março, 2015 tese de doutoramento em sociologia a felicidade
TRANSCRIPT
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Maro, 2015
Tese de Doutoramento em Sociologia
A felicidade enquanto recurso emocional socialmente desigual: para uma abordagem
sociolgica do sentir
Ana Nestal de Almeida Martins Roque Dantas
N o t a : A n a N e s t a l d e A l m e i d a R o q u e D a n t a s , A f e l i c i d a d e e n q u a n t o r e c u r s o e m o c i o n a l s o c i a l m e n t e d e s i g u a l : p a r a u m a a b o r d a g e m s o c i o l g i c a d o s e n t i r , F e v e r e i r o , 2 0 1 4
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Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do
grau de Doutor em Sociologia, realizada sob a orientao cientfica de Prof. Dr.
Manuel Gaspar da Silva Lisboa
Apoio financeiro da FCT/MCTES atravs da atribuio de uma bolsa de
doutoramento (SFRH / BD / 60889 / 2009)
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II
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Aos meus filhos, Joo e Francisca
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A FELICIDADE ENQUANTO RECURSO EMOCIONAL
SOCIALMENTE DESIGUAL: PARA UMA ABORDAGEM
SOCIOLGICA DO SENTIR
Ana Nestal de Almeida Martins Roque Dantas
RESUMO
Tradicionalmente, a anlise de emoes e sentimentos esteve associada a experincias individuais e singulares e, por isso, afastada do olhar sociolgico. Neste trabalho, defendemos que sentimentos e emoes so socialmente moldados e a sua expresso reflecte aspectos sociais. Como tal impe-se uma abordagem da Sociologia, procurando as regularidades em torno das formas de sentir, expressar e procurar felicidade.
O objectivo deste trabalho identificar as condies sociais que promovem ou limitam a percepo de felicidade, atravs da anlise das caractersticas socioculturais diferenciadoras de prticas, representaes e expresses de felicidade. Concretamente, pretende-se situar a anlise nas condies de vida, tal como so experimentadas pelos actores sociais, que fornecem o contexto objectivo para a percepo e criao de significados de felicidade e que permitem tambm compreender a orientao para a aco.
Em termos metodolgicos, propomos uma abordagem a diferentes nveis, articulando a anlise da expresso (medida numa amostra extensa e representativa dos portugueses, dados do European Social Survey - ESS), com a compreenso dos significados e prticas sociais que lhe esto associados e as condies sociais em que so produzidos, atravs de dados recolhidos por meio de um inqurito sociolgico por questionrio desenvolvido especificamente com este objectivo. Esta investigao articula assim diferentes nveis de observao, completando os dados macro com uma aproximao mais intensiva e focada em actores sociais concretos. A anlise ainda diferenciada para Portugal (amostra ESS) e para a regio de Lisboa (amostra recolhida no mbito deste estudo).
Por meio deste trabalho de investigao foi possvel identificar as condies sociais que promovem ou limitam a percepo de felicidade, atravs da anlise das caractersticas socioculturais diferenciadoras de prticas, representaes e expresses de felicidade. Os resultados mostram que a felicidade produzida e moldada em circunstncias concretas, e por isso, algumas pessoas tero maior capacidade de definir as condies para a sua felicidade. Estes resultados vo mais longe do que estudos existentes, porque articulam as percepes,
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significados e prticas sociais de felicidade com os contextos em que ocorrem e mostram que a felicidade um recurso emocional socialmente desigual.
PALAVRAS-CHAVE: Sociologia; Felicidade; Emoes; Sentimentos
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ABSTRACT
Traditionally, the analysis of feelings and emotions centres on individual singular experience and is beyond the scope of Sociology. We suggest that feelings and emotions are socially moulded and reflect social features. Therefor we need a sociological approach on the regularities of feeling, expressing and searching for happiness.
Through the analysis of the social and cultural characteristics that distinguish social practices, as well as happiness representations and expressions, it is our main goal to identify the social conditions that promote or restrict happiness perceptions. Specifically, we intend to place the analysis in the living conditions, as they are experienced by social actors, that provide the objective context for happiness perceptions.
We propose a methodological approach that joins different levels of study: the analysis of the expression of happiness (in a large and representative sample of the Portuguese, data from the European Social Survey - ESS); with the understanding of the meanings and social practices within the social conditions in which they are produced through data from a questionnaire designed specifically for this study. This research thus articulates different levels of observation, completing the macro data with a more intensive approach focused on specific social actors. The analysis is therefor differentiated for the whole country (data from ESS) and the Lisbon region (specifically collected for this study).
This research allowed to identify the social conditions that promote the perception of happiness, through the analysis of the distinctive features of socio-cultural practices, representations and expressions of happiness. Results show that happiness is produced under concrete circumstances, and for that reason some people will have greater ability to set the conditions of their happiness.
Our conclusions go beyond previous studies articulating results from the analysis of perceptions, meanings and social practices of happiness with the contexts in which they occur. It is clearly shown that perceptions, practices and meanings of the happiness felling have an unequal social distribution that tends to penalize weaker groups, such as women and the elderly, and therefore it is related to other forms of social inequality.
KEYWORDS: Sociology; Happiness; Emotions; Feelings
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ndice
Agradecimentos ............................................................................................... XII
Nota prvia ..................................................................................................... XIV
Introduo ......................................................................................................... 1
Captulo 1 - A procura da felicidade enquanto problema social .......................... 7
1.1. A visibilidade da ideia de felicidade .......................................................................................... 11 1.2. Alguns indicadores numricos de felicidade ......................................................................... 18 1.3. Os nmeros da felicidade em Portugal ..................................................................................... 20
Captulo 2 - A construo do conhecimento sobre felicidade ............................ 24
2.1. Como a felicidade foi sendo pensada ao longo dos tempos e at modernidade . 31 2.2. O contributo da Sociologia ............................................................................................................. 34 2.3. O contributo da Sociologia das Emoes ................................................................................. 49 2.4. Os contributos dos Happiness Studies ....................................................................................... 56 2.5 Os contributos para o estudo da felicidade em Portugal ................................................... 65
Captulo 3 Felicidade: uma proposta de anlise sociolgica ........................... 71
3.1. A felicidade enquanto promessa da modernidade: uma orientao para a aco
social ................................................................................................................................................................ 72 3.2. A felicidade em tempos de crise .................................................................................................. 76 3.3. Em torno do conceito de felicidade ........................................................................................... 79 3.3.1. Felicidade, bem-estar e satisfao com a vida ................................................................. 81 3.3.2. As dimenses e sub-dimenses de felicidade ..................................................................... 85 3.3.3. As hipteses em estudo ............................................................................................................... 88
Captulo 4 - Estratgia de investigao e instrumentos metodolgicos ............. 98
4.1. A construo do campo de observao ................................................................................. 101 4.2. A definio da amostra ................................................................................................................. 103 4.3. Os instrumentos de recolha de informao ........................................................................ 107 4.4. O tratamento e a anlise dos dados ........................................................................................ 110
Captulo 5 - Configuraes sociais de felicidade .............................................. 113
5.1. Espao social de felicidade ......................................................................................................... 115
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VIII
5.2. Perfis sociais de felicidade .......................................................................................................... 122 5.3. Felicidade e posio social .......................................................................................................... 126 5.4. Concluso ........................................................................................................................................... 133
Captulo 6 - Diferenciao social das formas de sentir .................................... 135
6.1. Stress e preocupao .................................................................................................................... 139 6.2. Tristeza e raiva ................................................................................................................................ 148 6.3. Sorridente/risonho e gozo ......................................................................................................... 154 6.4. Em aprendizagem ........................................................................................................................... 161 6.5. Respeito .............................................................................................................................................. 164 6.6. Felicidade ........................................................................................................................................... 167 6.7. Topologia das formas de sentir ................................................................................................ 174 6.8. Tipologia social das formas de sentir .................................................................................... 176 6.9. Concluso ........................................................................................................................................... 182
Captulo 7 A importncia das condies de vida para a felicidade ................ 184
7.1. As dimenses da satisfao com a vida ................................................................................. 185 7.2. A importncia dos factores biogrficos ................................................................................ 188 7.2.1. Sexo e idade .................................................................................................................................... 188 7.2.2. Nvel de instruo ........................................................................................................................ 194 7.2.3. Estado civil ..................................................................................................................................... 196
7.3. As circunstncias de vida ............................................................................................................ 200 7.3.1. A presso do dia-a-dia ............................................................................................................... 201 7.3.2. As condies de sade ............................................................................................................... 210 7.3.3. O sentimento de segurana ..................................................................................................... 216
7.4. As relaes interpessoais ............................................................................................................ 220 7.5. O trabalho e a sua importncia para a felicidade ............................................................. 231 7.5.1. Desigualdade nas condies de trabalho em Portugal ............................................... 234 7.5.2. Caractersticas da actividade profissional ....................................................................... 238
7.6. Concluso ........................................................................................................................................... 244
Captulo 8 - A crise econmica e a felicidade .................................................. 247
8.1. Efeitos da crise sobre as prticas e percepes de felicidade ..................................... 248 8.2. A crise econmica e as expectativas face ao futuro ......................................................... 255 8.3. Concluso ........................................................................................................................................... 271
Captulo 9 A construo e a partilha de significados de felicidade ................ 273
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IX
9.1. Dimenses de felicidade .............................................................................................................. 275 9.2. A ideia de felicidade ....................................................................................................................... 282 9.3. Concluso ........................................................................................................................................... 287
Captulo 10 Prticas sociais de felicidade: estilos de vida e modos de aco 289
10.1. Estilos de vida: a importncia do lazer para a felicidade ........................................... 290 10.2. As actividades: o que se adora e o que se detesta e a sua importncia para a
felicidade ..................................................................................................................................................... 297 10.3. Orientao da aco face a felicidade .................................................................................. 306 10.4. Concluso ........................................................................................................................................ 311
Consideraes finais ....................................................................................... 313
Bibliografia citada .......................................................................................... 324
ndice de grficos ........................................................................................... 334
ndice de tabelas ............................................................................................ 335
Anexos 1: Questionrio .................................................................................. 340
Anexos 2: Caracterizao da amostra Lisboa estudo felicidade ....................... 354
Anexos 3: Tabelas suplementares .................................................................. 359
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X
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XI
Acho que a felicidade consiste na descoberta de que o
cho sobre o qual estamos no pode ser maior do que
aquilo que os nossos ps cobrem.
Heraclito disse-o de outra maneira: o sol tem a
dimenso do p de um homem.
(Vila-Matas, 2014)
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XII
Agradecimentos
A realizao deste trabalho demorou vrios anos e beneficiou da ajuda e
contributos de vrias pessoas e instituies a diferentes nveis. Ainda que
correndo o risco de deixar algum de fora quero agradecer:
Ao professor Manuel Lisboa, pela orientao deste e de todos os outros
trabalhos de investigao em que participei. Mas mais ainda quero deixar um
agradecimento pela amizade e carinho que sempre imprimiu na sua relao
comigo. Quando eu ainda era estudante de licenciatura em Sociologia, props-me
a participao num projecto de investigao. Aceitei e foi o primeiro de muitos
trabalhos em conjunto. A ele agradeo ainda o incentivo e apoio em todo o meu
percurso de formao e especialmente no estudo da felicidade.
Quero aqui agradecer e destacar o papel central que a Ana Ferreira teve
na fase final deste trabalho. Sem as suas crticas e sugestes (muito acertadas e
sempre construtivas) este trabalho no seria o trabalho de que hoje me orgulho.
Muito obrigada!
s minhas colegas Ana Lcia Teixeira e Dalila Cerejo pelo apoio e amizade.
Penso que no fazem ideia o quanto tenho aprendido (e divertido) com elas. So
anos de partilha de alegrias, interajudas, de angstias e de muitas cumplicidades.
Mas esta equipa teve outros investigadores que acompanharam outros
momentos da investigao. Quero agradecer ainda ao Ricardo Santana e Soraia
Cunha por todas as ajudas.
Realizar um trabalho como este envolve um percurso bastante solitrio.
Cristina Duarte agradeo todos os emails que me fizeram distrair da escrita e da
anlise dos dados.
Quero ainda de agradecer ao CesNova (que agora CICS.NOVA) por ter
acolhido e apoiado esta investigao, nomeadamente a ajuda com o trabalho de
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XIII
campo. Igualmente ao Professor Lus Batista pela orientao nos procedimentos e
pelas suas palavras tranquilizadoras quando os prazos pareciam encolher.
Agradeo ainda Faculdade de Cincias Sociais e Humanas todo o apoio
concedido ao longo dos quase 20 anos do meu percurso nesta Faculdade.
Este trabalho no teria sido possvel sem a colaborao dos inquiridos que
partilharam comigo tanto sobre as suas vidas. Tambm no seria possvel sem os
inquiridores, motivados e dedicados, que permitiram obter a matria prima em
bruto para trabalhar.
Se a Universidade acolhe um doutoramento e uma doutoranda, este no
se faz apenas na Universidade. Todo este processo no seria possvel sem o apoio
e compreenso da minha famlia e amigos. Faltam-me as palavras para lhes
expressar todo o meu amor e agradecimento, mas penso que todos eles sabem o
quanto me sinto grata pela sua presena e carinho constante e incondicional.
Ao Pedro, agradeo tambm o seu papel estruturador na minha vida.
Aos meus filhos, Joo e Francisca, porque com eles tenho aprendido e
vivido o mais importante para a minha felicidade: rebolar na relva, correr atrs
das ondas, encontrar pedras da sorte, pisar as folhas secas do Outono, apanhar
pinhas e cabeludos. Coisas simples que me enchem de felicidade.
Mas foram os meus pais e o seu apoio incondicional que permitiram que
este trabalho fosse feito. Substituram-me em todas as tarefas em que puderam
sem me fazerem sentir o quanto lhes pesava e preocupava. Aquilo que somos,
comea a formar-se cedo na infncia e tenho a sorte de ter uma me e um pai
que sempre me fizeram sentir que tudo me era possvel na vida.
A todos muito obrigada!
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XIV
Nota prvia
O meu interesse pela temtica da felicidade comeou h cerca de 13 anos
atrs quando, num gabinete do antigo Socinova, discuti com o meu orientador
qual seria o objecto de estudo para o Mestrado em Sociologia. Nessa longa
conversa chegmos concluso de que as minhas inquietaes se relacionavam
com a felicidade e com o seu papel impulsionador aco.
Esta conversa marcou o incio de um longo percurso no estudo da
felicidade, no seu incio confuso e incerto, na tentativa de afirmao de um
objecto de estudo pouco tradicional na Sociologia e que obrigou a uma reviso
bibliogrfica extensa para colmatar a ausncia de um quadro terico orientador
da Sociologia.
Aps algum tempo deriva, encontrei o meu caminho e o resultado foi
uma proposta de anlise sociolgica da felicidade desenvolvida no mbito do
Mestrado em Sociologia. Esta investigao centrou-se em actores sociais
concretos e nos seus percursos e projectos de vida. Mas dificilmente uma
investigao fica encerrada e esta especificamente deixou o desejo de
aprofundamento, nomeadamente explorando as regularidades em torno do
sentir, expressar e procurar felicidade, numa amostra maior e socialmente mais
diferenciada. As concluses do trabalho de Mestrado sero, por isso, muitas vezes
invocadas ao longo deste trabalho, porque so elas o seu ponto de partida.
O trabalho de Mestrado assentou numa abordagem qualitativa a partir de
entrevistas em profundidade. A anlise do seu contedo despertou a necessidade
de aprofundamento de muitas das questes que surgiram nos discursos, numa
amostra de maior dimenso onde pudessem emergir caractersticas socioculturais
diferenciadoras das prticas e representaes sociais associadas a felicidade.
Assim, a deciso de seguir uma abordagem extensiva e quantitativa neste
trabalho fica marcada por este percurso: uma anlise mais exploratria da
importncia da felicidade enquanto motor da aco que revelou diferentes
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concepes e orientaes face felicidade. Impunha-se aprofundar o
conhecimento das diferenas sociais que esta anlise sugeria.
Um trabalho desta natureza dificilmente chega ao fim. Tavares (2006)
sugere que no a investigao que chega ao fim mas sim o investigador que
chega ao incio de si mesmo. , realmente, um longo percurso de crescimento e
de auto-conhecimento que no vem identificado ou explicado em nenhum dos
muitos manuais de auto-ajuda que forosamente li no mbito deste trabalho. O
que deixo neste trabalho apenas um olhar incompleto e parcial sobre tudo o
que analisei, conheci e aprendi ao longo de vrios anos a estudar esta temtica.
Por fim, gostava ainda de justificar o tom por vezes rgido e descritivo do
trabalho. Porque este tema mexe com o que cada um de ns deseja
individualmente e porque somos simultaneamente pessoa e investigadora,
sentimo-nos compelidas a criar uma barreira distanciadora para que a anlise
sociolgica no ficasse refm de ideais e concepes individuais e sociais de
felicidade. Este um tema em que h uma forte contaminao entre o que
conhecimento cientfico e o que literatura de divulgao cientfica ou de auto-
ajuda ainda que especializada e informada. Assim, assumi desde o incio que no
era o meu objectivo ir ao encontro do que a maioria das pessoas esperar de um
estudo sobre felicidade: receitas cientficas para ser feliz. O objectivo era sim
desenvolver uma abordagem que permitisse a reflexo e desconstruo de ideias
feitas acerca do que a felicidade, do que ser feliz e ajudar a compreender as
formas em que sentir inerentemente social.
Espero deixar um pequeno contributo para esta reflexo e algumas bases
para o estudo da felicidade.
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1
Introduo
A anlise de emoes e sentimentos tem estado tradicionalmente
associada a experincias individuais e singulares e, por isso, afastada do olhar
sociolgico. Defendemos aqui que sentimentos e emoes so socialmente
moldados e a sua expresso reflecte aspectos sociais. Como tal impe-se uma
abordagem da Sociologia, procurando as regularidades em torno das formas de
sentir, expressar e procurar felicidade.
Este trabalho tem como principal objectivo analisar sociologicamente a
felicidade. Mais especificamente, objectivo deste trabalho identificar as
condies sociais que promovem ou limitam a percepo de felicidade, atravs da
anlise das caractersticas socioculturais diferenciadoras de prticas,
representaes e expresses de felicidade. Concretamente, pretende-se situar a
anlise nas condies de vida, tal como so experimentadas pelos actores sociais,
que fornecem o contexto objectivo para a percepo e criao de entendimentos
de felicidade e que permitem compreender a orientao para a aco.
A maioria dos estudos existentes assenta em medies de nveis de
felicidade, ao longo do tempo, e numa perspectiva comparativa, o que possibilita
detectar as diferenas e as variaes da sua expresso. Contudo, estes estudos
no permitem uma compreenso mais vasta da influncia do contexto
sociocultural em que se produzem e transformam as suas expresses. Igualmente
no permitem conhecer a importncia que a felicidade assume para os actores
sociais enquanto elemento orientador da sua aco. Neste sentido, s uma
abordagem focada nas percepes das pessoas acerca do que as faz feliz e nos
seus entendimentos de felicidade, em articulao com os contextos sociais que as
produzem, possibilita o conhecimento, por um lado, das condies sociais que
favorecem ou dificultam sentimentos de felicidade e, por outro lado, das prticas
que lhe esto associadas e dos significados que lhe so atribudos. esta a nossa
proposta.
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2
Acreditamos que esta uma abordagem inovadora pois no se limita ao
estudo da expresso de felicidade, procurando explicar e compreender a sua
variabilidade face ao contexto em que produzida.
Adicionalmente, esta investigao assenta numa proposta conceptual de
felicidade mais ampla e que articula diferentes dimenses do fenmeno, incidindo
tanto sobre a percepo do sentimento como sobre as condies que enquadram
as prticas sociais e a produo de significados.
Assim, propomos estudar sociologicamente felicidade a partir da
compreenso dos significados e das prticas, nomeadamente a importncia
atribuda felicidade e ao ser feliz, bem como, os estilos de vida e as orientaes
para a aco, alm das condies de vida.
O grande contributo que a Sociologia pode dar situa-se na anlise mais
aprofundada das percepes de felicidade, ou seja, como as pessoas entendem e
definem felicidade. Esta abordagem ope-se a outras que defendem que
irrelevante o que cada um considera como importante e que a ausncia de uma
definio facilita a medio e comparao dos resultados.
Em termos metodolgicos, propomos uma abordagem a diferentes nveis,
articulando a anlise da expresso (medida numa amostra extensa e
representativa dos portugueses, dados do European Social Survey), com a
compreenso dos significados e prticas sociais que lhe esto associados e as
condies sociais em que so produzidos, atravs de dados recolhidos por meio
de um inqurito sociolgico por questionrio desenvolvido especificamente com
este objectivo. Esta investigao articula assim diferentes nveis de observao,
completando os dados macro com uma aproximao mais intensiva e focada em
actores sociais concretos. A anlise ainda diferenciada para o conjunto do pas
(dados do European Social Survey) e para a regio de Lisboa (dados recolhidos
especificamente para este estudo).
Acreditamos que esta proposta permite ir mais longe na compreenso do
fenmeno da felicidade e ultrapassar limitaes de outros estudos que se
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centram apenas na expresso do fenmeno. Por outro lado, possibilita o teste
emprico de propostas tericas de outros autores, nomeadamente a importncia
de explorar as condies socioculturais que promovem sentimentos, tendo por
base um quadro terico alargado que facilite uma abordagem mais ampla
felicidade (indo para alm da mensurao de experincias subjectivas), captando
simultaneamente os seus traos gerais, especificidades individuais (como a forma
de sentir e de se relacionar com outros sentimentos), as condies sociais em que
ocorre, as prticas sociais que lhe esto associadas e os significados sociais
construdos e partilhados acerca deste sentimento.
Assim este trabalho de investigao permitiu identificar as condies
sociais que promovem felicidade mas tambm conhecer os significados que a
felicidade assume, nomeadamente enquanto elemento orientador da sua aco.
A anlise conjunta dos contextos, significados e prticas de felicidade
permitiu perceber que a sua expresso, procura e idealizao so marcadas por
desigualdades mais vastas que distinguem tambm as formas de sentir. Os
resultados permitem perceber que, independentemente da interpretao
individual das experincias, estas no so singulares e privadas, esto contidas e
so organizadas por estruturas sociais, tal como props Illouz (2013).
Por fim, uma observao quanto importncia de estudar
sociologicamente felicidade. S por si, sabermos se as pessoas so ou no felizes,
constitui um bom indicador do funcionamento da sociedade. Mas mais que isso,
sendo a felicidade uma forte orientao para a aco socialmente valorizada e
historicamente construda, uma varivel-chave para a compreenso da aco
social. Da mesma forma, e sabendo que as expresses de felicidade mudam,
torna-se imperativo avaliar as suas variaes face s transformaes sociais que
lhe esto subjacentes. S uma anlise destas mudanas com os instrumentos da
Sociologia permitir perceber se h desigualdades sociais que possam trespassar
os discursos e prticas de felicidade.
Em termos da sua estrutura, este trabalho organiza-se em duas partes e
tem dez captulos: uma primeira parte dedicada caracterizao do problema
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social e, percorrendo as contribuies tericas disponveis, apresentao de
uma nova problematizao de felicidade. A segunda parte est centrada na
validao emprica das hipteses orientadoras da pesquisa e na discusso dos
resultados alcanados luz das propostas tericas que enquadram esta
investigao.
Assim, a primeira parte dedicada passagem do problema social
problemtica sociolgica da felicidade e organiza-se em quatro captulos.
O primeiro captulo dedica-se caracterizao do problema social,
nomeadamente s condies de visibilidade e valorizao da felicidade.
Comearemos por discutir a crescente importncia da felicidade nas sociedades
ocidentais actuais, sustentando a anlise em indicadores numricos de felicidade
que nos mostram um aumento das preocupaes com este tema a nvel social,
cientfico e poltico, mas tambm enquadrando a reflexo em teorias sociais que
pretendem a compreenso deste fenmeno. Apresentam-se ainda alguns
nmeros sobre a sua expresso em Portugal.
O captulo dois incide sobre a construo do conhecimento acerca de
felicidade, apresentando como a felicidade foi sendo pensada ao longo dos
tempos e at modernidade, mas tambm as diferentes abordagens cientficas a
este tema. Para tal discutem-se as contribuies da Sociologia, da Sociologia das
Emoes e dos pluridisciplinares Happiness studies, no esquecendo os
contributos para o estudo da felicidade em Portugal.
No captulo trs inicia-se a apresentao da problemtica sociolgica com
a reflexo da felicidade enquanto promessa da modernidade, na medida em que a
expectativa da sua concretizao acompanha os ideais de construo da
sociedade moderna. Ainda neste captulo e, uma vez que a percepo de
felicidade depende das condies sociais de existncia e este trabalho foi
desenvolvido durante uma crise econmica que afectou Portugal ao longo de
vrios anos 2010 o ano do incio do resgate financeiro e os dados foram
recolhidos em 2011 e 2012 , discutimos os possveis impactos da crise sobre a
expresso de felicidade. O enquadramento terico at aqui elaborado desagua
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numa proposta de pesquisa emprica. Para tal, segue-se a explicitao do conceito
de felicidade, propondo-se um quadro terico amplo e compreensivo que permita
captar o fenmeno em toda a sua multidimensionalidade e complexidade.
Discute-se ainda os limites do conceito felicidade e interseces com outros
conceitos muitas vezes tomados como seus sinnimos (bem-estar e satisfao
com a vida), no sentido da sua operacionalizao. Neste captulo, apresentam-se
ainda as principais dimenses, sub-dimenses e indicadores de felicidade, bem
como, as hipteses orientadoras do estudo.
Por sua vez, o captulo quatro dedicado apresentao da estratgia de
investigao e metodologia adoptadas. Assim, apresenta-se a construo do
campo de observao, a definio da amostra e os instrumentos de recolha de
informao, bem como, a estratgia de anlise dos dados.
A segunda parte deste trabalho dedicada anlise e discusso dos
resultados alcanados. A sua estrutura decorre das hipteses formuladas e cada
um dos seus captulos tem como objectivo o seu teste emprico.
Esta anlise iniciada no captulo cinco dedicado explorao dos dados
que permitem confirmar ou infirmar a hiptese da identificao de espaos
sociais mais propcios expresso de felicidade e das tipologias sociais que lhe
esto associadas.
Em seguida, no captulo seis analisam-se os dados recolhidos acerca dos
sentimentos experienciados na sua relao com a felicidade e explorando
regularidades sociais subjacentes. A anlise individual de sentimentos positivos
e negativos termina com o ensaio de uma topologia das formas de sentir,
desenvolvendo a anlise para as tipologias sociais em que se criam diferentes
constelaes de sentimentos.
O captulo sete trata das condies sociais associadas s expresses de
felicidade. Neste captulo explora-se a influncia de diferentes dimenses sobre a
felicidade, nomeadamente aspectos ligados ao percurso biogrfico, s
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circunstncias de vida actuais, s relaes interpessoais e s principais
caractersticas do trabalho e da vida profissional.
O captulo oito trata um aspecto especfico do contexto socioeconmico
actual a crise econmica na medida em que influencia as formas de sentir de
felicidade. Mais especificamente, avaliam-se os efeitos da crise econmica sobre
as percepes, sobre as prticas e sobre as expectativas de felicidade.
O captulo nove analisa os significados de felicidade principais dimenses
subjetivas de felicidade e concepes vigentes explorando as regularidades
sociais em torno da construo e partilha de significados sociais de felicidade.
Por ltimo, no captulo dez analisamos como a felicidade posta em
prtica, centrando a ateno sobre os estilos de vida e orientaes da aco com
vista felicidade.
Por fim ensaiam-se algumas concluses, procurando reflectir sobre os
resultados de forma conjunta e articulada, na medida em que ajudam a
compreender melhor a felicidade e para alm da anlise das suas expresses e
procurando as suas complexidades sociais. Esperamos que esta reflexo permita ir
mais alm na compreenso das formas em que a felicidade inerentemente
social, chegando a conhecimento dos processos que condicionam a percepo de
felicidade.
A anlise sociolgica acompanha todas as etapas deste trabalho,
explorando as regularidades sociais em torno das formas de sentir, expressar e
felicidade, mas tambm procurando identificar as condies sociais que
promovem e limitam felicidade e os grupos sociais mais favorecidos e penalizados
na sua concretizao.
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Captulo 1 - A procura da felicidade enquanto problema social
Paraso, stimo cu, lugar paradisaco, estar no paraso
significando estar plenamente bem, merecer o paraso como
mxima recompensa, so palavras ou expresses que estamos
habituados a ouvir ou a dizer. (Costa, 2008).
Assistimos actualmente a uma busca crescente de modos de vida onde a
preocupao com a felicidade assume especial relevncia e se traduz por
solicitaes sociais ao bem viver, ao prazer e qualidade de vida (Lipovetsky,
2007).
Este parece-nos ser um primeiro sinal de que a procura de felicidade um
problema social que carece de compreenso mais aprofundada sobre as suas
causas e consequncias, nomeadamente a partir dos instrumentos da Sociologia.
A abordagem sociolgica permitir ir mais alm no estudo desta temtica,
nomeadamente, identificando as condies socioculturais em que ocorrem a
expresso de felicidade, bem como, aprofundar a compreenso acerca dos
significados da felicidade para os actores sociais e da forma como influenciam a
aco social.
Sabemos que A busca da felicidade to velha como a prpria histria
[...] (Mcmahon, 2009, p. 19), mas ser que a explicitao desta preocupao no
agora mais visvel, mais pblica e mais generalizada? Que indicadores sustentam
esta informao? Porqu esta visibilidade? Que condies sociais contribuem para
tal? E que caractersticas emergem dos discursos e das prticas actuais?
Ao longo deste primeiro captulo, sero apresentados diversos sinais que
mostram claramente a importncia que este problema assume na vida social
actual. Pretende-se ainda discutir as causas da visibilidade da felicidade enquanto
preocupao social central, a partir de transformaes sociais e econmicas que,
associadas a uma mudana dos valores sociais de referncia, contriburam para a
sua crescente relevncia.
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8
Assim, este trabalho assenta na ideia de que nas sociedades ocidentais
actuais h uma valorizao da importncia da felicidade com consequncias para
as expectativas dos actores sociais que orientam as suas prticas em funo da
sua procura.
Um primeiro indicador da sua importncia social o elevado nmero de
publicaes, tanto literrias, como na imprensa e nas redes sociais1, mas tambm
as constantes referncias a felicidade que nos chegam atravs de filmes,
publicidade ou comunicao social, tornando [...] as pessoas no ocidente
bombardeadas como nunca de imagens dos rostos sorridentes de pessoas reais,
divertindo-se eternamente como de seu direito. (Mcmahon, 2009, p. 456).
Acreditamos que estas constantes solicitaes sociais influenciam a forma
de sentir, de expressar e de procurar felicidade. De facto, num estudo prvio
realizado no mbito do mestrado em Sociologia, foi possvel concluir que a
felicidade assume uma importncia central para os actores sociais, tanto na sua
concretizao quotidiana, como enquanto projecto a longo prazo, alimentado
expectativas e orientaes face ao futuro (Roque Dantas, 2007). Assim, e tendo
como ponto de partida este trabalho prvio revelador da importncia da procura
de felicidade para a aco, pretende-se agora ir mais longe e conhecer os
contextos socioculturais em que se produzem diferentes formas de sentir,
expressar e procurar felicidade.
Outros estudos sugerem a influncia da sociedade sobre a percepo de
felicidade. Sara Ahmed explica que a felicidade uma promessa que direcciona e
condiciona as escolhas individuais, pois contm a expectativa de transformao e
melhoria do existente, e sentida como uma recompensa pelo cumprimento de
ideais sociais, ou seja, pela adequao imagem social, a um papel socialmente
reconhecido (Ahmed, 2008).
1 De acordo com a Biblioteca Nacional, em 2014, o nmero de publicaes em Portugal sobre felicidade de 705, de bem-estar chega aos 4713 e auto-ajuda a 212. Da mesma forma, uma busca junto de alguns dos jornais nacionais e internacionais com a palavra felicidade (e happiness) revela nmeros surpreendentes. O jornal Pblico regista 5047 entradas, a revista Viso 4890 e o Expresso 24200. Por sua vez, o NY Times, conta com 63426 artigos.
-
9
Complementarmente, Lipovetsky defende uma nova postura dos
indivduos nas sociedades ocidentais que se caracteriza por uma exacerbao das
preocupaes com o bem-viver e o bem-estar, bem como, o seu papel
determinante para a definio da aco, tal como fica expresso na seguinte
citao: Apoiando-se na nova religio da melhoria contnua das condies de
vida, o melhor-viver tornou-se uma paixo das massas, o objectivo supremo das
sociedades democrticas, um ideal exaltado em cada esquina. Raros so os
fenmenos que conseguiram mudar de forma to profunda os modos de vida e os
gostos, as aspiraes e os comportamentos da maioria das pessoas
[](Lipovetsky, 2007).
Defenderemos ao longo deste primeiro captulo que, actualmente, a
procura de felicidade se reveste de uma enorme importncia social, tanto pelo
seu papel enquanto modelo orientador de prticas e condutas, como pelas suas
consequncias sociais e individuais2. Esta relevncia identificvel atravs de
inmeros indicadores e, acreditamos, reflecte transformaes sociais que,
associadas a uma melhoria das condies sociais de existncia que se verificaram
ao longo do sc. XX nas sociedades ocidentais, contriburam para a mudana dos
valores orientadores no sentido da maior valorizao social e individual de
aspectos relacionados com o prazer, o bem-estar e a auto-realizao.
Estas sociedades caracterizam-se, actualmente, pelo maior centramento
no indivduo e na sua capacidade (e responsabilidade) de construo biogrfica,
fruto de alteraes da relao entre este e a sociedade, e que se caracteriza por
uma fluidez das relaes, das escolhas e dos modelos orientadores, tal como
2 Os estudos revelam que as pessoas felizes tendem a viver mais e melhor e que estes benefcios individuais se traduzem em prosperidade econmica e social (com menor absentismo, maior produtividade, maior envolvimento comunitrio, melhoria das relaes interpessoais, entre outros) (Graham, 2011a; Layard, 2005; Veenhoven & Jonkers, 1984). No mesmo sentido, verifica-se uma relao estreita entre a desigualdade social de um pas e a infelicidade dos seus habitantes, sendo que quanto maior a desigualdade social existente, menor a felicidade mdia da populao (Alesina, Di Tella, & MacCulloch, 2004; Graham, 2011a; Pickett & Wilkinson, 2011; Yang, 2008).
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10
defendem diversos autores (Bauman, 2003; Beck & Beck-Gernsheim, 2001;
Giddens, 2002)3.
Com a crescente individualizao, aumenta a importncia da reflexividade,
enquanto capacidade atravs da qual os indivduos e a vida social so produzidos
e alterados como reaco s circunstncias diferentes das tradicionais (Giddens,
2002), e perante a crescente responsabilidade individual na construo biogrfica.
Ou seja, face ausncia de modelos orientadores claros e inequvocos, o processo
reflexivo apoia as decises, ajuda procura de novas solues e justifica as
opes tomadas.
Neste contexto, Holmes destaca o papel que as emoes e os sentimentos
assumem, nomeadamente, na compreenso e orientao da aco. A autora
prope que se defina reflexividade enquanto processo simultaneamente
emocional, incorporado e cognitivo, que permite que os indivduos sintam,
compreendam e alterem as suas vidas face s circunstncias existentes (Holmes,
2010). Neste sentido, as emoes e os sentimentos esto no cerne do processo
reflexivo, constituindo uma parte integrante do raciocnio, e contribuindo para
tornar a vida compreensvel: espera-se que as pessoas saibam como se sentem,
como se devem sentir, e que tenham a capacidade de interpretar os sentimentos
dos outros.
A reflexividade e, mais especificamente, a reflexividade emocional tornam-
se cruciais para compreender como os indivduos produzem um sentido para as
condies sociais, para os seus sentimentos e para os seus pensamentos (Holmes,
2010), bem como, para a sua participao na estrutura social.
Assim, actualmente as emoes e sentimentos so consideradas essenciais
para a compreenso da orientao para a aco, da sua influncia sobre a
interaco social e para as ligaes do indivduo estrutura social (Stets & Turner,
3 A discusso das diferenas tericas e conceptuais que separam estes autores no cabe nos objectivos deste trabalho. Pretende-se aqui argumentar que vrios autores contemporneos identificam tendncias semelhantes para a sociedade actual. Para um debate sobre as diferenas entre estes autores ver Howard (2007).
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2005). Ao mesmo tempo, reconhece-se o papel condicionador que as normas e
valores orientadores exercem sobre a percepo e expresso das formas de
sentir.
neste caminho que pretendemos situar o estudo da felicidade, ligando as
percepes individuais de felicidade ao contexto social onde ocorrem as mesmas
e s prticas sociais desenvolvidas e aos significados construdos.
Este estudo sociolgico contribuir assim para o conhecimento acerca do
contexto social em que a felicidade experimentada e em que so produzidas as
suas prticas e os seus significados. Este conhecimento contribuir para a
compreenso da aco social.
Comearemos por identificar alguns sinais da visibilidade da felicidade que
concorrem para a partilha e uniformizao das formas de sentir. Seguidamente,
tentaremos situar a relevncia desta temtica no contexto scio-histrico recente.
Por fim, apresentaremos alguns indicadores numricos sobre o fenmeno e
alguns sinais da sua influncia na poltica social.
1.1. A visibilidade da ideia de felicidade
Hoje, uma parte substancial da informao difundida atravs da internet
e uma simples pesquisa online permite constatar a importncia assumida nos
ltimos anos por esta temtica4.
Em 2008, quando este trabalho foi iniciado, uma pesquisa no Google com
a palavra felicidade encontrava 12.400.00 registos; em 2013, 36.100.000.
4 De acordo com a Comisso Europeia, desde 2007 que mais de metade das habitaes da EU27 (55%) tem acesso internet e em 2011 ascendem a 73% (Eurostat, 2013). Os dados do INE (2012) para a regio de Lisboa, indicam que 72% das habitaes tem acesso internet (INE, 2012).
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Recorrendo ao termo em ingls happiness, encontrvamos em 2008, 14.400.000
registos e em 2013, 243.000.000.
Ao mesmo tempo, dificilmente passa desapercebido o aumento do
nmero de publicaes de livros e artigos de auto-ajuda que oferecem
orientaes prticas para melhorar a felicidade individual.
Da mesma forma, proliferam produtos e experincias contendo a
promessa de melhoria de vida e alegria5. Estes produtos prometem a alterao
(mudar para melhor) dos sentimentos e das vivncias.
A relevncia social da felicidade fica ainda mais visvel com a deciso das
Naes Unidas de criar o Dia Internacional de Felicidade (20 de Maro). Com esta
deciso, pretendeu-se reconhecer a importncia que a felicidade assume
enquanto objectivo de vida individual mas tambm promover o reconhecimento
desta aspirao nos objectivos das politicas pblicas.
Todas estas expresses contribuem activamente para a definio das
formas de sentir, expressar e procurar felicidade. Esta difuso de cdigos comuns,
na medida em que reflecte e cria necessidades sociais, reduz a complexidade em
torno do seu entendimento e possibilita a expresso e partilha de significados do
sentimento.
Pensamos que esta visibilidade um sinal da crescente preocupao social
com a procura de felicidade. Estas manifestaes tm consequncias directas
sobre as prticas e representaes dos actores sociais que orientam as suas
condutas em funo dos seus ideais de felicidade, bem como, promove a criao
de expectativas colectivas que guiam a aco individual.
Ao mesmo tempo, e paralelamente crescente preocupao social com a
felicidade, aumentam os estudos cientficos que se ocupam desta temtica.
De facto, se em 2008, na pgina da World Database of Happiness
(Veenhoven), era possvel contabilizar 5671 artigos cientficos dedicados ao tema
5 Vrias marcas de produtos se associam (e promovem) a ideia de felicidade, por exemplo, a Coca-Cola patrocina estudos na rea atravs do seu Instituto de Felicidade.
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da felicidade; em 2013, no mesmo site, ascendem a 7246. Igualmente, uma
pesquisa na EBSCO com o termo happiness, devolve cerca de 7276 registos de
resultados acadmicos (2013).
No mesmo sentido, Kahneman e Kruger (2006) referem que, s na rea da
Economia, entre 2001 e 2005, foram publicados mais de 100 artigos utilizando
medidas de felicidade ou de satisfao com a vida.
Em consonncia com esta produo cientfica, existem hoje revistas
cientficas dedicadas exclusivamente publicao de estudos interdisciplinares
sobre felicidade. Destacamos o Journal of Hapiness Studies, pelo seu elevado
factor de impacto (1,772 em 2013)6, mas existem outras mais, como a revista
International Journal of Happiness and Development, ou a revista Journal of
Happiness and Well-Being.
Assim, so claros os sinais da crescente importncia social e acadmica da
felicidade. Paralelamente, assiste-se a uma preocupao poltica com este tema.
Actualmente, (alguns) governos consideram uma prioridade medir o bem-
estar das suas populaes e introduziram medidas de avaliao do progresso
social e humano que incluem a medio da felicidade como um dos seus
indicadores7.
Durante a presidncia Francesa da Unio Europeia (2008), foi constituda
uma Comisso Comisso Stiglitz para a avaliao da performance econmica e
do progresso social dos pases europeus (Comission on the measurement of the
economic performance and social progress). Esta tinha como objectivo a
elaborao de recomendaes acerca das melhores formas de medir tanto a
6 O factor de impacto uma medida que reflecte o nmero mdio de citaes dos artigos publicados na revista num dado ano. Pretende dar uma ideia da importncia da revista na sua rea. 7 Foi o rei do Buto que props pela primeira vez, nos anos setenta, a introduo da Felicidade Interna Bruta (FIB) como medida de avaliao do desenvolvimento da sociedade, que inclui aspectos materiais e espirituais e que pretende ultrapassar as limitaes do modelo de desenvolvimento tradicional assente no crescimento econmico e medido pelo produto interno bruto (PIB).
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14
performance econmica como o progresso social (Stiglitz, Sen, & Fitoussi, 2009).
Um dos indicadores de bem-estar propostos, a par da avaliao da vida,
satisfao e da ocorrncia de emoes positivas e negativas, a felicidade. De
acordo com os responsveis, estes indicadores devem ser medidos em separado,
permitindo assim uma profunda compreenso dos factores envolvidos na
apreciao da vida. Da sua avaliao quantitativa espera-se o aprofundar de
conhecimentos acerca do que contribui para o bem-estar das pessoas, indo para
alm de anlises unicamente centradas no rendimento (Stiglitz et al., 2009).
No mesmo sentido, em 2010, David Cameron introduziu indicadores deste
tipo nas estatsticas oficiais anuais do Reino Unido8. Ainda neste pas, algumas
escolas introduziram nos seus programas escolares orientaes com o objectivo
de melhorar a gesto emocional e sentimental das crianas e jovens (Layard,
2007)9.
Sucedem-se os exemplos de organismos oficiais de recolha de dados
estatsticos que renem informao sistemtica sobre o bem-estar das
populaes e incluem indicadores materiais e no materiais como a avaliao
subjectiva das condies de vida (satisfao com a vida). Para referir alguns deles:
Better life Index (OCDE); Well-being indicators do Office for National statistics
(Reino Unido); Gallup; Eurobarmetro, entre outros.
Estas estatsticas, ao pretenderem relatar a realidade em permanente
evoluo, constituem uma resposta necessidade de dados acerca da forma
como as pessoas vivem e avaliam a sua vida.
Deste modo, espera-se que a avaliao da felicidade constitua um
indicador do funcionamento geral da sociedade, apoiando a tomada de deciso, e
permitindo tanto o planeamento como a avaliao do impacto de medidas
pblicas sobre a forma como as pessoas percepcionam a sua vida (Ryan, 2010).
8 http://www.ons.gov.uk/ons/guide-method/user-guidance/well-being/index.html 9 Para mais informao, consultar: https://www.gov.uk/government/publications/social-and-emotional-aspects-of-learning-seal-programme-in-secondary-schools-national-evaluation.
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Acreditamos que a introduo destes indicadores traduz uma resposta a
mudanas sociais que vo no sentido do aumento da importncia social
consagrada a felicidade.
Neste sentido, Gianetti afirma que se a felicidade (ou a falta dela) no se
tivesse tornado um problema social, no existiria tanta preocupao com a sua
pesquisa (Giannetti, 2002). Esta afirmao vai ao encontro do pensamento de
Sedas Nunes quando nas Questes Preliminares sobre as Cincias Sociais explica
que a cincia no descobre problemas sociais, dedica-se ao seu estudo,
funcionando como instrumento de conhecimento, mas tambm de aco na
gesto quotidiana da sociedade e na preparao de polticas a longo prazo (Sedas
Nunes, 1977).
Um exemplo concreto desta viso da cincia enquanto instrumento de
conhecimento, podendo desempenhar um papel na gesto social e na preparao
de polticas o documento produzido pela OCDE (Organizao de Cooperao e
Desenvolvimento Econmico), em 2013, com orientaes para o estudo do bem-
estar subjectivo (OCDE, 2013a).
Neste relatrio so includas recomendaes conceptuais, metodolgicas e
relativas a cuidados na recolha de dados. Destaca-se a importncia dada
validade e fiabilidade das vrias opes conceptuais disponveis para medir
felicidade, s preocupaes metodolgicas em torno do formato e ordem das
perguntas e das respostas a incluir nos questionrios, mas tambm a enunciao
de precaues a ter em contexto de recolha dos dados. Refira-se ainda o destaque
dado por esta publicao importncia da produo de estatsticas sobre bem-
estar para o apoio deciso, mas tambm a sua capacidade de identificar
prioridades para trabalhos futuros.
A medio da felicidade da populao tornou-se assim uma prioridade nas
estatsticas oficiais de vrios pases, constituindo um indicador insubstituvel do
funcionamento geral da sociedade, uma vez que traduz a avaliao que as pessoas
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fazem s diferentes dimenses da sua vida10. Neste sentido, coloca-se a questo
de saber que mudanas sociais contriburam para destacar e reforar a
preocupao social com a felicidade.
Nas ltimas dcadas, os nveis econmicos da maioria dos pases
ocidentais cresceram substancialmente, com a consequente satisfao das
necessidades bsicas e a melhoria das condies de vida em geral.
Assistiu-se a um aumento generalizado do bem-estar nas sociedades
ocidentais, onde as pessoas esto mais ricas, gozam mais frias, viajam mais, tm
maior esperana de vida e so mais saudveis (Layard, 2005).
Contudo, apesar do aumento constante dos rendimentos per capita e de
todas as melhorias sociais associadas, desde os anos cinquenta, a felicidade mdia
declarada da populao norte-americana no sofreu um acrscimo
correspondente, encontrando-se constante desde os anos setenta (Di Tella,
MacCulloch, & Oswald, 2003; Diener & Seligman, 2004; Easterlin, 2001, 2003).
Esta relao inesperada entre o aumento dos rendimentos per capita e a
felicidade mdia designada na literatura como o paradoxo de Easterlin11. Diz-nos
o autor que a partir de determinado limiar de riqueza do pas, o aumento dos
rendimentos per capita no acompanhado por aumentos na felicidade mdia da
populao (Easterlin, 1974).
At ento, era previsto que o aumento dos rendimentos conduzisse a uma
melhoria das condies de vida e que, em conjunto, tivessem consequncias
positivas sobre a percepo de felicidade. Mas a relao entre rendimentos e
felicidade revelou-se menos bvia, o que obrigou os cientistas a considerar a
influncia de outras variveis no econmicas, reconhecendo a importncia que
os aspectos no materiais podem assumir na vida das pessoas.
10 Em 2014, o INE organizou um dossier de indicadores de bem-estar. 11 Este paradoxo toma o nome do cientista que o identificou: Richard Easterlin, cujas propostas sero retomadas mais frente neste trabalho.
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Este fenmeno pode comear a compreender-se partindo da perspectiva
de Maslow (1987) que sugere que a satisfao de necessidades acompanhada
pela emergncia de novas necessidades.
Este autor identificou cinco necessidades hierarquizveis (da base para o
topo), em que eliminao das de base se sucede a emergncia de novas
necessidades. So elas: as necessidades fisiolgicas (bsicas), como a fome, a
sede, o sono, o sexo; as necessidades de segurana que incluem a simples
necessidade de nos sentirmos seguros ou a estabilidade profissional ou social; a
necessidade de socializao (relaes interpessoais); a necessidade de
reconhecimento e a necessidade de auto-realizao. Assim, quando satisfeitas as
necessidades fisiolgicas e de segurana, emergem aspectos relacionados com as
relaes interpessoais, reconhecimento social e realizao pessoal (Maslow,
1987).
Actualmente, e face melhoria continuada das condies de vida no
Ocidente, alguns autores constatam esta evoluo na hierarquia das necessidades
tal como Maslow props (Inglehart, Foa, Peterson, & Welzel, 2008). A ideia que
as pessoas deixaram de se centrar em questes de subsistncia e sobrevivncia,
passando a preocupar-se mais com valores de realizao e desenvolvimento
pessoal (Griffiths & Reeves, 2009).
No mesmo sentido, e de acordo com os resultados do World Values Survey
analisados por Inglehart e a sua equipa (2008), com o desenvolvimento
econmico verifica-se um aumento da sensao de segurana existencial das
populaes e uma mudana dos valores predominantes na sociedade. De acordo
com estes autores, em vez do enfoque na sobrevivncia, desenvolve-se a
valorizao da auto-expresso e da liberdade de escolha, valores que se
encontram estatisticamente associados percepo de felicidade.
Mais especificamente, os autores explicam que, em condies de escassez,
as pessoas tendem a focar-se em necessidades de sobrevivncia e a dar
prioridade segurana fsica e econmica em detrimento de valores de igualdade
e expresso individual. Ao contrrio, uma vez satisfeitas as necessidades de
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sobrevivncia, emergem novas preocupaes, interesses, valores e objectivos de
vida (Inglehart et al., 2008; Pickett & Wilkinson, 2011; Welzel, Inglehart, &
Kligemann, 2003).
Assim, verifica-se que as alteraes sociais das ltimas dcadas criaram
espao para uma maior preocupao com a felicidade, o que por sua vez conduziu
a um alargamento da mobilizao de indicadores econmicos e sociais para
avaliar o funcionamento geral da sociedade no sentido da incluso de aspectos
no materiais do bem-estar (Layard, 2005). Estes indicadores, que seguidamente
exporemos de forma mais alargada, contribuem para a compreenso do
desenvolvimento humano e progresso social (Welzel et al., 2003).
1.2. Alguns indicadores numricos de felicidade
A produo de indicadores estatsticos sobre felicidade conheceu um
aumento nos ltimos anos. Esta centra-se essencialmente em auto-avaliaes de
felicidade que, constituindo um primeiro passo na compreenso deste fenmeno,
permitiram um enorme avano dos estudos e reflexes na rea.
Estas pesquisas, centradas nas anlises dos dados estatsticos disponveis,
dedicam-se essencialmente comparao dos nveis mdios de felicidade (ou de
satisfao com a vida) entre pases e ao longo do tempo (anlises longitudinais), o
que permite conhecer variaes, causas e consequncias da felicidade tanto a
nvel individual como social.
A coerncia entre os resultados de vrios estudos, seguindo diferentes
metodologias e incidindo sobre diversas realidades, permitiu identificar os
principais aspectos que influenciam a felicidade.
consensual afirmar associaes entre nveis mdios de felicidade e sade
ou longevidade; e rendimentos, produtividade e comportamento organizacional;
-
19
e as prticas individuais e sociais. Mais especificamente, os resultados indicam
que a felicidade tem benefcios sobre a sade, nomeadamente encontra-se
associada reduo de inflamaes, a melhorias cardiovasculares e dos sistemas
imunitrios, e diminuio do risco de contrair doenas e infeces, rapidez de
recuperao, e sobrevivncia e longevidade. Da mesma forma, a felicidade est
associada a maior produtividade e a melhores avaliaes de performance, a
menor absentismo, a criatividade, a rendimentos mais elevados, mas ainda a
capacidades de cooperao (OCDE, 2013b). Ao nvel dos comportamentos
individuais, reala-se a associao com a capacidade de adiamento das
gratificaes, menor consumismo e maiores poupanas, maior sociabilidade (mais
relaes interpessoais e redes) mas tambm comportamentos pr-sociais
(voluntariado, donativos) (OCDE, 2013b).
No mesmo sentido, os resultados so consensuais quanto identificao
de diferenas na felicidade declarada dos vrios pases: a Sua, a Noruega, a
Dinamarca e o Canad lideram a lista dos mais felizes e a Grcia, a Turquia, a
Hungria e Portugal reportam os nveis mais baixos do conjunto dos pases da
OCDE (OCDE). Esta desigualdade na distribuio de felicidade entre os vrios
pases est claramente identificada e os resultados no diferem substancialmente
quando analisamos o European Social Survey, o World Values Survey, o
Eurobarmetro, entre outros.
No mesmo sentido, autores como Veenhoven, Inglehart e Graham,
apresentam tendncias semelhantes nas suas anlises comparativas,
identificando padres nos factores que globalmente influenciam felicidade, mas
tambm especificidades que os dados apenas permitem identificar. Por exemplo,
Graham (2011a) identifica diferenas entre pases quanto percepo de
felicidade de Homens e Mulheres, sendo as Mulheres mais felizes nos EUA e os
Homens mais felizes na Rssia; ou em funo da situao profissional, por
exemplo, os reformados so o grupo profissional que declara maior felicidade
mdia nos EUA e menor na Rssia.
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Neste estudo pretendemos ir mais longe situando as variaes das
expresses de felicidade no contexto social em que so produzidas mas tambm
como so entendidas.
Se as estatsticas sobre felicidade apontam para diferenas relativas a
especificidades contextuais, importa pois aprofundar o conhecimento do contexto
social e cultural em que se produzem sentimentos e avaliaes. precisamente o
que faremos de seguida em relao s variaes da expresso da felicidade no
contexto portugus.
1.3. Os nmeros da felicidade em Portugal
Este ponto ser dedicado aos nmeros da felicidade em Portugal. Para tal,
recorreremos aos estudos existentes e a dados estatsticos de organismos
internacionais, nomeadamente sobre satisfao com a vida12.
De acordo com o relatrio Better life index, 2013 (OCDE), Portugal viveu
um progresso significativo nos ltimos anos com a modernizao da sua economia
e o aumento dos nveis de vida da sua populao. Mesmo face crise econmica
actual, Portugal mantm, em 2013, o que a OCDE considera um desempenho
razovel quanto aos indicadores de bem-estar considerados no seu conjunto
(habitabilidade, rendimento, emprego, comunidade, educao, ambiente,
participao cvica, sade, satisfao com a vida, segurana e conjugao entre
vida pessoal e trabalho). Apresenta 71% de inquiridos a declararem ter sentido
mais experincias positivas do que negativas num dia normal (embora este valor
se situe abaixo da mdia do conjunto dos pases da OCDE, 80%).
12 Apesar de felicidade e satisfao com a vida no serem sinnimos, consideramos que a medio da satisfao com a vida constitui um indicador vlido e que permite uma primeira aproximao compreenso da felicidade. Esta discusso ser retomada mais frente neste trabalho.
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21
Estes dados vo no mesmo sentido dos obtidos num trabalho nacional
incidindo sobre as necessidades dos portugueses (TESE, 2009). Este estudo refere
os baixos nveis de satisfao com a vida dos portugueses e identifica como causas
a insatisfao com dimenses relacionadas com as circunstncias de vida mas
tambm com o funcionamento do pas: Em termos gerais, os inquiridos
manifestam maior satisfao pelas dimenses mais relacionais (famlia e amigos)
e menor satisfao pelas condies de vida objectivas (rendimentos, trabalho),
bem como pelas condies mais imateriais ligadas confiana nas pessoas, nas
instituies e ao nvel de participao cvica.(TESE, 2009)
O grfico seguinte representa a evoluo da satisfao com a vida, em
Portugal, entre 2001 e 2013 (dados da Comisso Europeia/Eurobarmetro).
Grfico 1 Satisfao com a vida em Portugal 2001-2013 (%)
Fonte dos dados: Eurobarmetro
Em 2001, os muito satisfeitos so mais numerosos do que os muito
insatisfeitos (7% e 5%, respectivamente). Contudo, a partir de 2004, comea a
desenhar-se uma inverso desta relao que se acentua ao longo dos anos
analisados. Aumentam os muito insatisfeitos e diminuem os muito satisfeitos
0%#
10%#
20%#
30%#
40%#
50%#
60%#
70%#
2001# 2004# 2005# 2006# 2007# 2008# 2009# 2010# 2011# 2012# 2013#
Muito#sa4sfeito# Razoavelmente#sa4sfeito# Pouco#Sa4sfeito# Muito#insa4sfeito#
-
22
(para 24% e 1%, respectivamente). Em 2013, os muito insatisfeitos so cerca de
um quarto da populao, enquanto os muito satisfeitos representam apenas 1%.
Quanto aos razoavelmente satisfeitos, verificamos que diminuem ao longo
do perodo em anlise (com excepo de 2009 em que h uma ligeira
recuperao), e a descida mais acentuada a partir de 2010.
A par da diminuio dos razoavelmente satisfeitos, aumentam os pouco
satisfeitos. Em 2008 (ano em que se inicia a crise financeira com o colapso nos
mercados), verificamos uma subida elevada dos pouco satisfeitos (41% da
populao), mas em 2012 que o peso deste grupo assume a maior expresso do
perodo (cerca de metade dos portugueses considera-se pouco satisfeita: 47%)13.
Quanto felicidade em Portugal, uma tese de doutoramento sugere
valores mais positivos. Partindo dos dados do European Social Survey, Rui Brites
(2011) traa o perfil sociolgico dos portugueses em comparao com outros
povos europeus e conclui que, em 2010, cerca de 63,6% dos portugueses se
declara feliz. Entre os mais felizes destaca os mais jovens, de sexo masculino, sem
prtica religiosa, com participao cvica e nveis de confiana mais elevados.
Apesar destes resultados serem mais animadores quanto felicidade
declarada dos portugueses, importa perceber quais os factores que contribuem
para influenciar as suas percepes, nomeadamente aprofundando a
compreenso acerca da importncia do contexto social.
Assim, independentemente da fonte analisada, os resultados so
unnimes em colocar Portugal entre os pases com a populao mais insatisfeita14.
13 Lembramos que, em 2011 e 2012, com a aplicao do programa da troika (Comisso Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetrio Internacional), as medidas de austeridade avolumaram-se com reflexo sobre o poder econmico e condies de vida da maioria das famlias. 14 Os resultados apresentados na World Database of Happiness, atribuem aos portugueses uma mdia de felicidade 5,7 (escala de 0 a 10) entre 2000 e 2009. Para o mesmo perodo, a Dinamarca apresenta um valor mdio de 8,3 e a Islndia 8,2, apresentando estes pases os nveis mais elevados de felicidade. Com valores mdios baixos referimos a Bulgria (imediatamente abaixo de Portugal) e a Rssia com 5,5. Os valores mdios mais baixos verificam-se em pases africanos como a Serra Leoa (valores abaixo de 3)(Veenhoven, 2010).
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Ao longo deste primeiro captulo expusemos diversos sinais da crescente
visibilidade da importncia da felicidade. Vimos ainda que tem consequncias
sobre as prticas na medida em que os actores sociais desenvolvem expectativas
face sua vida e forma de sentir.
Face a este problema social e necessidade de aprofundar o
conhecimento quanto s influncias do contexto social sobre prticas, percepes
e expectativas, iniciaremos, em seguida, a sua construo em problemtica
sociolgica. Para tal, revisitaremos os principais contributos para a construo do
conhecimento acerca de felicidade para depois ensaiar uma proposta inovadora
para o seu estudo.
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Captulo 2 - A construo do conhecimento sobre felicidade
Este captulo tem como objectivo apresentar o conhecimento cientfico
existente sobre a temtica. Comearemos por expor o que j se sabe acerca de
felicidade, nomeadamente quais so as dimenses que a influenciam e quais as
consequncias que tem sobre a vida individual e social. Para tal, visitaremos os
contributos da Sociologia, da Sociologia das Emoes e dos Happiness Studies
para o estudo da temtica. Por fim, apresentaremos os estudos existentes sobre
felicidade em Portugal.
Tradicionalmente, a investigao cientfica sobre felicidade foi
desenvolvida essencialmente pela Psicologia, considerando a felicidade como uma
expresso meramente individual de estados afectivos e emocionais, ou uma
questo de personalidade, mas sem considerar a influncia do contexto social.
Esta abordagem felicidade est claramente fora do mbito da Sociologia,
que no se ocupa do que so os sentimentos em si mesmos, mas sim da forma
como colectivamente os entendemos e partilhamos (Castilla del Pino, 2003), ou
dito de outra forma, analisa as formas sociais em que os sentimentos so vividos
(Pais, 2006).
Os estudos mais sistemticos da Sociologia acerca de emoes e
sentimentos tm incio nos anos 70. Incidem a sua anlise sobre o actor social em
contexto e sobre as formas como as estruturas sociais e a cultura influenciam a
activao e o fluxo das emoes (Stets & Turner, 2005). Mais especificamente, o
desenvolvimento da teoria sociolgica leva a considerar que, genericamente,
emoes e sentimentos envolvem a activao biolgica de sistemas corporais,
mas tambm definies culturais socialmente construdas acerca da forma como
as emoes devem ser experimentadas e expressadas numa dada situao. Da
mesma forma, reconhecem a aplicao comum de rtulos lingusticos a sensaes
internas culturalmente partilhados e que a expresso das emoes se realiza
atravs da face, voz e outros indicadores paralingusticos.
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Esta abordagem reconhece ainda que nenhum destes elementos ,
isoladamente, responsvel pela forma como as emoes so experienciadas e
expressadas (Stets & Turner, 2005).
Neste sentido, actualmente alguns autores que se dedicam
especificamente ao estudo da felicidade defendem que esta no unicamente
construda pelo indivduo e dependente das suas especificidades psicolgicas e
biolgicas, mas que tambm fortemente condicionada pelo contexto social em
que o indivduo se insere e do meio social em foi socializado (Frey & Stutzer, 2001;
Veenhoven & Jonkers, 1984). Adicionalmente, a maioria dos estudos actuais
mesmo os da Psicologia destacam a importncia da compreenso das
componentes sociais associadas a felicidade (Layard, 2005).
De qualquer forma, importa realar que no apenas um trao de
personalidade ou uma predisposio gentica (Kringelbach & Berridge, 2010) pois,
se os indivduos diferem nas suas capacidades, tambm os constrangimentos do
meio limitam ou potenciam as suas aces. So as capacidades e as circunstncias
que fornecem o contexto objectivo para a avaliao e processos de percepo
(Averill & More, 2000) e para a orientao da aco (Barbalet, 1998).
Num sentido mais amplo, Jack Barbalet defende ainda que as emoes so
moldadas em enquadramentos macrossociolgicos mais vastos e que a sua
compreenso tem de ir para alm da experincia dos sentimentos individuais,
uma vez que j no possvel sustentar a separao entre percepo e estrutura
social. Mais especificamente, as emoes podem ser percebidas como relaes
sociais, no reduzindo a anlise ao sentimento experimentado, mas incidindo na
interaco na qual o sentimento surge e transformado (Barbalet, 1998)15.
15 Apesar de existirem diferenas entre emoo e sentimento, na literatura surgem, por vezes, de forma indistinta. No trabalho de Mestrado j realizado foi possvel discutir os limites conceptuais entre emoo e sentimento (Roque Dantas, 2007), nomeadamente a contribuio de Antnio Damsio (2003) que nos diz que a palavra emoo tende a incluir a noo de sentimento mas que as emoes parecem preceder os sentimentos na histria da vida e constituir o seu alicerce.
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No que concerne felicidade, os estudos existentes identificaram vrios
factores que a influenciam, nomeadamente as caractersticas do meio social e do
contexto poltico, as condies de vida, mas tambm especificidades individuais.
Assim, a um primeiro nvel, as caractersticas do meio social como a
riqueza do pas, qualidade e estabilidade da economia, e caractersticas polticas
como a democracia, a liberdade e a existncia de paz (tanto no passado como no
presente), ou a participao poltica, tm vindo a ser associadas percepo de
felicidade (Frey & Stutzer, 2001; Veenhoven & Jonkers, 1984). Tambm a
existncia de desigualdades sociais influencia negativamente esta percepo
(Alesina et al., 2004; Graham, 2011a; Pickett & Wilkinson, 2011; Yang, 2008).
Ao nvel das condies de vida, destaca-se a importncia da posio social
(avaliada atravs das caractersticas socioculturais do indivduo como a idade,
pertena a minorias, rendimento, educao, prestgio da profisso, ter ou no ter
trabalho, tipo de trabalho), mas tambm as relaes ntimas com cnjuge, filhos,
familiares e amigos. Esta importncia advm das redes de relaes definirem
oportunidades de vida e quadros de referncia, influenciando a representao
que cada um faz da felicidade (Veenhoven & Jonkers, 1984).
A nvel individual, refira-se a importncia dos traos de personalidade e
dos estilos de vida (estilos de vida mais hedonistas e activos do ponto de vista do
lazer), dos recursos disponveis (fsicos, sociabilidade, nveis de actividade), das
convices (em relao ao prazer, religio e poltica) e das motivaes face
mudana, ao dinheiro, aos valores, famlia, sade e as sociais (Frey & Stutzer,
2000; Graham, 2011a; Inglehart et al., 2008; Layard, 2005; Veenhoven & Jonkers,
1984).
Com base no que foi dito anteriormente, o esquema seguinte (figura 1)
representa as vrias dimenses que influenciam os processos de avaliao e
percepo de felicidade.
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Figura 1 - Dimenses que influenciam a felicidade
Fonte: Adaptado de Veenhoven e Jonkers (1984)
Assim, a percepo de felicidade resulta da influncia de diferentes
dimenses que formam configuraes mais ou menos propcias sua ocorrncia e
percepo. Neste trabalho, a anlise centrar-se- sobre as condies de vida dos
actores sociais, na medida em que definem oportunidades, enquadram prticas e
relaes sociais e a produo de significado culturalmente partilhados.
Acresce, que dada a sua natureza dinmica (Averill & More, 2000), a
felicidade reflectir igualmente mudanas temporais e histricas, pois tal como
nos indica Mcmahon: A reflexo mostra-nos que a nossa imagem de felicidade
totalmente colorida pela poca qual o curso da nossa prpria existncia nos
destinou. O tipo de felicidade que poderia despertar inveja em ns existe apenas
no ar que respiramos, entre pessoas com quem pudssemos ter falado
[](Mcmahon, 2009).
CULTURAESTRUTURA SOCIAL
Processos de avaliao e percepo
CONDIES ECONMICAS SIGNIFICADOS
RELAES INTERPESSOAIS
POSIO SOCIALIDADESEXO
RENDIMENTOEDUCAOEMPREGO
ESTADO CIVILCONDIES DE SADE
ESTILOS DE VIDACIRCUNSTNCIAS PRTICAS
CONDIES DE VIDA
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Assim, se vrias dimenses e sub-dimenses, em contextos scio-
histricos especficos, contribuem para o processo de percepo e avaliao de
felicidade importa perceber de que forma a sociedade contempornea se
relaciona com a procura de felicidade.
A poca actual caracteriza-se por um forte individualismo decorrente das
transformaes sociais e econmicas dos ltimos 100 anos com a melhoria
generalizada das condies de vida e a valorizao da auto-expresso e
liberdade de escolha, mas tambm do sucesso e da nossa responsabilidade
individual para o atingir. Mas a ausncia de caminhos claros e consistentes sobre
como atingir este sucesso abre espao dvida, inquietao e por vezes
frustrao, a par de desejos de viver melhor e da incorporao de modelos sociais
de felicidade onde a sua conquista s depende do prprio.
Neste sentido, Lipovetsky (2007) prope o conceito civilizao da
felicidade paradoxal para descrever a coexistncia de princpios contraditrios
nas sociedades ocidentais da actualidade.
De acordo com este autor, vivemos at mais tarde, em melhor forma fsica
e com melhores condies materiais; cada um responsvel pela conduta da sua
vida; os nascimentos so cada vez mais decididos; os comportamentos sexuais
mais liberalizados; o tempo consagrado ao lazer aumenta constantemente e as
festas e incitaes ao prazer invadem a vida quotidiana (Lipovetsky, 2007). Mas, a
par destas melhorias, explica o autor, assistimos ao aumento do nmero de
depresses, stress e ansiedade; vivemos em sociedades cada vez mais ricas mas
onde cada vez mais pessoas vivem em condies precrias; as solicitaes
hedonistas so constantes, mas existem a par de inquietudes, decepes e
insegurana social (Layard, 2005; Lipovetsky, 2007).
Estes paradoxos tambm esto presentes nos trabalhos de Mcmahon
quando nos refere que: Colectivamente, possumos mais coisas do que nunca, e
continuamos a desejar mais, esperando ser felizes, e ficamos tristes quando no o
somos. E embora em certos aspectos esse sofrimento seja o luxo supremo o
prazer daqueles cujas necessidades mais urgentes j foram satisfeitas ele
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encontra-se, por essa mesma razo, muito generalizado e intenso nas abastadas
sociedades do ocidente [...] (Mcmahon, 2009, p. 456)16.
Partindo deste quadro, questionamos se as caractersticas e contradies
descritas e a importncia crescente da felicidade no sero o resultado de um
processo mais vasto que altera no s as condies de vida objectivas, mas
principalmente, as percepes e prticas dos actores sociais, tal como foi descrito
por Giddens (2002) e Beck e Beck-Gernsheim (2001) como fenmeno de
individualizao.
Podemos ainda pensar nestas questes como sendo uma consequncia
dos modelos sociais de felicidade disseminados que assentam, na sua maioria, na
excepcionalidade individual. De facto, somos confrontados com histrias de vida
extraordinrias e a sua capacidade de contrariar condies adversas e alcanar a
felicidade.
H uma clara valorizao social das capacidades e responsabilidades
individuais para o sucesso e para a felicidade que traduz uma ostentao,
procurando evidenciar uma posio social e uma distino em relao ao outro.
Traduz, igualmente, a responsabilidade individual, uma vez que a felicidade, tal
como o sucesso, depende unicamente do prprio, tal como explica Miguel Real:
[...] uma sociedade profundamente dominada tanto pelo culto idlatra do eu (o
individualismo, o hedonismo, o narcisismo,...) [...](Real, 2013).
Esta veiculao de modelos sociais de felicidade contribui para a formao
de cdigos de entendimento comuns e para a sua penetrao no tecido social e
tanto reflectem como criam necessidades sociais.
Esta centralidade do eu, a par da valorizao crescente da temtica
felicidade e bem-estar, parece assim inserir-se nas transformaes sociais
ocorridas em vrios sectores da sociedade especialmente no trabalho e
educao, ciclos familiares e sistema legal que contriburam para a redefinio
16 Este paradoxo ainda desenvolvido por Bruckner (2003) que nos diz que a infelicidade nas sociedades modernas decorre do enfoque excessivo dado felicidade.
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das condies bsicas de construo biogrfica e para o reforo dos processos de
individualizao (Beck & Beck-Gernsheim, 2001).
Neste contexto, os mesmos autores sugerem que h um aumento da
amplitude das opes possveis ao indivduo muitas vezes contraditrias e
ambivalentes levando ao aumento da tomada de decises nas diferentes esferas
em que o indivduo se move e necessidade de desenvolver capacidades de
ajustamento e integrao, sendo que "[...] a vida social (est) sujeita ideologia
da superao das capacidades de cada um [...]", declara Lipovetsky (2007).
Ser este o caminho a seguir: partindo das transformaes sociais que
conduziram a uma crescente visibilidade e importncia da felicidade, a
problematizao do objecto de estudo ser desenvolvida com base no
conhecimento existente no s directamente sobre o fenmeno da felicidade,
mas enquadrado na reflexo acerca das suas condies sociais de existncia, na
forma como esta influencia as percepes e condutas de diferentes actores
sociais, e ainda como a refle