso de um Estado, não
162 Teoria Geral do Estado
bastam instituições políticas formalmente perfeitas; é preciso, também, que os ho
mens que as encarnem sejam dignos destas. Não havia, com efeito, na República
romana, um mecanismo que impedisse, efetivamente, o ditador de empalmar o po
der absoluto; no entanto, a ditadura prosperou e foi útil, como percebe com clare
za Maquiavel cm sua obra Discursos sobre a primeira década de Tito Ltvio, ao enal
tecer a figura do ditador romano, exemplo universal dc patriota. Não teria sido por
acaso que Dante Alighieri colocou Cincinato e Cornélia no Paraíso, em sua bela e
tremenda Divina comédia (VI, 45, e XV, 129), e que os norte-americanos honra
ram a memória do grande romano na cidade de Cincinatti.
Percebe-se, logo, que a palavra ditadura possui uma carga histórica que deve
ser respeitada, jamais aviltada. A deturpação do sentido de um vocábulo emprega
do sem discriminação séculos afora acarreta enganos insanáveis. Modernamente,
qualquer aventureiro político que vem a ser qualificado como ditador, imediata
mente, se zanga, e aquilo que pensa constituir um vitupério é, na verdade, um ime
recido elogio.
Em 451 a.C., a ditadura foi suspensa por dois anos, por ocasião da nomeação
dc dois colégios decenviros legibus scribundis, aos quais se deve a Lei das Doze Tá
buas. Após a Lex Hortensia, de 286 a.C., a luta secular entre patrícios e plebeus,
motivadora da nomeação dc vários ditadores, praticamente desaparece c, com ela,
a figura do dictator seditionis sedandae causa. Quanto ao ditador rei gerundae cau
sa, haveria duas nomeações, em 249 e 216 a.C. A partir do ano 133 a.C., por oca
sião das agitações de Tibério Semprônio Graco, líder agrário, foi criada uma institui
ção que substituiria a tradicional ditadura: o senatus consultus ultimum, atribuído
ao Senado e destinado a declarar hostil, isto é, fora da lei e inimigo, todo aquele que
conspirasse contra o Estado, declarava a tumultus (rebelião), bem como o justitium
(suspensão da atividade dos tribunais), a anulação de determinadas leis e a suspen
são do poder de certos magistrados. Então, o Senado já se encontrava reforçado a
ponto de enfraquecer enormemente o poder dos cônsules, graças à sua aliança com
os tribunos da plebe e à assimilação paulatina das atribuições anteriormente priva
tivas dos cônsules, ficando estes reduzidos à condição dc meros agentes executores.
Além disso, a importância do ditador já estava bastante reduzida pelo fato da ad
missão da intercessio dos tribunos da plebe contra o poder incondicionado do dita
dor. O senatus consultus ultimum era acompanhado da patética expressão “videant
cônsules ne quid res publica detrimenti capiat!' \ com a qual se alertava a comuni
dade sobre a gravidade da situação, que estava exigindo soluções drásticas.
As denominadas ditaduras de Lúcio Cornélio Sila e de Caio Júlio César apre
sentam caráter completamente diverso da ditadura original, pois se destinavam a
reestruturar o Estado e a elaborar um novo ordenamento jurídico. Sila permane
ceu no poder durante três anos, ao cabo dos quais renunciou ao posto. Quanto a
Júlio César, exerceu por quatro vezes a ditadura política, respectivamente em 49,
48, 46 e 44 a.C., tendo por missão constituere rem publicam. Em 46 a.C., a dita
6 Formas de governo 163
dura cesariana fez-se permanente e ordinária, colocada acima do consulado. Em
44 a.C., finalmente, César obteve a garantia de que sua ditadura seria perpétua.
Procurando dissimular a transformação da República em regnum, César subs
tituiria os antigos magistrados por um apenas, ele próprio, cuja eleição - teórica,
evidentemente - seria anual e reservada ao povo. Tais aberrações levaram ao seu
assassínio, fruto da reação do Senado. Após a morte de César, o Senado eliminou
a nova magistratura, por intermédio da Lex Antonia de dictatura in perpetuum
tollenda, proposta, ainda em 44 a.C., por Marco Antônio.
Otaviano Augusto, primeiramente chamado de Otávio (63-14 a.C.), sucessor
de César, evitou, com prudência, restabelecer quaisquer resquícios da ditadura,
criando, contudo, a figura do princeps e abstendo-se de alterar o quadro das anti
gas magistraturas. Na verdade, tudo leva a crer que Júlio César desejava instituir
sua nova concepção de ditadura na figura de Otávio, pois este já se tornara seu fi
lho adotivo.
O fato é que as formas corruptas da ditadura romana devem ter denomina
ção diversa. Assim, o cesarismo é a forma dc exercício do poder político na qual o
governante busca perpetuar-se no poder sem infringir a lei, mas burlando-a. A pa
lavra cesarismo vem, evidentemente, dc César. O governo cesarista nem sempre é
mau; o que o torna irregular é a «ânsia da perpetuidade cm fraude à lei, a exemplo
da aesymnetia grega, também denominada tirania. Quando o cesarismo enseja o
favorecimento de poucos, em detrimento da coletividade, temos o nepotismo (de
nepote, parente).
Tomando a expressão ditadura em sentido amplo, teremos, na Idade Média,
uma instituição análoga à ditadura romana, encarnada no denominado comissá
rio, funcionário nomeado para exercer atribuições extraordinárias e específicas, por
exemplo, sufocar revoltas populares, administrar a extirpação dc focos de epide
mias comuns à época, em razão da falta de higiene existente nas cidades etc. O co
missário recebia do príncipe, por delegação, instruções a respeito do que fazer; em
bora o como fazer ficasse a cargo deste mandatário. Além do mais, a duração do
exercício do cargo comissarial era rigorosamente transitória.
Exemplo de poder ditatorial colegiado poderemos encontrar, quiçá, no ano
de 1793, na França revolucionária, quando a Convenção Nacional, incumbida de
redigir uma nova Constituição e transmitir o poder, depois, a governantes legal
mente constituídos, foi obrigada, em razão da desordem imperante, a delegar am
plos poderes a um colégio de nove membros, denominado Junta da Salvação Pú
blica (Comitê de Salut Public), responsável, a partir de então, por um estado de
terror, no qual pontificou Robespierre, que instituiu o tribunal revolucionário e se
mostrou fanático defensor da República.
Já em 10.01.1791, criava-se na França revolucionária, mediante um decreto,
medidas excepcionais que lembram, de imediato, o moderno estado de sítio (état
164 Teoria Geral do Estado
de siège), e, logo após, inaugurando o período conhecido, muito adequadamente,
como “Terror”, surgiam as prisões em massa e as execuções.
Exemplo curiosíssimo de forma política que recorda o consulado e a ditadu
ra romanas - guardadas as devidas proporções! - oferece-nos o Paraguai. Indepen
dente a partir de 1811, esta república sul-americana teve a governá-la, inicialmen
te, uma Junta de cinco membros, sob a presidência do General Yegros, cujo secretário
era Gaspar Rodríguez Francis. Pois bem, em 1813, foi promulgada uma Constitui
ção inspirada pelo próprio Francis, segundo a qual a república seria dirigida por
dois cônsules eleitos anualmente, exatamente como na antiga Roma. Os cônsules
seriam ele próprio e Yegros, mas desde logo Francis se desfez do colega, sendo no
meado, pela Assembleia, ditador por três anos e, mesmo antes do transcurso deste
prazo, conseguiu tomar-se ditador supremo e perpétuo!
Até o aparecimento da vigente Constituição soviética (1977), o Direito Públi
co russo referia-se a uma expressão célebre, a ditadura do proletariado. Que vem
a ser a ditadura do proletariado? Segundo a doutrina marxista, era o período em
que o proletariado, classe social destinada a dirigir a tarefa dc libertação das mas
sas trabalhadoras exploradas pela burguesia, exercia um poder ditatorial sobre esta,
elasse exploradora, até que o Estado desaparecesse e surgisse a sociedade comunis
ta, estágio final da evolução humana.
Como se vê, o próprio Marx, individualista por excelência, que antevia, para
um futuro promissor, o homem liberto dos grilhões do poder político do Estado,
não renegava uma concepção toda própria de ditadura, a ditadura do proletaria
do, necessária, indispensável ao advento do comunismo.
Na verdade, uma ditadura coletiva, de classe é, no mínimo, um contrassenso,
visto que a principal característica da ditadura é justamente a concentração do po
der em uma ou - quando muito - em algumas pessoas, jamais o seu desmembra
mento numa coletividade. Seja o poder ditatorial enfeixado nas mãos de um órgão
apenas (sentido estrito) ou em vários órgãos (sentido amplo), poderemos, confor
me o caso, falar cm ditadura, mas isto já seria impossível no caso de todos exerce
rem uma ditadura, pois uma ditadura sem ditadores, convenhamos, já não seria di
tadura.
Carl J. Friedrich denomina ditaduras constitucionais as medidas de caráter ex
traordinário, adotadas pela maior parte dos Estados contemporâneos, para fazer
frente às crises político-sociais. A lei marcial, o estado de sítio ou de urgência são
exemplos de tais métodos. Referindo-se aos regimes autoritários modernos, Bur
deau aponta formas de cesarismo e ditaduras.
De início, o cesarismo empírico, forma política que dispensa qualquer ideolo
gia: um chefe é incondicionalmente obedecido, simplesmente porque sabe fazer-se
obedecer. Se ele for um gênio, diz Burdeau, eis um Napoleão; se não for, será um
efêmero presidente de alguma república andina, vítima inevitável de alguma rebe
lião ou pronunciamento.
6 Formas de governo 165
A seguir, Burdeau aponta a ditadura ideológica, muito mais refinada e subs
tanciosa 110 que se refere à doutrina. Nesse caso, o ditador não se satisfaz, absolu
tamente, com o fato de seu poder ser mantido apenas pela força; ele desenvolve,
isto sim, uma ideologia político-social destinada a legitimar.
A ditadura proletária é outra espécie de ditadura moderna apontada por Bur
deau. Nela, o chefe busca apoiar-se nas camadas sociais menos favorecidas, as quais
ele dirige a seu talante, a exemplo dos demagogos das antigas tipologias das for
mas de governo. Embora aparentada à ditadura do proletariado imaginada por
Marx, nem de longe possui o embasamento doutrinário desta. O chefe restringe-se
a explorar, de modo rudimentar, as mais baixas paixões do populacho.
Finalmente, a ditadura do proletariado, à qual já nos referimos. Por seu inter
médio, Marx antevê a liberação do indivíduo mediante uma fase necessária de vio
lência. Seria pueril, diz Marx, supor que o Estado tende a eliminar as relações de
subordinação, pois, instrumento de opressão de uma classe sobre outra, ele não po
deria tomar tal iniciativa a não ser renunciando à própria existência. A libertação
do homem só será possível com a desaparição do poder político e com a submis
são da classe dirigente (a burguesia) a uma ditadura (a do proletariado, classe do
minada). Tal ditadura será transitória; ela marcará o definhamento e a desaparição
do Estado, com o advento da sociedade comunista. No seu livro Carta a respeito
do programa de Gotha, Marx insiste no caráter inelutável desta ditadura, na qual
o proletariado intervirá despoticamente, para usar uma expressão do próprio
Marx.
7) CAUDILHISMO
Bibliografia: b o l í v a r , Simón. Escritos políticos, Lisboa, Editorial Estampa, 1977. d u -
v e r g e r , Maurice. Os regimes políticos, São Paulo, Difel, 1966. e b e n s t e i n , William.
El totalitarismo, Buenos Aires, Paidós, 1965. m e l o f r a n c o , Afonso Arinos de. El cons-
titucionalismo brasileno en la primera mitad dei siglo X IX , México, Unam, 1957.
No dia 09.1 1.1830, Simón Bolívar enviou uma carta a um de seus colabora
dores, o general Juan José Flores, que viria a ser o primeiro presidente do Equador,
na qual, enfaticamente e com dureza, dizia o seguinte:
Meu caro General. Sabe V. Exa. que governei durante vinte anos c que desse tem
po poucos foram os resultados certos que obtive: primeiro, a América é ingovernável
por nós; segundo, fazer uma revolução é lavrar no mar; terceiro, a única coisa que se
pode fazer na América é emigrar; quarto, este país irá cair infalivelmente nas mãos de
uma multidão desenfreada para passar depois a tiranetes quase imperceptíveis de to
166 Teoria Geral do Estado
das as cores c raças; quinto, devorados por todos os crimes e consumidos pela feroci
dade, os europeus não se dignarão conquistar-nos; sexto, se fosse possível a uma par
te do mundo voltar ao caos primitivo, este seria o ultimo período da América. A
primeira revolução francesa provocou a decapitação das Antilhas; a segunda causará
o mesmo efeiro neste vasto continente. A súbita reação da ideologia exagerada vai pre
sentear-nos com quantos males nos faltavam e exagerar os que já possuíamos. V. Exa.
verá que rodos se entregarão à torrente da demagogia c desgraçados dos povos, des
graçados dos governos!
Ninguém melhor do que o Libertador conhecia o temperamento e as inclina
ções do latino-americano! Inicialmente, o incontornável atavismo do poder pes
soal; depois, como veremos, o exacerbado individualismo c a quase ausência dc
senso dc responsabilidade social trariam as disfunções políticas que todos conhe
cemos.
Pois bem, se a unanimidade dos historiadores situa o nascimento oficial dos
Estados latino-americanos em princípios do século XIX, tal afirmação é válida ape
nas do ponto de vista político, pois sob o ângulo histórico esta orientação trunca
uma parte importante de sua evolução. Como acentua Salvador Valencia Carmo
na, dificilmente conseguiríamos compreender alguns traços das instituições políti
cas latino-americanas sem examinar as influências do passado indígena e colonial.
Destes períodos nos vem profunda tradição de poder pessoal, pois tanto o monar
ca indígena como o vice-rei foram executivos centralizados, autoritários. Por ou
tro lado, os centros atuais do poder político, na América espanhola, deitam suas
raízes nas velhas capitais indígenas ou nas divisões estabelecidas durante o perío
do colonial; precisamente uma instituição colonial, o cabildo, tornou-se ponta avan
çada do movimento libertário e órgão de transição entre a autoridade do Vicc-Rci-
nado e a América independente.
Assim, nos locais onde se desenvolveram as sociedades indígenas, foram ins
talados também os primeiros estabelecimentos espanhóis, assim o império inca, su
cedido pelo Vice-Reinado e, mais tarde, pelo moderno Estado peruano, e a confe
deração asteca, convertida em Vice-Reinado e, depois, no México atual. Ora, desde
os antigos impérios pré-colombianos até os modernos presidentes latino-america
nos, estabeleceu-se uma profunda relação afetiva entre o governante e o povo, da
qual derivou o paternalismo ainda hoje encontrado na política americana.
Em verdade, o vice-rei espanhol tornou-se a encarnação suprema do Estado
espanhol nas índias. Era dotado dos títulos de capitão-geral, governador do Reino
c presidente da audiência. O poder se achava centralizado no vice-rei, que do pon
to de vista administrativo tinha a seu cargo os serviços gerais, a saúde pública, os
serviços postais, as obras públicas, o ccnso, o desenvolvimento econômico, a dis
tribuição de provisões, a instrução pública e a previdência social. Era, note-se bem,
o superintendente da Fazenda Real. Por outro lado, algumas dc suas atribuições
6 Formas de governo 167
transcendiam a função executiva e alcançavam o plano legislativo e o judicial: além
dc participar da audiência da qual era presidente, expedia atos administrativos de
nominados instrucciones, que, embora sujeitos à revisão pelo Conselho das índias,
tinham vigência imediata, como os decretos-leis contemporâneos. No plano judi
ciário podia atuar de ofício ou mediante invocação da parte contra os ouvidores,
os alcaidcs e os fiscais, conceder indultos de penas impostas pelos tribunais.
Por outro lado, a grande distância que separava o novo continente da metró
pole, bem como a dificuldade dos meios de comunicação, faziam com que o vice-
rei tivesse, de fato, plenos poderes, com pouca submissão à Coroa, da qual pode
riam dizer “obedecemos sem cumprir...”.
No Brasil, desde o descobrimento, a preocupação de Portugal continuou vol
tada para as índias Orientais, até que outras potências europeias começaram a co
biçá-las. A princípio, a administração foi confiada a grandes senhores, os donatá
rios, divididos em doze capitanias hereditárias e dotados de grande poder, sistema
que obteve pouco sucesso ao retardar a exploração econômica e a implantação de
uma administração realmente eficaz no Brasil. Durante a união pessoal imposta a
Portugal e seus domínios pela Espanha (1580-1640), sob Filipe II, a administração
espanhola ampliou sua influência sobre a administração das colônias lusas e, com
isto, a consolidação do poder personalizado.
Curioso e sintomático, por outro lado, o temperamento do espanhol à época
da conquista e da colonização, apontado com muita ojeriza por Francesco Guic-
ciardini:
São orgulhosos por natureza c não gostam dc estrangeiros, sendo dcscortescs
para com eles. São mais belicosos, talvez, do que qualquer outra nação cristã, c ágeis,
rápidos e peritos no manejo das armas; fazem ponto de honra em preferir a morte a
submeter-se à vergonha. 'Iodos os espanhóis desdenham o comércio, que consideram
degradante, dão-se ares de fidalgos e preferem ser soldados ou (antes do tempo de Fer
nando) salteadores de estrada a fazerem-se mercadores ou exercer qualquer função se
melhante. Os espanhóis são amigos da ostentação, vestem belas roupas e montam vis
tosos cavalos, mas em suas casas levam uma existência miserável, difícil de acreditar.
Aparentam ser muito religiosos, mas não o são realmente.
Num breve período de quinze anos (1810-1825), desenvolvem-se as guerras
de independência dos Estados latino-americanos, e profundas transformações, mui
to mais de forma do que de substância, vão ocorrer. Para as novas Constituições,
a função executiva passa a cobrar um interesse axial. Em torno dela, foram desen
cadeadas apaixonantes controvérsias doutrinárias, e logo se tratou de levar à prá
tica exóticas experimentações. Por isso, costuma-se denominar aqueles quinze anos
o período de ensaio e de formação do Executivo, sendo, basicamente, quatro os
modelos a ele referentes. Assim:
168 Teoria Geral do Estado
a) o monárquico, vinculado às velhas tradições;
b) o colegiado, de inspiração francesa e, dc certo modo, autóctone;
c)o vitalício, oriundo do pensamento de Bolívar;
d) o presidencialista, derivado do sistema político norte-americano.
a) Executivo monárquico: nos primórdios da independência as ideias monár
quicas ainda gozavam de grande prestígio, embora irreversivelmente condenadas
pela roda da História. As tentativas de instauração da monarquia no Haiti e no
México, por Cristophe e Iturbide, respectivamente, terminaram breve e tragicamen
te, remanescendo o Brasil sob o velho regime algum tempo, menos pelas virtudes
ínsitas à ideologia do que pelas circunstâncias históricas. Com efeito, não fosse a
emigração da Corte para o Brasil, cm função do expansionismo napoleônico, fato
que trouxe para o Brasil um desenvolvimento inimaginável até então, tornando a
monarquia rejuvenescida ideologicamente, restariam, ainda, os fatos de ter sido Pe
dro I o procurador da independência e Pedro II, seu filho, um homem dotado de
grande descortino político, que pôde manifestar-se na Constituição de 1824, gra
ças à doutrina do Poder Moderador, desenvolvida por Clermont Tonnerre e hauri-
da, no Brasil, por Benjamin Constant Botelho de Magalhães.
Com o Poder Moderador, o imperador ficava dotado, além das funções exe
cutivas, da “chave de toda a organização política”, a fim de cuidar da conservação
da independência, do equilíbrio e da harmonia dos poderes (art. 8°). Aliás, adver
te Afonso Arinos de Melo Franco que Pedro I teria sido o grande inspirador da in
serção do Poder Moderador na Constituição Imperial, com o fito de consolidar sua
posição pessoal perante os demais poderes políticos.
b) Executivo vitalício: inspirado na Ideologia de Augusto Comte (1798-1857)
c de Simón Bolívar (1783-1830), como se percebe, coetâneos. Comte rejeitava as
abstrações sociais de ordem metafísica e propunha-se a aplicar à sociedade os mé
todos positivos, isto é, empíricos e experimentais, das ciências físicas. Dentro des
sa filosofia, a sociedade seria dirigida por sábios, de acordo com as verdades posi
tivas da ciência. Dava ênfase especial ao progresso técnico mediante a utilização
social das capacidades humanas e preconizava a aplicação dos métodos científicos
à organização e controle das relações sociais, ainda dominadas, em grande parte,
por costumes e tradições antiquados. Repudiava com uma concepção romântica o
velho liberalismo e pretendia substituí-lo pelo planejamento social. Isto somente
seria conseguido mediante uma república ditatorial. O requisito de uma ditadura
- a expressão é do próprio Comte - exercia forte atração sobre os latino-america-
nos; assim é que Bolívar, num discurso perante o Congresso Constituinte da Bolí
via, em 1825, no qual foi apresentado o Projeto de Constituição para aquele país,
assim se referiu ao cargo dc Presidente da República:
6 Formas de governo 169
O Presidente da República acaba por ser, na nossa Constituição, como o Sol que,
firme em seu centro, - dá vida ao Universo. Esta suprema autoridade deve ser perpé
tua, uma vez que nos sistemas sem hierarquias, mais que nos outros, se torna necessá
rio um ponto fixo à volta do qual devem girar os magistrados e os cidadãos: os ho
mens c as coisas. Dai-me um ponto fixo e com ele moverei o mundo, dizia um antigo.
Para a Bolívia esse ponto é o presidente vitalício. Nele se estriba toda a nossa ordem,
sem que isso implique, por parte dele, ação. Cortou-se-lhe a cabeça para que ninguém
receie as suas intenções e ataram-sc-lhc as mãos para que não cause dano a nin
guém.
Para Bolívar, o executivo vitalício seria intermediário entre a monarquia c a
república; um executivo assim concebido permitiria a transição do velho ordena
mento colonial para um Estado liberal dc feição moderna. Despreparados, ainda,
para fruir dos benefícios dos institutos do liberalismo, deveria haver, então, um pe
ríodo de transição, de ditadura vitalícia, até que, enraizadas na consciência popu
lar, tais instituições se sobrepusessem às vigentes. Aliás, o projeto de Constituição
bolivariano previa muitas magistraturas à romana, como tribunos, censores e se
nadores.
Os novos ideais, contudo, tiveram curta duração. A Constituição de Bolívar,
considerada a “Arca da Aliança” dos povos latino-americanos e a “transição entre
Europa e América”, foi revogada logo em 1831, tornando-se, ironicamente, a de
mais curta vigência.
c) Executivo colegiado: o Executivo colegiado surge, desde logo, nas primei
ras Constituições latino-americanas. Suas fontes são as Constituições francesas de
1793 e 1795. Algumas Constituições estabeleceram o colegiado sob forma velada,
para remediar a eventualidade dc o rei espanhol ocupar o cargo. A Constituição de
Cundinamarca de 181 1, qualificada de curiosa mescla de princípios republicanos
e monárquicos, reflete a mesma ambigüidade no Poder Executivo, que é encomen
dado, inicialmente, ao rei Fernando VII, desde que este viesse para Santa Fé de Bo
gotá para exercê-lo; caso contrário, em sua ausência, o Poder Executivo seria exer
cido pelo presidente da representação nacional e por dois conselheiros.
Também a Constituição do Equador de 1812, aparentemente monárquica, ao
dedicar, no art. 5°, “amor e fidelidade constante” ao rei Fernando VII, ao qual re
conhece como monarca, restringe-se a isto na adoção da monarquia, pois em todo
o restante de seus artigos fala dc um Estado independente, cujo Exccutivo, diz o
art. 9o, “será exercido por um presidente, três assistentes e dois secretários com voto
informativo que nomeará o congresso”.
A Argentina adotou o Executivo colegiado, formado por três pessoas, dc 1811
a 1814, sendo, ao cabo deste período, escolhido um diretor supremo das provín
cias unidas. Diga-se o mesmo do Chile, em 1811, da Venezuela, no mesmo ano, e
do México, em 1814. Desde logo, a ideia de Executivo colegiado se mostrou inefi
170 Teoria Geral do Estado
caz por dois motivos: primeiro, sua inadequação a tempos de agitação social, que
exigem decisões rápidas, seguras e inquestionáveis; segundo, o excessivo aumento
dos integrantes do colegiado, tornando o sistema inaceitável.
Bem mais significativa foi a experiência uruguaia do colegiado, que tornou o
país conhecido como a “Suíça sul-americana”. Foram dois períodos, dc 1919 a
1933 c dc 1952 a 1967. No primeiro, governou um Executivo dualista; no segun
do, um colegiado de nove membros. A ideia do colegiado foi introduzida no Uru
guai por José Batle y Ordónez, político de grande prestígio e admirador das insti
tuições helvéticas, que conhecia de perto. Com efeito, logo após sua primeira gestão
na presidência (1903-1905), visitou a Suíça, onde colheu subsídios para a implan
tação do colegiado em seu país, fundamentando-se na ideologia de que esta forma
de organização política impede o poder excessivo de um só homem, além de per
mitir a participação política de todas as facções, incluída a oposição. Coincidência
ou não, o fato é que, durante os períodos de colegiado, o Uruguai experimentou
um notável surto de progresso. Em 1913, Batle y Ordónez publicou seus Apuntes
sobre el colegiado, os quais suscitaram viva polêmica entre colegialistas c anticolc-
gialistas. A obra propugnava uma junta governamental dc nove membros, destina
da a substituir o executivo presidencial. Cinco anos mais tarde, as duas tendências
celebraram uma síntese que mesclava presidencialismo c colegiado. Assim, a Cons
tituição de 1918 criou o Poder Executivo dualista, dividido cm dois órgãos sepa
rados e independentes: a Presidência da República e o Conselho Nacional de Ad
ministração (art. 70). O presidente seria eleito por um período de quatro anos,
tendo a seu cargo a chefia de Estado (arts. 71 e 79), ao passo que o Conselho seria
formado por nove ministros, eleitos pelo povo para um mandato de seis anos, aos
quais caberia a administração (arts. 82, 85, 97 e 105). Com a Grande Depressão
de 1929, o colegiado sofreu um forte abalo, e Gabriel Terra promoveu profundas
reformas políticas no Uruguai, ensejando o aparecimento das Constituições de 1934
e de 1942, de inclinação parlamentarista. Em 1952, uma reforma constitucional
trouxe de volta o colegiado, que somente seria abolido de vez cm 1964, com a ado
ção, desta feita, do presidencialismo.
d) O presidencialismo: o modelo presidencial dos Estados Unidos foi aquele
que, afinal, se impôs aos latino-americanos. A atração por esse regime de governo
foi, com efeito, irresistível nessa parte do mundo, talvez porque tenha funcionado
razoavelmente num país que havia deixado de ser colônia ao mesmo tempo que os
países latinos. O inegável progresso econômico dos Estados Unidos, o impressio
nante porte político de seus primeiros presidentes, o efeito retórico de sua Consti
tuição apaixonaram os latinos a tal ponto que, conta-se, no México de 1823, os
constituintes traziam nas mãos um exemplar da Constituição norte-americana, em
péssima tradução e impressão ainda pior, feitas em Puebla de Los Angeles.
6 Formas de governo 171
Infelizmente o presidencialismo à norte-americana logo se corromperia numa
autocracia muito latina, o caudilhismo, que, entre outras, apresentou causas mui
to bem lançadas por William Ebenstein, como veremos a seguir.
Foi Frederico, o Grande, que definiu, com mordacidade, a democracia: “Tudo
para o povo, nada pelo povo”, criando, com seu despotismo esclarecido, mais uma
semente para o futuro totalitarismo nacional-socialista, moldado no militarismo
prussiano e no nacionalismo exacerbado. Kste princípio do impressionante prus
siano bem poderia aplicar-se à América recém-emancipada, pois não foi por acaso
que Kbenstein apontou, aguçadamente, as raízes psicológicas do autoritarismo la
tino-americano.
A principal razão dc que cm nosso século sc tenha prestado tão pouca atenção
ao autoritarismo reside, provavelmente, no fato de que as potências modernas - EUA,
Grã-Bretanha, Alemanha e URSS - são ou democráticas ou totalitárias, acentuando a
rivalidade entre democracia e totalitarismo como o referencial político do século. Isto,
contudo, não deveria dissimular o fato de que a grande maioria das nações estão go
vernadas - hoje como ontem - por sistemas autoritários. Tal fato é fácil de compreen
der se observarmos a grande quantidade de países subdesenvolvidos que se tornaram
independentes a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Ao receber sua indepen
dência, a nova nação se estrutura, por um breve período, por uma constituição demo
crática, legada pela metrópole europeia: Grã-Bretanha, França ou Bélgica. Ao cabo de
poucos anos, contudo, se produz um retorno à natureza, desaparecendo esta democra
cia artificial, c surgindo, então, um governo autoritário. A razão pela qual, no curso
da História, tem predominado o autoritarismo é provavelmente psicológica: a demo
cracia oferece aos homens o máximo dc liberdade, mas exige, desde logo, um alto grau
de responsabilidade de que muito poucos são capazes de aceitar. O totalitarismo é o
extremo oposto: livra os homens da carga da responsabilidade e, ao mesmo tempo,
restringe sua liberdade e o campo para expressar-se individualmente. O autoritarismo
nega a liberdade e a responsabilidade da opção e ação políticas, embora permita, em
certa medida, um percentual de liberdade de expressão em questões não políticas.
Razão não falta, em verdade, a Ebenstein; o individualismo típico dos latino-
americanos torna-se infenso à solidariedade, embora sua sociabilidade ou comuni-
cabilidade seja percebida de imediato, fenômeno já notado por Ferreira Filho.
O latino-americano é, portanto, pouco voltado para a vida política; somente
age mediante provocação e, via de regra, de forma condicionada. Este é o efeito de
outro fenômeno tipicamente latino-americano, qual seja, o apego ao poder pessoal,
o caudilhismo, o que levou Duverger a afirmar que na América Latina “seguem-se
homens e não ideias...”.
Após a Independência, a América Latina passou por um período crítico, acar
retado pelo desaparecimento da autoridade dos vice-reis; em razão disso, houve um
172 Teoria Geral do Estado
vazio do poder, logo preenchido por homens fortes durante todo o século XIX. Na
ções por edificar, ausência dc uma classe dirigente preparada para o mando, fre
qüentes guerras civis, intranqüilidade social, tudo inspirava o aparecimento de ho
mens fortes. A história dos primeiros tempos da América emancipada é, assim,
eminentemente biográfica. O poder pessoal coloca-sc acima das ideias e das insti
tuições, juntando-se a isto a inexistência dc uma aristocracia já sedimentada. Ora,
isto nos leva, de imediato, a Aristóteles, que costumava afirmar que à aristocracia
ou governo dos melhores (aristoi: melhor + kratos: poder) sempre se sucederia um
período de tirania, fenômeno que, reitere-se, ocorreu na América Latina, ao longo
do século XIX, e que ocorreria também na Alemanha, quando a decadência da aris
tocracia marcaria o início da gestação do nazismo.
Corroborando a intranqüilidade destes primeiros tempos, os caudilhos eram,
via de regra, homens de armas; mediante os caudilhos castrenses dos primórdios
da independência, supriu-se o vazio de poder deixado pela monarquia espanhola.
No Brasil, contudo, diferentemente dos demais Estados latino-americanos,
não ocorreram as vicissitudcs do caudilhismo, como acentuam Salvador Valencia
Carmona e Jacqucs Lambert.
Em nosso país as elites políticas resolveram as criscs dc maneira pacífica, dc
tal forma que Jorge Reinaldo Vanossi afirmou ser a institucionalidadc uma cons
tante na História do Brasil:
Una nota característica, que conviene recordar en todo momento, es que, tanto
antes como después de su independencia, el Brasil siempre evolucionó politicamente
mediante formas que garantizaron su continuidad institucional. No bubo lapsus ni
anarquias prolongadas y menos aún situaciones de división estatal frente a la comu-
nidad internacional.
Grande parte da nossa evolução, pacífica, é devida, contudo, a D. Pedro II,
amigo das artes e das letras, governante hábil que, no exercício da função executi
va c da moderadora, pôde desenvolver, em parceria com uma aristocracia liberal c
ilustrada, um regime parlamentarista, que, se não era expressamente previsto na
Constituição, encontrava apoio no costume. Enquanto os caudilhos hispânicos ad
miravam Napoleão em suas aventuras bélicas, Pedro II situava Pasteur e Victor
Hugo acima de todos os homens, e traduzia Shakespeare.
A etapa dos caudilhos não terminou de maneira brusca; feneceu paulatinamen
te à institucionalização das ideias moderadas e ao declínio da instabilidade política.
Aos caudilhos castrenses sucederam os caudilhos civis e, a estes, os presidentes.
REGIMES DE GOVERNO 7
1) PRESIDENCIALISMO
Bibliografia: a g e s t a , L uís Sánchez. Curso de derecbo constitucional comparado, Ma-
drid, Universidad de Madrid, 1980. b o l í v a r , Simón. Escritos políticos, Lisboa, Edi
torial Estampa, 1977. d u v e r g e r , Maurice. Os regimes políticos, São Paulo, Difel,
1966. e b e n s t e i n , William. El totalitarismo, Buenos Aires, Paidós, 1965. f e r r e i r a f i
l h o , Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 12. ed., São Paulo, Saraiva,
1983. l a m b e r t , Jacques. America Latina, São Paulo, Nacional, 1979. m a l u f , Sahid.
Teoria geral do Estado, 11. ed., São Paulo, Sugestões Literárias, 1980. m a r q u a n d c o
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m e l o f r a n c o , Afonso Ari nos de. El constitucionalismo hrasileho en Ia primera mitad
deI siglo X/X, México, Unam, 1957. m i r a n d a , Jorge. Constituições de diversos paí
ses, Lisboa, Imprensa Nacional, 1979. v a l e n c i a c a r m o n a , Salvador. El Poder Ejecu-
tivo latinoamericano, México, Universidad Nacional Autônoma dc México, 1979. v a -
n o s s i , Jorge Rcinaldo. Presidencialismo y parlamentarismo en cl Brasil, Buenos Aires,
Cooperadora de Derecho y Ciências Sociales, 1964.
1.1) Introdução
Para revelarmos a natureza do presidencialismo é preciso esclarecer as expres
sões forma de Estado, forma de governo e regime de governo. Forma de Estado re-
fere-se às relações que os elementos do Estado - povo, território, governo e normas
jurídicas - apresentam entre si. A forma de Estado se acha ligada ao modo pelo
qual o Estado se mostra estruturado em sua totalidade, particularmente quanto aos
173
174 Teoria Geral do Estado
seus elementos constitutivos. Quanto à expressão forma de governo, refere-se ao
modo pelo qual o Estado se estrutura para o exercício do poder político. O gover
no é a dinâmica do poder; quem exerce o poder, governa. Já a expressão regime de
governo diz respeito ao modo pelo qual os Poderes Executivo-Legislativo se relacio
nam. Por isso e que se diz que o presidencialismo é o regime de governo em que a
chefia de Estado (representação do Estado) c a chefia de governo (administração) são
encarnadas num só órgão, o presidente da República. A própria denominação do re
gime - presidencialismo - já revela a preeminência do presidente neste regime.
A origem do presidencialismo se encontra na própria formação dos Estados
Unidos. Independentes as colônias, formadas a federação, os norte-americanos não
romperam, abruptamente, com as instituições da Inglaterra, sua pátria-mãe. Cria
ram, por assim dizer, uma espécie de monarquia temporária, o que, em tese, é ab
surdo, pois a forma monárquica de governo é sempre vitalícia. A prática, entretan
to, deu bons frutos, pois a temporariedade do mandato do presidente, apanágio da
forma republicana de governo desde Maquiavel, impediu o arbítrio sempre laten
te na monarquia.
O constitucionalista James Bryce faz sugestiva comparação entre o presiden
cialismo norte-americano e a república romana. Quando os reis de Roma foram
expulsos, a monarquia foi, de certa forma, preservada na figura dos cônsules, cujo
possível arbítrio era severamente reduzido pela temporariedade e pela colegialida
de do cargo. O presidente da República evocaria o monarca inglês, mas seu poder
seria limitado no tempo e pela lei. A vitaliciedade e a hereditariedade peculiares à
monarquia foram substituídas pela temporariedade dos mandatos e pela eletivida-
de para os cargos públicos.
Como adverte Duverger, o sistema inglês assimilado pela Convenção de Fila
délfia não é o de hoje, mas o de 1787, bem diferente: o regime parlamentar ainda
não se achava definitivamente estabelecido, e as instituições britânicas muito se as
semelhavam, então, a uma simples monarquia limitada por um parlamento, com
separação integral de poderes. Os norte-americanos perceberam que seria difícil
transplantar, pura e simplesmente, a monarquia inglesa para o Novo Mundo, e nem
por isso deixaram de adaptá-la, com vantagens, às novas circunstâncias. O Poder
Executivo no presidencialismo é monocrático, vale dizer, compete a um só órgão
(mono - um), no caso o presidente da República (Constituição dos EUA, art. 2o,
Seção 1,1, e Constituição do Brasil, arts. 76 e 84, II). Como visto, as figuras de che
fe de Estado e de chefe de governo confundem-se no presidencialismo (Constitui
ção do Brasil, art. 84, II, VII e VIII), o que não ocorre no regime parlamentarista,
no qual as figuras de chefe de Estado e de chefe de governo são distintas. Incumbi
do das funções de administração e de representação, o presidente é auxiliado por
ministros de Estado (Constituição do Brasil, art. 87 e parágrafo único). É bom lem
brar que o Poder Executivo é uno, isto é, encarnado apenas pelo presidente. Os mi
nistros de Estado são meros auxiliares no âmbito puramente administrativo. Não
respondem, portanto, por atos do presidente. Isso não ocorre no parlamentarismo,
7 Regimes de governo 175
regime no qual os ministros integram o próprio Poder Executivo. Por outro lado,
no Brasil, a escolha dos ministros não depende do referendo do Legislativo, como
ocorre nos EUA. O presidente norte-americano é eleito para um mandato de qua
tro anos de duração (Constituição dos EUA, art. 2o, Seção 1,1), e tal mandato não
poderá ser renovado por mais de uma vez (Emenda à Constituição dos EUA n.
22,1). Antes dc referido aditamento, contudo, o presidente poderia ser indefinida
mente reelegível, embora desde George Washington - que se recusou a disputar um
terceiro mandato e a aceitar o próprio título de rei que alguns admiradores lhe que
riam outorgar - fosse criada uma tradição respeitada por todos os presidentes, até
Roosevelt. Nos EUA a eleição presidencial é feita em dois turnos: no primeiro os
eleitores escolhem, cm cada Estado-Membro, um colégio eleitoral que vai, em man
dato imperativo, votar no candidato da preferência de seus eleitores. Unidades fe
deradas mais populosas, como Nova York, Illinois e Ohio, têm direito a um maior
número de votos do que entidades menos populosas. Daí o interesse dos candida
tos em captar votos nos Estados-chave.
Tanto nos EUA (Constituição, art. 2o, Seção I, 5) como no Brasil (Constitui
ção, art. 14, § 3o, VI, a), é exigida a idade mínima de 35 anos para o exercício das
funções presidenciais, sendo que a Lei Magna brasileira estabelece que o presiden
te deverá ser brasileiro nato (art. 12, § 3o, I).
A tripartição de Poderes é apanágio do regime presidencialista. Tal princípio,
elaborado por Heródoto, Aristóteles, Cícero, Locke e definitivamente sistematiza
do por Montesquieu, é contradiço na obra capital do presidencialismo e do fede
ralismo norte-americanos: O federalista, de Hamilton, Madison e Jay. Neste livro,
a tripartição de Poderes não é apenas divisão, mas também equilíbrio, embora a
prática demonstrasse a inevitabilidade da predominância, ora de um, ora de outro
Poder. A separação e a independência dos Poderes (Constituição do Brasil, art. 2o)
excluem a possibilidade de dissolução do Legislativo pelo Executivo e vice-versa,
embora a delegação de atribuições de um Poder a outro seja uma realidade.
Lembra oportunamente Duvcrgcr que a relativa frieza demonstrada pelos Es
tados europeus quanto ao regime presidencialista é decorrente sem dúvida, à ideo
logia liberal da Revolução Francesa, realizada justamente para derrubar o poder
pessoal, no caso, do monarca. Ora, aquilo que repelia o presidencialismo na Euro
pa seria o motivo de sua imediata adoção na América Latina: o poder personaliza
do nos caudilhos. Com efeito, na América Latina, via de regra, a tradição liga-se à
psicologia para tender ao poder pessoal. O vasto império dos incas, sedimentado
ao longo de séculos sob o poder férreo de monarcas absolutos, foi substituído pelo
poderio espanhol e seus vice-reis. Ao cacique sucederiam conquistadores aventu
reiros, vice-reis e corregedores, bem como os líderes da emancipação, plasmando,
em definitivo, a inclinação do latino-americano para regimes de caráter autocráti
co. Por isso se diz que na América Latina seguem-se homens e não ideias... Daí o
fascínio do presidencialismo, facilmente deformado pelo caudilhismo.
176 Teoria Geral do Estado
Finalizando: 110 Brasil, o poder pessoal tem uma longa tradição histórica.
De 1822 até hoje o Poder Executivo no Brasil foi exercido, praticamente sem
interrupção, de forma monocrática. A Constituição de 1824 conferia a chefia do
Executivo ao imperador (art. 102). De 1891 a 1961 é evidente que nosso Poder
Executivo foi monista, com breve interregno parlamentarista (Emenda 11. 4, que vi
gorou de 02.09.1961 a 23.01.1963, quando foi revogada pela Emenda 11. 6). Dc
janeiro de 1963 em diante o poder monocrático do presidente da República con
solidou-se ainda mais. Tradicionalmente, o presidente sempre foi eleito pelo sufrá
gio popular, direito majoritário, num só turno. Depois da insurreição de 1964, a
eleição indireta foi a preferida. O art. 74 da Constituição Federal de 1969 dispu
nha que o presidente seria eleito pelo sufrágio de um colégio eleitoral, cm sessão
pública e mediante votação nominal. Entretanto, com o advento da Emenda Cons
titucional n. 25, de 15.05.1985, ensejada pelos anseios populares e pela atuação in
cisiva de personalidades de escol do pensamento liberal, que dariam vida ao perío
do que vivemos, conhecido como “Nova República”, o presidente passaria a ser
eleito mediante voto direto e secreto. O candidato vencedor que não obtiver maio
ria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos, deverá subme
ter-se a uma segunda votação, concorrendo com o segundo candidato mais vota
do, dando-se a eleição, a partir daí, por maioria simples, conforme determina o
art. 77, §§ 2° e 3°, da Constituição. Deve, o presidente, ser brasileiro nato (CF art.
12, § 3°, 1), estar 110 gozo dos direitos políticos, bem como registrado em partido
político (CF, art. 14, § 3o, 1 a VI, a).
1.2) Presidencialismo histórico e direito comparado
Referindo-se ao Estado liberal, costumava o grande pensador católico Bos-
suet afirmar que “o Estado que pretendemos fraco demais para não nos oprimir
tornou-se fraco demais para nos defender”. Realmente, para os ideólogos do liberalis
mo clássico, prccatados dos excessos do absolutismo na França, o Estado deveria
ter como única missão preservar a inviolabilidade da pessoa c a iniciativa privada
no setor econômico, bem como a propriedade individual, não educando c não sen
do ético. Do século XVIII para cá, entretanto, o mundo passou por grandes trans
formações; surgiram novas necessidades sociais e, com estas, as correntes socialis
ta e antiburguesa, pressionando os governos a deixarem a postura de inércia do
État gendarme e a promoverem, ativamente, o bem-estar social, mediante uma in
tervenção mais incisiva na esfera individual. Surge, então, a democracia providen-
cialista, que, na concepção de Ferreira Filho, corporifica o Estado-providência:
[...] muda a concepção da missão do Estado, em decorrência da difusão das ideias so
cialistas e do próprio catolicismo social. Difunde-se e consagra-se o entendimento de
que o Estado não deve apenas assegurar a liberdade, deixando a cada um, com suas
7 Regimes de governo 177
próprias forças, a conquista do bem-estar. Ao contrário, renova-se a concepção medie
val de que o estado tem por missão garantir para todos o bem-estar, uma vida huma
na e digna, para reproduzir o velho conceito tomista acerca da essência do bem co
mum.
1.3) Presidencialismo versus parlamentarismo na América Latina
O regime presidencialista, adotado desde logo nos primórdios do constituciona-
lismo latino-americano, manteve-se como tendência dominante nas Constituições
americanas. Os poderes atribuídos ao presidente vão muito além da função mera
mente representativa, pois se lhe outorga um amplíssimo poder para dirigir o gover
no. Assim, embora num atavismo tipicamente rousscauniano as Constituições ame
ricanas timbrem em colocar o Legislativo antes dos demais poderes, tudo isto é
aparência: o presidente dos Estados latino-americanos se mostra, atualmente, como
queria o pensamento de Bolívar, um sol ao redor do qual giram as forças sociais.
Para intervir de maneira determinada o Estado carece de dois pressupostos: ra
pidez nas decisões e conhecimento técnico das questões. Ora, é intuitivo que a fun
ção executiva se torna a mais qualificada para esta nova missão. Trata-se da supe
ração da nomocracia (g. nomos: norma), vale dizer, da norma em si, pela telocracia
(g. téleios, final), ou seja, a predominância da finalidade da lei, uma vez que aquela
mal se adapta a reger a política econômica, fundamental no Estado moderno.
O fenômeno descrito surge, de forma cristalina, com o advento da política do
New Deal do Presidente Rooscvclt. Este percebeu, desde logo, sob o pesado fardo
das questões econômicas, que as novas medidas que tomariam despertariam a aver
são da Suprema Corte, porque não estavam previstas, expressamente, na Consti
tuição, parcialmente em descompasso com os novos tempos. A Suprema Corte nor
te-americana, formada, segundo alguns, por aqueles “que nunca se aposentam e
raramente morrem”, timbrou, com efeito, em não reconhecer validade às leis do
Congresso, de caráter fortemente intervencionista. Magistrados conservadores, pro
venientes em grande parte da aristocracia sulista, chegaram, no período de cinco
anos, a anular 377 leis! Mesmo assim, as decisões eram tomadas pela maioria pre
cária de cinco contra quatro votos, passando a ser denominadas, ironicamente, five
to four e profligadas num panfleto intitulado Government by Judieiary, de Budin.
Os juizes da Suprema Corte seriam a personificação da nomocracia, confrontada
pela telocracia do Executivo. Por isso, advertia Rooscvclt que, para ser legítima, uma
Constituição não deve visar apenas a liberdade, mas também o bem-estar de todos,
já que somente nesta concepção o homem estará plenamente realizado.
Os novos tempos, contudo, não se circunscreveram aos Estados Unidos; tam
bém a América Latina sofreu a influência ideológica e institucional do Estado in
tervencionista, especialmente por termos, aqui, Estados em desenvolvimento. O
processo desenvolvimentista, penoso e inquietante, traz consigo a inevitável aporia
178 Teoria Geral do Estado
“democracia liberal, desenvolvimento nacional e justiça social”. Sob o impulso das
correntes socialistas que floresceram na Europa do século X IX , a Constituição me
xicana de 31.01.1917, em seus arts. 123 e segs., inaugurou, no Novo Mundo, a in
serção dc uma ordem econômica e social no ordenamento jurídico, marcando o ad
vento do Estado do bem-estar social neste continente.
O Executivo latino-americano distingue-se por seu acentuado caráter unipes-
soal; tal característica, como vimos, procede de uma arraigada tradição: nas épo
cas indígena e colonial tivemos executivos fortes, autoritários, os quais, com a in
dependência, foram substituídos por caudilhos militares e, depois, pelos caudilhos
civis. Em tal sentido, um valioso ensaio de José Miranda considera o enfraqueci
mento e a constrição do Executivo como uma das tendências mais recentes do cons-
titucionalismo latino-americano. Aqui, os chamados mecanismos anticaudilhistas,
reação contra o excessivo poder presidencial: redução da duração do mandato pre
sidencial, enunciação expressa das atribuições presidenciais, cláusula antirreeleicio-
nista, incorporação ao presidencialismo de alguns institutos parlamentaristas etc.
Até o momento, o princípio da irrelegibilidade constitui a conquista mais signifi
cativa do constitucionalismo. Em contrapartida, firma-se a tendência de conside
rar o presidente da República o principal órgão propulsor do desenvolvimento na
cional; as Constituições latino-americanas, em maior ou menor grau, conferem
atribuições importantes ao presidente para intervir nos problemas econômicos, edu
cacionais, agrários e previdenciários.
Relativamente ao parlamentarismo, os latino-americanos jamais demonstra
ram uma inclinação maior. Enquanto o presidencialismo enseja uma centralização
considerável do poder e proporciona instrumentos de controle ao governante, o
parlamentarismo parece muito complexo para nações que ainda não alcançaram
um amadurecimento político indispensável. Não obstante isso, o parlamentarismo
deixou, na América Latina, uma herança significativa para o direito constitucional,
e, assim, em várias Constituições encontraremos diversas nuanças parlamentaris
tas, v. g., as da Venezuela de 1864,1874 e 1891, que estabeleciam que os ministros
poderiam ser censurados pela Câmara dos Deputados e, por isso, estavam obriga
dos a se demitir. Diga-se o mesmo da Constituição equatoriana de 1878, que intro
duziu o voto de censura que subsiste em textos posteriores. Outras Constituições
que adotaram institutos do parlamentarismo: as de 1806, 1845, 1859 e de 1867
do Haiti; a de Honduras, de 1825/30; a da Bolívia, de 1931/37; a do Peru, de 1933;
e a do Uruguai, de 1934. No Brasil tivemos experiências parlamentaristas entre
1838 e 1889 e de 1961 a 1963, sendo que, atualmente, se propugna o retorno ao
parlamentarismo como regime de governo em nosso país.
O primeiro período parlamentarista brasileiro, de 1838-1889, foi, na verda
de, o resultado de uma longa evolução consuetudinária, pois a Constituição não
previa o regime parlamentarista, sequer o mencionava. Na verdade, então, como
vimos, havia condições favoráveis ao parlamentarismo, embora velado:
7 Regimes de governo 179
A geração de homens públicos que criou a constituição do império era, na maio
ria, e por seus representantes mais significativos, partidária do regime monárquico par-
lamentário e moderado. Havia, sem dúvida, elementos mais radicais ou exaltados, que
preconizavam uma democracia avançada e sonhavam com a república, embora rara
mente o proclamassem. Tais elementos, contudo, eram considerados um tanto extra
vagantes e pouca influencia exerciam nos acontecimentos.
Particularmente, no Chile foi agitada a política parlamentarista: os partidos
políticos aumentaram em número, formando coalizões fugazes e desmoralizadoras
para o regime: entre 1891 e 1920, houve nada menos do que oitenta mudanças mi
nisteriais. Dessa forma, sc as condições políticas do jogo parlamcntário não permi
tem a continuidade dc uma política ministerial, c claro que os problemas sociais te
nham a sua solução retardada, acumulando-se e ensejando as criscs. Dizia-se, então,
ironicamente, que não seria de se preocupar com os problemas políticos, pois, dc
cem questões que afligem o Estado, 99 se resolvem por si só e uma não tem, real
mente, solução.
Desacreditado, o regime parlamentarista foi definitivamente extinto em 1925,
por iniciativa do Presidente Alessandri, tendo a Constituição por este criada per
durado até a queda de Allende, em 1973.
1.4) Presidencialismo, militarismo e Igreja na América Latina
Não podemos deixar dc registrar duas forças sociais, fatores reais do poder -
para empregarmos uma expressão típica de Lassalle - que pressionam, cm maior
ou menor escala, o Poder Executivo latino-americano; c quando dizemos “Poder
Executivo” estamos nos referindo, indiretamente, ao próprio presidente da Rcpú-
blica, que, em última análise, se confunde com o órgão. São estas forças, já se per
cebe, as Forças Armadas e a Igreja.
Constituem as Forças Armadas o fator real de poder de maior peso na Amé
rica Latina. Nos Estados latino-americanos, os militares transformaram-se em ver
dadeiros árbitros ou tutores do poder político velada ou ostensivamente; daí a im
portância de se mencionar o fenômeno.
Numa primeira fase do militarismo latino-americano, denominada pretoria-
na, situamo-nos na época da emancipação. As Forças Armadas eram, então, incipien
tes, improvisadas, submetidas à vontade do caudilho. Despreparadas e desprovidas
de espírito profissional, estavam sempre prontas para motins e quarteladas.
Por volta dc 1880, surge a época do profissionalismo, motivada especialmen-
tc pela decadência do militarismo caudilhista, bem como pela introdução da tec
nologia em seus quadros, pelo desenvolvimento econômico c pela estabilização po
lítica, com o conseqüente surgimento de governos civis.
180 Teoria Geral do Estado
Com a profissionalização, as Forças Armadas adquirem esprit de corps, sendo
instruídas para o desempenho de sua principal missão, a defesa do Estado contra a
agressão externa. Seus instrutores foram, inicialmente, militares e técnicos alemães
c franceses, os quais modernizaram o aparato bélico e a administração militar; logo
depois os norte-americanos substituiriam, definitivamente, os europeus neste mister,
exercendo, então, considerável poder de controle sobre as Forças Armadas.
Em 1929, sobrevêm a Grande Depressão; o sistema capitalista entra em crise,
e os militares surgem, então, na América Latina, como um fator de poder que rapi
damente se politiza, apoderando-se do poder e não mais se conformando em simples
mente restaurar o regime para entregá-lo aos civis. A partir de então desejam gover
nar, pois estão convencidos de que sua participação política é, agora, necessária.
As Constituições, por sua vez, estabelecem uma teia indissolúvel de articula
ções entre o presidente e as Forças Armadas, determinando que aquele será seu co
mandante-em-chefe, além de nomear seus principais oficiais, e dispondo delas para
a segurança interna e externa do país, haja vista o art. 84, XIII, da Constituição
brasileira; o art. 86, §§ 15 a 17, da argentina; o art. 180, § 11, da paraguaia; o art.
184, XV, da equatoriana; o art. 164, § I o, da panamenha; o art. 55, §§ 14 a 17, da
dominicana; o art. 190 c os Capítulos III e IV da venezuelana; os arts. 189 e 193
da nicaraguense; c o art. 89, IV a VII, da mexicana.
Outras Constituições, entretanto, criam medidas para refrear os arroubos do
militarismo; é o caso da Constituição da Costa Rica, art. 12: “Fica proscrito o Exér
cito como instituição permanente. Para a vigilância e conservação da ordem públi
ca, atuarão as forças policiais necessárias”.
Quanto à Igreja, embora não incisivamente como as Forças Armadas, desfru
ta, sem dúvida, de relativo prestígio junto ao Poder Executivo, prestígio este que já
foi imenso, haja vista a Constituição do Império exigir, no art. 95, III, a profissão
de fé católica para o exercício da função de senador, preceito este seguido pelas
Constituições da Argentina (art. 76) e do Paraguai (art. 172). Em outras Constitui
ções, a Igreja ainda joga importante papel, ensejando normas que orientam e limi
tam a atuação do Executivo, embora não referentes a este de maneira expressa. En
tre tais normas, mencionam-se as que declaram religião oficial a católica, as que
obrigam o Estado a celebrar concordatas, as que concedem franquias tributárias à
Igreja, haja vista os arts. 2° e 86, §§ 8o, 9° e 14, da Constituição argentina, 2° e 94,
§§ 15 a 17, da Constituição boliviana, 53 da Constituição colombiana e 6° da Cons
tituição do Paraguai.
2) PARLAMENTARISMO
Bibliografia: c e r a m , C. W. O segredo dos hititas, Belo Horizonte, Itatiaia, 1957. d e -
LAPORTE, Louis. Los hititas, México, Uteha, 1957. d u v e r g e r , Maurice. Os regimes
7 Regimes de governo 181
políticos, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966. f e r r e i r a f i l h o , Manoel Gon
çalves. Curso de direito constitucional 11. ed., São Paulo, Saraiva, 1982. g i o r d a n i ,
Mário Curtis. História da antiguidade oriental Petrópolis, Vozes, 1963. l i n d o s o , José.
Estado, constituinte e Constituição, São Paulo, Saraiva, 1986. m a c k f .n z i e , Kenneth.
The English parliament, United Kingdom, Penguin Books, 1968. r o d r i g u e s a l v e s f i
l h o , F. O que é parlamentarismo? São Paulo, 1961. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de
teoria do Estado, 5. ed., São Paulo, Saraiva, 1982.
Parlamentarismo é o regime de governo em que a chefia de governo (adminis
tração) é confiada ao próprio parlamento - daí a expressão parlamentarismo sen
do exercida por um primeiro-ministro que comanda um gabinete formado por
ministros auxiliares, ao passo que a chefia de Estado (representação do Estado pe
rante outros Estados) é confiada ao presidente da República ou, se a forma do go
verno for a monárquica, ao rei.
O protótipo do regime parlamentarista é o parlamentarismo britânico, que
apresenta uma longa evolução histórica. Necessário notar, como faz Maurice Duver-
ger, que um regime parlamentar não é, necessariamente, um regime parlamentarista,
pois há regimes, como o presidencialista, em que há um parlamento (Congresso),
mas não há parlamentarismo, uma vez que a chefia de governo e atribuída ao presi
dente da República. Assim, e por exemplo, há parlamento no Brasil, nos Estados Uni
dos e na Suíça, mas não há parlamentarismo. Embora, como visto, as instituições
parlamentaristas encontrem, na Inglaterra, a sua consagração definitiva, as origens
históricas das práticas parlamentaristas são, a nosso ver, muito mais antigas do que
sc pensa. Elas poderiam ser identificadas como um povo da Antiguidade oriental, os
hititas, que tinham, e importante notar, origem indo-europeia. Vejamos.
Até pouco tempo, os hititas nada mais eram do que um povo obscuro, inci-
dentalmente mencionado na Bíblia. Exemplificando, Mário Curtis Giordani apon
ta alguns trechos dos Livros Santos que mencionam os hititas (Gênesis 23, 3-20;
25, 9 e 49, 29-32) sobre o episódio da compra de um terreno sepulcral por Abraão;
Esaú (Gênesis 26, 34-35) e Salomão (3 Reis 11,1) desposara mulheres hititas. Bet-
sabé, mulher do hitita Urias, foi ardentemente desejada pelo rei David, que buscou,
por todas as formas, eliminar seu marido.
No Êxodo (3, 8), os hititas são mencionados como um povo felizardo que ha
bitava uma terra na qual brotavam o leite e o mel.
Pouco mais do que isso era ditado a respeito dos habitantes do “país de Hatti”.
Entretanto, a partir do século passado várias expedições arqueológicas começaram
a comprovar que os hititas desempenharam papel dos mais importantes na histó
ria política da Antiguidade oriental.
Habitaram a Ásia Menor, mas eram de origem indo-europeia, como os frígios
e os celtas. Fixados naquela região desde o segundo milênio antes de Cristo, mes-
182 Teoria Geral do Estado
ciaram-se com populações autóctones, de origem asiânica (esta palavra designa os
povos da Ásia Ocidental que não são semitas nem, provavelmente, indo-europeus,
conforme adverte Mário Curtis Giordani).
O caráter dc indo-europeu atribuído aos hititas parece ter mais conotação lin
güística do que racial, afirmam inúmeros pesquisadores. Desde os estudos dc Franz
Bopp - linguista alemão (1791-1867), que provou existir um grupo dc idiomas que,
por incluir línguas da índia, da Ásia Central e Ocidental, bem como da maior par
te da Europa, poderia ser qualificado dc indo-europeu - até as conclusões levadas
a efeito por Friedrich Hrozny, que comprovou ser o hitita também um idioma eu
ropeu, muitos aspectos obscuros do idioma hitita foram esclarecidos, a ponto de
se afirmar que um alemão contemporâneo compreenderia, perfeitamente, o clamor
de um hitita perdido no deserto, implorando por água: alemão/vasser = hitita!vâ-
der. A palavra comer.; que no inglês é eat, no latim edo, no antigo alto germânico
ezzan, apresenta, evidentemente, semelhança com o hitita ezzatteni.
Mesmo que deixemos de lado o fator lingüístico, veremos que também as ins
tituições hititas apresentam forte conotação ocidental, indo-europeia.
As instituições políticas hititas nada têm em comum com as dos povos semi
tas. Mesmo sua atitude para com os povos vencidos denota um elogiável humani-
tarismo c um sábio tato diplomático: ao invés de massacres odiosos, como aqueles
que levaram a efeito os terríveis assírios, os hititas buscavam, mediante matrimô
nios reais, selar a união com seus vizinhos, evitando, ademais, despertar o ódio dos
vencidos em virtude de atos atrabiliários.
O regime político era o monárquico, como, de resto, em todos os Estados
orientais. A princípio eletiva, a realeza seguiu, depois, o sistema de cooptação, que
implicava o direito de o rei escolher seu sucessor junto a qualquer membro da no
breza, embora a escolha devesse ser referendada pela assembleia denominada
“pankus” ou “p a n k u sh Assim, o monarca hitita não era dotado de poder abso
luto, sendo rigidamente controlado pela assembleia. Ora, tal concepção política é
inteiramente estranha às outras monarquias orientais, estas verdadeiramente des
póticas. Os hititas, como visto, procediam da Europa, e deste continente trouxe
ram instituições que, milhares de anos mais tarde, ressurgiriam com as modifica
ções peculiares a cada época.
Nem por isso alguns autores deixam de ver as origens do parlamentarismo
moderno na Espanha e Portugal medievais. Na Espanha, já no século IX, as Cor
tes de Aragão escolhiam para chefe Inigo Arista, com o estabelecimento do Foral
de Sobrarbe. Em terras hispânicas, após a morte do rei, reuniam-se assembleias para
escolha do sucessor, como ocorria em Astúrias e Leão. Ademais, até a consolidação
do despotismo monárquico no século XVI, as Cortes podiam, mesmo, deliberar so
bre matéria fiscal, vetando a criação de novos impostos. Em Portugal, que integra
va os domínios hispânicos, formando o então denominado Condado Portucalense,
que daria origem, a partir do século XI, ao país, também as instituições parla
7 Regimes de governo 183
mentares desfrutaram de grande prestígio. Entretanto, as instituições políticas me
dievais européias evoluíram de maneira diversa no continente e na Inglaterra. Na
França, por exemplo, a monarquia feudal cederia lugar à monarquia absoluta, en
quanto na Inglaterra, longe do continente, ocorreu o inverso, com a monarquia ab
soluta enfraquecendo paulatinamente, passando dc monarquia limitada para mo
narquia parlamentar. Como assinala Maurice Duvcrger, o poder do rei inglês foi,
paradoxalmente, o fator de sua fraqueza, pois o povo e a burguesia uniram-se aos
barões para minar as prerrogativas reais, ao passo que o povo francês ajudava seu
monarca a superar a tutela feudal, de tal forma que, como resultado disso, o rei in
glês tornou-se fraco e o da França, muito forte. A situação geográfica da Inglater
ra e da França, por outro lado, contribuía para tal evolução; pressionada por vizi
nhos continentais, a França necessitava de um exército permanente, que dependia
de um imposto também permanente, com o qual os Estados Gerais foram forçados
a concordar. A Inglaterra, ao contrário, não se viu às voltas com tais necessidades,
e por isso o rei via-se obrigado a convocar o parlamento sempre que precisava de
dinheiro, daí a periodicidade do parlamento britânico. No século XVI a monarquia
inglesa tentou restaurar seu poder, sobrepondo-se ao parlamento, mas Jaime II foi
deposto e, além disso, com a promulgação da Declaração de Direitos (Bill of Rights),
a monarquia tornou-se, em definitivo, limitada, cobrando o parlamento autono
mia sempre maior. A partir do Bill of Rights, o rei não poderia mais governar sem
o apoio parlamentar, pois do próprio parlamento dependeria a administração das
Forças Armadas e a cobrança de impostos. Ora, havendo duas facções bem deter
minadas no parlamento, não haveria outra alternativa para o rei a não ser buscar
apoio do grupo majoritário para criar tributos e controlar o Exército, de tal sorte
que ele passou a formar um conselho (gabinete) junto aos membros mais eminen
tes do partido majoritário. O surgimento do gabinete antecederia, imediatamente,
o surgimento da figura do primeiro-ministro, acelerada por circunstâncias histó
ricas. Com efeito, com Jorge I, alemão de origem, e ligado à Dinastia de Hannover,
criou-se um impasse: o novo rei não falava o inglês c, por isso, desinteressou-se dc
participar das reuniões do gabinete, passando este órgão a governar. Este curioso
fenômeno prosseguiu com Jorge II, que, se entendia o inglês, não o falava, continuan
do o gabinete a assumir a responsabilidade pela atividade governamental. O rei,
entretanto desejando conhecer as deliberações do gabinete, passou a escolher, den
tre seus membros mais ativos, um que atuasse como intérprete. Surge, então, a fi
gura do primeiro-ministro. Com o Ato do Estabelecimento, no dealbar do século
XVIII, já se nota que, se ao gabinete compete a função governamental, ao monar
ca resta apenas a função representativa ou chefia de Estado. Daí a sugestiva expres
são de Bertrand Russell: “O Primeiro-Ministro tem mais poder do que glória, e o
rei mais glória do que poder”.
Sendo o gabinete formado por membros do próprio parlamento, recebe des
te moção de confiança. Retirada esta, opera-se a queda do gabinete. Pode, entre
184 Teoria Geral do Estado
tanto, o gabinete dissolver o parlamento e convocar o povo para eleições gerais, se
ocorrer dissídio político entre os dois órgãos. Nota-se, portanto, como observa Pe
dro Salvetti Netto, que ao povo se atribui a decisão definitiva e irrecorrível. Eis por
que a opinião pública constitui o fundamento do regime parlamentarista inglês. Im
portante notar que os ministros que assessoram o primeiro-ministro e que, com
este, formam o gabinete são, todos, solidariamente responsáveis pelas deliberações
tomadas. Do exposto, como faz ver Pedro Salvetti Netto, conclui-se que o parla
mentarismo inglês apresenta quatro características marcantes: a) responsabilidade
política do gabinete; b) gabinete formado com os membros do partido majoritário
no parlamento; c) primeiro-ministro, chefe do partido majoritário, líder do gabi
nete; d) gabinete exercente das atribuições inerentes à chefia de governo. São ór
gãos essenciais ao parlamentarismo inglês, portanto: a Coroa, o gabinete e o parla
mento, aos quais se junta o Poder Judiciário. Em tese, a Coroa apresenta inúmeras
prerrogativas: nomeia funcionários civis, militares e eclesiásticos, confere o direito
de participação da Câmara dos Lordes (pariato), atribui condecorações, mas sem
pre referendando as decisões previamente tomadas pelo gabinete. Na prática, em
bora seja o rei que designa os membros do gabinete, a verdade ê que, sendo o pri
meiro-ministro líder da maioria, fatalmente será ele quem escolherá seus ministros.
O parlamento é formado por duas câmaras: a Câmara dos Comuns (eleita por su
frágio universal) e a Câmara dos Lordes (nomeada pelo rei). A Câmara dos Co
muns possui maior ascendência que a dos Lordes, pois esta não tem outra missão
a não ser rejeitar os projetos votados pelos Comuns que não tenham caráter finan
ceiro. Ora, no mundo moderno rara é a lei importante que não tem caráter finan
ceiro e, além disso, havendo rejeição, a Câmara dos Comuns pode recolocar o pro
jeto vetado em nova votação. Importantíssimo ressaltar a severidade na exigência
da tramitação mais rápida dos projetos de lei, representada pelo sistema da guilho
tina, pelo qual, se os debates ameaçam ultrapassar o prazo fixado para as discus
sões, pode o speaker (presidente) trancar a discussão e aprovar a emenda que con
siderar a melhor.
No Brasil, tivemos duas experiências parlamentaristas. A primeira, de fato,
durante o Segundo Império; a segunda, de direito, entre 1961 e 1963. Com efeito,
se a primeira Constituição brasileira, de 1824, não previa, expressamente, o regi
me parlamentarista, o fato é que, já por volta de 1827, por influência do sistema
político inglês, constatavam-se práticas parlamentaristas no País. Já naquela épo
ca, o incipiente parlamentarismo brasileiro caracterizava-se pela instabilidade mi
nisterial, pois os gabinetes não ultrapassavam, em média, dois anos de duração, tor
nando impossível o planejamento de um programa administrativo. Durante meio
século de Segundo Império, caíram cinco ministérios devido a moções de descon
fiança da Câmara dos Deputados, treze por hostilidade da Câmara ou por falta
de apoio parlamentar, e 22 simplesmente retiraram-se do poder por desentendi
mento com o imperador ou por mágoa, em face da ingerência deste na Adminis
7 Regimes de governo 185
tração. A segunda - e também frustrada - implantação do parlamentarismo entre
nós ocorreu cm 1961, motivada por um casuísmo desmoralizador do regime. Com
efeito, a renúncia de Jânio Quadros ensejaria a imediata ascensão à presidência do
vice, João Goulart. Entretanto, as Forças Armadas, preocupadas com as tendências
esquerdistas do novo presidente, e seus seguidores pressionaram as lideranças par
tidárias para que fosse adotado o regime parlamentarista, panaccia que permitiria
a posse de João Goulart, mas ao mesmo tempo sua total imobilidade quanto a uma
efetiva função governamental, que ficaria a cargo do gabinete. Foi, então, votado
o Ato Adicional (EC n. 4, de 02.09.1961), que instituiu o parlamentarismo. Ape
nas quinze meses após, o Presidente João Goulart, insatisfeito com a situação, es
timulou e obteve a realização de um referendo popular, que consagrou o retorno
ao regime presidencialista, com a revogação do Ato Adicional. O resto é história.
Enfim, o regime parlamentarista é propício apenas aos sistemas bipartidários,
nos quais não ocorre a fragmentação indesejável da opinião parlamentar e, portan
to, a estabilidade ministerial é muito maior. Por isso, muitos autores apontam o su-
cesso do parlamentarismo inglês como o resultado de dois fatores peculiares aos
anglo-saxões: uma profunda consciência nacional demonstrada no respeito às tra
dições políticas c às instituições c, depois, a existência dc apenas dois partidos que
efetivamente decidem as eleições.
8 IDEOLOGIAS
1) CONCEITO DE IDEOLOGIA
Bibliografia: a b b a g n a n o , Nicola. Dicionário de filosofia> 2. ed., São Paulo, Mestre Jou,
1982. e a g l e t o n , Terry. Ideologia, São Paulo, Unesp/Boitempo, 1997. e c c l e s i i a l l ,
Robert e outros. Ideologias políticas, Madrid, Editorial Tecnos, 2004. x i f r a , Jordi.
Las ideologias dei poder en la Antigiiedad, Barcelona, Bosch, Casa Editorial, 1983.
O termo ideologia foi criado por Destut de Tracy, em 1801, denominando a
“análise das sensações e das ideias”. Uma ideologia política vem a ser um sistema
de crenças aceitas como verdades inelutáveis, expressando o clima social e o esta
do de ânimo próprio de uma sociedade concreta. Trata-se de uma concepção pecu
liar do mundo c da Humanidade e, nesse sentido, fala-se em ideologia burguesa, li
beral, totalitária, marxista e tantas mais. Dirige-se às massas, portanto, expressa-se
de forma simplificada, rudimentar, tolerando, mesmo, certo falseamento da reali
dade. Em outras palavras, volta-se muito mais para os que “atendem” que para os
que “entendem”...
A ideologia se caracteriza, em face do exposto, pela ação direta, muitas vezes
violenta, irracional. Como assinala com clareza Jordi Xifra
[...] a ideologia não é apenas um sistema de ideias sobre a ordem social, mas princi
palmente sobre as ações a serem levadas a efeito sobre esta. Trata-se de um princípio
ativo destinado a atuar sobre a realidade social, criando-a, modificando-a ou, simples
mente, justificando-a. Toda ideologia tem as vistas voltadas para a ação; age como um
motor que gera a força motriz da História; c a ponte que une a teoria à prática, o pen-
186
8 Ideologias 187
sarnento à ação. Atua como uma filosofia militante que norteia o desenvolvimento de
um sistema sociocultural.
O marxismo, na pretensão de cientificidade de seu socialismo autonominado
“científico”, tem a ideologia como um complexo dc concepções falsas, irracionais,
simplificadas, sempre a serviço do status quo; na mesma linha Karl Mannheim, que
viu nas ideologias concepções não só conservadoras, mas também equivocadas, e
Louis Althusser que considerava incompatíveis ideologia e ciência.
Vejamos algumas ideologias que fizeram escola e agitaram as massas, subver
tendo, em maior ou menor escala, a ordem estabelecida.
2) SOCIALISMO UTÓPICO
Bibliografia: e n g e l s , Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico, 7. ed.,
São Paulo, Global, 1985. jou ., James. Los anarquistas, Barcelona, Grijalbo, 1978. m o s
c a , Gaetano e g a s t o n , Bouthoul. Histórias das doutrinas políticas, Rio de Janeiro, Zahar,
1975. n e t t l a u , Max. La anarquia a través de los tiempos, Madrid, Júcar, 1977.
O socialismo utópico, desprezado por Marx justamente por ser utópico, foi
verberado severamente pelos marxistas. Que é uma utopia? Esta palavra é forma
da por dois semantemas gregos: w, negação, c topos, lugar, designando, portanto,
um lugar inexistente, imaginário. O primeiro pensador a empregar a palavra como
modelo político teria sido Thomas Morus, pensador da Renascença que imortali
zou o vocábulo cm obra famosa Utopia, a respeito da qual trataremos mais adian
te. Segundo a doutrina marxista, o grande erro dos socialistas utópicos vem a ser,
justamente, a idealização de vastos planos de reconstrução social sem levar em con
ta a vida real da sociedade, a luta de classes, enfim, ignorando, por completo, a im
portância da vida material, do modo de produção econômico. Reconhecem os
marxistas que alguns socialistas pré-marxistas teriam percebido as contradições
inerentes ao capitalismo e que a propriedade privada deveria desaparecer, mas es
tes socialistas não souberam explicar o modo de produção do capitalismo, não sou
beram, enfim, interpretar cientificamente os fatos sociais. Daí Marx jactar-se de
opor, a um socialismo utópico, seu socialismo científico.
O certo é que o ideal socialista sempre despertou a atenção de filósofos e po
líticos; assim é que já Mit-sé (Micius), na China, afirmava, 500 a.C., que a ausên
cia dc amor recíproco entre os homens era a fonte dc toda a miséria. O luxo c a de
sigualdade social deveriam scr severamente combatidos.
Por outro lado, vários trechos da Bíblia estão impregnados de ideias socialis
tas: Jeremias clama contra “os gordos a luzirem gordura”. Ezequiel atribui a Jeo
188 Teoria Geral do Estado
vá estas palavras: “para cima com os humildes, abaixo com os orgulhosos. Eu o re
duzirei a ruínas, a ruínas, a ruínas!”. Isaías sonha com um reino de paz e dc justiça,
110 qual “o lobo repousará junto ao cordeiro e a pantera ao lado do cabrito”.
Na mesma época de Mit-sé (século V a.C.) surge, na Pérsia, um pregador de
nome Mazdak, afirmando a igualdade natural de todos os homens e sugerindo a
supressão da propriedade, bem como da família, instituições humanas que seriam,
segundo ele, contrárias ao desejo da divindade.
Em sua obra A república, Platão critica as desigualdades sociais no tempo da
Atenas de Péricles. Previa o banimento da propriedade privada e da liberdade eco
nômica. Isto somente seria possível pela educação. O Estado ficaria encarregado de
educar o cidadão, desde a mais tenra idade, para o socialismo. Aos quatro anos de
idade seria iniciada a educação da criança, sem separação de sexos, pois Platão vi
sava à participação da mulher, ao lado do homem, nos problemas políticos. Após
um curso geral, 110 qual as crianças aprenderiam música, matemática e história, os
jovens prestariam o serviço militar (homens e mulheres), permanecendo nas filei
ras do exército aqueles que revelassem menor aptidão intelectual. Os demais pros
seguiriam seus estudos, visando preencher cargos públicos, após exame de seleção.
Fariam, então, um curso de filosofia política, que lhes permitiria ascender à casta
mais elevada e nobre, a dos filósofos, cuja missão seria legislar e velar pela execu
ção das leis, cuidando do problema maior do Estado - o da educação -, pois Pla
tão estava convencido de que os males que afligem o Estado não teriam fim enquan
to os filósofos não chegassem ao poder ou os governantes não fossem filósofos.
Os filósofos nada poderiam possuir dc seu; receberiam o sustento da classe
trabalhadora e deveriam residir em habitações coletivas com as mulheres que lhes
fossem destinadas pelo Estado, e estas seriam comuns a todos, de forma que o pai
não viesse a conhecer o filho e vice-versa.
Aos agricultores, artífices e comerciantes caberia, apenas, sustentar os filóso
fos, auxiliados pelos escravos.
Mais tarde Platão escreveu outra obra As leis, na qual se mostra mais realista,
admitindo, com reservas, a propriedade privada, sendo que cada homem possuiria
uma gleba dc terra indivisível, inalienável e transmissível hereditariamente apenas.
Thomas Morus: humanista inglês, considerado santo por ter recusado a acei
tar o casamento do rei Henrique VIII com Ana Bolena, mediante o repúdio da rai
nha Catarina de Aragão. Acusado de alta traição, foi condenado à morte e executa
do. Morus era admirador de Platão e da obra deste. Escreveu uma obra intitulada
Utopia, na qual, indiretamente, critica a situação econômica da Inglaterra de sua
época. Enquanto as guerras contínuas enchiam o país de inválidos, os nobres ocio
sos tinham em torno de si inúmeros criados, que, por morte do amo, passavam ao
abandono e ao dilema de furtar, roubar ou morrer de fome. Por outro lado, o aban
dono da cultura agrícola com a transformação dos campos em pastagens de ove
lhas, com vistas à florescente exportação de lã para o exterior, fez com que houves
8 Ideologias 189
se um encarecimento brutal dos gêneros de primeira necessidade, com todas as suas
seqüelas: miséria, assaltos, vadiagem. Somente 110 reinado de Henrique VIII foram
enforcados 72 mil ladrões. Thomas Morus volta-se indiretamente contra este esta
do de coisas ao escrever Utopia.
Utopia é uma ilha inexpugnável, dividida em cinqüenta e quatro distritos. Ca
da distrito tem na sua parte central uma cidade espaçosa, que contém os edifícios da
administração, da indústria e do ensino. As casas são redistribuídas de dez em dez
anos, mediante sorteio, e não possuem chaves, para que nelas possa entrar quem
quiser. Cada grupo de trinta famílias escolhe seu chefe, o filarca. Os filarcas, reuni
dos, elegem os superfilarcas, e estes, por sua vez, o príncipe, que dirige o Estado e
que só pode ser deposto se tentar o cesarismo. Em Utopia o trabalho diário é redu
zido a seis horas: três pela manhã e três à tarde. Não há desocupados a consumir o
produto do trabalho alheio. Todos são agricultores, mas cada um aprende um ofí
cio extra, podendo, assim, passar um ano na cidade e dois 110 campo. Existe na ilha
a escravidão, sendo a esta reduzidos os criminosos, os adúlteros e os prisioneiros de
guerra. A mudança de residência depende dc autorização. As viagens ao exterior são
proibidas. Para evitar a concentração excessiva de pessoas em certas áreas, em de
trimento dc outras, alguns membros de famílias numerosas são transferidos para as
menos numerosas. Em matéria religiosa os utopistas são tolerantes. Por outro lado,
o ouro e a prata não possuem utilidade real e constituem um perigo para a vida so
cial e intelectual. Destina-se, quando muito, à fabricação de grilhões para os escra
vos. Não havendo comércio em Utopia, dispensada estava a moeda.
Thomas Morus não admite a comunhão sexual de homens e mulheres preco
nizada por Platão. Entretanto, os noivos devem apresentar-se despidos, porque “ne
nhum homem será tão filósofo de ver, na mulher, apenas as belezas morais; até para
os filósofos, quando se casam, o atrativo físico é importante”. A monogamia é pa
drão em Utopia. O divórcio existe para os casos de adultério, mas a mulher deve
ser ouvida antes de sua decretação. O próprio Morus, porém, admite que sua Uto
pia (o título completo da obra é Libelus yere aureus nec minus salutaris quam fes-
tivus de optimo rei publicae statu deque nova insula Utopia), embora eficaz em ter
mos objetivos, compromete toda a beleza e o ornamento do Estado.
Tommasso Campanella (1568-1639): foi um pensador italiano, da Calábria,
que escreveu uma obra intitulada Città dei sole. Religioso dominicano, rival dos je
suítas que seguiam Aristóteles, Campanella acatava as ideias de Platão. Em sua obra
preconizava um sistema comunista ideal.
Morelly: em 1753 escreveu uma obra intitulada Brasilíada, fundamentada na
Utopia de Morus. Para Morelly, o grande mal da Humanidade é a propriedade pri
vada. A terra e os instrumentos de produção devem pertencer ao Estado. Até os 25
anos, todos devem dedicar uma parte de seu tempo à agricultura; depois, a ativi
dades menos penosas. A família deve ser conservada, e a religião, meramente tole
rada.
190 Teoria Geral do Estado
Gabriel Bonnot de Mably (1709-1785): filósofo e historiador francês, havia
renunciado à carreira religiosa de pastor para dedicar-se ao cargo de secretário no
Ministério dos Negócios Estrangeiros. Inicialmente defensor do Velho Regime, isto
é, da monarquia, mudou radicalmente de posição cm 1757, abraçando uma ideo
logia dc forte matiz socialista. Passou a afirmar, então, que a verdadeira igualdade
não é a igualdade meramente formal ou jurídica, mas a igualdade material ou eco
nômica. O regime comunista seria peculiar à sociedade primitiva, e deveria ser ado
tado pela sociedade contemporânea, com abolição da propriedade privada. Toda a
produção da terra deveria ser armazenada em silos públicos e distribuída entre as
famílias, de acordo com as necessidades de cada uma. Não tinha grandes ilusões,
porém; um sistema como este não seria adotado em sua pureza original, mas den
tro das possibilidades reais. Considerava ser imprescindível abolir o regime de su
cessão hereditária, devendo o Estado ser tido como herdeiro, em caso de não ha
ver descendência direta, até que o Poder Público assumisse o controle de toda a
propriedade privada.
Brissot de Warville: impressionado pelo rigor da legislação dos crimes contra
o patrimônio (furto e latrocínio), escreveu uma verdadeira apologia do furto e do
roubo, pensamento que seria depois assimilado por Pierre-Joseph Proudhon, com
sua frase célebre: “A propriedade é um roubo”. Brissot dc Warville afirma que a
propriedade é um direito natural que deve ser limitado às reais necessidades de cada
um. A partir daí a propriedade passa a ser um roubo.
Charles Fourier (1722-1837): preso durante a Revolução Francesa por per
tencer ao partido dos girondinos. Posto em liberdade, passa a trabalhar como em
pregado de um comerciante de cereais em Marselha. O período era de fome e o pa
trão de Fourier, para elevar os preços, jogou ao mar enorme quantidade de arroz.
Impressionado, ele começa a estudar a questão social, afirmando que a falta de or
ganização do trabalho produz um enorme desperdício de forças, que tem como
conseqüência tornar a produção inferior àquela que seria concretizada se o traba
lho fosse cientificamente organizado. Afirmava que a sociedade deveria ser organi
zada cm comunidades denominadas falanstérios, nas quais a divisão do trabalho
seria feita por intermédio da chamada atração passional ou vocações.
Robert Owen (1771-1858): foi o criador das primeiras cooperativas de pro
dução e consumo. Filantropo, fundou no Canadá diversas cidades-modelos, nas
quais o trabalho, a produção e a distribuição das terras eram regulados pelos prin
cípios comunistas clássicos.
Eugen Karl Dühring (1833-1921): filósofo, jurista e economista alemão,
Dühring está longe de ser a figura ridícula em que Engels pretende transformá-lo
na virulenta obra intitulada, muito sugestivamente, Anti-Dühring. Infelizmente, as
obras de Dühring não têm a divulgação merecida e, por isso mesmo, não podemos
deixar de fazer um reparo a esse respeito e de dizer algo de seu trabalho. Inteligên
cia, perspicácia e uma sólida formação intelectual enciclopédica, eis o resumo des
8 Ideologias 191
te pensador. Nasceu perto de Berlim e, nesta cidade, estudou Direito, iniciando bri
lhante carreira de advogado, que logo foi interrompida em virtude de uma doença
dos olhos que o deixou quase cego. Dedicou-se, então, ao magistério e à investiga
ção científica, graças ao auxílio dc amigos. Em 1863 doutorou-se cm filosofia c,
logo depois, em economia. No exercício do magistério tornou-se um líder da ju
ventude radical, que muito o respeitava. Entre 1870 c 1878, suas ideias começam
a ganhar terreno na doutrina social-democrata, ideias que representam sérias ob-
jeções ao pensamento de Marx. Alarmados, os dirigentes do partido incumbem En-
gels de refutar as heréticas colocações de Dühring, e tal refutação sobrevêm sob a
forma de uma obra robusta, porém excessivamente agressiva à própria pessoa de
Dühring. Em 1878, Dühring rompe definitivamente com o socialismo marxista,
passando a defender o ideal da não eliminação do capitalismo, mas a de seus abu
sos, mediante uma incisiva intervenção do movimento operário. Rebatendo a dou
trina da luta de classes, preconiza uma etapa final da evolução da sociedade, consis
tente na conciliação das classes sociais. Combatendo o materialismo mecanicista,
afirma uma realidade dinâmico-orgânica da vida. Era ateu, e foi considerado an-
tissemita por se opor aos elementos judaicos do Cristianismo. Dentre suas obras
destacam-se: O moderno espírito dos povos, História crítica da economia política
e do socialismo c Lógica e teoria da ciência. E, sc colocamos Dühring entre os so
cialistas utópicos, apenas o fizemos para efeitos didáticos, porque assim Marx o
consideraria, embora injustificadamente. Na verdade, como já frisamos, Dühring
foi um teórico e um militante de real significado, cujo pensamento já está a mere
cer um pouco mais de atenção que não seja aquela que Engels lhe atribuiu.
3) MATERIALISMO HISTÓRICO E DITADURA DO PROLETARIADO
Bibliografia: a r d u i n i , Juvenal. O marxismo, Rio de Janeiro, z\gir, 1965. b a r b u y , He-
raldo. Marxismo e religião, São Paulo, Dominus, 1963. c a r r i l l o b a t a l l a , Tomás.
Historia crítica dei concepto de la democracia, Caracas, Monte Avila, 1983, v. 2.
c h a k h n a z á r o v , G. e iú, Krássine. Fundamentos do marxismo-leninismo, Moscou,
Progresso, 1981. e n g e l s , Friedrich. A dialética da natureza, 2. ed., Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1976, e Anti-Dühring, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. f o u l q u i é , Paul. A
dialética, Lisboa, Publicações Europa/América, 1974. h a r n e c k e r , Marta. Os concei
tos elementares do materialismo histórico, 2. ed., São Paulo, Global, 1983. m a r x , Karl.
El capitai México, Fondo dc Cultura Econômica, 1959, v. 1; c O 18 brumário de
Louis Bonaparte, trad. José Barata-Moura c Eduardo Chitas, 2. ed., Lisboa, Avante!,
1984. m a r x , Karl e e n g e l s , Friedrich. O manifesto do partido comunista, 6. ed., São
Paulo, Global, 1986. p o l i t z e r , Georges. Princípios elementares de filosofia, Lisboa,
Prelo, 1979.
192 Teoria Geral do Estado
Materialismo dialético. Vamos desmembrar esta expressão apresentando, de iní
cio, o conceito dc dialética. O scmantcma dia exprime uma ideia dc reciprocidade, de
troca de palavras, diálogo, enfim. A dialética é a arte da discussão. Ela não se confun
de com a retórica. Enquanto a retórica pretende impressionar e captar; a dialética bus
ca não apenas convencer; mas também levar à compreensão. Assim, a dialética com
preende o raciocínio que busca a verdade por intermédio da oposição c da conciliação
de contradições.
Heráclito de Efeso, filósofo do século V a.C., desenvolveu a ideia dc uma dia
lética da natureza. A natureza, dizia ele, encontra-se em constante mutação; as coi
sas e os fenômenos estão em perpétuo movimento. Heráclito é, com justiça, consi
derado o filósofo da mudança e da instabilidade, da contradição. Diz ele:
Nós somos e, ao mesmo tempo, não somos. Os contrários põem-se de acordo;
dos sons diversos resulta a mais bela harmonia. Tudo é engendrado pela luta, pelos con
trários. A natureza aprecia os contrários, e é com eles, jamais com os semelhantes, que
ela produz a harmonia. A natureza une o macho à fêmea, a pintura resulta das cores
claras e escuras, a música só se torna possível com a contraditoriedade dos sons graves
e agudos, e a gramática só se realiza com o contraste entre vogais e consoantes.
Dessa forma, Heráclito insiste na luta dos contrários no mundo da natureza,
luta essencial para o surgimento da harmonia.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, autor da notável Filosofia da história, foi com
parado a Heráclito não apenas pela semelhança das ideias, mas também pela obs
curidade com que as expunha. Realmente, o pensador hegeliano é tão profundo
quanto cerrado, pelo que nos restringiremos a apresentar, num manual didático
como este, as linhas essenciais de seu conceito de dialética.
Hegel define a dialética como a conciliação dos contrários nas coisas e no es
pírito. O processo dialético, diz ele, consta de três momentos: tese, antítese e sínte
se. A uma tese opõe-se uma antítese; o conflito destas vai originar uma síntese. As
coisas sc encontram cm perpétuo movimento, entretanto, como já afirmava Herá
clito; por isso, esta síntese, que traz consigo os germes de seu próprio contrário, vai
engendrar uma nova tese, que, por sua vez, originará uma antítese e assim por dian
te, indefinidamente.
O método dialético afirma a identidade dos contrários. Uma coisa é ela mes
ma e o seu próprio contrário. O burguês é o burguês, mas ao mesmo tempo a sua
condição de burguês é a afirmação da realidade cuja negação, cujo contrário, en
fim, é o proletário.
Karl Marx (1818-1883) foi muito influenciado pelo pensamento de Hegel; não
obstante isso, o criador do marxismo costumava ironizar o pensamento hegeliano
pelo fato deste afirmar a precedência do espírito à matéria, sendo, portanto, idealis
ta, isto é, a ideia precede a matéria, enquanto Marx afirmava a precedência da ma
8 Ideologias 193
téria sobre a ideia, o que eqüivale ao materialismo. Segundo Marx, o pensamento
de Hegel achava-se estruturado em magnífica pirâmide, cujo vértice, contudo, esta
ria voltado para baixo. Para que o pensamento hegeliano se tornasse perfeito, ad
vertia Marx, seria preciso colocá-lo na posição correta, isto é, despojado do idealis
mo. O idealismo interpreta o mundo como uma encarnação da consciência do
espírito universal, da ideia absoluta, a que se referia Hegel em sua Filosofia da his
tória, numa concepção essencialmente otimista, na qual a História da Humanidade
surge como um processo desenvolvido por uma razão universal, cujo desígnio é eter
no. Segundo a filosofia idealista, apenas a nossa consciência teria existência real.
O mundo material, a natureza, enfim, nada mais seriam do que o produto da
consciência humana.
Em O capital, assim ele critica o sistema hegeliano:
Meu método dialético não difere somente quanto ao fundamento do processo
hegeliano; é precisamente seu contrário. Para Hegel, o processo do pensamento, de que
ele faz mesmo, sob o nome de ideia, processo autônomo, criador da realidade, não é
mais do que o seu fenômeno exterior. Para mim, o mundo das ideias é apenas o mun
do material, transposto e traduzido no espírito humano. A mistificação que a dialéti
ca atingiu em Hegel em nada impede este filósofo de ter sido o primeiro a expor, de
maneira completa e consciente, as formas gerais do movimento. Mas nele a dialética
está ao contrário. É preciso invertê-la se queremos, do invólucro místico, desvendar o
núcleo racional.
Assim, o materialismo dialético marxista difere fundamentalmente da dialé
tica hegeliana, fundada sob o idealismo. Para Hegel, o processo dialético da reali
dade que denominamos objetiva não é mais do que uma manifestação da ideia.
Para Marx, entretanto, o mundo material existe independentemente da ideia, do
espírito.
Karl Marx (1818-1883)
194 Teoria Geral do Estado
Conclui-se, desde logo, que idealismo e materialismo são ideias que hurient
de se trouver ensemble... É a afirmação que G. Chakhnazárov e Iú Krássine emi
tem com muita clareza. Assim:
C) materialismo e o idealismo, a linha dc Dcmócrito e a de Platão, são duas cor
rentes contrárias, dois campos inconciliáveis em filosofia. A linha divisória entre os
dois é o seu diferente modo de resolver o problema da relação entre a matéria e a cons
ciência. O princípio essencial do materialismo é o reconhecimento de que o fator pri
mário é a matéria, e a consciência, o secundário. O ser determina a consciência, dizem
os materialistas, baseando-se na experiência social e nas ciências naturais. E, inversa
mente, o princípio essencial do idealismo c a afirmação dc que o fator primário é a
consciência, c a matéria, o ser, o secundário. Pela extraordinária importância que tem,
para determinar as posições filosóficas, o problema da relação entre a matéria e a cons
ciência foi qualificado como a questão fundamental da filosofia. Da resposta que se
lhe dê depende também a solução das outras questões relativas à concepção do mun
do. Se se aceita o primado da matéria e a sua independência em relação à consciência,
reconhece-se implicitamente que o movimento, o espaço e o tempo são formas objeti
vas da existência da matéria. Se se considera que a matéria é o secundário, que deriva
da consciência, então há que ver o movimento, o espaço e o tempo como formas da
consciência, do espírito. Consideremos a questão das leis científicas: a solução mate
rialista da questão fundamental da filosofia leva diretamente a reconhecer a objetivi
dade dessas leis. A solução idealista obriga a vê-las como uma manifestação da razão
universal, ou como o fruto da atividade da consciência humana. Não há problema fi
losófico cuja solução não dependa da maneira como sc resolva a questão fundamen
tal da filosofia, [grifo nosso]
No dizer de Marx, todas as filosofias anteriores ao marxismo são alienações
puras, sendo impotentes para a ação sobre as condições do mundo real. Todas as
filosofias que contemplam o mundo para justificá-lo são meras alienações. Assim é
que Marx decreta a morte da filosofia contemplativa; a filosofia marxista é muito
mais ideologia do que filosofia, pois se volta para a ação, tentando explicar como
as coisas realmente são, como e por que o homem está alienado. Em sua 1 Ia Tese
sobre Feuerbach, Marx emite uma frase curiosa: “Os filósofos não têm feito nada
além de interpretar o mundo, cada um à sua maneira, quando, na verdade, o im
portante é transformá-lo!”. Será que aqui Marx defende a necessidade da ação di
reta apregoada pelos anarquistas ou sindicalistas revolucionários? Não, o que ele
pretende, em verdade, é alertar para a necessidade de um conhecimento prévio da
realidade que se pretende transformar. Ao contrário do que se pode pensar, Marx
foi notável teórico, tendo deixado uma infinidade de obras de real significado para
a interpretação da História. Assim, Marta Harnecker, exegeta contemporânea do
8 Ideologias 195
pensamento de iMarx, chama a atenção para a inconveniência de uma interpreta
ção frívola do referido texto, buscando o significado mais profundo deste:
A 11a Tese sobre Feuerbach não anuncia a morte de toda teoria, mas uma rup
tura com as teorias a respeito do homem, da sociedade e sua história, que até esse mo
mento eram teorias filosóficas, que se limitavam a contemplar e interpretar o mundo,
sendo incapazes de transformá-lo porque não conheciam o mecanismo de funciona
mento das sociedades. O que até esse momento existia, em relação à sociedade e sua
história, eram: teorias filosóficas acerca da História ou filosofias da História, ou então
narrações históricas c análises sociológicas que sc limitavam a descrever os fatos que
ocorriam nas diferentes sociedades. O que não existia era um conhecimento científico
da sociedade e sua história. A 1T‘ Tese sobre Feuerbach indica, portanto, uma ruptu
ra com todas as teorias filosóficas sobre o homem e a História, que não fazem mais do
que interpretar o mundo, e anuncia a chegada de uma teoria científica nova, a teoria
científica da História ou materialismo histórico, que funda um campo científico novo:
a ciência da História, da mesma maneira que a teoria científica de Cíalileu, funda um
novo campo científico, a ciência física.
Friedrich Engcls, materialista alemão c parceiro intelectual de Karl Marx, de
fine a dialética materialista como a ciência “das leis mais gerais que regem a dinâ
mica e o desenvolvimento da natureza, da sociedade e do pensamento”. Os adep
tos do materialismo dialético afirmam que a matéria não é uma realidade passiva
e inerte, como afirmam os metafísicos, e que somente se transforma sob a ação de
forças que sobre ela atuam; não, ela é essencialmente dinamismo e movimento. O
movimento é o modo de existência da matéria, a maneira de ser a matéria. Não há
matéria sem movimento e muito menos movimento sem matéria.
Em Anti-Dühring, escrito para refutar as ideias do alemão Karl Eugen Dühring,
Engels assim se referiu ao tema matéria/movimento:
Nunca, em parte alguma, existiu, nem pode existir, matéria sem movimento. Mo
vimento no espaço, movimento mecânico das massas mais pequenas sobre cada um
dos corpos celestes, vibrações moleculares sob a forma de calor, de corrente elétrica
ou magnética, análise e síntese química, vida orgânica; é numa ou em outra dessas for
mas de movimento, ou em várias ao mesmo tempo, que se encontra cada átomo da
matéria no mundo em cada momento dado. A matéria sem movimento é tão inconce
bível como o movimento sem matéria. Imaginar um estado da matéria sem movimen
to é, consequentemente, uma das ideias mais vazias e insípidas que há, um puro sonho
febril.
Enquanto para os seguidores de Aristóteles a matéria é causa material, isto é,
aquilo de que as coisas são feitas, para os marxistas e os materialistas em geral a
196 Teoria Geral do Estado
matéria é causa eficiente, isto é, o princípio que faz as coisas. O materialismo sem
pre reduz o homem à sua atividade sensorial; suas ideias e sentimentos são produ
tos de seus sentidos. Personalidade, religião, filosofia e artes são o puro resultado
dos sentidos. Depreende-se disso que o marxismo derivou, em grande parte, do em-
pirismo e do sensualismo. O empirismo é a teoria do conhecimento segundo a qual
a única fonte do conhecimento é a experiência sensível, ao passo que, para o sen
sualismo, a fonte exclusiva do conhecimento são os sentidos corporais, eliminada
qualquer atividade autônoma do espírito.
Das mais interessantes é a tese sobre o materialismo no pensamento antigo
formulada por Heraldo Barbuy, em sua obra Marxismo e religião. Diz ele que o
sentido original da palavra matéria é bem diferente do sentido atual. Matéria deri
va de mater, indicando o princípio materno. Matéria foi a palavra utilizada pelos
latinos para traduzir o termo grego hyle, que significa floresta, madeira e fecundi-
dade (p. ex., a expressão hileia amazônica). Vale lembrar que madeira é tradução
portuguesa de matéria.
Pois bem, nos filósofos clássicos a expressão matéria é sempre tomada no sen
tido de princípio passivo e de matriz; só assume existência efetiva quando recebe
uma forma, pois, em Aristóteles e nos escolásticos, todos os seres relativos são com
postos de matéria e dc forma. Fala-se, então, em matéria-prima ou matéria secun-
da, mas não se fala em matéria no sentido que os materialistas atribuem à palavra.
Não há, em verdade, no grego, nenhuma palavra que signifique matéria no senti
do materialista contemporâneo. Portanto, conclui Barbuy, não há maior absurdo
do que falar em materialismo grego, como o fazem muitos autores modernos.
Já é hora, porém, de dizermos algo a respeito do materialismo histórico.
Vimos que Karl Marx é materialista; sua doutrina se opõe ao idealismo, que
rejeita a precedência da matéria ao espírito. Mas o marxismo apresenta uma carac
terística que lhe é essencial: preocupado, antes de mais nada, com as graves ques
tões sociais da época em que viveu, Marx não se preocupa com questões de ordem
meramente filosófica, especulativa, metafísica, enfim. O materialismo marxista vem
a ser, isto sim, uma concepção explicativa da História que afirma, fundamentalmen
te, que não são as ideias que governam o mundo, c sim as ideias é que dependem
das condições econômicas da sociedade, e assim da própria matéria. Segundo Marx,
a economia engloba o conjunto dos esforços do homem para se apropriar da ma
téria e explorá-la, sendo ela, a economia, que constitui a estrutura essencial das re
lações sociais, ao passo que as ideologias consistem em meras superestruturas con
dicionadas pela infraestrutura econômica.
E se a sociedade muda, dizem os marxistas, também o homem, como substân
cia indivisa dotada da razão, na magistral definição de Boécio, também está em
constante evolução. Dessa forma, concluem, afirmar que os homens jamais pode
riam viver numa sociedade comunista, em face de seu egoísmo, consiste em assu
mir uma indesejável postura metafísica de identidade e imobilismo, pois o homem,
8 Ideologias 197
evoluído psicologicamente, estará pronto para a convivência despojada do fator
propriedade.
A postura metafísica é severamente criticada pelos marxistas. No dizer de En
gels, para o metafísico os objetos e suas imagens no pensamento, os conceitos, são
objetos de investigação isolados, imóveis, fixos, enfocados uns após outros, como
algo determinado e eterno. Pensa apenas em antíteses desconexas. Para ele, das duas
uma: sim, sim; não, não, o resto sobra...
Já para Politzer, o enfoque metafísico poderia, ironicamente, ser comparado
ao exemplo de uma pessoa que adquire um par de sapatos amarelos. Ao fim de cer
to tempo, após uso prolongado e muitos consertos, a pessoa continuará a se refe
rir a seus sapatos amarelos, embora estes já estejam deformados, manchados e des-
coloridos. Ela dirá: “vou calçar meus sapatos amarelos”, como se eles estivessem,
ainda, novos... Tal pessoa não considerou as mudanças operadas em seu calçado,
para considerar apenas a identidade. Assim é, diz Politzer, a postura do metafísico,
que não admite o advento de um novo homem, perfeitamente integrado numa so
ciedade comunista.
Assim, para Marx, a ciência não é mera compreensão ou contemplação, mas
um conhecimento eficaz traduzido numa técnica. A explicação do fenômeno histó
rico é orientada para a praxis, a ação.
Embora a política, a religião, a filosofia e a arte possam até agir sobre a pró
pria economia, será esta, em última análise, a determinante final da evolução his
tórica. Todas as transformações históricas fundamentais, sejam quais forem suas
características aparentes, resultam, segundo o marxismo, de alterações nos méto
dos de produção e de troca. Cada sistema econômico cresce até um ponto determi
nado, a partir do qual surgem em seu seio contradições e fraquezas que acarretam
sua decadência. Paralelamente vão desenvolvendo-se fundamentos de um sistema
oposto, até que o antigo seja engolfado por este.
Assim, a História é uma seqüência de lutas de classes, opostas entre si como
as fases do processo dialético.
Doutrina Engels:
[...] percebe-se que a História, em sua totalidade, não é mais do que a própria histó
ria da luta de classes; que estas classes sociais que se digladiam são, a cada momento,
o produto das relações de produção e troca, das relações econômicas, que são sempre
a infraestrutura da sociedade que explica a superestrutura das instituições políticas,
religiosas c filosóficas.
Na Antiguidade, dizem os marxistas, lutavam amos contra escravos, patrícios
contra plebeus; 11a Idade Média, mestres de corporações contra jornaleiros; 11a Ida
de Contemporânea, capitalistas contra proletários. Amos, patrícios, mestres de cor
porações e capitalistas detiveram e detêm os meios de produção, enquanto a cias
198 Teoria Geral do Estado
se dominada sempre dependeu de um salário, vendendo a força de seus braços para
sobreviver. Ora, o valor das utilidades é determinado pela quantidade de trabalho
necessária para produzi-las. Ocorre que o trabalhador não recebe o valor total da
quilo que o seu trabalho cria; ao contrário, recebe um salário suficiente apenas para
prover sua subsistência e sua reprodução, daí a expressão proletariado, categoria
social que, na antiga Roma, era formada por pessoas completamente desprovidas
de bens e cuja única finalidade era constituir prole, isto é, dar filhos à pátria e à
guerra. O proletário ou capite census não tinha o censo necessário para entrar nas
classes e, como acentua Duruy, não se confundia com o oerarius, cujos haveres, por
vezes consideráveis, não impediam que seus proprietários, em razão da origem, fos
sem privados dc certos direitos. Proletários e oerarius tinham as mesmas incapaci-
dades políticas, mas os tribunos falavam apenas a favor dos proletários.
A diferença entre o valor daquilo que o trabalhador produz e o que ele rece
be é a plus valia (mais-valia), que vai para as mãos do capitalista. É o lucro.
Quando o capitalismo e seu escudo protetor - o Estado - receberem o golpe
dc morte das mãos do proletariado, ocorrerá uma fase de transição denominada
ditadura do proletariado. Será o império do socialismo de Estado, no qual os bens
de produção pertencerão ao Estado, podendo os indivíduos possuir apenas bens de
consumo. Depois, sim, virá o verdadeiro comunismo, meta final da evolução histó
rica, retorno às primeiras comunidades humanas, igualmente comunistas. Então,
não haverá classes sociais; ninguém viverá da propriedade; todos viverão do seu
trabalho. O sistema de salários será extinto; cada pessoa trabalhará de acordo com
sua capacidade e receberá uma quantia proporcional às suas necessidades, sendo,
portanto, da essência da sociedade comunista o pagamento conforme as necessida
des de cada um. Segundo Engels, o Estado, então, terá desaparecido e passado a
pertencer ao museu de antiguidades da História, ao lado do machado de bronze e
da roca de fiar.
Enquanto esta visão paradisíaca não se configura, vejamos, um pouco mais de
talhadamente, em que consiste essa ditadura do proletariado. Para o marxismo, o
Estado nada mais é do que o reflexo dc uma sociedade dividida cm classes antagô
nicas, que se digladiam velada ou ostensivamente. O Estado seria o aparato utiliza
do pelas classes dominantes para defender, num dado momento histórico, sua proprie
dade e seus interesses. O Estado, assim, é o resultado de antagonismos sociais
incontroláveis. Ora, se o Estado encontra seu fundamento e sua sustentação na luta
de classes, torna-se claro que o desaparecimento das classes determinará o surgimen
to de um novo estágio histórico, no qual o Estado será perfeitamente dispensável.
Como as classes sociais têm origem na propriedade privada dos meios de produção,
segundo o marxismo, o desaparecimento do Estado coincidirá com a desaparição
da propriedade privada. O desaparecimento do Estado capitalista, entretanto, será
precedido de um fenômeno marcante, qual seja, a ditadura do proletariado. Segun
do o próprio Marx, anotando o Programa do Partido Operário Alemão:
8 Ideologias 199
Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista renasce o período da trans
formação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também
um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura re
volucionária do proletariado.
Tal ditadura será exercida por uma classe que jamais possuiu coisa alguma e
que, portanto, se acha desprovida de maiores ambições. Barbuy anota, com muita
perspicácia, a natureza do proletariado na concepção comunista:
[...] o proletariado tem de original, segundo o marxismo, não ser uma classe como as
demais, que no passado lutaram pelo poder: não pode nem mesmo ser chamado pro
priamente de classe; ele não é nada, não tem nada; não tem modo de existência parti
cular; é a negação de tudo quanto já foi categoria histórica, de tudo quanto já foi clas
se no sentido próprio do termo. É o anonimato absoluto, cujo caráter internacional
tem como denominador comum ser a massa dos oprimidos, dos miseráveis, dos que
não têm, nem são nada. Sendo a negação de tudo, o proletariado não pode, como as
antigas classes dominantes, querer impor um estilo de vida, que não possui. Por isso,
o advento fatal do proletariado, previsto por Marx (fatal porque dialeticamente ine
vitável), significará a destruição dc tudo quanto existiu anteriormente, dc todos os mo
delos dc vida, dc todas as formas dc apropriação da riqueza, dc todas as garantias dc
existência individual. É o estabelecimento, dentro de certo prazo, do coletivismo ab
soluto. Sendo o proletariado a classe mais baixa das sociedades atuais (está quase ao
nível do subterrâneo social chamado Lumpenproletariat)> quando cie se levantar, não
poderá deixar de abater tudo quanto está acima de si. E, segundo a dialética marxis
ta, não depende da vontade de ninguém impedir essa revolução total: porque a con
tradição burguesia versus proletariado há dc chegar a um ponto em que o capitalismo
não poderá sequer manter o proletariado como classe oprimida; em todos os tempos
passados, ensinam Marx e Engels, os senhores mantiveram os escravos, pelo menos
ao nível dc subsistência. Mas o capitalismo tem tais leis internas dc acumulação c con
centração do capital (longamente estudadas por Marx no fim do L. 1° d 'O Capital),
que farão com que o proletariado desça cada vez mais na escala social; segundo o Ma
nifesto, a pauperização gradual tornará completamente impossível a subsistência do
proletariado no regime capitalista dc produção c, nesse dia, a revolução sc dará por si
mesma.
Marx reconhece, a par do proletariado propriamente dito, uma camada so
cial difusa, o lumpenproletariaty que qualifica dc “lixo de todas as classes” (do ale
mão himpen, farrapo, trapo, e proletariat, proletariado, daí lumpig, esfarrapado,
miserável, malvado, c lumperei, velhacaria, patifaria). Tal expressão, já vernaculi-
zada como lumpemproletariado, denomina a “massa informe de indivíduos arrui
nados e aventureiros saídos da burguesia, vadios, soldados desmobilizados, malfei-
200 Teoria Geral do Estado
rores recém-saídos da prisão, batedores de carteiras, rufiões, mendigos e tantos
mais”. Os autores marxistas consideram o lumpemproletariado um elemento de
cisivo na ascensão violenta dos fascismos, de modo que, nas condições extremas de
crise e desintegração sociais de uma sociedade capitalista, os déclassés ou massas
empobrecidas da classe média baixa, que perderam o sentido de sua classe social,
tornam-se uma excelente massa de manobra que os fascismos utilizam na conquis
ta do poder. Marx faz referência ao lumpemproletariado em duas passagens bas
tante claras, assim:
Nestes cortejos que o grande Moniteur oficial c os pequenos moniteurs privados
dc Bonapartc tinham, naturalmente, que festejar como cortejos triunfais, era constan
temente acompanhado por filiados da Sociedade do 10 de dezembro. Esta sociedade
data do ano de 1849. Sob o pretexto de criar uma sociedade de beneficência, organi
zou-se o lumpemproletariado de Paris em seções secretas, cada uma das quais dirigi
da por agentes bonapartistas e um general bonapartista à cabeça de todas. Juntamen
te com roués (devassos) arruinados, com meios de subsistência equívocos e equívoca
proveniência, juntamente com rebentos degenerados e aventureiros da burguesia, vaga
bundos, soldados desmobilizados, reclusos postos em liberdade, galerianos desertores,
vigaristas, charlatães, lazzaroni, carteiristas, burlões, jogadores, maquereaus (cáftens),
donos de bordéis, carregadores, escribas, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores,
caldeireiros, mendigos; numa palavra, toda essa massa indefinida, desagregada, flu
tuante a que os franceses chamam Ia bohcme; deste elemento, com ele aparentado, for
mou Bonapartc a cepa da Sociedade do 10 dc dezembro. Sociedade de Beneficência na
medida cm que todos os membros sentiam, tal como Bonapartc, a ncccssidadc dc be
neficiar à custa da nação trabalhadora. Este Bonapartc, que sc constitui cm chefe do
lumpemproletariado, que só neste encontra de forma maciça os interesses que ele pes
soalmente persegue, que reconhece nestas fezes, detritos e escória de todas as classes
a única classe em que pode apoiar-se incondicionalmente, é o autêntico Bonapartc, o
Bonapartc sans phrase. Velho roué manhoso, concebe a vida histórica dos povos e as
ações principais destes como uma comédia, no sentido mais ordinário da palavra, como
uma mascarada, em que os grandes trajos, palavras e poses servem de máscara à ca
nalhice mais baixa. Aconteceu assim no seu cortejo a Estrasburgo, em que o abutre
suíço amestrado representou a águia napoleônica. Para a sua incursão em Boulogne,
enfia uns quantos lacaios de Lordes cm uniformes franceses. Eles representam o exér
cito. Na sua Sociedade do 10 de dezembro reúne 10.000 miseráveis do lumpen, que
teriam dc representar o povo, como Klaus Zcttcl, o leão. (Karl Marx, 0 18 brumário
de Louis Bonapartc, p. 79-80) [grifo nosso]
Os últimos despojos da superpopulação relativa são, finalmente, os que se refu
giam na órbita do pauperismo: Deixando de lado os vagabundos, os criminosos, as
prostitutas, numa palavra, o proletariado esfarrapado (lumpenproletariat) em sentido
8 Ideologias 201
estrito, esta camada social se acha formada por três categorias: primeira, pessoas ca
pacitadas para o trabalho. Basta consultar superficialmente a estatística do pauperis-
mo inglês para se convencer de que o número destas pessoas aumenta com todas as
crises e diminui quando os negócios sc recuperam; segunda, órfãos e filhos de pobres.
Estes seres são candidatos ao exercito dc reserva da indústria, c sempre cm grande ati
vidade, como cm 1860, por exemplo, quando são arrolados prontamente c cm massa
dos quadros dc trabalhadores da ativa; terceira: degradados, despojos, incapazes para
o trabalho. São seres condenados a desaparecer, em razão da imobilidade que lhes im
põe a divisão do trabalho, dos operários que sobrevivem à idade normal de sua clas
se e, finalmente, das vítimas da indústria, cujo número aumenta com as máquinas pe
rigosas, as minas, as indústrias químicas etc., dos mutilados, os doentes, as viúvas etc.
() pauperismo é o asilo de inválidos do exército de operários em atividade e o peso
morto do exército de reserva da indústria. Sua existência segue implícita na existência
da superpopulação relativa, sua necessidade em sua necessidade, e com ela constitui
uma das condições de vida da produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza.
(Karl Marx. El capital, p. 545-6) [grifo nosso]
O proletariado dirigirá a tarefa de libertação das massas trabalhadoras explo
radas, apoderando-se do aparelho estatal e utilizando-o para dominar, definitiva
mente, a burguesia. A revolução proletária, parteira da História, segundo pitores
ca observação do próprio Marx, não implicará, contudo, a imediata desaparição
do Estado; pelo contrário, incidirá no reforço deste. Seja como for, a doutrina mar
xista pressupõe que a ditadura do proletariado não é mera substituição daqueles
que exerciam o poder político. Não, o poder proletário é original, pois, alterando
a própria natureza do poder político, vai criar uma forma original de poder, rumo
à verdadeira metamorfose do Estado. A teoria marxista do Estado não chegou, cm
verdade, a delinear, de forma mais concreta, um modelo acabado de instituições
político-jurídicas referente à organização do proletariado como agente de uma di
tadura. Por isso, a partir do momento em que a revolução sentiu a necessidade de
novas formas jurídico-políticas, tomou realmente a importância de uma Constitui
ção, destinada a fundamentar o novo Estado socialista.
Assim, a ditadura do proletariado não é uma forma política dc caráter demo
crático e, muito menos, comunista. A expressão ditadura do proletariado, criada
pelo próprio Marx, marca o período intermediário entre uma fase capitalista e ou
tra comunista. Tal ditadura é inelutável, nada pode evitá-la. O proletariado inter
vém despoticamente - a expressão é do próprio Marx - no direito de propriedade
e nas relações de produção, eliminando, ditatorialmente, a oposição capitalista-bur-
guesa.
Seja como for, o desaparecimento definitivo do Estado será lento e gradual,
na concepção marxista. Como assinala com clareza Farberov, referido por Camillo
Batalla:
202 Teoria Geral do Estado
Marx e Lenin, ao estabelecercm a lei da extinção do Estado, ressaltaram, sem
pre, que isto envolveria um processo histórico demorado, o qual, porém, conduziria
ao desaparecimento das diferenças entre as classes sociais, e à abundância de bens ma
teriais e culturais a serem distribuídos conforme as necessidades de cada um, a um ní
vel tão alto dc conscientização e organização sociais que a obediência natural às re
gras dc convivência será uma necessidade permanente para todos. Entretanto, a sociedade
socialista ainda não alcançou essa fase dc desenvolvimento.
Enquanto, porém, houver presença da ameaça representada pelos Estados ca
pitalistas, o Estado socialista não desaparecerá. Pelo contrário, deverá reforçar o
seu poder, até a consolidação mundial do comunismo.
A verdade é que, se Bakunin buscava, mediante uma revolução violenta, a su
pressão do Estado para um desenvolvimento original da sociedade, Marx preten
deu que o Estado poderia ser utilizado mediante uma ditadura proletária, ponto
inicial da construção paulatina do socialismo. Desaparecidas as classes sociais, de
sapareceria o Estado, cedendo lugar a uma administração de bens espontânea. En
tretanto, a experiência russa demonstrou muito bem que, por intermédio da dita
dura do proletariado marxista, chega-se a um capitalismo de Estado, mas não ao
comunismo. A celebérrima ditadura do proletariado não se tornou uma ditadura
do proletariado, mas uma ditadura sobre o proletariado.
Os objetivos do leninismo não se concretizaram e, além disso, se mostraram
contrários ao marxismo puro, a partir do momento em que desconsideraram a afir
mação marxista de que a revolução proletária seria viável apenas quando cumpri
das as condições objetivas da deflagração do movimento, quais sejam, adiantado
grau de industrialização do Estado capitalista e insustentável concentração do capi
tal nas mãos da classe dominante. Ora, a Rússia dc 1917, cm guerra com o Império
Austro-Húngaro ou Alemanha, ainda era um Estado feudal, longe do estágio de
um capitalismo avançado; mesmo assim tentou-se adaptar um momento de crise
político-econômica a um princípio que sempre se afirmou científico! Foram seten
ta anos de autoritarismo que desembocaram, finalmente, na dolorosa crise do so
cialismo soviético, submetido a uma casta parasitária - a odiosa Nomenklatura
verdadeira gerontocracia ou governo “daqueles que nunca se aposentam e raramen
te morrem”, e que usufruía de todas as benesses de um verdadeiro regime capita
lista, enquanto a economia rumava, celeremente, para a catástrofe.
A Perestroika e a Glasnost dc Mikhail Gorbachev puseram a nu a constran
gedora situação, e a reação popular ensejada pela abertura política foi tamanha
que a própria União Soviética soçobrou, em prazo tão curto que os mais ferrenhos
c otimistas inimigos do regime não poderiam, jamais, imaginar!
Não se pode, todavia, tirar ilações apressadas c, consequentemente, equivo
cadas do ocorrido na ex-União Soviética. Sim, o Estado leninista acabou para sem
pre, mas o marxismo puro, como ideologia preconizadora de uma sociedade sem
8 Ideologias 203
classes, embora ainda utópico, permanece íntegro, porque seus postulados, distor
cidos pelo leninismo, ainda não foram totalmente desmentidos, pelo menos só com
a ruína do Estado soviético.
4) ANARQUISMO E SINDICALISMO
Bibliografia: b a k u n i n , Mikhail. Estatismo y anarquia, Madrid, Júcar, 1976. b o b b i o ,
Norberto e m a t t e u c c i , Nicola. Diccionario dc política, Madrid, Siglo XXI, 1985, v. 1.
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t o u c h a r d , Jean. História das idéias políticas, Lisboa, Publicações Europa/América,
1976, v. 7. z o c c o l i , Ettore. I 'anarquia, Turim, Fratelli Bocca, 1907.
Etimologicamente, o vocábulo anarquismo deriva do grego a = negação + ar-
che = governo, isto é, inexistência, desnecessidade ou repúdio a qualquer forma de
governo, dominação do homem sobre seus semelhantes. Como assinala Gian Ma
rio Bravo, em verbete no Dicionário de política, dirigido por Norberto Bobbio, é
impossível dar uma definição precisa do anarquismo, porque o ideal a que se refe
re o termo jamais sc consolida, representando, sempre, não um objetivo cumprido
e elaborado em definitivo, e sim uma aspiração permanente. Ao vocábulo anarquis
mo, entretanto, prossegue, sempre foi associada a ideia de uma sociedade livre de
toda sujeição política autoritária, na qual o homem afirmar-se-ia, em razão de sua
própria atividade, desenvolvida livremente, num contexto sociopolítico no qual to
dos seriam, igualmente, livres. Seja como for, é fácil depreender que por anarquis
mo entende-se toda doutrina que afirme ser o poder político, a organização social e
a autoridade religiosa perfeitamente dispensáveis. Neste sentido, o próprio marxis
mo antevê uma sociedade futura desprovida de normas coercitivas de conduta, im
postas por uma classe dominante, sob a égide do regime comunista. Não se deve ca
talogar, entretanto, o marxismo como uma espécie de anarquismo, mesmo porque
Marx destacava sua doutrina das demais doutrinas antiestatais por considerá-la a
204 Teoria Geral do Estado
única verdadeiramente científica, nominando-a, notoriamente, socialismo científico.
Por outro lado, não existe um anarquismo apenas, mas vários, como veremos.
Mulford Q. Sibley destaca algumas características comuns aos anarquismos:
a) cooperação voluntária e ajuda mútua na vida do homem, com repúdio à coopera
ção forçada, coercitiva; b) repulsa ao Estado, principal obstáculo à realização indi
vidual plena do homem; c) divergencia quanto à aceitação da propriedade indivi
dual, havendo um anarquismo individualista, defensor intransigente da propriedade
privada das coisas materiais, e um anarquismo comunista, que sustenta dever a pro
priedade ser administrada por grupos voluntários. Referido autor compilou suges
tivas conceituações do anarquismo, assim: “etiologicamente, o anarquismo pode ser
definido como descrença da necessidade da sociedade constituída” (E. V. Zenker);
“doutrina segundo a qual todos os negócios dos homens devem ser conduzidos pe
los indivíduos ou por associações voluntárias, e o Estado deve ser abolido” (B. R.
Tucker); “teoria que se opõe a qualquer tipo de governo forçado” (Bertrand Rus-
sel). Enfim, o anarquismo vem a ser um ideal que propugna, desde logo, a liberta
ção de todo poder superior, seja qual for sua natureza, ideológica, política, social ou
econômica. Talvez por isto Sébastien Faure anotou, por volta de 1920, na Enciclo
pédia Anarquista: “o anarquismo se resume a uma só palavra: LIBERDADE”.
As origens históricas do anarquismo (ou anarquismos) exigem, em sua des
crição, uma dicotomia inicial quanto às espécies de anarquismo: a) anarquismo ro
mântico; b) anarquismo pragmático. O anarquismo romântico é aquele que se vol
ta para a vida contemplativa, mostrando-se indiferente à organização social; não a
aceita, porém, não a agride. Sua primeira manifestação pode ser encontrada na an
tiga Grécia, no século V a.C., com os cínicos, corrente de pensamento que teve em
Diógenes um de seus expoentes. Afirmavam os cínicos que o homem deve viver de
acordo com a natureza, sem a preocupação de obter bens terrenos, respeitar con
venções ou submeter-se às leis e convenções sociais. Seriam, estes cínicos, os hip
pies da época, não sendo difícil perceber, então, a raiz da palavra cínico: ela deriva
de cinos, que, em grego, significa cão, pois a sociedade, não aceitando os cínicos
em seu estranho modo de vida, mais os assemelharia aos cães.
Também os estoicos (vida espontânea, conforme a natureza) e os epicuristas
(exaltação do prazer individual e consequentemente recusa das imposições sociais)
foram correntes antecessoras do moderno anarquismo.
O cristianismo, em sua feição original, não deixou de apresentar simpatia pela
afirmação de uma igualdade essencial entre os homens, aspirando a uma fraterni
dade universal e à condenação da luta pelo poder. Santo Agostinho em sua obra A
cidade de Deus afirma a ilegitimidade de todo poder de um homem sobre o outro.
Diz ele: “Deus concedeu aos homens o domínio sobre os irracionais, não sobre os
outros homens”. Na esteira do pensamento de Santo Agostinho vêm Isidoro de Se-
vilha e Dante Alighieri, com a aspiração a um Estado mundial governado pela Igre
ja Católica, no qual o homem seria realmente livre, porque convertido ao cristia
8 Ideologias 205
nismo. Entretanto, o cristianismo anárquico original vai perdendo sua pureza
doutrinária já com a afirmação de São Paulo, que, na Epístola aos Romanos (13,1-7),
condena as tendências anarquistas do cristianismo primitivo e afirma o dever cris
tão de obediência à autoridade terrena, consubstanciado nas sentenças: “Dar a Cé
sar o que e de César e a Deus o que é de Deus” e “Todo o poder vem de Deus”.
Muitos séculos mais tarde encontraremos, à parte as velhas utopias dc Tho-
mas Morus e Tommaso Campanella, as concepções vigorosas dos anarquistas Pier-
re-Joseph Proudhon (1809-1865), Mikhail Bakunin (1814-1876), e Piotr Kropo-
tkin (1842-1921). Embora a obra de Proudhon esteja, hoje, um tanto esquecida,
dela restou uma frase célebre: “A propriedade é um roubo!”, que não era sua, mas
de um girondino, também francês, Brissot de Warville. Proudhon foi o primeiro teó
rico a autodenominar-se anarquista, colocando um hífen entre os semantemas an
e arquista, an-arquista, procurando firmar bem que o ideal a que ele aspirava seria
o de uma vida comunitária sem governo, o que não significaria, contudo, desor
dem, halbúrdia, desorganização. Adversário do capitalismo, Proudhon preconiza
va a organização de estabelecimentos de crédito populares, que concederia crédi
tos gratuitos a todos aqueles que desejassem tornar-se produtores. Advogava, cm
princípio, a tutela dos interesses dos pequenos produtores, que desejassem plena
autonom ia cm sua atividade, mediante sociedades dc crédito mútuo, como visto.
Daí o apoio às suas ideias proporcionado por profissionais de nível superior e al
tamente qualificados, em busca de independência econômica. Ferrenho adversário
do Estado, preconizava um federalismo singular, mediante a divisão da França em
doze regiões independentes. Por defender os direitos de uma classe média, forma
da por trabalhadores independentes, e pressionada tanto pela alta finança como
pelos operários revolucionários de nível mais baixo, foi considerado como invo
luntário precursor do fascismo.
Quanto a Mikahil Bakunin, embora um dos expoentes do anarquismo, pro
vinha da aristocracia russa, de ancestrais czaristas e latifundiários. Iniciado na car
reira militar, logo a abandonou, dedicando-se ao estudo da filosofia na Alemanha,
na França, na Bélgica c na Suíça. Logo simpatizou com a doutrina dc Proudhon e
a dc Marx, incensando, no primeiro, a afirmação libertária e a negação do Estado
e, no segundo, a concepção materialista da História e a ditadura do proletariado,
que ele rebatizou com o nome de ditadura invisível, tudo isto matizado ainda mais
pelo nacionalismo eslavo. Após muitas vicissitudes, inevitáveis na carreira de um
homem de ação, ingressou, em 1868, na Primeira Internacional, controlada por
Marx, da qual foi expulso, com seus partidários, em 1872. Cunhado pelo próprio
Bakunin, é nesta época que surge o adjetivo anarquista, aplicado aos seus seguido
res. Dotado de temperamento violento, não tardaria, com efeito, a dissentir da orien
tação dada por Marx ao movimento revolucionário, não se restringindo a refrear
sua antipatia ao campo verbal, pendor que demonstrou no auge da cisão anarquis
206 Teoria Geral do Estado
tas/marxistas, ao agredir com bengaladas, segundo se afirmou, o próprio Marx, que
o havia acusado de pertencer à polícia secreta da Rússia czarista.
Bakunin advogava a imediata supressão do Estado, com a subsequente im
plantação dc um coletivismo representado pela tomada violenta dos meios de pro
dução pelos trabalhadores, ao contrário daquilo que fora previsto por Marx, ou
seja, a mera encampação dos meios de produção pelo Estado e a organização de
uma ditadura do proletariado. Com tal concepção, não foi difícil para Bakunin ar
regimentar toda sorte de intelectuais e profissionais frustrados da classe média, sem
fama, sem trabalho e, muito menos, dinheiro. Desesperados, eles viam na abolição
imediata e radical do Estado uma solução muito mais promissora do que aquela
da desaparição gradual do Estado, desenhada por Marx.
Afirmava Bakunin, então:
A destruição do Estado permitirá o surgimento de relações sociais livres, funda
das na solidariedade inata do homem e na celebração de contratos espontâneos e as
sociações voluntárias. A nova sociedade ensejará o aparecimento de associações natu
rais, em âmbito cada vez mais amplo, até que seja efetuada a completa unificação
internacional, livre de explorações e de injustiças.
Admirador sincero de Bakunin, Piotr ou Pedro Kropotkin também era des
cendente da nobreza russa, mais precisamente da primeira dinastia da Rússia, fun
dada pelo príncipe Rurik, oriundo da Escandinávia. Ao contrário de Bakunin, Kro
potkin era um verdadeiro intelectual, que cultivava a geografia e a zoologia, e que,
em sua profunda erudição, não deixava de ser um sonhador. Porque para ele o ho
mem é bom, naturalmente honesto, e desde que educado nos princípios sadios do
anarquismo, cada qual não recusaria, em prol do bem de todos, dedicar-se, de cor
po e alma, ao trabalho comunitário. Kropotkin não foi um revolucionário 110 sen
tido estrito do termo, embora curtindo a desdita do cárcere comum aos agitadores,
durante seis anos. Ao longo de suas obras, especialmente A conquista do pão e Me
mórias de um revolucionário, ele idealiza um permanente estado de alerta da so
ciedade contra a exploração do homem pelo homem, e contra o Estado e o capitalis
mo, defendendo, por outro lado, na obra Ajuda mútua, a tese de que, na sociedade
humana, mesmo nos tempos pré-históricos, o auxílio mútuo entre as pessoas seria
um fator natural da evolução, mais do que a luta pela vida. Seu anarquismo não
visa, já se vê, a abolição imediata do Estado e, por conseqüência, do poder, mas
uma denúncia permanente contra as injustiças sociais.
Quem, até agora, não ficou impressionado ou estarrecido com as concepções
de um Proudhon, de um Bakunin ou de um Kropotkin, ficará, 110 mínimo, alarma
do com as ideias de Sergei Netchaiev (1847-1882). Estudante na Universidade de
São Petersburgo, logo tornou-se adepto de Babeuf, Blanqui e Bakunin. Afirmava
que qualquer meio é válido para a defesa de uma boa causa; por isso devemos acres
8 Ideologias 207
centar à sua lista de mestres o notório Nicolau Maquiavel, que já dissera, séculos
antes: “O fim justifica os meios”. Em nome dos princípios anarquistas revolucio
nários, tudo seria válido para este enfant terrible do anarquismo, que, entre inúme
ras façanhas, como a de escapar da inexpugnável fortaleza dc São Pedro e São Pau
lo, onde cstivera preso, assassinou, pessoalmente, uma camarada que se recusara a
obedecê-lo incondicionalmente. De sua autoria, certamente, é o famoso Catecismo
do revolucionário, que alguns atribuem indevidamente ao próprio Bakunin, e do
qual extraímos estes excertos, originalmente transcritos por Max Nomad em sua
obra Heréticos da política:
1. O revolucionário é um homem condenado. Ele não tem interesses pessoais, ne
gócios, sentimentos, dedicações, propriedade, nem sequer um nome. Tudo nele é absor
vido por um exclusivo interesse, um só pensamento, uma só paixão - a revolução.
2. No mais íntimo do seu ser, não apenas em palavras mas em atos, o revolucio
nário não tem qualquer ligação com a ordem social e com o mundo civilizado, com as
leis, aparências e convenções ou moralismos geralmente aceitos neste mundo que para
ele é um inimigo impiedoso. Se tiver que continuar a viver nele, será somente com o
propósito de destruí-lo com mais certeza.
4. Ele despreza a opinião pública. Despreza e odeia a moral dos dias de hoje com
todas as suas motivações e manifestações. Para ele o que quer que ajude o triunfo da
revolução 6 ético; tudo o que o impede é contrário à ética e criminoso.
5. O revolucionário é um homem condenado. É impiedoso cm relação ao Esta
do c a todo o sistema das classes privilegiadas; por sua vez, não deve esperar compai
xão. Entre ele, o Estado e as classes dominantes há uma guerra contínua c irreconciliá-
vel - que pode ser travada secretamente ou abertamente. Deve estar pronto para
morrer a qualquer momento, e deve treinar para suportar torturas.
15. Todo o ignóbil sistema social deve ser dividido em várias categorias...
19. A quarta categoria consiste nas autoridades ambiciosas e liberais de vários
matizes, pois com eles pode-se conspirar nos termos dos seus próprios programas. De
ve-se convencê-los de que são obedecidos cegamente, mas ao mesmo tempo não se
deve permitir que escapem mais. É preciso entrar na posse de todos os seus segredos,
comprometê-los ao máximo, de modo que não lhes sobre nenhum caminho para fu
gir c usá-los como instrumentos dc perturbação da ordem do país.
20. A quinta categoria - teóricos (refere-se aos adversários dc Bakunin dentro
do campo revolucionário), conspiradores, revolucionários, que expõem suas ideias pe
rante grupos ou pelos jornais, mas que são pouco ativos. Eles devem ser continuamen
te impelidos para diante, instados a fazer declarações práticas subversivas, cujo resul
208 Teoria Geral do Estado
tado seria a completa destruição da maioria e o verdadeiro treinamento revolucionário
de apenas alguns.
25. Portanto, para nos aproximarmos cada vez mais do povo, devemos antes de
tudo ligar-nos àqueles elementos das massas que, desde a fundação do poder estatal
dc Moscou, jamais cessaram dc protestar não só com palavras, mas também com fa
tos contra tudo o que, direta ou indiretamente, estivesse ligado ao Estado: contra a no
breza, a burocracia, o clero, as guildas (significando os comerciantes e capitalistas em
geral) e contra o parasitismo dos kulaks. Estendamos as mãos à raça audaciosa dos
bandidos - os únicos genuínos revolucionários da Rússia.
Apelando sempre mais para a violência, o anarquismo foi perdendo adeptos,
mas, ainda no final do século X IX , seu canto de cisne foi a prática de tremendos
atentados terroristas: aos seguidores de Bakunin se atribuem os assassínios dos pre
sidentes McKinley e Carnot (dos EUA e da França, respectivamente), bem como do
rei Humberto I, da Itália. Em Chicago, nos EUA, realizaram inúmeras greves e, no
Brasil, em São Paulo e Rio de Janeiro, grupos de imigrantes italianos e espanhóis
formaram grupos anarquistas que realizaram uma vasta greve operária no ano de
1917, após a qual começou o declínio do movimento também em todo o País.
É no estudo do anarquismo clássico que perceberemos a imprescindibilidade
das normas sociais de conduta. Ubi societas ibi jus, afirmava Aristóteles, isto é, onde
houver sociedade haverá direito, embora possa não haver o poder; segundo os anar
quistas. É justamente nisto que reside o ponto original do anarquismo: a inexistên
cia de poder coercitivo, embora as normas sociais continuem existindo, despoja
das, então, da jurisdicidade, da coercibilidade, enfim. Desmembremos o vocábulo
anarquia; ele c grego, de a, negação, e arkos, governo, vale dizer, inexistência dego-
verno, não de normas sociais. Anarquismo não significa confusão, império da de
sordem. O que o anarquismo - embora no mundo das utopias - sugere é, na ver
dade, a vida em sociedade por normas espontaneamente cumpridas, mediante um
consenso social, sem necessidade de um órgão que as faça cumprir pela força.
No que tange ao sindicalismo, trata-se de uma corrente ideológico-pragmáti-
ca, oriunda da Revolução Industrial, e que apresenta inúmeras variantes, como o
sindicalismo revolucionário e o sindicalismo reformista, este, moderado. Confor
me G. N. Ostergaard, o termo sindicalismo pode ser empregado em dois sentidos:
a) doutrina ou movimento social, segundo o qual os sindicatos operários devem ser
a base da administração social e industrial numa sociedade socialista; b) ação mi
litante por parte dos sindicatos operários. Existem inúmeras definições dc sindica
lismo, das quais poderiam ser apontadas duas: “ação coletiva para proteger c me
lhorar o próprio nível de vida por parte dos indivíduos que vendem sua força de
trabalho” (Allen); ou “um estado da sociedade em que a indústria será controlada
pelos que nela trabalham, na base de sociedades livres; esses devem cooperar da
8 Ideologias 209
maneira mais eficiente na produção de todas as necessidades da vida. Uma socie
dade na qual os parlamentos e governos terão desaparecido, tendo realizado seu
propósito para com o sistema capitalista'’ (Mann). Após a Primeira Grande Guer
ra, alguns sindicalistas bandearam para as fileiras do anarquismo, originando uma
variante nova do movimento operário, que, desejando ressaltar seu caráter anties-
tatal c descentralizador, batizaram-no com o nome de anarcossindicalismo.
Não se pretende, entretanto, fazer neste manual introdutório um estudo mais
alentado do sindicalismo in genere. Interessa-nos, neste capítulo, sua variante mais
original, o sindicalismo revolucionário.
Tal doutrina, embora atribuída por muitos a Georges Sorel (1846-1922), pa
rece encontrar sua paternidade em Ferdinand Pelloutier (1867-1901), hipótese de
resto confirmada pelo próprio Sorel. Marxista de início, Pelloutier enveredou pelo
anarquismo, do qual se desiludiu em face dos métodos terroristas atribuídos a esta
doutrina. Desejoso dc consolidar uma nova ideologia que estabelecesse uma pon
te entre a revolução e o meio operário, criou o próprio sindicalismo revolucioná
rio, fundado no princípio dc que o próprio sindicato seria o instrumento dc luta re
volucionária, caracterizando esta luta a ação direta e a greve geral. Vitorioso o
movimento sindicalista, teria início a reconstrução social, comandada por uma fe
deração universal de sindicatos operários, agora detentora dc todos os meios de
produção, e organizadora de uma comunidade sem a carapaça estatal, de índole
meramente cooperativa. Curiosamente, esta organização evidenciaria, de imedia
to, profunda hostilidade contra o intelectualismo, somente podendo ser admitidos
a seus quadros operários ou pequenos artesãos.
Tais ideias seriam robustecidas pela doutrina de Georges Sorel, fundada nos
mitos revolucionários e na violência passiva da greve geral. Existe, sem dúvida, al
guma originalidade no pensamento soreliano; porém, seu criador granjeou grande
parte de sua fama por ter sido cultuado e invocado na praxis política de um notó
rio adepto da violência: Benito Mussolini, o inspirador do fascismo.
Engenheiro dc profissão, Sorel dedicou-se, a partir dc 1892, aos problemas so
ciais, recebendo influências doutrinárias dc Pierre-Joseph Proudhon, Henri Bcrgson
e Karl Marx. Embora seja autor dc inúmeras obras c tenha dirigido várias publi
cações de caráter político, Sorel tornou-se conhecido principalmente pela obra Re
flexões sobre a violência, na qual prega a revolução proletária mediante a atuação
violenta de uma facção operária mais hábil e inteligente, uma elite, enfim. Curiosa
mente, o próprio Sorel admite que tal movimento não terá condições de se impor,
mas servirá para arrancar as massas trabalhadoras de seu marasmo! Tal movimen
to é, assim, um mito, o mito da greve gerai
No dizer de Sorel, a greve geral seria o mito do futuro. O que vem a ser mito,
porém, na concepção soreliana? Mito - diz ele - é o conjunto ligado por imagens
motoras, organização de imagens que levam ao combate e à batalha. O mundo res
sente-se da falta de mitos, continua. Os mitos do liberalismo (liberdade, igualdade
210 Teoria Geral do Estado
e progresso) devem ser substituídos pelos mitos revolucionários, comparando, com
desprezo, a democracia parlamentar à bolsa de valores, onde o que conta é o di
nheiro. Distingue, ademais, mito e utopia, exemplificando com o socialismo utópi
co e o socialismo científico, este apoiado em mitos. Em Reflexões sobre a violên
cia, Sorel esclarece:
É necessário considerar os mitos como meios de atuar sobre o presente; qual
quer discussão a respeito de como aplicá-los materialmente no transcurso da História
carece de sentido. O que importa, efetivamente, é o mito em conjunto: suas partes so
mente oferecem interesse pelo relevo que dão à ideia contida nessa construção. É inú
til, portanto, raciocinar a respeito de incidentes que se possam produzir no curso da
guerra social, bem como sobre os conflitos decisivos que venham a dar a vitória ao
proletariado; mesmo que os revolucionários se equivocassem totalmente ao criar um
panorama fantástico da greve geral, tal panorama poderia constituir, durante a prepa
ração da revolução, um elemento fundamental, sempre que admitisse, integralmente,
todas as aspirações do socialismo, e trouxesse ao conjunto das ideologias revolucio
nárias uma precisão e um rigor não contidos em outras formas de pensar. Para apreen
der o verdadeiro alcance da ideia de greve geral é preciso, portanto, deixar de lado to
das as formas de discussão comuns entre políticos, sociólogos ou pessoas propensas à
ciência prática.
Já se percebe que várias premissas podem ser pinçadas no cerrado pensamen
to de Sorel: a ação direta em oposição aos meios parlamentares da luta pelo poder,
a organização sindical da sociedade e a rejeição do determinismo de Marx, pois,
como foi dito, a revolução operária somente será realizada mediante a violência.
Se a influência do sindicalismo foi considerável na França, em face das cisões
ocorridas nos movimentos socialistas deste país, a influência de Sorel na Itália foi
ainda maior, sendo certo que o fascismo adotou várias posições sorelianas, como
o predomínio das elites, a necessidade da violência e a organização corporativa do
Estado. Paradoxalmente, a influência dc Sorel sobre Lenin não foi menor.
Fundamentalmente, o sindicalismo soreliano exige a abolição do capitalismo
e do Estado e a nova estruturação da sociedade em associação produtora. Ao lado
de Sorel, merece destaque o marxista Antonio Labriola (1843-1904), que critica
va, em Marx, ser o marxismo uma “ciência exata”, inadaptável à sensibilidade das
massas e aos instintos destas. As massas agem por intuição, dentro de sua experiên
cia histórica, e vão atuar dentro das únicas organizações adaptadas à sua sensibi
lidade: os sindicatos. Em Sorel, encontraremos influência de Flegel, de Marx, de
Bergson e de Proudhon, bem como dos anarquistas pragmáticos. Sorel viria a ser
o profeta do sindicalismo revolucionário. Ele recusa, em nome de uma intervenção
meramente voluntária das massas, o determinismo dialético marxista. Só a inter
venção “violenta” de uma fração esclarecida da classe operária - os sindicalistas
8 Ideologias 211
revolucionários - poderá, mediante a greve geral, tirar as massas de seu eterno tor
por. Enquanto a greve parcial não passa dc um meio de agitação e de organização
local, a greve geral abolirá o Estado, e a sociedade passará a ser gerida pelos sindi
catos dc produtores.
O sindicalismo revolucionário exige a abolição do capitalismo do Estado;
reorganizando a sociedade em associações de produtores. Substituindo o Estado na
condição de proprietário e de administrador dos meios de produção, os sindicalis
tas buscam atribuir tais funções aos sindicatos de produtores. Os sindicatos subs
tituiriam o Estado, cada qual dirigindo seus sindicalizados enquanto produtores.
Por outro lado, os sindicalistas não fazem alusões quanto à capacidade das massas
para o autogoverno.
Embora jamais tenha sido muito clara a doutrina sindicalista no tocante à na
tureza da estrutura social que substituirá o Estado, foi imenso o fascínio exercido
por seus exponentes em todo o mundo.
Ao lado do sindicalismo revolucionário fala-se num sindicalismo reformista,
mais moderado, que busca não destruir as estruturas sociais, porem aperfeiçoá-las,
ressaltando, para este fim, o papel dos sindicatos e de outros grupos sociais, à gui
sa dc correção dos desajustes trazidos pelo excessivo individualismo. O grande pu
blicista León Duguit demonstrou certa simpatia por algumas premissas do sindica
lismo.
Há semelhança entre o sindicalismo revolucionário e o anarquismo no tocan
te à adoção da ação direta para a destruição do Estado: ambos admitem a greve, a
sabotagem, o terrorismo: tudo é lícito para prejudicar o empregador capitalista.
5) MECANIC1SM0 E 0RGANIC1SM0
Bibliografia: Ar i s t ó t e l e s . La política, Madrid, Espasa-Calpe, 1982. d u p r é e l , Eugè-
ne. Traitc dc morale, Bruxelles, Presses Universitaires de Bruxelles, 1967, v. 2. p l a t ã o .
La república, Madrid, Aguilar, 1979 (Obras completas), q u i l e s , Ismael S. I. Aristóte
les (Vicia, escritos y doctrina), 3. ed., Madrid, Espasa-Calpe, 1963. y u r r e , Gregorio R.
de. Totalitarismo y egolatría, Madrid, Aguilar, 1962.
O objetivo social, a finalidade para a qual foi criada a sociedade, deve, eviden
temente, estar acima dos objetivos particulares dos indivíduos que a integram. Por
outro lado, inegável, também, que o homem faz parte da sociedade visando a satis
fação de seu interesse em aprimorar-se, material ou espiritualmente. Como encon
trar o ponto de equilíbrio entre o interesse coletivo, representado pela sociedade, e
o interesse particular? Muitos, pecando pelo radicalismo, negam a própria socieda
de, vendo nesta não um ser autônomo, dotado de fins próprios, mas apenas a soma
212 Teoria Geral do Estado
dos indivíduos que a integram. Veem as árvores, mas negam a floresta. É o caso do
individualismo extremado, representado, particularmente, pelo anarquismo, que
nega o próprio poder político, devendo cada homem ter a mais ampla esfera de au
tonomia de conduta. O próprio marxismo enquadra-se cm tal concepção mecani-
cista do convívio humano ao preconizar, messianicamente, para um futuro dirigido
pelo determinismo dialético, a emancipação do indivíduo perante suas alienações
políticas e religiosas. Diga-se o mesmo do individualismo proveniente do liberalis
mo da Revolução Francesa, representado pela filosofia iluminista do século XVIII,
que foi, sugestivamente, denominado Século das Luzes, ao enaltecer a razão triun
fante sobre as trevas da Idade Média. Com efeito, o iluminismo proclamou a supre
macia da razão individual sobre todo e qualquer princípio ou instituição fundados
em fatores superiores ao indivíduo, como reação ao absolutismo monárquico ain
da imperante na França. A norma fundamental deste individualismo seria a opinião
individual, regida pelos critérios utilitaristas do máximo prazer. O móvel da ação
individual do homem rebelde entronizado por esta ideologia seria, também, o im
pulso vital da sociedade, visto que esta não passaria de mera soma dos indivíduos.
A reação não tardaria. Veio representada pelo romantismo organicista, que encon
trou seu epicentro na Alemanha derrotada por Napoleão, refratária a uma França
liberal, revolucionária e, portanto, suspeita. Como lembra Gregorio R. de Yurre,
muitos intelectuais ligados ao romantismo foram, de início, sinceros admiradores
dos princípios individualistas que embasaram a Revolução Francesa. Porém, os ex
cessos que este movimento tremendo produziu acabaram por minar a admiração
pelo iluminismo. As primeiras críticas, tímidas, logo tornaram-se uma avalancha de
objeções, criadoras de uma nova visão do mundo, enaltecedora da sociedade. O ro
mantismo, em oposição ao racionalismo e o universalismo da Revolução, reconhe
ce o todo nacional, a nação como um todo. O romântico afirma que toda nação é
um organismo que possui um modo próprio de vida; suas instituições e seus costu
mes são inconfundíveis com as demais. Tal pensamento não ficou circunscrito à Ale
manha, pois mesmo 11a liberal Inglaterra, Edmund Burke (1729-1797) mostrou-se
um crítico implacável do pensamento revolucionário. Sua obra, que se expressa prin
cipalmente nas célebres Reflexões sobre a Revolução Francesa, denota de imediato
uma tendência organicista. A sociedade ou Estado - ele não distingue - não é um
simples agregado de seres humanos voltado para a satisfação de fins estritamente
materiais, como ocorre nas associações mercantis. É muito mais do que isso: é uma
comunidade mística, por intermédio da qual os indivíduos recebem a vida espiritual
e o bem-estar, temporal. Foi na Alemanha, porém, que o organicismo e a superva-
lorização do Estado chegaram ao seu grau máximo. Destacam-se figuras do porte
de Novalis (1772-1801), Schlegel (1772-1829), Adam Müller (1779-1829), Johan
Gottlieb Fichte (1762-1814) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).
Embora partidário da Revolução em sua juventude, Schlegel muda bruscamen
te seu pensamento a partir de 1804. Passa a considerar a sociedade e o Estado or
8 Ideologias 213
ganismos vivos, resultantes da evolução histórica. A História, com seus costumes e
tradições, significa, para os organismos sociais, o que a alma e a natureza exterior
significam para os organismos biológicos. No decurso dos séculos, plasma-se a es
trutura orgânica da nação, com suas famílias, classes e corporações, da mesma ma
neira que as células se desenvolvem no organismo vivo. A preservação desta estru
tura é pressuposto inafastável de qualquer Constituição. Daí sua aversão pelas
tendências mecanicistas e individualistas da Revolução, que arrasou as estruturas
orgânicas do Estado e reduziu a nação a um agregado inorgânico de átomos.
Adam Müller, por sua vez, nega que o indivíduo seja anterior ao Estado, como
afirmava o pensamento liberal. Para ele, é inimaginável a existência do homem apar
tado do Estado ou anteriormente a este. O Estado é algo tão grandioso e abran
gente, que se torna indefinível, pois toda definição implica limitar o definido. O Es
tado é um organismo vivo, e os seres humanos são apenas células que participam
dessa vida. O indivíduo não cria o Estado, é o Estado que cria o indivíduo. O Es
tado é um organismo do qual depende a vida humana em sua totalidade; até mes
mo a ciência é parte do Estado, como manifestação da vida espiritual. Evidente
mente, o Estado é fonte de todo o direito. Não há direito anterior ou superior ao
do direito imposto pelo Estado. Se o indivíduo não tem, por si mesmo, personali
dade, pois que esta é uma concessão do Estado, é lógico que ele não pode arguir
direitos contra o Estado. Quanto a Fichte, ao publicar sua obra O Estado comer
cial fechado, lança as bases do futuro nacional-socialismo. O livro é eminentemen
te anti-individualista; a iniciativa e a liberdade individual não constituem o funda
mento da vida social, pelo contrário, a vida econômica deve estar rigidamente
controlada pelo Estado. A economia planificada deve fechar as portas do Estado
ao comércio exterior, até que seja alcançado o estado de autarquia. Para Fichte, a
origem da guerra reside na desigualdade econômica entre os Estados, e na tendên
cia de cada qual buscar sua hegemonia entre os demais. O comércio exterior ense
ja a concorrência; e esta, a guerra.
O Estado autárquico será rigidamente planificado, até que se obtenha o equi
líbrio entre a produção e o consumo. A estabilização da moeda é também um pon
to programático de relevo, pois a oscilação da moeda repercute, desfavoravelmen
te, na economia nacional. O Estado controlará severamente a saída de seus súditos
para o exterior, impedindo que eles deixem o país, unicamente, com o fim de lazer
ou curiosidade, ficando as viagens ao exterior circunscritas às necessidades de es
tudo e ciência.
Finalmente, Hegel. Para que a importância de sua contribuição para as ideias
políticas seja aferida de pronto, basta lembrar que seu pensamento constituiu a base
de correntes opostas como o fascismo e o marxismo. Os ideais de Hegel eram pro
fundamente anti-individualistas, mostrando-se uma reação às tendências liberais
do seu tempo e à divisão da Alemanha em Estados independentes. Sua influência
sobre o fascismo italiano foi admirável, especialmente 110 que toca à apologia do
214 Teoria Geral do Estado
Estado, tido como a criação mais perfeita do homem. Curiosamente, a influência
de Hegel sobre o nacional-socialismo não foi das maiores, mesmo porque esta ideo
logia totalitária não via 110 Estado o fundamento da sociedade, mas sim na nação
(Volk). Gregorio R. dc Yurrc aponta,com agudeza, as diferenças essenciais entre o
pensamento hegeliano e o nacional-socialista: a) o elemento básico da filosofia hc-
gcliana c a ideia (idealismo): o mundo é uma revelação da ideia. O elemento bási
co da Weltanschauung nacional-socialista é a raça (racismo); b) Hegel constrói sua
teoria sobre a supremacia do Estado, e o nacional-socialismo reduz o Estado à ca
tegoria de meio e instrumento em mãos do Führer e de seu partido, que formam a
pedra angular da estrutura política.
Na linha do pensamento organicista, desenvolver-se-ia um inadmissível orga-
nicismo radical, incensando a prevalência absoluta do Estado sobre o indivíduo,
até chegarmos aos dois maiores totalitarismos do século XX: o fascismo, na Itália,
e o nacional-socialismo, 11a Alemanha. Ao contrário do mecanicismo anarquista,
portanto, o organicismo radical (totalitarismo) vê a floresta, não as árvores, o todo
prevalecendo, de maneira absoluta, sobre as partes.
6) TOTALITARISMO: FASCISMO E NACIONAL-SOCIALISMO
Bibliografia: b o n n a r d , Roger. El derecho y el estado en la d o ct ri na nacional-socialis-
ta, Barcelona, Bosch, 1950. h i t i .f.r , Adolf. Minha luta, Porto Alegre, Globo, 1940.
m a l l é n , Rubén Salazar. El Estado corporativo fascista, Mcxico, Facultad dc Ciências
Políticas y Sociales, 1977. r o u x , Gcorge. Mussolini, 2. ed., Lisboa, Astcr, 1963. t o u -
c h a r d , Jean. História das idéias políticas, Lisboa, Publicações Europa/América, 1976,
v. 7.
Os perigos do organicismo radical, glorificador da sociedade em detrimento
do indivíduo, que, naquela concepção, tem apenas deveres para com o Pastado, sur
gem prematuramente na História. Filósofos do porte de Platão e Aristóteles deixa
ram-se empolgar pela suposta natureza totalitária do Estado, deixando fluir, em al
gumas passagens de sua obra, esta exótica tendência. Aristóteles, por exemplo, não
deixou de assimilar, de certa forma, o espírito de seu tempo, antecipando muitas
premissas do totalitarismo contemporâneo. Permitir-nos-emos fazer referência, aqui,
a algumas passagens da obra capital de Aristóteles, intitulada Política:
“ [...] a cidade (Estado) e, por natureza, anterior à família e a cada um dc nós conside
rados individualmente. É necessário que o todo anteceda a parte [...]” (Livro Primei
ro, Capítulo II).
8 Ideologias 215
“As questões de interesse público devem estar sujeitas a uma supervisão pública; ao
mesmo tempo, temos que admitir que os cidadãos não se pertencem, pois todos per
tencem ao Estado, já que cada um é parte deste” (Livro Oitavo, Capítulo I).
“ [...] visto que é dever do legislador considerar, desde logo, dc que forma as crianças
terão uma constituição física perfeita, é necessário atentar para a disciplina das uniões
conjugais, estabelecendo quando e em que condições um casal pode procriar (...) ” (Li
vro Sétimo, Capítulo XVI).
“ [...] as mulheres grávidas devem cuidar de seu corpo, sem evitar exercícios nem to
mar uma dieta excessivamente frugal. É fácil para o legislador assegurar isto, ordenan
do-lhes que programem um passeio diário, no qual honrarão as divindades protetoras
do bom parto” (Livro Sétimo, Capítulo XVI).
“No que toca à exposição e criação dos infantes, é necessário promulgar uma lei que
proíba a sobrevivência dos seres disformes. Por outro lado, se o número de nascimen
tos se mostrar excessivo, e se a tradição proibir a exposição do recém-nascido, deve
ser estabelecido um limite numérico à procriação. Sc um casal fecundar fora deste li
mite, será praticado o aborto, antes que apareçam a vida c a sensibilidade do embrião,
c para que tal prática possa ser considerada respeitável ou desprezível, levar-se-á cm
conta a ausência ou presença de sensação e vida” (Livro Sétimo, Capítulo XVI).
“Como a finalidade do Estado é uma só, fica evidente que a própria educação de to
dos há de ser necessariamente una e idêntica, e que ela esteja a cargo do Estado e não
dos particulares (Livro Sétimo, Capítulo I).
Em outras passagens da Política, Aristóteles revela xenofobia, ao colocar, ci
tando Eurípedes, o bárbaro no mesmo nível do escravo: “é normal que os gregos
governem os bárbaros, eis que, por natureza, bárbaro e escravo são a mesma coi
sa [...]” (Livro Primeiro, Capítulo II).
Tais indícios revelam, à saciedade, os germes do totalitarismo moderno. Não
foi por acaso, certamente, que iMussolini tinha como um de seus livros prediletos
A república, de Platão.
Entretanto, se a concepção organicista ou totalitária da sociedade é tão antiga,
o termo totalitarismo é relativamente recente, tendo sido criado pelo próprio Mus-
solini, em discurso célebre proferido no dia 22 de junho de 1925, no Quarto Con
gresso do Partido Nacional Fascista. A ideia totalitária, já se vê, precedeu o verbo.
A palavra totalitarismo refere-se a uma concepção política que sc mostra cm
franca oposição à doutrina do cidadão abstrato, do homem soberano, criada pelo
liberalismo. Enquanto este se fundamentava na plena autonomia individual, colo
216 Teoria Geral do Estado
cando a liberdade individual no ápice da escala de valores a ser respeitada pelo Es
tado e atribuindo ao poder político apenas e tão somente a manutenção da ordem
pública, as duas doutrinas totalitárias do século XX , fascismo e nacional-socialis-
mo, vão mostrar poderosas reações a tal concepção. Alfredo Rocco (1875-1935),
eminente jurista italiano, que militou politicamente nas fileiras do fascismo, já afir
mava, cm 1925, que a concepção atomística e mecânica da sociedade c do Estado,
resultante da Reforma protestante e do jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII,
era totalmente estranha ao pensamento italiano. Numa obra intitulada A doutrina
do fascismo e o seu lugar na história do pensamento político, Rocco abre comba
te contra a liberal-democracia e o socialismo, porque, para estas doutrinas, a socie
dade não tem vida distinta dos indivíduos, sendo o indivíduo o fim e a sociedade o
meio, ao passo que para o fascismo, o principal problema é o do direito do Esta
do e do dever do indivíduo e das classes. Os direitos do indivíduo - diz Rocco -
não são mais que o reflexo dos direitos do Estado; exatamente como todos os di
reitos individuais, a liberdade é uma concessão do Estado. Como se percebe desde
logo, a concepção fascista da sociedade é totalitária: a totalidade dos indivíduos
submetidos ao poder político e a totalidade da manifestação pessoal de cada um
acham-se sob a égide do Estado. Absoluto é o interesse social; relativo é o interes
se individual. Por isso, no verbete intitulado “A doutrina do fascismo”, integrante
da famosa Enciclopédia italiana, o próprio Mussolini esclarece:
Anti-individualista, a concepção fascista é para o Estado e para o indivíduo, à
medida que este sc harmoniza com o Estado, consciência c vontade universal do ho
mem cm sua existência histórica. É contrário ao liberalismo clássico, nascido da nc-
ccssidadc dc reagir contra o absolutismo, que cnccrrou sua missão histórica, c na von
tade do povo. O liberalismo negava o Estado em favor do indivíduo; o fascismo eleva
o Estado à condição da verdadeira realidade do indivíduo. E se a liberdade deve ser o
atributo do homem concreto e não do fantoche abstrato criado pelo liberalismo indi
vidualista, então o fascismo opta pela liberdade. Esta opção é pela única liberdade que
pode ser considerada seriamente, a liberdade do Estado e do indivíduo no Estado. Com
efeito, para o fascismo tudo está no Estado e nada humano nem espiritual existe e, a
fortiori, nada tem valor fora do Estado. Neste sentido o fascismo c totalitário, e o Es
tado fascista, síntese e unidade dc todo valor, interpreta, movimenta e domina toda a
vida do povo.
Mais adiante, Mussolini refere-se ao sistema corporativista, que se tornaria
uma das principais características do fascismo:
Nem indivíduos nem grupos - partidos políticos, associações, sindicatos, classes
- fora do Estado. O fascismo opõe-se, portanto, ao socialismo, que paralisa o movi
mento histórico na luta de classes e ignora a unidade do Estado, que funde as classes
8 Ideologias 217
numa única realidade econômica e moral, e também ao sindicalismo de classe. Porém,
o fascismo pretende que, na órbita do Estado, as exigências reais que deram origem
ao movimento socialista e ao sindicalista sejam reconhecidas, e as considera no siste
ma corporativo, no qual tais interesses se conciliam na unidade do Estado. Os indiví
duos formam as classes conforme seus interesses; encontram-se sindicalizados confor
me as diversas, atividades econômicas e cointeressadas; são, porém, antes dc tudo c
sobretudo, o Estado. Este não é nem o número nem a soma dos indivíduos que for
mam a maioria de um povo. O fascismo, portanto, opõe-se à democracia que absorve
o povo na maioria dos indivíduos e o rebaixa a tal nível. Sem embargo disso, o fascis
mo é a forma pura de democracia, pelo menos se o povo for concebido, como deve ser,
em seu aspecto qualitativo e não meramente quantitativo, e significar a ideia mais po
derosa por ser a mais moral, mais coerente e mais verdadeira, que se encarna 1 10 povo
como consciência e vontade de um pequeno número ou de um apenas, como um ideal
que tende a se realizar na consciência e na vontade de todos. De todos aqueles que, em
virtude da natureza ou da história, formam etnicamente uma nação, seguem a mesma
linha de desenvolvimento e de formação espiritual, como uma única consciência e uma
única vontade. Não se trata de raça ou de uma região geográfica determinada, mas de
um agrupamento que sc perpetua historicamente, dc uma multiplicidade unificada por
uma ideia, que é uma vontade de existência e dc poder: é consciência dc si, personali
dade. Tal personalidade superior é nação enquanto Estado. Não é a nação que cria o
Estado, como dizia a velha concepção naturalista, que servia de base aos estudos dos
publicistas dos Estados nacionais do século XIX. Ao contrário, a nação é criada pelo
Estado, que dá ao povo, consciente de sua própria unidade moral, uma vontade e, por
conseguinte, uma existência real. O direito de uma nação à independência não se acha
fundado na consciência literária ou ideal de sua própria existência e, menos ainda,
numa situação de fato mais ou menos inconsciente e inerte, e sim numa consciência
ativa, numa vontade política que atua e que está disposta a demonstrar o seu direito,
isto é, em uma espécie de Estado já in fieri... O Estado, como vontade ética universal,
cria o direito.
As tendências organicistas e totalitárias do fascismo italiano ressaltam-se, com
maior clareza ainda, na famosa Carta dei lavoro, publicada na Gazzeta Ufficiale,
30.04.1927, documento que inspirou inúmeras Constituições da época, em espe
cial a brasileira de 1934, que instituiu, sob a inspiração italiana, a representação
profissional. Com efeito, era esta a redação do art. I o da referida Carta:
I - A nação italiana é um organismo dotado de fins, vida, meios de ação supe
riores em poder e duração àqueles das pessoas, isoladas ou agrupadas, que a formam.
É uma unidade moral, política e econômica, que se realiza, integralmente, no Estado
fascista.
218 Teoria Geral do Estado
Já para o nacional-socialismo não vigorava um princípio positivista na concep
ção do Estado, considerado, na doutrina fascista, a única fonte do direito; embora
anti-individualista como o fascismo, tal doutrina não contrapunha ao indivíduo o
Estado, mas uma nova entidade, a nação (Volksgemeinschaft), fonte primária do di
reito, sob a liderança (Führung) de um chefe (Führer). Fundamentado no sangue e na
raça, o espírito (Volksgeist) da nação deve ser quase misticamente intuído pelo juiz.
O positivismo vem, assim, a ser repudiado, sendo substituído por uma espé
cie de doutrina do direito livre, pela qual o juiz, mais do que criar o direito com
base em sua própria valoração do interesse social, deve decidir inspirado no que
rer supremo do Führer; que, em última análise, é o verdadeiro intérprete da alma
popular (Volksgeist).
Como adverte Guido Fassó, o conceito de Volksgemeinschaft, comunidade vi
vente, exclui o conceito da Rechtsgemeinschaft, comunidade abstrata, e implica o
enfraquecimento de qualquer direito do indivíduo, que possui direitos apenas en
quanto membro da comunidade e de acordo com os fins desta.
Em suma, embora organicista e totalitário como o fascismo, o nacional-socia-
lismo não vê o Estado como um fim cm si mesmo, mas como um meio. Adolf Hi-
tler, sem o qual não se pode falar em nacional-socialismo, é muito claro neste sen
tido, ao versar o Estado em sua autobiografia intitulada Mein Kampf (Minha luta).
Ouçamo-lo:
O grande princípio que nunca deveremos perder de vista é que o Estado é um meio
e não um fim. É a base sobre que deve repousar uma mais elevada cultura humana, mas
não c a causa desta. Tal cultura depende da existência dc uma raça superior, de capaci
dade civilizadora. Poderia haver centenas dc Estados-modclo no mundo c isso não im
pediria que, com o desaparecimento dos arianos, formadores de cultura, desaparecesse
a civilização ao nível em que é encontrada atualmente nas nações mais adiantadas.
Mais adiante:
() Estado é um meio para um fim. Sua finalidade consiste na conservação e no
progresso de uma coletividade sob o ponto de vista físico e espiritual. Essa conserva
ção abarca, antes de mais nada, tudo o que diz respeito à defesa da raça, permitindo,
desta forma, a expansão dc todas as forças a cia imanentes. Com a. utilização dc tais
forças, promover-se-á a defesa da vida física e, por outro lado, o desenvolvimento es
piritual. Os Estados que não atendem a tal objetivo são seres artificiais, cxcrcsccncias
da vida social.
O Estado fascista e o nacional-socialismo foram, certamente, os dois Estados
essencialmente totalitários na modernidade, mesmo porque jamais negaram tal postu
ra justificada, segundo seus doutrinadores, pelos excessos do individualismo liberal.
8 Ideologias 219
O Estado socialista soviético é totalitário, sim, mas apenas à medida que cons
titui uma etapa necessária na marcha para o comunismo, preconizada por Marx,
Quando a sociedade comunista chegar, o Estado já estará extinto e fazendo parte
do museu da História, ao lado da pedra lascada e da roca dc fiar, na irônica obser
vação dc Engels. O marxismo, enquanto doutrina dc libertação do indivíduo, não
é totalitário. Ao contrário, liberalismo, anarquismo e socialismo são filiações de
uma mesma concepção da sociedade. O desenvolvimento do liberalismo acarreta,
inevitavelmente, o socialismo. Apenas aparentemente o liberalismo é antípoda do
socialismo; a única diferença entre ambos reside no método adotado por um e ou
tro na persecução da mesma finalidade: a liberação do indivíduo dos excessos do
poder absolutista ou do poder econômico dc uma classe dominante.
6.1) Características do totalitarismo
Quais as características do totalitarismo? Carl Joachin Friedrich afirma que
o totalitarismo, fenômeno da tecnologia moderna e da democracia de massas, apre
senta os seguintes dados identificadores: a) ideologia oficial; b) sistema de partido
único, dirigido por um líder; c) controle policial da manifestação política exercido
pelo Estado; d) concentração dos meios de propaganda no Estado; e) concentração
dos meios militares; f) direção estatal da economia.
Analisemos, com brevidade, cada uma destas características.
6.1.1) Ideologia ofic ia l
No Estado totalitário há um corpo oficializado de doutrina, que abrange to
dos os aspectos da vida humana. Nisto reside, em especial, uma das diferenças en
tre a autocracia e o totalitarismo. A autocracia, definida por Hans Kelsen como a
forma de governo que, em essência, reside no fato de o poder político ser exercido
independentemente de limitação constitucional e dc participação do povo na esco
lha c nas deliberações dos governantes, envolve um poder político que não c, ne
cessariamente, totalitário. A autocracia é uma forma de governo; o totalitarismo é
uma concepção global do Estado que não admite a supremacia do individual so
bre o social, exaltando apenas a totalidade dos indivíduos. Pode-se, por outro lado,
conceber um poder autoritário num Estado que não seja totalitário. Por exemplo,
a Roma republicana, que nos períodos de ditadura conhecia um poder transitório,
autocrático, que não vicejava, contudo, num Estado totalitário.
6.1.2) Sistema de partido único, sob o com ando de um líder
O sistema de partido único, característica do fascismo e do nacional-socialis-
mo, é, na verdade, originário da União Soviética, sendo, aliás, um dos pilares do
220 Teoria Geral do Estado
marxismo-leninismo. Ora, Mussolini foi, em certo período de sua vida, socialista
exaltado, adepto ferrenho de Marx; a influência do mestre socialista vai tornar-se
patente no papel transcendental que o Partido Fascista terá no Estado mussolinia-
no. Segundo Mussolini, a nação deve estar articulada em torno de um partido hic-
rarquizado. O partido deve ser a coluna dorsal do Estado c, no cimo de sua hierar
quia, encontraremas o próprio Duce, Mussolini. Quanto ao Partido Nacional-Socialista
dos Trabalhadores Alemães (Nationalsoziãlistiche deutsebe Arbeitpartei), nunca foi
considerado, pelos próprios adeptos do nazismo, um partido na acepção do termo,
e sim um movimento (Bewegung) que pretende representar não uma opinião pú
blica particular para certo grupo de interesses, mas para o povo em sua totalidade.
Ele pretende ser o representante visível da referida unidade: o seu fim não é orde
nar ou exercer coerção, para impor-se à maioria, mas estimular os indivíduos a ade
rirem à ideia nacional-socialista de união da nação alemã. Partido e povo tendem,
pois, a identificar-se, não pelo fato de que todos sejam filiados ao partido, mas por
que o movimento, ao realizar a unidade popular, será convertido em verdadeira en
carnação c representação visível da unidade do povo.
6.1.3) Controle polic ia l pelo Estado
Segundo a concepção totalitária do Estado, nenhuma atitude, nenhuma socie
dade particular, pode ficar fora da órbita do Estado, que administra e fiscaliza, in
cessantemente, a vida de cada cidadão. Conforme doutrina Alfredo Rocco, o Esta
do fascista não é um Estado democrático no sentido clássico da palavra democracia,
mas é um Estado democrático no sentido “de que adere estreitamente ao povo, de
que está em constante contato com ele, de que penetra a massa por mil caminhos,
guia-se espiritualmente, sente-lhe as necessidades, vive-lhe a vida, coordena-lhe a
atividade”. Daí é fácil depreender a necessidade, no Estado totalitário, de uma po
lícia de caráter político, a fim de reprimir qualquer manifestação contrária ao Es
tado, que, por ser contrária ao Estado, e contrária à comunidade. Na Alemanha
nacional-socialista tivemos a célebre Gestapo (Geheime Staatspolizei); na Itália fas
cista tivemos a OVRA (sigla proveniente dc piovra, polvo, denotando bem o múl
tiplo alcance do órgão, obtido, figurativamente, com seus tentáculos).
Salvetti Netto aponta, com precisão, a diferença entre a polícia política e a
polícia administrativa e a judiciária. As polícias administrativa e a judiciária (polí
cia comum) existem em todos os Estados, sendo sua finalidade prevenir (polícia ad
ministrativa) e reprimir (polícia judiciária) as condutas antijurídicas.
6.1.4) Concentração da propaganda nas mãos do Estado
A propaganda reveste-se de enorme importância atualmente, em plena era tec
nológica, com a abolição global do isolamento humano. No século XVIII as con
8 Ideologias 221
cepções políticas da Revolução Francesa são divulgadas em livros, panfletos e vá
rias publicações “subversivas”. Lenin afirmava ser indispensável a agitação social
e a propaganda política entre as camadas do povo, para a própria sobrevivência da
ideologia revolucionária. Na Alemanha, o excelente trabalho levado a efeito por
Joscph Goebbels, ministro da Propaganda do Terceiro Reich, ensejou a consolida
ção do poder de Hitler e dos objetivos do Partido Nazista. Em 1938, a anexação
da Áustria à Alemanha hitleriana foi o fruto de notável propaganda. Um grande
sociólogo de nossa época, Alfred Sauvy, afirmou que, graças à força da propagan
da, nenhum Estado totalitário de orientação fascista foi destruído sem intervenções
externas. Quando a Alemanha titubeou na guerra psicológica que era travada pa
ralelamente ao conflito armado, foi derrotada. Num livro intitulado Os arquivos
da segunda guerra mundial, Chevallaz, Cheysens e Launay demonstram que a Ale
manha foi derrotada na Segunda Guerra Mundial por dois motivos: a) falta de uma
definição precisa dos objetivos da guerra, o que fez com que vários Estados hesi
tassem em se aliar aos alemães; b) Hitler não teria dado muita importância à guer
ra revolucionária, deixando dc mobilizar as forças militares e morais do povo. Por
outro lado, se as forças de resistência ao nazismo não tivessem definido, desde logo,
seus objetivos, os aliados não teriam podido contar com os Estados ocupados pe
los alemães.
6.1.5) Concentração dos meios militares
Sendo o militarismo um dos mais expressivos meios do Estado totalitário para
alcançar seus fins imediatos (segurança interna) e mediatos (expansionismo ou im
perialismo) depreende-se a sua importância para doutrinas como o fascismo e o
nazismo. Dizia a doutrina fascista que a luta é a origem de todas as coisas. As na
ções que não se expandem acabam por desaparecer. A guerra exalta e enobrece o
cidadão e regenera os povos ociosos e decadentes. A razão jamais poderá ser um
instrumento adequado para a solução dos grandes problemas nacionais - prosse
guem os doutrinadores fascistas; o intelecto precisa ser complementado pela fé mís
tica, pelo autossacrifício e pelo culto do heroísmo e da força. “O espírito fascista é
vontade, jamais intelecto”.
6.1.6) D ireção estatal da economia
Haba define o totalitarismo como “o tipo de organização jurídico-social ca
racterizada basicamente por um Estado que tende a expandir ao máximo sua esfe
ra de intervenção, abarcando a generalidade das relações humanas, resultando dis
so restrita ao máximo a liberdade individual”. Enquanto no socialismo soviético a
propriedade dos meios de produção fica abolida, o Estado fascista e o nacional-so
cialista admitem, com restrições, a iniciativa privada.
222 Teoria Geral do Estado
Quanto às origens do fascismo, é preciso tomarmos a expressão fascismo em
sentido amplo e em sentido estrito.
Num sentido amplo, alguns autores denominam fascistas os movimentos rei-
vindicatórios da classe media dc alguns países europeus, pouco antes da Primeira
Grande Guerra. Como se situavam tais movimentos? Vejamos. A Europa anterior
à Primeira Guerra Mundial desfrutou de um período de paz. Em nenhum país da
Europa Ocidental a lei e a ordem estavam seriamente ameaçadas. Havia prosperi
dade econômica. O último grande movimento revolucionário fora a Proclamação
da Comuna de Paris, em 1871.
Apesar de tais condições, a Rússia já estava ameaçada por uma tremenda re
volução, que seria a de outubro de 1917, prenunciada em 1905, com um levante
popular motivado pela perda da guerra russo-japonesa. Na Europa Ocidental o co
lonialismo e sua manutenção impunham gastos aos Estados, mas garantiam mui
tos empregos. Entretanto, a concentração das empresas e as exigências cada vez
maiores do operariado pressionavam a classe média. Por outro lado, a emancipa
ção dc minorias raciais e religiosas (judeus, protestantes, eslavos) só fez aumentar
os temores da classe média, receosa de perder sua posição social. A reação da clas
se média não foi causa imediata do surgimento dos movimentos fascistas, mas criou
condições propícias para tal.
Embora embrionários pouco antes e durante a Primeira Grande Guerra, os
movimentos políticos nacionalistas que se identificariam com o fascismo já estavam
se firmando, embora sem nenhuma possibilidade de alcançar o poder. Durante a
Guerra, seus líderes tornar-se-iam mais ativos do que nunca em sua doutrinação.
Embora divergindo em alguns aspectos de somenos, havia traços comuns a
quase todos:
1) nacionalismo extremado;
2) forte antissemitismo, que denunciava os judeus como criadores dos males
do marxismo e do capitalismo;
3) invocação às classes médias e ao proletariado para livrá-los do marxismo
(socialismo e internacionalismo) e formar uma base popular para novos movimen
tos, pois, embora a época ainda não fosse a de uma democracia de massas, parecia
indispensável uma base popular para enfrentar o liberalismo, o socialismo e o co
munismo.
Na França, a derrota do país na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) fez re
crudescer o nacionalismo e, pontificando neste sentimento o movimento boulange-
rista (denominação inspirada no general Boulanger), que visava, desde logo, colo
car este militar no poder. Em sua exacerbação e em seus rompantes, o boulangerismo
prometia recuperar as possessões perdidas durante a guerra. Não teve êxito, po
rém. Outra tendência radical, todavia, começava a encontrar um ponto de apoio
em sua propaganda, graças a alguns escândalos financeiros internacionais que pas
saram a ser atribuídos à “alta finança judaica”. Surge o periódico La libre parole,
8 Ideologias 223
fundado por Édouard Brumont, que já havia escrito um livro antissemita, intitula
do La France juive, fazendo a apologia de uma França “romântica, valorosa, con
quistada e destruída pelos judeus”. Brumont afirmava que os judeus eram detesta
dos pelos pequenos comerciantes e empresários e pelos artesãos, pois constituíam
o símbolo do poder do ouro, da ordem capitalista destruidora.
Segundo Brumont, os únicos que obtiveram vantagens com a Revolução France
sa foram os judeus. Os imigrantes hebreus,como Rothschild e outros, haviam se apo
derado dos bens dos franceses e eram, agora, a causa de todos os males da nação.
Agravando tais tendências, o caso Dreyfus. André Dreyfus foi um oficial fran
cês, acusado de fazer espionagem em favor da Alemanha. O caso não teria maio
res repercussões se ele não fosse judeu. Foi o que bastou para que toda a França se
empolgasse com o caso. Dreyfus foi condenado à prisão perpétua; mais tarde, sua
inocência foi comprovada, graças a um movimento levado a efeito por seus simpa
tizantes, que clamavam pela revisão do processo. Émile Zola escreveu Jíaccuse, cm
defesa de Dreyfus; a documentação que servira de base para a acusação era consi
derada fraudulenta. O oficial denunciante dc Dreyfus, o coronel Henry, se suicidou.
O caso não ficou, porém, encerrado; havia muitas pessoas implicadas na condena
ção dc Dreyfus c o preconceito racial já não via freios à sua atividade.
A partir daí tais movimentos nacionalistas não deixariam dc adotar, velada
ou expressamente, uma virulenta xenofobia, com destaque para o antissemitismo,
cuja expressão mais trágica seria mostrada na Alemanha nacional-socialista (1933-
1945) e, em menor escala, na própria Itália fascista, especialmente a partir de 1938
ede 1943.
Em sentido estrito, fascismo é o movimento político surgido na Itália, por vol
ta de 1914, sob o comando de um antigo revolucionário socialista, Benito Mus-
sollini (1883-1945). A origem do vocábulo fascismo reside no fasces (fascio), anti
go símbolo de origem etrusca, encampado pelos latinos e que representa a união.
A organização do movimento pressupunha a formação dos “fascii” de combati-
mento, grupos que pretendiam evitar que a Itália ingressasse na Primeira Guerra
Mundial. Integravam os fascii jovens futuristas, idealistas, nacionalistas extrema
dos, trabalhadores da classe média, desempregados e descontentes de todo o tipo.
A partir de 1918, com o apoio dado por Mussolini à intervenção italiana em favor
dos aliados, apoiando o ingresso da Itália na guerra, os fascii transformaram-se em
grupos de squadristi, destinados a combater o derrotismo e todos aqueles que fos
sem considerados inimigos do povo. A violência, que estava na moda, graças aos
escritos de um sindicalista revolucionário, Georges Sorel, campeava. Espancamen
tos, torturas, aplicação de doses de óleo de rícino eram a tônica. Proprietários ru
rais e comerciantes, supostamente desonestos, eram as principais vítimas. Quanto
às causas imediatas da ascensão do fascismo italiano, foram, basicamente, as se
guintes: a) um nacionalismo humilhado e exacerbado pelas decepções da anexação
da Tunísia pela França, em 1881; b) a desastrosa derrota sofrida em 1890, diante
224 Teoria Geral do Estado
dos nativos abissínios, numa infeliz guerra de conquista; c) a desilusão sofrida pela
partilha do botim de guerra, em Versalhes; d) inflação, alta de preços, especulação
e desemprego 110 pós-guerra; e) o descrédito e o colapso do regime parlamentar; f)
a escalada dc grupos anarquistas e comunistas e as greves freqüentes; g) a intran
qüilidade generalizada, principalmente junto à classe média, que, temerosa da as
censão bolchevista, logo apoiou o movimento fascista.
Quem era Benito Mussolini, afinal? Filho de Alessandro Mussolini e de Rosa
Maltoni, nasceu em Predappio, no centro da Itália, em 1883. Seu pai, ferreiro de
profissão, era um socialista radical, adepto ferrenho de KarI Marx e agitador con
tumaz. A mãe de Benito, todavia, professora, era católica fervorosa e conservado
ra. As influências de ambos, tão paradoxais, marcariam muito a formação do fu
turo Duce da Itália. Embora tivesse o temperamento do pai, violento e irascível,
sendo seu pensamento quase todo calcado nos autores anarquistas e sindicalistas
do século XIX, como Proudhon e Sorel, foi imensa a influência de Marx sobre sua
formação doutrinária. Diga-se de passagem que, mais remotamente, considerável
foi a atenção que Mussolini dispensou a Maquiavel, Hegel e Platão.
Ao seu surgimento, contudo, o fascismo italiano não apresenta uma doutri
na preestabelecida. Era um movimento oportunista, que procurava adaptar-se a
quaisquer novas circunstâncias sociais, até se firmar definitivamente. Mussolini di
zia então:
Nossa doutrina são os fatos. A ação deve sobrepor-se à palavra. O fascismo não
carece dc dogmas, mas sim dc disciplina. Nós, fascistas, temos a coragem dc repudiar
todas as teorias políticas tradicionais; somos aristocratas c democratas, revolucioná
rios c reacionários, proletários c antiprolctários, pacifistas c antipacifistas.
Entre 1929 e 1930, contudo, ele sente a necessidade de consolidar o caleidos
cópio de ideias que era o fascismo, confiando ao filósofo Giovanni Gentile tal in
cumbência. Outros jurisfilósofos robusteccm, ainda mais, a linha programática do
movimento fascista, como Sérgio Panunzio, Giuseppc Botai, Guido Bortolotto, Al
fredo Rocco, Giuseppc Prczzolini e outros. Surgem então, formalizados, os pontos
principais da ideologia fascista:
a) afirmação do nacionalismo, destinado a restaurar o Estado contra a desin
tegração socioeconômica do capitalismo e contra a infiltração comunista;
b) afirmação de um movimento reivindicatório contra o Tratado de Versalhes;
c) posição intermediária entre o coletivismo e o individualismo: o Estado de
ver ser a união de grupos e de corporações;
d) adoção do pensamento de Hegel, Hobbes e das teorias do poder absoluto;.
e) o Estado cria o Direito e a Moral;
f) o homem não tem mais direito do que aqueles que o Estado lhe concede;
8 Ideologias 225
g) amparado em Hegel, o fascismo afirma que o Estado é absoluto, os indiví
duos e os grupos são relativos. Daí, a fórmula: Tudo dentro do Estado, nada fora
do Estado, nada contra o Estado;
h) sindicalismo e condenação do liberalismo e do socialismo marxista. Agru
pamento em corporações dos membros de cada ramo da produção (Mussolini usa
a expressão produtores, em vez de operários, porque a primeira expressão designa
também aqueles que produzem pelo intelecto). Tais corporações não distinguem
entre patrões e operários;
i) subordinação das corporações ao Partido Nacional Fascista. Ninguém po
deria exercer nenhuma atividade sem autorização da corporação correspondente;
j) resolução dos conflitos entre o capital e o trabalho por intermédio de con
tratos coletivos e de uma organização corporativa das categorias profissionais, como
já foi visto;
I) manutenção da iniciativa privada e da livre-concorrência, subordinadas, po
rém, ao interesse do Estado;
m)o trabalho como dever social;
n) abolição do direito de greve.
Quanto ao nacional-socialismo, expressão mais conhecida por sua forma abre
viada nazismo, não pode ser tratado, doutrinariamente, sem que mencionemos a
tremenda figura de seu criador, Adolf Hitler (1889-1945).
Adolf Schickelgruber Hitler nasceu em 20.04.1889, em Braunau, norte da
Áustria. Filho de um funcionário público chamado Aleis Hitler, ficou órfão de pai
aos 16 anos, e, logo depois, de sua mãe. Profundo admirador das artes plásticas,
pretendia seguir a carreira de pintor, contrariando seu pai, que o queria ver funcio
nário público.
Reprovado no vestibular e profundamente desgostoso, Adolf Hitler passa a
viver de pequenos expedientes, como vender cartões-postais de sua autoria. Quan
do jovem, foi influenciado por duas tendências, que acompanhariam seu pensamen
to até a morte: nacionalismo extremado e antissemitismo. Ao estourar a Primeira
Guerra Mundial, alistou-se como voluntário, sendo ferido e recebendo a Cruz de
Ferro. Em 1919 entrou em contato com um pequeno partido formado por operá
rios, de orientação direitista, o Partido dos Trabalhadores Alemães. Com Hitler, o
partido tomou maior alento; em 1921 Adolf Hitler foi nomeado seu presidente,
sendo substituída a antiga denominação por uma nova: Partido Nacional-Socialis-
ta dos Trabalhadores Alemães (NSDP). Em 1923, Hitler tentou o poder, mas aca
bou sendo preso e condenado a cinco anos de cadeia. Nesta, escreveu sua autobiogra
fia intitulada Minha luta9 na qual afirma a superioridade racial do ramo germânico
da “raça ariana” sobre as demais raças, e um suposto plano dos judeus para domi
nar o mundo, plano este resumido num livreto de origem duvidosa intitulado Os
protocolos dos sábios de Sião. A partir de 1929, aproveitando-se da crise econô
mica mundial, o Partido Nacional-Socialista recolheu grande número de adeptos,
226 Teoria Geral do Estado
pessoas desgostosas com a situação política e econômica intolerável e pequenos
empresários temerosos da atividade desenvolvida pelos comunistas. Após várias
campanhas políticas de maior êxito, Hitler foi nomeado chanceler em 30.01.1933.
Ficou no poder ate o dia 30.04.1945, quando os russos tomaram Berlim, suicidan
do-se nos porões da chancelaria.
6.1.7) A doutrina nac iona l-soc ia l is ta
O nacional-socialismo deu origem a uma doutrina completamente nova so
bre o Estado e o Direito. Enquanto a doutrina italiana do fascismo sofreu profun
da influência dos juristas alemães, como Gerber, Gierke, Laband, Jellinek, que de
fendiam o positivismo jurídico (o Direito seria criado pela vontade do Estado),
reduzido, portanto, ao direito positivo, bem como à ideia de que o Estado consti
tui uma pessoa jurídica e, por isso, seria titular da soberania, atuando por meio de
órgãos, o nacional-socialismo afirma que a origem de todo o Direito e poder resi
de na própria comunidade (Volksgemeinscbaft), que vem a ser um todo orgânico,
vivo e real. A origem de todo Direito acha-se no Volksgeist (espírito do povo). O
governo passava a ser considerado como uma emanação direta da própria comu
nidade (Fiihrung). O povo não se autogovernava, pois seria impossível, mas era
guiado, conduzido por um guia, um condutor (Führer). Enfim, a Volksgemeinscbaft
corresponderia, em linhas gerais, ao proletariado e sua ditadura na Rússia, e ao
povo “atomístico” da democracia burguesa do século XIX. A doutrina nacional-
socialista repudia frontalmente as ficções da democracia liberal e pretende expor
tão somente realidades.
6.1.8) 0 Estado nac iona l-soc ia l is ta e os d ire itos subjetivos
Para o nacional-socialismo o Estado é meio e não fim. Constitui tão somente
meio para o aprimoramento e a expansão da comunidade (Volksgemeinscbaft),
aparelho a serviço da nação, única realidade social, histórica, política, moral e, prin
cipalmente, racial. Por outro lado, a concepção do chamado Estado dc Direito na
doutrina nacional-socialista difere, profundamente, da concepção liberal e indivi
dualista. O Estado nacional-socialista não é individualista porque o fim essencial
do Estado não é o indivíduo, porém, a própria comunidade, chamada, como vimos,
Volksgemeinscbaft. O Estado encontra-se a serviço da comunidade, devendo satis
fazer, antes de mais nada, os interesses desta. Por outro lado, o Estado nacional-so-
cialista não é liberal porque não reconhece ao indivíduo uma esfera de liberdade
que deva ser respeitada absolutamente. No Estado nacional-socialista o indivíduo,
como tal, não tem relações com a comunidade; em vez dos chamados direitos pú
blicos subjetivos, existe uma situação jurídica de membro da comunidade.
8 Ideologias 227
Enquanto o liberalismo identifica o Direito e a lei (positivismo), o nacional-
socialismo afirma que o Direito se sobrepõe à lei; esta é apenas uma parte do Di
reito. Sofismando, poder-se-ia dizer que o Estado liberal seria um Estado legal; o
Estado nacional-socialista seria um Estado de Direito.
Na doutrina nacional-socialista a juridicidade substitui a mera legalidade, afir
mando-se que a matéria jurídica nâo seria obra própria c exclusiva do legislador;
contendo-se apenas na lei o direito seria estabelecido independentemente do legis
lador e da lei.
6.1.9) 0 princíp io da l iderança (Führung) no Estado nac iona l-soc ia lis ta
O principal e mais interessante instituto do direito público nacional-socialis
ta é a Führung. Daí a expressão Führer, chefe. Em que consiste a Führung? Cons
titui um princípio de liderança, de condução da comunidade (Volksgemeinschaft).
Esta é guiada, dirigida por um Führer. O Estado nacional-socialista é, então, um
Führerstaat. Se o exercício do poder se limita a uma condução, e se a comunidade
segue espontaneamente seu chefe, formando seu séquito (Gefolgschaft), é porque
há fidelidade c confiança mútuas. Por isso, declarava Hitler:44Eu não teria existido
não fosse minha fé poderosa no povo alemão, reforçada, sem cessar, pela fé e a con
fiança do povo alemão em mim”. Na Führung encontramos o eco de várias passa
gens de Hegel, em sua doutrina de uma razão universal dirigindo o Estado.
O povo confia em seu líder porque este apresenta as qualidades necessárias
para o seu cargo. Por outro lado, o poder de Führung é necessariamente pessoal,
sendo originário, autônomo e autoritário. E originário porque não foi conferido
pelo povo ou qualquer autoridade e porque quem o exerce o faz pelo simples fato
de ser Führer; é autônomo porque o Führer não se submete a nenhuma autorida
de, nem mesmo à autoridade da lei. Como acentua Roger Bonnard, em excelente
exposição sobre as instituições nacionais-socialistas, se no Estado liberal-democrá-
tico a lei domina todo o sistema político, como vontade da pessoa-Estado, expres
sa cm forma dc regras genéricas, abstratas, sendo, assim, protegidos os direitos in
dividuais, no Führerstaat a autoridade da vontade pessoal do Führer supera a lei.
Como a Führung deve estar em consonância com o ordenamento vital do povo, e
como é o Führer quem possui em mais alto grau consciência do referido ordena
mento, sua vontade, poder e decisões devem predominar em qualquer caso. Isto
deve ocorrer até mesmo nas decisões tomadas contrariamente às leis promulgadas
pelo próprio Führer, pois referidas leis podem estar, em razão de mudança das cir
cunstâncias, em desconformidade com o ordenamento vital do povo. Finalmente,
o poder do líder é autoritário, mero corolário da sua autonomia. Com efeito, as de
cisões do líder não podem sofrer oposição, seja pelas vias de direito ou pelos recur
sos jurisdicionais. Qualquer oposição, de fato ou de direito, contra as decisões do
líder, não será admitida.
228 Teoria Geral do Estado
7) HUM ANISM O SOCIAL
Bibliografia: b e r n a , A. ct al. Curso de doctrina social católica, Madrid, La Editorial
Católica, 1967. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de teoria do Estado, 5. ed., São Paulo,
Saraiva, 1982.
Em meio ao cipoal dc ideologias políticas radicais c dc práticas políticas de
finitivamente ultrapassadas, surgiu uma nova doutrina, que, sensatamente, procu
ra o meio-termo entre o mecanicismo e o organicismo, postulando um organicis-
mo moderado, que não oponha o Estado ao indivíduo ou vice-versa, mas que
integre o indivíduo ao Estado, fazendo com que este, em harmoniosa composição,
sirva de instrumento de realização pessoal e social. Esta doutrina chama-se huma
nismo social. Tal concepção, até mesmo na sua grafia, condena frontalmente o me
canicismo, pois, sem a participação do Estado, o indivíduo jamais alcançará a ple
nitude do seu desenvolvimento, mas condena, também, o organicismo radical, pois
que este confunde o organismo social e o organismo biológico, como se ambos ti
vessem a mesma natureza. Na verdade, conforme adverte Pedro Salvetti Netto, en
quanto os órgãos que compõem o corpo humano obedecem a leis biológicas, ine
xoráveis e imutáveis, o indivíduo, no seio da sociedade, age livremente, escolhendo,
optando. Tal liberdade dc ação, não percebida no organismo físico, bem assegura
e salienta a impropriedade do organicismo radical. Por outro lado, movido por seu
arbítrio, pode o indivíduo voltar-se contra as estruturas sociais, a parte contra o
todo, alterando-a, reformando-a, adaptando-a, enfim, a suas aspirações. A nature
za das leis éticas, ordenatórias da vida social, expressa apenas tendências, possibi
lidades, não certezas. Como faz ver José Pedro Galvão de Souza, é preciso salien
tar as diferenças entre o corpo social e o organismo biológico: neste constata-se
unidade física ou substancial; naquele, unidade moral ou de ordem.
A doutrina do humanismo social busca integrar o homem ao Estado, partin
do da afirmação de que, entre o indivíduo e o poder político, existem grupos natu
rais, como a família, o município, o sindicato, os quais, se bem que não soberanos,
devem fruir da autonomia e da assistência do Estado. Tais grupos surgem natural
mente, pois que revelam, muito mais do que o próprio Estado, a sociabilidade ina
ta do homem. Esses grupos são como flores de variadíssima natureza, que brotam
espontaneamente, revelam uma tendência natural do ser humano dc sc realizar c
de se proteger e, portanto, devem ser órgãos legítimos de intermediação entre o in
divíduo e o Estado. Ora, para o liberalismo, tais grupos constituem meras associa
ções voluntárias, suplantadas pelos partidos políticos, cuja atuação, pelo menos no
Brasil, tem sido inexpressiva. Para o organicismo radical, tais grupos devem ser su
focados pela prevalência absoluta deste Moloch chamado Estado, fenômeno este
8 Ideologias 229
já previsto por Thomas Hobbes em sua obra clássica Leviatà. A conformação da
sociedade, para o humanismo social, deve ser eminentemente corporativa. Não o
corporativismo fascista, verdadeiro simulacro do autêntico corporativismo, pois os
grupos sociais autênticos devem ser dotados da mais ampla liberdade possível, ja
mais simples veículos da vontade dos governantes.
8) SOCIAL-DEMOCRACIA
Bibliografia: a r a ú j o de s o u z a , Nilson. O colapso do neoliberalismo, São Paulo, Glo
bal, 1995. biscaretti di ru ff ía , Paolo. Introducción al derecbo constitucional com
paradoi, México, Fondo dc Cultura Econômica, 1996. b o r j a , Rodrigo. Enciclopédia
de la política, México, Fondo de Cultura Econômica, 1997. kriele, Martin. Introduc-
ción a la teoria dei Estado, Buenos Aires, Depalma, 1980. M c C le lla n d , J. S. A his-
tory of Western political thought, London-NewYork, Routledge, 1996.
Considerada a vertente socialista dos Estados altamente industrializados do
norte europeu, como Suécia, Noruega, Finlândia, Alemanha e Dinamarca, a social-
democracia surgiu na segunda metade do século XIX, como uma ideologia revisio
nista do marxismo elaborada por Edward Bernstein (1850-1932). Embora a ex
pressão revisionismoy com sentido pejorativo, pareça ter sido criada pelos próprios
marxistas ortodoxos, como Karl Kautsky (1854-1939), o próprio Lenin e, mais tar
de, Mao Tsé-Tung deveriam ser considerados revisionistas por excelência, já que
ambos ousaram adaptar a ortodoxia da concepção marxista da revolução aos seus
próprios países, ambos estagnados num estágio feudal de desenvolvimento.
A social-democracia se mostra um efeito recente da antinomia liberdade/igual
dade deflagrada na Revolução Francesa. Ao preconizar a máxima liberdade políti
ca, o liberalismo agravou a desigualdade econômica, graças à livre-concorrência
absoluta. Reagindo a isso, o socialismo - cm todas as suas vertentes - visou corri
gir tal desvio, mediante a abolição dos privilégios da burguesia. Todavia, isso só se
ria possível graças ao sacrifício da liberdade econômica plena. Daí o surgimento da
social-democracia, mais precisamente durante a Segunda Internacional Socialista
(1889), como alternativa entre o socialismo revolucionário e internacionalista e os
princípios da liberal-democracia. Desta síntese exsurge o caráter mais reformista
que revolucionário da nova ideologia, e a adjetivação revisionista com que a orto
doxia passou a acicatar os seguidores da chamada terceira via. Desfrutando de cres
cente prestígio, inicialmente na Alemanha, a social-democracia logo conquistou
Hungria, Bulgária e Escandinávia. Na Rússia, o Partido Social-Democrático Ope
rário, fundado em 1898, daria origem ao bolchevismo, estruturado pela facção ma
joritária daquele partido, sob o comando de Lenin.
230 Teoria Geral do Estado
Hoje, nos Estados mais adiantados, a social-democracia defende a economia
de mercado com a participação de todos, mas não admite que indivíduos ou gru
pos pretendam monopolizar a atividade econômica; quando isso ocorre, o Gover
no intervém para restabelecer o equilíbrio ameaçado. Em suma, a social-dcmocra-
cia defende uma ordem econômica eclética, na qual tem vez tanto os mecanismos
de mercado quanto a planificação econômica estatal, bem assim a propriedade pri
vada restringida pelo interesse social. Doutrina flexível, altera, conforme necessá
rio, métodos e objetivos.
Relativamente bem-sucedida nos Estados mais evoluídos política e econo
micamente, a social-democracia ainda não se adaptou inteiramente ao Terceiro
Mundo, onde as únicas soluções viáveis para o subdesenvolvimento, e as crises pe
riódicas que o afligem, parecem ser medidas radicais e violentas. Enquanto a so
cial-democracia europeia - que tem muito do socialismo fabiano ou contempori-
zador - utiliza unicamente meios pacíficos na composição dos conflitos de classe,
conseguindo, vale reconhecer, enlaçar sem traumas liberdade política, prosperida
de econômica e assistência social, nos Estados menos desenvolvidos passou a ser
considerada, ipso facto, uma ideologia conservadora, retrógrada, sem perceber que
a classe trabalhadora dos Estados nórdicos que a adotaram não carece de medidas
revolucionárias violentas para suas conquistas, obtendo-as, sempre, pela via refor
mista. Na verdade, a situação do Terceiro Mundo perante a social-democracia é
bem diferente: buscam-se mudanças políticas e sociais extremadas para, então, criar
a infraestrutura de uma nova social-democracia. Os Estados menos desenvolvidos
pouco têm a defender e muito a conquistar, mesmo que por vias alternativas.
9) NEOLIBERALISMO
O liberalismo clássico surgiu com a desagregação do feudalismo e o conse
qüente aparecimento do capitalismo. Afirmando dois valores básicos, individualis
mo c liberdade econômica, o liberalismo nascente elegeu, como verdade absoluta,
a orientação dc Adam Smith de que o homem age, exclusivamente, na defesa de
seus próprios interesses, devendo o Estado abster-se dc interferir na atividade eco
nômica, proporcionando ao indivíduo a máxima autonomia de vontade. A realiza
ção do bem individual de cada cidadão representaria o próprio bem comum, mera
somatória de interesses privados, limitando-se o Estado a zelar pela preservação de
ordem tipicamente burguesa. A mão invisível da Natureza - a expressão é do pró
prio Adam Smith - se encarregaria de ordenar as relações entre os homens, enca
minhando-os para um sistema econômico perfeito. É sabido que não foi bem isso
o que ocorreu, pois a liberdade burguesa só existe para a própria burguesia, res
tando para as classes menos favorecidas apenas uma liberdade e um bem-estar eco
nômico meramente formais, flatus voeis de uma ordem econômica irrealizável. A
omissão do Estado quanto à disciplina da atividade econômica ensejaria a concen
8 Ideologias 231
tração dos meios de produção nas mãos de alguns privilegiados, surgindo, em con
trapartida, uma preocupante maioria de despossuídos, descontentes dc toda espé
cie, em potencial ameaça às instituições burguesas. Surgiu, assim, o neoliberalismo,
pretensamente uma nova doutrina, na realidade voltada para a ressurreição das leis
de mercado, involuindo para os bons tempos do laissez-faire, abrindo as fronteiras
dos Estados menos desenvolvidos para uma indiscriminada exploração econômica
estrangeira, liberando a propriedade privada de encargos sociais e colocando a di
reção da economia nas mãos dc particulares, sob o pretexto de modernizar o Esta
do e reduzir seu tamanho. Observa, com inteira procedência, Rodrigo Borja que o
neoliberalismo se funda em enorme falácia, qual seja, equiparar a liberdade de vida,
de opinião, de imprensa ou qualquer das liberdades fundamentais do ser humano
à liberdade de investir na economia, ter empresas, enriquecer. Nisso há uma total
falta de perspectiva. Vale-se do prestígio da palavra liberdade para sustentar, como
o faz Samuel P. Huntington, então diretor do Instituto de Estudos Estratégicos da
Universidade de Harvard, que a liberdade de trabalhar, investir e ter propriedades
sem a intervenção do Estado pertence ao mesmo gênero das grandes liberdades do
homem. Referido autor não leva em conta que a liberdade entre desiguais conduz
à injustiça. O que ele c outros neoliberais defendem é uma liberdade que termina
por autodestruir-se (Enciclopédia de la política, p. 683).
Pois bem, se no Ocidente o neoliberalismo foi uma resposta, embora pífia, ao
descontentamento com o liberalismo, na União Soviética e nos Estados socialistas
do Leste Europeu, já em fins dos anos 1980 e no início da década dos 1990, foi
uma tentativa desesperada de reavivar a atividade econômica estagnada pelo ma
rasmo burocrático. Com a derrubada do muro de Berlim, que simbolizou a própria
queda de um socialismo viciado e o término da chamada Guerra Fria, o regime so
cialista cederia, enfim, passagem ao seu rival histórico, o capitalismo. Ora, se o de
sabamento dos regimes marxistas revelou a ineficácia de um sistema estratificador
dos meios de produção, não é menos verdade que este foi substituído por uma de
sordenada privatização de bens públicos, passando a economia, após décadas de
experimentação socialista, para a iniciativa privada. Em outras palavras, o neoli
beralismo, cujos efeitos já se fazem sentir.
Ao observador atento e sereno, resta evidente que prevalece, no mundo con
temporâneo, seja no plano interno ou no internacional, não uma teórica liberdade
de mercado, mas sim um mercado dirigido por corporações transnacionais, que
adotam notória estratégia de dominação dos mercados. O próprio poder de Esta
dos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento acha-se condicionado à planificação
e operação das grandes empresas nacionais ou transnacionais. Articuladas entre si,
manipulam a economia na direção de seus próprios interesses. Disso resulta que a
atividade econômica, aparentemente livre, é na verdade planificada, dirigida e ad
ministrada não pelo Estado, mas pela iniciativa privada.
232 Teoria Geral do Estado
Em 23.10.1973, na cidade de Tóquio, reuniu-se uma Comissão denominada
Trilateral, formada por empresários, políticos e economistas influentes dos Estados
Unidos, da Europa e do Japão, para estabelecer uma coesão maior entre as gran
des corporações transnacionais, a fim de fortalecer o sistema capitalista e resistir à
pressão dos Estados socialistas da Europa e do Terceiro Mundo. Desse fato, como
tantos outros semelhantes, cabe razão a Nilson Araújo dc Souza quando afirma:
o chamado neoliberalismo não é uma teoria científica. Nem muito menos uma cor
rente de pensamento científico. Não chega também a ser uma doutrina. É uma ideolo
gia - mais propriamente, e o elemento central da ideologia da oligarquia financeira
que domina o mundo, na atual etapa do capitalismo. (O colapso do neoliberalismo,
p. 9)
0 ESTADO ENTRE ESTADOS: AS ORGANIZAÇÕES INTERESTATAIS
Bibliografia: a c c i o l y , Hildebrando. Manual de direito internacional público, São Pau
lo, Saraiva, 1986. A l b u q u e r q u e m e l l o , Celso D. de. Curso de direito internacional
público, 14. ed., Rio de Janeiro/São Paulo, Renovar, 2002, v. I. b r i e n d , Jacques e ou
tros. Tratados y juramentos en el antiguo Oriente Proximo, Navarra, Editorial Verbo
Divino, 1994. c e r a m , C. W. O segredo dos hititas, Belo Horizonte, Itatiaia, 1957. r a -
c h e t , Guy. Dictionnaire des civilisations de VOrient ancien, Paris, Larousse, s.d. r a -
m i n a , Larissa. Direito internacional convencionai Ijuí, Unijuí, 2006. s a i .l e s , Catheri-
ne. Civilisations antiques, Paris, Larousse, 2008. s a l v e t t i n e t t o , Pedro. Curso de
ciência política (teoria do Estado), 2. ed., São Paulo, Tribuna da Justiça, 1977, v. 1.
s h i p l e y , Graham e outros. The Cambridge Dictionary of Classical Civilization, Cam-
bridge, Cambridge University Press, 2008. t e i x e i r a d o s r e i s , Jair. Resumo de direito
internacional e comunitário, Niterói, Impetus, 2008.
1) NATUREZA DAS ORGANIZAÇÕES INTERESTATAIS
A ideia da universalização de uma dada cultura superior, que venha a benefi
ciar toda a humanidade, não foi estranha a grandes vultos da História. Alexandre
III, o Grande, foi um dos primeiros a levar a civilização helênica aos povos deno
minados “bárbaros”, voz que não tinha conteúdo pejorativo, mas, simplesmente,
designativo daqueles que não falavam a língua grega. Tanto que o próprio Alexan
dre, após derrotar os persas, casou-se com uma das filhas do rei Dario III, e fez com
que muitos de seus generais se casassem com mulheres persas, buscando, com isso,
universalizar a civilização grega, levando-a da Europa até os confins da Ásia Me
nor, e fundando um Estado universal. O historiador Plutarco afirma que os povos
da época em que Alexandre expandia seu império aceitavam dc bom grado fazer
233
234 Teoria Geral do Estado
parte desse, diante das vantagens oferecidas pela civilização grega. Napoleão Bo
napartc inspirou-se consideravelmente nas realizações de Alexandre, e muitos au
tores veem nele um precursor da Liga das Nações e, por conseqüência, da própria
Organização das Nações Unidas.
Após a tentativa de Alexandre, merece especial referência o expansionismo
romano, este obra não de um homem apenas, mas dc inúmeros vultos que foram
se sucedendo e ampliando as fronteiras do império, impondo a notória Pax roma
na (30 a.C. a 180 d.C.). Pedro Salvetti Netto sintetiza, com maestria, esse período
da bela História Romana:
É realmente singular, cm toda a história, tenha a formação dc um império per
durado por tantos séculos a impor sua autoridade, como sc afirmou, sobre povos dc
culturas tão diferenciadas. A obra de integração engendrada pelo gênio de Roma, po
rém, compreende-se: de um lado, pela perspicácia do vencedor em não pretender, de
forma absoluta, impor suas tradições, seus costumes, sua religião aos povos vencidos,
antes respeitando-lhes as instituições culturais; de outro, pela mística de segurança que
aqueles invencíveis exércitos podiam levar a grupos beligerantes, por isso mesmo in
satisfeitos e, mais que isso, inseguros, em razão da contínua sucessão das lutas entre
eles. Sob a tutela do Império, Roma prometeu a paz ao mundo com todas as suas con
seqüências benéficas de prosperidade. O mito dessa segurança, dessa paz, permaneceu
ainda mesmo depois que as hostes germânicas derrotaram as legiões de Roma. De fato,
remanesceram na Baixa Idade Média, ao formar-se, sob a inspiração legendária do Im
pério c a influência, já então notável, da Igreja Cristã, o chamado Sacro Império Ro
mano Germânico.
Pois bem, independentemente dos grandes vultos da História, que, muito aci
ma da visão estreita dos medíocres, anteviam o futuro e conduziam os povos no
rumo do congraçamento político destes, sob a égide de uma lei universal, o fato é
que, da mesma forma que a pessoa natural busca, instintivamente, o relacionamen
to social e econômico com seus semelhantes, única forma de alcançar plenamente
seus objetivos, o Estado, que é pessoa jurídica de direito internacional público, pre
cisa interagir com outros Estados para realizar seu objetivo maior que é o bem co
mum. E da mesma forma que a pessoa natural nem sempre mantém um relaciona
mento amistoso com outras pessoas, ensejando conflitos que cumpre ao Poder
Judiciário compor, também cada Estado pode acabar se envolvendo contra seus pa
res em conflitos velados ou guerras declaradas para alcançar objetivos puramente
econômicos 011, mesmo, expansionistas, visando aumentar seus territórios. Daí, a
necessidade de instituir, na esfera interestatal, órgãos decisórios que fazem às vezes
de árbitros nas querelas de Estados em conflito, de forma semelhante aos tribunais
no âmbito interno desses. Esses órgãos são entidades interestatais, cuja natureza é
a de associações de Estados criadas mediante tratados e dotadas de personalidade
9 0 Estado entre Estados: as organizações interestatais 235
e ordem jurídica próprias, distintas das de seus filiados e com objetivos específicos.
Tais organizações têm fins universais, quando visam congregar, na medida do pos
sível, o maior número de Estados, objetivando a solução pacífica dos questiona
mentos mútuos que possam surgir entre seus filiados. É o caso da Organização das
Nações Unidas (ONU). Outras também visam objetivos também amplos, embora
regionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA). Além dessas espé
cies, existem as organizações de fim específico, como o Fundo Monetário Interna
cional (FMI), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Banco Inter
nacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird).
2) A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU
A Organização das Nações Unidas (ONU) é uma instituição de caráter uni
versal, pois visa congregar todos os Estados do mundo e compor seus conflitos mú
tuos na qualidade de guardiã da paz. É a sucessora da Liga das Nações, criada logo
após a Primeira Guerra Mundial, na Conferência de Versalhes dc 1919, e que aca
bou fracassando principalmente por não contar, entre seus filiados, com os Estados
Unidos da América do Norte e a União Soviética.
A ONU conta com 192 Estados filiados, cuja vinculação decorre de um tra
tado (Carta da ONU) que discorre sobre os direitos e as obrigações daqueles. A or
ganização compreende seis órgãos principais: Assembleia Geral, Conselho de Se
gurança, Conselho Econômico e Social, Conselho de Tutela, Tribunal Internacional
de Justiça e Secretariado, todos situados na própria sede da ONU (Nova York), ex
ceto o Tribunal Internacional de Justiça, sediado em Haia. O Conselho de Seguran
ça é formado por quinze membros, dos quais cinco são permanentes (Estados Uni
dos, Rússia, Grã-Bretanha, França e China), e os demais não permanentes, eleitos
pela Assembleia Geral por dois anos. As deliberações do Conselho de Segurança
obrigam os filiados à organização.
São princípios instituídos pela ONU: a) princípio da igualdade soberana dc
todos os seus membros; b) obrigação dc seus filiados dc cumprir os compromissos
da Carta; c) composição dc litígios internacionais por meios pacíficos; d) absten
ção do emprego de ameaça ou força material contra outros Estados; e) obrigação
de colaborar com as medidas tomadas pela organização em conformidade com a
Carta, e não prestar auxílio a Estado contra o qual a organização estiver impondo
sanções; f) pressionar Estados não filiados a não tomar medidas prejudiciais à paz
e à segurança internacionais.
3) DIREITO COMUNITÁRIO: ANTECEDENTES DA UNIÃO EUROPEIA - UE
A ideia de uma unificação econômica e, em alguns aspectos, política dos Es
tados europeus é anseio que se desenvolveu na própria Antiguidade Clássica, como
sc depreende dos versos de Quinto Horácio Flaco:
236 Teoria Geral do Estado
Europa entregou ao Touro sedutor o seu flanco de neve [...] Empalideceu com a
sua própria coragem chorando o ato vergonhoso [...] Mas Venus lhe disse: - Tu és, sem
o saber, mulher do invencível Júpiter! Deixa de soluçar e aprende a fruir uma grande
fortuna: uma parte do globo receberá teu nome. (Carmine, II, 27)
Séculos mais tarde, Dante Alighieri retomou o assunto e, quase contempora-
neamente, em 1304 o jurista Pierre Dubois concebeu um projeto de Estados Uni
dos da Europa, no que foi seguido por Jean-Jacques Rousseau e Saint-Simon, va
lendo lembrar que em 1867 Victor Hugo profetizara: “No século XX haverá uma
Nação extraordinária [...] esta nação terá por capital Paris, mas não se chamará
França, e sim Europa”. Napoleão c Hitler tentaram a unificação pela força intimi-
datória das armas, porém fracassaram, restando evidente que apenas pela força do
Direito a união seria possível. Em 1922, um jovem aristocrata húngaro, o Conde
Coudenhove-Kalergi, dirigiu à imprensa europeia uma mensagem reafirmando a
necessidade de uma União Pan-Europeia, publicando, no ano seguinte, uma obra
de grande repercussão, intitulada Pan-Europa, na qual expunha suas ideias. Com
o tempo, Kalergi passou a ser considerado um verdadeiro apóstolo da unificação.
Em 1946, Churchill pronunciou, na Universidade de Zurique, um discurso consa
grado à unificação europeia, ressaltando a necessidade da organização do Ociden
te, em face do autoisolamento do Leste Europeu, sobre o qual empregou, na oca
sião e pela primeira vez, a célebre expressão Cortina dc Ferro: “Uma cortina de
ferro acaba de tombar sobre a Europa! ” Na oportunidade, fez uma exortação à
França e à Alemanha que se reconciliassem, criando, esses dois Estados, de comum
acordo, uma confederação apta a unir seus destinos. Em 25.03.1957 foi firmado o
Tratado dc Roma, que instituiu a Comunidade Europeia, determinado seu art. 2o:
A Comunidade tem como missão a criação de um mercado comum e de uma
União Econômica e Monetária e da aplicação das políticas ou ações comuns a que se
referem os arts. 3° e 3°-A, promover, em toda a Comunidade, o desenvolvimento har
monioso e equilibrado das atividades econômicas, um crescimento sustentável c não
inflacionista que respeite o ambiente, um alto grau de convergência dos comportamen
tos das economias, um elevado nível dc emprego e dc proteção social, o aumento do
nível e da qualidade dc vida, a coesão econômica e social e a solidariedade entre os Es-
tados-membros.
Em 07.02.1992 foi assinado o Tratado de Maastricht, que instituiu a União
Europeia, cuja exposição de motivos é sumamente elucidativa:
Sua Majestade o Rei dos Belgas, Sua Majestade a Rainha da Dinamarca, o Pre
sidente da República Federal da Alemanha, o Presidente da República Helênica, Sua
Majestade o Rei de Espanha, o Presidente da República Francesa, o Presidente da Ir
9 0 Estado entre Estados: as organizações interestatais 237
landa, o Presidente da Republica Italiana, Sua Alteza Real o Grão-Duque do Luxem
burgo, Sua Majestade a Rainha dos Países Baixos, o Presidente da República Portu
guesa, Sua Majestade a Rainha do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do
Norte, Resolvidos a assinalar uma nova fase no processo de integração europeia ini
ciado com a instituição das Comunidades Européias, Recordando a importância his
tórica do fim da divisão do Continente Europeu c a necessidade da criação dc bases
sólidas para a construção da futura Europa, Confirmando o seu apego aos princípios
da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e liberdades fun
damentais e do Estado de Direito, Desejando aprofundar a solidariedade entre os seus
povos, respeitando a sua História, cultura e tradições, Desejando reforçar o caráter
democrático e a eficácia do funcionamento das instituições, a fim de lhes permitir me
lhor desempenhar, num quadro institucional único, as tarefas que lhes estão confiadas,
Resolvidos a conseguir o reforço e a convergência das suas economias e a instituir uma
União Econômica e Monetária, incluindo, nos termos das disposições do presente Tra
tado, uma moeda única e estável, Determinados a promover o progresso econômico
e social dos seus povos, no contexto da realização do mercado interno e do reforço da
coesão e da proteção do ambiente, e a aplicar políticas que garantam que os progres
sos na integração econômica sejam acompanhados dc progressos paralelos noutras
áreas, Resolvidos a instituir uma cidadania comum aos nacionais dos seus países, Re
solvidos a executar uma política externa e dc segurança que inclua a definição, a pra
zo, de uma política de defesa comum que poderá conduzir, no momento próprio, a
uma defesa comum, fortalecendo, assim, a identidade europeia e a sua independência,
em ordem a promover a paz, a segurança e o progresso na Europa e no mundo, Rea
firmando o seu objetivo de facilitar a livre circulação de pessoas, sem deixar de garan
tir a segurança dos seus povos mediante a inclusão, no presente Tratado, de disposi
ções relativas à justiça e aos assuntos internos, Resolvidos a continuar o processo dc
criação dc uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as de
cisões sejam tomadas no nível mais próximo possível dos cidadãos, de acordo com o
princípio da subsidiariedade, Na perspectiva das etapas ulteriores a transpor para fa
zer progredir a integração europeia, Decidiram instituir uma União Europeia...
Com a criação das três Comunidades Européias (Comunidade Europeia do
Carvão e do Aço, Comunidade Econômica Europeia e Comunidade Europeia da
Energia Atômica), os Tratados de Paris e de Roma instituíram uma ordem jurídica
própria, à qual sc submetem os Estados signatários. Assinala João Mota de Cam
pos que uma parte dessas normas consta dos próprios Tratados, constituindo o cha
mado direito comunitário originário; outras resultam da adoção, pela autoridade
comunitária (duo Comissão-Conselho), de atos normativos diversos (decisões ge
rais ou regulamentos, recomendações ou diretivas c decisões). Estas últimas nor
mas, resultado de uma produção legislativa realizada na conformidade dos Trata
dos, e que por isso deles derivam, constituem o direito comunitário derivado (Direito
238 Teoria Geral do Estado
comunitário, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, v. 1, p. 19 e segs., e v. 2, p.
13 e scgs.).
4) 0 MERCADO COMUM DO SUL-M ERCO SUL
Instituído pelo Tratado de Assunção, de 26.03.1991, o Mercado Comum do
Sul (Mercosul) congrega Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, com vistas à inte
gração do chamado Cone Sul. Seu histórico remonta ao Tratado de Montevidéu,
de 1980, que criou a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), forma
da apenas por Brasil e Argentina e, depois, como visto, ampliada pelo Tratado de
Assunção.
Em 17.12.1994, foi assinado o Protocolo de Ouro Preto, que estruturou ór
gãos e objetivos do Mercosul, sendo estes os seguintes: a) a adaptação da legisla
ção de cada Estado-membro à legislação dos demais; b) a livre circulação de bens
e serviços entre os Estados-membros, mediante a supressão de direitos alfandegá
rios; c) a criação de uma tarifa externa e dc uma política comercial comuns; d) a
coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados-membros,
no tocante ao comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetário, cambial c
de capitais, dc serviços, alfandegários, de transportes e comunicações, propiciando
condições de concorrência entre os Estados-membros.
5) OS TRATADOS INTERNACIONAIS (NATUREZA E EFICÁCIA)
Por volta do remoto período entre 2404 e 2375 a.C., provavelmente em 2400
a.C., dois príncipes das cidades sumérias de Lagash e Uruk, na antiga Mesopotâ-
mia (atual Iraque), celebraram um tratado de paz e fraternidade, editando nada me
nos que 46 exemplares do texto. Pouco mais tarde, em alguma data entre 2291 e
2255 antes da Era Cristã, um rei do Elam, país situado no sudoeste do atual Irã,
celebrou com Akkadc ou Agadé, cidade do sul da Mesopotâmia, outro tratado de
paz, formalizado numa tabuinha de argila encontrada por arqueólogos c enviada
ao Museu do Louvre. Seriam estes os primeiros tratados internacionais registrados
pela História; mais tarde, entretanto, outro tratado seria, indevidamente, conside
rado o mais antigo, embora sua importância fosse, sem dúvida, muito maior. Esta
mos nos referindo ao célebre tratado de paz entre Ramsés II, monarca egípcio e
Muwatalis, soberano hitita, em 1296 a.C., após dramática batalha.
Ramsés II contestara as fronteiras do Egito e da região que hoje é a Síria, que
assinalava os confins do império dos hititas, povo indo-europeu de grande poderio
militar. O rei hitita, Muwatalis, aceitou o desafio e a guerra foi inevitável, eclodin-
do na localidade de Kadesh, que emprestaria seu nome à celebre batalha, cujo resul
tado ainda hoje não ficou claro. Após o conflito, Ramsés II, que teria sobrevivido
milagrosamente no embate, passou a se proclamar vencedor, embora seja admiti
9 0 Estado entre Estados: as organizações interestatais 239
do por muitos historiadores que os egípcios teriam sido fragorosamente derrota
dos. O fato é que dessa animosidade surgiu um tratado de paz que, se não foi o pri
meiro, foi o mais significativo da História antiga do Próximo Oriente. Em sua obra
O segredo dos hititas, C. W. Ceram assinala:
A batalha de Kadesh, travada no ano de 1296 antes de Cristo, entre o faraó Ram-
sés II e o rei hitita Muwatalis, verdadeiramente figura entre essas batalhas de primei
ra importância para o mundo. Ela decidiu o destino da Síria e da Palestina, assim como
da balança do poder entre o Egito e Hatti. E o que acontecia aos países entre o Nilo e
o Tigre era, naqueles tempos, a história do mundo. Há outro aspecto fascinante nesta
batalha junto ao rio Orontes. É a primeira batalha da que somos capazes dc recons
truir. E na sua esteira veio o primeiro tratado dc paz detalhado de que temos conheci
mento, um pacto que ultrapassa, em sabedoria política, muitos dos tratados de paz
que têm sido produzidos pelas nações do vigésimo século da Era Cristã, (p. 177)
Vejam, a antiguidade do acordo celebrado entre egípcios c hititas, cm época
tão remota, bem demonstra que os governantes já intuíam a importância dos tra
tados, principalmente os de paz. Como as pessoas naturais, tangidas pela razão,
consideram prudente alternativa compor suas querelas e atender seus interesses sua-
soriamente, mediante contratos, também as antigas sociedades políticas, conduzi
das por seus governantes, já reconheciam as vantagens da composição amigável de
suas dissidências.
A complexidade crescente das relações da comunidade internacional, a interde
pendência cada vez maior imposta a cada Estado em relação aos demais, tem ense
jado a multiplicação dos tratados. Hoje, seria praticamente impossível um Estado
impor, unilateralmente, a outro ou outros Estados qualquer conduta de seu ex
clusivo interesse; imediatamente, sanções de ordem econômica, política ou, no mí
nimo, morais se fariam sentir, sem falarmos no ubíquo terrorismo que solapa o mo
ral de qualquer Estado que, supostamente, venha a sc impor a outro pela força.
Qual a natureza do tratado internacional? Qual sua eficácia?
O tratado é a fonte primeira do direito internacional c, embora haja acordos
de outra natureza no plano interestatal, o fato é que por seu intermédio se regem
as matérias mais importantes, além de ser manifestação de vontade objetiva democrá
tica por excelência, tendo em vista a participação direta dos Estados interessados.
A Convenção de Viena, de 1969, sobre tratados, confere a seguinte definição des
te ato:
Tratado significa um acordo internacional concluído entre Estados, em forma
escrita e regulado pelo Direito Internacional, consubstanciado em um único instru
mento ou em dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja a sua designação
específica.
240 Teoria Geral do Estado
Embora a forma escrita seja exigida para a validade do tratado devido à im
portância deste, orientação adotada em 1928 na Convenção de Havana sobre tra
tados, é fato que alguns autores ainda consideram a forma oral de certos acordos
internacionais, como no caso dc notas diplomáticas confirmando acordos verbais
anteriores (cf. Celso D. de Albuquerque Mello, Curso de direito internacional pú-
blico, p. 259, nota).
O tratado é apenas uma dentre as espécies da grande família dos atos inter
nacionais de consenso, valendo uma referência aos seguintes: a) Declaração - ato
destinado a instituir princípios jurídicos ou reafirmar uma atitude política comum;
b) Estatuto - ato que estabelece as regras de criação e funcionamento de novos ór
gãos, geralmente tribunais internacionais (Estatuto de Roma do Tribunal Penal In
ternacional, de 1998; c) Protocolo - o termo tem dois significados: c. a) a ata de
uma conferência; c. b) protocolo-acordo - tratado em que são criadas normas jurí
dicas; d) Acordo - trata-se dc um ato com objetivos econômico-financeiros ou cul
turais; e) Concordata - trata de matéria de competência comum da Igreja e do Esta
do; f) Compromisso - ato utilizado para acordos sobre litígios que vão ser submetidos
à arbitragem; g) Convênio - ato que versa matéria cultural ou transporte.
Quanto à eficácia dos tratados, esta pressupõe: a) capacidade dos contratan
tes; b) habilitação dos agentes signatários; c) consentimento mútuo c válido; obje
to lícito e possível; d) no caso do Brasil, o referendo do Congresso Nacional (CF,
art. 84, VIII).
Entretanto, é relativamente ao concurso entre o tratado internacional e as nor
mas internas de cada Estado que surgem a maiores indagações. Havendo conflito
entre a norma internacional e a norma interna, qual delas deve prevalecer? Duas
correntes doutrinárias se opõem no tocante à vigência dos tratados no plano inter
no de cada Estado, a saber, a dualista e a monista.
A teoria dualista foi elaborada por Heinrich Triepel, embora a denominação
dualista a ela atribuída seja de Alfred Verdross. Para o dualismo a ordem interna
cional e a interna são realidades distintas, inconfundíveis, com fundamentos e des
tinatários distintos. Com efeito, a ordem internacional obtém sua validade em pro
cedimentos típicos da comunidade internacional, resultando da vontade de vários
Estados contratantes, ao passo que a ordem interna funda-se na Constituição, que
brota da vontade de um Estado apenas. Ademais, a ordem internacional rege rela
ções entre Estados, exclusivamente, enquanto a interna se ocupa somente de pes
soas naturais e jurídicas, podendo estas ser nacionais ou estrangeiras. Nesse senti
do, a ordem jurídica interna disciplina as relações entre pessoas naturais (relações
de direito privado) ou entre estas e o próprio Estado em que se situam (relações de
direito público interno).
Ora, conforme a teoria dualista, para ter validade e eficácia no âmbito inter
no do Estado, a norma internacional deve ser admitida oficialmente no âmbito des
te. No Brasil, a CF adverte, no art. 84, VIII, que a eficácia dos tratados no territó
9 0 Estado entre Estados: as organizações interestatais 241
rio brasileiro depende de referendo do Congresso Nacional, norma que se conjuga
com o art. 4 9 ,1, da Lei Magna, que diz competir, exclusivamente, ao Congresso
Nacional resolver, definitivamente, sobre tratados, acordos ou atos internacionais
que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
Assim, como observa Larissa Ramina
[...] não haveria conflito de fontes nas relações entre Direito Internacional e Direito
Interno, pois, existindo duas ordens jurídicas independentes, estas não poderiam se
chocar: a recepção do Direito Internacional seria realizada mediante sua transforma
ção cm Direito Interno. Assim, a ordem jurídica internacional c as ordens jurídicas in
ternas seriam apenas comunicantes, a partir do momento da transformação da norma
internacional cm norma interna.
Quanto à teoria monista, cujo expoente é Hans Kelsen, mostra-se antípoda
do pensamento dualista. Para o conhecido mestre vienense, não pode haver duas
ordens jurídicas independentes, mas apenas uma, daí a denominação de sua dou
trina. Kelsen justifica o monismo invocando sua conhecida teoria da pirâmide nor
mativa, que elaborou com outro jurista, Adolf Mcrkl. Uma norma, diz Kelsen, re
tira sua validade daquela que lhe é imediatamente superior, até chegarmos ao
ápice da pirâmide, onde reina, soberana, a Gründnorm ou norma fundamental, no
caso, a norma de direito internacional fundada no costume, qual seja, pacta sunt
servanda.
Kelsen afirma o primado do direito internacional, haja vista terem, as normas
de direito interno, validade decorrente daquele, o que se coaduna com a moderna
concepção da soberania, segundo a qual, como lembra Larissa Ramina, Estado so
berano é aquele que se acha diretamente subordinado ao direito internacional. A
superioridade hierárquica do direito internacional sobre o direito interno seria es
sencial da própria existência deste, o qual, ademais, desvinculado daquele, não es
taria subordinado a qualquer espécie de ordem, a não ser a moral.
O monismo viria a se cindir cm duas correntes, a do monismo internaciona-
lista e a do monismo nacionalista. A primeira afirma a absoluta primazia do trata
do sobre a ordem interna: havendo conflito entre eles, prevalece a norma de direi
to internacional, como se observa nos arts. 11 da Convenção de Havana sobre
tratados, de 1928, e 26 e 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados
entre Estados e organizações internacionais ou entre organizações internacionais,
de 1986, dispositivos estes que dizem:
Art. 11. Os tratados continuarão a produzir os seus efeitos, ainda quando se mo
difique a constituição interna dos Estados contratantes. Se a organização do Estado
mudar, de maneira que a execução seja impossível, por divisão de território ou por ou
tros motivos análogos, os tratados serão adaptados às novas condições. [...] Art. 26.
(Pacta sunt servanda) Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por
242 Teoria Geral do Estado
elas de boa-fé. Art. 27, item 1°. Um Estado-parte de um tratado não pode invocar as
disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado.
Quanto à teoria monista nacionalista, esta afirma a primazia da Constituição do
Estado sobre as normas internacionais; havendo conflito entre uma norma interna e
uma internacional, deve prevalecer aquela. O direito público brasileiro consagra essa
corrente, pois a Constituição Federal, como norma fundante primeira, impõe-se a to
das as outras, incluída a internacional. E para que haja recepção dessa pela ordem ju
rídica brasileira, devem ser obedecidos os dispositivos constitucionais respectivos, a sa
ber, arts. 4o, 1,5o, §§ 2o e 3o, 48, caput, 49,1, 84, VIII, e 109, II, III e V.
6) 0 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL - TPl
O Tribunal Penal Internacional (TPI) é uma pessoa jurídica de direito públi
co externo, vinculada à União Europeia (UE), tendo por objetivo julgar os crimes
de genocídio, guerra e agressão, bem assim outros crimes contra a humanidade. Foi
instituído pelo chamado Estatuto de Roma, de 17.07.1998, do qual o Brasil é signa
tário desde 07.02.2000, com recepção na ordem jurídica brasileira desde 06.06.2002,
mediante o Decreto Legislativo n. 112, de 06.06.2002, e promulgado internamen
te pelo Decreto n. 4.388, de 25.09.2002.
Tem personalidade jurídica internacional (art. 4°, 1), caráter permanente (art.
I o) e sede em Flaia - Países Baixos (art. 3o, 1). A competência do Tribunal restrin-
gir-se-á aos crimes mais graves que afetam a comunidade internacional, a saber: a)
crimes de genocídio (art. 6o); b) crimes contra a humanidade (art. 7°); c) crimes dc
guerra (art. 8o); d) crime de agressão.
Qualquer Estado-parte poderá denunciar ao procurador uma situação em que
haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários crimes da competência do
Tribunal e solicitar ao procurador que a investigue, com vista a determinar se uma
ou mais pessoas identificadas deverão ser acusadas da prática desses crimes.
As penas privativas de liberdade serão cumpridas num Estado indicado pelo
Tribunal, a partir de uma lista de Estados que lhe tenham manifestado a sua dis
ponibilidade para receber pessoas condenadas. O Tribunal poderá, a qualquer mo
mento, decidir transferir um condenado para uma prisão de outro Estado. Por ou
tro lado, a pessoa condenada pelo Tribunal poderá, a qualquer momento, solicitar
sua transferência do Estado incumbido da execução. O Tribunal terá competência
exclusiva para decisões sobre qualquer pedido de revisão ou recurso. O Estado da
execução não obstará a que o condenado apresente um tal pedido.
LEITURAS COMPLEMENTARES 10
Na seleção dos textos a seguir, não levamos em conta a vetustez ou modernida
de dos autores. Integram o rol seleto dos clássicos, e clássicos não envelhecem. Vale
lembrar que são textos pouco conhecidos da maioria do público, embora de notória
importância, como o leitor perceberá de imediato. Vale acrescentar que tais escritos
revelam ideologias dc toda ordem, em respeito ao mais autêntico espírito democrá
tico e à liberdade de opinião, de modo a ativar o senso crítico do leitor iniciante. Nes
te diapasão, cumpre ressaltar que evitamos a inclusão de excertos já conhecidos por
todos, facilmente encontrados num sem-número de recentes antologias, o que torna
os textos que o leitor tem, diante de si, um excelente complemento para a pesquisa
acadêmica. A maior parte desta coletânea é, hoje, dificilmente encontrada nas livra
rias ou, mesmo, nos sebos, de modo que o intento de facilitar, ao mestre e ao aluno,
o acesso a obras hoje raras fica, na medida de nossas possibilidades, concretizado.
1) MARCO TÚLIO CÍCERO1
Dos deveres ("De o ffic iis ")
(Tratado dos deveres, trad. Nestor Silveira Chaves, São Paulo, Ed. Cultura Brasileira,
s.d.; De officiis, trad. e notas de Maximiano Augusto Gonçalves, Rio de Janeiro, Livr.
H. Antunes; Dos deveres, trad. e notas de João Mendes Neto, São Paulo, Saraiva.)
1 Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), príncipe dos advogados e célebre orador, escritor e político ro
mano, deve sua fama menos à sua atividade política, durante a qual manteve, quase sempre, postu
ra ambígua, do que à sua brilhante produção jurídica e filosófica, consistente em obras ainda hoje
prestigiadas, como Do orador. Bruto, Da velhice, Dos deveres e Da República, nas quais refulge a
chamada humanitas ou sabedoria civil e moral tipicamente romana.
243
244 Teoria Geral do Estado
Por mim, entendo que nunca sc deve rejeitar proposições de paz, quando não
há aparência de perfídia; se quisessem me ouvir, teríamos uma república, talvez a
melhor de todas, e não a que existe. De um lado, é preciso consolar os que foram
vencidos pela força; de outro, receber generosamente os sitiados que depuseram ar
mas e se colocaram à disposição do general, ainda quando o cerco começa a pene
trar na muralha. Sobre isso, a justiça foi tão bem observada por nossos maiores que
aqueles que tinham recebido a submissão das cidades e nações tornavam-se seus
protetores.
As condições que justificam uma guerra têm sido santamente consignadas no
direito do povo romano, quando estabelece como única guerra legítima aquela que
é feita para reivindicar um território usurpado, ou depois dc declaração formal,
contendo os motivos.
Pompílio, governador de uma província, tinha no seu exército um filho de Ca
tão, que fazia suas primeiras armas. Esse general deliberou licenciar uma legião, e o
filho de Catão, que dela fazia parte, se encontrava licenciado; mas, como gostava de
guerra, ficou no exército. Catão escreveu a Pompílio que, se ele consentisse em ter
seu filho sob sua bandeira, era preciso engajá-lo de novo, pois que, tendo sido o pri
meiro dispensado, não podia legalmente combater o inimigo: tanto era ele rigoroso
em observar as leis de guerra. Temos ainda a carta que o velho Catão escreveu a seu
filho Marcos, que servia na Macedônia na época da guerra contra Perseu: “Soube,
diz ele, que foste licenciado pelo Cônsul. Cuidado em se meter em qualquer comba
te: desde que não se é soldado, não se tem o direito de combater”.
XII
Sobre isso quero observar: mudamos o nome de perduellis, que designava,
propriamente, inimigo, pelo de hostis, temperando assim a doçura da palavra com
a dureza da coisa. Com efeito, nossos maiores chamavam hostis os que chamamos
agora perigrinus. Lê-se na Lei das Doze Tábuas: Aut dies status cum hoste, e mais
adiante Auctoritas aeterna adversus hostem. Há alguma coisa mais humana que
dar nomes tão moderados a quem nos faz a guerra? Contudo, com o tempo, o nome
se tornou duro, e só se diz de quem toma armas contra nós.
Mesmo quando se luta pela supremacia, sendo a glória a finalidade da guer
ra, não é menos indispensável a existência de uma razão legítima. De outro lado,
uma guerra dessa natureza deve ser conduzida com maior animosidade. Nas guer
ras civis se comportam diferentemente com um inimigo e com um competidor; com
este sc disputa uma dignidade, uma magistratura; com o outro se defende a vida,
a honra.
Fizemos a guerra aos Celtibcros c aos Cimbros como a inimigos, por uma
questão de existência e não de supremacia; ao contrário, com os latinos, os Sabi-
nos, os Sânitas, os Cartagineses, ao rei Pyrro, só combatemos pelo império. Os
10 Leituras Complementares 245
cartagineses foram pérfidos; Aníbal, cruel; mas os outros não se mostravam mais
justos. Lembra-se a nobre resposta de Pyrro quando se tratou do resgate dos pri
sioneiros:
Romanos, para mim nem o ouro, nem resgate para mim!
Não transformemos a guerra num tráfico infame!
Que o ferro, não o ouro, decida a nossa sorte,
Para saber quem possuirá o Império!
Que o valor decida. Escutai minhas palavras!
Àqueles que o destino da batalha poupar,
Eu juro deixar a doce liberdade.
Levareis vossos prisioneiros, Pyrro os devolverá,
Tomando por testemunha a majestade dos deuses.
São palavras dignas de um rei, dignas do sangue de Eacides.
XIII
O cidadão, que, mesmo sob pressão dc circunstâncias, fez uma promessa ao
inimigo, deve manter sua palavra.
Na primeira guerra púnica, Regulus, preso pelos Cartagineses, foi enviado a
Roma para tratar da troca de prisioneiros, c jurou voltar. Quando chegou, aconse
lhou o Senado a não devolver os cativos; depois, apesar das súplicas de parentes e
amigos, voltou, e preferiu submeter-se ao suplício a faltar com a palavra dada ao
inimigo.
No tempo da segunda guerra púnica, antes da batalha de Cannes, Aníbal en
viou prisioneiros a Roma para negociarem o resgate de cativos, depois de tê-los fei
to jurar que retornariam se nada obtivessem; os que se tornaram perjuros, foram
degradados pelos censores e relegados toda a vida para a classe dos tributários, sem
exclusão do que recorreu à astúcia para se desembaraçar de compromisso. Com
efeito, saindo do acampamento com permissão de Aníbal, voltou sob o pretexto de
que havia esquecido qualquer coisa; retornou em seguida, crendo-se quite com a
sua palavra por não ter estado nos termos do tratado.
Ora, a palavra empenhada deve sempre refletir o que se pensa e não o que sc
diz. Nossos antepassados deram um lindo exemplo de justiça para o inimigo. Um
trânsfuga do exército de Pyrro ofereceu-se ao Senado para envenenar o rei; o Se
nado e C. Fabricius entregaram o trânsfuga a Pyrro. Recusaram assim comprar com
um crime a morte de um inimigo poderoso e que declarou guerra sem ser provoca
do. Mas é o bastante sobre os deveres na guerra.
Observemos ainda que devemos praticar justiça mesmo com as pessoas de
baixo nível. Ninguém de mais humilde condição que os escravos; são aqueles que
são tratados como mercenários aos quais se exige trabalho a troco do necessário
para viverem.
246 Teoria Geral do Estado
Quanto à injustiça, é cometida de duas maneiras: pela violência e pela frau
de. Uma pertence à raposa; outra ao leão. Todas as duas são indignas do homem,
mas a fraude é mais odiosa. De todas as injustiças, a mais abominável é a desses
homens que, quando enganam, procuram parecer homens de bem. É o bastante so
bre a justiça.
2) SANTO TOMAS DE AQUINO
Suma teológica e Suma contra os gentios
(Thomas Aquinas, in Britannica Great Books of the Western World, Encyclopaedia
Britannica, v. 19.)
Tradução do autor.
Nos seres naturais vemos que as espccies são gradativamente ordenadas. As
sim, os compostos são mais perfeitos do que os elementos, as plantas do que os mi
nerais, os animais do que as plantas e os homens do que os outros animais. Em
cada uma dessas classes encontram-se espécies mais perfeitas do que as outras. Sen
do, pois, a Divina Sabedoria a causa da distinção das coisas para a perfeição do
universo, também será causa da sua desigualdade. Pois não seria perfeito o univer
so se nas coisas só se encontrasse um grau de bondade (Santo Tomás de Aquino,
Suma teológica, I, q. 47, a. 2) [...J Muitos bens finitos são melhores do que um só,
pois teriam o que tem este e ainda mais. Ora, é finita a bondade de toda criatura,
pois é deficitária da infinita bondade de Deus. Logo, é mais perfeito o universo ha
vendo muitas criaturas do que se houvesse um único grau delas. Ao Sumo Bem
compete fazer o que é melhor. Logo, era-Lhc conveniente fazer muitos graus de cria
turas. Ademais, a bondade da espécie excede a do indivíduo, como o formal exce
de o material; logo, mais acrescenta a bondade do universo a multiplicidade das es
pécies do que a dos indivíduos de uma mesma espécie. Por isso, à perfeição do
universo contribui não só haver muitos indivíduos, mas haver diferentes espécies
e, por conseguinte, diferentes graus de coisas (Santo Tomás de Aquino, Suma con
tra os gentios, Livro II, Gap. 45). [...] A diversidade e a desigualdade das criaturas
não procede do acaso, nem da diversidade da matéria, nem da intervenção de al
gumas causas ou méritos, mas procede da própria intenção de Deus, que quis dar
à criatura a perfeição que lhe era possível ter. Daí dizer-se no Gênesis: “Viu Deus
tudo o que tinha feito, e era excelente7’ (1,31) (Suma contra os gentios, cit.).
10 Leituras Complementares 247
3) NICOLAU MAQUIAVEL2
O príncipe
(Machiavelli, II príncipe, Itália, Novara, Edipem, 1980, e Tutte le opere, Firenze, Sta-
bilimenti Grafici Bemporad Marzoco, 1969.)
Tradução do autor.
Capítulo I De quantas espécies são os princ ipados e de que fo rm as são adquir idosTodos os Estados, todos os governos que tiveram e têm poder sobre os ho
mens, foram e são repúblicas ou principados. Os principados são hereditários, quan
do o sangue senhorial é nobre já há muito tempo, ou novos. Os novos podem ser
totalmente novos, como foi Milão com Francisco Sforza, ou membros acrescidos
ao Estado hereditário do príncipe, que os adquire, como é o reino de Nápoles em
relação ao rei da Espanha. Esses domínios assim obtidos estão acostumados ou a
viver submetidos a um príncipe ou a ser livres, sendo adquiridos com tropas de ou
trem ou com as próprias, bem como pela fortuna ou por virtude.
Capítulo XVII Da crue ldade e da piedade: se é m elhor ser tem ido ou ser amado
Reportando-me às outras qualidades já mencionadas, digo que cada príncipe
deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel; entretanto, deve ter o cuida
do de não usar mal essa piedade. César Bórgia era considerado cruel; entretanto,
essa sua crueldade tinha recuperado a Romanha, logrando uni-la e pô-la em paz e
em lealdade. O que, se bem considerado for, mostrará ter sido ele muito mais pie
doso do que o povo florentino, o qual, para fugir à pecha de cruel, deixou que Pis-
Nicolau Maquiavel (1469-1527), pensador italiano natural de Florença, tomar-se-ia um dos mais
conhecidos doutrinadores do seu tempo e da atualidade, principalmente pelo prestígio de que ain
da frui O príncipe, sua obra mais conhecida. Nomeado secretário da senhoria de Florença em 1498,
foi incumbido, entre 1503 e 1512, de várias missões diplomáticas junto à corte francesa, que lhe
inspiraram a feitura de inúmeros escritos. Exilado em 15 12, dedicou-se à pesquisa histórica e à ela
boração de obras que se tornariam célebres, especialmente os Discursos sobre a primeira década de
Tito Lívio c O príncipe. Nesta, procurou demonstrar como deveria agir o homem providencial que
unificaria os italianos e emanciparia a Itália. Sendo esse objetivo nobre, todos os meios para alcan
çá-lo seriam válidos. Tal diretriz acarretou-lhe a má fama dc escritor cínico e insensível, sem que
seus detratores se apercebessem de que O príncipe não fora escrito para todos os povos e todas as
épocas, mas sim para um momento grave da história de uma nação, a italiana. Conseguida a unifi
cação, o príncipe seria perfeitamente descartável, porque cumprida sua missão.
248 Teoria Geral do Estado
toia fosse destruída. Um príncipe não deve, pois, temer a fama de cruel, desde que
por ela conserve seus súditos unidos e leais, pois que, com mui poucos exemplos,
ele será mais piedoso do que aqueles que, por excessiva piedade, deixam acontecer
as desordens das quais resultam assassínios ou rapinagens, porque estes costumam
prejudicar a comunidade inteira, enquanto aquelas execuções que emanam do prín
cipe atingem apenas um indivíduo. E, dentre todos os príncipes, é ao novo que se
torna impossível fugir à pecha de cruel, visto serem os Estados novos cheios de pe
rigos. Diz Virgílio, pela boca de Dido:
“ Res dura, et regni novitas me talia cogunt moliri, et late fines custode tuerr.
O príncipe, contudo, deve ser lento no crer e no agir, não se alarmar por si
mesmo e proceder por forma equilibrada, com prudência e humanidade, buscan
do evitar que a excessiva confiança o torne incauto e a demasiada desconfiança o
faça intolerável.
Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A
resposta é que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las,
cm tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado.
Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, si
muladores, tementes do perigo, ambiciosos dc ganho; c, enquanto lhes fizeres bem,
são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que,
como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se avizinha, po
rém, revoltam-se. E o príncipe que confiou inteiramente em suas palavras, encon
trando-se destituído de outros meios de defesa, está perdido: as amizades que se
adquirem por dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma, são compradas,
mas com elas não se pode contar e, no momento oportuno, não se torna possível
utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar
do que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por um vínculo de
obrigação, que, por serem os homens maus, é quebrado em cada oportunidade que
a eles convenha; mas o temor é mantido pelo receio de castigo, que jamais se aban
dona.
Deve o príncipe, não obstante, fazer-se temer, de forma que, se não conquistar
o amor, fuja ao ódio, mesmo porque podem muito bem coexistir o ser temido c o
não ser odiado: isso conseguirá sempre que se abstenha de tomar os bens e as mu
lheres de seus cidadãos e de seus súditos, e, em se lhe tomando necessário derramar
o sangue de alguém, faça-o quando existir conveniente justificativa e causa manifes
ta. Deve, sobretudo, abster-se dos bens alheios, posto que os homens esquecem mais
rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio. Além disso, nunca fal
tam motivos para justificar as expropriações, e aquele que começa a viver de rapi
nagem sempre encontra razões para apossar-se dos bens alheios, ao passo que as ra
zões para o derramamento de sangue são mais raras e esgotam-se mais depressa.
Mas quando o príncipe está à frente de seus exércitos e tem sob seu coman
do uma multidão de soldados, então é de todo necessário não se importar com a
10 Leituras Complementares 249
fama de cruel, já que, sem ela, jamais se conservará exército unido e disposto a al
guma empresa. Dentre as admiráveis ações de Aníbal, menciona-se esta: tendo um
exército imenso, constituído de homens de inúmeras raças, conduzido a batalhar
em terras alheias, nunca surgiu qualquer dissensão entre eles ou contra o príncipe,
tanto 11a má como na boa fortuna. Isso não pode resultar dc outra coisa senão da
quela sua desumana crueldade, que, aliada às suas infinitas virtudes, o tornou sem
pre venerado e terrível no conceito de seus soldados; sem aquela crueldade, as vir
tudes não lhe teriam bastado para surtir tal efeito, e, todavia, escritores nisto
pouco ponderados, admiram, de um lado, essa sua atuação e, de outro, condenam
a principal causa da mesma.
Para prova de que, realmente, as outras suas virtudes não seriam bastantes,
pode-se considerar o caso de Cipião, homem dos mais notáveis não somente nos
seus tempos mas também na memória de todos os fatos conhecidos, cujos exérci
tos se revoltaram na Espanha em conseqüência de sua excessiva piedade, pois que
havia concedido aos seus soldados mais liberdades do que convinha à disciplina
militar. Tal fato foi-lhe censurado no Senado por Fábio iMáximo, o qual o chamou
de corruptor da milícia romana. Os locrences, tendo sido arruinados e abatidos por
um legado de Cipião, não foram por ele vingados, nem a insolência daquele lega
do foi reprimida, resultando tudo isso de sua natureza fácil; tanto assim que, que
rendo alguém desculpá-lo perante o Senado, disse haver muitos homens que me
lhor sabiam não errar do que corrigir os erros. Essa sua natureza teria com o
tempo sacrificado a fama e a glória de Cipião, tivesse ele perseverado no coman
do; mas vivendo sob o governo do Senado, esta sua prejudicial qualidade não só
desapareceu, como lhe resultou em glória.
Concluo, pois, voltando à questão de ser temido e amado, que um príncipe
sábio, amando os homens como a eles agrada e sendo por eles temido como dese
ja, deve apoiar-se naquilo que é seu e não no que é dos outros; deve apenas empe
nhar-se em fugir ao ódio, como foi dito.
4) W ILU A M SHAKESPEARE
Jú lio César3
{Obras completas; tragédias, Júlio César, Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, 1988, v. 1,
p. 447 c scgs.)
Este belo e, paradoxalmente, tremendo texto, fruto do gênio de Shakespearc, demonstra, bem, a
mutabilidade da chamada opinião pública. Ora enaltecendo Brutus e ultrajando o cadáver de Cé
sar, ora amaldiçoando Brutus e divinizando César, tão logo se soube que este deixava bens ao povo,
percebe-se a volubilidade do ser humano, em face de seus interesses imediatos. Em festejada obra,
o Prof. Pedro Salvetti Netto adverte ser fundamental que a opinião pública autêntica só é possível
250 Teoria Geral do Estado
CENA 11:0 Fórum Entram Bruto e Cássio com uma turba de Cidadãos.
C id a d ã o s . - Queremos que nos seja dada uma explicação! Dai-nos explicação!
Br u t o . - Então, acompanhai-me e escutai, meus amigos. Cássio, ide à outra
rua e dividi a multidão. Os que desejarem ouvir-me, fiquem aqui. Os que deseja
rem acompanhar Cássio, poderão acompanhá-lo. Serão expostas publicamente as
razões da morte de César.
Pr im e ir o C id a d ã o . - Eu ouvirei Bruto falar.
Se g u n d o C id a d ã o . - Eu ouvirei Cássio e assim poderemos comparar-lhes as
opiniões, quando tivermos ouvido separadamente um e outro. (Sai Cássio com al
guns Cidadãos. Bruto sobe à tribuna.)
Te r c e ir o C id a d ã o . - O nobre Bruto já está na tribuna. Silêncio!
Bruto . - Sede pacientes até o fim! Romanos, compatriotas e amigos! Escutai-me
defender minha causa e guardai silêncio para que possais ouvir-me. Acreditai-me por
minha honra e respeitai minha honra para que possais acreditar-me. Julgai-me com
vossa sabedoria e avivai vossos sentidos para que possais ser melhores juizes. Se
houver nesta assembleia algum amigo caro a César, digo-lhe que o afeto de Bruto
por César não era menor do que o dele. Se então esse amigo perguntar por que Bru
to se levantou contra César, esta é minha resposta: “Não que amasse menos César,
porém porque amava mais Roma”. Preferiríeis que César vivesse e morrêsseis to
dos escravos, a César morresse e vivêsseis todos livres? César gostava de mim e eu
choro por ele; ele foi afortunado, eu me alegro; foi valente, eu o venero; mas, como
foi ambicioso, eu o matei. Há lágrimas para sua amizade; júbilo para sua fortuna;
honra para seu valor; c morte para sua ambição. Quem é aqui tão vil que deseje
ser escravo? Se alguém existe, que fale, porque eu o ofendi! Quem é aqui tão estú-
se conscientizada, se responsável, se informada. Fora disso, prossegue, “a opinião das massas é so
bremaneira influenciável e, portanto, tão volúvel como a pluma ao vento da ópera de Verdi; exal
tando Cristo em um domingo, como o Redemptor Hominis e o Messias - levou-o à cruz cinco dias
depois. Na percepção genial do agir humano, na visão intuitiva da própria psicologia das massas,
os romanos, ao agraciarem o conquistador com as pompas e as honras do triunfo, faziam-no acom
panhar, na biga majestosa, um escravo que, seguidamente, lhe murmurava aos ouvidos: Lembra-te
de que és homem, para adverti-lo de que a mesma multidão, ora a tributar-lhe a glória, bem pode
ria, em tempo próximo, levá-lo à rocha Tarpeia” (Curso de teoria do Estado, 3. ed., São Paulo, Sa
raiva, 1979, p. 89-90). Em 1895, um eminente sociólogo francês, médico de profissão, Gustave Le
Bon, publicou uma pequena obra intitulada A psicologia das multidões, na qual afirmava que, quan
do as pessoas se juntam numa reunião política ou, mesmo, numa via pública, provocam, uns nos
outros, a regressão em massa a um estado primitivo. Pelo simples fato de fazer parte dc uma mul
tidão, advertia Le Bon, o homem desce vários degraus na escada da civilização. Por si mesmo, pode
ser uma pessoa sóbria e refinada; na multidão, transforma-se num bárbaro capaz das ações mais
brutais e irracionais, que caracterizam uma rixa ou uma horda de linchadores (cf. Arthur Her-
man, /\ ideia de decadência na história ocidental, Rio de Janeiro - São Paulo, Record Ed., 1999,
p. 137-8).
10 Leituras Complementares 251
pido que não queira ser romano? Se existir, que fale, porque eu o ofendi! Quem é
aqui tão baixo que não ame sua pátria? Se existir, que fale, porque eu o ofendi. Es
pero uma resposta.
To d o s . - Não há, Bruto, não há!
Br u t o . - Então, não ofendi ninguém. Nada mais fiz com César do que teríeis
feito com Bruto! Os motivos da morte dele estão registrados no Capitólio. A gló
ria, que lhe valeram os méritos que possuía, não foi diminuída, nem foram exage
radas as ofensas que lhe valeram a morte. (Entram Antônio e outros com o corpo
de César.) Aqui chega o corpo dele, pranteado por Marco Antônio, que, sem tomar
parte em sua morte, dela auferirá benefícios, um lugar na República. Quem de vós
não conseguirá outro tanto? Ainda uma palavra e partirei. Se matei meu melhor
amigo pela felicidade de Roma, estou pronto a usar meu punhal contra mim, se mi
nha pátria quiser reclamar minha morte.
To d o s . - Viva Bruto! Viva! Viva!
Pr im e ir o C id a d ã o . - Vamos carregá-lo para casa em triunfo!
Se g u n d o C id a d ã o . - Vamos erigir-lhe uma estátua junto de seus antepas
sados!
Te r c e ir o C id a d ã o . - Vamos nomeá-lo César!
Q u arto C id a d ã o . - As melhores qualidades dc César sejam coroadas em
Bruto!
Pr im e ir o C id a d ã o . - Vamos levá-lo para casa com vivas e aclamações!
Br u t o . - Meus compatriotas!...
Se g u n d o C id a d ã o . - Calem ! Silêncio! Fala Bruto.
Pr im e ir o C id a d ã o . - Calem, Vamos!
Br u t o . - Caros compatriotas, deixai-me ir embora sozinho, e, em considera
ção a mim, permanecei aqui com Antônio. Honrai o cadáver dc César e ouvi a apo
logia de suas glórias que, com nosso beneplácito, Antônio pronunciará. Suplico-
vos! Ninguém deve afastar-se, exceto eu, somente, até que Antônio haja acabado
de falar. (Sai.)
Pr im e ir o C id a d ã o . - Fiquemos! Vamos ouvir Marco Antônio.
Te r c e ir o C id a d ã o . - Que suba à tribuna pública: nós o escutaremos. Subi,
nobre Antônio!
A n t ô n io . - Em consideração a Bruto, tenho uma obrigação para convosco.
(Sobe na tribuna.)
Q uarto C id a d ã o . - Que disse de Bruto?
Te r c e ir o C id a d ã o . - Diz que, por consideração a Bruto, tem uma obrigação
para com todos nós.
Q uarto C id a d ã o . - Seria melhor que não falasse mal de Bruto aqui.
Pr im e ir o C id a d ã o . - Esse César foi um tirano!
Terc e iro C id a d ã o . - Sim, não há dúvida. Foi uma bênção para nós que Roma
se tivesse libertado dele.
252 Teoria Geral do Estado
Se g u n d o C id a d ã o . - Silêncio! Vamos ouvir o que Antônio tem para dizer.
A n t ô n io . - Nobres romanos!...
To d o s . - Silêncio! Vamos ouvi-lo.
A n t ô n io . - Amigos, romanos, compatriotas, prestai-me atenção! Estou aqui
para sepultar César, não para glorificá-lo. O mal que fazem os homens perdura de
pois deles! Frequentemente, o bem que fizeram é sepultado com os próprios ossos!
Que assim seja com César! O nobre Bruto vos disse que César era ambicioso. Se
assim foi, era uma grave falta e César a pagou gravemente. Aqui, com a permissão
de Bruto e dos demais (pois Bruto é um homem honrado, como todos os demais
são homens honrados), venho falar nos funerais de César. Era meu amigo, leal e
justo comigo; mas Bruto diz que era ambicioso; e Bruto é um homem honrado.
Trouxe muitos cativos para Roma, cujos resgates encheram os cofres do Estado.
César, neste particular, parecia ambicioso? Quando os pobres deixavam ouvir suas
vozes lastimosas, César derramava lágrimas. A ambição deveria ter um coração
mais duro! Entretanto, Bruto disse que ele era ambicioso e Bruto é um homem hon
rado. Todos vós o vistes nas Lupercais: três vezes eu lhe apresentei uma coroa real
e três vezes ele a recusou. Isto era ambição? Entretanto, Bruto disse que ele era am
bicioso, c, sem dúvida alguma, Bruto é um homem honrado. Não falo para desa
provar o que Bruto disse, mas aqui estou para falar sobre aquilo que conheço! To
dos vós já o amastes, não sem motivo. Que razão, então, vos detém, agora, para
pranteá-lo? Oh! inteligência, fugiste para os irracionais, pois os homens perderam
o juízo!... Desculpai-me! Meu coração está ali com César, e preciso esperar até que
ele para mim volte!
Pr im e ir o C id a d ã o . - Acho que tem muita razão no que está dizendo.
Se g u n d o C id a d ã o . - Se considerares devidamente o assunto, cometeram um
grande erro com César.
Te r c e ir o C id a d ã o . - Não é, cidadãos? Temo que um pior do que ele possa
substituí-lo.
Q uarto C id a d ã o . - Notastes as palavras que pronunciou? Não quis aceitar
a coroa. Portanto, não há dúvida de que não fosse ambicioso.
Pr im e ir o C id a d ã o . - Sc for exato, alguns terão que pagar caro.
Se g u n d o C id a d ã o . - Pobre coitado! Está com os olhos vermelhos como fogo
de tanto chorar.
Te r c e ir o C id a d ã o . - Não existe homem mais nobre em Roma do que An
tônio.
Q uarto C id a d ã o . - Vamos observá-lo agora. Está recomeçando a falar.
A n t ô n io . - Ainda ontem a palavra de César podia ser mais forte do que o
universo! Agora, ali ele jaz e ninguém, mesmo que seja o mais miserável possível,
não lhe presta uma só homenagem! Ó senhores, se estivesse disposto a excitar vos
sos corações e vossos espíritos para o motim e a cólera, seria injusto com Bruto e
com Cássio, os quais, como todos vós sabeis, são homens honrados. Não quero ser
10 Leituras Complementares 253
injusto com eles! Prefiro ser injusto com o morto, comigo e convosco, a ser injus
to com homens tão honrados! Mas, aqui está um pergaminho com o selo de César.
Eu o encontrei 110 gabinete dele: são as suas últimas vontades. Ouça somente o povo
este testamento (embora, desculpai-me, não pretenda lê-lo), c irá beijar as feridas
de César morto, mergulhando os lenços em seu sangue sagrado! Mendigará um ca
belo como relíquia e, quando morrer, o mencionará nos testamentos, para transmi
ti-lo, como precioso legado, para sua descendência.
Q uarto C id a d ã o . - Queremos ouvir o testamento! Lede-o, Marco Antônio!
To d o s . - O testamento! O testamento! Queremos ouvir o testamento de César.
A n t ô n io . - Sede pacientes, amáveis amigos! Não devo lê-lo! Não é conve
niente que saibais quanto César vos amava! Não sois de madeira, não sois de pe
dra, mas sois humanos e, sendo homens, ao ouvirdes o testamento de César, fica-
reis inflamados, ficareis enlouquecidos. Não é bom que saibais que sois o herdeiro
dele; se vós o soubésseis, 0 I1! que poderia acontecer?
Q uarto C id a d ã o . - Lede o testamento! Queremos ouvi-lo, Antôn io ! É pre
ciso que leiais o testamento! O testamento de César!
A n t ô n io . -Tereis paciência? Esperareis um pouco? Fui longe demais contan-
do-vos isto. Temo ser injusto com os homens honrados, cujos punhais feriram Cé
sar! É o que temo!
Q uarto C id a d ã o . - São traidores: Homens honrados!
To d o s . - Sua última vontade! O testamento!
Se g u n d o C id a d ã o . - São covardes, assassinos! O testamento! Lede o testa
mento!
A n t ô n io . - Quereis compelir-me então a ler o testamento? Pois, então, for
mai um círculo em torno do cadáver de César e deixai-me mostrar-vos aquele que
fez o testamento. Posso descer? Vós me dareis vossa permissão?
To d o s . - Damos!
Se g u n d o C id a d ã o . - Descei! (Antônio desce do púlpito.)
Te r c e ir o C id a d ã o . - Estais autorizado.
Q uarto C id a d ã o . - Formai um círculo. Colocai-vos cm volta.
Pr im e ir o C id a d ã o . - Não vos aproximeis do ataúde! Não vos aproximeis
do corpo!
Se g u n d o C id a d ã o . - Lugar para Antônio, para o nobilíssimo Antônio!
An t ô n io . - Não vos aperteis tanto assim contra mim! Permanecei bem longe!
To d o s . - Recuai! Dai lugar! Retirai-vos!
A n t ô n io - Se tiverdes lágrimas, preparai-vos agora para derramá-las. Todos
vós conheceis este manto; lembro-me da primeira vez que César o usou. Era uma
tarde de verão, dentro da tenda, no dia em que venceu os nérvios. Olhai: por este
lugar penetrou o punhal de Cássio! Vede que rasgão abriu o invejoso Casca! Por
este, o bem-amado Bruto o feriu! E, ao retirar o maldito aço, observai como o san
gue de César parece que se lançou atrás dele, como se quisesse certificar-se de que
2 5 4 Teoria Geral do Estado
era ou não Bruto quem tão desumanamente abria a porta! Porque Bruto, como sa
beis, era o anjo de César! Julgai, ó deuses, com que ternura César o amava! Esse
foi o mais cruel de todos os golpes, pois, quando o nobre César viu que ele o feria,
a ingratidão, mais poderosa do que os braços dos traidores, venceu-o completa
mente! Então, estalou seu poderoso coração, c, cobrindo o rosto com o manto, o
grande César caiu aos pés da estátua dc Pompcu, onde o sangue não parava de jor
rar!... Oh! que queda foi aquela, meus compatriotas! Naquele momento, eu, vós e
todos caímos, enquanto triunfava sobre nós a traição sangrenta! Oh! Estais choran
do agora e percebo que sentis a marca da piedade! São lágrimas generosas! Almas
bondosas, por que chorais, quando só vistes ainda as feridas do manto de César?
Olhai: aqui está o próprio César, como estais vendo, desfigurado pelos traidores!
Pr im e ir o C id a d ã o . - Oh! lamentável espetáculo!
Se g u n d o C id a d ã o . - Oh! nobre César!
Te r c e ir o C id a d ã o . - Oh! dia calamitoso!
Q uarto C id a d ã o . - Oh! traidores, bandidos!
Pr im e ir o C id a d ã o . - Oh! visão sangrenta!
Se g u n d o C id a d ã o . - Seremos vingados!
To d o s . - Vingança!... Vamos!... Procuremos!... Queimemos!... Matemos!...
Degolemos!... Não deixemos que nenhum traidor fique vivo!
A n t ô n io . - Esperai, compatriotas!
Pr im e ir o C id a d ã o . - Silêncio! Escutai o nobre Antônio!
Se g u n d o C id a d ã o . - Nós o escutaremos! Nós o seguiremos! Nós morrere
mos com ele!
A n t ô n io . - Bons amigos, amáveis amigos, não me deixeis excitar-vos com esta
repentina explosão de revolta! Aqueles que consumaram este ato são homens hon
rados. Quais eram as queixas secretas que tinham para fazê-lo? Ai! E O que igno
ro. Eles são sensatos e honrados e, sem dúvida, apresentarão a todos vós as razões
que possuíam. Não vim aqui, meus amigos, para roubar vossos corações! Não sou
orador como Bruto, mas, como todos vós sabeis, um homem franco e simples que
amava meu amigo e isso sabem perfeitamente bem os que me deram publicamente
licença para falar a respeito dele. Não tenho espírito, nem palavras, nem mérito, nem
ação, nem eloqüência, nem o poder da palavra capazes de excitar o sangue dos ho
mens! Falo muito claramente e só vos digo o que todos vós já conheceis. Estou mos
trando as feridas do bondoso César, pobres, pobres bocas mudas e peço-lhes que fa
lem por mim! Se eu fosse Bruto, e se Bruto fosse Antônio, esse Antônio perturbaria
a serenidade de vossos espíritos e colocaria uma língua em cada uma das feridas de
César, capaz de comover e levantar em motim as pedras de Roma!
Todos. - Nós nos revoltaremos!
Pr im e ir o C id a d ã o . - Incendiemos a casa de Bruto!
Terc e iro C id a d ã o . - Vamos, então! Vinde! Vamos procurar os conspiradores!
A n t ô n io . - Ouvi-me ainda, compatriotas! Ouvi-me ainda falar!
10 Leituras Complementares 255
To d o s . - Silêncio! Ouçamos Antônio!... Nobilíssimo Antônio!
A n t ô n io . - Amigos, não sabcis o que ides fazer! Que fez César para assim
merecer vossos afetos? Ai, vós o ignorais! Devo, então, dizer-vos. Esquecestes o tes
tamento de que vos falei.
To d o s . - É verdade! O testamento! Fiquemos para escutar o testamento!
A n t ô n io . - A qu i está ele c com o selo de César. A cada c idadão rom ano , a
cada homem , individualmente, ele lega setenta e cinco dracmas.
Se g u n d o C id a d ã o . - Nobilíssimo César! Vingaremos a morte dele!
Te r c e ir o C id a d ã o . - Oh! régio César!
A n t ô n io . - Ouvi-me com paciência!
To d o s . - Silêncio!
A n t ô n io . - Além disso, ele vos deixa todos os seus passeios, seus jardins pri
vados, seus pomares recém-plantados deste lado do Tibre. Lega-os perpetuamente
para vós e para vossos herdeiros como parques públicos, para que possais passear
e divertir-vos. Aqui estava um César! Quando aparecerá outro?
Pr im e ir o C id a d ã o . - Nunca, nunca! Vinde, vamos embora! Queimemos o
corpo dele em lugar sagrado c com as tochas incendiaremos as casas dos traidores!
Levantai o corpo!
Se g u n d o C id a d ã o . - Ide procurar o fogo!
Te r c e ir o C id a d ã o . - Derrubai os bancos!
Q u a r t o C id a d ã o . - Derrubai as arquibancadas, as janelas e tudo! (Saem Ci
dadãos transportando o corpo de César.)
5) HENRY DAVID THOREAU4
Desobediência c iv il
(Madrid, Grupo Cultural Zero, 1985, p. 47-8.)
Tradução do autor.
4 Henry David Thoreau (1817-1862), ensaísta e poeta norte-americano, formou-se em Harvard, ten
do sido aluno e grande amigo de Ralph Waldo Emerson. Cultivou um individualismo radical, po
rém romântico, estranho ao individualismo egoísta burguês. Dele se disse que não desejava viver o
que não c vida, nem praticar a resignação, a menos que absolutamente necessária. Em sua obra mais
conhecida, Desobediência civil, da qual pinçamos um trecho, seu individualismo resta patente quan
do diz: “Não haverá, jamais, um Estado realmente livre e esclarecido, até que o Estado reconheça
o poder do indivíduo como um poder mais alto e independente, do qual derivam seu próprio po
der e sua autoridade”.
256 Teoria Geral do Estado
Aceito, com a maior convicção, o lema: “O melhor governo é aquele que me
nos governa”. Gostaria de vê-lo realizado de uma forma mais rápida e sistemática,
após o que chegaríamos àquele em que também creio: “O melhor governo é o que
não governa nada cm absoluto”, e quando os homens estiverem preparados para
ele, tal será a espécie de governo que terão. O governo, na melhor das hipóteses,
não passa de um artifício, útil, embora a maioria dos governos, normalmente, c to
dos, algumas vezes, sejam inúteis. As objeções que foram feitas ao exército per
manente, muitas respeitáveis e que devem prevalecer, oxalá também se façam ao
governo permanente. O exército permanente é apenas o braço do governo perma
nente. O mesmo governo, que é apenas a forma escolhida pelo povo para fazer va
ler sua vontade, corre o risco de ser violado e corrompido antes que o povo possa
fazer valer sua vontade por seu intermédio. Observem que no atual conflito mexi
cano um pequeno grupo utiliza o governo permanente em benefício próprio; por
que, antes de mais nada, o povo não deu seu consentimento a esse ponto. O gover
no americano o que é, senão uma tradição, embora recente, que se esforça por
prolongar-se, incólume, até a posteridade, mas que perde, a cada momento, uma
parte de sua integridade? Não tem a vitalidade ou a força de um mero ser huma
no, porque um só homem pode dobrá-lo à sua vontade. Não passa de uma escope
ta de madeira, mas nem por isso é menos necessário, porque as pessoas querem ter
uma maquinaria complicada e ouvir seu estrondo para satisfazer a ideia que têm
do governo. Desta maneira os governos demonstram com que sucesso é possível
enganar os homens e, mesmo, enganar-se a si mesmos, para seu próprio proveito.
É excelente, todos devemos aceitá-lo. Apesar disso, esse governo jamais assumiu
qualquer responsabilidade espontaneamente, a não ser abandonar o próprio rumo,
sem maiores preocupações. Não mantém o país livre. Não pacifica o oeste. Não
educa. Foi graças ao próprio caráter que os americanos conseguiram o que pos
suem, e conseguiriam muito mais se o governo não se intrometesse. Porque o go
verno é um recurso mediante o qual os homens conseguiriam viver em paz uns com
os outros c, conforme se disse, o governo será tanto mais útil quanto mais deixe
em paz os governados.
Quanto ao “atual conflito mexicano” referido na antologia, trata-se da guer
ra travada entre os Estados Unidos e o México, nos anos 1846 a 1848, terminada
com o Tratado de Guadalupe/Hidalgo. Nela, o México perdeu o Texas, o Novo
México e a Califórnia, desacreditados os ideais pacifistas de Thomas Jefferson e
iniciado o processo imperialista estadunidense nas Américas, especialmente na Amé
rica do Sul.
10 Leituras Complementares 257
6) JOSEPH DE MAISTRE
O pensamento soc ia l cristão antes de M arx
(Textos e comentários pelo P. Fernando Bastos de Ávila S.J. - Livraria José Olympio
Editora, 1972, p. 20-5.)
A soberania do povoO povo é soberano! É o que sc diz. Mas soberano de quem? Pelo visto de si
mesmo. Mas então o povo é também vassalo. Evidentemente, aqui se esconde al
gum equívoco, para não dizer um erro, porque o povo que manda não é o povo
que obedece. Basta enunciar o slogan: o povo é soberano, para sentir que ele care
ce de um comentário.
Tal comentário não se fará esperar, ao menos no sistema francês. O povo, eis
a explicação, exerce a sua soberania através de seus representantes. A coisa come
ça a se esclarecer. O povo é um soberano que não pode exercer a soberania. Somen
te cada indivíduo do sexo masculino tem sua vez de comandar, durante certo tem
po. Por exemplo: suponhamos que existam hoje na França 25 milhões de homens
sem contar as mulheres, e 700 deputados com mandatos de dois anos. Se esses 25
milhões de homens fossem imortais e se os deputados não fossem reelcgívcis, cada
francês se veria eleito soberano, numa periodicidade mais ou menos de 3500 anos.
Mas como neste período continua-se a morrer, vez por outra, e como os eleitos po
dem reeleger os já eleitos, a imaginação fica estarrecida ante o número formidável
de reis que morrem sem ter reinado.
Mas é mister examinar com mais seriedade a questão. Sobre este ponto, como
sobre tantos outros, é possível que as partes não se tenham feito bem entender. Co
mecemos pois por situar claramente a questão.
Tem-se discutido com veemência o problema da origem do poder: a sobera
nia vem de Deus ou dos homens? Não sei se já se observou que as duas alternati
vas podem ser verdadeiras.
A ver as coisas de modo sumário e num nível mais terra-a-terra, é bem verda
de que a soberania sc funda no conscntimento humano. Se um povo, de repente, se
decidisse cm bloco a não obedecer, terminaria a soberania. É impossível imaginar
uma soberania, sem imaginar um povo que consente cm obedecer. Assim pois, se
os adversários da origem divina do poder não pretendem dizer mais que isto, estão
com a razão e seria completamente inútil continuar a discutir. A Deus não interes
sava empregar meios sobrenaturais para fundar impérios. Tudo devia ser feito por
intermédio dos homens. Mas dizer que a soberania não vem de Deus, porque Ele
se serve dos homens para a constituir, é o mesmo que dizer que Deus não é o cria
dor do homem, porque todos temos um pai e uma mãe.
258 Teoria Geral do Estado
Todos os teístas haverão de convir que aquele que viola as leis se opõe à von
tade divina e se torna culpado perante Deus, apesar de violar apenas disposições
humanas, porque foi Deus que criou o homem sociável. Foi Deus que assim quis a
sociedade e, por conseguinte, também a soberania e as leis, sem as quais uma so
ciedade não pode subsistir.
As leis vêm pois de Deus, neste sentido que Ele quer que existam leis c que se
jam obedecidas; no entanto, essas leis vêm também dos homens, de vez que são eles
que as elaboram. Da mesma forma, a soberania vem de Deus, autor de tudo, exce
to do mal, autor especialmente da sociedade, que não pode existir sem a soberania.
Mas esta vem também dos homens, em certo sentido, ou seja que a forma de go
verno é estabelecida e proclamada pelo consentimento humano.
Os partidários da origem divina do poder não podem negar que a vontade
humana desempenha um certo papel na criação dos governos; e os partidários do
sistema oposto não podem negar, por sua vez, que Deus seja, por excelência e de
modo eminente, o autor desses mesmos governos. Assim, estas duas proposições: a
soberania vem de Deus e a soberania vem dos homens, não se contradizem de for
ma alguma; como também não é contraditório afirmar que as leis vêm de Deus e
que elas vêm dos homens.
Basta pois se entender sobre os termos, pôr as ideias no seu lugar, sem as con
fundir. Com estas precauções estamos certos de não nos extraviar e assim podere
mos aceitar sem riscos o que disse aquele escritor: não venho aqui dizer-vos que a
soberania vem de Deus ou que ela vem dos homens; contentemo-nos em examinar
juntos o que há de divino e o que há de humano na soberania.
(Este povo soberano tem alguma interferência na escolha do regime pelo qual
será governado? Que papel desempenha ele nas mudanças eventuais de regime?)
É muito comum o erro de raciocínio que consiste em pensar que uma even
tual contrarrevolução só poderia ocorrer como o resultado de uma deliberação po
pular: “o povo teme..., o povo quer... o povo não consentirá jamais... não é do in
teresse do povo...”. Quanta balela! Nas revoluções, o povo está por fora e se nelas
entra, é apenas como instrumento meramente passivo. Talvez não mais do que qua
tro ou cinco pessoas darão amanhã um rei à França. Cartas despachadas dc Paris
anunciarão às províncias que a França tem um rei. F' as províncias gritarão: Viva o
Rei! Em Paris mesmo todos os habitantes, salvo uns 20, haverão de tomar conhe
cimento de manhã ao acordar que eles têm um rei. Sabem qual será sua reação?
“Possível? Que coisa curiosa! Por que porta o rei haverá de entrar? E melhor ir tra
tando de alugar alguma sacada, porque na rua será um atropelo...” Se voltar a mo
narquia, não será o povo que terá decretado a sua volta, como não foi o povo que
a baniu, para inaugurar o governo revolucionário.
10 Leituras Complementares 259
7) SIMON BOLÍVAR
Discurso perante o Congresso Constituinte de Bolívia (1825)
(Lisboa, Editorial Estampa, 1977, p. 151-67.)
Legisladores! Ao oferecer-vos o Projeto de Constituição da Bolívia, sinto-me
dominado pela confusão c pela timidez, pois estou convencido da minha incapaci
dade para fazer leis. Quando considero que a sabedoria de todos os scculos não é
suficiente para criar uma lei fundamental que seja perfeita c que o mais esclareci
do legislador pode ser a causa imediata da infelicidade humana e ludibrio, digamos
assim, do seu ministério divino - que poderei dizer-vos do soldado que, nascido en
tre escravos e sepultado nos desertos da sua pátria, apenas pôde ver cativos com
grilhetas e companheiros como armas para destrui-las? Legislador, eu?... O vosso
engano e o meu compromisso disputam entre si a preferência; e não sei quem so
fre mais neste horrível conflito: se vós - pelos males que deveis temer das leis que
me haveis pedido; se eu - pelo opróbrio a que me condenais com a vossa confian
ça. Reuni todas as minhas forças para vos expor as opiniões que mantenho sobre
o modo de dirigir homens livres, pelos princípios adotados entre os povos livres,
ainda que as lições e a experiência nos mostrem apenas vastos períodos de desas
tres, interrompidos por breves relâmpagos de ventura. Que guia será o nosso - à
sombra de tão tenebrosos exemplos?
Legisladores! o vosso dever chama-vos a resistir ao choque de dois monstros
inimigos que reciprocamente se combatem, para depois vos atacarem simultanea
mente: a tirania e a anarquia constituem um oceano imenso de opressão, envolven
do a pequena ilha da liberdade que se vê perpetuamente sujeita à violência das va
gas e furacões em fúria e que procuram submergi-la. Tende em vista esse mar que
ireis sulcar com frágil barca e cujo timoneiro é tão inexperiente.
O Projeto de Constituição para a Bolívia está dividido em quatro poderes po
líticos, tendo-se portanto acrescentado mais um, sem com isso complicar a divisão
clássica de cada um dos outros. O eleitoral recebeu faculdades que não lhe eram
assinaladas nos outros governos que se julgam entre os mais liberais. Estas atribui
ções aproximam-se bastante das que existem no sistema liberal. Pareceu-me não só
conveniente e útil, como também fácil, conceder aos representantes imediatos do
povo os privilégios que mais podem desejar os cidadãos dc cada departamento, pro
víncia ou cantão. Nenhum objeto pode ser mais importante para um cidadão do
que a eleição dos seus legisladores, magistrados; juizes e pastores. Os colégios elei
torais de cada província representam os seus interesses e necessidades e servem de
veículo às queixas das infrações das leis e dos abusos cometidos pelos magistrados.
Atrever-me-ia a afirmar com alguma exatidão que esta representatividade partici
pa dos direitos de que gozam os governos particulares dos estados federados. As
260 Teoria Geral do Estado
sim se colocou novo peso na balança contra o Executivo, adquirindo o governo
mais garantias, mais popularidade, novos títulos e distinguindo-se entre os mais de
mocráticos.
Cada dez cidadãos nomearão um eleitor c assim se achará representada a na
ção pelo décimo dos seus cidadãos. Não são exigidas nem capacidades, nem é ne
cessário possuir bens para representar a augusta função de soberano; mas deve o
cidadão saber escrever as suas votações, assinar o seu nome e ler as leis. Terá de
professar uma ciência ou arte que lhe assegure um alimento honesto. Não lhe são
postas outras exclusões que não sejam as do crime, da ociosidade e da ignorância
absoluta. Saber e honradez, não dinheiro, é o que o exercício do poder público
exige.
O Corpo Legislativo apresenta uma composição que o torna necessariamen
te harmonioso entre as diversas partes: jamais se encontrará dividido por falta de
um juiz árbitro, como acontece quando existem apenas duas Câmaras. Como pas
sarão a existir três, a discórdia entre duas será sempre resolvida pela terceira; e a
questão examinada pelas duas partes contendentes terá uma, imparcial, que a jul
ga; deste modo nenhuma lei útil ficará sem efeito ou, pelo menos, será analisada
uma, duas, três vezes, antes de sofrer a negativa. Em todos os assuntos entre dois
contrários sc nomeará um terceiro para decidir; seria pois absurdo que nos interes
ses mais árduos da sociedade se desprezasse tal providência ditada por uma neces
sidade imperiosa. Assim as Câmaras guardarão entre si as considerações que são
indispensáveis para conservar a união do todo, para poderem deliberar ausentes de
paixões e com a calma da sabedoria. Dir-me-ão que os Congressos modernos se
compõem apenas de duas seções. Assim acontece com a Inglaterra, que nos serviu
de modelo, onde a nobreza e o povo estão representados em duas Câmaras; e o
mesmo acontece na América do Norte, onde, não existindo nobreza, podemos to
davia imaginar que se inspirou naquele país, já que foi sua colônia. O que é verda
de é que dois corpos deliberantes acabam por combater-se mutuamente. Essa a ra
zão por que Siéyès apenas defendia a existência de um. Clássico absurdo!
A primeira Câmara é a dos tribunos e goza da atribuição de dar início às leis
relativas à Fazenda, à Paz e à Guerra. Tem a seu cargo a inspeção imediata dos ra
mos que o Executivo administra com menos intervenção do Legislativo.
Os senadores criam os códigos e regulamentos eclesiásticos e velam sobre os
tribunais e o culto. Cabe ao Senado escolher os prefeitos, os juizes do distrito, go
vernadores, corregedores e todos os subalternos do departamento de Justiça. Pro
põe à Câmara dos Censores os membros do Tribunal Supremo, os arcebispos, bis
pos, dignidades e cônegos. É do pelouro do Senado tudo quanto pertence à religião
e às leis.
Os censores exercem um poder político e moral que tem certa semelhança
com o do Areópago de Atenas e o dos censores de Roma. Serão eles os fiscalizado-
res junto do governo, zelando para que a Constituição e os tratados públicos se
10 Leituras Complementares 261
jam observados com zelo. E sob a sua égide se encontra também o Juízo Nacional,
que deve decidir da boa ou má administração do Executivo.
São os censores quem protege a moral, as ciências, as artes, a instrução e a im
prensa. A mais terrível e a mais augusta das missões pertence pois aos censores. Eles
condenarão ao opróbrio eterno os usurpadores da autoridade soberana e os crimi
nosos importantes. Concederão honras públicas aos serviços c às virtudes dos ci
dadãos ilustres. O fiel da glória estará confiado às suas mãos; por isso mesmo, os
censores devem gozar de uma inocência intacta e de uma vida sem mancha. Se trans
gredirem serão acusados, ainda que se trate de faltas insignificantes. A estes sacer
dotes das leis confiei a conservação das nossas tábuas sagradas, pois são eles que
devem levantar a voz contra os seus profanadores.
O presidente da República acaba por ser, na nossa Constituição, como o Sol
que, firme 110 seu centro, dá vida ao Universo. Esta suprema autoridade deve ser
perpétua, uma vez que nos sistemas sem hierarquias, mais que nos outros, se torna
necessário um ponto fixo à volta do qual devem girar os magistrados e os cidadãos;
os homens e as coisas. Dai-me um ponto fixo, dizia um antigo, e com ele moverei
o mundo. Para a Bolívia esse ponto é o presidente vitalício. Nele se estriba toda a
nossa ordem, sem que isso implique, por parte dele, ação. Cortou-se-lhe a cabeça
para que ninguém receie as suas intenções e ataram-se-lhe as mãos para que não
cause dano a ninguém.
O presidente da Bolívia participa das faculdades do Executivo americano, mas
com restrições favoráveis ao povo. A sua duração é a mesma dos presidentes do
Haiti. Trouxe para a Bolívia o sistema executivo da república mais democrática do
mundo.
A ilha de Haiti (seja-me permitida esta digressão) encontra-se em permanen
te insurreição: depois de haver experimentado o império, o reino, a república, to
dos os governos conhecidos e alguns mais, viu-se forçada a recorrer ao ilustre Pe-
tion para que a salvasse. Confiaram nele e os destinos de Haiti não vacilaram mais.
Com a designação de Petion para presidente vitalício, com faculdades de eleger su
cessor, nem a morte desse grande homem, nem a sucessão do novo presidente, re
presentaram o mais pequeno perigo para o Estado; tudo continuou sob o signo
Boyer, na tranqüilidade de um reino legítimo. Prova triunfante de que um presiden
te vitalício, com direitos para nomear sucessor, é a inspiração mais sublime na or
dem republicana.
O presidente da Bolívia será menos perigoso que o do Haiti, e o modo de su
cessão mais seguro para o bem do Estado. Além disso, o presidente da Bolívia fica
privado de todas as influências: não nomeia magistrados, nem juizes ou dignidades
eclesiásticas, por mais pequenas que sejam. Esta diminuição de poderes ainda ne
nhum governo bem constituído a sofreu nos nossos dias: ela virá trazer entraves
sobre entraves à autoridade de um chefe que sempre se apresentará ao povo sob o
domínio dos que exercem as funções mais importantes da sociedade. Os sacerdo
262 Teoria Geral do Estado
tes mandam sobre as consciências, os juizes sobre a propriedade, a honra e a vida,
e os magistrados cm todos os atos públicos. Devendo estes ao povo as suas digni-
dades, glória e fortuna, não poderá o presidente esperar complicá-los com as suas
ambiciosas pretensões. Se acrescentarmos a esta consideração as que naturalmen
te surgem das oposições gerais que enfrenta um governo democrático cm todos os
momentos da sua administração, parece-me que há razão para ficarmos seguros da
usurpação do poder público ser mais longínqua nesta forma de governo do que em
qualquer outra.
Legisladores! A liberdade de hoje, jamais será destruída na América. Obser
ve-se a natureza selvagem deste continente que só por si exclui a ordem monárqui
ca. Não existem nobres importantes ou grandes eclesiásticos. As nossas riquezas
eram praticamente nulas. A igreja, apesar da influência que goza, está longe de as
pirar ao domínio, e satisfaz-se com a sua conservação. Sem estes dois apoios, os ti
ranos não são permanentes; c se alguns ambiciosos se empenham em levantar im
périos, Dessalines, Cristóbal, Iturbide, logo são informados do que os espera. Não
há poder mais difícil de manter do que o dc um novo príncipe. Bonapartc, vence
dor de todos os exércitos, não logrou triunfar de tal regra, mais forte que os impé
rios. E sc o grande Napolcão não conseguiu manter-se contra a ligação de republi
canos c aristocratas quem, na América, alcançará fundar monarquias, num solo
incendiado pelas chamas brilhantes da liberdade, devorador de entraves erguidas
e criador de cadafalsos régios?
Não, legisladores: não temais os pretendentes a coroas: elas serão para as suas
cabeças a espada suspensa sobre Dionísio (sic). Os príncipes flamantes que se afa-
digam a construir tronos sobre os escombros da liberdade, erguerão túmulos para
as suas cinzas, testemunhando no futuro dos séculos a sua fátua ambição pela li
berdade e pela glória.
Os limites constitucionais do presidente da Bolívia são os mais estreitos que
se conhecem: limita-se a nomear os funcionários da Fazenda, a paz e guerra e a
mandar no exército. São estas as suas funções.
A administração pcrtencc toda ao ministério, responsável perante os censores
e está sujeita à vigilância zelosa dc todos os legisladores, magistrados, juizes c ci
dadãos. Os aduaneiros e os soldados, únicos agentes deste ministério, não são, na
verdade, os mais adequados para lhe captar a aura popular; assim a sua influência
é nula.
O vice-presidente é o magistrado mais manietado que serviu o mando: obe
dece simultaneamente ao Legislativo e ao Executivo de um governo republicano.
Do primeiro recebe as leis; do segundo as ordens; e entre estas duas barreiras vê-se
obrigado a avançar por um caminho angustiado e flanqueado de precipícios. Ape
sar de tantos inconvenientes, é preferível governar assim a ter nas mãos um impé
rio absoluto. As barreiras constitucionais integram uma consciência política e con
ferem-lhe a firme esperança de encontrar o farol que a guie entre os escolhos que
10 Leituras Complementares 263
a rodeiam: servirão de apoio contra os impulsos das nossas paixões, concertadas
com os interesses alheios.
No governo dos Estados Unidos observou-se ultimamente a prática de nomear
o primeiro-ministro para suceder ao presidente. Nada c tão conveniente, numa re
pública, como este método: reúne a vantagem de colocar à cabeça da administra
ção um indivíduo experimentado no manejo do Estado. Quando inicia o exercício
das suas novas funções já vai formado, levando consigo a auréola da popularida
de e uma prática consumada. Apoderei-me desta ideia e estabeleci-a como lei.
O presidente da república nomeia o vice-presidente para que este administre
o Estado e lhe suceda no mando. Com esta providência se evitam as eleições, que
produzem grandes reveses nas repúblicas, a anarquia que é o luxo da tirania e o
perigo mais imediato e mais terrível dos governos populares. Reparei no que acon
tece nos reinos legítimos, na tremenda crise das repúblicas!
O vice-presidente deve ser o homem mais puro: pois se o primeiro magistra
do não elege um cidadão justo, deverá temê-lo como inimigo encarniçado e suspei
tar até das suas ambições mais secretas. Este vice-presidente terá dc esforçar-se por
merecer, pelos seus serviços, o crédito que necessita para desempenhar as mais al
tas funções e esperar a grande recompensa nacional - o mundo supremo. O Cor
po Legislativo e o povo exigirão capacidades c talentos da parte deste magistrado
e pedir-lhe-ão uma cega obediência às leis da liberdade.
Sendo a herança aquilo que perpetua o regime monárquico e assim acontece
na quase generalidade, quanto mais útil não é o método que acabo de propor para
a sucessão? Que aconteceria se os príncipes fossem eleitos, não pela sorte, mas pelo
mérito e, em lugar de se ficarem inativos e ignorantes, se pusessem à frente da ad
ministração? Haveria, sem dúvida, monarcas mais esclarecidos e dispostos a faze
rem felizes os povos que governassem. Sim, senhores legisladores, a monarquia que
governa a terra obteve os seus títulos de aprovação da herança que a torna estável,
e da unidade que a torna forte. E ainda que um príncipe soberano seja um menino
mimado, fechado no seu palácio, educado pela adulação e conduzido por todas as
paixões, este príncipe a que me atreveria a chamar a ironia do homem, manda no
gênero humano, porque conserva a ordem das coisas e a subordinação entre os ci
dadãos, com um poder firme e uma ação constante. Considerai, legisladores, que
estas grandes vantagens se encontram reunidas no presidente vitalício e no vice-pre-
sidente hereditário.
O Poder Judicial que proponho goza de uma independência absoluta: em ne
nhuma outra parte tem tanta. O povo apresenta os candidatos, e o Legislativo es
colhe os indivíduos que hão de formar os tribunais. Se o Poder Judicial não tiver
esta origem ser-lhe-á impossível conservar, em toda a sua pureza, os direitos indi
viduais. Estes direitos, legisladores, são os que constituem a liberdade, a igualdade,
a segurança, todas as garantias da ordem social. A verdadeira constituição liberal
está nos códigos civis e penais, e a mais terrível tirania é exercida pelos tribunais
264 Teoria Geral do Estado
através do instrumento das leis. Geralmente, o Executivo não é mais que um depo
sitário da coisa pública, mas os tribunais são os árbitros das coisas próprias - das
coisas dos indivíduos. O Poder Judicial contém a medida do bem ou do mal dos ci
dadãos; e se houver liberdade e justiça na república, serão distribuídos através des
se poder. Pouco importa, muitas vezes, a organização política: o importante é que
a civil seja perfeita; que as leis se cumpram religiosamente e se tenham por inexo
ráveis como o destino.
De acordo com as ideias em voga, seria de esperar que proibíssemos o uso da
tortura e das confissões; e que encurtássemos a duração dos pleitos no intricado la
birinto das apelações.
O território da república é governado por prefeitos, governadores, corregedo
res, juizes de paz e alcaides. Não pude entrar no regime interno e nas faculdades
destas jurisdições; contudo, é meu dever recomendar ao Congresso os regulamen
tos respeitantes ao serviço dos departamentos e províncias. Tende presente, legisla
dores, que as nações são formadas por cidades e aldeias; e que do bem-estar destas
resulta a felicidade do Estado. Nunca será demasiada a atenção que prestardes ao
bom regime dos departamentos. Este ponto é da predileção da ciência legislativa e,
não obstante, bastas vezes desdenhado.
A força armada divide-a em quatro partes: exército dc linha, esquadra, milí
cia nacional e fiscalização militar. O destino do exército é o de guarnecer a frontei
ra. Deus nos preserve de ele voltar as armas contra os cidadãos! Basta a milícia na
cional para conservar a ordem interna. A Bolívia não possui grandes costas e por
isso é inútil a marinha: apesar disso esperamos obter um dia uma e outra coisa. A
fiscalização militar é preferível em todos os aspectos aos guardas; um serviço seme
lhante é mais imoral que supérfluo; por isso, interessa à república guarnecer as fron
teiras com tropas de linha e tropas de fiscalização contra a guerra da fraude.
Pensei que a Constituição da Bolívia devesse reformar-se por períodos, segun
do as exigências do movimento do mundo moral. Os trâmites da reforma foram
assinalados nos termos que julguei mais apropriados ao caso.
A responsabilidade dos funcionários fica assinalada na Constituição bolivia
na da forma mais efetiva. Sem responsabilidade, sem repressão, o Estado é um caos.
Atrevo-me a instar encarecidamente junto dos legisladores para que ditem leis for
tes e determinantes sobre esta matéria. Toda gente fala em liberdade, mas quase
sempre não se passa de palavras. Não existe responsabilidade, legisladores: os ma
gistrados, juizes e funcionários abusam das suas faculdades porque não se detêm
com rigor os agentes da administração; e entretanto as vítimas deste abuso são os
cidadãos. Por isso recomendo uma lei que prescreva um método de responsabili
dade anual para cada funcionário.
Foram estabelecidas as garantias mais perfeitas: a liberdade civil é a verdadei
ra liberdade; as outras são nominais ou de pouca influência no respeitante aos ci
dadãos. Garantiu-se a segurança pessoal, que é o fim da sociedade, e da qual dima-
10 Leituras Complementares 265
nam as outras. Quanto à propriedade, essa depende do código civil que a vossa
sabedoria deverá redigir em seguida, para descanso dos vossos concidadãos. Con
servei intacta a lei das leis - a igualdade sem ela, desaparecem todas as garan
tias, todos os direitos. Por ela devemos fazer todos os sacrifícios. A seus pós colo
quei, coberta de humilhação, a infame escravatura.
Legisladores, a infração dc todas as leis é a escravatura. A lei que a conservas
se seria a mais sacrílega das leis. Que direitos poderão ser alegados para que se
mantenha? Observe-se este crime sob todos os aspectos; estou convencido que não
existe um único boliviano tão depravado que pretenda legitimar a mais insigne vio
lação da dignidade humana. Um homem na posse de outro! Um homem proprie
dade! Uma imagem de Deus subjugada como um animal! Dizei-me: onde estão os
títulos dos usurpadores do homem? Foram-nos enviados pela Guiné, pois a África
devastada pelo fratricídio só nos apresenta crimes. Transplantadas para aqui estas
relíquias das tribos africanas, que lei ou poder será capaz dc sancionar o domínio
sobre tais vítimas? Transmitir, prorrogar, eternizar este crime eivado de suplícios,
parece-me o ultraje mais chocante. Basear um princípio de posse sobre a mais fe
roz delinqüência só poderá conceber-se com a alteração dos elementos do direito c
a perversão mais absoluta das noções do dever. Ninguém pode violar o santo dog
ma da igualdade. E poderá haver escravatura onde reina a igualdade? Uma tal con
tradição seria mais o vitupério da nossa razão do que da nossa justiça: reputados
por dementes, não por usurpadores.
E se não houvesse um Deus Protetor da inocência e da liberdade, preferiria a
sorte de um leão generoso dominando nos desertos e bosques, à de um cativo ao
serviço de um infame tirano que, cúmplice dos seus crimes, provocasse a ira do céu.
Mas não: Deus destinou o homem à liberdade e protege-o para que exerça a fun
ção celeste do livre-arbítrio.
Legisladores! Farei agora menção de um artigo que, segundo a minha consciên
cia, devia omitir. Numa Constituição política não deverá prescrever-se uma profis
são religiosa, porque segundo as melhores doutrinas sobre as leis fundamentais es
tas são as garantias dos direitos políticos c civis; mas a religião não se integra em
nenhum destes direitos, é de natureza indefinível na ordem social c pertence à mo
ral intelectual. A religião governa o homem em casa, no gabinete, dentro de si pró
prio: ela apenas tem o direito de examinar a sua consciência íntima. As leis, pelo
contrário, têm em vista a superfície das coisas: governam fora da casa dos cidadãos.
Aplicando estas considerações, poderá um Estado reger a consciência dos seus sú
ditos, velar pelo cumprimento das leis religiosas e atribuir prêmio ou castigo, quan
do os tribunais estão no céu e quando Deus é o juiz? Só a Inquisição seria capaz de
substituí-los neste mundo. Voltará ainda a Inquisição com os seus archotes incen
diários?
A religião é a lei da consciência. Toda lei sobre ela a anula, porque impondo
a necessidade tira mérito à fé, que é a base da religião. Os preceitos e dogmas sa
266 Teoria Geral do Estado
grados são úteis, luminosos e de evidência metafísica; todos devemos professá-los,
mas este dever é moral, não é político.
Por outro lado, quais são, neste mundo, os direitos do homem para com a re
ligião? Esses direitos estão no céu; lá se encontra o tribunal que recompensa o mé
rito e faz justiça segundo o código ditado pelo legislador. Sendo tudo isto de juris
dição divina, parece-me à primeira vista sacrílego e profano misturar as nossas
prescrições como os mandamentos do Senhor. Legislar sobre a religião não cabe ao
legislador que deve sim prescrever penas às infrações das leis para que estas não se
jam meros conselhos. Não havendo castigos temporais nem juizes que os apliquem,
a lei deixa de ser lei.
O progresso moral do homem é a intenção primeira do legislador; quando
este progresso é conseguido, o homem apoia a sua moral nas verdades reveladas e
professa de fato a religião, que mais eficaz se torna quando adquirida por investi
gações próprias. Além disso, os pais de família não podem descuidar o dever religio
so para com os filhos. Os pastores espirituais estão obrigados a ensinar a ciência
do céu: o exemplo dos verdadeiros discípulos de Jesus c o mestre mais eloqüente
da sua divina moral; mas a moral não se impõe, nem o que ordena é senhor, nem
a força deve ser empregada em dar conselhos. Deus c os seus ministros são as au
toridades da religião que atua por meios e órgãos exclusivamente espirituais; mas,
de modo algum, o Corpo Nacional que dirige o poder público para objetos pura
mente temporais.
Legisladores, ao ver proclamada a nova nação boliviana quão generosas e su
blimes considerações deverão elevar as vossas almas! A entrada de um novo Esta
do na sociedade dos outros é motivo de júbilo para o gênero humano, porque é au
mentada a grande família dos povos. Qual não será o dos seus fundadores - e o
meu! - vendo-me em igualdade com o mais célebre dos antigos - o Pai da Cidade
Eterna! Esta glória pertence de direito aos criadores das nações que, sendo os seus
primeiros benfeitores, deverão receber recompensas imortais; mas a minha, além
de imortal tem o mérito de ser gratuita porque não merecida. Onde está a repúbli
ca, onde a cidade que fundei? A vossa exuberância, dedicando-me uma nação, an-
tecipou-sc todos os meus serviços e é infinitamente superior a quantos bens possam
trazer-me os homens.
Mas o meu desespero aumenta ao contemplar a imensidade do vosso prêmio,
porque depois de haver esgotado os talentos, as virtudes, o próprio gênio do maior
dos heróis, não me sinto digno de merecer o nome que lhe haveis querido dar-lhe
- o meu! Falar da minha gratidão, quando ela jamais conseguirá alcançar a expres
são do que eu sinto com a vossa bondade que, como a de Deus, ultrapassa todos
os limites! Sim: só Deus teria poder para chamar a esta terra Bolívia... Bolívia que
quer dizer? Um amor arrebatado pela liberdade e que o vosso impulso ao recebê-la,
nada mais viu que fosse igual ao seu valor. Inebriados por tal explosão de senti
mentos, acabais por ligar o meu nome a todas as vossas gerações.
10 Leituras Complementares 267
Isto, que é inaudito na história dos séculos, é-o ainda mais na história dos des-
prendimentos sublimes. Tal feito mostrará aos tempos que estão 110 pensamento do
Eterno, e que decidis na posse dos vossos direitos, que é a posse de exercer as vir
tudes políticas, e o gozo dc serem homens. Este feito, repito, provará que sois crc-
dores dc obter a grande benção do Céu - c a Soberania do Povo - a única autori
dade legítima das nações.
Legisladores, felizes vós que presidis aos destinos de uma república que nasceu
coroada com os louros de Ayacucho, e que deve perpetuar uma ditosa existência sob
as leis ditadas pela vossa sabedoria, na calma que se sucedeu à tempestade da guerra.
Lima, 23 de maio de 1826
8) KARL MARX E FRIEDRICH ENGELS
0 manifesto comunista
(Manifesto dei Partido Comunista, Turim, Einaudi, 1978. Harokl J. Laski, O manifes
to comunista de Marx e Engels, trad. Regina Lúcia E de Moraes, 2. ed., Rio de Janei
ro, Zahar, 1978; Manifesto do Partido Comunista, São Paulo, Global, 1981.)
I - Burgueses e pro letáriosA história de todas as sociedades, até hoje existentes, se confunde com a his
tória das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo,
mestre de corporação e companheiro, em suma, opressores e oprimidos em confli
to permanente entre si, levado a efeito numa guerra incessante, às claras ou dissi
muladamente, a qual sempre se encerrou, a cada vez, ou pela reestruturação revo
lucionária da sociedade como um todo ou pela destruição das classes em choque.
Desde os primórdios da História, constata-se, em todos os lugares, uma cla
ra divisão da sociedade cm classes diferentes, ligadas a uma progressiva modifica
ção nas condições de vida. Na Roma antiga, temos os patrícios, cavaleiros, plebeus
e escravos. Na Idade Média, senhores, vassalos, mestres, companheiros, aprendizes
e servos. Dentro de cada uma de todas estas classes, encontra-se, ainda, a existên
cia de diversas camadas sociais subordinadas.
A sociedade burguesa atual, que surgiu dos escombros da sociedade feudal,
não aboliu os antagonismos de classe; apenas substituiu as antigas formas de luta
por outras, com novas classes sociais e novos meios de opressão. Entretanto, nos
sa sociedade burguesa se caracterizou pela simplificação dos antagonismos entre as
classes, de forma tal que a sociedade como um todo vai se reduzindo, paulatina
mente, a apenas dois campos hostis, duas grandes classes que se defrontam: a bur
guesia e o proletariado!
268 Teoria Geral do Estado
Dos servos da Idade Média surgiram os burgueses privilegiados das antigas
cidades e, destes, os primeiros representantes da burguesia de hoje.
A descoberta da América e a circunavegação da África abriram para a bur
guesia emergente novas alternativas. Os mercados da índia Oriental e da China, a
colonização do Novo Mundo, o comércio com as colônias, a evolução notável dos
mecanismos de troca c o aumento das mercadorias cm geral foram os fatores que
ensejaram um desenvolvimento, nunca antes verificado, do comércio, da navega
ção e da indústria, trazendo com isto o apressamento do processo revolucionário
110 seio da enfraquecida sociedade feudal.
O sistema feudal, com sua produção industrial monopolizada por grupos fe
chados, já não poderia mais atender à crescente demanda dos novos mercados. A
produção manufatureira tomou o seu lugar. Os mestres das corporações foram
substituídos pela pequena burguesia industrial, e a divisão do trabalho entre as di
ferentes corporações foi extinta, em face da divisão do trabalho em cada oficina.
Os mercados, entrementes, continuavam em expansão e a demanda aumentando
sem parar. A própria manufatura não mais atendia a esta. Então, o vapor e as má
quinas revolucionaram a produção industrial. A manufatura foi substituída pela
gigantesca indústria moderna, e a classe média industrial ultrapassada pelos capi
tães dc indústria, senhores dc verdadeiros exércitos industriais, constituindo a bur
guesia moderna.
A descoberta do Novo Mundo permitiu que a indústria moderna criasse seu
mercado mundial, sendo que este promoveu um espantoso desenvolvimento do co
mércio, da navegação e dos meios de comunicação. Tal redundou numa expansão
ainda maior da indústria. Conforme se desenvolviam a indústria, o comércio, a na
vegação e as ferrovias, a burguesia se firmava, aumentando seu capital e colocan
do em plano secundário toda classe oriunda da Idade Média.
Conclui-se, portanto, que a burguesia atual é o produto de um longo proces
so de desenvolvimento, de uma escalada de revoluções nos modos de produção e
dc troca. Cada fase na formação histórica da burguesia veio acompanhada de um
processo político correlato: a classe oprimida pelo feudalismo despótico sc organi
za cm associação armada e autônoma na Comuna; aqui, república urbana indepen
dente (como na Itália e na Alemanha); ali, terceiro estado, tributário da monarquia
(como na França). Mais tarde, no período manufatureiro, como contrapeso da no
breza, e como fundamento principal das grandes monarquias, a burguesia, com o
estabelecimento da indústria moderna e do mercado mundial, conquistou afinal o
domínio político exclusivo do Estado representativo moderno. Neste, o governo
não passa de um órgão destinado a gerenciar os interesses comuns de toda a bur
guesia. Não há dúvida de que, historicamente, a burguesia desempenhou um papel
revolucionário dos mais significativos. Onde conquistou o poder, ela destruiu to
das as relações feudais, patriarcais e idílicas. Dilacerou, cruelmente, os diversos la
ços que uniam o homem feudal aos seus superiores naturais, para que subsistisse
10 Leituras Complementares 269
apenas o laço frio do interesse, o insensível “pagamento a vista” nas relações hu
manas. Sufocou o êxtase sagrado do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco,
do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da
dignidade pessoal mero valor dc troca c, cm nome dc todas as liberdades conquis
tadas, estabeleceu a implacável liberdade do comercio. Em suma, afastou a explo
ração camuflada pelas ilusões religiosas e políticas, para adotar a exploração aber
ta, cínica, direta e brutal. A burguesia retirou a auréola de todas as atividades
consideradas, até então, respeitáveis e veneráveis, transformando o médico, o ju
rista, o padre, o poeta, o homem de ciência, em trabalhadores assalariados. Arran
cou o véu sentimental que envolvia as relações familiares, reduzindo-as a meras es
peculações financeiras.
Graças ao incrível desenvolvimento dos meios de produção e às facilidades
ensejadas pelos meios de comunicação, a burguesia consegue atrair, de maneira ir
resistível, todas as nações para o seu modelo de civilização, mesmo as mais atrasa
das. Sua mercadoria barata constitui sua mais poderosa arma, capaz dc derrubar
até as muralhas da China e de subjugar os bárbaros mais desconfiados. Com mão
dc ferro, obriga todas as nações a adotarem um modo burguês dc produção, com
a ameaça de seu desaparecimento, se não o fizerem; força-as a optarem pelo que
ela considera civilização, visando, em síntese, transformar o mundo à sua imagem
e semelhança!
O sistema burguês submeteu o campo à cidade, dando origem a gigantescos
aglomerados urbanos, aumentando descontroladamente a população das cidades
e esvaziando os campos, liberando imensos contingentes do embrutecimento da
vida rural. Assim como submeteu o campo à cidade, e os países atrasados ou me
nos evoluídos aos civilizados, submeteu, também, os povos agrícolas aos povos bur
gueses, o Oriente ao Ocidente.
9) FERDINAND LASSALLE
Que é uma Constituição?
(O que é uma Constituição política, trad. Manoel Soares, São Paulo, Global, 1987;
Que é uma Constituiçãof, trad. Walter Stõnncr, São Paulo, Ed. e Publ. Brasil. 1933,
Col. Estudos Político-Sociais; Que é uma Constituição?, São Paulo, Kairós, 1985.)
270 Teoria Geral do Estado
Capítulo 0 que é uma Constitu ição?
Inicio, pois, minha palestra com esta pergunta: o que é uma Constituição?
Qual a verdadeira essência de uma Constituição? Em todos os lugares e a toda hora,
à tarde, pela manhã e à noite, estamos ouvindo falar da Constituição e de seus pro
blemas constitucionais. Na imprensa, nos clubes, nos cafés e nos restaurantes é este
o assunto obrigatório de todas as conversas.
E, apesar disso, ou por isso mesmo, formulo em termos precisos esta pergun
ta: qual a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição? Estou
certo de que, entre essas milhares de pessoas que falam desta, existem muito pou
cas que possam dar-nos uma resposta satisfatória.
iVIuitos, certamente, para responder-nos, procurariam o volume que fala da
legislação prussiana de 1850 até encontrarem os dispositivos da Constituição do
reino da Prússia.
Mas isso não seria, está claro, responder à minha pergunta. Não basta apre
sentar a matéria concreta de uma determinada Constituição, a da Prússia ou outra
qualquer, para responder satisfatoriamente à pergunta por mim formulada: onde
podemos encontrar o conceito de uma Constituição, seja ela qual for?
Se fizesse esta indagação a um jurisconsulto, receberia mais ou menos esta res
posta: “Constituição é um pacto juramentado entre o rei e o povo, estabelecendo
os princípios alicerçadores da legislação e do governo dentro de um país”. Ou ge
neralizando, pois existe também a Constituição nos países de governo republica
no: “A Constituição é a lei fundamental proclamada pelo país, na qual se baseia a
organização do Direito público dessa nação”.
Todas essas respostas jurídicas, porém, ou outras parecidas que se possam dar,
distanciam-se muito de explicar cabalmente a pergunta que fiz. Estas, sejam quais
forem, limitam-se a descrever exteriormente como se formam as Constituições e o
que fazem, mas não explicam o que é uma Constituição. Dão-nos critérios, notas
explicativas para conhecer juridicamente uma Constituição; porém não esclarecem
onde está o conceito de toda Constituição, isto é, a essência constitucional. Não
servem, pois, para orientar-nos sobre se uma determinada Constituição é, e porque,
boa ou má, factível ou irrealizável, duradoura ou insustentável, pois para isso se
ria necessário que explicassem o seu conceito. Primeiramente torna-se necessário
sabermos qual é a verdadeira essência de uma Constituição, e, depois, poderemos
saber se a Carta Constitucional determinada e concreta que estamos examinando
se acomoda ou não às exigências substanciais. Para isso, porém, de nada servirão
as definições jurídicas que podem ser aplicadas a todos os papéis assinados por uma
nação ou por esta e o seu rei, proclamando-as Constituições, seja qual for o seu
conteúdo, sem penetrarmos na sua essência. O conceito de Constituição - como
demonstrarei logo - é a fonte primitiva da qual nascem a arte e a sabedoria cons
titucionais.
10 Leituras Complementares 271
Repito, pois, minha pergunta: Que é uma Constituição? Onde encontrar a
verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição?
Como o ignoramos, pois é agora que vamos desvendá-lo, aplicaremos um mé
todo que é de utilidade pôr em prática sempre que quisermos esclarecer o concei
to de uma coisa. Este método é muito simples. Baseia-se em compararmos a coisa
cujo conceito não sabemos com outra semelhante a ela, esforçando-nos para pene
trar clara e nitidamente nas diferenças que afastam uma da outra.
Lei e Constitu içãoAplicando esse método, pergunto: Qual a diferença entre uma Constituição e
uma lei?
Ambas, a lei e a Constituição, têm, evidentemente, uma essência genética co
mum.
Uma Constituição, para reger, necessita a aprovação legislativa, isto é, tem que
ser também lei. Todavia, não é uma lei como as outras, uma simples lei; é mais do
que isso. Entre os dois conceitos não existe somente afinidade; há também desse
melhança. Esta, que faz com que a Constituição seja mais do que simples lei, po
deria demonstrá-lo com centenas de exemplos.
O país, por exemplo, não protesta pelo fato de constantemente serem apro
vadas novas leis; pelo contrário, todos nós sabemos que se torna necessário que to
dos os anos seja criado maior ou menor número de leis. Não pode, porém, decre
tar-se uma única lei que seja nova sem alterar a situação legislativa vigente no
momento da sua aprovação, pois, se a nova lei não motivasse modificações no apa-
relhamento legal vigente, seria absolutamente supérflua e não teria motivos para
ser aprovada. Por isso, não protestamos quando as leis são modificadas, pois no
tamos, e estamos cientes disso, que é esta a missão normal e natural dos governos...
Mas, quando mexem na Constituição, protestamos e gritamos: Deixai a Constitui
ção! Qual é a origem dessa diferença? Esta diferença é tão inegável que existem,
até, Constituições que dispõem taxativamente que a Constituição não poderá ser
alterada de modo algum; noutras, consta que para reformá-la não é o bastante que
uma simples maioria assim o deseje, mas será necessário obter dois terços dos vo
tos do Parlamento; existem ainda algumas onde se declara que não é da compe
tência dos Corpos Legislativos sua modificação, nem mesmo unidos ao Poder
Executivo, senão que, para reformá-la, deverá ser nomeada uma nova Assembleia
Legislativa, ad hoc, criada expressa e exclusivamente para esse fim, para que se ma
nifeste sobre a oportunidade ou conveniência de ser a Constituição modificada.
Todos esses fatos demonstraram que, no espírito unânime dos povos, uma
Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imó
vel que uma lei comum.
Faço outra vez a pergunta anterior: qual a diferença entre uma Constituição
e uma simples lei?
272 Teoria Geral do Estado
A esta pergunta responderão: Constituição não é uma lei como as outras, é
uma lei fundamental da nação. É possível, meus senhores, que nesta resposta se en
contre, embora de modo obscuro, a verdade que estamos investigando. Mas a mes
ma, assim formulada, dc forma bastante confusa, não poder deixar-nos satisfeitos.
Imediatamente surge, substituindo a outra, esta interrogação: como distinguir uma
lei da lei fundamental? Como podeis ver, continuamos onde começamos. Somente
ganhamos um vocábulo novo, ou melhor, um termo novo, “lei fundamental”, que
de nada nos servirá enquanto não soubermos explicar qual é, repito, a diferença
entre lei fundamental e outra lei qualquer.
Intentemos, pois, aprofundar um pouco mais no assunto, indagando que ideias
ou que noções são as que vão associadas a esse nome de44lei fundamentar’; ou, em
outros termos, como poderíamos distinguir uma “lei fundamental” de outra lei
qualquer para que a primeira possa justificar o nome que lhe foi assinalado.
Para isso será necessário:
1) que a lei fundamental seja uma lei básica, mais do que as outras comuns,
como indica seu próprio nome: “fundamental”;
2) que constitua - pois de outra forma não poderíamos chamá-la de funda
mental - o verdadeiro fundamento das outras leis, isto c, a lei fundamental, se
realmente pretende ser merecedora desse nome, deverá informar e engendrar as ou
tras leis comuns originárias da mesma. A lei fundamental, para sê-lo, deverá, pois,
atuar e irradiar através das leis comuns do país;
3) mas as coisas que têm um fundamento não o são assim por um capricho;
existem porque necessariamente devem existir. O fundamento a que respondem não
permite serem de outro modo. Somente as coisas que carecem de fundamento, que
são as casuais e as fortuitas, podem ser como são ou mesmo de qualquer outra for
ma; as que possuem um fundamento não, pois aqui rege a lei da necessidade. Os
planetas, por exemplo, movem-se de um modo determinado. Este movimento res
ponde a causas, a fundamentos exatos, ou não? Se não existissem tais fundamen
tos, sua trajetória seria casual e poderia variar a todo momento, quer dizer seria
variável. Mas, se dc fato responde a um fundamento, se é o resultado como preten
dem os cientistas da força da atração do Sol, é o bastante isto para que o movimen
to dos planetas seja regido e governado de tal modo por esse fundamento que não
possa ser de outro modo, a não ser tal como de fato é. A ideia de fundamento traz,
implicitamente, a noção de uma necessidade ativa, de uma força eficaz que toma
por lei da necessidade que o que sobre ela se baseia seja assim e não de outro
modo.
Sendo a Constituição a lei fundamental de uma nação, será - e agora já co
meçamos a sair das trevas - qualquer coisa que logo poderemos definir e esclare
cer, ou, como já vimos, uma força ativa que faz, uma exigência da necessidade, com
que todas as outras leis e instituições jurídicas vigentes no país sejam o que real
10 Leituras Complementares 273
mente são, de tal forma que, a partir desse instante, não podem decretar, naquele
país, embora quisessem, outras quaisquer:
Muito bem, pergunto eu, será que existe em algum país - e fazendo esta per
gunta os horizontes clareiam - alguma força ativa que possa influir dc tal forma
que todas as suas leis, que as obrigue a serem necessariamente, até certo ponto, o
que são e como são sem poder ser de outro modo f
Capítulo II Os fa to res reais do poder
Sim, existem sem dúvida, e esta incógnita que estamos investigando apoia-se,
simplesmente, nos fatores reais do poder que regem uma determinada sociedade.
Os fatores reais do poder que regulam no seio de cada sociedade são essa força
ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apre
ço, determinando que não possam ser.; em substância, a não ser tal como elas são.
Vou esclarecer isto com um exemplo. Naturalmente, este exemplo, como vou
expô-lo, não pode realmente acontecer. Porém, embora este exemplo possa dar-se
dc outra forma, não interessa sabermos se o fato pode ou não acontecer, mas sim
o que o exemplo nos possa ensinar se este chegasse a ser realidade.
Não ignoram os meus ouvintes que na Prússia somente tem força de lei os tex
tos publicados na Coleção legislativa. Esta Coleção imprime-se numa tipografia
concessionária instalada em Berlim. Os originais das leis guardam-se nos arquivos
do Estado, e em outros arquivos, bibliotecas e depósitos guardam-se as coleções le
gislativas impressas.
Vamos supor, por um momento, que um grande incêndio irrompesse e que
nele se queimassem todos os arquivos do Estado, todas as bibliotecas públicas; que
o sinistro destruísse também a tipografia concessionária onde se imprimia a Cole
ção legislativa e que ainda, por uma triste coincidência - estamos no terreno das
suposições - igual desastre se desse em todas as cidades do país, desaparecendo in
clusive todas as bibliotecas particulares onde existissem coleções, dc tal maneira
que em toda a Prússia não fosse possível achar um único exemplar das leis do
país.
Suponhamos isto.
Suponhamos ainda que o país, por causa deste sinistro, ficasse sem nenhuma
das leis que o governavam e que por força das circunstâncias fosse necessário de
cretar novas leis.
Julgai que neste caso o legislador, completamente livre, poderia fazer leis a ca
pricho de acordo com o seu modo de pensar?
A monarquiaSuponhamos que os senhores respondam: visto que as leis desapareceram e
que vamos redigir outras completamente novas, desde os alicerces até o telhado,
274 Teoria Geral do Estado
nelas não reconheceremos à monarquia as prerrogativas que até agora gozou ao
amparo das leis destruídas; mais ainda, não respeitaremos prerrogativas nem atri
buições de espécie alguma; enfim, não queremos a monarquia.
O monarca responderia assim: podem estar destruídas as leis, porém, a realida
de é que o Exército subsiste e me obedece, acatando minhas ordens; a realidade é que
os comandantes dos arsenais e quartéis põem na rua os canhões e as baionetas quan
do eu o ordenar, e, apoiado neste poder real, efetivo, das baionetas e dos canhões,
não tolero que venham impor-me posições e prerrogativas em desacordo comigo.
Como podeis ver, um rei a quem obedecem o Exército e os canhões... é uma
parte da Constituição.
A aris tocrac iaSuponhamos agora que os senhores dissessem: somos tantos milhões de prus
sianos, entre os quais somente existe um punhado cada vez menor de grandes pro
prietários de terras pertencentes à nobreza. Não sabemos por que esse punhado,
cada vez menor, dc grandes proprietários agrícolas, há dc possuir tanta influencia
nos destinos do país como os restantes milhões de habitantes reunidos, formando
somente eles uma Câmara Alta que fiscaliza os acordos da Câmara dos Deputados,
eleita esta pelos votos de todos os cidadãos, recusando sistematicamente todos os
acordos que julgarem prejudiciais aos seus interesses. Imaginemos que os meus ou
vintes dissessem: destruídas as leis do passado, somos todos “iguais” e não preci
samos absolutamente, “para nada”, da Câmara senhorial.
Reconheço que não seria fácil à nobreza atirar contra o povo que assim pen
sasse seus exércitos de camponeses. Possivelmente teriam mais que fazer para li
vrar-se deles.
Mas a gravidade do caso está em que os grandes fazendeiros da nobreza tive
ram sempre muita influência na Corte e esta influência garante-lhe a saída do Exér
cito e dos canhões para seus fins, como se este aparelhamento da força estivesse
“diretamente” ao seu dispor.
Vejam, pois, como uma nobreza influente e bem vista pelo rei e sua cortc é
também uma parte da Constituição.
A grande burguesiaOcorre-me agora assentar o suposto ao inverso, isto é, a suposição de que o
rei e a nobreza aliados entre si para restabelecer a organização medieval, mas não
ao pequeno proprietário, pretendessem impor o sistema que regeu na Idade Média;
quer dizer, aplicada a toda a organização social, sem excluir a grande indústria, as
fábricas e a produção mecanizada. É sabido que o “grande” capital não poderia, de
forma alguma, progredir e mesmo viver sob o sistema medieval, impedindo-se seu
desenvolvimento sob aquele regime. Entre outros motivos, porque neste regime se
levantaria uma série de barreiras legais entre os diversos ramos de produção, por
10 Leituras Complementares 275
muita afinidade que os mesmos tivessem, e nenhum industrial poderia reunir duas
ou mais indústrias em suas mãos. Neste caso, por exemplo, entre as corporações dos
fabricantes de pregos e os ferreiros existiriam constantes processos para deslindar
as suas respectivas jurisdições; a estamparia não poderia empregar em sua fábrica
somente a um tintureiro etc. Ademais, sob o sistema gremial daquele tempo, estabe-
lecer-se-ia por lei a quantidade estrita dc produção de cada industrial e cada indús
tria somente poderia ocupar um determinado número de operários por igual.
Isto basta para compreender que a grande produção, a indústria mecanizada,
não poderia progredir com uma Constituição do tipo gremial. A grande indústria
exige, sobretudo - e necessita como o ar que respiramos -, ampla liberdade da fu
são dos mais diferentes ramos do trabalho nas mãos de um mesmo capitalista, ne
cessitando ao mesmo tempo da produção em “massa” e a livre concorrência, isto
é, a possibilidade de empregar quantos operários necessitar, sem restrições.
Que viria a acontecer se, nestas condições e a despeito de tudo, obstinadamen
te implantassem hoje a Constituição gremial?
Aconteceria que os senhores Borsig, Egels etc., os grandes industriais de teci
dos, os fabricantes dc sedas etc. fechariam as suas fábricas despedindo os seus ope
rários, e até as companhias de estrada de ferro seriam obrigadas a agir da mesma
forma. O comércio e a indústria ficariam paralisados, grande número de pequenos
industriais seria obrigado a fechar suas oficinas e esta multidão de homens sem tra
balho sairia à praça pública pedindo, exigindo pão e trabalho. Atrás dela, a gran
de burguesia, animando-a com a sua influência, instigando-a com o seu prestígio,
sustentando-a e alentando-a com o seu dinheiro, viria fatalmente à luta, na qual o
triunfo não seria certamente das armas.
Demonstrara-se, assim, que os Borsig, Egels, os grandes industriais, enfim, são
todos, também, uma parte da Constituição.
Os banqueirosSuponhamos, por um instante, que o governo pretendesse implantar uma des
sas medidas excepcionais, abertamente lesivas aos interesses dos grandes banquei
ros; que esse mesmo governo entendesse, por exemplo, que o Banco da Nação não
foi criado para a função que hoje cumpre, que é a de baratear mais ainda o crédi
to aos grandes banqueiros e aos capitalistas que possuem por razão natural todo o
crédito e todo o dinheiro do país e que são os únicos que podem descontar as suas
firmas, quer dizer, que obtêm numerário naquele estabelecimento bancário para to
mar acessível o crédito à gente humilde e à classe média. Suponhamos isto e tam
bém que ao Banco da Nação pretendesse dar a organização adequada para obter
esse resultado.
Poderia isto prevalecer?
Não vou dizer que isto desencadeasse uma revolta, mas o governo atual não
poderia impor presentemente medida semelhante.
276 Teoria Geral do Estado
Demonstrarei por quê.
De vez em quando o governo sente apertos financeiros devido à necessidade
de investir grandes quantias de dinheiro que não tem coragem de tirar do povo por
meio dc novos impostos ou aumento dos existentes. Nesses casos, resta a alterna
tiva dc consumir dinheiro futuro, ou, o que é a mesma coisa, contrair empréstimos,
entregando, cm troca do dinheiro que recebe adiantadamente, o papel da dívida
pública.
Para isto necessita dos banqueiros.
É certo que, mais dia menos dia, a maior parte daqueles títulos da dívida vol
ta às mãos da gente rica e dos pequenos capitalistas do país; mas isto requer tem
po, às vezes muito tempo, e o governo necessita do dinheiro logo e de urna vez, ou
em pequenos prazos. Para conseguir o dinheiro, serve-se dos particulares, isto é, de
intermediários que lhe adiantem as quantias de que precisa, correndo depois por
sua conta a colocação, pouco a pouco, do papel da dívida locupletando-se também
com a alta da cotação que a esses títulos lhe dá a Bolsa artificialmente. Estes inter
mediários são os grandes banqueiros c, por esse motivo, a nenhum governo con
vém, hoje em dia, indispor-se com eles.
Vemos, mais uma vez, que os grandes banqueiros, como Mendclssohn, Schi-
ckler, a Bolsa, são também partes da Constituição.
Suponhamos que o governo intentasse promulgar uma lei penal semelhante à
que prevaleceu durante algum tempo na China, punindo na pessoa dos pais os rou
bos cometidos pelos filhos. Essa lei não poderia reger, pois contra ela se levantaria
o protesto, com toda a energia possível, da cultura coletiva e da consciência social
do país. Todos os funcionários, burocratas e conselheiros do Estado ergueriam as
mãos para o céu, e até os sisudos senadores teriam de discordar de tamanho absur
do. É que, dentro de certos limites, também a consciência coletiva e a cultura geral
da Nação são partículas, e não pequenas, da Constituição.
A pequena burguesia e a classe operáriaImaginemos agora que o governo, querendo proteger c satisfazer os privilégios
da nobreza, dos banqueiros, dos grandes industriais c dos grandes capitalistas, ten
tasse privar das suas liberdades políticas a pequena burguesia e a classe operária.
Poderia fazê-lo?
Infelizmente, sim; poderia, mesmo que fosse transitoriamente; os fatos nos de
monstram que poderia.
Mas, e se o governo pretendesse tirar à pequena burguesia e ao operariado
não somente as suas liberdades políticas, senão sua liberdade pessoal, isto é, se pre
tendesse transformar pessoalmente o trabalhador em escravo ou servo, tornando-o
à situação em que viveu durante os tempos da Idade Média? Subsistiria essa pre
tensão?
Não, embora estivessem aliados ao rei a nobreza e toda a grande burguesia.
10 Leituras Complementares 277
Seria tempo perdido.
O povo protestaria, gritando: antes morrer do que ser escravo! A multidão
sairia à rua e não haveria a necessidade de que seus patrões fechassem as fábricas;
a pequena burguesia juntar-se-ia solidariamente ao povo e a resistência desse blo
co seria invencível, pois nos casos extremos c desesperados também o povo, nós to
dos, somos uma parte integrante da Constituição.
Capítulo III Os fa tores do poder e as ins t itu ições ju ríd icas
Essa é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fato
res reais do poder que regem um país.
Mas que relação existe entre o que vulgarmente denominamos Constituição
e a Constituição jurídica? Não é difícil compreender a relação que os dois concei
tos guardam entre si.
Juntam-se esses fatores reais do poder, escrevemo-los em uma folha de papel,
dá-sc-lhcs expressão escrita e, a partir desse momento, incorporados a um papel, não
são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito, nas instituições jurí
dicas, e quem atentar contra cies atenta contra a lei, e por conseguinte é punido.
Não desconheceis também o processo que se segue para transformar esses escri
tos em fatores reais do poder, transformando-os desta maneira em fatores jurídicos.
Está claro que não aparece neles a declaração de que o senhor Borsig, o in
dustrial, a nobreza, o povo são um fragmento da Constituição, ou que o banquei
ro X é também outro pedaço; não, isto se define de outra maneira mais limpa, mais
diplomática.
10) FUSTELDECOULANGES
A cidade antiga
(Trad. Sousa Costa. 2. ed., Lisboa, Clássica de A. M. Teixeira, v. 1.)
Capítulo XVIII Da on ipotência do Estado; os antigos não conheceram a l iberdade individual
A cidade foi fundada sobre uma religião e constituída como uma igreja. Daí
a sua força; dali também a sua onipotência e o império absoluto que exercia sobre
os seus membros. Numa sociedade estabelecida sobre tais princípios, a liberdade
individual não podia existir. O cidadão estava submetido em todas as coisas e sem
reserva alguma à cidade; pertencia-lhe inteiramente. A religião que criara o Estado
e o Estado que sustentava a religião reciprocamente se auxiliavam e formavam um
278 Teoria Geral do Estado
só corpo; estes dois poderes associados e confundidos formavam um poder quase
sobre-humano, ao qual a alma c o corpo estavam igualmente subordinados.
No homem nada havia que fosse independente. O seu corpo pertencia ao Es
tado c estava voltado à sua defesa; em Roma o serviço militar era obrigatório ate
aos quarenta c seis anos; em Atenas e em Esparta toda a vida. Os seus haveres es
tavam sempre à disposição do Estado; se a cidade tinha necessidade de dinheiro,
podia ordenar às mulheres que lhe entregassem as joias, aos credores o abandono
das dívidas, aos donos das oliveiras que lhe cedessem gratuitamente o azeite fabri
cado.
A vida privada não escapava a esta onipotência do Estado. Muitas cidades
gregas proibiam ao homem o ficar celibatário. Esparta punia não só aquele que não
casava, mas o que casava tarde. O Estado, em Atenas, podia prescrever o trabalho;
em Esparta, a ociosidade.
Exercia a sua tirania até nas mais pequenas coisas; em Locres, a lei proibia
aos homens beber vinho puro; em Roma, em Mileto, em Marselha, proibia-o às
mulheres. Era vulgar que a forma de vestir fosse determinada pelas leis dc cada ci
dade; a legislação de Esparta regulava o penteado das mulheres e a dc Atenas proi
bia-lhes levar cm viagem mais dc três vestidos.
Em Rodes, a lei proibia o fazer a barba; em Bizâncio, punia com uma multa
quem possuísse uma navalha de barba; pelo contrário, em Esparta, exigia que se
rapasse o bigode.
O Estado tinha o direito de não tolerar que os seus cidadãos fossem disfor
mes ou contrafeitos. Por conseqüência, ordenava ao pai, a quem nascesse assim um
filho, que o matasse. Encontra-se esta lei nos antigos códigos de Esparta e de Roma.
Não sabemos se também existia em Atenas; sabemos só que Aristóteles e Platão a
inscreveram nas suas legislações ideais.
Há na história de Esparta um fato muito admirado por Pintarcho e Rousseau.
Esparta acabava de ser derrotada em Lentra e muitos dos seus cidadãos tinham mor
rido. A esta notícia, os parentes dos mortos foram obrigados a aparecer em público
dc cara alegre. A mãe, que sabia que o filho escapara do desastre c ia tornar a vê-lo,
mostrava-se aflita c chorava. Aquela que sabia que nunca mais veria o seu, mostra
va alegria e percorria os templos agradecendo aos deuses. Tal era o poder do Esta
do que ordenava a transposição dos sentimentos naturais e se fazia obedecer.
O Estado não admitia que um homem fosse indiferente aos seus interesses; o
filósofo, o homem de estudo, não tinha o direito de viver isolado. Tinha o dever de
votar na assembleia e de ser, por seu turno, magistrado. Num tempo em que as dis
córdias eram freqüentes, a lei ateniense não permitia ao cidadão a neutralidade; de
via combater com um ou outro partido; aquele que quisesse estar afastado das fac
ções infligia a lei uma pena severa, a perda do direito de cidade.
A educação entre os gregos estava longe de ser livre. Era 110 que o Estado ti
nha mais predomínio. Em Esparta, o pai não tinha direito algum sobre a educação
10 Leituras Complementares 279
do filho. Parece que em Arenas a lei foi menos rigorosa, embora a cidade obrigas
se a que a educação fosse comum e dada por mestres escolhidos por ela. Aristófa-
nes, numa eloqüente passagem, mostra-nos as crianças de Atenas a caminho da es
cola; por ordem, distribuídas por bairros, caminham em filas cerradas, à chuva, à
neve ou ao sol forte; essas crianças mostram compreender que cumprem um dever
cívico. O Estado queria ser só a dirigir a educação c Platão diz o motivo desta exi
gência: “Os pais não devem ter liberdade de enviar ou não os seus filhos para os
mestres que a cidade escolheu; porque os filhos são menos de seus pais do que da
cidade”. O Estado considerava como pertença sua o corpo e a alma do cidadão;
por isso, queria formar esse corpo e essa alma de modo a tirar dele o melhor par
tido. Ensinava-lhe ginástica, porque o corpo do homem era uma arma para a cida
de, e esta arma devia ser tão forte e tão manejável quanto possível. Ensinava-lhe
também os cantos religiosos, os hinos e as danças sagradas, porque se precisava
deste conhecimento para a boa execução dos sacrifícios e das festas da cidade.
Reconhecia-se ao Estado o direito de impedir que houvesse um ensino livre
ao lado do seu. Atenas promulgou um dia uma lei que proibia instruir os moços,
sem uma autorização dos magistrados; e uma outra que proibia especialmente en
sinar filosofia.
O homem não tinha escolha dc crenças. Devia crer na religião da cidade e sub
meter-se a ela. Podia odiar-se ou desprezar-se os deuses da cidade vizinha; quanto
às divindades de um caráter geral e universal, como Júpiter Celeste, Cibele ou Juno,
tinha-se liberdade de crer nelas ou não. Mas cuidado em não duvidar da Athene
Poliada, ou do Erechtea ou de Cecropa. Nisso haveria uma grande impiedade que
atingiria a religião e o Estado ao mesmo tempo, o que o Estado puniria severamen
te. Sócrates foi condenado à morte por esse crime.
A liberdade de pensar sobre religião era absolutamente desconhecida entre os
antigos. Deviam conformar-se com todas as regras do culto, figurar em todas as
procissões, tomar parte nos repastos sagrados.
A legislação ateniense punia com forte pena aqueles que se abstivessem de ce
lebrar religiosamente uma festa nacional.
Os antigos não conheciam, portanto, nem a liberdade da vida privada, nem a
da educação, nem a religiosa. A pessoa humana tinha pequeníssimo valor perante
essa autoridade santa e quase divina, que se chamava pátria ou Estado. O Estado
não tinha só, como nas sociedades modernas, um direito de justiça relativamente
aos cidadãos. Podia punir sem que houvesse culpa e só porque o seu interesse es
tava em jogo. Aristides certamente não cometera crime algum e nem mesmo se tor
nara suspeito disso; mas a cidade tinha o direito de expulsá-lo do seu território pelo
único motivo de Aristides ter adquirido, por suas virtudes, influência demasiada,
que, se ele quisesse, podia tornar perigosa. Chamava-se a isso ostracismo. Esta ins
tituição não era particular a Atenas; encontrava-se em Argos, em Megara, em Sira-
cusa, e Aristóteles dava a entender que existia em todas as cidades gregas que ti
280 Teoria Geral do Estado
nham um governo democrático. Ora, o ostracismo não era um castigo; era uma
precaução tomada pela cidade contra um cidadão que ela suspeitava que podia um
dia incomodá-la. Em Atenas podia acusar-se e condenar-se um homem por incivis-
mo, isto c, por falta de afeto para com o Estado.
Desde que se tratasse do interesse da cidade, nenhuma garantia havia para a
vida do homem. Roma promulgou uma lei, pela qual cra permitido matar qualquer
homem que tivesse a intenção de se tornar rei. A máxima funesta de que a salva
ção do Estado é a lei suprema foi formulada pela antiguidade. Pensava-se que o di
reito, a justiça, a moral, tudo devia ceder perante o interesse da pátria.
É, portanto, um erro singular, entre todos os erros humanos, acreditar que nas
cidades antigas o homem gozava liberdade. Não tinha sequer a mais ligeira ideia dela.
Não julgava que pudesse existir direito em frente da cidade e dos seus deuses.
Veremos, dentro em pouco, que o governo muitas vezes mudou de forma; mas
a natureza do Estado ficou, pouco mais ou menos, a mesma e a sua onipotência
não diminuiu. O governo denominou-se alternativamente monarquia, aristocracia,
democracia; mas nenhuma dessas revoluções deu aos homens a verdadeira liberda
de, a liberdade individual. Ter direitos políticos, votar, nomear magistrados, poder
scr arcontc, eis o que eu chamava liberdade; mas o homem estava subordinadíssi-
mo ao Estado. Os antigos, c sobretudo os gregos, exageravam sempre a importân
cia e os direitos da sociedade; isto devido, sem dúvida, ao caráter sagrado e religio
so que a sociedade originariamente revestiu.
11) GUSTAVELEBON
Leis psico lóg icas da evolução dos povos
Trad. Agostinho Fortes, Lisboa, Francisco Luiz Gonçalves. 1910, p. 109-27.
Como as ins titu ições derivam da alma dos povosA história, nas suas grandes linhas, pode considerar-se como a simples expo
sição dos resultados produzidos pela constituição psicológica das raças; provém
dessa constituição assim como os órgãos respiratórios dos peixes se adaptam com
a sua vida aquática. Sem o prévio conhecimento da constituição mental de um povo,
a história deste transforma-se num caos de acontecimentos, que parecem provir
meramente do acaso; quando, pelo contrário, a alma de um povo nos é conhecida,
a sua vida apresenta-se-nos como a conseqüência regular e fatal dos seus caracte
res psicológicos. Em todas as manifestações de vida de uma nação, encontramos
sempre a alma imutável da raça elaborando o seu próprio destino.
10 Leituras Complementares 281
É, principalmente, nas instituições políticas que mais visivelmente se manifes
ta o poder soberano da alma da raça, o que facilmente provaremos com alguns
exemplos.
Consideremos primeiro a França, ou seja, um dos países que mais sujeitos tem
estado às mais profundas alterações, país em que, em poucos anos, mais radical
mente as instituições políticas parecem ter mudado, cm que os partidos parecem
mais divergentes. Se encararmos, pelo critério psicológico, estas opiniões aparente
mente tão divergentes, estes partidos incessantemente em luta, verificaremos que,
na realidade, têm todos um fundo comum perfeitamente idêntico, precisamente re
presentante do ideal da nossa raça. Intransigentes, radicais, monárquicos, socialis
tas, em uma palavra todos os defensores das mais diversas doutrinas, procuram
com etiquetas diversas atingir um fim perfeitamente idêntico, a absorção do indi
víduo pelo Estado.
O que todos com o mesmo ardor querem é o velho regime centralizador e ce-
sarista, o Estado a dirigir tudo, a regular e absorver tudo, regulamentando os mais
insignificantes pormenores da vida dos cidadãos, dispensando estes de manifesta
rem qualquer movimento de reflexão c de iniciativa. Quer o poder posto à frente
do Estado se chame rei, quer imperador, presidente, ou qualquer outra coisa, esse
poder, seja qual for, forçosamente há dc ter o mesmo ideal, que é a expressão dos
sentimentos da alma da raça. Nem esta consentiria outro.
Se, portanto, o nosso extremo nervosismo, a nossa extraordinária facilidade
em estarmos descontentes com o que nos cerca, a ideia de que um governo novo
fará a nossa sorte mais feliz, nos levam a mudarmos incessantemente as nossas ins
tituições, a grande voz dos mortos que é quem nos guia, condena-nos a só mudar
mos palavras e aparências. O poder inconsciente da alma da nossa raça é tamanho,
que nem sequer percebemos as ilusões de que somos vítimas.
Na verdade, se apenas nos ativermos as aparências, nada é mais diferente do
antigo regime do que o que foi criado pela nossa grande revolução; na realidade, po
rém, e sem dar por isso, a revolução não fez mais do que continuar a tradição real,
acabando a obra da centralização, há séculos já iniciada pela monarquia. Luís XIII e
Luís XIV, se se erguessem de seus túmulos para julgarem a obra da revolução, é fora
de dúvida que censurariam algumas das violências que acompanharam a sua reali
zação, mas considerá-la-iam rigorosamente em harmonia com as suas tradições e
com os seus programas; confessariam que um ministro por eles encarregado de exe
cutar os seus planos não teria conseguido realizar melhor os seus desígnios e diriam
que o menos revolucionário dos governos franceses foi precisamente o da revolução;
verificariam, além disso, que, de há um século a esta parte, nenhum dos diversos re
gimes que se têm sucedido na França, tentou alterar semelhante obra, tanto ela e, na
realidade, o fruto de urna evolução regular, a continuação do ideal monárquico e a
expressão de gênio da raça. Sem dúvida, estes ilustres fantasmas, devido à sua gran
de experiência, apresentariam algumas críticas e fariam, porventura, observar que
282 Teoria Geral do Estado
tendo sido substituída a casta aristocrática governamental pela casta administrativa,
se criara 110 Estado um poder impessoal mais temível que o da antiga nobreza, por
isso que só ele, escapando às mudanças políticas, possui tradições, espírito de corpo
ração, ausência de responsabilidade e perpetuidade, isto é, uma série de condições
que necessariamente o levarão a ser senhor único. Não insistiram muito, acreditamo-lo,
nesta objeção, considerando que os povos latinos, preocupando-se muito pouco com
a liberdade e muito com a igualdade, facilmente suportam todos os despotismos, des
de que estes sejam impessoais; é possível também que achassem bastante excessivos
e assás tirânicos os inumeráveis regulamentos, os mil laços que hoje cercam o mais
insignificante ato da vida, e provável é também que fizessem notar que, quando o Es
tado haja absorvido e regulamentado tudo, despojando o cidadão de toda e qualquer
iniciativa, nos encontraremos espontaneamente, e sem o auxílio de qualquer outra
revolução, em pleno socialismo. Mas então as luzes divinas que iluminam os reis, à
falta delas as luzes matemáticas que ensinam que os efeitos aumentam em progres
são geométrica quando as mesmas causas subsistam, permitir-lhes-iam conceber que
o socialismo não é mais do que a expressão última da ideia monárquica, de que a re
volução do século XVIII foi apenas uma fase aceleradora.
Assim, nas instituições dum povo, encontramos ao mesmo tempo as circuns
tâncias acidentais, que mencionamos no começo desta obra, e as leis permanentes
que temos procurado determinar. As circunstâncias acidentais criam os nomes, as
aparências; as leis fundamentais, e estas, provêm do caráter dos povos, criam o des
tino das nações. Ao exemplo precedente podemos opor o de uma outra raça, a in
glesa, cuja constituição psicológica é muito diferente da nossa, motivo este pelo
qual as suas instituições se afastarão também radicalmente das nossas.
Quer os ingleses tenham à sua frente um monarca, como na Inglaterra, quer
um presidente como nos Estados Unidos da América do Norte, o seu governo apre
sentará sempre as mesmas características fundamentais, a redução ao mínimo da
ação do Estado e o desenvolvimento máximo da ação dos particulares, o que é pre
cisamente o contrário do ideal latino. Portos, canais, caminhos dc ferro, estabele
cimentos de instrução, etc., entre os ingleses, serão sempre construídos e conserva
dos pela iniciativa dos particulares e nunca pela do Estado; não há revoluções, nem
constituições, nem déspotas que possam dar a um povo que as não possua, ou ti
rá-las a um que as possua, as qualidades de caráter de que as suas instituições de
rivam. Tem-se dito muitas vezes que os povos têm os governos que merecem. Pode
porventura, conceber-se que tivessem outros?
Daqui a pouco mostraremos com diversos exemplos que um povo se não sub
trai às conseqüências da sua constituição mental, 011 que, se, por acaso, a elas se
subtrai, é apenas por instantes rápidos, precisamente como a areia revolta pela tem
pestade, que parece escapar momentaneamente às leis da atração.
É pura quimera pensar-se que os governos e as constituições têm alguma ação
nos destinos de um povo. É 110 povo e não em circunstâncias exteriores que deve
10 Leituras Complementares 283
mos procurar o destino desse mesmo povo. O mais que podemos exigir de um go
verno é que seja a expressão dos sentimentos c das ideias do povo que dirige e de
que, pelo fato da existência, é a imagem. Não há governos nem instituições que
possamos chamar absolutamente bons ou maus. O governo do rei dc Daomé cra
provavelmente um governo excelente para o povo que administrava, povo esse para
que seria má a mais sábia constituição europeia. É isto o que desgraçadamente ig
noram os estadistas que imaginam ser um governo objeto de exportação e que, por
tanto, as colônias podem governar-se com as instituições das suas metrópoles. Ora,
isto eqüivale a querer persuadir os peixes a que vivam no ar, com o pretexto de que
a respiração aérea cabe a todos os animais superiores.
E devido apenas ao fato da diversidade da sua constituição mental, que po
vos diferentes não poderiam por muito tempo subsistir sob um regime idêntico. O
francês e o inglês, o eslavo e o húngaro, o árabe e o francês, só com as maiores di
ficuldades e à custa de incessantes revoluções é que se têm mantido sob as mesmas
leis. Os grandes impérios que abrangem povos diversos têm sido sempre condena
dos à efêmera existência; quando têm tido alguma duração, como o dos mongóis
e depois o dos ingleses na índia, tem sido, por um lado, porque as raças em presen
ça eram por tal forma numerosas c diferentes c, portanto, rivais, que nem sequer
podiam pensar em sc unirem, por outro lado porque o dos senhores, estrangeiros,
tiveram instinto político bastante hábil que os levou a respeitarem os costumes dos
povos conquistados, deixando-os viver com as leis que lhes eram próprias.
Escrever-se-iam muitos livros, refazer-se-ia até toda história sob um critério
novo, se quiséssemos indicar todas as conseqüências da constituição psicológica
dos povos. O seu estudo cuidado devia ser a base da política e da educação; pode
mos avançar mesmo que semelhante estudo evitaria muitos erros e muitas altera
ções, se os povos pudessem evitar os fatalismos de raça, se a voz da razão não fos
se sempre abafada pela voz imperiosa dos mortos.
Capítulo II A p l icação dos princíp ios precedentes ao estudo com parado
da evo lução dos Estados Unidos da Am érica do Norte e das Repúblicas H ispano-Am ericanas
As breves considerações precedentes mostram que as instituições de um povo
são a expressão da sua alma e que, se a esse povo é fácil mudar as formas das ins
tituições, lhe é todavia impossível mudar-lhes o fundo. Vamos agora mostrar com
exemplos muito precisos a que ponto a alma de um povo rege os destinos deste e
o insignificante papel que as instituições desempenham nesses destinos.
Estes exemplos, tomá-los-emos em uma região, a América, em que vivem, ao
lado uma da outra, em condições de meio pouco diferentes, duas raças europeias
igualmente civilizadas e inteligentes, divergindo apenas no caráter. Esta é formada
por dois continentes distintos, reunidos por um istmo; as superfícies de cada um
284 Teoria Geral do Estado
destes continentes são quase iguais, o solo de um e de outro muito semelhante. Um
deles foi conquistado e povoado pela raça inglesa, o outro pela raça espanhola. Es
tas duas raças vivem com constituições republicanas semelhantes, pois que as re
publicas da America do Sul tomaram como modelo a dos Estados Unidos. Não há,
portanto, em presença mais do que as diferenças de raças para sc explicarem os
destinos diversos destes povos. Vejamos, pois, o que tais diferenças produziram.
Antes, porém resumamos em algumas palavras os caracteres da raça anglo-sa-
xônica, que povoou os Estados Unidos. Talvez nenhuma outra haja no mundo que,
não obstante a diversidade de origem, se tenha feito mais homogênea e cuja cons
tituição mental seja, em suas linhas gerais, de mais fácil definição.
As características preponderantes desta constituição mental são, no que diz
respeito ao caráter: uma força de vontade que muito poucos povos, exceto talvez
os romanos, possuíram, uma energia indomável, extraordinária iniciativa, império
absoluto sobre si, sentimento de independência levado até excessiva insociabilida-
de, atividade poderosa, sentimentos religiosos muito vivos, moralidade muito fixa,
e muito nítida ideia do dever.
No ponto de vista intelectual, não podem dar-se características especiais, isto
é, não podem indicar-se elementos particulares, que nada se encontrem nas outras
nações civilizadas. Só há a notar um juízo seguro que permite aprender o lado prá
tico e positivo das coisas sem se perderem em investigações quiméricas; gosto mui
to acentuado pelos fatos e medíocre pelas ideias gerais, um tal ou qual acanhamen-
to de espírito, que impede de ver os lados fracos das coisas religiosas, pondo, por
conseqüência, estas crenças ao abrigo da discussão.
A estas características gerais deve acrescentar-se o otimismo completo do ho
mem cujo caminho está bem traçado na vida e que pressupõe até que não pode
escolher outro melhor; que sabe sempre o que lhe exigem a pátria, a família e os
deuses. Este otimismo vai ao ponto de fazer considerar como extremamente des
prezível tudo que é estrangeiro. O desprezo pelo estrangeiro e pelos usos deste so
brepuja, certamente, na Inglaterra, o que outrora os romanos, na época dc sua gran
deza, sentiam pelos bárbaros; é tão grande que para com os estrangeiros toda regra
moral desaparece. Não há nenhum estadista inglês que não julgue perfeitamente
legítimo, na linha de conduta para com os outros povos, atos que provocariam a
mais profunda e a mais unânime indignação se fossem praticados contra compa
triotas. Este sentimento de desdém pelo estrangeiro é, sem dúvida, encarado filoso
ficamente, um sentimento de ordem inferior, mas, se atendermos à prosperidade de
um povo, é extremamente útil, e, como muito justamente nota o general inglês Wol-
seley, é um dos sentimentos que contribuem para a força da Inglaterra. Com razão
se disse, a propósito da sua, de resto muito judiciosa, recusa em consentirem 110 es
tabelecimento de um túnel na Mancha, que facilitaria imenso as relações com o
continente, que os ingleses empregavam tantos esforços como os chineses para im
pedirem a entrada de qualquer ação estranha.
10 Leituras Complementares 285
Todos os caracteres que acabamos de enumerar se encontram nas diversas ca
madas sociais; nenhum elemento da civilização inglesa se encontra que não tenha
fortemente gravados esses caracteres; o estrangeiro que visitar a Inglaterra, embo
ra com pouca demora, conhecerá claramente esse fato, verificará a necessidade da
vida independente na casa do mais modesto empregado, que habita, sem dúvida,
uma moradia estreita mas ao abrigo de qualquer constrangimento e isolada de
quaisquer vizinhos; nas gares mais freqüentadas, onde o público circula a toda hora,
sem estar encurralado como um rebanho de carneiros dóceis por trás de um corri
mão guardado por um policial, como se fosse necessário assegurar pela força a se
gurança de pessoas incapazes de encontrarem em si a atenção necessária para não
serem esmagadas. Encontrará a energia da raça tanto no trabalho duro do operá
rio como no de estudante que, entregue a si, desde a mais tenra idade, aprende a
conduzir-se sozinho nos seus atos e fica desde logo sabendo que pela vida fora só
ele e mais ninguém se preocupará com o seu destino; nos professores, que pouca
importância ligam à instrução por a concederem principalmente ao caráter, por eles
considerado uma das maiores forças motoras do mundo. Se entrar na vida públi
ca do cidadão, verá que não é para o Estado, mas para a iniciativa individual que
sempre se apela, quer se trate de reparar a fonte de uma aldeia, de construir um
porto dc mar ou criar um caminho de ferro; continuando o seu inquérito, reconhe
cerá, bem depressa que esse povo, não obstante os defeitos que fazem dele o mais
insuportável dos povos para o estrangeiro, é o único verdadeiramente livre, porque
é o único que, tendo aprendido a governar-se por si, deixou ao governo o mínimo
de ação. Se percorrermos a sua história, veremos que foi o povo inglês o primeiro
que soube libertar-se de qualquer domínio, quer da Igreja: quer do rei. Já no sécu
lo XV, o legista Fortscue opunha a lei romana, herança dos povos latinos, à lei in
glesa; uma obra de príncipes absolutos e destinada exclusivamente a sacrificar o in
divíduo, a outra obra da vontade comum e sempre pronta a proteger a pessoa.
Seja qual for o lugar do globo para que um povo semelhante a este emigre,
esse povo será imediatamente preponderante e fundará impérios poderosos. Sc a
raça invadida, como os pelcs-vermelhas da América, por exemplo, for bastante fra
ca e pouco utilizável, será metodicamente exterminada; se, como a das populações
da índia, for muito numerosa para que possa ser destruída e, além disso, dê traba
lho produtivo, ficará simplesmente reduzida a dura vassalagem e será obrigada a
trabalhar quase exclusivamente para os seus senhores.
E, porém, num país novo, como a América, que devemos principalmente acom
panhar os progressos espantosos devido à constituição mental da raça inglesa. Trans
portada para regiões incultas, só habitadas por alguns selvagens, contando só con
sigo, sabemos bem o que contudo fez; bastou-lhe um século para se colocar na
primeira linha das grandes potências do mundo e ninguém hoje há que possa lutar
contra ela. Às pessoas desejosas de conhecer a enorme soma de iniciativa e energia
individuais empregadas pelos cidadãos da grande república norte-americana, reco
286 Teoria Geral do Estado
mendamos a leitura dos livros de Rousier e Paulo Bourgel. A aptidão dos homens
em se governarem por si, cm se associarem para fundar grandes empresas, fundar
cidades, escolas, portos, caminhos de ferro, etc. é levada a tal máximo e a ação do
Estado reduzida a tal mínimo que quase pode dizer-se que não existem lá poderes
públicos, pois que, se tirarmos a polícia c a representação diplomática, não e pos
sível descortinar-sc para que esses poderes possam servir.
Nos Estados Unidos só é possível prosperar quem possua as qualidades de ca
ráter que acabamos de indicar, e a isto se deve o não poderem as imigrações estrangei
ras modificar o espírito geral da raça. As condições de existência são tais que todos
aqueles que não possuam as qualidades indicadas estão condenados a desapareci
mento rápido; nesta atmosfera, saturada de independência e de energia, só pode vi
ver o anglo-saxão; o italiano morre aí de fome, o irlandês e o negro apenas conse
guem vegetar em condições perfeitamente subalternas.
A grande república, a que nos vimos referindo, é seguramente a terra da liber
dade, mas não é com certeza a terra da igualdade e da fraternidade, as duas quime
ras latinas que às leis do progresso não c dado conhecerem; em nenhuma região do
globo, a seleção natural tem feito sentir mais rudemente o seu férreo braço. É des-
caroávcl, não há dúvida; mas é precisamente por não ter compaixão que a raça,
para cuja formação a seleção contribuiu, conserva o seu poder e a sua energia. No
solo dos Estados Unidos não há lugar para fracos, para os medíocres, nem para os
incapazes de qualquer coisa. Indivíduos isolados ou raças inteiras estão destinados
a desaparecer só pelo fato de serem inferiores; os peles-vermelhas, havendo-se tor
nado inúteis, foram exterminados a tiro ou condenados a morrer de fome. Os ope
rários chineses, cujo trabalho constitui incômoda concorrência, acabarão por so
frer sorte análoga. À lei que ordenou a expulsão total dos chineses não pôde ser
aplicada, devido às despesas enormes que da sua execução proviriam. Sem dúvida,
será prontamente substituída por uma instrução metódica iniciada já em alguns
distritos mineiros. Recentemente foram votadas outras leis proibitivas da entrada
no território americano a imigrantes pobres. Com respeito aos negros, que servi
ram de pretexto à guerra da secessão, entre os que tinham escravos c os que, não
podendo tê-los, não podiam sofrer que os outros tivessem, são apenas, por assim
dizer, tolerados, por isso que ficam adstritos a funções subalternas que nenhum ci
dadão americano quereria para si. Teoricamente, os negros têm todos os direitos;
praticamente, são tratados como animais semiúteis dos quais se desembaraçam logo
que se tornem perigosos. Os processos sumários da lei de Lynch são reconhecidos
geralmente como bastante para eles; ao primeiro delito que pratiquem, fuzilados
ou enforcados.
Estas são, sem dúvida, as manchas do quadro, que é, contudo, suficientemen
te brilhante para que diminua de valor. Se forçoso fosse definir-se por uma palavra
a diferença entre a Europa continental e os Estados Unidos, poderíamos dizer que
a primeira representa o máximo do que pode dar a regulamentação oficial substi
10 Leituras Complementares 287
tuindo a iniciativa individual, os segundos o máximo que pode dar a iniciativa in
dividual absolutamente desembaraçada de qualquer regulamentação oficial. Estas
diferenças fundamentais são exclusivamente conseqüências do caráter. Não é no
solo da rede república norte-americana que o socialismo europeu tem probabilida
des dc vir um dia a implantar-sc. Última expressão da tirania do Estado, o socialis
mo só poderá prosperar nas raças envelhecidas, sujeitas há séculos a um regime que
lhes tirou toda e qualquer capacidade de governo próprio e pessoal.
Acabamos de ver o que numa parte da América produziu uma raça possuido
ra de certa constituição mental em que predominam a perseverança, a energia e a
vontade; falta que mostremos no que se transformou um país, quase semelhante,
nas mãos de uma outra raça, muito inteligente, na verdade, mas sem possuir ne
nhuma das qualidades de caráter cujos efeitos passamos em revista.
A América do Sul é, atendendo-se às suas produções naturais, uma das mais
ricas regiões do globo. Duas vezes maior que a Europa e dez vezes menos povoa
da, a terra não faz falta e está, por assim dizer, à disposição de todos. A população
preponderante, de origem espanhola e portuguesa, está dividida em numerosas re
públicas, Argentina, Brasil, Chile, Peru etc. Todas elas adotaram a constituição po
lítica dos Estados Unidos do Norte e, por conseqüência, vivem sob a ação de leis
idênticas. Pois, simplesmente pelo fato da raça ser diferente e lhe faltarem as qua
lidades fundamentais que possui a raça que povoa os Estados Unidos, todas estas
repúblicas, sem exceção, são presa perpétua da mais sangrenta anarquia e, não obs
tante as extraordinárias riquezas do seu solo, sossobram, umas após outras, em de
la pidações de toda espécie, falências e despotismos.
Lendo-se a notável e imparcial obra de Th. Child acerca das repúblicas lati
no-americanas, apreciar-se-á com exatidão a profundeza da sua decadência. As cau
sas encontram-se todas na constituição mental de uma raça sem energia, nem von
tade, nem moralidade. A ausência de moralidade, principalmente, excede tudo o
que de pior conhecemos da Europa. Referindo-se a uma das cidades mais impor
tantes, Buenos Aires, o autor declara-a inabitável para quem quer que seja que te
nha delicadeza dc consciência e alguma moralidade, c a propósito dc uma das me
nos degradadas dessas repúblicas, a Argentina, o mesmo escritor diz que, se a
examinarmos sob o ponto de vista comercial, ficaremos abismados com a imorali
dade que aí se manifesta.
Nenhum exemplo há que melhor mostre quanto as instituições são filhas da
raça e portanto, a impossibilidade de se transferirem de um povo para outro. Seria
interessantíssimo saber-se o que aconteceria às instituições tão liberais dos Estados
Unidos da América do Norte, se fossem transportadas para uma raça inferior. Es
tes países, diz-nos Child, falando das diversas repúblicas latino-americanas, estão
sob a férula de presidentes que exercem uma autocracia não menos absoluta que a
do czar de todas as Rússias; mais absoluta até, por isso que estão ao abrigo de to
das as importunações e da ação da censura europeia, o pessoal administrativo é ex
288 Teoria Geral do Estado
clusivamente constituído por criaturas dos presidentes...; os cidadãos votam como
melhor lhes parece, mas ninguém dá importância aos seus sufrágios. A República
Argentina é apenas república no nome, porque, na realidade, é uma oligarquia de
indivíduos que fazem da política verdadeiro negócio.
Só um país, o Brasil, escapara um pouco a tão profunda decadência, mercê de
um regime monárquico, que colocava o poder a coberto das lutas de competido
res. Demasiadamente liberal para raças sem energia e sem vontade, a monarquia
brasileira sucumbiu, caindo desde logo o país em plena anarquia. Dentro de pou
cos anos, a gente do poder delapidou por tal forma o tesouro que os impostos au
mentaram em mais de sessenta por cento.
Não é só na política, muito naturalmente, que se manifesta a decadência da
raça latina que povoou a América, mas sim em todos os elementos da civilização.
Reduzidas aos seus próprios recursos, estas desgraçadas repúblicas regressariam ao
barbarismo puro; toda a indústria e todo o comércio estão em mãos de estrangei
ros: ingleses, americanos e alemães. Valparaíso é uma cidade inglesa, e nada ficaria
no Chile se lhe tirassem os estrangeiros; mercê destes é que estas regiões conservam
ainda um verniz de civilização que ilude a Europa. A República Argentina tem qua
tro milhões dc brancos de origem espanhola; não sabemos se poderemos citar um
branco que seja, além dos estrangeiros, que se encontre à frente dc uma indústria
verdadeiramente importante.
Esta terrível decadência da raça latina, abandonada a si mesma, posta em con
fronto com a prosperidade da raça inglesa numa região vizinha, é uma das mais
sombrias, mais tristes e, ao mesmo tempo, das mais instrutivas experiências que po
demos citar para apoio das leis psicológicas que expusemos.
12) ALMEIDA GARRETT
Obras
(Porto, Lello 6c Irmão, Editores, 1963, v. 1, p. 734-5.)
Justiça (Lúcio Jún io Bruto, juiz de seus filhos)
Lúcio Júnio Bruto era cônsul ou primeiro magistrado de Roma; e, na ocasião
em que a cidade era sitiada por um poderoso exército inimigo, foi descoberta uma
conspiração de traidores que tentavam entregar-la. Entrava nesta conspiração gran
de número dos principais do Estado e com eles os filhos do cônsul. Foram todos
presos e processados por tão horrível crime; que o não há maior nem mais atroz.
Chegou a hora tremenda em que os réus deviam ser afinal julgados. Apareceu
o cônsul Lúcio Júnio Bruto em seu tribunal no foro ou praça pública de Roma, ro
10 Leituras Complementares 289
deado do senado, que era o conselho dos anciãos e homens bons do Estado, e dian
te de todo o povo - porque em Roma foram sempre públicos os processos, para
que nem as paixões dos julgadores nem as peitas dos culpados os pudessem torcer,
mas se fizesse sempre justiça direita e lisa.
Compareceram os acusados diante do cônsul; dentre estes, seus próprios filhos.
Todo o povo tinha os olhos neles e no pai, c parecia duvidar que o sangue c a natu
reza não movessem da justiça o ânimo do magistrado. íMas o cônsul interrogou seus
filhos com a mesma tranqüilidade e firmeza com que fez aos outros. O crime foi pro
vado; eles confessaram: e não restava senão pronunciar o juiz a sentença.
Hoje dá-se aos condenados tempo suficiente para se prepararem a aparecer
na presença de seu Deus, tribunal mais terrível porque são eternas suas decisões,
porém mais indulgente porque lhe cabe perdoar crimes provados e confessados
quando deles há verdadeiro arrependimento. Mas nesses tempos a religião cristã,
que é toda humanidade e brandura, não tinha ainda adoçado os costumes daque
les honrados mas ferozes republicanos. Os réus convencidos e julgados iam ser para
logo executados.
Lúcio Júnio Bruto, rodeado de lictorcs - oficiais públicos a quem incumbia
pôr cm continente por obra os mandatos do cônsul-, pronuncia a fatal sentença:
44O crime está provado; os acusados são réus dc alta traição: lictorcs feri, executai
a sentença da república”.
A natureza não podia com mais: o cônsul cobriu o rosto com a toga... e as ca
beças dos filhos rolaram a seus pés.
Mas Roma foi salva, a rebelião afogou-se; e Júnio Bruto, órfão de seus filhos,
não o foi da pátria. Tal é um dos maiores exemplos de justiça que já se deram no
mundo.
13) ALBERTO TORRES
A Organização Nacional
Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1978, 3. ed.
0 espírito e as tendênc ias da políticaEm outros tempos, no período de romantismo político que sucedeu à Revo
lução Francesa, quando a questão das formas de governo era a tese predileta dos
publicistas, a unidade e a continuidade da política pareciam aos olhos dos partidá
rios do regime monárquico a grande causa de sua superioridade.
A pretensão era falaz, como todas as ideias a priori da política. A unidade e
a continuidade da política resultam da existência de um caráter nacional. Onde há
uma nação, homogênea em seus elementos, ou fortemente subordinada a um espíri
290 Teoria Geral do Estado
to, um móvel, uma aspiração, ou uma classe preponderante, define-se uma políti
ca: os órgãos dessa política surgem da reação dos acontecimentos, e, seja dinástica
ou republicana a forma do governo, o poder vem a cair nas mãos dos combaten
tes mais fortes, dos representativos.
Em Washington, como cm Bismarck, encontra-se o mesmo traço das perso
nalidades dominantes, os eleitos desse sufrágio tácito, que faz brotar os proto-ho-
mens do tempo, em sua terra - como a flor brota da planta, na estação própria, -
sobre a haste do valor pessoal. Homens dessa têmpera comandam as gerações a
que pertencem, nas grandes épocas de crise nacional, e impulsionam o movimen
to que se perpetua pelas gerações adiante.
Há casos notabilíssimos de proeminência de um homem, ou de uma aristocra
cia mental, sobre os destinos de um povo, nenhum, porém, mais expressivo que o
dos Estados Unidos, onde um grupo de precursores eminentes assentou, nos primei
ros dias da constituição do país, os princípios que o haviam de dirigir até hoje. Quem
lê o Federalista, as cartas e os manifestos de Washington, os trabalhos de Jefferson,
dc Hamilton, dc Madison c de Franklin, encontra estudados, nessas soberbas profis
sões dc fé, os caracteres práticos e morais da nacionalidade, expostos os seus pro
blemas, indicadas as suas soluções, previstos os seus destinos, com precisão e clare
za tão fortes que projetam luz sobre o futuro da grande pátria, até nossos dias.
Esses homens deram aos olhos de sua pátria a consciência do nosce te ipsum;
mostram-lhe as suas necessidades, os seus problemas, as suas soluções, os seus des
tinos. A nação despertou formada, cônscia de sua posição e de seu papel no mun
do, pronta para caminhar com os olhos fitos num objeto conhecido. Sua história
foi o desenvolvimento natural de um atleta.
Esta preparação inicial era mais difícil, entre nós, por causas geográficas e por
causas históricas. Território heterogêneo, de conformação longitudinal, com rios e
vias de comunicação menos favoráveis, eriçado de cadeias de montanhas que o di
videm e separam, era mais penoso ligar e abranger, num todo, as diversas zonas,
para lhes estudar o caráter comum c prefixar as condições de unidade e dc solida
riedade. Não era fácil assimilá-lo, com seus produtos exóticos, às condições nor
mais do comércio internacional, entremeando os seus interesses nas correntes or
dinárias dos negócios. O comércio brasileiro ficou, como todos os que versam sobre
especiarias, sujeito às oscilações, aos entraves, às espoliações, que acompanham,
em toda parte, os negócios sobre gêneros que não são de uso necessário.
Os homens públicos estavam, por outro lado, longe de possuir o preparo dos
fundadores da república americana. Cientistas, literatos e juristas da escola de Coim
bra trouxeram, para o nosso meio, brilhantes ideias, conceitos teóricos, fórmulas
jurídicas, instituições administrativas, estudados nos centros europeus. Com tal es
pólio de doutrinas e de imitações, arquitetou-se um edifício governamental, feito
de materiais alheios, artificial, burocrático. Os problemas da terra, da sociedade,
da produção, da povoação, da viação e da unidade econômica e social, ficaram en
10 Leituras Complementares 291
tregues ao acaso; o Estado só os olhava com os olhos do fisco; e os homens públi
cos - doutos parlamentares e criteriosos administradores - não eram políticos, nem
estadistas; bordavam, sobre a realidade da nossa vida, uma teia de discussões abs
tratas, ou retóricas; digladiavam-sc em torno dc fórmulas constitucionais, france
sas ou inglesas; tratavam das eleições, discutiam teses jurídicas, cuidavam do exer
cito, da armada, da instrução, das repartições, das secretarias, das finanças, das
relações exteriores, imitando ou transplantando instituições e princípios europeus.
Sob a impetuosidade do primeiro monarca e o academicismo do segundo, o meca
nismo governamental trabalhou sempre, desorientado e sem guia, estranho às ne
cessidades íntimas, essenciais, do nosso meio físico e social.
A República desenvolveu consideravelmente a curiosidade intelectual, nas le
tras, nas ciências, na política. Conservando a maioria na representação nacional,
viram-se os juristas cercados de outras aptidões e capacidades. Moços, ardentes,
ambiciosos, os políticos do novo regime lançaram-se à pesquisa de novos assuntos,
novos problemas, novas conquistas a explorar, nos anais do Congresso, na impren
sa, cm periódicos c livros, multiplicaram-se estudos c investigações, de incontestá
vel mérito e marcada originalidade - mas esses trabalhos mostravam, em regra, a
tara da nossa tendência e a lacuna do nosso preparo: eram teóricos, analíticos, li
mitados a uma especialidade, a um ramo dc conhecimentos, alheios aos problemas
concretos e oportunos. O regime não trouxe consigo os estadistas que o haviam de
construir. Os estudos ganharam em variedade, mas perderam, em dispersão e inde
finido, alguma precisão que os antigos tinham.
É certo que os manifestos e mensagens presidenciais sumariam, com mais ou
menos amplitude, notas sobre os departamentos dos serviços públicos, faces diver
sas dos problemas nacionais, e que sugerem alvitres e soluções sobre variados as
suntos; por amplos que sejam, têm, contudo, todos eles, um caráter, minucioso e
pormenorizado, de catálogos de sugestões e propostas, para aplicações parciais,
sem espírito de conjunto, sem vista geral e coordenada de nossa fisionomia social,
política e econômica, de seus problemas, de suas soluções. São programas de ges
tão transitória, para os quatro anos de período; faltam-lhes a envergadura e a luz,
com que costumam verdadeiros estadistas concentrar, em traços fortes e nítidos, o
sistema da política prática, o estudo positivo da fisiologia de um país, para lhes in
dicar o movimento e a direção.
Esses programas quadrienais, esboçados no curto período de cada governo, são
esquecidos, para se dar começo a novos ensaios e tentativas, na seguinte presidência.
A história da política republicana, em seu conjunto e em seus vários interesses, é uma
jornada de marchas e contramarchas, de experiências e retrocessos...
Somos um país sem direção política e sem orientação social e econômica. Este
é o espírito que cumpre criar. O patriotismo sem bússola, a ciência sem síntese, as
letras sem ideal, a economia sem solidariedade, as finanças sem continuidade; a
educação sem sistema, o trabalho e a produção sem harmonia e sem apoio, atuam
292 Teoria Geral do Estado
como elementos contrários e desconexos, destroem-se reciprocamente, e os egoís-
mos e interesses ilegítimos florescem, sobre a ruína da vida comum.
O Brasil é, entretanto, um dos países que apresentam mais sólidos elementos
dc prosperidade c mostram condições para um mais nobre e brilhante destino.
A zona intcrtropical é o berço do animal humano; foi em climas médios, ou
cálidos, que sc fixou o tipo mais perfeito do reino animal; aí floresceram as primei
ras e mais luxuriantes civilizações; para aí convergem, naturalmente, as aspirações
e os desejos dos homens de todas as regiões! Só o esgotamento do solo, a prolife
ração das populações, as incursões bárbaras e as guerras conseguiram arremessar
grandes massas de população para zonas frias. É natural que o homem tente vol
tar para seu berço, sempre que aí encontre terras férteis c climas propícios à vida.
Estudar o Brasil, eis o que deverá ser o lema do patriotismo e do zelo pela sor
te de nossa terra.
O destino de um país e função de sua história e de sua geografia. O Brasil não
tem história, que tal nome não merece a série cronológica dos fastos das colônias
dispersas, c a sucessão, meramente política, dc episódios militares e governamen
tais: sua história étnica, econômica e social, só começará a formar-sc quando mais
estreita c solidariedade entre os habitantes das várias zonas lhe der a consciência
dc uma unidade moral, vínculo íntimo e profundo, que a unidade política está lon
ge de realizar.
E em sua geografia e no quadro da sociedade contemporânea que está a base
do conhecimento de sua sorte.
Estudar a geografia de um país não em seu aspecto descritivo, mas em sua na
tureza dinâmica e funcional, procurando apreender o caráter das diversas zonas
geológicas e mineralógicas, a sua fauna, a sua flora, a sua estrutura orográfica, os
seus vasos hidrográficos, para conhecer os elementos e aptidões de sua exploração e
cultura, e ao mesmo tempo as condições necessárias ao espírito de unidade social
e econômica e à solidariedade entre os interesses e tendências divergentes, eis o pon
to dc partida dc toda política sensata e prática. Tal foi a obra dos estadistas, ame
ricanos da fase constitucional, que tiveram dc vencer, aliás, uma gravíssima dificul
dade: a tendência separatista das antigas colônias.
Sem esse estudo, a marcha de um país fica, como a vida dos homens sem ob
jetivo e sem método, sujeita às oscilações, aos desvios, aos azares, que acidentes,
erros de apreciação, interesses ocasionais ou parciais, vão produzindo.
14) FRANCISCO JOSÉ DE OLIVEIRA VIANNA
0 ocaso do Império
(2. ed., São Paulo, Melhoramentos, 1933, p. 29-42.)
10 Leituras Complementares 293
Os dois velhos partidos do Império, como se vê, não tinham opinião, como
não tinham programas. O objetivo era a conquista do poder e, conquistado este,
conservá-lo a todo transe: nada mais. Hra este o principal programa dos liberais -
como o era dos conservadores.
Essa atitude dos dois grupos partidários fazia com que o imperador acabasse
convencido de que não podia encontrar na opinião dos partidos nenhum índice se
guro das correntes interiores, que porventura animassem a consciência do país.
“Mas, Sr. Honório, onde estão os nossos partidos?” perguntava, em 53, a Paraná.
No fundo, sente-se que ele dava uma importância pequena, ou mesmo, não
dava importância alguma à opinião dos partidos. O golpe parlamentar de 68 é, na
verdade, uma bela prova disto. Ninguém exprimiu melhor, e com maior conheci
mento de causa, do que o próprio Zacarias este estado de alma do imperador. Dis
se ele, com efeito, na sessão de 18 de junho de 1870:
“O conservador não respeita o liberal; o liberal não respeita o conservador; o
conservador flagela o liberal; o liberal flagela o conservador - e o resultado é que a
Coroa tem cm má conta um e outro'’.
VIHavia, certo, o recurso das eleições. Em tese, dentro dos princípios de pura
teoria do regime representativo, era este o mais legítimo processo de sondagem da
opinião pública. O imperador apelou para ele várias vezes, quando concedia a dis
solução da Câmara. Foi o que fez em 68, quando chamou Itaboraí. Foi o que fez
em 78, quando chamou Sinimbu. Num e noutro caso, tendo modificado a colora
ção política do Gabinete, dissolvia a Câmara e procurava informar-se da opinião
do país através da coloração partidária do futuro Parlamento.
O processo eleitoral, entretanto, também não lhe dava nenhum índice seguro
da opinião nacional. Só nos países de opinião organizada é que o processo eleito
ral pode ser um meio eficaz de sondagem da opinião do povo; não, num país como
o nosso. Falta-nos espírito público. Falta-nos organização de classes. Falta-nos li
berdade civil.
Realmente, espírito público nunca existiu no Brasil. Entre nós, a vida política
foi sempre preocupação e obra de uma minoria diminuta, de volume pequeníssimo
em relação à massa da população. O grosso do povo, levado às urnas apenas pela
pressão dos caudilhos territoriais, nunca teve espírito político, nem consciência al
guma do papel que estava representando. No Brasil, como observava Luís Couty,
não existe povo no sentido político da expressão. E um espírito irreverente expri
miu uma vez este mesmo pensamento, dizendo que aqui “povo é uma reunião dc
homens, como porcada é uma reunião de porcos”.
294 Teoria Geral do Estado
Organização de classes também não existia, como ainda não existe, capaz de
dar ao processo eleitoral uma significação realmente democrática, à maneira britâ
nica ou norte-americana. Durante o período imperial tínhamos, ainda mais do que
hoje, uma estrutura social muito simplificada; de maneira que a vida política não
se distribuía por vários centros da atividade, não se dispartia por várias classes ou
grupos profissionais: concentrava-se quase toda numa classe única, que era a gran
de aristocracia territorial. Esta preponderância tão absorvente da grande aristocra
cia da terra fazia com que nem a classe média rural, nem a plebe dos campos tives
se, ou pudesse ter, opinião. Demais, devido à extrema simplificação trazida à nossa
estrutura social pelos grandes domínios independentes, os interesses das classes po
pulares rurais não estavam propriamente em oposição aos da aristocracia territo
rial; antes, acordavam-se. De modo que, no seio da população dos campos, não se
podiam formar, como nunca se formaram, correntes de opinião desencontradas,
capazes de revelar-se no processo eleitoral.
Nos grupos urbanos, por sua vez, a estrutura social era quase tão rudimentar
como nos campos. Então, os conflitos dc classes, próprios às sociedades de alta or
ganização industrial, não tinham ainda razão de ser. Igualmente não se havia cons
tituído aqui - como na Argentina da época caudilheira, segundo Sarmiento - ne
nhum antagonismo entre as populações dos campos e as populações das cidades.
Em síntese: pela grande simplicidade da nossa estrutura social; pela ausência
de antagonismo de classe; pela feição acentuadamente patriarcal da nossa socieda
de, a “opinião do povo”, sob o segundo Império, estava ainda em condição muito
rudimentar. O processo de sondagem por meio das eleições não podia trazer, pois,
ao imperador nenhum elemento seguro de orientação.
Num povo sem educação eleitoral e de opinião embrionária, o processo de
“consulta à nação”, próprio aos governos parlamentares, estava realmente conde
nado a ser, como sempre foi, uma pura ficção constitucional.
VIIDemais, a dissolução da Câmara para a consulta à Nação se havia transfor
mado numa farsa ridícula, verdadeira burla - dada a corrupção do próprio proces
so eleitoral. Mesmo que o nosso povo tivesse opinião, a fraude não a deixaria re-
velar-se - e isto porque o partido que estivesse no poder ganhava sempre, e o
partido que estivesse “debaixo”, na oposição, perdia sempre - tal como hoje. Na-
buco, o velho, chegou mesmo a formular esta lei no seu famoso sorites:
“O Poder Moderador pode chamar quem quiser para organizar Ministérios; esta
pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la; esta eleição faz a maioria
É que nos faltavam então - e ainda nos faltam agora - as condições necessá
rias para eleições livres. Uma dessas condições é precisamente que cada um dos ci
10 Leituras Complementares 295
dadãos, cada um dos eleitores, tenha perfeitamente assegurada a sua liberdade ci
vil - e era isto o que não acontecia aqui.
Em nosso país, com efeito, nunca existiram grandes tradições de legalidade, à
maneira da Inglaterra, por exemplo, onde os preceitos da common law tem qualquer
coisa dc sagrado aos olhos das autoridades c aos olhos das multidões. Nem a Magis
tratura aqui teve jamais essa força, essa autoridade, esse prestígio, que punha uma
tão confiada arrogância no coração do moleiro de Frederico, o Grande. Aqui, todos
esses aparelhos protetores das liberdades individuais sempre funcionaram mal, dei
xando o homem do povo na iminência ou na atualidade dos golpes de vindita dos
poderosos. Cada homem do sertão ou da mata entre nós bem podia dizer como aque
le camponês de Paul Louis Courier: Je suis malheureux: )'ai fáché monsieur le maire;
il me faut vendre tout et quitter le pays. C'est fait de moi, si je ne pars hientôt.
Era esta, na verdade, a condição das nossas massas populares sob a lei de 3
de dezembro de 41. É certo que a Reforma Judiciária de 71 assegurou um pouco
mais os particulares contra o arbítrio das autoridades. Estas garantias, entretanto,
continuaram a scr precárias; não passavam, afinal, dc garantias no papel; na prá
tica, os velhos costumes permaneceram - e estes asseguravam o mais completo ab-
solutismo aos mandões locais.
Ora, pelo mecanismo da centralização, todos esses mandões locais estavam
na dependência dos Gabinetes, ou mais exatamente, dos chefes de Gabinete. Este,
através da poderosa máquina centralizadora, mobilizava à sua vontade esse formi
dável exército de tiranetes locais. Era debalde que as oposições tentavam lutar con
tra a força irresistível dessa compressão organizada.
“O Governo, expressão de um partido, tem o direito de intervir no processo
eleitoral” - dizia, em 1840, Antônio Carlos. Esta doutrina absurda pode-se dizer
que era a expressão do pensamento íntimo de todos os políticos no poder, tanto li
berais como conservadores - e nenhum deles, tanto liberais como conservadores,
deixou de aplicá-la integralmente. Só Saraiva, em 82, na execução da lei da eleição
direta, desmentiu esta regra - o que lhe valeu uma ascendência imensa sobre todos
os políticos do seu tempo.
O recurso da dissolução da Câmara, o expediente da “consulta à Nação”, se
havia transformado numa verdadeira burla, em que ninguém mais acreditava. Dis
solvida a Câmara, já se sabia de antemão - com a certeza certa de uma previsão
astronômica - que a nova Câmara vinha inteiramente à feição do novo Gabinete.
Em julho de 68 caía o gabinete Zacarias com uma Câmara unanimemente liberal.
Esta Câmara, Itaboraí, conservadora, dissolveu: a Câmara nova, eleita no mesmo
ano, veio unanimemente conservadora! Em 1878 deu-se o contrário; foi o Gabine
te conservador que caiu; substituiu-o um Gabinete liberal, o Gabinete Sinimbu: e
a Câmara, soberbamente conservadora, dissolvida, voltou soberbamente liberal!
Certamente, reformas várias do mecanismo eleitoral procuravam pôr um óbi
ce a estes desmandos da fraude - e a lei Saraiva, que substituiu o velho sistema da
296 Teoria Geral do Estado
eleição de dois graus pela eleição direta, pareceu, à primeira vista, ter conseguido
este grande objetivo. Mas a verdade c que nem esta lei, nem as leis anteriores pu
deram contravir às artimanhas dos nossos bosses eleitorais. Estes sempre se mos
traram inapreensíveis, intangíveis, invencíveis no prodigioso diabolismo das suas
habilidades de prcstímanos. Por mais cautelosas c casuísticas que fossem todas es
tas leis, eram nada diante dos truques sugeridos pela inventiva maravilhosa desses
Fregolis da cabala.
O que aconteceu com o sistema da eleição direta é típico. Este sistema havia
aparecido nos nossos meios partidários como uma criação miraculosa do engenho
político. Todos os outros sistemas eleitorais, até então praticados, tinham falhado.
Falhara a “lei dos círculos”, de 55. Falhara a reforma de 60, com os seus distritos
de três deputados. Falhara a reforma de 75, que estabelecera o princípio da repre
sentação das minorias. Todas elas deixavam brechas por onde o governo pudera
insinuar-se, impor a sua vontade c o seu arbítrio. Em suma, o sistema dos dois graus
falhara: mostrara-se extremamente dócil à vontade do poder.
O mal devia estar então neste sistema - c os espíritos mais impacientes volta
ram-se, cheios de esperanças, para o sistema da eleição direta. Houve um momen
to mesmo cm que foi tamanho o entusiasmo pela eleição direta, tamanha a fé nas
suas virtudes, que ela passara a ser, como confessava Sinimbu, não mais uma ques
tão de partido, mas uma questão nacional: todo o país a reclamava!
O imperador foi um dos primeiros a perceber isto e foi ele quem, com a sua
alta autoridade, insinuou Sinimbu a agitar o problema e promover a sua solução
parlamentar. Sente-se que ele se deixara tomar também do idealismo ambiente, que
era, aliás, o idealismo do mundo. Porque o nosso movimento pela eleição direta
não foi original, mas apenas uma prolação do movimento europeu neste sentido.
Refletíamos os clamores dos partidos europeus e as aspirações que agitavam o ve
lho mundo. Então, o sufrágio revelava ali uma tendência a generalizar-se, a apro
ximar-se cada vez mais das maiorias populares. Esta tendência atingia o seu máxi
mo dc intensidade, justamente na época em que iniciávamos aqui, com o estímulo
do imperador, o movimento pela eleição direta. Esta contemporaneidade dos dois
movimentos mostra o caráter meramente reflexo do nosso - e nossa esperança qua
se messiânica na eleição direta não era senão a esperança contemporânea de todos
os povos civilizados no sufrágio universal. Estávamos na convicção dc que o novo
sistema eleitoral armaria o povo com uma arma invencível contra o arbítrio do po
der. Com o sufrágio direto, o Parlamento seria, não mais uma massa passiva de de
pendentes, saídos dos conluios dos gabinetes ministeriais, mas uma legítima expres
são da vontade nacional.
Coube a Saraiva a execução da lei de 81, em que se consubstanciara a gran
de aspiração nacional. Saraiva, ao contrário de Zacarias, não tinha o temperamen
10 Leituras Complementares 297
to de um homem de partido: era uma natureza álgida, insusceptível ao fanatismo
das grandes convicções e inapto às grandes vibrações do entusiasmo. Ninguém mais
capaz de executar uma lei, em que a qualidade principal do executor seria o des
prendimento, a fria imparcialidade, o sentimento da verdade pura. Zacarias, com
o seu vivo sentimento partidário não a executaria - como não a executariam Pau-
lino ou Sinimbu, cuja compressão eleitoral dc 78 enchera de surpresa, senão dc es
panto, a consciência do país.
Os resultados da nova lei foram surpreendentes. O nosso povo teve por um
momento a impressão que havia encontrado nela a chave da sua liberdade políti
ca: pela primeira vez o governo fora derrotado!
Para este magnífico êxito não contribuiu apenas a retidão e a imparcialidade
de Saraiva: há que contar também com a intervenção direta do imperador. Nada
mais comprobativo da alta compreensão que o velho dinasta tinha da sua grande
missão constitucional do que a sua insistente diligência junto a Saraiva, por oca
sião da primeira experiência da lei de 80, e mesmo depois, junto a Dantas, nas elei
ções de 84. Quem ler hoje a correspondência dele com Dantas por essa época, não
poderá deixar de sentir uma emoção comovida diante deste ancião, sobrecarrega
do das mil preocupações do seu cargo, mas atento aos menores detalhes e às me
nores providências, necessárias a assegurar uma execução perfeita àquela grande
lei. “O Imperador se tornou o fiscal-mor da oposição junto ao ministério, ao pon
to de Dantas considerar que aquela preocupação, por exagerada, quase redunda
va em preferência pelos adversários” - diz um historiador.
No fundo, D. Pedro sentia que o resultado bom ou mau da lei Saraiva ia dar
a prova crucial da excelência do velho regime. Soberano visceralmente democráti
co, cioso da sua dignidade de rei, mas não do seu direito divino, em que certamen
te não acreditava, ele não teria nenhuma repugnância em acatar a opinião do povo,
desde que ela se lhe revelasse de uma maneira clara e insofismável, mandando às
Câmaras uma representação que fosse a expressão legítima da sua vontade. Ele
confessou, aliás, isto mesmo nas suas notas ao livro de Tito Franco.
O êxito inicial da lei Saraiva foi devido, em parte, à ação conjugada do impe
rador e do chefe do Gabinete; cm parte, também, a este estado dc exaltação gene
rosa e idealista, que acompanha sempre a estreia das grandes reformas e sob a qual
todos os pequenos egoísmos, todas as pequenas impurezas da nossa pobre huma
nidade como que se fundem ou se volatizam.
Passada, porém, esta fase climática de exaltação, os homens retornam logo ao
seu pequeno horizonte emotivo e, mesmo, ao seu pequeno horizonte intelectual -
e voltam a viver dentro do seu egoísmo anterior. Por isso, como todas as outras leis,
a dos círculos, a do terço etc., a lei Saraiva também falhou. Nas eleições seguintes
restauravam-se as velhas praxes opressivas. Nenhum dos homens do poder teve
mais a abnegação de Saraiva. Nenhum mais se resignou a sofrer a provação da sua
derrota. O governo, como outrora, passou a ganhar sempre. A oposição, como ou-
298 Teoria Geral do Estado
trora, passou a perder sempre. Voltaram as Câmaras unânimes - e com elas o pro
testo, o clamor, o desespero dos condenados às geenas do ostracismo.
Em suma, durante o império, o destino dos partidos estava, não na opinião
do povo, mas na opinião dos Gabinetes. Estes c que davam aos partidos no poder,
com as situações locais c provinciais, essas belas unanimidades parlamentares, con
tra que investia a cólera dos políticos caídos em desgraça. Sc cra conservador o Ga
binete, todo o país se revestia de uma coloração conservadora; mas, se acontecia
ser liberal o Gabinete - e a política rotativa do imperador sempre permitia que isto
acontecesse - o matiz político que cobria o país passava a ser desde então impres-
sionadoramente liberal!
IXNinguém mais convencido de tudo isto, desta ficção, desta burla, desta artifi
cialidade do regime representativo no Brasil do que D. Pedro - e é isto justamente
que transparece das suas notas ao livro de Tito Franco. Compreende-se, pois, a de
licadeza da sua situação no exercício da grande faculdade constitucional, todas as
vezes que se abria uma crise de Gabinete. Numa Câmara liberal, por exemplo, sc
ele chamasse um Gabinete conservador - sem conceder a dissolução da Câmara -
seria logicamente impossibilitar àquele os meios de governo; mas, concedida a dis
solução, isto importaria na vitória segura do novo Gabinete: e a situação anterior,
por mais sólida que fosse, seria reduzida a destroços, ao sopro violento das “der
rubadas”.
O destino dos partidos estava, pois, dependente de um simples aceno do im
perador - chamando este ou aquele prócer partidário ao Paço. Ele fazia cair os par
tidos e fazia subir os partidos, à vontade: bastava para isto pôr nas mãos de Za
carias ou de Itaboraí, de Nabuco ou de Uruguai, de Saraiva ou de Cotegipe, os
admiráveis mecanismos de compressão política, que os próprios partidos, quando
no poder, e julgando-se indesmontáveis, haviam organizado.
D. Pedro era um espírito liberal e equânime, puro homem de bem, sem gosto
nenhum pela política e as suas agitações. Por isso mesmo, adotara uma atitude de
paternal e displicente imparcialidade para com os dois partidos. Ora chamava um,
ora chamava outro ao poder, sem dar nenhuma consideração apreciável à opinião
da Câmara, cujas origens espúrias bem conhecia.
Ele bem compreendia que o papel do rei constitucional, exercido à maneira in
glesa, seria aqui absolutamente irrepresentável por qualquer soberano que aspiras
se ao título de justo. Se, quando se operava uma crise ministerial, em vez de formar
um Gabinete de coloração contrária, como costumava de quando em quando fazer,
ele adotasse sistematicamente a fórmula britânica e formasse sempre Gabinetes da
mesma coloração da Câmara, seria isto - ele bem o sentia - fixar 110 poder ad ae-
termitatem o partido do Gabinete. Seria o que Saraiva chamava “a condenação dos
adversários ao inferno de Dante” - ao ostracismo permanente e irremissível.
10 Leituras Complementares 299
Nestas alternativas das situações partidárias, o imperador parecia não ter ou
tro critcrio senão o do tempo: ele fazia o revezamento dos partidos conforme o
tempo da estada deles no poder. Em 1868, depois de seis anos de domínio do par
tido liberal, fazia subir ao poder, com surpresa geral, o partido conservador. Em
1878, depois dc dez anos dc governo conservador, fazia subir os liberais. Realiza
va assim, com a sua equanimidade, aquilo que o povo, com a sua incapacidade de
mocrática, não sabia realizar.
XOs políticos, entretanto, não compreendiam (ou fingiam não compreender)
esta imparcialidade do imperador. Em boa verdade não a podiam compreender, ou
antes, não a podiam admitir.
Em nosso país, com efeito, os partidos não disputam o poder para realizar
ideias, o poder é disputado pelos proventos que concede aos políticos e aos seus
clãs. Há os proventos morais, que sempre dá a posse da autoridade; mas há tam
bém os proventos materiais, que essa posse também dá. Entre nós a política é, an
tes dc tudo, um meio dc vida: vive-se do Estado, como sc vive da lavoura, do co
mércio c da indústria - c todos acham infinitamente mais docc viver do Estado do
que de outra coisa.
Num país assim, a conquista do poder é um fato inquestionavelmente mais
sério e mais dramático do que em outro país, em que os indivíduos vão ao poder
no intuito altruístico de realizar um grande ideal coletivo. Daí a áspera violência
das famosas “derrubadas”. O partido que subia derrubava tudo - quer dizer: sa
cudia para fora dos cargos públicos, locais, provinciais e gerais, todos os ocupan
tes adversários. Era uma vassourada geral, que deixava o campo inteiramente lim
po e aberto ao assalto dos vencedores. Eqüivale dizer que cabiam a estes as batatas,
se não há engano na filosofia de Quincas Borba. Sabe-se, aliás, aquele dito espiri
tuoso de Martinho de Campos, quando teve que deixar a pasta de ministro: Perdi
o emprego!
Era um graccjo; mas este graccjo encerra a síntese dc toda a filosofia política no
Brasil. No fundo, quando caía um Gabinete, todos os que formavam o estado-maior
deste partido nos municípios, nas províncias, no centro repetiam, ou podiam repetir
realmente, a frase motejadora de Martinho: também eles perdiam o emprego!
Está claro que, num país em que a vida política se modela por esse padrão e
se restringe a esses objetivos personalíssimos, o exercício do Poder Moderador num
sistema parlamentar é uma tarefa delicada, espinhosa, ingrata - porque fatalmen
te mal compreendida e, quando não mal compreendida, pelo menos mal aceita pe
los detentores eventuais dos instrumentos do governo.
Estes se julgavam sempre esbulhados, quando o imperador os fazia apearem-se
do poder. Desde que nada podia explicar esta queda senão a vontade do monarca,
nada mais lógico do que a irritação dos políticos contra esse personagem, que, em-
300 Teoria Geral do Estado
buçado dentro de uma prerrogativa constitucional, os destituía das suas situações
de mando, sem outra razão senão as razões do seu capricho. Homens de clã para
quem o inimigo político era quase sempre inimigo doméstico e a luta política uma
luta pessoal, eles não se sentiam apenas esbulhados com o ato da Coroa que cha
mava ao poder os adversários: sentiam-se também humilhados, feridos no seu pun-
donor pessoal c guardavam do imperador uma sorte de ressentimento íntimo, às
vezes mesmo, de rancor. Kste explodia, às vezes, em frases de recriminação violen
ta ou cólera impulsiva.
15) JACQUES MARITAIN5
0 homem e o Estado
(Trad. Alceii Amoroso Lima, 3. ed., Rio de Janeiro, Agir, 1959, p. 22-3.)
0 EstadoO Estado é unicamente a parte do corpo político que se refere especialmente
à manutenção da lei, ao fomento do bem comum e da ordem pública e à adminis
tração dos negócios públicos. O Estado é uma parte que se especializa no interes
se do todo. Não é um homem ou um grupo de homens; é um conjunto de institui
ções combinadas em uma máquina altamente aperfeiçoada. Tal obra de arte foi
construída pelo homem e serve-se dos cérebros e das energias humanas e nada é
sem o homem; constitui, todavia, uma encarnação superior da razão, uma superes-
trutura impessoal e duradoura; cujo funcionamento pode ser considerado como ra
cional em segundo grau, na medida em que a atividade racional nele envolvida, ar
ticulada pela lei e por um sistema de normas universais, é mais abstrata, mais
separada das contingências, da experiência c da individualidade, mais impiedosa
também do que em nossas vidas individuais.
O Estado não é a suprema encarnação da ideia, como o acreditava Hegel. O
Estado não é uma espécie de super-homem coletivo. O Estado é apenas uma insti
tuição autorizada a usar do poder e da coação, e constituída por técnicos e espe
cialistas em questões de ordem e bem-estar público; em suma, um instrumento ao
5 Jacques Maritain (1882-1973), filósofo e diplomata francês, estudou em Paris e Heidelberg, con
vertendo-se ao catolicismo em 1906. Professor do Instituto Católico de Paris {1914-1940), lecio
nou também na América do Norte e no Canadá, universidades de Toronto, Colúmbia, Chicago e
Princeton (1948-1960). Embaixador da França no Vaticano (1945-1948), tornou-se adversário do
Concilio Vaticano e do movimento neomodernista. Escreveu inúmeras obras, com destaque para
Filosofia moral (1960), Arte e escolástica. No campo da filosofia política legou-nos O homem e o
Estado, obra que escolhemos para transcrever o trecho supra.
10 Leituras Complementares 301
serviço do homem. Colocar o homem a serviço desse instrumento é uma perversão
política. A pessoa humana como indivíduo existe para o corpo político, mas o cor
po político existe para a pessoa humana como pessoa. Mas o homem, de maneira
alguma, existe para o Estado. O Estado e que existe para o homem.
16) GEORGES SOREL6
Reflexões sobre a violência
(Réflcxions sur la violence, Paris-Genève, 1981, Collcction Rcssourccs.)
Tradução do autor.
Aqueles que dirigem ao povo palavras revolucionárias têm a obrigação de ser
sinceros, porque os trabalhadores levam tais expressões ao pé da letra, não se dei
xando condicionar por metáforas. Quando, em 1905, resolvi escrever, de forma re
lativamente profunda, sobre a violência proletária, estava consciente da grande res
ponsabilidade que assumia ao tentar demonstrar a importância histórica de ccrtas
ações que nossos socialistas “parlamentários” tentam ocultar com suas artimanhas.
Tenho certeza de que o socialismo não sobreviverá sem a apologia da violência.
Com efeito, é durante as greves que o proletariado reafirma sua existência. Não me
conformo com a visão limitada de alguns em considerar as greves como algo seme
lhante a uma desavença comercial entre um feirante e seu fornecedor. A greve é uma
guerra! Consequentemente, é uma grande mentira dizer que a violência não passa
de um fenômeno acidental, destinado a desaparecer das greves. A revolução social
é o prolongamento desta guerra, da qual cada grande greve constitui mero episó
dio; eis por que os sindicalistas se referem a tal revolução empregando o linguajar
típico das greves. Para eles o socialismo se reduz à ideia, espera e preparação da
greve geral, que, semelhantemente a uma batalha napolcônica, suprimirá um regi
me condenado. Tal concepção não implica nenhuma das sutis interpretações em
que se esmera Jaurès. Trata-se, isto sim, de uma transformação radical, com a eli
Georges Sorel (1847-1922), engenheiro de profissão, tornou-se, por inclinação natural, um notá
vel ideólogo. Dedicou-se à questão social desde 1892, construindo, com bruscas alterações de
rumo, seu famoso sindicalismo revolucionário, inspirando-se principalmente em Karl Marx, Pier-
re Joseph-Proudhon e Henri Bergson. Vergastando a burguesia e a democracia parlamentar, acre
ditava na formação de elites no seio do proletariado, as quais levariam o trabalhador à sua eman
cipação mediante o estímulo a uma greve geral e universal, o mais significativo dos mitos proletários.
Deixou várias obras de considerável significado, entre elas A ruína do mundo antigo. Ensaios dc
crítica do marxismo e, o mais importante de seus trabalhos, um clássico da Política, Reflexões so
bre a violência (1906). Sua importância para as ideias políticas pode ser resumida no fato de que
inspirou, simultaneamente, dois ilustres discípulos: Lenin e Mussolini.
302 Teoria Geral do Estado
minação dos patrões e do Estado pelos produtores organizados. Nossos intelec
tuais, que esperam obter da democracia os melhores cargos, serão relegados à sua
literatura, e os socialistas “parlamentários”, que vêem na organização criada pela
burguesia os meios que lhes permitem dominar uma parccla do poder, sc tornarão
inúteis.
Fecunda dc conseqüências c a comparação que estabelecemos entre as greves
violentas e a guerra. Ninguém duvida - salvo D ’Estournelles de Constant - que a
guerra proporcionou, às repúblicas antigas, as ideias que constituem o mais belo
monumento da moderna civilização. A guerra social, para a qual o proletariado
não cessa de se preparar nos sindicatos, pode dar origem aos fundamentos de uma
nova civilização, típica de um povo de produtores. Incansavelmente, chamo a aten
ção de meus jovens discípulos para os problemas que o socialismo apresenta, do
ponto de vista de uma civilização de produtores; comprovo que, hoje, vai-se fir
mando uma filosofia até pouco tempo despercebida, filosofia esta profundamente
vinculada à apologia da violência.
Jamais nutri por certo “ódio criador” a admiração que lhe concedeu Jaurcs,
nem experimento, pelos guilhotinadores, a mesma indulgência com que ele os en
carou; c cnchc-mc dc horror qualquer medida que atinge o mais fraco sob um dis
farce judicial. A guerra travada de peito aberto, sem hipocrisia, visando a destruir
um inimigo irreconciliável, exclui todas as abominações que desonraram a revolu
ção burguesa do século XVIII. Por isso, a apologia da violência me é particular
mente simpática.
Não adiantaria tentar convencer os pobres de que estão equivocados ao nu
trirem inveja e rancor contra seus patrões, já que tais sentimentos são demasiado
fortes para que exortações inconseqüentes possam reprimi-los; aliás, é sobre seu
enorme alcance que a democracia fundamenta sobretudo sua força. Somente a guer
ra social, ao apelar para o sentimento de honra que se desenvolve naturalmente em
todo exército organizado, pode suprimir tais sentimentos vis, contra os quais a mo
ral continuaria impotente. Ainda que não houvesse outra razão para atribuir ao
sindicalismo revolucionário um elevado papel civilizador, esta mc pareceria decisi
va cm favor dos apologistas da violência. A ideia de greve geral, desenvolvida pela
prática de greves violentas, traz consigo o ideal de uma grande transformação. Há,
em tudo isto, algo tremendo, que parecerá ainda mais impressionante quanto maior
for o convencimento alcançado pela violência no ânimo dos proletários. Todavia,
ao levar a efeito obra tão séria, temível e sublime como esta, os socialistas situam-se
em nível superior ao da nossa leviana sociedade, e tornam-se dignos de ensinar ao
mundo novos caminhos.
Seria caso de se comparar os socialistas “parlamentários” aos servidores com
que Napoleão formara uma nobreza, e que trabalhavam para o fortalecimento do
Estado legado pelo Antigo Regime, enquanto o sindicalismo revolucionário corres
ponderia, com precisão, aos exércitos napoleônicos, cujos soldados levam a efeito
10 Leituras Complementares 303
tantas proezas, mesmo sabendo que continuariam pobres. Que restou do Império?
Nada mais do que a cpopeia da Grande Armada; e o que perdurará no movimen
to socialista atual será a epopeia das greves.
17) NIKOLAJ LÊNIN7
Como ilu d ir o povo com os slogans de liberdade e igualdade
(3. ed., São Paulo, Global, 1980, p. 24-34.)
Passarei agora à questão seguinte - A atitude em relação à Democracia em ge
ral.
Já tive várias vezes que fazer notar que a justificação, a defesa mais proveito
sa destas posições políticas que os democratas lançam contra nós, é a referência à
Democracia. Como sabem, é claro, Kautsky, o chefe ideológico da Segunda Interna
cional e, até agora, membro da Internacional dc Berna, apareceu na literatura eu
ropeia como o mais decisivo representante deste ponto de vista: “Os bolcheviqucs
escolheram um método que viola a Democracia, os bolcheviqucs escolheram o mé
todo da ditadura e, portanto, a sua causa é injusta”. K assim que ele argumenta.
Esta conclusão apareceu milhares de vezes em todo o lado e aparece constantemen
te em toda a imprensa e nos jornais já mencionados por mim. Toda a intelligentsia
o repete constantemente e, por vezes, os filisteus repetem-no, semiconscientemen-
te, nos seus argumentos. “A Democracia é liberdade, é igualdade, é a decisão da
maioria; que pode haver de mais importante do que a liberdade, a igualdade, a de
Nikolaj Lenin era o pseudônimo de Vladimir Ulianov (1870-1924), líder revolucionário soviético.
Tornou-se militante ainda jovem, tendo sido preso em 1895, passando três anos deportado na Si
béria. F.ntre 1900 e 1917 viveu no exterior, voltando à Rússia para se tornar o chefe da Revolução
Socialista deflagrada em 1905. Refugiando-se no exterior dois anos mais tarde, desenvolveu inten
sa atividade intelectual e de ativista político, endereçada aos revolucionários dc seu país. Eclodin-
do a Revolução dc 1917, voltou novamente à Rússia, preparando a segunda fase do processo revo
lucionário, exigindo a imediata retirada, de seu país, da Primeira Guerra Mundial, travada contra
o Império Austro-Húngaro, bem como a distribuição das terras aos camponeses e a atribuição de
todo o poder aos sovietes. Assumindo o poder, encerrou a guerra civil, impediu a intervenção mili
tar estrangeira em seu país e deu início à sua reconstrução econômica, lançando as bases de um
novo Estado socialista de inspiração marxista. Em 1919 organizou a Terceira Internacional, em que
todas as facções socialistas que o apoiavam o elegeram como o grande líder do movimento operá
rio internacional. Tcórico brilhante da doutrina marxista, se, por um lado, contestou o revisionis-
mo desta, por outro rejeitou as correntes radicais dc extrema esquerda. Entre outros temas, anali
sou a chamada fase imperialista do capitalismo e elaborou o conceito de ditadura do proletariado.
São suas obras principais Materialismo e empiriocriticismo (1909), Estado e revolução (1917), A
ditadura do proletariado e o renegado Kautsky (1919), Imperialismo, última fase do capitalismo
(1919), e Extremismo, doença infantil do comunismo (1920).
304 Teoria Geral do Estado
cisão da maioria! Se vocês, bolcheviques, se afastaram disto, e ainda tiveram a ou
sadia de declarar abertamente que são mais importantes que a liberdade, a igual
dade, e a decisão da maioria, então não se surpreendam e não se queixem se vos
chamarem dc usurpadores e violadores!”
De modo algum nos surpreendemos, pois desejamos clareza acima de tudo, e
só contamos com o setor avançado dos trabalhadores que tem uma real e verda
deira consciência da sua posição. Sim, dissemos, e dizemo-lo sempre, no nosso pro
grama, no programa do partido, que não lançamos, fraudulentamente, tais slogans
altissonantes, como “liberdade”, “igualdade” e “a vontade da maioria”, e que con
sideramos esses que se intitulam democratas, adeptos da pura Democracia, adep
tos da Democracia consistente, preferindo direta ou indiretamente esta à ditadura
do proletariado; consideramo-los como aliados de Kolchak.
Esclareça-se, pois é necessário esclarecê-lo. Serão os democratas puros real
mente censuráveis por ensinarem a pura Democracia, por defenderem-na contra os
usurpadores, ou são censuráveis por surgirem ao lado da classe capitalista, ao lado
de Kolchak? Comecemos por esclarccer a noção de “liberdade”. “Liberdade”, c
inútil acentuá-lo, c um slogan muito, muito importante em qualquer revolução,
socialista ou democrática. Mas o nosso programa declara: “A Liberdade 6 uma frau
de se se opõe à emancipação do Trabalho da opressão do Capital”. E qualquer pes
soa que tiver lido Marx - quem quer que tenha lido mesmo uma divulgação po
pular de Marx - sabe que ele devotou a maior parte da sua vida, das suas obras, e
a maior parte das suas investigações científicas exatamente à ridicularização da li
berdade, igualdade, vontade da maioria e a todas as espécies de Benthams que o
descrevem, para provar que por detrás destas frases se encontram os interesses da
liberdade do proprietário, a liberdade do Capital, para oprimir as massas trabalha
doras.
No momento em que se atingir a destruição do poder do Capital em todo o
mundo, ou mesmo num país, nesse momento histórico, quando a principal tarefa
for a luta das classes trabalhadoras pelo total aniquilamento do Capital, pela com
pleta destruição da produção mercantil, qualquer pessoa que, em tal momento po
lítico, utilize as palavras “Liberdade em geral”, que, em nome desta liberdade, atue
contra a ditadura do proletariado, está a serviço dos exploradores e nada mais; é
sua aliada, porque a liberdade, quando não subordinada aos interesses da emanci
pação do Trabalho do jugo do Capital, é uma fraude, como declaramos claramen
te no nosso programa do partido. Talvez isto seja supérfluo do ponto de vista da
formulação externa do programa, mas é fundamental do ponto de vista da nossa
propaganda e educação, do ponto de vista dos fundamentos da luta proletária e do
poder proletário. Sabemos perfeitamente que temos que lutar contra o Capital mun
dial; sabemos perfeitamente que o Capital mundial, 110 seu tempo, teve à sua fren
te a tarefa de criar a liberdade, que destruiu a escravatura feudal, que criou a liber
dade burguesa; sabemos perfeitamente que isto foi um progresso histórico mundial.
10 Leituras Complementares 305
E declaramos que somos contra o Capital em geral, contra o Capitalismo Republi
cano, contra o Capitalismo Democrático, contra o livre Capitalismo e, claro está,
sabemos que ele erguerá a bandeira da liberdade contra nós. E nós respondemos.
Consideramos essencial dar-lhe esta resposta no nosso programa. Qualquer espé
cie de Liberdade é uma fraude, sc é contrária aos interesses da emancipação do Tra
balho da opressão do Capital.
Mas talvez isto seja impossível? Talvez seja impossível que a liberdade seja
contrária à emancipação do Trabalho do jugo do Capital. Reparem em todos os
países da Europa Ocidental, onde quer que tenham estado, ou sobre os quais te
nham lido. Em todos os livros, o seu sistema é descrito como o sistema mais livre,
e agora esses “países civilizados” - França, Inglaterra, América - erguem esse es
tandarte, marcham contra os bolcheviques “em nome da liberdade”. Ainda há pou
cos dias atrás - recebemos agora raramente os jornais franceses porque estamos
cercados por um anel, mas a informação chega-nos pelo telégrafo, dado que por
enquanto ainda é impossível cercar o ar, e ouvimos as emissões de rádio estrangei
ras - consegui ler nos boletins emitidos pelo governo francês dc rapina que, indo
contra os bolcheviques c apoiando os seus adversários, a França está a manter mais
que nunca o seu “alto ideal dc Liberdade”. Encontramos coisas deste gênero a cada
passo; isto é usual cm todas as suas polêmicas contra nós.
E a que chamam eles liberdade? Estes “civilizados” franceses, ingleses e ame
ricanos chamam liberdade mesmo à liberdade de reunião. Na Constituição deve es
tar escrito: “Liberdade de reunião para todos os cidadãos”, “ Isto”, dizem eles, “é
o verdadeiro significado e a principal manifestação de liberdade. E vocês, bolche
viques, violaram a liberdade de reunião”.
Sim, respondemos nós, a vossa liberdade, cavalheiros ingleses, franceses, ame
ricanos, é uma fraude, se está em contradição com a emancipação do Trabalho da
opressão do Capital. Esqueceram um pormenor, civilizados cavalheiros; esquece
ram que a vossa liberdade está escrita numa Constituição que legaliza a proprieda
de privada. É esta a essência do problema.
Juntamente com a liberdade, a propriedade - é assim na realidade que está es
crito na vossa Constituição. O fato dc reconhecerem a liberdade de reunião é, cla
ro, um imenso progresso em comparação com a ordem feudal, com a lei de servi
dão medieval. Todos os socialistas o reconheceram ao utilizar esta liberdade da
sociedade burguesa para ensinar ao proletariado o modo de acabar com a opres
são do Capitalismo.
Mas a vossa liberdade é de uma tal espécie que é uma liberdade no papel e
não na prática. Isto significa que os grandes auditórios que existem nas grandes ci
dades, como este onde agora nos encontramos, pertencem aos capitalistas e aos
proprietários e chamam-se, por exemplo, “A Sala dos Nobres”.
Podeis reunir-vos livremente com cidadãos da República Democrática Russa,
mas isso é propriedade privada, desculpem-me, tendes que respeitar a propriedade
306 Teoria Geral do Estado
privada senão passais a ser Bolcheviques, criminosos, ladrões, gatunos, pessoas in
solentes. Mas nós dizemos: Estamos virando isto “de pernas pro ar”. Primeiro trans
formamos este edifício, a “Sala dos Nobres”, num edifício das organizações dos
trabalhadores e só então falaremos dc liberdade dc reunião. Vocês acusam-nos de
violarmos a liberdade; nós afirmamos que qualquer liberdade não subordinada aos
interesses da emancipação do Trabalho da opressão do Capital ê uma fraude. A li
berdade de reunião, incluída nas Constituições de todas as repúblicas burguesas, é
uma fraude porque, quando queremos nos reunir, protegidos do tempo, os melho
res edifícios são propriedade privada. Primeiro apoderemo-nos dos melhores edi
fícios e, então, depois falaremos sobre liberdade.
Afirmamos que a liberdade de reunião para os capitalistas é o maior crime
contra os trabalhadores, que não é mais que a liberdade de reunião dos contrarre-
volucionários. Aos cavalheiros intelectuais burgueses, aos cavalheiros que apoiam
a Democracia, dizemos: Vocês mentem quando nos atiram à cara a acusação de es
tarmos destruindo a liberdade! Quando os vossos grandes revolucionários burgue
ses, na Inglaterra de 1649, na França de 1792-1793, desencadearam uma revolução,
não permitiram a liberdade de reunião aos monárquicos. A Revolução Francesa e
chamada a Grande, porque não se caracterizou por molezas, meias-tintas, nem pelo
palavreado de muitas das revoluções dc 1848, e porque foi uma revolução a serio
que não só derrubou os monárquicos, como também os suprimiu. Também sabe
mos como tratar os cavalheiros capitalistas, pois sabemos como tratar de emanci
par os trabalhadores do jugo do Capital; é necessário retirar a liberdade de reunião
aos capitalistas, é necessário retirar ou cortar-lhes a sua “liberdade”. Isto ajuda a
emancipação do Trabalho da opressão do Capital, isto constrói essa verdadeira li
berdade, sob a qual não existirão grandes edifícios onde apenas uma família vive
e que pertence a um único indivíduo - trata-se aqui de um proprietário, de um ca
pitalista ou de uma sociedade anônima. Quando isto acontecer, então o povo se es
quecerá de que é possível existirem edifícios públicos propriedade de um particu
lar. Nessa altura seremos pela total “liberdade”. Quando só houver no mundo
trabalhadores e as pessoas se esquecerem dc pensar cm como era possível ser um
membro da sociedade e não um trabalhador - isto não acontecerá tão cedo, e a cul
pa é dos cavalheiros burgueses, assim como dos cavalheiros intelectuais burgueses
-, então seremos pela liberdade de reunião para todos, mas hoje a liberdade de reu
nião significa liberdade de reunião dos capitalistas, dos contrarrevolucionários. Lu
tamos contra eles, e havemos de abolir esta liberdade.
Estamos numa batalha - é este o significado da ditadura do proletariado. Pas
saram os dias do Socialismo ingênuo, utópico, fantasista, mecânico e intelectual,
quando se pensava que bastava convencer a maioria das pessoas e pintar um belo
quadro da sociedade socialista para que a maioria adotasse o ponto de vista do So
cialismo. Passou o tempo em que era possível iludirmo-nos a nós mesmos e aos ou
tros com estas histórias de fadas. O Marxismo, que reconhece como inevitável a
10 Leituras Complementares 307
luta de classes, afirma: A humanidade só pode atingir o Socialismo através da Di
tadura do Proletariado. Ditadura é uma palavra crua, séria, sangrenta e terrível, e
tais palavras não devem ser atiradas levianamente. Se os socialistas lançaram um
tal slogan é porque sabem que a elasse dos exploradores só cederá em resultado
duma luta desesperada c sem piedade c tentará disfarçar o seu domínio por meio
das mais variadas palavras agradáveis.
Liberdade de reunião - haverá outra palavra que soe melhor? Será possível
imaginar o desenvolvimento da consciência de classe dos trabalhadores sem liber
dade de reunião? íYlas nós afirmamos que a liberdade de reunião nas Constituições
da Inglaterra e dos Estados Unidos da América do Norte é uma fraude porque ata
as mãos das massas trabalhadoras durante o período de transição para o Socialis
mo; é uma fraude porque sabemos perfeitamente que a burguesia fará tudo para
derrubar este poder, que é tão insólito, tão “monstruoso”, no início. Não pode ser
de outro modo aos olhos daqueles que refletiram sobre a luta de classes, que refle
tiram, concreta e claramente, sobre as relações dos trabalhadores em revolta con
tra a burguesia, que foi derrubada num único país, c ainda não cm todos, c que,
portanto, precisamente por não estar ainda totalmente derrubada, se lança à luta
com o maior ódio.
Exatamente depois da destruição da burguesia, a luta de classes assume as
suas mais profundas formas e esses democratas e socialistas não servem para nada
e enganam-se a si próprios e depois os outros ao afirmarem que, dado que a bur
guesia foi derrubada, a tarefa chegou ao fim. H apenas o começo e não o fim, por
que a burguesia ainda não acredita que foi derrubada, e na véspera da Revolução
de Outubro gracejava ainda muito feliz e despreocupada. Milyukov gracejava as
sim como Chernov e os seguidores do jornal Novaya Zbizn. Gracejavam porque
não tomavam as coisas seriamente, mas agora viram que as coisas eram sérias; os
cavalheiros burgueses ingleses, franceses e suíços, que consideravam a sua “repúbli
ca democrática” como uma armadura que os defendia, viram e reconheceram tam
bém que as coisas tinham tomado um aspecto sério e agora estão todos a armar-se.
Se pudessem ver o que está se passando na “livre” Suíça, como estão a armar lite
ralmente todos os burgueses, como está sendo criada uma Guarda Branca porque
sabem que as coisas chegaram a um ponto em que se põe a questão de consegui
rem manter os seus privilégios, que lhes permitem conservar milhões de pessoas em
escravatura salarial. Hoje a luta estendeu-se a todo o mundo, e, portanto, quem
hoje nos ataca com palavras como “Democracia”, “Liberdade”, está ao lado da
classe capitalista, ilude o povo, pois não compreende que a liberdade e a Democra
cia, até hoje, foram a liberdade e a Democracia dos proprietários e meras migalhas
para os sem-propriedades.
Que é liberdade de reunião quando os trabalhadores são esmagados pela es
cravatura do Capital e pelo trabalho para o Capital? É uma fraude, e, para se con
seguir a liberdade dos trabalhadores, é necessário, antes de tudo, vencer a resistên
308 Teoria Geral do Estado
cia dos exploradores; mas se eu tenho de me haver com a resistência de toda uma
classe, então c óbvio que não posso prometer nem liberdade, nem igualdade ou
mesmo decisão majoritária a essa classe.
IVPasso agora da liberdade para a igualdade. Aqui o problema é ainda mais com
plexo. Neste caso estamos diante de uma questão ainda mais séria, que provoca de
sacordos ainda maiores e mais violentos.
A revolução, no seu curso, destrói uma após outra as classes exploradoras.
Primeiro destruiu a monarquia e entendeu por liberdade simplesmente a existência
do poder eleitoral, de uma república. Em seguida destruiu os proprietários, e vocês
sabem que toda a luta contra a ordem medieval, contra o feudalismo, se fez sob o
slogan de “igualdade”, Todos são iguais, sejam quais forem os seus bens; todos são
iguais, inclusive o milionário c o vagabundo - era assim que os revolucionários do
período que ficou na história como o período da Grande Revolução Francesa sin-
ccramentc falavam, pensavam c consideravam. A revolução fez-se contra os pro
prietários sob o slogan de igualdade, e afirmava-se que a igualdade era a condição
sob a qual o milionário c o trabalhador deviam possuir iguais direitos. A revolu
ção avançou mais. Diz que a “igualdade” - não o dissemos especialmente no nos
so programa, mas é impossível continuar a repeti-lo sem fim, dado ser tão claro
como o que dissemos sobre a liberdade - diz que a igualdade é uma fraude quan
do em contradição com a emancipação do Trabalho da opressão do Capital. Afir
mamo-lo, e é totalmente verdade. Afirmamos que uma república democrática com
igualdade é uma mentira, uma fraude, porque na realidade a igualdade não existe
nem pode existir, em virtude da propriedade privada dos meios de produção, do
dinheiro e do Capital. É possível apossarmo-nos imediatamente da propriedade e
dos edifícios suntuosos; é possível apossarmo-nos relativamente depressa do Ca
pital e dos instrumentos de produção; mas, quanto à propriedade em dinheiro,
isso...!
O dinheiro é a “nata” da riqueza social, a “nata” do trabalho social, é a pro
va do tributo dc todos os trabalhadores, é a relíquia da antiga exploração. Eis o
que é o dinheiro. Poderá ser destruído de uma hora para outra? Não. Antes da Re
volução Socialista, os socialistas afirmaram que era impossível abolir imediatamen
te o dinheiro, e podemos confirmá-lo, por experiência. Para abolir o dinheiro são
necessárias grandes conquistas técnicas e - o que é muito mais difícil e importante
- organizacionais; e, até as conseguirmos, é necessário manter uma igualdade em
palavras na Constituição, e conservar condições tais que, quem tiver dinheiro, pos
sui, de fato, o direito de explorar. Ainda não conseguimos abolir totalmente o di
nheiro; afirmamos que o dinheiro se manterá, e isto durante um largo espaço de
tempo, durante o período transitório do velho sistema capitalista ao novo sistema
10 Leituras Complementares 309
socialista. A igualdade é uma fraude se está em oposição aos interesses da emanci
pação do Trabalho da opressão do Capital.
Engels tem toda a razão quando afirma que o conceito de igualdade é um pre
conceito estúpido c absurdo, separadamente da abolição de classes. Alguns profes
sores burgueses tentaram convencer-nos dum conceito de igualdade pelo qual to
dos seriam iguais. Tentaram atribuir aos socialistas este absurdo por eles inventado.
Mas, na sua ignorância, não sabiam que os socialistas, e especialmente os funda
dores do moderno Socialismo Científico, Marx e Engels, tinham afirmado: a Igual
dade é uma frase oca a não ser que por igualdade se entenda a abolição de classes.
Só destruindo as classes haverá igualdade. Mas, pretender que queremos fazer com
que todos sejam iguais, não é senão uma frase sem sentido e uma invenção estúpi
da do intelectual, que, por vezes conscientemente, deturpa as palavras, mas não tem
qualquer significado, mesmo se se intitula escritor e por vezes mesmo como um ho
mem culto, ou qualquer outra coisa.
E é isto que afirmamos. A igualdade é o nosso objetivo, mas sob a forma de
abolição de classes. Assim e também necessário destruir a diferença de classe entre
trabalhadores e camponeses. É este precisamente o nosso objetivo. Uma sociedade
cm que se mantém a diferença dc classe entre trabalhadores e camponeses não é
nem comunista, nem socialista. Se interpretarmos a palavra socialismo num certo
sentido, ainda poderia chamar-se socialista, mas isto é um mero jogo de palavras.
O Socialismo é a primeira fase do Comunismo, mas não vale a pena discutir pala
vras. Uma coisa é certa: enquanto houver diferenças de classe entre trabalhadores
e camponeses, não podemos falar de igualdade sem correr o risco de fazer o jogo
da burguesia.
18) LÉON DUGUIT
Os elementos do Estado
(Trad. Eduardo Salgueiro, 2. ed., Lisboa, Ed. Inquérito, s. d., p. 41-2.)
O elemento essencial do Estado é a força. O Estado, antes de tudo, é uma for
ça que se impõe pelo constrangimento material. Só existe verdadeiramente Estado
num certo país quando um homem ou certo grupo de homens dispõe nesse país
duma força material preponderante.
Quando Ihering escrevia - “a falta de poder material (Macht) é pecado mor
tal do Estado...; um Estado sem poder material de constrangimento é uma contra
dição em si” (“Der Zveck im Recht”, pág. 311) - e quando Treitschke formulava
o adágio que se tornou célebre - Der Staat ist Macht - , tinham razão; mas a sua
doutrina implicava um erro irremissível e era por virtude disso abominável. Aque
310 Teoria Geral do Estado
la força de constrangimento era para eles ilimitada ou pelo menos só era limitada
pela regra de direito na medida em que os governantes se lhe submetessem. “A for
ça cria o direito” dizia Treitschke. “O direito é a política da força” dizia Ihering,
querendo exprimir que, se os governantes aceitam que a sua força seja regulada
pelo direito, é por mera política, para conseguirem ser mais obedecidos. Doutrina
ignóbil, que levou a Alemanha a cometer os crimes mais monstruosos da história,
doutrina contra a qual se levantou todo o universo civilizado. Sim, o Estado é a
força, mas força subordinada a uma regra de direito superior a ele, força que só le
gitimamente se impõe quando atua em conformidade com essa regra de direito. Se
o direito sem a força se arrisca a ser impotente, a força sem o direito é simplesmen
te barbaria.
19) BENITO MUSSOLINI
Prelúdio a 0 príncipe, de M aquiavel
(in II príncipe, Roma, Libreria dei Littorio, 1930, p. 473-9.)
Tradução do autor.
A indagação se impõe: após quatro séculos, o que resta de válido na obra O
Príncipe? Os conselhos de Maquiavel ainda poderiam ser úteis para os modernos
governantes? O valor do sistema político de O Príncipe fica circunscrito à época
em que tal livro foi escrito, portanto, inevitavelmente limitado e, em parte, caduco
ou, pelo contrário, é universal e, principalmente, atual? Minha tese responde a tais
perguntas. Afirmo que a doutrina de Maquiavel está, hoje, mais viva que há qua
tro séculos. Se houve inúmeras modificações sociais, não se verificaram alterações
consideráveis na mentalidade dos indivíduos e dos povos.
Sc a política é a arte de conduzir os homens, ou seja, dc orientar, utilizar, edu
car suas paixões, seu egoísmo e seus interesses cm face de objetivos gerais que trans
cendem, quase sempre, a vida individual, porque projetadas no futuro, se isto é a
política, então o pressuposto dessa arte é o próprio homem. Ele é o seu ponto de
partida. Que representam os homens no sistema político de Maquiavel? Que pen
sa Maquiavel a respeito dos homens? Ele é otimista ou pessimista? Dizendo ho
mens devemos restringir tal vocábulo aos italianos de seu tempo, que ele conhecia
tão bem, ou no sentido amplo e intemporal do gênero humano? Creio que, antes
de proceder a uma análise do sistema político maquiavélico, na forma condensada
de O Príncipe, imperioso estabelecer o conceito de Maquiavel sobre a humanida
de em geral e sobre os italianos em particular. Resulta evidente, mesmo numa lei
tura superficial de O Príncipe, o pessimismo de Maquiavel sobre a natureza huma
10 Leituras Complementares 311
na. A exemplo de muitos que pesquisaram e conviveram com os mais diversos tipos
humanos, Maquiavel tinha bem pouca consideração pelos homens, e não titubea
va em apresentá-los nos seus aspectos mais negativos.
Segundo Maquiavel, os homens são mórbidos, mais apegados aos bens mate
riais que aos próprios pais, estando, sempre, dispostos a mudar seus sentimentos.
No Capítulo XVII dc O Príncipe, Maquiavel c bastante claro: “Dos homens é pos
sível dizer que, geralmente, são ingratos, volúveis, simuladores ou dissimuladores,
avessos ao perigo e ávidos dc lucro. Enquanto lhes fazem benefícios, demonstram
uma falsa fidelidade, oferecendo a própria vida e, mesmo, os filhos; porém, quando
exigidos, se rebelam, e o governante crédulo cai, desiludido, em desgraça. Não va
cilam em ofender e magoar um príncipe que se limite a ser amado, não assim aque
le que se faz temer. Porque o amor cria um vínculo de deveres que, pelo próprio ca
ráter dos homens, será facilmente rompido, ao passo que a intimidação impõe um
receio dc ser castigado que não os abandona jamais”. Quanto ao egoísmo humano,
encontro na correspondência (Cartas Variadas) de Maquiavel, o seguinte: “Os ho
mens sc revoltam mais contra a perda de uma insignificante prerrogativa, que con
tra o assassinato dc seus pais ou irmãos, porque sc a própria morte pode scr esque
cida, os bens materiais não. Qualquer um sabe que uma revolução não trará de
volta os mortos, mas poderá fazer valer, novamente, o direito perdido”. E no Capí
tulo Terceiro dos Discursos: “Como demonstram aqueles que meditam sobre a so
ciedade civil, e como é cheia de exemplos a História, imperioso a quem dirige uma
república e legisla para tanto pressupor que seus governados são maus, e que esta
rão, sempre, prontos a agir com maldade logo que surja a ocasião para isto [...] Os
homens nunca fazem o bem, a não ser por interesse, e onde a liberdade é excessiva,
confundindo-se com a licenciosidade, logo imperam a incerteza e a desordem”.
Outras citações poderiam ser feitas, mas isto não é necessário. As tristezas
aqui reportadas são suficientes para demonstrar que a opinião negativa sobre os
homens não é casual, mas característica do pensamento maquiavélico. Acha-se pre
sente em toda a sua obra. Merecida c desanimadora convicção. Esse ponto inicial
c essencial precisa scr considcrado para entendermos bem o desenvolvimento das
ideias dc Maquiavel. É, também, evidente que Maquiavel, julgando como julgava
os homens, não fazia referência apenas àqueles de seu tempo: florentinos, toscanos,
italianos que, entre os séculos XV e XVI ainda andavam a cavalo, mas também ao
próprio gênero humano, intemporal. Meu tempo ainda não passou, mas se me fos
se permitido julgar meus contemporâneos, não atenuaria, em nada, a opinião de
Maquiavel. Ao contrário, eu a consideraria suave. Maquiavel não se deixa iludir e
não ilude o príncipe. As antíteses príncipe/povo e Estado/indivíduo são cruciais no
conceito de Maquiavel. Tudo o que foi denominado utilitarismo, pragmatismo ou
cinismo maquiavélicos se baseia, evidentemente, nessa posição inicial. Por outro
lado, na doutrina de Maquiavel o príncipe é o próprio Estado. Enquanto os indi
víduos se inclinam, levados pelo egoísmo, para o atomismo social, o Estado repre
3 1 2 Teoria Geral do Estado
senta uma organização e uma limitação a tal tendência. O indivíduo tende a se es
quivar, continuamente, de seus deveres. Tende a descumprir a lei, a não pagar
impostos, a esquivar-se de participar da guerra. Pouquíssimos são aqueles que - he
róis ou santos - sacrificam a própria vida no altar do Estado. Os demais estão em
permanente revolta contra o Estado. As revoluções dos séculos XVII c XVIII ten
taram resolver essa antinomia, considerando o poder uma emanação da vontade
livre do povo. Trata-se de mais uma ficção ilusória dentre tantas. Antes de mais
nada, o povo jamais foi definido. É uma entidade abstrata como entidade política.
Ninguém sabe onde começa ou termina. O adjetivo soberano, aplicado ao povo, é
uma trágica farsa. O povo, quando muito, delega, mas não exerce soberania algu
ma. Os sistemas representativos pertencem mais à mecânica que à moral. Mesmo
nos países onde tais mecanismos são tradicionais, sobrevêm situações graves, du
rante as quais nada se pergunta ao povo, porque é sabido que a resposta seria fa
tal: arrancar coroas c cabeças imperiais, boas somente em tempo de paz! Por isso,
se ordena ao povo, sem maiores explicações, que aceita a revolução ou marche para
o desconhecido de uma guerra. E nada mais lhe resta que um monossílabo para
aceitar e obedecer. Vejam, portanto, que a soberania generosamente atribuída ao
povo, lhe é subtraída justamente nos momentos em que mais necessária se mostra.
Tem permissão para utilizá-la somente cm questões de administração ordinária. Se
ria possível imaginar uma guerra declarada mediante referendum popular? Com
efeito, o referendum é excelente quando se trata de escolher o melhor local para
instalar a fonte luminosa de um pequeno município, e só. Quando interesses supre
mos de um povo estão em jogo, mesmo os governos ultrademocráticos se abstêm
de expô-los à apreciação popular. Resta inevitável, portanto, até nos regimes polí
ticos idealizados pelos enciclopedistas - que pecavam, segundo Rousseau, por ex
cesso de otimismo - o conflito entre força organizada do Estado e tendência ao ato-
mismo de indivíduos e grupos. Regimes políticos exclusivamente consensuais
nunca existiram, não existem e, provavelmente, jamais existirão. Muito antes de
meu conhecido artigo Força e Consenso, Maquiavel já escrevia em O Príncipe (Ca
pítulo VI): “Disto se conclui que todos os profetas armados vencem, c os desarma
dos são vencidos. Porque [...] a natureza dos povos é variada, sendo fácil incutir-lhes
uma ideia, mas difícil mantê-los persuadidos desta, sendo necessário organizar-se
de tal modo que, quando não acreditarem mais pela persuasão, creiam pela força.
Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo jamais teriam conseguido fazer seus povos cumpri
rem as leis, se não empregassem a intimidação”.
20) VARLAN TCHERKESOFF
Erros e contradições do marxismo
(Trad. e introd. de Roberto das Neves, Rio de Janeiro, Mundo Livre, s.d.)
10 Leituras Complementares 313
O conjunto dos fatores econômicos, que chamamos “economismo”, não é ainda
o “materialismo”. O modo de produção é somente “um” fator, ou melhor, um elemen
to entre muitos outros que servem às generalidades evolucionistas, conhecidas pelo
nome de doutrinas materialistas. A parte não pode conter o todo; o economismo não
constitui a doutrina materialista. Conhecemos muitos autores que admitiam a influên
cia das condições e das relações econômicas sobre o desenvolvimento da Humanida
de, e que eram, entretanto, não somente idealistas e metafísicos, mas até deístas con
victos e fervorosos cristãos. Entre outros, temos Guizot, que tratava a história de
“antagonismo das classes” na Inglaterra, no século XVII, e que era tão beato como um
trapista. Temos Niebuhr, o grande fundador da escola histórica alemã, da qual Momm
sen é um dos mais brilhantes representantes. Niebuhr, nos princípios do século, decla
rou que a lenda dc Tito Lívio sobre a fundação de Roma dcvc ser desprezada, pois é
necessário estudar a história segundo as condições econômicas e sociais do povo ro
mano. Delas foram extraídos os estudos clássicos sobre a legislação agrária de Lici-
nius, de Solon e dos Gracos. Delas saíram as minuciosas investigações de Mommsen.
Mas Niebuhr, Mommsen e toda a escola alemã estavam longe do materialismo f...l
Mais ainda. Se remontarmos ao primeiro historiador que tenha cogitado da
influência das condições cósmicas e econômicas sobre o progresso e o desenvolvi
mento da Humanidade, e consultarmos Vico (1668-1744) e o seu tradutor francês,
Michelet, que por sua vez insistia sobre o estado econômico da nação, veremos que
não fazem menção ao materialismo. O mesmo se verifica com Adam Smith, outro
homem de gênio, fundador da economia política, o qual exprimiu, em 1776, as
duas fórmulas fundamentais: a) o trabalho é a única origem da riqueza social; b) o
aumento das riquezas depende das condiçõcs econômicas c sociais do trabalho e
da relação entre o número de produtores e de não produtores. Este modesto filó
sofo jamais pretendeu o materialismo. Outro economista, Blanqui, menos profun
do e menos original que Adam Smith, formulou, em 1825, do modo seguinte, o pa
pel que representam os elementos econômicos na história:
“Não tardei em advertir que existiam entre estas duas ciências (a histórica e
a econômico-política) relações de tal modo íntimas que não se pode estudar uma
sem a outra, nem aprofundá-las separadamente [...J A primeira fornece os fatos, e
a (segunda explica as causas). Segui passo a passo os grandes acontecimentos. Nun
ca houve mais de dois partidos que se enfrentassem - o dos que querem viver do
seu trabalho e o dos que querem viver do trabalho dos outros. Patrícios e plebeus,
escravos e libertos, guelfos e gibelinos, vermelhos e brancos, cavaleiros e peões, li
berais c servis, não são senão uma variedade da mesma espécie”.
“A economia política explica as causas dos fatos econômicos”, disse Blanqui.
O mesmo disseram os seus contemporâneos Mignet, Agustin Thierry c outros. Na
Inglaterra, J. S. Mill, na sua análise do primeiro volume da História da França, de
Michelet, ao fazer a classificação das escolas históricas, frisa, com a sua habitual
314 Teoria Geral do Estado
lucidez, que a história, como ciência moderna, se ocupa das leis sociais e cósmicas
que regem o desenvolvimento da Humanidade (“Dissertation ct discussion”). IT.T.
Buckle, na bela tentativa que fez para retraçar a influência das leis cósmicas, das
condições sociais c ate da manutenção da história, disse que “a acumulação da ri
queza é um dos principais fatores, c, sobre muitos aspectos, um dos mais impor
tantes” (p. 38,48, 50 c 53). Um contemporâneo de Marx e Engels, mas que os des
conhecia por completo, T. Rogers, o autor da grande obra Seis séculos de trabalho
e de salário, publicou o seu volume “Interpretação econômica da história”, no qual
analisa toda a história da Inglaterra sob o ponto de vista econômico. Pode-se cha
mar “materialistas” a estes sábios de nacionalidades diferentes? Certamente, não.
Foram sábios, investigadores da verdade. Aplicaram o método das investigações
científicas ao estudo da história, e não puderam dar aos resultados dos seus traba
lhos outro nome a não ser o de “interpretação econômica da história”.
Como aconteceu, pois, que Engels, cscrcvendo especialmente para os traba
lhadores esmagados pelo trabalho incessante e que não têm tempo nem meios para
verificar as suas afirmações, chamou “materialismo” ao que os sábios chamaram
“cconomismo”? Por que, em vez de dizer aos trabalhadores: “Amigos, a ciência de
monstra que o bem-estar c o progresso do gênero humano são criados pelo vosso
trabalho; que o futuro da humanidade depende da nossa felicidade c dc condições
favoráveis à vossa atividade produtiva (Smith); que, por conseguinte, é obrigatório
para a classe trabalhadora destruir, o mais depressa possível, a organização do Es
tado e das classes exploradoras e opressoras”; por que, perguntamos, em vez de fa
zer uma exposição científica, contou tantas lorotas aos bravos e honrados traba
lhadores que confiavam na sua palavra?
Que resultado se obtém com tão estranho método? O dos politiqueiros, ho
mens sem escrúpulos, incapazes, por sua ignorância, do menor trabalho intelectual,
e que decoram dois pequenos folhetos de Engels e uma vulgarização de Marx, e
que com tal bagagem se dão ares de homens de ciência. Uma vez enviados ao par
lamento pelos trabalhadores enganados em sua boa-fé, declaram que jamais, antes
deles, o socialismo teve representação no parlamento [...] Como se nunca tivessem
existido Louis Blanc, Proudhon c outros. Que decepção para as pessoas honradas,
quando, um dia, abrirem os olhos e compreenderem a mistificação de que foram
vítimas!
Lembramo-nos de uma discussão com um jovem social-democrata, que pos
suía uma boa instrução e que havia lido muito, mas que, desgraçadamente para ele,
havia alguns anos que estava embebido na leitura dos folhetos e publicações do
partido, publicações “censuradas” por Engels e Auer. O nosso interlocutor lera-nos,
com ares triunfais, como se fosse uma coisa nova e completamente “materialista”,
uma passagem da polêmica de Engels com o professor Diihring: “Saída de uma ori
gem animal, a humanidade apareceu na história em estado semi-selvagem. Selva
gens impotentes diante da natureza, sem nenhuma ideia da sua própria força e das
10 Leituras Complementares 315
suas capacidades, os homens eram pobres e miseráveis como os animais e produ
ziam pouco mais do que estes”.
Em resposta, abrimos-lhe as Ruínas de Volney, e ele pôde ler este trecho, pla
giado por Engels: “Na sua origem, o homem, nu dc corpo c de espírito, cncon-
trou-se sobre a Terra confusa c selvagem. Parecido com os restantes animais, sem
experiência do passado c sem entrever o futuro, errou no meio dos bosques, guia
do e governado tão somente pela sua natureza. Acicatado pela fome, procurou os
alimentos. As intempéries levaram-no a cobrir o corpo, e assim se vestiu. Pela atra
ção de um forte poder, acercou-se de um ser que lhe era parecido e perpetuou a es
pécie” (Les ruines, Paris, ano 12 da República).
Era de ver a decepção que o nosso interlocutor experimentou. Se em Volney
faltam as três palavras, “saído da animalidade”, foi porque a obra de Darwin apa
receu em 1859, e Engels, se bem que oposto ao materialismo dos naturalistas, como
veremos diante, admitiu, para ser lido, a descendência do homem por ele provada.
Afora isto, qualquer um diria que Engels copiara Volney.
Mas foi acaso Volney o iniciador da doutrina da evolução? Absolutamente,
não. Espírito claro, com talento literário incomum, propagou as ideias do seu tem
po. Citando Volney e Blanqui, pretendemos provar que a explicação econômica não
era, desde o princípio do século XVIII, uma concepção conhecida somente pelos
homens de gênio excepcional, mas uma doutrina corrente e aceita pelos espíritos
esclarecidos. Se Engels acreditou que, assimilando as ideias expandidas desde mui
to tempo, se converteria num benfeitor da humanidade, enganou-se lastimavelmen-
te. A glória da descoberta não pertence a Vico, aos enciclopedistas, a Adam Smith,
ou aos filósofos ingleses, a Niebuhr ou à brilhante escola histórica alemã. A ciên
cia não tem culpa se Engels fez uma mistura extravagante de várias coisas; se amal-
gamou a metafísica com o economismo, e se, indivíduo pretensioso, se pronunciou
contra o materialismo dos naturalistas, o único que a ciência afirma. Por mais in
verossímil que pareça, o fato deu-se, e os operários alemães, que tiveram a desgra
ça de ler os folhetos de Engels, estão convencidos de que a metafísica de Hegel é a
ciência com os seus sistemas de transformismo, dc evolução c de monismo, enquan
to a ciência indutiva de Bacon, dc Locke, de Lamarck, de Darwin c dc Hemholtz é
pura metafísica. A ciência designava sob o nome de metafísica uma parvoíce esco-
lástica, que pregou o absurdo de que a natureza e tudo o que nos rodeia é apenas
um reflexo das nossas ideias inatas, e que, para conhecer o mundo físico, é neces
sário estudar, não a natureza, mas os fatos e os fenômenos sobrenaturais do espí
rito, do que derivou a palavra “metafísica” (por cima da física e da natureza).
O golpe mortal nessa estupidez teológica e sobrenatural foi vibrado por Ba
con e Locke, por Voltaire e os enciclopedistas e por toda a filosofia inglesa. Esses
gloriosos precursores da ciência dos nossos dias estabeleceram que o nosso saber e
as nossas ideias são o resultado da observação e do estudo da natureza, e que, por
316 Teoria Geral do Estado
conseguinte, é necessário estudar a natureza e seus fenômenos em suas manifesta
ções e em sua origem, segundo o método indutivo.
Sabeis o que ensinou Engels aos trabalhadores? “Transportado à filosofia por
Bacon e Locke, este método (concepção indutiva da natureza) produziu o acanha-
mento intelectual bem característico dos tempos antigos (?) e criou o método do
raciocínio metafísico.” Esta afirmação dc Engels, numa das suas obras, dc que as
doutrinas evolucionistas e transformistas, isto é, a ciência dos naturalistas, deri
vam da filosofia de Hegel são erros palmares, contrários a toda terminologia cien
tífica. Foi Marx em pessoa quem a desmentiu solenemente: “Denunciada e derro
tada pelo materialismo francês, a metafísica do século 17 tirou a sua desforra e a
sua restauração na filosofia especulativa alemã do século 19. Desde que Hegel fun
dou o seu império metafísico universal, os ataques à teologia, análogos aos do sé
culo 18, foram renovados e dirigidos em geral contra toda a filosofia especulati
va, contra toda a metafísica” (K. Marx, Sobre o materialismo francês no século
18).
Sim. A ciência não tem culpa sc Engels, afundado nos absurdos metafísicos,
acreditou até 1842 que o mundo, que a natureza, a bela natureza viva e vivifican-
tc, era uma expressão das suas ideias barrocas. Foi devido a tal crença metafísica
que tudo que lia ou via achava que devia ser um reflexo das suas próprias ideias, e
que a isso se deve atribuir a sua estranha mania de reivindicar a paternidade das
ideias e dos sistemas elaborados pela ciência muito tempo antes do seu nascimen
to. De outra maneira não poderíamos explicar as suas ridículas pretensões, as suas
expressões muito pouco “científicas”. Acaso devemos supor que Engels não suspei
tava sequer da existência de toda essa literatura histórica?
Neste caso é de lastimar tão estranho “chefe” da ciência de um partido “cien
tífico”. Um exemplo nos mostrará a sua maneira de agir. Ele ignora completamen
te que a ideia principal da doutrina ateísta de Feuerbach - a de ter o homem divi-
nizado a sua própria natureza na pessoa dos deuses - era coisa corrente entre os
filósofos e publicistas franceses desde mais de meio século antes da publicação da
obra dc Feuerbach. Nas Ruínas, dc Volney, lemos: “Do mesmo modo que o mun
do, do qual é parte, o homem é regido por leis naturais, regulares em seu curso,
conseqüentes nos seus efeitos, imutáveis na sua essência” (p. 30). “Não foi Deus
que fez o homem à sua imagem, mas sim o homem quem fez Deus à sua; deu-lhe
o seu espírito, revestiu-o dos seus atributos, emprestou-lhe os seus sentimentos”
(p. 85).
Dir-me-ão que Engels sabia tudo isso. Seja. Mas, neste caso, por que empre
gou tanta má-fé e se esforçou em criar uma confusão mais que deplorável na cons
ciência do proletariado? Com que objetivo desviou a opinião dos seus leitores? Se
guramente, não foi em proveito do socialismo.
10 Leituras Complementares 317
21) HANS KELSEN
Teoria gera l do D ire ito e do Estado
(Teoria general dei derecbo y dei Estado, Trad. esp. Eduardo Garcia Máynez, México,
Universidad Autônoma de México, 1979, p. 343-7.)
Tradução do autor.
A f ic çã o da representaçãoA diferenciação das condições sociais conduz à divisão do trabalho não ape
nas na produção econômica, como também na criação do direito. A função do go
verno é transferida dos cidadãos organizados em assembleia popular para órgãos
específicos. O princípio democrático da autodeterminação é limitado ao procedi
mento pelo qual tais órgãos são designados. A forma democrática de indicação é
eletiva. O órgão autorizado a criar ou executar as normas jurídicas é eleito pelos
súditos, cuja conduta se acha regulada por essas normas.
O que foi dito implica um considerável enfraquecimento do princípio da au
todeterminação política. Esta é uma característica chamada democracia indireta ou
representativa. Trata-se dc uma democracia em que a função legislativa é cxcrcida
por um parlamento dc eleição popular, e as funções administrativa c judicial por
funcionários que são, também, nomeados por eleição. Dc acordo com a definição
tradicional, um governo é representativo quando e na medida em que seus funcio
nários refletem, enquanto no poder, a vontade do eleitorado e são responsáveis pe
rante este. Conforme tal definição, “não é verdadeiramente representativo um go
verno em que os funcionários, sejam do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário,
são nomeados ou selecionados mediante procedimentos distintos da eleição popu
lar, ou que, embora eleitos por um corpo democrático constituído, de fato não re
presentam a vontade da maioria dos eleitores, ou não têm uma responsabilidade
que o corpo eleitoral seja capaz de tornar efetiva” (J. W. Garner, Political Science
and governmenty 1928, p. 317).
Não há dúvida dc que, submetida a tal critério, nenhuma das democracias de
nominadas “representativas” é, realmente, representativa. Na maioria delas, os ór
gãos administrativos c judiciários são selecionados mediante critérios diversos da
eleição popular; c cm quase todas as chamadas democracias “representativas” os
membros eleitos do parlamento e outros funcionários de eleição popular, especial
mente o Chefe de Estado, não são, juridicamente, responsáveis perante o corpo elei
toral.
Para estabelecer uma verdadeira relação de representação, não basta que o re
presentante seja nomeado ou eleito pelo representado. É necessário que o represen
3 1 8 Teoria Geral do Estado
tante se ache juridicamente obrigado a cumprir a vontade do representado, e que
o cumprimento desta obrigação esteja garantido juridicamente. A garantia, no caso,
é o poder representado de destituir o representante, no caso de as atividades deste
último não se ajustarem aos desejos do primeiro. Não obstante, as Constituições
das democracias modernas apenas excepcionalmente concedem ao eleitorado o po
der de revogar o mandato dos funcionários eleitos. Como exceções, podemos citar
as Constituições de alguns Estados-Membros dos Estados Unidos da América do
Norte, por exemplo, a Constituição da Califórnia, que no art. XXIII, Seção Primei
ra, estabelece: “Todo funcionário público do Estado da Califórnia pode, a qualquer
tempo, ser removido de seu posto pelos eleitores, que têm a prerrogativa de votar
por um sucessor do removido, mediante o procedimento e na forma aqui estabele
cida, procedimento ao qual se dá o nome de remoção [...]”.
Outra exceção nos oferece a Constituição alemã de Weimar, que, no art. 43,
estabelece: “O Presidente do Reicb pode, mediante solicitação do Parlamento, ser
removido de seu cargo, por voto popular, antes do término do seu mandato. A de
cisão do parlamento deve ser adotada por uma maioria dc dois terços. Adotada tal
resolução, o presidente do Reicb fica impedido de continuar no exercício do cargo.
A recusa cm removê-lo dc seu cargo, expressa no voto popular, eqüivale a uma reelei
ção e tem como conseqüência a dissolução do parlamento”.
Normalmente, o Chefe eleito do Estado e outros órgãos de eleição somente po
dem ser removidos de seu cargo, antes do término do mandato, mediante decisão
dos tribunais, e apenas em caso de violação da Constituição ou de outras leis. Prin
cipalmente nas democracias modernas, os membros do parlamento não são, via de
regra, juridicamente responsáveis perante o eleitorado, nem podem ser removidos
por este. Os membros eleitos de um parlamento moderno não se acham juridica
mente ligados por quaisquer instruções do corpo eleitoral. Seu mandato legislativo
não tem o caráter de um mandat impératif’ como os franceses denominam a função
do deputado eleito que se acha juridicamente obrigado a executar a vontade dos
eleitores. Muitas Constituições democráticas estipulam, expressamente, a indepen
dência dos deputados perante seus eleitores. Tal independência do parlamento pe
rante o corpo eleitoral é um dado característico do parlamentarismo moderno. É
precisamente nesta independência à frente do corpo eleitoral que o parlamento mo
derno se distingue dos corpos legislativos de eleição do período anterior à Revolu
ção Francesa. Os membros destes corpos eram verdadeiros representantes, verda
deiros agentes da classe ou grupo profissional, que os elegiam, já que se achavam
submetidos a certas instruções e a qualquer momento podiam ser removidos pelos
representados. A Constituição francesa de 1791 foi a que proclamou solenemente o
princípio de que não deveriam ser dadas instruções aos deputados, porque estes não
devem ser representantes de nenhum distrito em especial, mas de toda a nação.
A fórmula segundo a qual o membro do parlamento não é representante de
seus eleitores, mas de todo o povo, ou, como dizem alguns autores, de todo o Es
10 Leituras Complementares 319
tado, razão por que não se liga às instruções dos seus eleitores, nem pode ser remo
vido por estes, é uma ficção política. A independência jurídica dos eleitos perante
os eleitores é incompatível com a representação legal.
A afirmação de que o povo se acha representado pelo parlamento significa
que, como o povo não pode exercer de forma direta c imediata o poder de legislar,
tal poder c cxcrcido por mandato. Todavia, sc não há nenhuma garantia jurídica
de que a vontade do eleitorado seja cumprida pelos eleitores, e estes são juridica
mente independentes dos eleitores, não há qualquer relação de representação ou de
mandato. O fato de que um órgão de eleição não tenha a probabilidade de ser reelei
to ou a circunstância de que tal probabilidade se acha diminuída se sua atividade
não é considerada por seus eleitores como satisfatória, constitui, verdadeiramente,
uma espécie de responsabilidade política; porém, tal responsabilidade é inteiramen
te distinta da jurídica e não justifica a afirmação de que o órgão de eleição é um re
presentante jurídico de quem o elegeu, muito menos a afirmação de que um órgão
de eleição só pode formar parte do povo se é o representante jurídico de todo o Es
tado. Semelhante órgão “representa” o Estado de uma forma que não difere daque
la em que é representante do Estado um monarca hereditário ou um funcionário
nomeado por este.
Sc os escritores políticos insistem cm caracterizar o parlamento da democra
cia moderna como órgão “representativo”, apesar de sua independência jurídica à
frente do corpo eleitoral, e alguns tratadistas chegam a declarar que o mandat im-
pératifé contrário ao princípio do governo representativo, ao agirem assim não es
tão propondo uma teoria científica, mas preconizando uma ideologia política. A
função desta ideologia é ocultar a situação real e manter a ilusão de que o legisla
dor é o povo, apesar de que, na realidade, a função do povo - ou, mais precisamen
te, do corpo eleitoral - se acha limitada à criação do órgão legislativo.
A resposta à pergunta sobre se de lege ferenda o membro eleito do corpo le
gislativo se encontra juridicamente obrigado a executar a vontade de seus eleitores
c, portanto, scr responsável perante estes depende da opinião sobre em que medi
da seja desejável realizar a ideia da Democracia.
Se é democrático que a legislação seja elaborada pelo povo c se, por razões
técnicas, é impossível estabelecer uma democracia direta, de modo a ser necessário
conferir a função de legislar a um parlamento eleito pelo povo, então será demo
crático garantir, na medida do possível, que a atividade de cada membro do parla
mento reflita a vontade dos eleitores. O chamado mandat impératif e a destituição
dos eleitos são instituições democráticas, se o eleitorado se acha democraticamen
te organizado. A independência jurídica do parlamento diante do corpo eleitoral
somente pode ser justificada pela opinião de que o Poder Legislativo se encontra
mais bem organizado quando o princípio democrático de que o legislador deve ser
o povo não é levado ao extremo. A independência jurídica do parlamento à frente
do povo significa que o princípio da democracia é, em certa medida, substituído
320 Teoria Geral do Estado
pelo da divisão do trabalho. Para ocultar tal desvio de um princípio a outro, usa-se
a ficção de que o parlamento “representa” o povo.
Ficção semelhante é a empregada para ocultar a perda de poder sofrida pelo
monarca ao scr consumada a independência dos tribunais. A ideologia da monar
quia constitucional traz consigo a doutrina dc que o juiz, apesar dc que em sua fun
ção não restam vestígios da influência do monarca, constitucionalmente “represen
ta”, não obstante, a este: as decisões judiciais são dadas “em nome do rei” . No
direito inglês chega-se ao extremo de supor que o rei está presente, em espírito, no
momento em que a decisão do tribunal é pronunciada.
29) ALÍPIO SILVEIRA
Da interpretação das leis na Alemanha nacional-socialista e hitlerista
(In Da interpretação das leis em face dos vários regimes políticos, s. d., p. 133-8.)
Observemos preliminarmente, que na Alemanha nazista, a independência c a
imparcialidade dos magistrados são supridas. Periodicamente são publicadas “ins
truções” impondo aos juizes as interpretações oficiais. O Secretário de Estado da
Justiça fixou publicamente a atitude dos juizes nestes termos: “o juiz não pode ter
em face do direito e da lei uma atitude conforme ao dever do Estado Nacional-So-
cialista, senão renunciando à neutralidade” (V. EDUARDO THEILER, “Crise no
Direito Moderno”).
Ainda na Alemanha atual, o princípio da não retroatividade das leis, mesmo
as penais, é considerado como ideia antiquada.
Um julgamento de 1936 declarou que o acusado não podia invocar que em
Junho de 1935 os casamentos entre judeus e arianos não eram ainda legalmente in
terditos; afirmou este julgamento que - “é absolutamente indiferente buscar a épo
ca na qual o Estado julgou necessário sancionar por uma interdição legal seus prin
cípios racistas
Assim, deixa de existir qualquer prazo de prescrição, e a pena pode ser apli
cada a delitos cometidos antes de ela ter sido editada, contrariamente à regra res
tritiva - nulla poena sine proevia lege - que domina o direito penal clássico e tem
sido sempre considerada como essencial (EDUARDO THEILER, op. cit.).
Os eminentes jurisconsultos EDUARDO ESPÍNOLA e EDUARDO ESPÍNO-
LA FILHO, em seu magnífico “Tratado de Direito Civil Brasileiro” (vol. I, 1939,
pág. 74) ensinam a respeito da interpretação na Alemanha nacional-socialista:
“Embora continuem vigentes as grandes codificações alemãs, devem os juizes
interpretar essas leis segundo a mentalidade nacional-socialista.
10 Leituras Complementares 321
“Tem-se entendido que o art. I o da lei de 16 de Outubro de 1934 (Steueranpas-
sungsgesetz), que manda interpretar as leis fiscais de acordo com a Weltanscbauung
nacional socialista, estabelece uma regra geral aplicável a todos os domínios do di
reito.
“Assim e que um juiz se recusou a inscrever no Grundbuch o título de pro
priedade de um judeu; c que foi recusado o casamento dum judeu com uma aria
na, antes das leis de Nuremberg (COT, que cita ECKHARDT). Mas o juiz, que re
cusasse reconhecer o caráter obrigatório do pagamento dos juros de um mútuo,
sob o fundamento de que o programa do partido exige o ‘fim da escravidão dos ju
ros’, não obedeceria a um imperativo nacional-socialista, porque é ao Führer que
compete fixar o grau de realização da Weltanscbauung (concepção filosófica).
“A Constituição de WEIMAR não está mais em vigor, ainda que não expres
samente revogada, porque se tornou incompatível com o programa e os princípios
do nacional-socialismo.
"O indivíduo é absorvido no Volksgeist, do qual, como se disse, é expressão
suprema o Führer, inamovível e irresponsável.
“Não somente as leis do Führer devem ser obedecidas incondicionalmente;
assim também os seus atos independentemente da forma.
“Num discurso proferido numa reunião de juristas, em 1936, dizia H. FRANK,
considerando como deve o juiz completar a lei: ‘cumpre que o juiz, ao proferir uma
decisão, pergunte a si mesmo: - como decidiria o Führer em meu lugar? Esta deci
são estará de acordo com a consciência nacional-socialista do povo alemão? Então
terá ele uma base de consciência bem firme, levando à esfera de sua decisão a au
toridade do IIIo Reich, haurida na unidade do todo popular nacional-socialista e
do reconhecimento da vontade do Führer Adolf Hitler’ (Apud M. COT - La con
ception hitlcrienne du droit, 1938, págs. 207-208. V. também - JACQUES FOUR-
NIER - La conception nacionale-socialiste du droit des gens, 1939)”.
Em outra parte de seu Tratado, os ESPÍNOLA observam:
“HITLER é o soberano legislador e a mais alta encarnação da justiça, poden
do pronunciar sentenças imediatamente executórias, fora de todo o texto legal e
sem qualquer forma (MARCEL COT - La conception bitlérienne du droit, 1938,
pág. 54).
“Citam-se as palavras do constitucionalista CARL SCHMITT: ‘o verdadeiro
chefe deve ser ao mesmo tempo juiz; separar ou opor a soberania, e a jurisdição é
fazer do juiz um adversário do Führer’ (A. e op. cit. Observa COT que segundo
GÒRING e HÕHN , um dos grandes erros do liberalismo consiste em crer que o
povo deseja governar-se a si mesmo. Não! o povo quer ser conduzido e governado.
O povo alemão foi poderoso enquanto foi conduzido).
“Se o nacional-socialismo seguiu a orientação do programa com que se apre
sentou o partido operário alemão em Munich (1921), cumpre verificar em que si
tuação político jurídica ficou a Alemanha, por efeito de sua vitória.
322 Teoria Geral do Estado
“De modo geral, permaneceram as grandes leis e códigos, com as modifica
ções introduzidas pelo imperativo do novo regime, muito embora se proclame que
a sua interpretação e a sua aplicação se subordinam aos princípios dominantes na
organização político-social do terceiro Reich.
“A própria Constituição de Weimar não foi expressamente abolida, muito em
bora em todos os pontos substanciais sc tenha tornado incompatível com as leis
fundamentais da Alemanha atual; até hoje não foi decretada, para o povo alemão,
uma constituição nova, que lhe trace definidamente os fundamentos da vida polí
tica, social e jurídica”.
(“Tratado” citado, págs. 202-203).
O professor CLAUDE DU PASQUIER, ao tratar dos métodos novos de inter
pretação na Alemanha atual assim se exprime:
“O advento do Nacional-socialismo em 1933 acarretou uma completa reno
vação das ideias reinantes na Alemanha sobre o direito e sobre a missão do juiz. As
construções lógicas dos romanistas foram repudiadas; as gerações novas confiam
no senso inato do direito que o juiz descobre em si, com a condição que seja de raça
pura e que se inspire, não num individualismo obsoleto, mas na concepção univer-
salista do direito e do Estado (BINDER, “Zeitschrift fiir das gesamtc Handelsrecht”,
1934, págs. 44 c 82).
“Aliás ‘a lei não é senão um dos aspectos do direito na técnica da vida públi
ca moderna, mas não é o único’. Existe também ‘um direito não escrito que se des
prende da alma do povo alemão e que é conforme às necessidades da vida nacio
nal, direito reconhecido, ou melhor, sentido e energicamente realizado pelo juiz
alemão’ (Número inaugural de 1’Akademie für deutsches Recht, junho de 1934,
pág. 6, artigo do professor W. KISCH, vice-presidente da referida academia, intitu
lado Der deutsebe Ricbter.) Alguns autores legitimam a interpretação contra legem
‘quando o bem do Estado manifestamente o exige’ (SAUER, Recht und Wolksmo-
ral im Führerstaat, Arch. f. Rechts u. Soz. Phil., tomo 28,1934-35, pág. 262).
A doutrina nacional-socialista apropriou-se assim de algumas das ideias pre
conizadas pelos adeptos do Freiesrecht, cujo horizonte político cra entretanto mui
to diferente, e incorporou-as habilmente à sua mística nacional” (“Introduction à
la Théorie Générale et à la Philosophie du Droit”, 1937, págs. 201-202).
O eminente jurisconsulte uruguaio, professor EDUARDO J. COUTURE, no
brilhante estudo “Trayectoria y destino dei Derecho Procesal Civil Hispano-Ame
ricano” (Cordoba, 1940) versa este aspecto da doutrina nacional-socialista, e se
funda em copiosa bibliografia. Vejamos sua douta exposição.
Existe, na Alemanha nacional-socialista, um vasto movimento geral de dou
trina que seus autores chamam Kampf wieder das subjektive Recht - a luta contra
o direito subjetivo.
Nesta luta para a abolição do direito subjetivo, sucumbe o próprio Estado,
que não mais é considerado, na doutrina recente, como uma pessoa jurídica de di
10 Leituras Complementares 323
reito subjetivo. Pelo contrário; diferentemente da doutrina fascista, a base, o pró
prio receptáculo do direito, não é o Estado, mas o povo. O direito nacional-socia
lista é, segundo seus próprios definidores, um estado de consciência popular. Pois
que o direito (nessa doutrina) reside no povo e é mister interpretá-lo, e como o povo
não tem fisicamente um órgão único de expressão, admite-se que o interprete da
vontade popular c o Führer. As palavras textuais dc SEYDEL, que c quem levou
mais longe este desenvolvimento, são: “Deve-se partir do conceito do povo como
comunidade vivente no qual o cidadão reveste a condição dc membro; e ver no di
reito a ordenação da vida desta comunidade”.
“O juiz não seria mais um meio que o Estado põe à disposição das partes, para
decidir seus conflitos particulares, mas um representante soberano da lei, e, consequen
temente, um dos mais importantes executores da vontade do Führer. Não está acima
das partes como órgão neutro, mas como membro ativo da comunidade, inspiran
do-se nos sentimentos dessa comunidade à qual serve e pertence” (“Gedankcn zur
Neugestaltung des Zivilprozesses”, in “Deutsches Recht”, 1935, pp. 504 e segs.).
Este princípio do povo como comunidade vivente, que nccessita de interprete,
conduziu ao que se chamou “doutrina do Führerprinzip”, segundo a qual o juiz é o
Führer dentro do processo. Mas esta doutrina, que parecia destinada a triunfar, não
pôde suportar algumas objeções fundamentais. Uma delas, por exemplo, a dc que
não podem existir na Alemanha tantos Führer fieis intérpretes do direito. Mas, em
compensação, a doutrina procurou novos fundamentos para assentar o princípio:
De um lado, ROTHENBERGER, em um ensaio aparecido em 1937 (“Richter-
liche Unabhãngigkeit und Dienstaufschit”, in “Zeitchrift der Akademie für Deutsches
Recht”, 1937, p; 637), sustenta, tomando como ponto de partida o acima menciona
do, que o direito pronunciado 011 declarado pelo juiz da sentença, embora emane do
órgão definitivo da justiça, o Reichsgericht, admite sempre uma espécie de recurso hie
rárquico. Se o cidadão se queixa ao Führer que a sentença é injusta, o Führer exami
na essa sentença e dissuade ao cidadão se este estiver equivocado, ou assinala ao tri
bunal os inconvenientes que sua decisão acarreta para o ideal nacional-socialista.
Outra fundamentação ou justificação mais profunda do referido princípio
provém dc FREISLER, que em 1938 (“Nazional socialistichc Recht und Rechts-
denken”, opúsculo) sustentou, como novo aspecto da doutrina, que o direito é o
reflexo da consciência popular, tal como é interpretada pelo Führer. Não se chega,
com isso, a admitir outro direito além do que vive na consciência popular, mas ape
nas se afirma que o Führer é o intérprete autêntico e único deste estado de consciên
cia. No processo judiciário o direito é declarado através da única expressão possí
vel, que é a do Führer. Derivou-se toda a ordem jurídica processual civil do princípio
do Rechtsfinder. O Führer é o investigador ou pesquisador do direito, e trata de ex
traí-lo na forma mais pura possível da consciência popular. Isto supõe, evidente
mente, a supressão do direito como norma, e a existência de um direito ocasional
para cada caso concreto.
324 Teoria Geral do Estado
A culminância desta doutrina foi efetuada por BAUMBACH (“Zivilprozess
und frciwillige Gerichtsbarkeit”, in “Zeitschrift der Akademie”, cit., 1938, p. 583),
segundo o qual devia ser suprimida a jurisdição, que ficaria absorvida pelo que hoje
chamamos “jurisdição voluntária”; suprimir a justiça para transformá-la cm um
poder administrativo dc fundamento discrecionário. A doutrina dc BAUMBACH,
não obstante, não fez caminho.
Esta é a doutrina alemã até I o de Setembro de 1939. Neste dia o Führer dis
se, em sua qualidade de chefe de governo, que não era mais o direito, mas os fatos,
que começavam a funcionar.
Agora, uma observação à exposição do professor COUTURE.
Vemos como ele friza, na doutrina de FREISLER, a supressão do direito como
norma, e a existência de um direito ocasional para cada caso concreto. Vemos aí a cha
mada individualização do direito, em sua feição extremada de niilismo legislativo.
Ora, a individualização extremada do direito é uma ideia preconizada pelos
adeptos do Freiesrecht.
Esta escola ou método (direito livre, “free judicial power” movement, “free
judge” movement, Freies Recht), pelo menos quando considerada em seus repre
sentantes mais extremados, é de tendência niilista. Com efeito, de acordo com esta
tendência extrema, as regras legais deixam dc ter razão de existência numa orga
nização jurídica perfeita.
O professor americano ALBERT KOKOUREK assim descreve as tendências
extremistas que surgiram nos Estados Unidos:
“Some writers have gone to the length, it would se em, of aholishing or wishing
to abolish ali conceptual thinking in law. Some o f th em would rest legal judgements
entirely on the intuition of the judge. Law would not any longer he a compound of
unformulated postulates, principies, rules, standards, and discretion” (“Libre Recher-
che in America”, in “Récuéil d’études sur les Sources du Droit en Phonneur de Fran-
çois Gény, tome II - Les sources générales des systèmes juridiques actuels”, pg. 461).
Adiante, acrescenta a respeito:
“ Acceptance of it leads to the logical consequence that rules of law have no
official or hinding character and are in their nature oflittle importance. By th is Une
of reasoning the judge is made free, as an officer of the State, if not as a rational
human heing
E KOKOUREK conclui com acerto:
“In its extreme forms the \free judge’ movement in America is nihilistic in ten-
dency”.
No que toca ao aspecto político das ideias extremadas do direito livre, o pro
fessor americano JOHN DICKINSON afirma que tais ideias são “de fato, apenas
uma espécie de absolutismo invertido. Ao passo que sob o velho absolutismo a re
gra legal era tudo, sob o novo absolutismo, é nada” (“The Problem of the unpro-
vided case”, in “Récueil”, cit.).
10 Leituras Complementares 325
O professor M ORRIS R. COHEN é exatamente da mesma opinião de DI-
CKINSON, pois assevera:
“Ser governado por um juiz é, na extensão em que ele não é ligado pela lei,
tirania ou despotismo. Ela pode muitas vezes ser inteligente e benevolente, mas não
deixa de ser tirania” (“Positivism and the Limits of Idealism in the Law”, 1927,
“Columbia Law Review”, 27, 237).
KOKOUREK também é do mesmo sentir:
“To rest the task of legal justice entirely on the judgeys discretion would be
nothing less tban a surrender to tyranny” (op. cit).
Se a doutrina nacional-socialista parece aderir a este niilismo legislativo, que
é uma expressão das tendências extremadas do Freies Recht, cumpre observar que
seu horizonte político é muito diferente.
O Estado Nacional-Socialista habilmente apossou-se das ideias básicas da Es
cola Histórica de SAVIGNY, e incorporou-as cm seu misticismo jurídico. A atitude
da Escola Histórica em face da autoridade da lei é assim sintetizada por GÉNY: “5/
la pensée du législateur; telle qu’elle se dégage du sens naturel et normal du texte,
répugne, suivant le sentiment personnel de /’interprete, a ce qu il considere comme
rexpression de la conscience collective du peuple, au moment ou il doit appliquer
la loi, il rihésitera guère à préférer a sou imparfaite traduction la révélation direc-
te de cette source commune et plus profonde” (“Méthode dMntérpretation et Sour-
ces en Droit Privé Positif”, 1932,1, pg. 258).
Esta atitude da Escola Histórica - que o eminente THEODOR STERNBERG
apodou de fetichismo espiritual - foi adotada pelo Estado Nacional-Socialista, subs
tituindo a “consciência coletiva” pela “consciência nacional-socialista”.
Em conclusão, uma nova e original, mas também paradoxal e ilusória, con
cepção do direito livre foi forjada pelo hitlerismo. Ela é, com efeito, paradoxal e
ilusória porque o intérprete tem de ater-se à vontade real ou presumida do Führer.
Deve também observar-se que a “consciência nacional-socialista” e a “vontade do
Führer” se confundem praticamente.
O resultado final é um critério perfeitamente autocrático de aplicação, lamen
tavelmente enxertado no tradicional corpo dc leis que o nacional-socialismo já en
contrara, afim de afastá-las pela simples ação do juiz.
23) JOSÉ PEDRO GALVÃO DE SOUSA
Conceito e natureza da sociedade po lítica
(São Paulo, 1949.)
326 Teoria Geral do Estado
1a ParteA soc iedade política, seus e lementos
com ponentes e princ ipa is ca rac te rís t icasAs expressões “sociedade política” e “sociedade civil” equivalem-se na etimo
logia: “política”, de polis; “civil", dc civitas. A palavra originária, grega ou latina,
tem a mesma significação: a cidade, designando não a urbs, mas a comunidade or
ganizada politicamente, isto é, o que hoje chamamos de Estado.
Para determinar exatamente o conceito c a natureza da sociedade política,
lembremos antes dc mais nada o conceito dc sociedade cm geral.
Sociedade c a união moral e permanente dc várias pessoas cm vista dc um fim
comum.
Nessa breve definição encontramos os seguintes elementos:
a) fim ou bem comum;
b) pessoas ou indivíduos racionais;
c) união moral e permanente.
Em primeiro lugar, o fim; pois como nos ensina a filosofia o fim é a primeira
das causas. Reaparece frequentemente 11a linguagem dos escritores de hoje uma ex
pressão muito antiga das mais sugestivas para indicar o fim, a razão de ser de qual
quer sociedade: o bem comum.
Sociedade é uma reunião de pessoas, quer dizer, de seres racionais. Tornou-se
clássica a definição dc pessoa formulada por Boccio, o filósofo que, no cárcere, pro
curava a consolação da filosofia para balsamizar seus sofrimentos. “Pessoa”, escre
via Boccio, “c uma substância individual dc natureza racional” . Só entre pessoas
há sociedade. Os animais gregários, como as abelhas ou os castores, não consti
tuem verdadeira sociedade, pois lhes falta o conhecimento do fim social e a cola
boração voluntária para alcançá-lo.
Chegamos assim ao terceiro elemento de toda sociedade: a união moral, quer
dizer, resultante da prática de actos racionais e livres. Sem colaboração voluntária
dos sócios não pode haver sociedade. E, além de voluntária, tal colaboração deve
ser permanente, o que não se dá, por exemplo, com o ajuntamento de pessoas numa
praça, num estádio, num teatro. Não se deve confundir sociedade com multidão.
Todas essas notas do conceito genérico de sociedade devem naturalmente exis
tir no conceito dc socicdadc civil ou política. Resta saber quais as notas específicas
deste último.
Analisando-sc os diversos tipos dc sociedade política encontrados através da
história, torna-se fácil perceber cm todos eles alguns característicos fundamentais
comuns.
Os primeiros desses tipos, pela sua maior simplicidade e também pela ordem
cronológica, são a aldeia e a tribo. Sociedade de pequenas dimensões, a tribo fun
da-se em vínculos de parentesco. Quanto à aldeia, é muitas vezes um tipo interme
diário entre a família e a tribo. Caracteriza-se pela localização territorial, em tor
10 Leituras Complementares 327
no do mercado ou da cidadela, surgindo quase sempre no centro de uma área de
terra cultivada.
Sociólogos evolucionistas falam-nos da horda, sociedade rudimentar e indife-
rcnciada, cujos membros estariam dc tal modo absorvidos pelo todo coletivo que
nem sequer teriam consciência dc sua existência pessoal. Dcssc caos originário te
riam saído, aos poucos, as sociedades heterogêneas cm que os grupos familiares sc
foram constituindo até chegar aos clãs matronímicos ou patronímicos e depois às
pequenas famílias agrupadas em aldeias. Uma transformação em tudo semelhante
ao processo evolutivo do cosmos, à formação dos mundos oriundos da nebulosa
primitiva e à diferenciação das espécies segundo o quadro traçado em esquemas
simplifica dores e arbitrários.
O postulado da horda é uma hipótese absurda, gerada pelo naturalismo so
ciológico do nosso tempo. Repelem-no a história e a etnologia, a tradição oral dos
povos mais antigos e dos selvagens de hoje. É um pressuposto ideológico que tem
contra si o relato bíblico da criação do homem e da constituição da primeira socie
dade por Deus.
Partindo, pois, da aldeia c da tribo, podemos considerar os diversos tipos dc
sociedade política na ordem cm que sc sucederam historicamente c veremos então
formarem-se a confederação dc tribos, a cidadc, o Império c a Nação. A tribo, de
senvolvendo-se em torno de um mesmo tronco, dá origem às sociedades patriar
cais. A cidade pode ser constituída por uma confederação de tribos que se torna se
dentária. Outras vezes, é formada por famílias de procedência diversa associadas
num mesmo local. Daí a polis e a civitas dos antigos. O Império, no sentido em que
aqui o tomamos, apresenta-nos um vasto organismo administrativo e a centraliza
ção política com o predomínio de um povo sobre outros, seja esse povo dominan
te de estrutura tribal e patriarcal (Impérios do oriente), de organização citadina
(Império Romano: predomínio de uma “cidade” sobre outras e sobre outros po
vos) ou de formação nacional (Império Britânico). A organização política da Na
ção é o que propriamente sc entende hoje por Estado, podendo neste caso também
haver associação ou confederação de Estados.
Em todas essas formas dc sociedade política um fato resulta desde logo pa
tente. O indivíduo nunca está abandonado a si mesmo ou aos poderes absolutos
da comunidade total. Pertence sempre a um grupo familiar que se integra no todo
social, e além disso faz parte de outros agrupamentos sobrepostos ou de qualquer
modo relacionados entre si.
Fato importantíssimo este para assinalarmos com precisão a natureza da so
ciedade política.
Com efeito, aplicando-se aqui os elementos acima discriminados como partes
lógicas do conceito de sociedade, devemos fazê-lo levando em conta as peculiari
dades distintivas do tipo de sociedade cuja fisionomia nos interessa agora traçar.
328 Teoria Geral do Estado
Os elementos já mencionados indicam-nos a causa final da sociedade (bem co
mum), a causa material (pessoas) e a causa formal (união moral). Fica faltando a
causa eficiente, cuja determinação nos faz conhecer a origem da sociedade. Tanto a
causa final como a causa eficiente são causas extrínsccas. A causa formal e a causa
material, causas intrínsecas, é que nos dão propriamente o conhecimento da natu
reza de um ser, isto e, do seu constitutivo essencial. Mas a constituição de qualquer
coisa depende do fim para que é feita. A forma de um instrumento se modela con
forme o fim a que se destina. Se isto se dá com as coisas da natureza física, não me
nos importante é a consideração do fim em se tratando do ser social, cuja natureza
nos escapará por completo se não tivermos presente a razão de ser sociedade.
Além desses elementos, temos que considerar a autoridade, princípio de uni
dade social, fator da efetiva coordenação das vontades individuais em vista do bem
comum. Toda sociedade requer necessariamente uma autoridade, sem cuja ação
unificadora e coordenadora nem a causa final seria alcançada, nem a causa formal
teria realização concreta.
Apliquemos, pois, estes elementos à sociedade política.
Causa final é o bem comum das pessoas reunidas política 011 civilmcntc. Para
saber cm que consiste o bem comum, é prcciso, antes de mais nada, ter presente a
finalidade pessoal do homem. Causa eficiente é o próprio homem, que pela sua ação
forma todas as sociedades de que participa. Esta causalidade eficiente pode dar-se
pela vontade livre do homem (sociedades puramente voluntárias) ou então por uma
inclinação natural, que não exclui a liberdade. A sociedade política resulta da ten
dência natural do homem para a vida em comum; é o termo a que se dirigem as so
ciedades mais simples, especialmente a família.
A forma da sociedade política, como de toda sociedade, nos é dada pela pró
pria união dos seus membros, pela sua cooperação voluntária em vista do escopo
comum, por essa conjugação de esforços que a autoridade torna efetiva e assegura
permanentemente sob uma determinada ordenação jurídica.
E a sua matéria, dc que se constitui?
Aqui está um ponto nevrálgico na concepção da sociedade civil. Muitos erros
se têm cometido por não se levar em conta devidamente qual a matéria societatis
nas comunidades politicamente organizadas.
Como ficou dito, nunca se vê o indivíduo isolado sem vínculos sociais em face
da civitas. Toda sociedade política é uma sociedade composta de outros agrupa
mentos reunidos entre si e subordinados ao poder que se constitui acima destes cír
culos sociais menores, unificando-os na prossecução do bem comum.
A causa material da sociedade política está nas famílias e nas outras associa
ções, naturais ou voluntárias, que a compõem. É através desses agrupamentos, su
bordinados a uma autoridade suprema, que o indivíduo se integra 11a vida social.
Por outras palavras, a sociedade política não resulta de uma simples soma de indi
víduos, e sua matéria não consiste 11a massa amorfa dos cidadãos. O Estado é pre
10 Leituras Complementares 329
cedido de uma estrutura social organizada que nele se aperfeiçoa e cujo fundamen
to natural e histórico não está na ação dos indivíduos solitários, tampouco na
organização da coletividade pelo poder central, mas no dinamismo dos grupos so
ciais autônomos convergindo para uma commnnitas communitatum.
Podemos, pois, assim definir a sociedade política: conjunto de famílias e de
outros grupos, organizados juridicamente, sob a direção dc uma autoridade cen
tral suprema.
O Estado é a sociedade política mais desenvolvida. Supõe agrupamentos de
longa formação histórica, cujo remate é quase sempre uma nacionalidade plena
mente constituída. Surge 110 termo dessa formação, para dar à Nação existência ju
rídica. Nações independentes constituem-se em Estado, c o Estado pode ser defini
do como a organização política da Nação.
Em toda sociedade política e particularmente no Estado encontramos os se
guintes característicos:
1) Pluralidade de grupos.
2) Formação histórico-natural.
3) Organização dos bens particulares.
4) Unidade interior dos vínculos sociais c coordenação exterior. Passemos a
um breve exame dc tais propriedades.
§ 1o Pluralidade de gruposE óbvio que sem pluralidade de pessoas não pode haver sociedade. Mas a so
ciedade política supõe, além da pluralidade de pessoas, pluralidade de grupos. É
uma sociedade composta de outras menores. Dentre estas merece particular aten
ção a família.
À família se tem chamado a “célula social”. Comparando-se a sociedade a um
grande organismo, sem cair no exagero dos que a identificam em tudo aos corpos
vivos, pode-se verificar que a família aí exerce uma função análoga à da célula num
todo orgânico.
A célula é unidade vital. Constitui um centro relativamente autônomo de vida,
sc bem que imperfeito, pois necessita, para subsistir, das energias que circulam por
todo o organismo. Entretanto, estas energias, por sua vez, resultam do trabalho das
células assimilando os elementos indispensáveis à subsistência de todo o corpo.
A família é unidade social. Como a célula é a última parcela de vida, em que
se decompõe o complexo orgânico, assim também a família, na ordem social, cons
titui o núcleo fundamental da comunidade. Reunidas as famílias, formam a socie
dade civil ou política, que geralmente compreende também outros agrupamentos.
Estes agrupamentos, porém, variam de sociedade para sociedade, de época para
época. Podem mesmo deixar de existir, como se dá com as sociedades políticas mais
elementares: a tribo, a aldeia, simples reuniões de famílias. O núcleo familiar exis
te sempre, a não ser em sociedades decadentes e profundamente alteradas 110 ínti
330 Teoria Geral do Estado
mo de sua constituição, casos esporádicos e passageiros. A família é a primeira das
sociedades e a mais natural. Dccorre da própria constituição do ser humano e da
diferença de sexos, ordenada à conservação da espécie.
No paralelo entre a família c a célula, entre a sociedade e o organismo vivo,
cumpre notar uma grande diferença. A célula reduz-se à simples parte de um todo,
não tem vida própria. A família, pelo contrário, c um organismo completo, visan
do a perfeição total do homem, isto é, preparando-o para alcançar todos os bens
da natureza racional, bens que a sociedade civil deve ajudar a conseguir na ordem
física, intelectual e moral. A autonomia da família como centro de atividade social
é, pois, muito maior que a da célula como centro de atividade biológica. Inserindo-se
no plano do espiritual e do temporal, a família ordena o homem para o bem de sua
natureza de maneira muito mais completa que o Estado.
É, portanto, a família o primeiro âmbito social para o homem. Normalmen
te é na família que se forma a personalidade de cada indivíduo, é pela família que
os indivíduos se integram na vida social.
Mas esta integração sc faz também através dc outros agrupamentos, dentre
os quais se destacam particularmente os agrupamentos profissionais. O trabalho c
dever primordial do homem e manifesta a própria condição dc sua natureza. Em
conseqüência do pecado, tornou-se pena imposta por Deus a Adão c a todos os seus
descendentes. O domínio do mundo físico, que nos deu o Criador, só o consegui
mos pelo trabalho. E só pelo trabalho podemos assegurar a própria subsistência.
Daí a importância da profissão na vida de cada homem, definindo-lhe a situação
social, o modo de ser de cada um na sociedade civil, o estado (status) dos indivíduos.
A profissão aproxima os que a exercem, dá-lhes uma certa mentalidade comum,
identifica-os pelos mesmos objetivos no trabalho. Sendo assim, não admira que haja
uma tendência nos trabalhadores de determinada profissão para se associarem ten
do em vista o aperfeiçoamento do ofício, a defesa dos próprios interesses e uma re
presentação perante o poder do Estado.
Eis por que a organização corporativa da sociedade é algo que corresponde à
própria natureza das coisas.
Se nas sociedades políticas mais simples a pluralidade dc grupos quase sem
pre se reduz à pluralidade de famílias, nas sociedades mais desenvolvidas surgem
estes agrupamentos profissionais e ainda outras associações cujo caráter voluntá
rio é mais acentuado, associações que não correspondem tanto a inclinações natu
rais (ao contrário dos grêmios profissionais e mais ainda da família), mas que ma
nifestam a força expansiva da sociabilidade humana. Outra formação natural que
poderíamos ainda citar é o município ou a comuna, caracterizada pela coabitação
110 mesmo território. Sabemos como se deu a formação das cidades na Idade Mé
dia, germes de uma futura sociedade política perfeitamente constituída, e dos Es
tados que se levantariam mais tarde sobre as ruínas da sociedade feudal. A agre
miação profissional é uma sociedade de natureza econômica. O município já é uma
10 Leituras Complementares 331
sociedade política, abrangendo muitas vezes as associações profissionais que po
dem participar do governo municipal.
Todas essas formações sociais são anteriores ao Estado e também lhe são ex
teriores, como nota Roland Maspétiol. Remontam a épocas em que o Estado ain
da não existia e testemunham necessidades humanas inelutáveis, tanto assim que
o Estado pode recusar-lhes o reconhecimento jurídico mas não conseguirá jamais
fazê-las desaparecer.
Enfim, o Estado é precedido por outras sociedades mais simples; e, depois de
constituído, o organismo político que o seu poder unifica vem completar esta série
de manifestações da vida social já organizada antes dele. Qualquer sociedade po
lítica supõe pelo menos a vida social das famílias, unidades fundamentais da cole
tividade. Não pode haver erro mais grosseiro do que considerar a sociedade política
um conjunto de indivíduos desprendidos de outros vínculos sociais preexistentes.
§ 2o Formação h is tó r ico-natura lDo que precede podemos concluir que as sociedades políticas se constituem
através de um processo histórico que, partindo da família, chega ao Estado como
termo final.
No decurso da história, o Estado se sobrepõe aos agrupamentos sociais ante
riores. É o que observava o escocês Fergusson, no século XVIII, isto é, na mesma épo
ca em que Rousseau, com o seu sistema abstrato, prescindia das raízes históricas do
Estado, considerando-o como se fosse criação ex nihilo da vontade dos homens.
No mesmo sentido, já Aristóteles ensinava que o Estado se sobrepõe à famí
lia e a ultrapassa. Autores modernos, como Haller, têm mostrado a gênese das so
ciedades políticas nas famílias que se associam 011 no desenvolvimento de um tron
co familiar que se expande, qual árvore frondosa, dando origem às sociedades
patriarcais.
Essa formação histórica é ao mesmo tempo uma formação natural.
Com efeito, os grupos menores que vão compor a sociedade política tendem
para uma comunidade mais ampla, reclamam a existência de um poder mais forte,
capaz dc protegê-los eficazmente, estabilizam numa organização jurídica as rela
ções cada vez mais complexas desenvolvidas entre seus membros.
É o dinamismo interno da evolução histórica daqueles grupos que os leva à
sociedade civil plenamente constituída, dotada de imperium ou soberania política.
Há, por vezes, formações sociais amplas mas ainda inconsistentes, esboços do fu
turo Estado. Eis por que certos autores distinguem o Estado da sociedade civil, sen
do esta uma societas sine império. F. o caso de numerosas tribos cuja organização
política incipiente não apresenta os característicos de uma civitas perfeitamente
constituída.
Aristóteles, na Política, e Santo Tomás de Aquino, no Governo dos príncipes,
dizem que a polis ou civitas é a “comunidade perfeita”, por ser capaz de alcançar
332 Teoria Geral do Estado
o seu fim sem precisar de auxílio doutras sociedades. É autossuficiente ou autár
quica. As famílias podem precisar do auxílio do Estado (tal é o caso, por exemplo,
de uma família indigente), mas o Estado se basta a si próprio. Esta característica
do Estado, a mais completa das sociedades políticas, não existe ainda cm organi
zações elementares como a tribo. E, justamente para chegarem a esta autossuficiên-
cia, os agrupamentos mais simples tendem à civitas.
Corresponde, pois, a sociedade política a uma tendência natural das outras
sociedades que a constituem. Surge para satisfazer plenamente a inclinação social
da natureza humana.
O Estado, como nota muito bem Jellinek, não é uma formação meramente
natural, nem só uma formação histórica. Ambos estes aspectos conjugam-se na pers
pectiva sociológica em que procurarmos surpreender o seu aparecimento.
E desse caráter histórico resulta a grande importância da tradição na vida po
lítica das sociedades. Que se pode esperar de um povo subitamente elevado à con
dição de Estado, sem ter sido a consolidação dos laços da vida política precedida
dc uma formação histórico-natural? Será um Estado artificial, cuja formação aber-
ra das leis da história e viola a ordem natural das coisas.
24) M.A. KRUT0G0L0V
Palestras sobre a democracia soviética
Trad. K. Asriantz, Moscou, Ed. Progrcso, 1978, p. 93-103.
A ele ição dos deputados e a revogação dos seus m andatos na União Soviética
Todos os Sovietes de Deputados do Povo são eleitos pelos cidadãos por vota
ção direta; os órgãos executivos dos Sovietes são eleitos pelos respectivos Sovietes.
Por exemplo, o governo c eleito pelo Soviete Supremo c deve prestar contas da sua
atividade ao mesmo.
O grau de evolução da democracia no Estado socialista soviético determina-se
em grande parte pela crescente participação dos povos da União Soviética na ativi
dade dos órgãos representativos. As eleições de deputados para os Sovietes de to
dos os graus servem para incorporar amplas massas populares no trabalho políti
co.
Nas campanhas eleitorais os soviéticos fazem um balanço da atividade dos
órgãos estatais durante o período da sua atividade e avaliam os êxitos e as falhas
no trabalho dos Sovietes e de diversos deputados. Os eleitores apresentam as suas
propostas e fazem recomendações aos candidatos a deputado.
10 Leituras Complementares 333
O processo das eleições realiza-se na base do sistema eleitoral estabelecido
pela Constituição da URSS.
Segundo já dissemos, as eleições para todos os Sovietes, desde o Soviete Su
premo da URSS aos Sovietes dc povoados ou aldeias, rcalizam-sc na base do sufrá
gio universal, cm que todos os eleitores participam em pé dc igualdade. O voto é
direto c secreto.
Porém, princípios idênticos ou quase idênticos são proclamados também em
vários outros países. O que significam estes princípios nas condições concretas da
democracia soviética?
Uma garantia do sufrágio universal na União Soviética é que podem partici
par nas eleições todos os cidadãos sem exceção, que estejam no uso das suas facul
dades e que tenham atingido a idade de 18 anos, isto é, a idade mínima para votar
na União Soviética é três anos mais baixa do que em muitos países capitalistas, em
bora nos últimos anos este nível tenha sido diminuído também em alguns desses
países.
Nas eleições participam tanto os cidadãos que vivem permanentemente numa
determinada região, como aqueles que aí estão dc passagem no dia das eleições: a
legislação soviética desconhece restrições nos direitos eleitorais para pessoas que
vivem pouco tempo numa região, restrição que existe, por exemplo, na legislação
americana ou francesa.
Os direitos eleitorais não são limitados por qualquer restrição ou ressalva.
Nenhum órgão, incluindo o tribunal, pode privar em hipótese alguma um cidadão
soviético dos seus direitos eleitorais.
Na União Soviética, ao contrário, por exemplo, dos EUA e da Inglaterra, as
eleições são marcadas sempre para um dia feriado. A votação decorre durante 16
horas, das 6 horas da manhã às 10 da noite, o que permite a qualquer eleitor cum
prir o seu dever cívico no horário que lhe convém mais.
As seções eleitorais e os locais de votação são distribuídos na União Soviética
dc forma que o eleitor não precise dc fazer grandes deslocações para participar nas
eleições. Por isso, mesmo nos povoados pequenos que sc cncontram longe um do
outro (c o leitor sabe como é enorme o nosso país) são criadas seções eleitorais e os
respectivos locais de votação. Seções eleitorais organizam-se também nos locais para
onde os criadores de gado das repúblicas da Ásia Central e do Cáucaso e os criado
res de renas no Extremo Norte se deslocam com os seus rebanhos, nas estações de
investigadores das regiões polares, nos aeroportos, comboios de longo curso e nos
navios que no dia de eleições devem estar no mar. Seções eleitorais são criadas tam
bém junto de estabelecimentos médicos, balneários e casas dos inválidos.
A lei eleitoral soviética estabelece um sistema simples e altamente democráti
co de composição das listas eleitorais. Qualquer cidadão que goze de direitos elei
torais tem plena garantia de que o seu nome será incluído nas listas de eleitores no
local em que ele vive permanentemente ou está temporariamente, isto é, ao contrá
334 Teoria Geral do Estado
rio dos EUA e da Inglaterra, o eleitor não precisa fazer um requerimento especial
a esse respeito. Qualquer eleitor tem plena possibilidade para verificar a tempo se
os dados a seu respeito nas listas eleitorais são corretos e, se for necessário, pedir
para que sejam feitas as respectivas emendas. As listas são revistas c emendadas nas
vésperas das eleições, o que permite registrar c incorporar todos os eleitores.
Na União Soviética existem garantias reais para o sufrágio universal e os ci
dadãos soviéticos utilizam ativamente esses direitos. O abstencionismo, que é tão
comum em todos os países capitalistas, é totalmente alheio à sociedade soviética.
Por exemplo, em 1926 participaram nas eleições para os Sovietes das cidades e al
deias 50,8% dos eleitores,em 1929,63,5%,em 1931,72,1%,em 1934,85% eem
1937, 96%. A partir de 1939, em todas as eleições para os Sovietes participaram
mais de 99% dos eleitores. Portanto, hoje em dia praticamente toda a população
adulta do país participa nas eleições dos órgãos do poder estatal.
Um outro princípio do sistema eleitoral soviético é a igualdade de direitos elei
torais. lisse princípio é garantido no nosso país pois cada cidadão tem um só voto
e todos os cidadãos participam nas eleições em pé de igualdade. Um operário, col-
cosiano ou intelectual, um ministro ou simples empregado, um diretor de empresa
c uma dona de casa, um marechal e um soldado, todos podem eleger e ser eleitos
em pé dc igualdade para os Sovietes. A igualdade dc direitos eleitorais na União So
viética é garantida também pela igualdade de “peso” do voto de cada eleitor. Por
exemplo, as eleições para o Soviete da União, uma das câmaras do parlamento, rea
lizam-se nos círculos eleitorais. Este princípio consta na Constituição e o governo
não pode mudá-lo, aumentando artificialmente o número de mandatos concedidos
a uma região, ou diminuindo também artificialmente os mandatos de outra região.
Por isso, no nosso país são também impossíveis os casos, que se verificam nas elei
ções em alguns países, em que os círculos eleitorais são delimitados dc forma a vio
lar o princípio de igualdade do número de eleitores em cada círculo. Isso faz-se para
favorecer a eleição dos deputados que convém aos meios governantes. Por exem
plo, na França, os deputados de Lozère ou Ariège representam um número diferen
te dc eleitores do deputado de Paris. Porém, na União Soviética, o deputado de Mos
cou c o deputado de Vólogda representam o mesmo número dc eleitores. Isso
significa precisamente que o voto de um eleitor de Moscou é igual, quanto à sua
importância e “peso”, ao voto de um eleitor de Vólogda ou qualquer outra cidade
ou departamento.
Guiando-se pelos interesses dos eleitores, a Constituição soviética estabeleceu
o sistema de eleições diretas para todos os Sovietes, incluindo ambas as câmaras
do Soviete Supremo. Esse é o terceiro princípio importantíssimo do direito eleito
ral soviético. Devido ao sistema de eleições diretas, sem eleição de eleitores espe
ciais, o cidadão soviético decide livremente a quem se pode confiar a defesa dos
seus interesses pessoais e dos interesses nacionais nos órgãos do poder.
10 Leituras Complementares 335
O controle sobre a realização das eleições é exercido por representantes dos
círculos sociais do nosso país, unidos nas comissões eleitorais que sc formam em
cada seção ou círculo eleitoral. Estas comissões são compostas por representantes
eleitos nas reuniões gerais de operários, colcosianos, empregados, militares e repre
sentantes das organizações partidárias, sindicais, da Juventude Comunista e de ou
tras organizações sociais e associações dos trabalhadores. Milhões dc cidadãos par
ticipam ativamente na campanha eleitoral. Por exemplo, na campanha eleitoral de
1975, 9 milhões e 261 mil cidadãos soviéticos foram membros de 2 milhões e 260
mil comissões eleitorais. 61,5% dessas pessoas eram operários e colcosianos que
participam diretamente no processo de produção. Milhões de trabalhadores aju
dam ativamente as organizações sociais e os Sovietes na preparação das eleições e
na campanha eleitoral.
Na União Soviética, a campanha eleitoral realiza-se sob a direção do Partido
Comunista, que forma um bloco com os sem partido. Essa bloco sempre obteve a
vitória nas eleições; a sua base é a aliança estreita entre operários e camponeses e
a unidade política c moral da sociedade soviética.
Ao contrário de muitos países, na União Soviética não é hábito que o próprio
candidato apresente a sua candidatura.
Segundo a Constituição da URSS dc 1977 “Tem direito a apresentar candida
tos a deputados as organizações do Partido Comunista da União Soviética, dos sin
dicatos, da União da Juventude Comunista Leninista da URSS, as cooperativas e
outras organizações sociais e coletivas de trabalho; assim como as assembleias dos
militares nas unidades militares. É garantida aos cidadãos da URSS e às organiza
ções sociais a livre e minuciosa discussão das qualidades políticas, profissionais e
pessoais dos candidatos a deputados e também o direito a fazer propaganda nas
reuniões, na imprensa, pela televisão e pela rádio” (Art. 100). O Estado fornece gra
tuitamente aos trabalhadores e suas organizações todos os recursos materiais ne
cessários para esta propaganda e cria condições propícias. Na União Soviética não
pode ter lugar o fenômeno que se verifica em qualquer país burguês, onde um can
didato tem à sua disposição o sistema de televisão e outros meios dc propaganda
enquanto o outro não dispõe desses meios de agitação.
Pessoas que não conhecem o sistema eleitoral soviético perguntam frequente
mente porque é que a União Soviética há um só candidato nas eleições. Para res
ponder a essa pergunta é preciso conhecer antes de mais nada o sistema de apre
sentação de candidaturas.
A lei soviética não restringe o número de candidatos nos distritos eleitorais e
no país em geral. Diversas organizações sociais e reuniões dos cidadãos apresen
tam uma ou várias candidaturas para cada lugar de deputado.
A lei eleitoral e toda a prática das eleições permitem discutir de uma manei
ra livre e crítica, nessas reuniões, qualquer número de candidatos e a maioria dos
336 Teoria Geral do Estado
votos determina que candidatura será apresentada em nome de um determinado
coletivo.
Nessas reuniões, diversas candidaturas podem ser apresentadas tanto por ór
gãos locais das organizações sociais como por diversos cidadãos. A candidatura
apresentada discute-se por todas as pessoas presentes na reunião. Quando as can
didaturas propostas não recebem o devido apoio por parte dos trabalhadores pre
sentes na reunião, apresentam-se novas candidaturas. As candidaturas apresenta
das nas reuniões são amplamente discutidas pelos eleitores dos respectivos distritos
eleitorais.
Uma discussão multilateral e a escolha dos melhores entre os melhores - tal
é a tarefa e o princípio básico do processo de apresentação de candidatos a depu
tados aos Sovietes.
As organizações partidárias, sindicais, da Juventude Comunista e outras or
ganizações dos trabalhadores participam nas eleições não como concorrentes, mas
formam um bloco único. Depois da apresentação de candidatos a deputados nas
reuniões de trabalhadores, realizam-se conferencias regionais dos representantes
dessas reuniões. Nessas conferências cscolhc-se um candidato comum que deve re
presentar todas as organizações sociais dessa região. Os representantes dos traba
lhadores que participam nessas conferências regionais são eleitos nas reuniões
pré-eleitorais das organizações que apresentam candidatos a deputados e nas reu
niões em que se discutem as candidaturas já apresentadas. Portanto, na conferên
cia regional estão representados todos os candidatos e as organizações que os apre
sentaram. A conferência escolhe o mais digno entre os candidatos e recomenda a
inclusão do seu nome na lista eleitoral e o seu registro como candidato.
Está perfeitamente claro que nas condições da unidade moral e política da so
ciedade todos os candidatos seguem o mesmo programa eleitoral, o do bloco dos
comunistas e dos sem partido, que corresponde aos interesses de todo o povo. Nas
conferências eleitorais quando da análise das diversas candidaturas, não se discu
te se é mais conveniente a plataforma política deste ou daquele candidato; a aten
ção básica dedica-se às suas qualidades e capacidades pessoais. Esse sistema permi
te selecionar cuidadosamente os candidatos, dc forma a ter cm consideração a
opinião dos eleitores, e determina a unanimidade nas eleições.
Tal é a prática que se formou no decurso das campanhas eleitorais.
Cumpre assinalar, no entanto, que em 197.5, nas eleições para os Sovietes lo
cais, de acordo com propostas dos eleitores, numerosos candidatos foram elimina
dos já depois de terem sido registrados.
No estrangeiro afirmam frequentemente que uma vez que na União Soviética
nas cédulas eleitorais o nome de um só candidato, a sua eleição é garantida e que
no nosso país não existiriam, portanto, eleições. Será isso verdade? Nas condições
da democracia soviética reina efetivamente o espírito de coesão e a unanimidade
dos eleitores soviéticos não deve surpreender ninguém. Entretanto, a apresentação
10 Leituras Complementares 337
da candidatura de uma pessoa não significa de modo nenhum que ela seja eleita
obrigatoriamente. Eis um fato que comprova isso: nas eleições de junho de 1975
não foram eleitos 62 candidatos aos Sovietes de aldeias, 2 aos Sovietes de povoa
dos e 1 ao Soviete de região.
Uma das particularidades do sistema eleitoral soviético é o direito de revogar
o mandato dc um deputado. Se os eleitores consideram que o seu deputado não
corresponde à sua confiança, podem revogar em qualquer momento o seu manda
to e eleger um novo deputado.
O direito de revogar o mandato de um deputado foi concretizado e garanti
do praticamente pela Lei de 30 de outubro de 1959 sobre o regime de revogação
dos mandatos dos deputados do Soviete Supremo da URSS e por leis semelhantes
das repúblicas federadas. No preâmbulo da Lei de 30 de outubro de 1959 diz-se:
“O direito de revogar o mandato de um deputado, que é uma das bases da demo
cracia socialista estabelecida no Estado soviético cm conseqüência da Grande Re
volução Socialista de Outubro, é uma manifestação do poder dos trabalhadores e
uma garantia da responsabilidade real dos deputados perante os eleitores”.
O mandato pode ser revogado, em primeiro lugar, se o deputado não cumpre
as suas obrigações, isto é, se não justifica a confiança dos eleitores e, em segundo
lugar, se o deputado se comporta dc maneira indigna do seu alto título.
Numerosas organizações sociais e reuniões gerais dos trabalhadores, que têm
o direito de apresentar a candidatura de uma pessoa durante as eleições, têm tam
bém o direito de levantar a questão da revogação do seu mandato.
Os próprios eleitores resolvem a questão da revogação do mandato de um de
putado nas reuniões dos respectivos distritos eleitorais, convocadas por organiza
ções sociais nas empresas, instituições, colcoses, unidades das forças armadas e nas
localidades em que moram os eleitores. A decisão sobre a revogação do mandato
toma-se mediante votação aberta, tendo cada organização social e cada cidadão O
direito de fazer livremente agitação a favor ou contra a revogação do mandato do
deputado. Considera-se que o mandato do deputado está revogado se mais de 50%
dos eleitores do distrito votaram a favor da revogação. Depois, o Soviete marca a
data da eleição de um novo deputado.
A discussão aberta da revogação do mandato nas reuniões das organizações
sociais e nas reuniões dos trabalhadores nas empresas, organizações e instituições
não é apenas a condenação pública da pessoa que cometeu uma ação indecorosa,
mas também um ato de advertência que tem uma grande importância social e edu
cativa.
Para controlar a observância das regras estabelecidas pela lei sobre a votação
da revogação do mandato de um deputado e para determinar os resultados da vo
tação, são criadas nos respectivos distritos-eleitorais comissões regionais compostas
de representantes das organizações sociais e reuniões gerais dos trabalhadores.
338 Teoria Geral do Estado
Portanto, todo o processo de revogação do mandato de um deputado, desde
o momento em que sc levanta a respectiva questão até ao apuramento dos resulta
dos da votação, a discussão e a solução dessas questões, realiza-se com a participa
ção direta dos eleitores, coletivos de trabalhadores e organizações sociais.
Vejamos alguns exemplos concretos para que o leitor estrangeiro tenha uma
ideia mais clara a respeito da nossa prática.
Em 1974, os eleitores do terceiro distrito eleitoral da aldeia de Iurievskoie (re
gião de Ivanovo) revogaram o mandato do deputado do Soviete local Aleksei Go-
rokhov e elegeram em sua substituição Zoia Sizova, chefe da enfermaria local.
0 que foi que aconteceu?Nas reuniões realizadas durante a campanha eleitoral (tanto para os Sovietes
supremos como locais) os eleitores fazem aos seus candidatos recomendações em
que se manifestam as propostas e os desejos da maioria dos habitantes dessa re
gião. Muitas dessas recomendações dizem respeito a questões concretas: constru
ção dc hospitais c escolas, urbanização das cidades c aldeias, etc. Os Sovietes exa
minam estas recomendações logo nas suas primeiras sessões e inclucm-nas nos
planos do seu trabalho.
Gorokhov também recebeu recomendações dos seus eleitores que pediram,
em particular, que fosse levantada no Soviete da aldeia a questão da construção de
uma nova loja, que fosse conseguida a instalação de gás em todas as casas, etc. Go
rokhov não cumpriu essas recomendações. Além disso, não recebia os seus eleito
res nos dias e horas marcadas e não lhes prestava contas da sua atividade, embora
devesse fazê-lo, no mínimo, duas vezes por ano. Os habitantes da aldeia recorda
ram por várias vezes ao deputado as suas obrigações, mas a sua atitude não muda
va. Então, os eleitores resolveram revogar o seu mandato.
Segundo já dissemos, o direito de levantar a questão da revogação do man
dato de um deputado cabe, de acordo com a lei, às organizações sociais e reuniões
gerais de operários e empregados. No caso dc Aleksei Gorokhov esse direito foi uti
lizado pelos operários do sovkhoz (fazenda do Estado) que constituíam a maioria
dos eleitores dessa região. Eles realizaram uma reunião em que aprovaram um re
querimento ao comitê executivo do Soviete de lurievo sobre a revogação do man
dato de Gorokhov.
Eis um outro exemplo. No dia 24 de maio de 1974, o jornal Operário de Baku
noticiou a revogação do mandato do deputado Bairamov.
Nos últimos anos, na República Socialista Soviética Autônoma de Naquiche-
vão, foram construídas casas residenciais, cuja área total ultrapassou 75 mil me
tros quadrados, dezenas de escolas secundárias, jardins de infância, cinemas, esta
belecimentos comerciais e de serviços municipalizados. De ano para ano aumenta
o número de famílias que se mudam para novos apartamentos confortáveis. Mas
10 Leituras Complementares 339
por enquanto não se pode satisfazer completamente a necessidade de novas habi
tações, as pessoas devem esperar um certo tempo até chegar a sua vez para receber
novos apartamentos. A. Bairamov, presidente do comitê executivo do Soviete de
Deputados do Povo da cidade de Naquichcvão, resolveu aproveitar-sc disso. Aban
donou os trabalhos de urbanização c de criação de zonas verdes na cidade e a di
reção das seções do comitê executivo c começou a violar a ordem estabelecida dc
distribuição de habitação. No período da sua gestão, a lista dos cidadãos que de
veriam receber apartamentos imediatamente, sem esperar a sua vez, aumentou em
três vezes. Os novos apartamentos eram distribuídos entre pessoas cuja vez ainda
não tinha chegado e que, inclusive, nem sequer estavam nas respectivas listas. Im
portantes infrações da lei foram cometidas também no que diz respeito à troca de
apartamentos entre os cidadãos. O presidente do comitê executivo foi advertido de
que semelhantes ações eram inadmissíveis, mas não tirou daí devidas conclusões.
Então, a sessão do Soviete da cidade de Naquichcvão exonerou A. Bairamov do seu
cargo e os eleitores revogaram o seu mandato de deputado.
Acabamos dc analisar, portanto, dois exemplos concretos. O deputado Go-
rokhov não justificou as esperanças dos seus eleitores c por isso o seu mandato foi
revogado. O deputado Bairamov comctcu ações indignas do alto título de deputa
do c teve o mesmo destino.
São freqüentes os casos de revogação dos mandatos de deputados na União
Soviética?
Eis alguns números: no período de 1965 a 1973, os eleitores revogaram mais
de 4 mil mandatos de deputados aos Sovietes locais. A partir de 1959, quando foi
aprovada a lei sobre a revogação dos mandatos dos deputados ao Soviete Supre
mo da União Soviética, até 1975, foram revogados 11 mandatos. Em 1976, os elei
tores do distrito eleitoral de Rustavi, República Socialista Soviética da Geórgia, re
vogaram o mandato do seu deputado ao Soviete Supremo da URSS.
Portanto, o direito de revogar os mandatos não é de modo nenhum letra mor
ta, embora seja utilizado raramente, pois a grande maioria dos deputados soviéti
cos são dignos da alta missão que sc lhes confia.
25) S.l. KOVALIOV
História de Roma
(Madrid, Edicioncs Akal, s. d., p. 790-1.)
Tradução do autor.
340 Teoria Geral do Estado
Reconhec im ento do Cristianismo pelo im perador Constantino
Num único ponto Constantino se afastou da política de Diocleciano, qual seja,
naquilo referente ao Cristianismo. Não apenas legalizou a nova religião com o Edi
to de Milão, como também lhe reservou um lugar de primeiro plano no Estado, a
ponto de convertê-la, de fato, em religião oficial. Formalmente, o imperador se man
teve dentro do princípio da tolerância religiosa proclamada com o Edito; o culto
pagão não foi perseguido, seus ritos se mantiveram oficialmente junto às cerimô
nias cristãs.
Ao que parece, o próprio imperador quis ser batizado antes dc sua morte, em
bora aceitando, em vida, as honras divinas como encarnação de Helios (deus Sol);
todavia, Constantino era um político realista, que enxergava longe. Compreendeu
de imediato que o futuro pertencia ao Cristianismo. Percebeu claramente a força
que aquela pequena seita havia adquirido.
Continuador direto da obra de Diocleciano, após haver aperfeiçoado o novo
sistema de governo absoluto, buscava para este uma base ideológica. A nova mo
narquia deveria ser uma monaquia “pela graça de Deus”. Os antigos deuses do pan
teão romano não serviam mais para tal fim, pois tinham envelhecido.
O poder absoluto do único deus terreno, já despojado de toda ilusão republi
cana, não podia ser sancionado senão por este poder absoluto de 11111 único impe
rador celeste, que não podia ser outro que o Deus da religião cristã. Diante disto,
ainda que conservando oficialmente uma posição de tolerância religiosa, protegeu,
de fato, o Cristianismo. Deu à Igreja cristã maiores privilégios e tomou parte ativa
nas controvérsias que surgiram no seu seio.
O clero cristão foi liberado das prestações pessoais, recebeu o direito de jul
gar os assuntos eclesiásticos; as comunidades cristãs obtiveram personalidade jurí
dica (direito de receber heranças, possuir bens, comprar, liberar escravos etc.).
Constantino presidiu o Concilio de Niceia, reunidos para julgar a heresia de
Arrio, pôs em prática, energicamente, as decisões do colegiado, e educou seus filhos
no espírito da religião cristã.
Assim, o antigo Estado moribundo reconheceu como um de seus fundamen
tos a nova religião. A pequena seita secreta se transformara, em dois séculos, 11a
força social mais poderosa.
DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATIVA
1) CONVOCAÇÃO DA ASSEMBLEIA GERAL CONSTITUINTE E LEGISLATIVA1
Decreto de 3 de junho de 1822
Havendo-Me representado os Procuradores-Gerais de algumas Províncias do
Brasil já reunidos nesta Corte, e diferentes Câmaras, e Povo de outras, o quanto
era necessário e urgente para a mantença da Integridade da Monarquia Portugue
sa e justo decoro do Brasil a Convocação de uma Assembleia Luso-Brasiliense, que
investida naquela porção de Soberania, que essencialmente reside no Povo deste
grande e riquíssimo Continente, constitua as bases sobre que se devam erigir a sua
Independência, que a Natureza marcara e de que já estava de posse, e a sua União
com todas as outras partes integrantes da Grande Família Portuguesa, que cor
dialmente deseja: E Reconhecendo Eu a verdade e a força das razões, que Me fo
ram ponderadas, nem vendo outro modo de assegurar a felicidade deste Reino,
manter uma justa igualdade de direitos entre ele, e o de Portugal, sem perturbar a
Paz, que tanto convém a ambos, e tão própria é de Povos Irmãos. Hei por bem, e
com o parecer do Meu Conselho d'Estado, Mandar convocar uma Assembleia Ge
ral Constituinte e Legislativa, composta de Deputados das Províncias do Brasil no
vamente eleitos na forma das instruções, que em Conselho se acordarem, e que se
rão publicadas com a maior brevidade. José Bonifácio dc Andrade e Silva, do Meu
Conselho d’Estado, e do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima El-Rei o Senhor
D. João Sexto, e Meu Ministro e Secretário d’Estado dos Negócios do Reino do
1 RODRIGUES, José Honório. A Assembleia Constituinte de 1823, Petrópolis, Vozes, 1974.
341
342 Teoria Geral do Estado
Brasil c Estrangeiros, o tenha assim entendido, e o faça executar com os despachos
necessários.
Paço, 3 dc junho de 1822.
Com a Rubrica dc S. A. R. o PRÍNCIPE REGENTE.
José Bonifácio de Andrade e Silva
2) DISSOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA GERAL CONSTITUINTE E LEGISLATIVA2
Decreto de 12 de novembro de 1823
HAVENDO EU Convocado, como Tinha direito de Convocar, a Assembleia
Geral, Constituinte e Legislativa, por Decreto de três de junho do ano próximo pas
sado, a fim de salvar o Brasil dos perigos que lhe estavam iminentes; e havendo esta
Assembleia perjurado ao tão solene juramento que prestou à Nação de defender a
integridade do Império, sua Independência c a Minha Dinastia:
Hei por bem, como Imperador e Defensor Perpétuo do Brasil, Dissolver a mes
ma Assembleia e convocar já uma outra na forma das Instruções, feitas para a con
vocação desta, que agora acaba; a qual deverá trabalhar sobre o Projeto de Cons
tituição, que Eu lhe Hei de em breve Apresentar; que será duplicadamente mais
liberal, do que o que a extinta Assembleia acabou de fazer.
Os Meus Ministros e Secretários de Estado de todas as diferentes Repartições
o tenham assim entendido e façam executar a bem da Salvação do Império.
Paço, 12 de novembro de 1823, 2° da Independência e do Império.
Com a Rubrica de SUA MAJESTADE IMPERIAL.
Clemente Ferreira França, José de Oliveira Barbosa
3) DECRETO N. 13, DE NOVEMBRO DE 1823
Tendo chegado ao Meu Conhecimento, que por desvio do generoso sentido
das expressões com que se qualificara de perjura a Assembleia Legislativa do Bra
sil no Decreto da data de ontem, que a dissolveu, se interpretavam aquelas expres
sões como compreensivas da totalidade da Representação Nacional: e Desejando
Eu que se conheça que jamais Confundi os dignos Representantes do generoso Povo
Brasileiro com a conhecida facção que dominava aquele Congresso:
Hei por bem Declarar, que Fazendo a justa distinção entre os beneméritos,
que sempre tiveram em vista o bem do Brasil, e os facciosos que anelavam vingan
ças, ainda à custa dos horrores da anarquia, só estes se compreendem naquela in-
2 r o d r ig u f .s , José Honório. Op. cit.
11 Documentação histórico-legislativa 343
crepação, como motores, por sua preponderância, dos males que se propunham
derramar sobre a Pátria.
Os Meus Ministros e Secretários de Estado o tenham assim entendido e fa
çam publicar.
Palácio do Rio de Janeiro, cm 13 de novembro dc 1823,
2o da Independência e do Império.
Com a Rubrica de SUA MAJESTADE IMPERIAL.
Clemente Ferreira França
4) PROCLAMAÇÃO DE D. PEDRO I3
BRASILEIROS! Uma só vontade Nos una. Continuemos a salvar a Pátria. O vos
so Imperador, o vosso Defensor Perpétuo vos ajudará, como ontem fez, e como sem
pre tem feito, ainda que exponha sua vida. Os desatinos de homens alucinados pela
soberba c ambição Nos iam precipitando no mais horroroso abismo. É mister, já que
estamos salvos, sermos vigilantes, qual Argos. As bases que devemos seguir c susten
tar para Nossa felicidade são - Independência do Império, Integridade do mesmo, c
Sistema Constitucional - Sustentando Nós estas três bases sem rivalidades, sempre
odiosas, sejam porque lado encaradas, e que são as alavancas (como acabastes de ver)
que poderiam abalar este colossal Império, nada mais temos que temer. Estas verda
des são inegáveis, vós bem as conheceis pelo vosso juízo e desgraçadamente as leis co
nhecendo melhor pela anarquia. Se a Assembleia não fosse dissolvida, seria destruída
a Nossa Santa Religião e Nossas vestes seriam tintas em sangue. Está convocada nova
Assembleia. Quanto antes ela se unirá para trabalhar sobre um Projeto de Constitui
ção, que em breve vos Apresentarei. Se possível fosse, Eu estimaria, que ele se confor
masse tanto com as vossas opiniões, que Nos pudesse reger (ainda que provisoriamen
te) como Constituição. Ficai certos que o vosso Imperador a única ambição que tem
é dc adquirir cada vez mais glória, não só para si, mas para vós, e para este grande Im
pério, que será respeitado do Mundo inteiro. As prisões agora feitas serão pelos ini
migos do Império consideradas despóticas. Não são. Vós vedes que são medidas dc
Polícia, próprias para evitar a anarquia e poupar as vidas desses desgraçados, para
que possam gozar ainda tranquilamente delas, e Nós de sossego. Suas famílias serão
protegidas pelo Governo. A salvação da Pátria, que Me está confiada, como Defensor
Perpétuo do Brasil e que é a Suprema Lei, assim o exige. Tende confiança em Mim, as
sim como Eu a Tenho em vós, e vereis os Nossos inimigos internos e externos supli
carem à Nossa indulgência. União e mais União, Brasileiros, quem aderiu a Nossa Sa
grada Causa, quem jurou a Independência deste Império é Brasileiro.
IMPERADOR
3 RODRiGUF.s, José Honório. Op. cit.
344 Teoria Geral do Estado
5) MANIFESTO DE S.M. 0 IMPERADOR AOS BRASILEIROS4
A PROVIDÊNCIA, que vigia pela estabilidade e conservação dos Impérios, ti
nha permitido nos seus profundos desígnios, que, firmada a Independência do Bra
sil, unidas todas as suas Províncias, ainda as mais remotas, continuasse este Império
na marcha progressiva da sua consolidação e prosperidade. A Assembleia Consti
tuinte e Legislativa trabalhava com assiduidade, discernimento e atividade para for
mar uma Constituição, que solidamente plantasse c arraigasse o Sistema Constitu
cional neste vastíssimo Império. Sobre esta inabalável base se erguia c firmava o
edifício Social, c era tal o juízo que sobre a Nação Brasileira formavam os Estrangei
ros, que as principais Potências da Europa reconheceriam mui brevemente a Inde
pendência do Império do Brasil, e até ambicionariam travar com ele Relações Polí
ticas e Comerciais. Tão brilhante perspectiva, que nada parecia poder escurecer, foi
ofuscada por súbita borrasca que enlutou o nosso Horizonte. O gênio do mal inspi
rou danadas tensões a espíritos inquietos e mal intencionados e soprou-lhes nos âni
mos o fogo da discórdia. De tempos a esta parte começou a divisar-se e a conhecer-se
que não havia em toda a Assembleia uniformidade dos verdadeiros princípios que
formam os Governos Constitucionais e a harmonia dos poderes divididos que faz a
sua força moral e física, começou a estremecer. Diversos e continuados ataques ao
Poder Executivo, sua condescendência a bem da mesma harmonia enervaram a for
ça do Governo e o foram surdamente minando. Foi crescendo o espírito dc desunião;
derramou-se o fel da desconfiança; sorrateiramente foram surgindo partidos c, dc
súbito, apareceu e ganhou força uma facção desorganizadora que começou a ater
rar os ânimos dos Varões probos, que levados só do zelo do bem público e do mais
acrisolado amor da Pátria, tremiam de susto à vista de futuros perigos que previam
e se lhes antolhavam. Entanto os que premeditavam e maquinavam planos subver
sivos e úteis aos seus fins sinistros, ganhavam uns de boa-fé e ingênuos com as lison
jeiras ideias de firmar mais a liberdade, esse ídolo sagrado sempre desejado e as mais
das vezes desconhecido; outros com a persuassão de que o Governo se ia manhosa
mente tornando despótico, e alguns, talvez com promessas vantajosas, exageradas
em suas gigantescas imaginações; chegando até à malignidade de inculcarem como
abraçado o pérfido e insidioso Projeto de união com o Governo Português.
Forjados os Planos, arranjados e endereçados os meios de realizá-los; aplai
nadas as dificuldades que supuseram estorvar-lhes as veredas, cumpria que se veri
ficasse o Desígnio concebido, e havia tempo premeditado.
Um dos meios escolhido como seguro era semear a discórdia entre os Cida
dãos nascidos no Brasil e em Portugal, já por meio de Periódicos, escritos com ma
nhoso artifício e virulência, procurando destruir a força moral do Governo e amea
4 r o d r ig u f .s , José Honório. Op. cit.
11 Documentação histórico-legislativa 345
çar a Minha Imperial Pessoa, com os exemplos de Iturbide e de Carlos I, e já por
meio de Emissários que sustentassem e propagassem tão sediciosos princípios.
Disposta assim a fermentação de que devia brotar o vulcão revolucionário,
procurou a Facção, que sc havia feito preponderante na Assembleia, scrvir-sc para
o fatal rompimento de um requerimento do Cidadão David Pamplona, inculcado
Brasileiro dc nascimento, sendo aliás natural das Ilhas Portuguesas, que a ela se
queixava de umas pancadas que lhe deram dois Oficiais Brasileiros, mas nascidos
em Portugal, e que pelo Parecer de uma Comissão se entendia que o mesmo devia
recorrer aos meios ordinários. De antemão e com antecipação a mais criminosa, se
convidaram pelos Chefes daquela tremenda facção, e por meio de seus sequazes,
pessoas do Povo, que armados de punhais e pistolas lhes servissem de apoio, incu
tindo terror aos ilustres, honrados e dignos Deputados da mesma Assembleia, que
fiéis ao juramento prestado, só pretendiam satisfazer à justa confiança que neles
pusera a nobre Nação Brasileira, c folgavam de ver mantida a tranqüilidade neces
sária para as deliberações.
Neste malfadado dia haveriam cenas trágicas e horrorosas, sc ouvindo grita-
rias c apoiados tão extraordinários, como escandalosos, o Ilustre Presidente com
prudência vigilante c amestrada não levantasse a Sessão, pondo assim termo aos
males que rebentariam com horrível estampido de tamanho vulcão, fermentado da
fúria dos partidos, do ódio nacional, da sede de vingança e da mais hidrópica am
bição: tanto era de esperar, até por ser grande o número de pessoas, que dentro e
fora da Assembleia estavam dispostas a sustentar os Projetos da terrível facção; e
tanto se devia temer até da grande quantidade de armas, que com profusão se ven
deram na Cidade nos dias antecedentes e da escandalosa aclamação, com que fo
ram recebidos e exaltados pelos seus satélites os chefes do nefando partido, quan
do saíram da Assembleia a despeito da Minha Imperial Presença.
Renovou-se no dia imediato esta cena perigosa. Veementes e virulentos dis
cursos dos que pertenciam à referida facção continuaram a soprar o fogo da dis
córdia, c muitos dos seus apaniguados nas Galerias da Assembleia e fora, protege
riam os resultados horríveis que eram conseqüência certa dos planos premeditados.
A este fim se pretendeu c conseguiu ficar a Sessão permanente com o especioso pre
texto de que não convinha levantá-la sem estar restabelecida a tranqüilidade. Para
esta se conseguir, já Eu tinha mandado marchar toda a Tropa e ajuntá-la no Cam
po de S. Cristóvão, com o justo desígnio de deixar a Assembleia em perfeita liber
dade; e fiz depois participar à mesma Assembleia esta deliberação, para que tomas
se em consideração os motivos justificados dela e quanto convinha providenciar
sobre medidas positivas e terminantes ao restabelecimento da tranqüilidade. Estas
se não tomaram, e continuou-se a discutir com o mesmo calor e protérvia e com
exageraçâo de pretextos especiosos se pretendia a ruína da Pátria, sendo o primei
ro e certo alvo a Minha Augusta Pessoa, que a este fim foi desacatada por todos os
modos, que a calúnia e a malignidade podiam sugerir.
346 Teoria Geral do Estado
Não parou só o furor revolucionário neste desatinado desacato. Passou-se
avante e pretenderam-se restringir em demasia as atribuições que competem pela
essência dos Governos Representativos ao Chefe do Poder Executivo e que Me ha
viam sido conferidas pela Nação como Imperador Constitucional c Defensor Per
petuo do Brasil; chegou-se ate o excesso de haverem moções de que se devia reti
rar toda ou uma grande parte da Tropa para longe desta Cidade, ficando por este
modo o Governo sem o necessário vigor e energia.
A demora das decisões sempre perigosa em casos apertados e que afinal seria
fatal à vista do triste quadro, que vem de desenhar-se; a horrível perspectiva dos
acontecimentos que estavam iminentes; a desesperação de uns, o orgulho e fanatis
mo político dc outros; os sustos e temores de todos os Cidadãos pacíficos; a ima
gem da Pátria em perigo e o medo da ruína e subversão do Estado exigiam impe
riosamente providências tão prontas como eficazes, únicas capazes de operar
prontos e felizes resultados.
E qual poderia ser o de que se podia lançar mão em tão árdua e arriscada cri
se? Qual o que servindo dc dique à torrente revolucionária sustivcsse o embate da
farça de suas ondas e as paralisasse dc todo? Nenhum outro era óbvio, nem tão po
deroso como o da dissolução da Assembleia. Este e o da demissão dos Ministros
são os preservativos das desordens públicas nas Monarquias Constitucionais; este
estava posto em práticca, e não havia já outro recurso mais, do que fazer executar
o primeiro, posto que com sumo desgosto e mágoa do Meu Imperial Coração. Por
tão ponderosos motivos, pela urgente necessidade de salvar a Pátria; que é a Supre
ma Lei e que justifica medidas extremas em casos de maior risco, Mandei dissolver
a Assembleia pelo Decreto de 12 do corrente, Ordenando no mesmo a convocação
de uma outra, como é Direito Público Constitucional, com que muito desejo e fol
go de conformar-me.
Neste mesmo Decreto, e no de 13 que o declarou e ampliou se dão irrefragá-
veis provas da forçosa necessidade, porque lancei mão de tão forte meio e de quan
to desejo e quero restabelecer o Sistema Constitucional, único, que pode fazer a fe
licidade deste Império e o que foi proclamado pela Nação Brasileira. Se tão árduas
e arriscadas circunstâncias Me obrigaram a pôr cm prática um remédio tão violen
to, cumpre observar, que males extraordinários exigem medidas extraordinárias, e
que é de esperar e crer que nunca mais serão necessárias. Certos os Povos de todas
as Províncias da Minha Magnanimidade e princípios Constitucionais e de quanto
Sou empenhado em promover a felicidade e tranqüilidade Nacional, sossegarão da
comoção causada por este acontecimento desastroso, que tanto Me penalizou tam
bém, e continuarão a gozar da paz, tranqüilidade e prosperidade, que a Constitui
ção afiança e segura.
Rio, 16 de novembro de 1823.
IMPERADOR
11 Documentação histórico-legislativa 347
6) PROCLAMAÇAO DO GOVERNO PROVISORIO, EM 15 DE NOVEMBRO DE 1889
“ Concidadãos:
O povo, o exército e a armada nacional, em perfeita comunhão de sentimen
tos com os nossos concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a de
posição da dinastia imperial e consequentemente a extinção do sistema monárqui
co representativo.
Como resultado imediato desta revolução nacional, dc caráter essencialmen
te patriótico, acaba de ser instituído um governo provisório, cuja principal missão
é garantir com a ordem pública a liberdade c o direito do cidadão.
Para comporem este governo, enquanto a nação soberana, pelos seus órgãos
competentes, não proceder à escolha do governo definitivo, foram nomeados pelo
chefe do Poder Executivo da nação os cidadãos abaixo assinados.
Concidadãos!
O governo provisório, simples agente temporário da soberania nacional, é o
governo da paz, da liberdade, da fraternidade e da ordem.
No uso das atribuições e faculdades extraordinárias de que se acha investido
para a defesa da integridade da pátria e da ordem pública, o governo provisório
por todos os meios ao seu alcance promete e garante a todos os habitantes do Bra
sil, nacionais e estrangeiros, a segurança da vida e da propriedade, o respeito aos
direitos individuais e políticos, salvas, quanto a estes, as limitações exigidas pelo
bem da pátria e pela legítima defesa do governo proclamado pelo povo, pelo exér
cito e pela armada nacionais.
Concidadãos!
As funções da justiça ordinária, bem como as funções da administração civil
e militar, continuarão a ser exercidas pelos órgãos até aqui existentes, com relação
aos atos na plenitude dos seus efeitos; com relação às pessoas, respeitadas as van
tagens e os direitos adquiridos por cada funcionário.
Fica, porém, abolida, desde já, a vitaliciedade do senado, e bem assim aboli
do o conselho de estado. Fica dissolvida a câmara dos deputados.
Concidadãos!
O governo provisório reconhece e acata todos os compromissos nacionais
contraídos durante o regime anterior, os tratados subsistentes com as potências es
trangeiras, a dívida pública externa e interna, os contratos vigentes e mais obriga
ções legalmente estatuídas.
Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do governo provisório.
Aristides da Silveira Lobo, ministro de interior.
Ruy Barbosa, ministro da fazenda e interinamente da justiça.
Tenente-coronel Benjamin Constant Botelho de Magalhães, ministro da guerra.
Chefe de esquadra Eduardo Wandenkolk, ministro da marinha.
348 Teoria Geral do Estado
Quintino Bocayuva, ministro das relações exteriores e interinamente da agri
cultura, comércio e obras públicas.”
7) DECRETO N. 1, DE 15 DE NOVEMBRO DE 1889
Proclama provisoriamente e decreta como forma
de governo da Nação Brasileira a República Federativa,
e estabelece as normas pelas quais se devem reger os Estados Federais/
O Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil decreta:
Art. 1° Fica proclamada provisoriamente e decretada como a forma de gover
no da nação brasileira - a República Federativa.
Art. 2o As províncias do Brasil, reunidas pelo laço da federação, ficam cons
tituindo os Estados Unidos do Brasil.
Art. 3o Cada um desses Estados, no exercício de sua legítima soberania, de
cretará oportunamente a sua constituição definitiva, elegendo os seus corpos dcli-
berantes c os seus governos locais.
Art. 4° Enquanto, pelos meios regulares, não se proceder à eleição do Con
gresso Constituinte do Brasil e bem assim à eleição das legislaturas de cada um dos
listados, será regida a nação brasileira pelo Governo Provisório da República; e os
novos Estados pelos Governos que hajam proclamados ou, na falta destes, por go
vernadores delegados do Governo Provisório.
Art. 5° Os governos dos Estados federados adotarão com urgência todas as pro
vidências necessárias para a manutenção da ordem e da segurança pública, defesa e
garantia da liberdade dos direitos dos cidadãos quer nacionais, quer estrangeiros.
Art. 6° Em qualquer dos Estados, onde a ordem pública for perturbada e onde
faltem ao governo local meios eficazes para reprimir as desordens e assegurar a paz
e tranqüilidade públicas, efetuará o Governo Provisório a intervenção necessária
para, com o apoio da força pública, assegurar o livre exercício dos direitos dos ci
dadãos e a livre ação das autoridades constituídas.
Art. 7° Sendo a República Federativa Brasileira a forma de governo procla
mada, o Governo Provisório não reconhece nem reconhecerá nenhum governo lo
cal contrário à forma republicana, aguardando, como lhe cumpre, o pronunciamen
to definitivo do voto da Nação, livremente expressado pelo sufrágio popular.
Art. 8° A força pública regular, representada pelas três armas do exército e
pela armada nacional, de que existam guarnições ou contingentes nas diversas pro-
5 A expressão “Estados Federais” constante da ementa não é das mais felizes. Melhor seria “Estados-
Membros”.
Na verdade, os estados-membros não possuem soberania, mas sim autonomia, que é o poder jurí
dico de criar suas próprias leis [autos: por si só, e tiomos: normas), poder este, contudo, submetido
ao que determina a Constituição Federal. Veja a respeito o art. 13 da CF vigente.
11 Documentação histórico-legislativa 349
víncias, continuará subordinada e exclusivamente dependente do Governo Provi
sório da República, podendo os governos locais, pelos meios ao seu alcance, decre
tar a organização de uma guarda cívica destinada ao policiamento do território de
cada um dos novos Estados.
Art. 9o Ficam igualmente subordinadas ao Governo provisório da República
todas as repartições civis e militares ate aqui subordinadas ao governo central da
nação brasileira.
Art. 10. O território do Município Neutro fica provisoriamente sob a admi
nistração imediata do Governo Provisório da República e a cidade do Rio de Ja
neiro constituída, também, provisoriamente, sede do poder federal.
Art. 11. Ficam encarregados da execução deste decreto, na parte que a cada
um pertença, os secretários de Estado das diversas repartições ou ministérios do
atual Governo Provisório.
Sala das sessões do Governo Provisório, 15 de novembro de 1889,
primeiro da República.
Marechal Manuel Deodoro da Fonseca
Chefe do Governo Provisório
S. Lobo / Rui Barbosa / Q. Bocaiúva
Benjamin Constant / Wandenkolk Correia
8) DECRETO N. 119-A, DE 7 DE JANEIRO DE 1890
Proíbe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados
em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de culto,
extingue o padroado, e estabelece outras providências.
O Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório da
República dos Estados Unidos do Brasil, constituído pelo Exército e Armada, em
nome da Nação, decreta:
Art. I o É proibido à autoridade federal, assim como à dos Estados Federados,
expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião,
ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sus
tentados à custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões filosóficas ou
religiosas.
Art. 2° A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exer
cerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos atos
particulares ou públicas, que interessem o exercício deste decreto.
350 Teoria Geral do Estado
Art. 3o A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos nos atos in
dividuais, senão também as igrejas, associações e institutos em que se acharem agre-
miados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem coletivamen
te, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do poder público.
Art. 4o Fica extinto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prer
rogativas.
Art. 5o A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade
jurídica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis
concernentes à propriedade de mão-morta, mantendo-se a cada uma o domínio de
seus haveres atuais, bem como dos seus edifícios de culto.
Art. 6° O Governo Federal continua a prover à côngrua, sustentação dos atuais
serventuários do culto católico e subvencionará por um ano as cadeiras dos semi
nários ficando livre a cada Estado o arbítrio de manter os futuros ministros desse
ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos antecedentes.
Art. 7° Revogam-se as disposições em contrário.
Salas das sessões do Governo Provisório,
7 dc janeiro de 1890, 2° da República.
Manoel Deodoro da Fonseca / Aristides da Silveira Lobo
Ruy Barbosa / Benjamin Constant Botelbo de Magalhães
Eduardo Wandenkolk / M. Ferraz de Campos Salles
Demetrio Nunes Ribeiro / Q. Bocayuva
9) DECRETO N. 19.398, DE 11 DE NOVEMBRO DE 19306
Institui o Governo Provisório da República dos
Estados Unidos do Brasil, e dá outras providências.
O Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil
decreta:
Art. I o O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua ple
nitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como também do Po
der Legislativo, até que, eleita a Assembleia Constituinte, estabeleça esta a reorga
nização constitucional do país.
Parágrafo único. Todas as nomeações e demissões de funcionários ou de quais
quer cargos públicos, quer sejam efetivos, interinos ou em comissão, competem ex
clusivamente ao Chefe do Governo Provisório.
6 DOU, de 12 .11.1930.
11 Documentação histórico-legislativa 351
Art. 2o É confirmada, para todos os efeitos, a dissolução do Congresso Na
cional, das atuais Assembléias Legislativas dos Estados (quaisquer que sejam as
suas denominações), Câmaras ou assembleias municipais e quaisquer outros ór
gãos legislativos ou deliberativos, existentes nos Estados, nos municípios, no Dis
trito Federal ou Território do Acre, c dissolvidos os que ainda o não tenham sido
dc fato.
Art. 3o O Poder Judiciário Federal, dos Estados, do Território do Acre e do
Distrito Federal continuará a ser exercido na conformidade das leis em vigor, com
as modificações que vierem a ser adotadas de acordo com a presente lei e as restri
ções que desta mesma lei decorrerem desde já.
Art. 4° Continuam em vigor as Constituições Federal e Estaduais, as demais
leis e decretos federais, assim como as posturas e deliberações e outros atos muni
cipais, todos, porém, inclusive as próprias constituições, sujeitas às modificações e
restrições estabelecidas por esta lei ou por decreto ou atos ulteriores do Governo
Provisório ou de seus delegados, na esfera de atribuições de cada um.
Art. 5o Ficam suspensas as garantias constitucionais c excluída a apreciação
judicial dos decretos e atos do Governo Provisório ou dos interventores federais,
praticados na conformidade da presente lei ou de suas modificações ulteriores.
Parágrafo único. É mantido o habeas corpus cm favor dos réus ou acusados
em processos de crimes comuns, salvo os funcionais e os da competência de tribu
nais especiais.
Art. 6o Continuam em inteiro vigor e plenamente obrigatórias todas as rela
ções jurídicas entre pessoas de Direito Privado, constituídas na forma da legislação
respectiva e garantidos os respectivos direitos adquiridos.
Art. 7° Continuam em inteiro vigor, na forma das leis aplicáveis, as obriga
ções e os direitos resultantes de contratos, de concessões ou outras outorgas, com
a União, os Estados, os municípios, o Distrito Federal e o Território do Acre, salvo
os que, submetidos a revisão, contravenham ao interesse público e à moralidade
administrativa.
Art. 8° Não se compreendem nos arts. 6° e 7o c poderão ser anulados ou res
tringidos, colctiva ou individualmente, por atos ulteriores, os direitos até aqui re
sultantes de nomeações, aposentadorias, jubilações, disponibilidade, reformas, pen
sões ou subvenções e, em geral, de todos os atos relativos a emprego, cargos ou
ofícios públicos, assim como do exercício ou o desempenho dos mesmos, inclusi
ve, e, para todos os efeitos, os da magistratura, do Ministério Público, ofícios de
Justiça e quaisquer outros, da União Federal, dos Estados, dos municípios, do Ter
ritório do Acre e do Distrito Federal.
Art. 9° É mantida a autonomia financeira dos Estados e do Distrito Federal.
Art. 10. São mantidas em pleno vigor todas as obrigações assumidas pela
União Federal, pelos Estados e pelos municípios, em virtude de empréstimos ou de
quaisquer operações de crédito público.
352 Teoria Geral do Estado
Art. 11 .0 Governo Provisório nomeará um interventor federal para cada Es
tado, salvo para aqueles já organizados, em os quais ficarão os respectivos presi
dentes investidos dos poderes aqui mencionados.
§ I o O interventor terá, em cada Estado, os proventos, vantagens e prerroga
tivas, que a legislação anterior do mesmo Estado confira ao seu presidente ou go
vernador, cabendo-lhe exerccr, em toda plenitude, não só o Poder Executivo como
também o Poder Legislativo.
§ 2° O interventor terá, em relação à Constituição e leis estaduais, delibera
ções, posturas e atos municipais, os mesmos poderes que por esta lei cabem ao Gover
no Provisório, relativamente à Constituição e demais leis federais, cumprindo-lhe
executar os decretos e deliberações daquele no território do Estado respectivo.
§ 3o O interventor federal será exonerado a critério do Governo Provisório.
§ 4o O interventor nomeará um prefeito para cada município, que exercerá aí
todas as funções executivas e legislativas, podendo o interventor exonerá-lo quan
do entenda conveniente, revogar ou modificar qualquer dos seus atos ou resoluções
e dar-lhe instruções para o bom desempenho dos cargos respectivos e regulariza
ção c cficicncia dos serviços municipais.
§ 5° Nenhum interventor ou prefeito nomeará parente seu, consanguíneo ou
afim, até o sexto grau, para cargo público no Estado ou município, a não ser um
para cargo de confiança pessoal.
§ 6° O interventor e o prefeito, depois de regularmente empossados, ratifica
rão expressamente ou revogarão os atos ou deliberações que eles mesmos, antes de
sua investidura, de acordo com a presente lei, ou quaisquer outras autoridades, que
anteriormente tenham administrado de fato o Estado ou o município, hajam pra
ticado.
§ T Os interventores e prefeitos manterão, com a amplitude que as condições
locais permitirem, regime de publicidade dos seus atos e dos motivos que os deter
minarem, especialmente no que se refira à arrecadação e aplicação dos dinheiros
públicos, sendo obrigatória a publicação mensal do balancete da Receita e da Des
pesa.
§ 8o Dos atos dos interventores haverá recurso para o Chefe do Governo Pro
visório.
Art. 12. A nova Constituição Federal manterá a forma republicana federati
va e não poderá restringir os direitos dos municípios e dos cidadãos brasileiros e
as garantias individuais constantes da Constituição de 24 de fevereiro de 1891.
Art. 13. O Governo Provisório, por seus auxiliares do Governo Federal e pe
los interventores nos Estados, garantirá a ordem e segurança pública, promoven
do a reorganização geral da República.
Art. 14. Ficam expressamente ratificados todos os atos da Junta Governativa
Provisória, constituída nesta Capital aos 24 de outubro último, e os do Governo
atual.
11 Documentação histórico-legislativa 353
Art. 15. Fica criado o Conselho Nacional Consultivo, com poderes e atribui
ções que serão regulados em lei especial.
Art. 16. Fica criado o Tribunal Especial para processo e julgamento de crimes
políticos, funcionais c outros que serão discriminados na lei da sua organização.
Art. 17. Os atos do Governo Provisório constarão dc decretos expedidos pelo
Chefe do mesmo Governo c subscritos pelo ministro respectivo.
Art. 18. Revogam-se todas as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1930,
109° da Independência e 42° da República.
GETULIO VARGAS
Oswaldo Aranha / José Maria Whitaker
Paulo de Moraes Barros / Afranio de Mello Franco
José Fernandes Leite de Castro / José Isaias de Noronha
10) DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM, APROVADA NA ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, DE 10 DE DEZEMBRO DE 1948
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos membros
do gênero humano, e de seus direitos iguais e inalienáveis, é o fundamento da li
berdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resul
taram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que o ad
vento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença
e da liberdade de viverem a salvo do medo e da necessidade, foi proclamado como
a mais alta aspiração do homem comum,
Considerando essencial que os direitos do homem sejam protegidos pela lei,
a fim de que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra
a tirania e a opressão,
Considerando indispensável promover o desenvolvimento de relações amis
tosas entre as nações,
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé
nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana,
e na igualdade de direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o pro
gresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em
cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades
fundamentais do homem e a observância desses direitos e liberdades,
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da
mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso.
354 Teoria Geral do Estado
A ASSEMBLEIA-GERAL
proclama
A presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como o ideal co
mum a scr atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que
cada indivíduo c cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declara
ção, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses
direitos e liberdades, e pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e
internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais
e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os
povos dos territórios sob sua jurisdição.
Artigo I. Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espí
rito de fraternidade.
Artigo II. 1 - Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liber
dades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem na
cional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2 - Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política,
jurídica ou internacional do país ou território a que pertença independente, sob tu
tela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.
Artigo III. Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pes
soal.
Artigo IV. Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e
o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo V. Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo
cruel, desumano ou degradante.
Artigo VI. Todo homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconheci
do como pessoa perante a lei.
(3)
Artigo VIL Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção,
a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discri
minação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal dis
criminação.
Artigo VIII. Todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais com
petentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe
sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo IX. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo X. Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e públi
ca audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir dc
11 Documentação histórico-legislativa 355
seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra
ele.
Artigo XI. 1. Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser
presumido inocente ate que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com
a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garan
tias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no mo
mento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também
não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era
aplicável ao ato delituoso.
Artigo XII. Ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada, na sua
família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e repu
tação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ata
ques.
Artigo XIII. 1. Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residên
cia dentro das fronteiras dc cada Estado.
2. Todo homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e
a este regressar.
Artigo XIV. 1. Todo homem vítima de perseguição, tem o direito de procurar
e de gozar asilo em outros países.
2. Este direito não pode ser invocado em casos de perseguição legitimamente
motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e prin
cípios das Nações Unidas.
Artigo XV. l.Todo homem tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade nem do direi
to de mudar de nacionalidade.
Artigo XVI. 1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição
de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar
uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua
dissolução.
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos
nubentes.
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à pro
teção da sociedade e do Estado.
Artigo XVII. 1. Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade
com outros.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
Artigo XVIII. Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciên
cia e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a li
berdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto
e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
356 Teoria Geral do Estado
Artigo XIX. Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este
direito inclui a liberdade de, sem interferências ter opiniões e dc procurar, receber
e transmitir informações e ideias por quaisquer meios independentemente de fron
teiras.
Artigo XX. 1. Todo homem tem direito à liberdade de reunião c associação
pacíficas.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
Artigo XXI. 1. Todo homem tem direito de tomar parte no Governo de seu
país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Todo homem tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. A vontade do povo será a base da autoridade do Governo; esta vontade
será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto
secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.
Artigo XXII. Todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segu
rança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e
dc acordo com a organização c recursos de cada Estado, dos direitos econômicos,
sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua
personalidade.
Artigo XXIII. l.Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de empre
go, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Iodo homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por
igual trabalho.
3. Todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfa
tória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com
a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de pro
teção social.
4. Todo homem tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para pro
teção de seus interesses.
Artigo XXIV. Todo homem tem direito a repouso e lazer inclusive a limitação
razoável das horas dc trabalho c férias remuneradas periódicas.
Artigo XXV. l.Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de asse
gurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habi
tação, cuidados médicos e serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em
caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
(6)
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais.
Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma pro
teção social.