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L776m

Copyright © Lobão (UP Edições)

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pelaEditora Nova Fronteira Participações S.A. Todos os direitos reservados.Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de bancode dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, defotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

Editora Nova Fronteira Participações S.A.

Rua Nova Jerusalém, 345 – Bonsucesso – 21042-235

Rio de Janeiro – RJ – Brasil

Tel.: (21) 3882-8200 – Fax: (21)3882-8212/8313

Aberturas ao longo do livro a partir de ilustração de copyright @Angeli

CIP-Brasil. Catalogação na Fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Lobão, 1957-

Manifesto do nada na Terra do Nunca / Lobão. - Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2013.

il.

ISBN 978-85-209-3429-6

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1. Lobão, 1957-. 2. Músicos de rock - Brasil - Biografia. 3. Músicapopular - Brasil. I. Título.

CDD: 927.824166

CDU: 929:78.067.26

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AGRADECIMENTOEu gostaria de agradecer do fundo do coração

às pessoas que me aturaram e meincentivaram durante toda a concepção destelivro: a Cristiane Costa (Cris), minha editora,por toda a sua ajuda, suporte, e por ter sido apessoa que sugeriu escrevê-lo, e também aXanda Lemos, Rose Borges, João Puig, MariaOdília e a minha querida Regina.

Dedico este livro à memória de meu pai.

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SUMÁRIO

Capa

Folha de Rosto

Créditos

Agradecimento

Prólogo: Aquarela do Brasil 2.0

1. A Terra do Nunca

2. Um pequeno mergulho no mundo sertanejouniversitário (acidentalmente gonzo)

3. Vamos assassinar a presidenta da República?

4. Por que o rock continua errando?

5. O reacionário

6. Viagem ao coração do Brasil

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7. Confesso a vocês: sou uma besta quadrada

8. A utopia antropofágica revisitada — Cartaaberta de Lobão a Oswald de Andrade

Glossário

Bibliografia

Créditos

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PRÓLOGO

AQUARELA DO BRASIL 2.0

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Exilado, voava do futuro assobiando umréquiem.

Planava pelos desertos do esquecimento

sentindo uma saudade intensa,

que, de tão grande, curvava o espaço e o tempo.

Uma saudade não sei de quê, não sei de quem.

Deve ser efeito do exílio prolongado.

E na jornada de retorno,

deparo a Aniquilação,

como a encarnação da sedução,

esbanjando simpatia, docilidade e alegria,

pronta para sentenciar o fim dos loucos,

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da vertigem, do voo e da ousadia.

A celebrar em êxtase a vitória dos simplórios,

a vitória da classe média endividada,

perambulando feito zumbi no shopping center,noite e dia.

Perseguindo, no vazio da virgindade existencial,

uma diversão que jamais sacia.

Acolhendo, em Seu seio,

playboys agrobregas a desfilar pelos rodeios,

arraiais e micaretas, caçando a língua dasperiguetes de

[abadá,

que coisa louca!

Transformando um contato exclusivo numa

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olimpíada de

[beijos,

colecionando triunfantes, bactérias, herpes edesejos,

como troféus de céu da boca.

A abençoar intelectuais, empanturrados depropinas

com suas ideologias fossilizadas, um monte devaselina...

impondo goela abaixo um nacionalismo baratopara

[universitários otários

regurgitarem pastiches viciados, repletos devaidade

[imerecida,

ao som das mais horrorosas canções que ouvi

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na vida,

ao balanço dos mais grotescos rebolados.

Com a santa ignorância dos que defendem,cegos, suas teses

Acobertando num silêncio um tanto cínico,aloprados e

[bandidos

de um governo cheio de reveses,

catequizando suas verdades imutáveis e eternas,

a patrulhar, ameaçar, comprar, reprimir(quando não,

[simonalizar)

todos aqueles que não se alinharam

nessa patuscada triste que eles mesmosinventaram:

A Inveja da Pobreza. A cartilha do bom

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brasileiro.

A terraplanagem é por baixo e a laje é o limite,

[companheiro!

Para o inferno, vocês, proprietários dessasverdades de

[merda.

Fascismo não é monopólio da direita nem daesquerda.

Fascismo é imposição inflexível e truculenta deverdades

[sacralizadas,

geralmente por bem-intencionados perpetradas.

Estou farto de bem-intencionados. Além denocivos, são

[cafonas.

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E o Sol exibia uma crista vermelha de fogo,

como se tivesse extraído todo o sangue dospenhascos do

[mundo,

me levando no seu calor a rasgar o ar fazendo ovento

[soprar

meus farrapos alados, para além de qualquersegurança,

e, das alturas, mergulhar no abismo da gargantamais

[profunda

à procura da face perdida da esperança.

Você é dependente de ideias pré-fabricadas,

patrocinadas por um bando de salafráriosautoindulgentes.

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Você é um faminto de misérias embelezadas

que se alimenta de migalhas, a você atiradas

como um animal domesticado,

abanando o rabo, agradecido e contente.

Você faz parte de um rebanho de presas fáceis

repletas de sonhos fenecidos.

E eu? Eu sou o lobo do homem, uivando praLua,

sozinho, vencido.

Vencido, como se soubesse a verdade, mas livre,

Assustadoramente livre.

Você acredita em tudo que te mandam,

mas se ofende com tudo o que eu te digo.

Você esquece que a ofensa que vigora

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é pura reação, castigo pelo castigo,

sempre em guarda cultivando essa paixão:

o ódio sem razão. Que perigo!

…engendrando o prejulgamento,

a ignorância, a irresponsável precipitação.

A ofensa é o expediente do imbecil.

Sangue e armadilha nos esconderijos docoração!

Não basta apenas esperar por leite e mel,

às vezes, pra ser bom, é preciso ser cruel.

O brasileiro é sempre um bonzinho.

Somos o povo mais sorridente do planeta,

esse eterno país da micareta,

apesar dos 50 mil assassinatos produzidos todoano,

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sem precisar de guerra civil nem de terroristamuçulmano.

Pelas estatísticas mundiais, para haver guerracivil,

é necessário matar, pelo menos, uns 10 mil.

Uma pechincha comparada ao montantemacabro

do nosso número imbatível: 50 mil, 50 mil, 50mil!

E terrorista? Quem, por aqui, precisa deterrorista?

Terrorista é coisa pra amador.

O Brasil é só para profissionais. O Brasil é oTerror!

O Brasil é o Terror!

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O Brasil dos estupros consentidos na surdina,

dos superfaturamentos encarados como rotina,

dos desabamentos e enchentes de hora marcada,

dos hospitais públicos em abandono genocida,

dos subsídios da Cultura a artistas consagrados,

dos aeroportos em frangalhos, usuáriosindigentes,

dos políticos grosseiros, como sempre,subornados,

de cabelo acaju e seus salários indecentes,

da educação sucateada pelo Estado

em sua paralisia ideológica, omissa eincompetente.

Do racismo galopante, na internet,

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nas universidades e nas ruas,

com as suas manifestações hostis.

Da queima de índios e mendigos,

por meninos bem-nascidos.

Do apedrejamento, vilipêndio e morte

de mulheres, prostitutas e travestis.

E lá vamos nós, descendo a ladeira!

Rebolativos, minhóquicos, supersticiosos,

crédulos, inabaláveis, venais…

amantes de uma boa trapaça...

com nossa displicência carnavalesca espetacular

e os repetecos anuais dos feriados enforcados dedestruição

[em massa.

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E não me venha com essa lenga-lenga do tipo

“não gostou, se manda! vai pr’outro lugar”,

porque eu estou aqui para exterminar:

vossa hiponga modorra, vossa preguiçamacunaímica,

vosso caráter vacante, vossa antropofagia cínica,

pois esse lugar também me pertence,

e ninguém vai me calar. Ninguém vai me calar.

E nas almas de artistas natimortos

em berço chapa branca e exangue,

ecoam as vozes dos cadáveres insepultos desempre,

impondo língua morta a se eternizar

numa geração de frouxos engrossando suagangue.

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Frouxos, acometidos por

síndrome de dignidade intelectual.

Espalhando o evangelho da Mediocridade

para milhões de populares e estudantessemianalfabetos

com o beneplácito da imprensa oficial.

E no cagaço metafísico

das multidões de contritos telerredimidos

brota o pavor da morte, da vida, do sexo,

da doença, da pobreza e do castigo.

Fazendo bispos milionários,

gângsteres do paraíso,

lotearem pedacinhos do firmamento

para histéricos apocalípticos aguardarem

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o fim do mundo fora de perigo…

Às vezes é mais exato ser impreciso, contradito.

Ser o Terror da próxima edição, a Corrosão, oMaldito

dos jornais que me inventam em manchetes

tentando me silenciar em vão.

Uma pena que nunca me enxergaram,

nem nunca me enxergarão…

É subestimando o inimigo que se perdem asguerras

e, por isso mesmo, agradeço a desatenção.

Pois agora é tarde e a Eternidade é Agora.

O brasileiro, com sua autoestimapermanentemente

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[precária,

vive adernando entre Ali e Outrora

num orgulho às avessas, que destrói

qualquer possibilidade de enxergarmos

o que verdadeiramente somos,

e isso dói.

Uma nação que se recusa terminantemente acrescer,

paralisada por um embevecimento geonarcisista,

[indolente e servil.

Bem-vindos à Terra do Nunca!

Bem-vindos a essa pocilga chamada Brasil!

E eu? Eu sou o Nada,

o Fim da vossa picada,

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o Oblívio dos desatentos,

a Ira da reação,

o Exterminador de todos vocês,

bunda-moles de plantão.

Muito prazer! É chegada a vossa hora!

Comecem a rebolar como é do vosso feitio,

pois eu voltei para decretar o fim

dessa festa pobre que vocês armaram.

Dessa lambança de favorecimentos eapadrinhamentos

de causar náuseas, vômitos & arrepios,

desse imenso arraial brega, tosco e vazio,

um fim por mim ansiado, premeditado,

e já há muito tempo datado, tardio.

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Agora, mãos à obra.

Estou na área e vamos começar.

Agora é necessário andar entre os pedestres,

viver as suas banalidades

e convocá-los, enfim, para o desafio

que é o delírio de viver e de voar.

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CAPÍTULO 1

A TERRA DO NUNCA

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Amamos a pobreza.

O que mais me impressiona é a quantidade degênios que nossa cultura produz, a formularteorias incríveis no intuito de proteger essepatrimônio de que, tristemente, acostumamos anos envaidecer. Isso gerou uma forma singular deautoengano: nos achamos especiais através dosnossos piores defeitos. Com esses defeitos,criamos uma cosmogonia em que o brasileiro é umser gentil, sorridente, pacífico, malemolente (osuingue da raça) e único no mundo. E talvezsejamos mesmo, infelizmente.

Na procura por alguma explicação razoáveldessa sistemática tendência à autoesculhambaçãototêmica, acabei por escrever este pequenomanifesto.

Este livro nasceu da minha necessidade demergulhar na alma do brasileiro e levantaralgumas questões: Por que tanto orgulho em trocade resultados tão pífios? Por que essa monomania

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de se forjar primitivo? Por que ser tão reativo aqualquer ideia que não seja a oficial aceita nosmeios intelectuais? Por que cultivar de formaobsessiva um ideário falido em todo o mundo? Porque nos contentarmos com tão pouco? Por que onosso pavor do lucro?

Uma das mais emblemáticas circunvoluçõesfilosóficas que encontrei nessa intensa busca foi ateoria do déficit essencial do homem, cometida porOswald de Andrade, em que ele nos mostra oporquê de o homem ser um subanimal entre todosos animais. Sim! Um elefante já está pronto para avida adulta aos dois anos de idade enquanto ohomem demora vinte.

Essa pérola foi achada num manuscritochamado O antropófago, de umas 150 páginas,impressionante jornada pela história dahumanidade em que Oswald, municiado de umaprofunda erudição, nos brinda com exuberantesteses em relação ao grau de evolução da nossa

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espécie. O mais impactante é justamente quandoele apresenta a ideia do déficit essencial.

Contudo, o buraco é mais embaixo! Quando nosflagramos perplexos com a aparente excentricidadede seu raciocínio, Oswald nos monta umaemboscada sensacional e lança seu xeque-mate: otrabalho é fruto do homem inferior, pois o ócio étudo o que o ser humano deseja.

O homem que habita regiões temperadas, queenfrenta as intempéries da natureza, seria forçadoa perder seu precioso tempo inventandotecnologias para sobreviver ao rigor do clima e àinclemência das calamidades naturais, enquanto ohomem da zona equatorial, como estivesse sendocultivado no útero do mundo, aproveitaria asuperioridade existencial para desfrutar 100% doócio. O tipo de ser que não nasce: estreia.

Esse ser superior nunca teria a menornecessidade de entabular grandesempreendimentos, vivendo num feliz matriarcado

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primitivo, em que ninguém tinha muita vontadede saber quem era o pai de quem, numacomunhão tribal cósmica e se alimentando de seusinimigos, que, eventualmente, eram cozinhados edeglutidos com toda a cerimônia pela tribo.

Não gastarei tempo com detalhes dessemanuscrito, pois o último capítulo seráinteiramente dedicado a uma amistosa invasão aoManifesto antropófago, e o foco deste primeirocapítulo é um panorama geral de nossa cultura esuas repetições de padrão.

Vamos mergulhar agora no perfil do rebento,herdeiro dessa esquisita filosofia que acabouinculcando uma monomania no nosso imagináriocoletivo: o carola estatizado.

O INTELECTUAL DE ESQUERDA: UMCAROLA ESTATIZADO

Num clima de estupidez ideológica, estelionatointelectual ou, simplesmente, suborno, a grande

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parte dos artistas, dos cineastas, da imprensa e dosintelectuais está nocauteada. Quem ousa teceralgum comentário um pouco mais crítico sobre arealidade que nos rodeia acaba sofrendo violênciasmorais e psicológicas, sempre no intuito deeliminar o interlocutor.

Como somos seres ungidos por uma naturezacustomizada que nos distingue do resto dahumanidade, resolvemos optar por essa forma deperceber o mundo, absolutamente destacada dequalquer resíduo de razoabilidade. Somos osuprassumo da precariedade, a nata damalandragem agúlhica, de um nacionalismochauvinista, e isso nos dá uma noção meiopsicodélica de superioridade em relação aorestante dos outros meros mortais espalhados peloplaneta.

Talvez esse comportamento seja fruto de umtipo coletivo de bipolaridade em que a alegria é umimperativo maníaco-depressivo. Somos o povo

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mais alegre do mundo!

Nessa maneira singular de encarar a vida, nasceuma espécie muito peculiar que reina soberana nanossa terra, patrulhando incautos e dandocarteirada nos descontentes, filha de um marxismoguarani-kaiowá de butique, uma espécie que,apesar de sua aparente e impositiva festividadecarnavalesca, é a encarnação vívida da ofensa, daobtusidade e do recalque: o carola estatizado.

No meu caso particular, como sou uma pessoapraticamente desprovida de “cuidado” em mecomportar na linha, vivo tropeçando em incidentesdos mais reativos possíveis. Um dia, após chegarde uma turnê, comentei no Twitter que estavairritadíssimo com a infraestrutura do país, asestradas federais numa buraqueira dos infernos,sem sinalização, sem iluminação, os aeroportoscaindo aos pedaços, superlotados, voos atrasados,ou seja, não era algo que eu havia lido por aí: eu

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tinha acabado de vivenciar, de sofrer na pele aprecariedade da parada.

Pois bem, por essa declaração, fuiinstantaneamente admoestado por ofendidíssimoslegionários governistas a bradar que o Brasil estámuito melhor, que nunca estivemos tão bem, queaquela declaração era puro preconceito, e, sendoassim, fui sumariamente diagnosticado como...brasilfóbico!

É a verdadeira Terra do Nunca, onde nosrecusamos a crescer e com uma religião de Estadopromovida por autoproclamados progressistas: osnossos carolas estatizados.

A MPB É UMA SIGLA DE PROVETA?Vamos começar falando sobre o panorama

cultural da nossa nação, atualmente zumbi (nosentido de morto-vivo, por favor), vamos dar umaolhada em como a nossa intelligentsia “pensa” opaís: vivemos uma realidade delirante. Sim, temos

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sempre que recorrer ao passado, a uma hipotéticaera de ouro, que sempre está fora do nosso alcancetemporal.

Querem saber por que eu penso assim? Poisbem, existe uma invariância de estruturas quegovernam o (des)conhecimento, sancionadas poruma cartilha ideológica, emulando um presentedecalcado de um passado cenograficamenteglorioso e impossível de ser superado. Na música,a MPB, sigla criada na época dos festivais paradesignar a produção musical de quem se alinhavaao pensamento de esquerda nos anos 1960 e paraexcluir os demais (sob todos os pretextos), é oexemplo típico de indução por meio da repetiçãoobsessiva para dar a ideia de que a qualidade e aexcelência do nosso cancioneiro, de que os grandesgênios e arautos da liberdade eram um fenômenoexclusivo daquela época e daquela sigla de proveta.

No final do século XIX, o intelectual brasileiro,órfão da monarquia, procurava desesperadamente

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construir uma nova identidade nacional a partirdas condições reais da existência do país: apobreza. Houve um grande fluxo de pesquisas eobras voltadas para o interior, mas sempre numaabordagem um tanto forçada, afetada. Na verdade,havia um certo incômodo em perseguir umaidentidade brasileira tão diferente da realidade emque esses intelectuais bem-nascidos foramformados. E essa procura, a meu ver, jamais tevefim.

Assim, adentramos o século XX, vem a Semanade 1922 e seus conceitos revolucionários acabampor dar, vamos dizer, uma turbinada na imagemdo índio civilizado, transformando-o numorgulhoso antropófago (entretanto, amável,matriarcal e gentil). Dessa maneira, o problema datal identidade nacional foi ficando cada vez maiscomplexo, cada vez mais delirante, cada vez maisdistante de qualquer tipo de realidade palpável.

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Nascia um nacionalismo ensandecido do qual agrande maioria de nossos intelectuais e artistasjamais se livraria, tanto pela esquerda como peladireita. Roland Corbisier, um dos fundadores doIseb, instituição sobre a qual comentarei logoadiante, costumava dizer que, antes do movimentomodernista, o Brasil era simplesmente pré-história.

Escritores da década de 1930, como GracilianoRamos e José Lins do Rego, tinham lá suas rusgascom a Semana de 1922 e alguns anunciaram amorte do modernismo, contudo, no final dascontas, permaneceram focados na realidadebrasileira como centro da questão. A mesma coisaocorre com a geração de 1945: João Cabral deMello Neto, Ariano Suassuna, Guimarães Rosa,todos sempre voltados ao tema regional.

Nos anos 1950, nascia o Iseb (Instituto Superiorde Estudos Brasileiros) e, com ele, uma

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terminologia que se tornaria muito familiar atodos nós nas décadas vindouras: o colonizadocultural, o alienado cultural, expressões cujapujança ameaçadora equivaleria, em termos deofensa, a ser chamado de reacionário ou de direita.Tudo em nome da “autenticidade cultural”. Estavaformada a espinha dorsal para o nosso cinema,teatro, literatura e música. As teorias do Isebinfluenciarão tanto a esquerda como a direita,assim como o fez a Semana de 1922.

O elo vai se formando. Viveremos a época deouro dos festivais, em que vários artistas comoGeraldo Vandré, Gilberto Gil, Caetano Veloso,Chico Buarque, Macalé, Paulinho da Viola, MPB4,Os Mutantes, Raul Seixas, entre tantos outros, selançaram. Apesar de haver um cardápio bastanteeclético, o que se sedimentou no nosso imagináriofoi o conceito de MPB e sua busca da purezagenealógica da canção brasileira.

Com a Revolução de 1964, o Iseb foi extinto e

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em seu lugar nasceu o CPC (Centro Popular deCultura) da UNE. É nesse momento que osconceitos da MPB começaram a ficar mais claros.Justamente no governo Médici, a Semana de 1922ganha sua devoção definitiva, se incorporando parasempre na cultura e no imaginário do brasileiro.Ossos do nacionalismo reativo.

Me lembro que, em 1972, nas aulas de moral ecívica e português, estudávamos a Semana de 1922com um patriotismo religioso. Foi daí que comeceia entender mais a Tropicália, que, antes, admiravabasicamente por ter guitarra elétrica e OsMutantes. Mas concluí que, se a Semana de 1922era boa para a Tropicália e para a ditadura militar,deveria haver algo de muito errado... comigo!

Voltando à MPB: pensamentos datadosdesenvolvidos pelo CPC e seus intelectuais deesquerda, mesmo naquela época, iriam configuraruma estética ultranacionalista que via a bossa novacomo fenômeno de colonização cultural. Nomes

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como Tom Jobim, Dick Farney e Johnny Alf eramseveramente taxados de americanizados. Com otempo, a bossa nova acabou se integrando aopapauêra da UNE e, assim como a Tropicália e as“músicas de protesto”, virou o que nósconhecemos por MPB. É o intelectual assumindo opapel de médium, porta-voz e embaixador do queconsidera e taxionomiza como “popular”.

A MPB NA MINHA FORMAÇÃO,SUA ARISTOCRACIA, SEUS PÁRIAS

Durante a minha formação musical, eu tinha anítida sensação de que qualquer compositor,cantor, cantora, banda, de uma maneira ou deoutra, acabava sempre por sofrer recaídas da talsíndrome de dignidade intelectual de fundonacionalista reativo. Sempre houve umacompulsão em buscar uma genuinidade inatingívelno que é popular dentro da cabeça do intelectual,pois de popular mesmo essa alucinação coletivanão tem nada.

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É o que Umberto Eco chama de falso absoluto,tipo a Vênus de Milo com dois braços.

Popular mesmo nos anos 1970 eram Odair José,Waldick Soriano, Lindomar Castilho, Benito dePaula, Paulo Sérgio, Antonio Marcos, OrlandoDias, Jane & Herondy, Roberto Carlos (na décadaanterior, a encarnação do roquenrou, o Rei daJovem Guarda), assim como, nas décadasanteriores, Cauby Peixoto (que foi o primeirocantor a gravar rock no Brasil), Nelson Gonçalves,Orlando Silva, Chico Alves, Silvio Caldas.

Entretanto, o que contava mesmo como statusde artista da MPB eram cânones muito distantesdo que realmente tocava nas rádios e vendia feitobanana na feira. O filtro de qualidade, em busca dagenealogia perfeita, passava por um travestimentode baixa energia, pretensioso, chato, muito chato.Essa técnica de constrangimento cultural é muitoeficaz e vigora imutável até os dias de hoje.

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Eu próprio fui contaminado algumas vezes, atéme ver livre dela há bem pouco tempo.

Até mesmo meu amigo, padrinho e gênio dasoul music, Tim Maia, acabou por fazer um discodedicado à bossa nova devido a uns conselhos dofalecido Almir Chediak (autor da popular série delivros com músicas cifradas chamada SongBook).Não foi, definitivamente, seu melhor momento.

Um gênero bastante criticado pelos intelectuais,taxado de colonizado, foi a chamada soul music,depois black music, depois funk music, comgrandes cantores e compositores do porte deCassiano, Carlos Dafé, Toni Tornado, OsDiagonais, Tim Maia, Sandra Sá, Black Rio, LuizMelodia, maestro Erlon Chaves e Banda Veneno.

Poderíamos incluir aqui outras ramificaçõesmenos características da black music, o samba-rock, com o nosso querido Jorge, até então Ben (só

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ganhou reconhecimento mesmo quando foicatapultado para o sucesso internacional através deSergio Mendes & Brasil ’66 com “Mas que nada”),o Trio Mocotó, assim como Wilson Simonal e omovimento da pilantragem de Carlos Imperial.

Essa salada de subgêneros aprovados comalguma relutância pela intelligentsia veiodesembocar no rap e no funk carioca.

O rap se estatizou. O funk ainda é consideradoum pária cultural na sua poderosa anarquia.

Alguns nomes foram perseguidos, como ToniTornado, Erlon Chaves (morreu logo depois doultrajante sucesso do Festival Internacional daCanção de 1971, “Eu também quero mocotó”, esua antológica performance sexy com louras seesfregando nele) e Tim Maia, que todos do meioteimavam em chamar de malucão por emitirsinceras, precisas e ameaçadoras informaçõessobre as falcatruas da indústria do disco e do jabánas rádios. Acabou morrendo sozinho, mas um

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ano depois vieram a gravar um daqueles abjetostributos post mortem, realizado pela Som Livre, deque participei. Cassiano, outro gênio como cantor,compositor e arranjador, se tornou maldito, e LuizMelodia, um maldito com algum reconhecimentoda MPB.

Nos anos 1960 e 1970, Marcos e Paulo SérgioValle realizaram um sem-número de grandesmúsicas. Marcos fez o caminho inverso da maioriados artistas do período: um tremendo pianista,grande compositor, veio da bossa nova e decanções de festival para se tornar mais“colonizado” com traços de soul music, jazz e rock,como no tema instrumental da novela Véu de noiva.Compôs também a canção do par romântico damesma novela, “Teletema”, além de “Mustang corde sangue” e “Black is Beautiful”.

Já Gal Costa (Gal fatal é um disco antológicogravado com o power trio formado por Lanny

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Gordin, Bruce Henri e Tutty Moreno) e Os NovosBaianos (É ferro na boneca!, com Baby Consuelo ePepeu Gomes ensandecidos, era “pauleirahendrix”, como se dizia em Arembepe) iniciaramsuas carreiras com atitudes e sonoridades bastanteacentuadas de roquenrou, mas, logo em seguida, abossa, a brasilidade tropical preponderaram.

No início dos anos 1970, tivemos mais umainvestida “conceitual” da MPB com o MAU(Movimento Artístico Universitário), encabeçadopor Ivan Lins, Gonzaguinha e Cesar Costa Filho.Esse movimento foi alçado ao mainstream em umprograma de televisão gravado originalmente napraia da Urca, o Som Livre Exportação, apresentadopor Ivan Lins e Gonzaguinha.

Esse programa lançava também uma novagravadora, a Som Livre, que tinha como metaexportar os novos valores do nosso cancioneiro, omelhor da MPB das novas gerações, mas acabou

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virando um selo da Globo para vender trilhassonoras de suas novelas.

Considero, com todo o respeito, Gonzaguinha,ao lado de Edu Lobo, uma das figuras maisinsuportáveis da nossa MPB. Talvez o ser maisemblematicamente MPBístico que já habitou estepaís: músicas politicamente engajadas, uma certaalteridade sexual e alguns sambões maníaco-depressivos. Música para se ouvir comendolinguiça com cachaça. Agora, seu pai, o Gonzagão,era uma figura maravilhosa, além de um músicoexcepcional e único.

Cesar Costa Filho, surgido nessa mesma safra,virou compositor de sambas e canções de festivais.Ivan Lins iniciou a carreira cantando num estilorascante, com um forte pé na soul music e cançõescomo “Agora” e “O amor é o meu país”, para, maisadiante, amenizar suas interpretações e evidenciarmais seu lado harmônico, se tornando muitorespeitado internacionalmente como uma espécie

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de herdeiro de Tom Jobim.

No meio disso tudo surge um fenômeno quealteraria a história toda: Secos & Molhados. Seuprimeiro álbum veio com uma linguagem únicamisturando rock, fado e poesia, somados à vozsingular de Ney Matogrosso. Infelizmente, osegundo disco não obteve o mesmo sucesso e ogrupo se desfez. Ney prosseguiu em carreira solo,mais voltada para a MPB.

Em meados dos anos 1970, também tivemos umtipo de tentativa de levante para tirar da Tropicáliaa hegemonia na MPB (leia-se Caetano e Gil,posteriormente parceiros na formação damisteriosa e impalpável Máfia do Dendê,expressão eternizada por Claudio Tognolli em umareportagem investigando o sistema de“influências” da dupla), entabulado pela rapaziadado Ceará, Fagner e Ednardo, com a presença deAlceu Valença, de Pernambuco. Não deu lá muito

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certo: Fagner optou por uma carreira de músicaromântica, Ednardo, com seu “Pavão misterioso”,voltou para o Ceará, e Alceu, quando recebeprêmios por seu trabalho, é sempre enquadrado nacategoria “regional”. No final dos anos 1970, ZéRamalho tornou-se o grande nome do segmento.

Ainda tivemos o último estertor da era dosfestivais, o Festival Abertura, que lançou nomescomo Djavan, Walter Franco e Alceu Valença.Djavan iniciou sua carreira fazendo sambas edepois foi sofisticando sua estética musical para setornar também internacionalmente reconhecido.Walter Franco, poeta, compositor conceitual muitocriativo, é reverenciado pelo underground, contudonão é devidamente considerado um genuíno artistade MPB. Alceu, que chegou com uma pegada derock, é um artista versátil e habita várias áreas demúsica brasileira (mas ficou o rótulo).

Na sua penúltima versão, em 1981, o Festival

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Shell lançou a Gang 90 & Absurdettes e consagrouGuilherme Arantes, nosso Elton John, poderoso hitmaker (que, na verdade, ganhou duas vezes nomesmo ano, pois além de vencer o festival com“Planeta água” ainda beliscou o segundo lugarcomo coautor-“fantasma” de “Perdidos na selva”).Guilherme se inseriu na dita MPB com o aval deElis Regina, a maior voz do gênero.

Elis conseguia me emocionar por ser muitoexposta, à flor da pele, com uma garratransbordante, técnica perfeita, sempreacompanhada por músicos fantásticos, mas, paraser sincero, de vez em quando me flagrava irritadocom determinados cacoetes e alguma afetação,além do repertório quase sempre maçante que acaracterizou como musa da MPB.

Júlio Barroso, líder e idealizador da Gang 90,parceiro, amigo, agitador cultural de múltiplasfacetas, poeta e visionário, morreu muito cedo, ecom ele todas as minhas esperanças em tornar

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viável uma estética eletrificada, potente e livre dechavões preconcebidos como o da MPB.

O que se pode concluir com esse panorama éque temos arraigados em nossas entranhas víciosde autoimagem que nos arremessam ao mesmolugar. Vivemos num presente contínuo em que osmesmos valores e as mesmas figuras se repetemao infinito, sem que qualquer alteração relevantepossa ser vivenciada.

Essa atitude monomaníaca é uma mentalidadeconcebida pelo filósofo revolucionário franco-argelino Frantz Fanon: a vocação histórica de umaburguesia nacional seria de “se negar enquantoburguesia, de se negar enquanto instrumento docapital, para se tornar totalmente escrava docapital revolucionário”. Com esse discurso deesquerda idiota, fomos vitimados por uma vastaprodução de canções dedicadas a traduzir arealidade do povo através do delirante e culpado

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ponto de vista do intelectual/artista da classemédia, no sentido de doar uma verdadeira“consistência” a algo a que o povão não tinha omenor acesso, pelo que não tinha a menorempatia, muito menos interesse: a música decunho social com letras que deveriam ser...inteligentes.

Daí a grande frase atribuída a Joãosinho Trinta:quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta éde luxo.

Agora, além das nossas atividades artístico-musicais, nosso imaginário coletivo também vivese retroalimentando de conceitos herdados de“heróis libertários”, sempre os mesmos. Járepararam? É o Lamarca, o Marighella ou qualqueroutro que se autoproclame um ex-guerrilheirocombatente da ditadura militar. Símbolos emrepetição buscando uma performance ideológica eexistencial que se afaste de qualquer desvio ou

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oposição da norma. A reação é a situação.Marcação cerrada.

Essa compreensão da palavra “libertário”ganhou contornos próprios e, não raro, transmitejustamente o contrário de seu significado original.

O libertário é, na viciada compreensãogeneralizada, uma criatura que pegou em armasnos anos 1960 para impor uma ditadura no Brasil,com o álibi capenga de lutar contra uma outraditadura. Qualquer ditadura é injustificável, e essepessoal, com raríssimas exceções, teimapatologicamente em negar esse singelo detalhe.Anseiam de maneira apaixonada que Cuba sejaaqui.

Hoje em dia, não conseguir enxergar e abominaro que acontece em Cuba é, no mínimo, imoral,quanto mais apoiar! E o governo do PT é associadoe cofundador do Foro de São Paulo (Lula & Fidel),que visa a implementar uma ditadura doproletariado continental, tipo uma União Soviética

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chicana. Tem gente que acha essa realidade, repletade provas e fatos, uma simples teoria daconspiração.

HIPNOSE COLETIVANossa lavagem cerebral vem desde a escola e a

história é sempre a mesma.

Não nos ensinam história: nos ensinam ahistória oficial que o marxismo cultural dita, que ogoverno atual dita. Os livros de história brasileirasão, em sua grande maioria, pura ficção ideológica,e isso não nasceu no governo atual. Já vem do finaldos anos 1960, quando a gente aprendia, juntocom aquele monte de hino, a cantar o cancioneiroda nossa MPB subversiva nas aulas de moral ecívica (matéria implementada pelo governomilitar!).

Era surreal. Nos ensinavam hinos de todas asmodalidades possíveis convivendoharmoniosamente ao lado de músicas de Chico

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Buarque! Uma sensação bastante esquizofrênica.

A Semana de 1922, com seu aspectorevolucionário, também era caso de curto-circuitomental, mas, se pararmos para pensar, não háatrito algum nesse tipo de pseudoparadoxo; sãotodos nacionalistas ferrenhos, e é este o elo danossa história que se repete: o nacionalismoreativo.

Temos um imaginário coletivo sequestrado,hipnotizado e reformulado artificialmente.Qualquer um que estiver lendo este livro irárecordar seu aprendizado escolar e perceberá apresença invariável desse tipo de doutrina. Voucontar uma história emblemática e, creio, todosvocês passaram por situação semelhante, de umaforma ou de outra:

Quando fui obrigado a sair do Colégio Rio deJaneiro, para não repetir o primeiro ano do

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segundo grau (era assim que se chamava naqueletempo), meus ex-colegas que continuaram o cursovieram a ter aulas com uns professores comunistase, de repente, do nada, começaram a apresentarsintomas esquisitíssimos (outros poucos quetambém entraram em contato com essaonipresença educacional só sobreviveram aoataque por serem surfistas, fãs de roquenrou ou,simplesmente, espíritos mais livres).

Aqueles caras que ouviam comigo Led Zeppelin,Os Mutantes, Tim Maia, James Brown, BlackSabbath, Wilson Pickett, Curtis Mayfield, Ike &Tina Turner, Cassiano, Jorge Ben, Som Nosso deCada Dia, A Bolha, Módulo 1000, Toni Tornado,The Who, Paulo Bagunça e a Tropa Maldita,Rolling Stones, David Bowie, Roberta Flack, IsaacHayes, Som Imaginário, Sá, Rodrix & Guarabyra,Marvin Gaye, Velvet Underground, Beatles, PinkFloyd... magicamente, do dia pra noite, meapareciam lá em casa com Pablo Milanés, Chico

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Buarque de Hollanda, Mercedes Sosa, MiltonNascimento, Edu Lobo, Luiz Gonzaga Jr., MariaBethânia.

Peraí... os meus amigos passaram por essaincrível metamorfose logo no início do ano letivo!Deixaram de ler frivolidades corriqueiras comoEram os deuses astronautas, 2001: uma odisseia no espaçoe, de uma hora pra outra, desandaram a me trazer,com os olhos marejados de emoção, novidadesestapafúrdias para minha curta compreensão,coisas do tipo de A ilha, O cavaleiro da esperança,Vidas secas...

Trocaram seu guarda-roupa comum, seus jeansdesbotados e seus tênis Rainha, por umaindumentária milimetricamente desgrenhada, umabarbicha na cara, uma sandália de couro, epassaram a adotar uma postura padrão de vítimalatino-americana, a falar mal do irmão rico emalvado do Norte.

Começaram a frequentar botequins e ter o

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hábito de reclamar do mundo capitalista regados alinguiça com cachaça, com o Gonzaguinha defundo musical, investidos de uma autoridade e deum conhecimento que, em absoluto, teriam temponem capacidade de possuir.

Estava flagrante que eram repetições dehipnotizados. Engrossaram o bloco da folclórica edecantada esquerda festiva, verdadeiros porta-estandartes da inoperância, genuínos leitores derodapé. Pensavam em se engajar na luta armada.Me lembro que era muito chique vangloriar-se porser maoista, dizer-se um apaixonado pelaRevolução Cultural chinesa... Muito chique ser fãdo Che e do Fidel. Diziam que nós, brasileiros,através da luta nos campos e nas cidades, comações terroristas e total eliminação do porcoburguês, ainda chegaríamos àquele estágio algumdia.

Eles só pensavam nisso. A meu ver, se tornaram

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uns pentelhos. Se transformaram em clichêsambulantes.

E os filmes? Deixaram de assistir a coisas comoAs 24 Horas de Le Mans, Easy Rider, Woodstock, parase enfurnar no Cine Paissandu, reduto deintelectualoides, e assistir inebriados de tédio aJean-Luc Godard, Ingmar Bergman e aquelaspérolas do Cinema Novo. Por falar em CinemaNovo, Glauber Rocha seria dramaticamentedefenestrado pela esquerda ao final de sua vida porquerer tentar algum diálogo mais racional com ogeneral Golbery. Foi “simonalizado”.

E tome clichê...

Por minha vez, para fugir da repetência, minhamãe me matriculou no Colégio São Vicente dePaulo. Aí a coisa se intensificou, pois, apesar deser um colégio de padres, era ostensivamente deesquerda. É meio difícil entender como religiososhaveriam de chancelar uma doutrina ateia que,desde sempre, queimava, sem a menor cerimônia,

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todas as igrejas por onde passava, mas...singularidades brasileiras...

Por pura intuição (não possuía nenhumdiscernimento do que realmente estavaacontecendo comigo nem com o mundo, muitomenos do que era direita ou esquerda), eu nãoabria mão do meu roquenrou, mas, mesmoachando chatos aqueles caras que mandavam nocolégio, acabei relutantemente sendo influenciadopelo clima reinante e contraí a tal síndrome dedignidade intelectual, que consistia numa obsessãodoentia por ser conscientizado, politizado e culto,em total repúdio ao que não era “sofisticado,engajado, brasileiro, latino-americano”, ou seja, nocaso, o rock.

Se você não aderisse imediatamente era taxadode reacionário, alienado, entreguista, burro e, pior,o golpe de misericórdia na libido em delírio dequalquer menino em plena ebulição testosterônica:não conseguiria comer ninguém!

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Só quem era muito surfista, ou convicto da totalfalta de glamour daqueles chatos, estava livre dapressão. Tenho que confessar a vocês que fiqueicompletamente em cima do muro. Por um lado,aquilo era chato pra dedéu, mas, por outro, euqueria me enturmar, e isso, quando recordo meudilema, me dá uma vergonha intensa.

Foi assim que vivenciei meus primeirosepisódios de patrulha ideológica.

Aí eu desandei a ouvir jazz, música erudita, vireifã do Quinteto Violado, criado no seio doMovimento Armorial (um movimento que tinhacomo pretensão transformar a cultura popularnordestina em cultura erudita. Um de seuscriadores foi Ariano Suassuna), tudo muitorespeitável, digno e chato, muito chato.

No reino da MPB, consegui, a algum custo,ouvir Milton Nascimento (na verdade, só aguentei

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ouvir o primeiro Clube da Esquina, que possuía umaaura beatlelesca e tinha um monte de belíssimascanções), que inevitavelmente me fazia sentir umadepressão muito peculiar, uma melancoliaestranha aos meus sentidos, como se tivessetomado um porre de cachaça metafísico, semnunca ter posto uma gota de álcool na boca.Milagre dos peixes, que, por sinal, tinha uma lindacapa, era para mim uma fonte de eterna depressãoe vitimização insuportáveis.

Me sentia impelido a gostar de algo que,definitivamente, não fazia meu gênero, que nãofazia, nem nunca fez, parte da minha índole e deque, ao custo de muitos anos de dúvidas sobre aminha identidade cultural, por sorte, acabei porme livrar.

O fato é que, além da pressão do colégio, eutinha um primo mais velho que admirava muito eque me aplicava (aplicar no sentido de apresentar,

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doutrinar) discos de jazz, música eruditacontemporânea, música atonal (era muitorespeitável gostar de peças eruditascontemporâneas sem tom nem ritmo definidos,que não se teria a menor condição intelectual deentender, muito menos de desfrutar). Semprebatíamos papos superprofundos com seus amigos,já naquele tempo terminando suas faculdades.

Os assuntos giravam em torno da filosofiamaoista, da pertinência da Revolução Cultural nacivilização ocidental, de filmes do Godard e doGlauber e de livros de arte de cunho marxista,como Manifestos do surrealismo (André Breton, alémde terrivelmente chato, era um comunista queacabou expulsando um dos meus grandes ídolosdo movimento, Salvador Dalí, o apelidando deAvida Dollars). Entretanto, mesmo com todaaquela pressão externa, jamais consegui ser umesquerdista completo. Alguma coisa dentro demim fazia regredir todo o processo de conversão e,

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volta e meia, me flagrava em plena recaídaouvindo Humble Pie, Faces, T. Rex, Slade, RitaLee, Led Zeppelin ou Black Sabbath.

Mesmo com toda a doutrina, apreciar ChicoBuarque, Vinicius, Edu, Gonzaguinha, MariaBethânia pra mim era simplesmente o fim dapicada.

Eu juro que tentei de tudo e por tudo.

E olha que eu ouvia tudo isso dentro de casa,mesmo a contragosto, goela abaixo (mamãe ouviavarada de poesia e entusiasmo cívico aquela turmatoda, adorava aquele sonzinho molenga, assimcomo toda dona de casa oriunda de uma classemédia típica do que se poderia chamar de direita).

Estava acima do meu limite estético e moral sercanalha o suficiente para dissimular algum enlevonaquela palermice morna. Optava pelo silêncioresignado.

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Agora, confesso a vocês que morria de medo dedescobrirem o meu recôndito desprezo por essastão cultuadas figuras. Passava o tempo todosofrendo, sentindo remorsos, desconfiandoseriamente da minha própria inteligência sóporque achava aquela tal de MPB chinfrim,ressentida, anêmica e pífia. Cheguei até a imaginarque, quando crescesse, teria mais maturidade,mais cultura, mais sensibilidade para desfrutardaquela manifestação tão respeitada, sofisticada eunânime. Não era possível que só eu fosse incapazde desfrutar daquelas obras-primas do nossocancioneiro popular.

Mas isso não aconteceu.

Pelo menos até agora, em meus 55 anos, minharepugnância ao gênero permanece intacta.

Caetano e Gil eram diferentes. Mesmo sempreem cima do muro (naquela época era impossível

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detectar se eles eram da direita ou da esquerda, dorock ou da bossa nova, ou não), e apesar de tereminiciado suas carreiras de forma bastanteconservadora, se destacavam do resto, talvez porterem pessoas como Os Mutantes ao redor ou,simplesmente, por serem mais espertos einteressantes que os outros.

Possuíam uma aura mais internacional, maiscosmopolita, mais urbana, o exílio que se seguiuera uma ideia romântica, subversiva, e a produçãomusical deles naquela época, para mim, fora, delonge, a mais criativa da carreira deles. Noentanto, como não poderia deixar de ser, aTropicália era um movimento decalcado daSemana de 1922.

Fui um fã ardoroso de Gil e Caetano desdecriancinha até um pouco depois do término dapuberdade. Justamente no momento em quepercebi que a Tropicália era herdeira do conceitode antropofagia, meu interesse murchou.

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Foi quando um fenômeno mundial veio caircomo uma luva para esse meu dilema de dignidadeintelectual: o rock sinfônico! O rock progressivo!No início, tive que me forçar um pouco para aturaraquelas músicas que duravam um lado inteiro deum LP, mas, ao imaginar que meu destino poderiaser muito pior, como engolir algo do tipo EduLobo, passei a colecionar com fervor todos osdiscos do Yes, Genesis, Emerson Lake & Palmer,Jethro Tull, Curved Air, Gentle Giant, KingCrimson, que me fizeram cair de amores pelamúsica erudita.

Tirava todos aqueles solos de bateriacomplicadíssimos com a maior boa vontade e logopassei a me interessar por violão clássico. Comeceia tocar freneticamente clássico, choro, baião,sarabanda. Tudo se concentrava na Pro-Arte, lá emLaranjeiras, ao lado do São Vicente, outra fábricade fazer dodói nacionalista. Aprendi a tocar Villa-

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Lobos, Garoto, João Pernambuco, depois fui para aescolinha do maestro Guerra-Peixe e me enfurneinas suas suítes nordestinas.

Não tenho, em absoluto, o que me queixardesse aprendizado. Eu realmente adorava aqueletipo de música. Aquele conhecimento todo só fezenriquecer minha musicalidade, minha forma decompor e uma visão mais ampla e positiva doBrasil. Aprendi muita coisa interessante e de muitaqualidade, mas o nefasto naquilo tudo era axenofobia patológica, a ânsia em perseguir umabrasilidade, que, no fundo, no fundo, estavacompletamente fora de mim. E isso me torturava.Me sentia um estranho, um inadaptado, semcultura própria, um ser postiço numa terra que, nomeu entender, se recusava a me aceitar do jeitoque eu era.

E, quanto ao tal de rock progressivo, ele nãocumpria por completo as exigências culturais eideológicas do intelectualoide de esquerda. Eu

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poderia até me sentir mais “cabeça” ouvindo oKing Crimson ou tocando Bach, mas, se nãoentrasse em contato direto com o MPBzão default,o choro, a bossa nova, o baião, o samba de raiz,não desenvolveria a minha identidade debrasileiro, pelo menos na concepção que o mundoexterno me compelia a ter.

Ainda não tinha caído a ficha de que, para terreconhecida a minha identidade MPBista, serianecessário renegar qualquer tipo de rock. Era umimperativo político-ideológico.

Voltando aos dias de hoje, a coisa é a mesma.

A HISTÓRIA É A MESMA!Há uns dois anos, dava uma palestra e esse

assunto veio à tona quando um cara na plateia meperguntou um tanto ofendido por que eu estavafalando mal do choro (na verdade, eu não estavafalando mal do choro), pois ele estava aprendendoviolão clássico (leia-se, choro) e não via mal

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nenhum nisso. Eu adoro choro.

Respondi a ele que eu também não via malnenhum em tocar choro, muito pelo contrário, quese tratava de um estilo riquíssimo, muito emboraestanque, atrelado a um passado mumificado, masque pretenderia revisitá-lo assim que chegasse aosmeus 85, 90 anos, quando teria uma casinha comuma varanda e, numa cadeira de balanço ou derodas, iria executar peças de Ernesto Nazareth,Garoto e tantos outros.

Foi aí que olhei pro sujeito e vaticinei: “Eu seiexatamente o repertório que você está tocando,quer ver? Os cinco Estudios Sencillos, do LeoBrouwer (compositor cubano pode), Graúna e Sonsde carrilhões, do João Pernambuco, Lamentos domorro, do Garoto, Um a zero, do Pixinguinha, e os12 Estudos e os seis Prelúdios do Villa-Lobos.Acertei?”

O rapaz me olhou perplexo, como se estivessediante de um vidente de capacidades mágicas, de

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um Chico Xavier protopunk, e exclamou: “Comovocê conseguiu acertar tudo!?” E eu respondi:“Porque o nosso ensino é muuuito criativo edinâmico, sabe? O tempo transcorrido da época emque eu estudava violão para a sua foi, no mínimo,de quarenta anos! Quarenta anos! Infelizmente,não possuo nenhum poder mágico divinatório. É anossa mentalidade a produzir o óbvio, o mesmo, oculto irremediável ao passado. Não que o passado,em si, seja algo a ser desprezado. Eu, inclusive,por natureza, sou um antigo, um ser pretérito, queama de verdade, do fundo do coração, e vai àslágrimas ao ouvir música sacra, réquiens, músicado período romântico, música barroca,impressionista, a dodecafonia folclórica deStravinsky, o modernismo barroco de Villa-Lobos,incluindo nesse caldeirão, como não poderia deixarde ser, o choro e até alguma coisa de bossa nova,passando de raspão pelo samba, através da bateria,mas a recusa peremptória ao novo, a recusa emaprender alguma cultura do outro, é uma

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característica muito marcante em nossamentalidade. Daí ser tão fácil discorrer para vocêesse seu repertório. E daí a minha claustrofobiacultural.”

(Apesar de pensar assim, fui acometido por umasevera recaída nos anos 1990 e passei uns cincoanos estudando freneticamente violão clássico.)

E isso continua a vigorar, só que com umaintensidade nunca dantes testemunhada.

Se algum historiador do futuro vier a estudareste nosso momento atual, irá chegar à conclusãode que a síndrome de dignidade intelectualdirecionada para o nacionalismo culturalista dodóifoi a tônica dominante deste paupérrimo período(e olha que não estou nem contando a epidemiaagrobrega universitária, os axés e os pagodesmauricinhos).

A ALUCINAÇÃO COLETIVA DE UMPESADELO DESBOTADO

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Agora, é aquela história: quando abro a boca prafalar esse tipo de coisa, o que acontece? Bem,fatalmente algum guardião da nossa cultura meinquirirá, iracundo, com a indefectível indagação:“Quem é você, seu roqueiro, para falar de MPB,choro, bossa nova...!?” etc. etc.

E com esses conceitos extraordinariamentecurtos, lá vamos nós adentrando um atoleiro demiséria criativa, de indigência intelectual, filosóficae cultural, nos atendo a nivelar todos por baixo, acultivar a ideia de que o pobre é o grande, ooriginal e único produtor relevante de cultura noBrasil. O estudante universitário branco apenascopia, e muito mal, essas manifestações, sejamelas no campo ou na favela, tornando a nossapaisagem musical um pesadelo desbotado.

E assim a classe média inicia sua marcha a réem direção à laje da Barbie, à MPB de segunda, aopagode de terceira, ao forró de quarta, ao sertanejode última.

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O funk carioca é uma das raras exceções, poisimportou a batida do Miami Sound e se apossou,em plena favela, de recursos eletrônicos,transformando o funk num grito de guerra e sexo,o mais genuíno estilo que o morro produz hoje emdia.

Alguns de vocês podem pular indignados dapoltrona, ter um acesso apoplético, voar na minhacarótida e vociferar: “Mas o funk é grotesco,sexista, violento, obsceno, tem letras horríveis, dearticulação gramatical que beira dialetos neolíticos,um monte de cachorras de todas as raças, feitios etamanhos oferecendo a bunda em reboladosultrajantes, MCs e playboys juntos em delírio aentoar cânticos guturais de rimas ininteligíveis!”Isso é fato, mas existe uma coisa inegável: é oúnico, entre todos os outros aqui mencionados,verdadeiro. Ainda não foi reciclado, reinventado,regurgitado, muito menos aprovado pelointelectual de esquerda.

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Tenho que fazer uma ressalva para a escolaviolonística brasileira de músicos excepcionaiscomo Baden Powell, Raphael Rabello, YamanduCosta, Canhoto da Paraíba, Guinga, EgbertoGismonti, entre outros. O violão instrumentalbrasileiro é algo que sempre me fascinou. Já asgrandes cantoras do quilate de Elza Soares, ElizethCardoso, Aracy de Almeida, Maysa, DoloresDuran, Cássia Eller simplesmente evaporaram.Hoje em dia temos um monte de pastiches ecaricaturas.

Temos Tom Zé, Jards Macalé e João Donato,que são verdadeiramente geniais, sempre com umreconhecimento muito aquém de seu talento.

Fomos criados na prática do pistolão, daopressão ideológica, do coronelato e do jabá.Quem não está enquadrado nessa cultura acabadançando.

Os dois foram banidos da Tropicália por motivosmisteriosos. Tom Zé só conseguiu o seu devido

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reconhecimento como artista de uma criatividadeúnica por acaso, através de David Byrne (líder doTalking Heads). E Macalé, com sua magníficaversatilidade, driblou o ostracismo compulsórioincorporando e reencarnando na cultura do sambade breque herdada de Moreira da Silva, tornando-se seu mais legítimo representante, mas ainda estálonge de ter sua importância, sua genialidade, seuhumor e sua petulância reconhecidos. JoãoDonato, com sua originalidade harmônica eproficuidade musical, obteve mais destaque noexterior.

Esses casos misteriosos de evaporação artísticasão muito corriqueiros na nossa história. O cunhoideológico, de uma forma ou de outra, está semprepresente. Nos anos 1960, vários artistas forameliminados da cena por transparecer a mínimacontrariedade com os ideais da esquerda.Massacraram, vilanizaram, satanizaram o grandeWilson Simonal, Os Incríveis, Dom e Ravel,

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Antonio Carlos e Jocafi, e tantos outros. Aquelesque conseguiram sobreviver ao longo desses anos(e não são poucos) o fizeram por manter emsegredo suas preferências políticas.

Não serei eu a dedurá-los.

Isso tem que ser analisado com maisprofundidade, pois se trata de uma mentalidadeextremamente violenta e eliminatória. KGB perde!Nos dias de hoje, por incrível que pareça, as coisaspodem ser piores.

NOSTALGIA DA HIPERMODERNIDADEO samba que tanto me emocionou e me

inspirou com Cartola, Carlos Cachaça, Mano Décioda Viola, Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho,Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Martinho da Vila,Nelson Sargento, Dona Ivone Lara, Clementina deJesus, por total falta de imaginação e excessivoapego à tradição, há muito tempo virou línguamorta, assim como a bossa nova e o choro, e é

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artigo só para turista ver e intelectual de esquerdase envaidecer daquilo que não tem nada para seorgulhar.

Aliás, o intelectual de esquerda é o campeãomundial da punheta de pau mole, não é verdade?Sempre deprimido, paranoico, ressentido, semprevitimizado por complôs cósmicos, sempre prontopara eliminar suas contradições na base do grito.

Quando acontece alguma inovação no samba,através das “levadas” e paradinhas de bateria dasescolas de samba, surgem de onde? Do funk, orabolas.

E o pior é que esse falso moralismo impede amaioria das pessoas de verificar que o funk, comtoda a sua decantada precariedade estético-literária, dá de mil a zero em qualquer grifeuniversitária musical por justamente não ter essefiltro idiota e pretensioso do carola estatizado.

Todas elas são miseravelmente piores e muito

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mais indecentes que o funk, com todas aquelasreboladas arreganhadamente erotizadas, pois sãopostiças, feitas por pessoas postiças, direcionadaspor uma doutrina culturalista postiça, logo,incapazes de possuir a mínima condição de seestabelecer como uma cultura fruto de uma realexperiência de vida.

Por ser orientado e concebido pelaincompetência histórica da intelectualidade deesquerda em formar coisas possantes, todo estiloque venha a nascer sob a égide do universitário é,invariavelmente, produzido por esses seres de umineditismo existencial constrangedor, todos elesbem abaixo da mediocridade e muito próximos dademência.

E quanto ao rap? Bem, o rap e o hip-hop,infelizmente, andam em grande escalavampirizados e filtrados por um sem-númerodesses subintelectuais rançosos, aqueles mesmos

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campeões de punheta de pau mole que assolarama MPB, e o resultado não poderia deixar de seroutro: os músicos perderam o tônus, algunscomeçaram a ouvir Chico Buarque e caíram narepetição de clichês ressentidos, emburrados, comuma assustadora ausência de humor (coisa quenão falta ao funk), não conseguindo produzir maisnada de relevante, pelo menos até este presentemomento. Folclorizaram o rap.

O rap e o hip-hop, em geral, estão vivendomomentaneamente como reféns do simplismo e dopopulismo da cartilha do partido do governo. Virouum mero órgão de propaganda das ideiasmedíocres e revanchistas do PT. Propagandaeleitoral gratuita.

A sua maior expressão, os Racionais MCs, virouuma ridícula caricatura de toda essa doutrina (isso,lamentavelmente, na verdade já ocorre há algumtempo). Quando os Racionais apareceram, eufiquei mesmerizado com a revolta, até então,

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criativa deles. Os Racionais MCs me empolgaram,me emocionaram e me influenciaram na maneirade compor (“El Desdichado II” é um exemplotípico).

O ídolo, herói e mestre deles e de todo o rapnacional, Chuck D, do lendário Public Enemy,além de ter me ajudado via e-mail a desenvolver oconceito de “Universo paralelo” pelos idos de1999, quatro anos depois veio a me conceder umaentrevista de duas horas, por ocasião do finadoFree Jazz Festival, para a também finada revistaOutracoisa, sendo extremamente gentil e atencioso.

Eu tive o prazer de presenteá-lo com o primeironúmero, que vinha com o CD antológico doBNegão & Seletores de Frequência. Quis muitoque o Chuck soubesse que a revista era umaempreitada filha de muitos de seus conselhos viae-mail, e ele, em retribuição, me deu um CD doque insistiu em chamar de “grupo de rock” (!), oFine Arts Militia. Ao final da nossa conversa, me

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deu um caloroso abraço e me disse algo do tipo:“Que toda pessoa de boa vontade seja semprebem-vinda.” Foi um encontro emocionante einesquecível, contudo, lamentavelmente, issonunca aconteceu nas vezes em que tentei meaproximar dos Racionais.

A atitude deles é essa, sempre: se você não émano, você é um ser repugnante a ser desprezado.E todo mundo acha isso natural! Essa sempre foi asensação que me foi passada (escreverei umcapítulo me aprofundando mais sobre essefenômeno). Em seu mais recente trabalho, eles sefantasiam de guerrilheiros terroristas emhomenagem a quem? A um daqueles heróislibertários e insuperáveis dos anos 1960 de quefalamos anteriormente: Marighella, um guevarinhatupiniquim.

São verdadeiras epifanias de Mano Brown abradar clichês anacrônicos, a convocar a lutaarmada, o terrorismo explícito, fazendo da situação

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um simulacro de oposição, uma vítima do própriorancor, como se não fosse a própria situação seumais cruel algoz e seu mais fiel patrão, seconvertendo em uma caricatura de combatenteurbano, numa tentativa esdrúxula de justificaçãoimbecil da bandidagem, a posar de justiceirosocial, exatamente como era de se esperar de umpapagaio piegas e recalcado. O tão chamado idiotaútil. Uma pena.

Agora, o mais engraçado é que um monte deplayboys branquelos veste a carapuça de umaculpa histórica que a doutrina racial do governoturbina e, se borrando de medo de serempatrulhados ou desenturmados, passam a pagarpau para posers marrentos.

E VIVA A TERRA DO NUNCA!E assim continuaremos a fabricar um sem-

número de nacionalistas xenófobos, bichos-grilosecológicos, ripongas neocomunistas. Seremos

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imunes a qualquer crítica quanto à nossainfraestrutura desmoronada e falida, quanto ànossa terminal condição moral, só conseguindoenxergar as trapaças dos grupos adversários, aexibir com jactância e orgulho, sem a menorcerimônia, um rabo mais imundo que o doopositor.

Viveremos a cultuar esse mesmo carnaval comonossa incapacidade máxima de nos qualificarmoscom alguma relevância no cenário internacionalatravés de qualquer outra manifestação cultural.

Viveremos num império de ONGs preocupadascom o engajamento social de araque e seempanturrando de grana, de artistas consagrados amamar nas tetas da lei Rouanet, e isso tudosomado tornará muito difícil, após toda a farra daAtrofia, revertermos nossa mentalidade e nossocomportamento, pelo menos nas próximasdécadas.

Teremos gerações de doutrinados por um

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arquideterminismo, absolutamente hipnotizadospor fenômenos culturais de alucinação coletivadesde a mais tenra infância.

Esse tema, como vocês verão, será onipresenteno transcorrer deste livro.

A oficialização dessa ideia de singularidadeabençoada por Deus diante do mundo apaga apossibilidade de uma ideia de desvio. E o desvio,que seria alguma alternativa a esse contínuoimutável, tem que ser reprimido, custe o quecustar.

Não conseguimos aprender com a sucessão dosfatos, não conseguimos nos desprender dasmesmas ideias que nos paralisam. Morremos demedo de um dia sermos finalmente comparadoscom o mundo civilizado e desmascarados diante danossa mediocridade, soberba, inoperância eimpotência.

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CAPÍTULO 2

UM PEQUENO MERGULHO NOMUNDO

SERTANEJO UNIVERSITÁRIO

(acidentalmente gonzo)

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Já sentia no ar que não dava mais paracontinuar fazendo parte daquele programa dereportagens investigativas. Os últimos temasandavam, misteriosamente, muito diferentes daproposta inicial e eu estava me sentindo um peixefora d’água. Fora o fato de estar adentrando umuniverso profissional muito distante do meuhábitat natural, que é compor, tocar, cantar eescrever. Todos aqueles sentimentos misturadosapontavam para um fim bem próximo.

A pauta em questão era sobre o fenômenosertanejo universitário. E eu logo pensei: isso podeser muito interessante! Poder investigar algo quesempre esteve aquém da minha compreensão seriauma oportunidade única. Afinal de contas, tudo oque eu queria daquele programa era ter a chancede conhecer mais a fundo certas realidades donosso país e que somente naquelas circunstânciasjornalísticas poderia realizar, me embrenhando navida dos que iria investigar e estar com eles

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durante as gravações.

E, de fato, passei por aventuras incríveis,conheci pessoas de diferentes partes do Brasil, dediferentes mundos e submundos, personagenssingulares que muito me ensinaram e muito meemocionaram no pouco tempo em que permanecipor lá. Em resumo: foi uma experiência profundapara minha compreensão mais acurada do Brasil. Ematerial farto para compor e escrever.

O início do fim começou com um incidente quejá vinha precedido por alguns outros, portanto oclima já era de desgaste.

Tinha sido escalado para viajar até Curitiba efazer uma entrevista com vários astros dosertanejo universitário num festival de músicasertaneja (aprendi que boa parte dos sertanejosnão universitários faz questão de deixar claro quenão faz parte do movimento).

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Acabei por saber do roteiro quando cheguei emcasa, lá pelas oito da noite (nós sairíamos às seisda manhã do dia seguinte), e, para meu totalespanto, vinha com uma discreta recomendaçãopara que a reportagem fosse... “positiva”. Asperguntas giravam em torno de uma simpatia e deuma admiração que, positivamente, eu nuncativera, formuladas como se eu fosse um fã decarteirinha do gênero. Bem, só me restou ignorar aviagem, mandar um e-mail avisando que nãoparticiparia daquela presepada e mergulhar nacama para dar uma lida num bom livro antes dosono dos justos.

Ainda bem que tinha por contrato essa proteção:se não concordasse com a pauta, não participariado programa, contudo não era um recurso quegostaria de utilizar, principalmente com toda aequipe me esperando no aeroporto. Mas não haviaoutra opção.

Não é preciso dizer que a produção não achou

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muito incrível a minha retirada estratégica.

Com o clima cada vez mais tenso, fizemos umareunião num restaurante na Vila Madalena com arapaziada da produção. Expliquei a eles o óbvio:“Gente, vocês têm que entender a minha situação.Não é que eu esteja a fim de defenestrar os artistassertanejos universitários, mas, convenhamos,‘sugerir’ uma pauta ‘positiva’ para mim, o cara quemais desanca o estilo no país, é no mínimosurreal. Seria mais produtivo vocês escolheremoutro repórter para fazer esse serviço. Vocês nãoacham?”

Eles alegaram que seria muito interessante parao público que justamente eu participasse da pautae que estavam planejando uma outra reportagem,dessa vez numa casa de shows aqui em São Paulo.

E não seria mais um festival, seria um show deum só artista, o atual estouro nas rádios de todo o

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país. Seria um grande encontro, segundo eles.Ponderei estar com certo receio de aparecer numreduto sertanejo universitário e sugeri a eles queprovidenciassem algum tipo de segurança, pois, nasemana anterior, num depoimento colhido nomeio duma gravação de um programa da série, emMato Grosso do Sul, eu, por acidente, acabeidando uma desancada num outro famoso artistado segmento, e, como era de se esperar, não foiexatamente amor o que recebi de seus fãs.

Nas redes sociais espocavam as blasfêmias dasmais diversas, as ameaças mais terríveis, osimpropérios mais furibundos, as imprecações maisodiosas. Argumentações, por sinal, poucoesclarecidas e mal-escritas, mesmo se tratando deum gênero oriundo da nossa elite estudantil.

Chegavam de todos os sites, blogs, twittersimprecações acompanhadas por verdadeirosmonumentos da ortografia capenga einvariavelmente seguidas pela clássica pergunta:

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“Quem é você, seu roqueiro decadente, para falardo meu amado fulano de tal?” etc. etc.

Sendo algo tão recente, no mínimo estavacauteloso quanto a minha visita ao local e,humildemente, insisti na presença de algunsseguranças espalhados no recinto, só para me daralgum alento moral, ou, pelo menos, queconseguissem uma entrada para a minha mulherme acompanhar. Eles me disseram que não haviajeito de colocar mais ninguém pra dentro.

Relembrei aos produtores do programa que,apesar de estar atuando como repórter naquelemomento, na verdade minhas funções eramescrever, compor, tocar, e tocar um estilo bastanteadverso àquele em pauta, que tinha lá o meupúblico, minhas opiniões, minhas posições, minhahistória já bem definidas. Algo diferente de umrepórter normal, um indivíduo supostamentecomprometido com a imparcialidade (muito

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embora a condução da pauta estivesse sendo bemparcial).

Eles contra-argumentaram me explicando oquanto ficaria mais verdadeiro, mais emocionante,se eu fosse acompanhado apenas da equipe (umdiretor, um câmera e um cara do som), e essecontingente de pessoas seria mais do quesuficiente para a minha segurança. E sobre ointrigante fato de a pauta estar toda direcionadapara ser simpática ao gênero em questão, elesprontamente me disseram que eu receberia umanova na hora da saída para o local. Que ficassetranquilo.

Como estava a fim de fazer o meu trabalhodireito, concordei com a aventura acreditando napalavra deles. Afinal de contas, já havia realizadouns cinco programas e, por mais difíceis ecomplicados que tenha sido gravá-los, estava mesaindo louvavelmente bem, fora o fato de que tudoaquilo poderia se tornar material para o meu

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trabalho futuro, tanto de compositor como deescritor. Pois bem, meio ressabiado, combinamosa saída da produtora às oito da noite.

Quando chego, percebo mais uma pessoa nanossa trupe: a namorada do diretor! (Fiquei muitoirritado com aquela surpresa! Afinal de contashaviam barrado minha mulher.) Estava claro quenão se viam há muito tempo e deviam ter muitoassunto para colocar em dia.

Entramos na nossa van (eu sempre viajo decopiloto) e lá fomos nós em direção à casa deespetáculos. Mas tinha um detalhe: o clima deamor entre o casal reencontrado era tamanho que,por tal motivo, não houve muita conversa, nemsobre a pauta nem a respeito de qualquercombinação de como iríamos nos posicionarnaquela complexa reportagem. Isso alterariadramaticamente o resto da nossa jornada.

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Logo quando chegamos, perguntei se elesqueriam fazer uma externa de apresentação (depraxe), mas o diretor não manifestou muitointeresse e disse para entrarmos logo. Ao observara entrada, fiquei impressionado com o tamanho dolocal. Parecia uma Disneylândia agrária! Umquarteirão inteiro! Recebemos aquelas fitinhas debotar no pulso e lá fomos nós adentrando aquelelugar de dimensões monumentais.

Dava para perceber que era uma casa dealtíssimo nível. Pessoas de aspecto próspero,muito bem-tratadas, ocupavam as dezenas deambientes que o lugar oferecia. Havia váriosauditórios de vários tamanhos, pistas de dança,chafarizes, cascatas artificiais, restaurantes, bares,tudo decorado num estilo (aí me caiu a ficha)...num estilo country!

Quando falo country, quero me referir aocountry americano.

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Fiquei muito surpreso, pois, na minha santaingenuidade, imaginei se tratar de algo relacionadoa um conceito mais nacionalista, pois ouniversitário, em geral, é sempre tão fiel, tãopreocupado em defender nossas raízes. Era umpeso para duas medidas, pois todos nós sabemosque o típico universitário culturalista abominatudo o que vem de fora, como, por exemplo, orock, sempre tão criticado por ser coisa dealienado, colonizado cultural, coisa deamericanizado.

Sinceramente, em virtude disso tudo, minhaexpectativa era encontrar uma temática mais parao agreste nordestino ou para um tema pantaneiro,ou, quem sabe, sobre sertões mineiros, ouenaltecer o pampa gaúcho ou o Recôncavo Baiano,tudo menos o que estava se desvendando diantedos meus olhos.

Chegamos a um recinto com uma enorme placa

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de madeira, bem ao estilo texano, que dizia seruma barbecue. O que estava escrito na placa? Parameu total espanto, o letreiro gritava:RESTAURANTE JOHN WAYNE (!). Adentramos oluxuoso e amadeirado ambiente, pé-direitoaltíssimo, salão amplo, quando percebo, perplexo,a existência de fotos enormes penduradas nasparedes, fotos de dezenas de caubóis americanos:Clint Eastwood, Buffalo Bill, Butch Cassidy, RoyRogers, e logo comecei a matutar... rapaz, se issoaqui é um reduto de sertanejo universitário, umgênero que supostamente resgata as nossas raízes,como ainda não percebi a presença de um míseroTinoco? Nem um só Tonico, nada de Pena Brancanem Xavantinho, nada de Jararaca, Ranchinho oualgo mais recente, como Sérgio Reis ou AlmirSater, ou Helena Meirelles... procurei inutilmenteo Renato Teixeira, e neca... Intrigante.

Ali parei, pensei, filosofei: que diabos essesuniversitários estão fazendo para buscar as nossas

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raízes em um lugar como... o Texas? Para onde ocretinismo cultural nos está levando nessa misturapavorosa de sanha boçal capitalista comimbecilidade crassa da esquerda nacionalista?

Pois não apenas a casa era temática; as pessoastambém! Todos de chapéus de caubói, cintos,botas, só faltavam as cartucheiras. E, caso vocênão estivesse devidamente aparatado para oevento, havia um minishopping temático, em quevocê, em dez minutos, estaria pronto para fazerparte de qualquer filme de bangue-bangue.

Foi quando o rapaz da nossa produção mesugeriu se, por acaso, eu não estaria a fim de mevestir de caubói para a entrevista...

Não é necessário entrar em detalhes acerca daminha resposta, não é mesmo?

Definitivamente as coisas não batiam. Era uma

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atmosfera um tanto esquizofrênica. A propostainicial não se adequava ao cenário. Sim, porquedesde que a UNE se tornou chapa branca muitascoisas esquisitas vêm acontecendo com essa classeestudantil. Além do inédito e histórico silênciobovino da entidade em relação aos reveses elambanças monumentais do governo (que não sãopoucos), o termo “universitário” virou uma espéciede subcategoria para variados estilos autóctones,como o forró, o samba, o choro, o sertanejo, abossa nova, só que, invariavelmente, todos eles deuma mediocridade inexplicável.

Você pode reparar, quando aparece algum estilocom a grife “universitário”, pode esperar por algoabominavelmente ruim, malfeito e postiço. Nada éde verdade. Tudo vira um pastiche horroroso.Tudo em nome de uma estrambólica brasilidade.

E lá estava eu, no meio daquela luxuosa egigantesca casa de espetáculos, desnorteado com a

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enxurrada de informações díspares a me confundira cabeça, de maneira tal que nem tinha melembrado da paúra dos dias anteriores. Junto daequipe, me sentia camuflado, mas isso não durariamuito.

O nosso diretor apaixonado e sua namorada, osdois sempre em enlevo amoroso, abandonaram derepente o recinto aos beijos e abraços, sem menotificar absolutamente nada. Foram, creio eu,procurar alguma coisa interessante num outroambiente e os dois outros também se dispersarampara outras salas a catar supostas curiosidades quepudéssemos registrar. De repente, lá estava eu,plantado feito dois de paus, sozinho no meio dorestaurante John Wayne. Era tudo o que eu nãoqueria!

No meu entendimento, material jornalístico nãofaltava por ali. O absurdo imperava e bastaria ligara câmera para brotarem as mais insólitas cenas.Mas depois vim a perceber que esse não era o

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intuito da pauta.

Meio que para disfarçar meu constrangimento,ao mesmo tempo registrando para meu acervopessoal, desandei a filmar com o meu iPhone asparedes, os caubóis, as batatas fritas, o andarcadenciado dos garçons, a fumaça dachurrasqueira, as carnes que saíam apetitosas dogrill, as figuras que entravam e saíam... mas oassunto acabou e ninguém da nossa equipe davasinal de vida. Aquele lugar era grande o bastantepara, sem uma logística organizada, facilmente nosperdermos uns dos outros. E foi o que aconteceu.

Comecei a ficar apreensivo com certos olharesum tanto surpresos e pouco amistosos de algunsrapazes bem-nutridos, invariavelmente trajados decamisas xadrez preto e branco, cinturões deenormes fivelas douradas, botas texanas e cortesde cabelo meio amarfanhados com uns topetesescorrendo, oblíquos, pelas testas, dando a todos

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um ar ligeiramente oligofrênico.

Pensei cá com meus botões: “Fodeu! Isso nãovai acabar bem.” Comecei a ficar nervoso... O localcontinuava recebendo uma enxurrada de pessoas,todas aparentando, como havia dito, muitaprosperidade. Garotas de cabelos compridos, meioalourados, com roupas de grife, muitas de sainhassumárias, tipo abajur de xoxota, todastratadíssimas e muito semelhantes umas com asoutras. Parecia que tinham saído de uma produçãoem série.

Mas o clima não seria apenas de animosidade,não! De repente, fui reconhecido por simpáticassenhoras, logo em seguida, por um grupo deamigos de trabalho e, numa reação em cadeia, ummonte de pessoas sorridentes pediu para baterfotos com a minha pessoa, e eu, mesmo intrigadoe surpreso com aquela atitude tão amistosa, naminha simpatia de sempre, comecei a posar para

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inúmeros populares. Parecia um Papai Noel deshopping: abri um sorriso contínuo e fiqueiperambulando de um lado para o outro atendendopacientemente a todas as solicitações.

Não pensem que o meu nervosismo diminuiu.Atinei logo em seguida que aquele monte de fotosiria direto para o Facebook, para o Twitter, para oescambau a quatro, e logo imaginei a cara deespanto dos desavisados ao me flagrarem numreduto country, aparentemente enturmadíssimo,cheio de aficionados vestidos a caráter ao meuredor, em plena confraternização! A minha caraera de bunda, pois após alguns cliques, sempredemorados (ou a pessoa não sabia usar direito oaparato ou a bateria estava fraca), não conseguiacontrolar a minha mímica facial. Estava com cãibranas bochechas. Não conseguia me desvencilhar domeu sorriso!

Um início de pânico se abateu sobre mim,

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quando acontece algo mais incrível ainda: meaparece uma menina do nada e me sapeca umabraço apertado! Eu gelei e ela se apresentou: “Oi!Lembra de mim? Eu sou a fulaninha de tal, quenamorou um cantor da banda punk XYZ!” (Ela medisse o nome da banda, mas não consegui ouvirdireito.)

Honestamente, eu não me lembrava nem delanem da banda punk. Porém, só o fato de havernaquele recinto alguém que inexplicavelmentefosse de uma cultura mais próxima à minha medeixou numa espécie de estado de euforiahistérica. Peguei sua mão e disse: “Por favor, meleva até aquele bar que eu preciso tomar uma dosede alguma coisa forte.” (Com toda aquela confusãona cabeça, não havia me lembrado de que nãobebia havia umas duas semanas.)

Entramos na fila e o carinhoso assédiocontinuava. Eu prosseguia nas minhas poses coma mesma cara de bunda involuntária, com aquele

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sorriso inexpugnável, e os rapazes menosreceptivos à minha pessoa rondavam um poucomais afastados. Deviam estar um poucoarrefecidos e frustrados diante da minharetumbante popularidade. Conseguimos chegar aobar (que naquele momento estava apinhado degente) e logo fiz amizade com o garçom pedindo:“Amigo, capricha pra mim um caubói de JackDaniel’s, por favor!” O garçom, muito solícito, medeu uma generosa dose. Meu desconforto enervosismo eram tamanhos que ainda não havialargado a mão da ex-namorada do cantor da bandapunk. Minhas mãos suavam. Me sentiaabandonado.

Pedi a ela para me acompanhar de volta aorestaurante John Wayne e me reconectar à equipe,até aquele momento evaporada. Tudo que queriaera fazer logo a tal entrevista e dar o fora.Chegamos lá, e nada... Meu coração disparou. Eu a

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convidei para dar um rolé pelos ambientes do local(sempre segurando sua mão, meio que a usandode escudo humano) para tentar achar meuscolegas e ver se a gente começava logo com areportagem, pois não me sentia nada confortávelem meio àquela situação, e nada de a equipeaparecer.

Outra vez, não conseguimos encontrarninguém, por isso implorei a minha nova amigaque voltássemos ao bar para eu tomar mais umadose do velho Jack. Dessa vez, para economizartempo, adquiri logo três doses. Cheguei ao balcãojá como um velho habitué e bradei ao garçom: “Ode sempre, amigão!”

Bebi o primeiro caubói, dei um suspiro deansiedade e percebi que precisava logo tomaroutro: “Mais uma! Caprichada!” O garçom encheumais um copo e eu o sequei numa golada só, comonas vezes anteriores. A partir daquele instante,talvez pela minha pouca resistência de duas

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semanas de abstinência, tudo começou a ficarnebuloso, como se eu estivesse assistindo àquelacena numa outra sala, num outro lugar... Ospedidos por fotos continuavam voluptuosos e, nodesespero, pedi a quarta dose.

Ali o bicho começou a pegar e, logo em seguida,chega esbaforida a equipe, com o diretor e suanamorada um tanto amarfanhados, afirmando queme procuravam desesperadamente. Não havíamosfilmado nada até aquele instante. Me colocaram omicrofone de lapela e um deles me avisou que ocantor a ser entrevistado estaria num localespecífico para conceder a entrevista à imprensa.Eu perguntei: “Ué, não era uma exclusiva?” Elesme explicaram que havia muitos jornalistas, váriasemissoras de TV e nós teríamos que ser breves eobjetivos. Foi somente naquele momento que onosso diretor me deu um papel com a tãosolicitada pauta, e então percebo, incrédulo, se

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tratar do mesmo conteúdo daquela primeira lá deCuritiba! Com a mesma recomendação: ser umamatéria “positiva”!

Eu olhei para o diretor e perguntei: “Pô! Vocênão poderia ter me dado as perguntas antes? Eu jádisse que não faço a entrevista com essasperguntas!” O diretor exigiu que eu cumprisse apauta literalmente, pois o programa precisava demais audiência, e disse que aquele segmento(sertanejo universitário) era muito importantepara o programa etc. etc.

Eu já estava completamente bêbado, mas, comosou um excelente profissional, consegui chegarincólume até o local combinado. No entanto,confesso a vocês que, naquele momento, a minhapaciência havia se acabado.

Jamais trataria mal quem quer que fosse, masnão abriria mão de deixar a minha opinião bemclara para o público. Estava, como se dizia, putonas calças. Já que a bebida começava a

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potencializar os seus efeitos, respirei fundo e meconcentrei para não arrastar a língua, não falarabobrinha, não perder o fio da meada e, antes demais nada, ser gentil com o artista, pois eu, comocolega, sei a merda que é um jornalista querendote foder numa entrevista.

Achei uma excelente oportunidade para dar umbom exemplo aos espectadores sendo amistoso erespeitoso com o cantor e mostrar ao público emgeral que devemos separar o artístico do pessoal.Afinal de contas, tenho vários amigos que meacham, por ser um músico de rock, umaverdadeira porcaria, e isso não interfere em nadana nossa amizade, porque eu também acho umamerda o que eles gostam e a gente se divertemuito a esculhambar amorosamente uns aosoutros.

Pois bem, o artista a ser entrevistado semostrou uma doce criatura, muito educado, muitosimpático e me recebeu com o maior carinho.

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Acho que devemos expressar nossas opiniões,ser até bem duros quanto ao que achamos dascoisas, mas jamais covardes oportunistas. Afinal decontas, o repórter sempre está no domínio (mas oconteúdo do programa é a produção que define eedita).

Não é preciso dizer que ignorei por completo atal da pauta. Batemos um papo muito amistoso etentei, no meu delicado estado etílico, explicar aele que, como colega, respeitava sua trajetória,entendia o quanto era difícil se destacar no cenárionacional, sabia que ele não era nenhum estreante,tendo já muita estrada nas costas e isso era motivode admiração, etc. e tal... E emendei: “Muitoembora, com todo o respeito...” E confesseihonestamente a ele a aversão que tinha por aqueleestilo musical (eu tenho a impressão de que essaparte não foi ao ar).

Ele, sempre muito querido, deu uma boa risada,

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levou o comentário na esportiva e emendou outroassunto sobre o título de uma canção do seu novosucesso, que havia sido composta, se não meengano, por uma compositora do Sul, e eu, naminha santa ignorância, como era de se esperar,nunca havia ouvido falar da tal música.

Depois, vim a saber que a referida canção eraum mega-hit nacional, uma coqueluche nas pistas,nos rodeios e nas estações de rádio, e me senti umhabitante de um universo paralelo. Para piorar,nem havia percebido certo duplo sentido marotono seu título.

Vocês não podem imaginar a repercussão(péssima) que teve a minha inocente gafe. Nasredes sociais, nas revistas de fofocas, nos sitesespecializados, nos blogs dos entendidos, todos mecrucificavam simplesmente por eu não ter a menorideia da existência daquele hit! Daquele, desde já,clássico do cancioneiro popular brasileiro.

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Percebi que havia cometido uma heresia, comose estivesse ignorando a Nona de Beethoven!

“Isso é uma terrível falta de profissionalismo”,gritavam iracundos e em coro diversos jornalistasdos mais diversos veículos. Na internet, fui motivode chacota. O Brasil inteiro conhecia a música,menos eu.

O resto do pessoal, que assistiu ao programa eque estava doido para a minha tão esperadaesculhambação ao simpático cantor, simplesmenteme taxou de vendido, entreguista e puxa-saco.

A entrevista acabou logo em seguida e nosabraçamos com sinceridade (ele realmente é umapessoa muito querida).

É, meus amigos, vos digo uma coisa: a partirdaquele momento eu saí inteiramente do ar.Deixei toda a equipe para trás sem dizer umapalavra e atravessei o salão com o microfone de

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lapela ainda ligado, a procurar a saída.

A minha nova amiga, a solidária ex-namoradinha do cantor de banda punk, evaporou-se e, àquela altura do campeonato, tudo o quequeria era sair correndo daquele lugar tãoestranho. Bêbado do jeito que estava, devo terdemorado a madrugada inteira para achar a saída.Trôpego, entrava e saía naquele labirinto deambientes insólitos (dei sorte de ninguém terencrencado comigo), até que, finalmente,enxerguei o portão de entrada acreditando ser o desaída.

Acredito, em virtude do meu estado, queninguém tenha me impedido de sair pela entrada.Alcancei com dificuldade a rua e lá, no pilotoautomático, parei um táxi e implorei esbaforido aomotorista que me tirasse imediatamente daquelaárea e me levasse direto para casa.

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Sabia que jamais poria os pés naquela produtoraoutra vez, sabia que nunca mais gravaria paraaquele programa outra vez. Olhei para o microfonependurado na lapela, que ainda estava ligado, deiuma risada de escárnio e devo ter dito algo como“Fodam-se todos vocês, seus babacas. Fui!”.

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CAPÍTULO 3

VAMOS ASSASSINARA PRESIDENTA DA

REPÚBLICA?

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Não se preocupem, amiguinhos, sou umacriatura incapaz de matar um mosquito, umamosca, uma barata e, por extensão isonômica, anossa presidenta da República, que, sendo assim,estará livre de uma chinelada assassina vinda dasminhas sandálias.

O que gostaria de propor, com essa convocaçãoum tanto insólita, mas de cunho didático, seriaseguir a linha de raciocínio adotada pelo governoem relação a determinados assuntos ético-políticos, usando os mesmíssimos argumentosengendrados por esse governo para explicar,através de sua lógica, essa minha convocaçãodidático-hipotética de assassinato ou execução danossa mandatária máxima.

Em outras palavras, usar do próprio venenocriado por essa casta para provar a imensapicaretagem da medida de fachada nobre,implementada em maio de 2012, que é a defesados direitos humanos através da tal Comissão da

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Verdade.

A nossa presidenta, nossa governanta, como já éde domínio público, além de se declarar vítima detortura, parece que também possui uma fichacriminal bastante ampla (alguns preferem chamarisso de atividade libertária, de luta armada para alibertação nacional), com assaltos milionários(onde estaria a grana?), atentados terroristas,suposta participação em execuções, sequestros,atentados e, junto com ela, uma parte bemrepresentativa de seus colegas de partido e degoverno.

E se esse questionamento é cada vez maiscorriqueiro nas esquinas e nas redes sociais, se hádúvidas em relação ao seu passado, ela teria maisdo que obrigação em esclarecer sua história deforma categórica e definitiva, uma vez quedesignou uma Comissão da Verdade, que elaprópria convocou e o governo remunera, o que,nessa condição unilateral, é imoral. Se é uma

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suposição conspiratória sua participação efetiva emgrupos guerrilheiros, se jamais participou deatentados, assaltos, sequestros e execuções, se,como afirma, teve apenas um envolvimentoperiférico, ela, como presidenta e implementadorada tal comissão que está averiguando apenas osseus antagonistas, não está agindo de formahonesta e aceitável.

É um tanto assustador assistir a um vídeo noYouTube da nossa governanta visitando o barracãoda revolução cubana no Fórum Social Mundial efazendo um discurso emocionado em quedemonstra sua admiração e solidariedade àditadura cubana! Nossa presidenta é umatremenda comunista!

Uma pessoa que luta contra uma ditadura emprol de uma outra não tem o menor direito dereclamar coisa alguma!

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Pela lógica, se é obsceno se vangloriar por sernazista, tão grave é se permitir ser solidário àcausa cubana, que já assassinou mais de cem milpessoas, de 1959 até os dias de hoje, exportamétodos de tortura e seu maior trunfo econômicofoi o comércio de sangue dos condenados aoparedão para os vietcongues nos anos 1960. ForaMao Tsé-Tung, que assassinou mais de sessentamilhões de pessoas e condenou outros milhões àfome e à miséria, deixando Stalin acabrunhadocom suas próprias atrocidades. E não venha dizerque isso é teoria da conspiração, pois são fatoshistóricos e muito bem-documentados.

E esses facínoras vêm com esse papo delibertários? Que entraram na luta armada, emnome da tal causa libertária (?!), na luta pelaimplementação do socialismo no Brasil, para noslivrar das garras da ditadura militar em troca deuma redentora ditadura do proletariado? Ditaduraque a presidenta e sua corriola teimam por fazer

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crer ser “do bem”, assim como a de Cuba e daChina, das quais são fãs de carteirinha, asseclas eparceiros. Sem esclarecer ao povo brasileiro tersido justamente essa sanha por implementar umaditadura do proletariado no Brasil através da lutaarmada a principal causa de vivermos numaditadura militar por mais de duas décadas.

Como se não bastasse, há probabilidades sólidase evidências contundentes de termos um governo eseu partido majoritário, o PT, atuando comoparceiros das Farc (Forças ArmadasRevolucionárias Colombianas), que, além de tudo,têm parceria com o PCC (Primeiro Comando daCapital). Sem falar na lamentável posição do Brasilcomo um dos campeões mundiais de tortura eassassinatos nas prisões. Ou seja, toda essa novaelite de poder se dando um direito tão distinto equase divino de praticar atrocidades, em nome,segundo eles, de uma causa nobre, insofismável.Sempre raciocinando e agindo com dois pesos e

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duas medidas.

Sendo assim, vamos por partes que chegaremoslá.

OMISSÃO DA VERDADEMeus queridos amigos, neste início de capítulo

serei curto e grosso: quero informar a vocês quetenho críticas severas à Comissão da Verdade.

Portanto, gostaria de iniciá-lo promovendo umaespécie de contenda, mergulhando no debate comprofundidade e rigor, para confrontar asargumentações de ambos os lados. Levar àsúltimas consequências a lógica dos pontos de vistaem questão, nos termos do senso comum e defundamentos universais, que qualquer pessoa deboa vontade, de qualquer credo, ideologia oureligião possa afirmar irrefutáveis, até queeventuais idiossincrasias e paradoxos comecem abrotar no desenrolar da discussão.

Tudo o que desejo verificar é se essa Comissão

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da Verdade (verdade já é um termo suspeito,cabotino e um tanto picareta) está adotandocritérios honestos e legítimos para nos esclarecerplenamente sobre as lacunas sombrias da nossahistória recente.

Quem será pego em contradição?

As regras estão na mesa para serem seguidaspelas duas partes antagônicas e serão bastanteclaras: os direitos humanos, centro gravitacionalde todas as atitudes do governo em direção àjustiça e à verdade (?!), serão objeto sagrado dessaquerela, e os dois lados terão como metafundamental mostrar absoluta coerência,transparência, imparcialidade e honestidade nosseus argumentos.

Para isso me disponho, antes de mais nada, aassumir, mesmo que hipoteticamente, alguns dosadjetivos e estigmas a mim imputados em todos

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esses anos de carreira.

Por quê?

Eu respondo: quero me colocar no lugar em queo imaginário coletivo foi sedimentado por essasimputações para dar uma margem “moral” a todosque pretendem, pretenderam e pretenderãocontestar meus argumentos. Topam?

Em outras palavras: faço questão absoluta deconceder toda e qualquer vantagem àqueles quedesde sempre se jactaram de serem moralmentemais elevados, mentalmente mais sãos, maisrazoáveis, mais humanos, mais dignos, maisbondosos, mais virtuosos, mais talentosos, maislibertários, livres de qualquer vício, com cérebro ealma livres e virgens das substâncias que, em tese,vieram a consumir meus neurônios e meu espírito.Enfim, conceder toda e qualquer vantagem àquelesque proclamam deter a Verdade e o Bem.

Essa concessão será feita com o intuito único de

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promover o contraste das nossas condições perantea sociedade e a História (eu, enquanto pária; eles,enquanto encarnação da Razão e da Virtude),apenas para eu poder ter o máximo conforto emcobrar-lhes em dobro a responsabilidade, o rigor, acoerência, a razoabilidade e a legitimidade de suasargumentações diante da suposta superioridademoral, intelectual e ideológica que assumempossuir.

Essa medida permitirá desenvolver minha teselivre do incômodo e despotencializante cacoete,corporificado naquela clássica indagação a priori:“Afinal de contas, quem é você, seu roqueirodrogado, para abrir essa boca e duvidar de tãoedificante empreitada?” etc. etc.

Então, vamos começar?

Sendo assim, que entrem em campo ascorriqueiras qualificações tornadas marca

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registrada da minha caricata persona pública aolongo de todos esses anos:

Faço questão absoluta de expor todas as minhasopiniões me colocando na condição de umdrogado, desimportante, mal social, criatura depéssima personalidade, arrogante, reacionário,boquirroto, vendido, debochado, pró-ditadura, pró-tortura, invejoso, marqueteiro, incestuoso,epiléptico, matricida, medíocre, metralhadoragiratória, polêmico e roqueiro (sim, o últimotermo é usado em tom pejorativo e, não raro,representa alienação política, manifestação musicalinferior e colonização cultural subserviente aoimperialismo americano).

Está bom assim?

Agora, coloquemos na mesa alguns conceitosuniversais pertinentes a este debate, através de suaexpressão máxima e fundamental daargumentação da Comissão da Verdadeimplementada pelo governo: a Declaração

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Universal dos Direitos Humanos.

Ela será o parâmetro e o alicerce de nossoquestionamento e gostaria muito que vocês lessemcom carinho e atenção os artigos abaixo para onosso jogo ter a relevância e eficácia requeridas.Eu os pincei por achá-los pertinentes a minhaargumentação, e estão inclusos na DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, adotada eproclamada pela resolução 217 A(III) daAssembleia Geral das Nações Unidas, em 10 dedezembro de 1948:

Artigo I: Todas as pessoas nascem livres e iguais emdignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devemagir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Artigo II: Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos eas liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção dequalquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opiniãopolítica ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza,nascimento, ou qualquer outra condição.

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Artigo III: Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e àsegurança pessoal.

Artigo V: Ninguém será submetido a tortura, nem atratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo VI: Toda pessoa tem o direito de ser, em todos oslugares, reconhecida como pessoa perante a lei.

Artigo VIII: Toda pessoa tem direito a receber dos tributosnacionais competentes remédio efetivo para os atos que violemos direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pelaConstituição ou pela lei.

Artigo XII: Ninguém será sujeito a interferências na sua vidaprivada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência,nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direitoà proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo XVIII: Toda pessoa tem direito à liberdade depensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdadede mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essareligião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelaobservância, isolada ou coletivamente, em público ou emparticular.

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Artigo XIX: Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião eexpressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência,ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações eideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Vocês perceberão que essa formalidade seráabsolutamente necessária para a total clareza erigor dos meus pontos de vista, uma vez que, sema mínima verificação mais responsável, eles já têmsido amplamente defenestrados, rechaçados porpopulares e celebridades, nas ruas e na internet, epor respeitadíssimos órgãos de imprensa, sem amenor cerimônia, com reativa precipitação,truculência, irresponsabilidade, ódio irracional emenosprezo.

Como um aperitivo elucidativo, vocês já devemter notado, mesmo antes da nossa largada, que aminha singela pessoa, não sendo em absoluto ocentro da questão em pauta, já foi esculhambadacom nítidas violações de alguns desses artigos por

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gente da mais ilibada reputação, prestígio ecredibilidade, que, ignorando algo por elesaguerridamente defendido com unhas e dentes, aoprimeiro momento de alguma contestação às suasconvicções, parte para o atropelo e demolição dareputação alheia, a infringir os direitos que tantodefendem.

Isso sem contar a carrada de argumentos legaise factuais para, se assim o quisesse, exigir a devidareparação do governo através dessa mesmaComissão da Verdade, uma vez que fui preso,perseguido e estigmatizado pela força policial ejudicial do Estado.

Afinal de contas, a minha prisão (fui condenadoa um ano de prisão, sem direito a sursis, por portarum galho de maconha e 0,8 decigrama de cocaína)foi imputada sob total inconstitucionalidade,ferindo os direitos básicos de qualquer réuprimário, com evidente cunho difamatório, somadaa todos os meus cento e tantos processos da

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mesma natureza, despropositados e arbitrários,espalhados por todo o Brasil. Foi um período dequatro anos consecutivos de constrangimentos,humilhações e ameaças, baseados nos maisabsurdos abusos de poder, que estão no escopo detempo devido (1946 a 1988) previsto nos estatutose que poderiam ser trazidos à tona pelosmesmíssimos critérios em que a Comissão daVerdade se respalda.

Mas vamos ao que interessa, pois não souhomem de ficar me lamentando por aí nem depermitir minha vitimização, ao contrário de certospicaretas que mamam uma grana do Estado por sedeclararem supostas vítimas da ditadura.

QUAIS SERIAM AS METAS DA COMISSÃODA VERDADE?

Comissão Nacional da Verdade. É o nome deuma comissão brasileira criada com o objetivo deinvestigar violações dos direitos humanos

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ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil por agentesdo Estado. Formada por sete membros nomeadospela presidenta Dilma Rousseff, além de 14auxiliares, deve atuar durante dois anos e, no finaldesse período, publicar um relatório dos principaisachados, que pode ser público ou enviado apenaspara o presidente da República ou ministro daDefesa. A lei que a instrui foi sancionada porDilma em 18 de novembro de 2011 e instaladaoficialmente em 16 de maio de 2012. Pois bem,essas são as finalidades da Comissão da Verdade, ea minha primeira pergunta é:

Sendo uma comissão que se autointitula daVerdade, envolta pela bandeira dos direitoshumanos, por que investigar tão somente oscrimes de abuso de autoridade, tortura e execuçãocometidos pelo regime militar, desde já ignorandoos artigos I, II, III, V, VI, VIII, XII, XVIII e XIX daDeclaração dos Direitos Humanos, quando sãoevidentes e de domínio público os indícios de

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assassinatos de pessoas que nada tinham a vercom o regime, execuções de justiçamento decompanheiros por manifestarem algum desejo desair do movimento, sequestros de aviões e deembaixadores, atentados a bomba, torturas eassaltos a instituições financeiras perpetrados porvários grupos de luta armada da esquerda?

Por que partir de uma premissa, sem a menorlógica e justiça, de que somente um lado deveráser investigado? Só porque é o Estado o únicoresponsável por seus crimes? Isso não se sustenta.Principalmente na circunstância histórica tãopeculiar em que foi deflagrada a Revolução de1964.

Há de se relevar que existia um clamor popularsem precedentes, passeatas, manifestaçõespúblicas de dimensões bem maiores do quealgumas mais recentes, como o movimento dasDiretas Já (uma média de 850 mil pessoas), paraque as Forças Armadas tomassem as rédeas do

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poder e livrassem o país de uma situação caótica,pois ele estava em vias de se tornar uma ditadurado proletariado, de se tornar um Cubão, e isso nãopode ser jogado para baixo do tapete da História. Enem a comissão pode prejulgar essesacontecimentos como manifestações de uma classemédia reacionária, apenas porque é uma legítimaparte do povo brasileiro, portanto passível de serconsiderada.

Temos que descobrir a verdadeira causahistórica, os verdadeiros responsáveis pela badernae a instabilidade que vinham sendo implementadaspor esses vários grupos de luta armada, praticandoatos de terrorismo e desequilibrando a instituiçãoda República desde 1961, sendo,incontestavelmente, os pivôs da instauração daditadura militar no país.

Os militares abusaram (e abusaram mesmo) doexpediente de torturas e execuções dosguerrilheiros e de pessoas que nada tinham a ver

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com a guerrilha em questão, se aboletaram nopoder, quebrando a promessa de devolvê-lo a umgoverno democrático, se afastando por completo dasociedade civil, cassando os principais líderespolíticos da época, como Juscelino e Lacerda, e issodeve ser devidamente esclarecido. Mas nadajustifica o acobertamento histórico de quaisqueroutros fatos, independentemente do lado. É apenasa História do país que clama por ser contada deforma equânime, como assim exige qualquerespírito justo e democrático de um povo e de umacultura.

Pois queremos também saber de toda a verdadesobre esses grupos que estavam patrocinados comdinheiro e armas e recebiam treinamentos deguerrilha, no campo e na cidade, por Cuba, Chinae a extinta União Soviética. Por que cargas-d’águaa comissão não vê necessidade em tocar nessesassuntos?

E o mais incrível é que, nos dias de hoje, basta

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apenas fazer uma busca no Google que brotará umsem-número de evidências, fatos, documentários,provas que estão sendo cinicamente escamoteados.Uma parte substancial da população exige saber averdade integral. E isso não pode nos ser negado.Qualquer cidadão brasileiro, independente departido, credo ou convicção político-ideológica,tem o direito de pleitear ao governo e, ao mesmotempo, à Comissão da Verdade, todas as faces dahistória. De outra forma, a Comissão da Verdadeserá apenas uma patética Omissão da Verdade.

Responder que as mais de quarenta comissõesda verdade espalhadas pelo mundo foram sempreunilaterais, não é, definitivamente, argumentaçãosustentável para a nossa comissão seguir o mesmoexemplo, pois, uma vez constatado o equívoco e afalta de equanimidade no procedimento dascomissões precedentes, todos nós, seres de boavontade, chegaremos à conclusão de que um erronão justifica o outro.

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Principalmente quando esse procedimento,antes de mais nada, fere vários artigos daDeclaração dos Direitos Humanos, sem falar daprópria Constituição brasileira.

Outros aspectos assustadores e bastantesintomáticos desse obscuro processo são fatosaparentemente corriqueiros, como o grupo TorturaNunca Mais, em 1997, ter realizado umacerimônia de condecoração póstuma, dando amedalha Chico Mendes de Resistência a um dosmaiores e inquestionáveis assassinos do séculoXX, Ernesto Che Guevara, alegando um méritoconcedido a pessoas que lutaram por... direitoshumanos (!!!).

Estamos falando de fatos e não adianta seindignar tapando o sol com a peneira,despotencializando a informação, como fizeramcertos alemães depois que o mundo descobriu asatrocidades perpetradas nos campos deconcentração nazistas, alegando ser propaganda

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falsa dos americanos.

Querem saber mais? Procurem saber! Procuremsaber! Leiam livros repletos de fatos. Eles estãotodos à mão de qualquer cidadão. Tentem achar osdiscursos de Che Guevara. Vocês irão ver, ouvir eler inúmeras barbaridades, proferidas e escritaspor ele próprio. Sem possível edição ou filtragemde qualquer “mídia golpista”.

Já são de domínio público as atrocidadespraticadas na fortaleza de San Carlos de la Cabañae suas centenas de fuzilamentos sumários. Fora osque eles metralharam em alto-mar por tentarescapulir do regime, das outras dezenas demilhares que foram ou estão presas por nãocompartilharem as ideologias em vigor em Cuba,mais outras centenas de milhares que tiveram defugir da ilha, fora os outros infelizes que perderampor completo o direito de ir e vir, de livreexpressão, fora a prostituição reinante para poderadquirir coisas básicas para se viver, como um

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saco de leite etc.

Já são de domínio público as ligações profundasque os atuais dirigentes do Brasil têm com Cubadesde sua revolução. E com o Irã também! Fatoque acabou virando piada internacional.

O mesmo ocorre com o acesso a informações deque elementos deste governo foram para Cuba,ingressaram na polícia secreta especial do regime eparticiparam ativamente de centenas de execuçõesde civis.

Na visita de Yoani Sánchez ao Brasil, emfevereiro de 2013, tivemos que engolir olamentável episódio da ingerência do governocubano em território nacional na tentativa deaniquilar a reputação da blogueira com a bovinasubmissão e cumplicidade do governo brasileiro,acabando por desmoralizar de vez seus anseiosreais e genuínos por justiça e deixando bem clara aassimetria de pesos e medidas relacionada aosdireitos humanos. Um papelão vergonhoso.

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Um governo que age dessa maneira não tem amenor condição moral de exigir absolutamentenada de ninguém.

E tem mais: se abominam tanto a tortura, porque o Estado brasileiro é um dos campeões detortura e assassinatos de presos no mundo? Nempreciso recorrer ao Google nem ao ArquivoNacional ou outras fontes, pois eu mesmo,enquanto estava preso, presenciava meus colegasde cela passarem por sessões de tortura queduravam a noite inteira, em que se arrancavamunhas e se provocavam queimaduras de cigarrospor todo o corpo, fraturas expostas, afogamentos(waterboarding), fora as dezenas de execuçõessumárias realizadas no traslado dos presos entre adelegacia e a penitenciária.

Foi muita cara de pau da nossa governanta,Dilma, declarar numa visita aos Estados Unidos,em plena Universidade Harvard, durante umasessão de perguntas feitas pela plateia, a

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incapacidade do país de impedir a tortura e asmortes nas prisões. E ter o descaramento de dizer:“Eu sei o que acontece, não tenho como impedirem todas as delegacias do Brasil de haver tortura.”(!)

Se a presidenta do Brasil é uma impotenteconfessa quanto à persistência da tortura nasprisões, quem poderá fazer algo? Qual a sua moralem decretar a existência de uma Comissão daVerdade para averiguar... tortura?! E, por sombriae descarada coincidência, no mesmo período emque ela própria foi vítima? Deprimente.

Nos dias de hoje, mata-se mais e tortura-semais no sistema presidiário brasileiro em um mêsdo que em todo esse período da ditadura militar!Isso está ocorrendo neste exato momento,enquanto vocês estão lendo estas linhas!

Já é de domínio público a omissão completa porparte do governo em pôr em prática o mecanismode prevenção à tortura, conforme compromisso

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assumido na ONU, em 2008. Imaginem quantosmortos e torturados já foram produzidos durantetodos esses anos nas barbas do governo, sem quese tomasse uma única e singela providência?

O governo brasileiro também reluta há mesesem dar publicidade ao relatório do Subcomitê dePrevenção da Tortura da ONU, que visitou o Brasilem 2011, mostrando que o país falha repetidasvezes em adotar medidas capazes de coibir aprática desse crime em centros de detençãoprovisória, presídios e unidades socioeducativas.Atitude inadmissível, sob qualquer circunstância,sendo mais grave e cínico ainda por ocorrer nummomento especialmente sensível e emblemático,com a Comissão da Verdade sendo implementadasob a chancela do governo.

Fora tudo isso, não esqueçamos que o Brasil écampeão mundial de assassinatos, 50 mil mortespor ano, quando, pelos órgãos internacionais, parase reconhecer em termos estatísticos um estado de

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guerra civil, são necessárias 10 mil mortes. Isso éinadmissível. E na nossa cara!

São 110 mil mortes violentas por ano (60 milsão acidentes rodoviários).

A declaração da nossa presidenta gerou umanota de repúdio assinada por várias instituições deincontestável prestígio e credibilidade como oInstituto Vladimir Herzog, a Pastoral Carcerária, oCentro de Direitos Humanos Dom Oscar Romero,a Conectas Direitos Humanos, o Instituto Terra,Trabalho e Cidadania, o Instituto de EstudosSocioeconômicos, a Justiça Global, a Associaçãodos Cristãos para a Abolição da Tortura, aAssociação Brasileira Interdisciplinar de Aids e oInstituto de Desenvolvimento e DireitosHumanos.

O próprio ministro da Justiça, José EduardoCardozo, num ímpeto sincericida, declarou que, noestado medieval em que se encontram as prisõesno Brasil, se por acaso fosse preso nesse sistema

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carcerário (sistema que é de responsabilidade doMinistério da... Justiça!), preferiria morrer!

Assim fica difícil querer achar parâmetros reaisde justiça, muito menos de qualquer... verdade! Écom essa mentalidade que vamos nos submetersem fazer a mínima objeção?

Sem falar de comportamentos ridículos,rancorosos e absurdos, como sucatear as ForçasArmadas. Um dos resultados desse abusoirracional é termos um Exército com apenas umahora de munição!

E a associação do PT com as Farc, que éassociada ao PCC. Vamos averiguar? Afinal decontas, o PT e as Farc fazem parte do abominávelForo de São Paulo, que tem como uma de suasmetas principais transformar a América do Sul emuma união de repúblicas socialistas para substituiro bloco europeu da Cortina de Ferro (falarei mais arespeito do tal foro em outro capítulo), assimcomo o MIR e os Tupamaros.

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A Comissão da Verdade responde que “vaiaveriguar um lado só”, como declarou seupresidente, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro. Umexemplo clássico e universal dessa assimetria estánum texto de Slavoj Žižek (escolhi Žižek por serele um pensador de esquerda): “Que tipo depolitização [os que intervêm em nome dos direitoshumanos] põem marcha contra os poderes que seopõem? Eles defendem alguma formulaçãodiferente de justiça ou se opõem a projetos dejustiça coletiva?”

E por que essa indiferença brutal com os presoscomuns? O que os ditos presos políticos têm deespecial para serem tratados dessa formaobscenamente privilegiada? Vida é vida, não éverdade? Isso é patético.

Vocês devem conhecer aquele dito popular: “Semeu inimigo perder a possibilidade de seexpressar, sob qualquer pretexto, sairei a defendê-la até a morte.” Parece que esse tipo de

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mentalidade não passa pela cabeça dessas pessoasque sempre tiveram o péssimo hábito de semostrarem acima do Bem e do Mal. Essa verdadeabsurda pleiteada pela comissão nos força aconcluir e a pensar como seus integrantes,adotando a sua lógica oblíqua: “Não há nadaimportante a se averiguar antes de nós nem contranós, muito menos em solucionar o presente, umdesastre tenebroso, que é responsabilidade única eexclusiva nossa. Só nós somos dignos de sermosreparados pela História. O Outro? Foda-se oOutro.”

E se você quiser emitir uma opinião que nãoesteja alinhada aos cânones do governo, desaba omundo na sua cabeça. O cerceamento de liberdadede opinião é claro e escancarado. A livrecomunicação de pensamentos e opiniões é um dosdireitos mais preciosos do homem. O Estado temobrigação de dar esse respaldo a todo cidadão,independentemente de hierarquia ou ideologia.

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Depois disso tudo eu pergunto: então o loucosou eu? Por todos os motivos acima mostrados,dentro da lógica da nossa presidenta e da nossaComissão da Verdade, poderíamos argumentarque, devido a um suposto ideal nobre (seja lá qualfor), assassinar a presidenta da República seria umfeito libertário, benéfico e ansiado por umasuposta parte representativa da população, umaexecução sumária e legítima, perpetrada por umaação popular armada, redentora, articulada etreinada para destituir do poder uma tirana cínica,mentirosa, uma genocida passiva, injusta eincompetente. E, logo em seguida, pleitear umheroico lugar de honra na História do país, oumelhor, exigir um feriado nacional emhomenagem à data de semelhante feito, colocaruma placa de bronze no local de sua execução parareconhecer o mérito daquela higienização tãoaguardada e, quem sabe, uma estátua para o grupode guerrilheiros libertários exibir, impávidos, acabeça da ex-mandatária em praça pública, tudo, é

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claro, chancelado e protegido pelos mais altosideais.

Pois quem imputa a exclusividade de boaqualidade dos seus ideais é sempre aquele queexige o justiçamento do Outro, sempre um vilão,uma máquina assassina, isentando-se, por sua vez,de qualquer responsabilidade, de qualquer crime.É bizarra e inadmissível a situação em que nosencontramos, de reles presos sem nenhuma razãonem desculpa de serem tratados com essanegligência genocida, de obrigações que o Estado,reincidente no crime, não vem cumprindo portodos esses anos.

E agora com os larápios do PT na cadeia,querem fazer das prisões hotéis de cinco estrelas.

Bem, por tudo isso aqui escrutinado, ponderadoe exposto, só temos uma única e lamentávelconclusão a fazer: quem quer que venha a se acharno direito de adotar um peso e duas medidas paraaveriguar os podres da História, quem se acha com

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mais direitos do que o Outro, seja lá quem esseOutro for, não está, de maneira alguma,procurando verdade em nada. Está simples egrotescamente procurando revanche, além de seautofavorecer numa sórdida falácia histórica,posando de herói libertador da pátria. Estácolocando a verdade da História do país dentro dalatrina. Está enganando, fraudando, escarnecendoda memória de todo um povo. Além de, nessecaso, para piorar, e muito, a situação, ser umamáquina de tortura e de assassinato em sérieatravés de seu sistema prisional.

Quaisquer pessoas, instituições, partidospolíticos ou comissões que porventura se deem odireito de pensar, agir e julgar dessa maneiracínica, descarada e sem-vergonha só poderão serreconhecidas por todos nós, cidadãos comuns, epela História desse país como, simplesmente, umbando de canalhas.

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CAPÍTULO 4

POR QUE O ROCK CONTINUAERRANDO?

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Depois de 36 anos sendo músico profissional,eu ainda me pergunto: por que será que aqui noBrasil nós temos tanta dificuldade em lidar comesse tal de roquenrou?

Não estou falando sobre o comportamento emsi, pois, no próprio rock, temos uma imensa gamade comportamentos, todos eles devidamenteabsorvidos pelo nosso imaginário, como ohippismo, o punk, o metal, o rock gospel, o rockfarofa. Estou falando, além de uma resistênciamuda a sua real inclusão como cultura brasileirade fato, dos elementos estéticos, que envolvemtimbre, tecnologia, potência e arrojo. Aí o Brasilempaca.

O hippismo caiu como uma luva na nossamaneira de ser, conseguindo reduzir umsubgênero aguerrido do rock como o reggae a umacantilena arrastada de paz e amor piegas, cafona ebrocha. E por falar em brochura, por seu turno, asgravadoras travestiram uma meia dúzia de boy

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bands com aqueles garotos amestrados porprodutores inescrupulosos, todos eles com aquelaindefectível cara risonha de paisagem, produzindoum arremedo de rock coloridinho, infantiloide eidiota.

Os punks também conseguiram se inserir nocontexto, mas sempre na marginalidade, sempreno underground.

O metal possui uma legião de fãs em todas asregiões do país, provavelmente por um parentescoestrambólico com o sertanejo, por meio daquelesfalsetes histéricos de seus crooners (maldademinha).

E, sendo assim, décadas entram, décadas saem eo Brasil sempre vai enterrando a história dosmovimentos de rock. Enterra a grande maioria, e oque resta traveste de algo adocicado, morno,molenga ou brega, como aconteceu com a JovemGuarda, como aconteceu com a Tropicália e com ageração dos anos 1980.

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As gravações aqui no Brasil, em todos os estilos,sempre foram de péssima qualidade. Você pega umdisco de escola de samba dos anos 1970 e pega umdisco do último carnaval, é praticamente o mesmosom. Uma porcaria. Uma bagunça, uma lambança.E não ficamos só na gravação de samba, não! AMPB, o rock, o sertanejo, tudo é absolutamentemalgravado, sem preocupação com timbre, com ainteração de voz e instrumentos. Quanto a teralguma assinatura, alguma característica que vocêreconheça, como um som de Nashville, deChicago, de Nova York ou o som de Abbey Road, eassim por diante, isso nem passa pela cabeça deninguém. Por quê? Por quê?

Uma das causas está nessa tecnofobia atávica eoutra está no nosso barroquismo cultural: paranós, o importante é ouvir a “mensagem da letra”,o cantor, o canário. A regra, sem exceção, é umsom chapado bidimensional, com uma voz

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altíssima na frente e uma maçaroca amorfa atrás,“de acompanhamento”. Temos um orgulhoinexplicável em jactarmo-nos de ser verdadeirasbestas tecnológicas. Pega bem, no metiê, chegar edizer: “Puxa vida, eu tenho pavor de entrar emestúdio, gente.”

Existem histórias engraçadíssimas sobrecomportamentos prosaicos de nossos astros dacanção popular, do tipo a seguir: chega um astroda MPB no estúdio, ouve a mixagem e se ressentede alguma coisa... Daí ele se dirige ao técnico desom da seguinte maneira: “Fulano, sinto que estáfaltando uma... uma coloração na aura.” (?) E opobre técnico de som, aturdido e perplexo,pergunta: “Mas aura? De quê, onde? Quer maisgrave? Agudo? Quer mais voz? Mais baixo? Maispiano? Qual a frequência sonora que falta?” Enosso astro: “Ah! Num sei explicar! É puraintuição... mas que falta uma coloração na aura,ah, isso eu sinto aqui, ó...” E faz um mímica

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ritualística de babalorixá com os braços e as mãosa sacolejar, mostrando um hipotético e combalidohalo a seu redor, clamando por uma coloraçãointangível!

Com isso, criou-se uma tradição de confeccionarum “canal placebo” para esses astros e astras daMPB. Ao pedirem mais coloração de aura, otécnico começa a subir e descer de maneiracenográfica, botões desligados, para a satisfaçãopsicológica do astro, olhando para a cara do astro,até ele se pronunciar. Isso tudo depois de umapausa de muita concentração: “Ah, não mexemais, agora você achou o ponto que eu queria!...Agora, sim, rolou a coloração da aura!”

E com esse know-how abissal etc. e tal, sãoproduzidos os discos de MPB.

Os discos de rock sofrem de outra maneira.Geralmente, os artistas de rock, pela própria

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natureza do estilo, já são mais bem-informados emrelação à tecnologia, aos procedimentos degravação, mixagem e masterização. Contudo,enfrentam uma barreira intransponível: não sepode produzir nada com “peso” ou “maisbarulhento”, ou algo “mais agressivo”. O produtor(que é o cara que manda e, não raro, acabatocando os instrumentos da banda contratada) nãopermite. Senão, segundo os cânones estético-radiofônicos do produtor, não toca no rádio. Einvariavelmente seu disco sai com um som de cocôenlatado.

Ou seja, guitarra elétrica bem-timbrada? Nempensar. Tem que ser baixinha e com umtratamento sonoro o mais sarapa (vagabundo)possível. A bateria? Somente a caixa pode teralguma proeminência (e sempre com um somhorroroso); o resto tem que ficar lá atrás damixagem.

O baixo? Não pode ser muito grave, senão

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atrapalha a voz do cantor! E assim por diante. Aregra é jamais arriscar NADA e seguirbovinamente o que o produtor dita.

A guitarra elétrica é o nosso principalantifetiche. Existe uma tradição desde os anos1960 de que, na hora da mixagem dos grupos derock (mixagem, para quem não está familiarizado,é o momento em que se equilibram todos osinstrumentos e vozes gravados previamente emcanais separados, enviando-os para apenas doiscanais, o estéreo da sua casa, proporcionando apossibilidade de alterar volume, timbre e lado —direito ou esquerdo — de cada instrumento e vozgravada), as gravadoras convoquem osprogramadores das rádios de maior audiência parainspecionar e acabar com o som da guitarra. Outirando seus efeitos ou diminuindo seu volume oua substituindo... por um violão!

O negócio é retirar o peso, a agressividade, poiso brasileiro, segundo eles, é muito romântico e se

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assusta com sons mais violentos.

E o mais patético é que esse produto finalestuprado, deformado, edulcorado,despotencializado, diminuído, vai tocar nas rádios,borocoxô-borocoxô, do lado das bandas inglesas,americanas, alemãs, japonesas, que, sem exceção,cimentam as bandas “tupiniquins”. Sempre com aargumentação de que o público brasileiro detestaguitarra elétrica. Mas se isso é verdade, por quetemos milhões de pessoas fãs de rock ’n’ roll detodos os tipos, feitios e idades?

E olha que nós temos grandes guitarristas comoAndreas Kisser, Edgard Scandurra, Luiz Carlini,Sérgio Dias, Catatau, Toninho Horta, MarceloGross, Lúcio Maia, Lulu Santos, Frejat.

Por que sempre há uma força muito estranhaem nossa concepção cultural (por parte dosintelectuais, empresários e radialistas que

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“pensam” o Brasil) que obriga todo tipo demanifestação que denote potência, timbre, arrojo etecnologia a ser severamente censurado e apartadoda possibilidade de pertencer à cultura tida comobrasileira?

Vocês poderiam cogitar que nós nunca tivemos“cacoete” para o rock, mas isso não se sustentacom um histórico de quantidade e qualidade degrandes artistas, que heroicamente se destacarampraticando esse gênero tão refutado, através dasdécadas, como Erasmo Carlos, A Bolha, Lafayette,Som Nosso de Cada Dia, Módulo 1000, Renato eseus Blue Caps, Os Incríveis, Barão Vermelho, OsMutantes, Arnaldo Baptista, Rita Lee, Tutti Frutti,Luiz Carlini, Raul Seixas, Autoramas, Sepultura,Júlio Barroso e a Gang 90, Renato Russo, Ira!,Ultraje a Rigor, Ratos de Porão, Inocentes, PlanetHemp, BNegão & Seletores de Frequência,Vanguart, Cássia Eller, Edgard Scandurra,Cascadura, Mombojó, Chico Science e Nação

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Zumbi, Mundo Livre S/A, Otto, Cachorro Grande euma centena de outros tantos mais.

Agora, alguns se tornaram MPB ou românticos,como Roberto Carlos (que era genial e virou umamúmia deprimida), o meu querido Cazuza, quedepois de morto foi travestido de MPBista de raiz,o Arnaldo Antunes, que virou tribalista, ou não,Sérgio Reis, que virou sertanejo, eu mesmo,tornado MPBoide quando toco em rádios de perfil“adulto contemporâneo”, só entrando naprogramação as baladas românticas ou as versõesacústicas, e assim por diante.

E com essa produção voluptuosa de artistasdesse calibre, o rock é evaporado a cada década e,invariavelmente, um jornalistinha em início decarreira te pergunta “Como é a sensação em ser daprimeira geração do rock brasileiro?”, ignorandopor completo que já fazemos rock desde os anos1950, desde Celly Campello, nos anos 1960, TheFevers, The Pop’s, The Silvery Boys, Renato e seus

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Blue Caps, sem falar que ser taxado de roqueiroainda pode ser considerado um insulto, umrebaixamento à condição de pária cultural.

Devido a esse comportamento repetitivo emrelação ao conceito da nossa autoimagem, temosverdadeiras pérolas da jequice, proferidas pelasmais diversas luminárias das nossas letras, sobre oque é ser ou não ser considerado nacional dagema. Temos o nosso gigante, Graciliano Ramos,que, sob o pseudônimo de J. Calisto, em 1921,vaticinou uma profecia de precisão assustadora:disse que o futebol jamais se tornaria um esportenacional, por ser importado da Inglaterra,incompatível com nossa índole. Mas nada melhorpara ilustrar essa joia de apreciação do que com assuas próprias palavras: “Não seria, porventura,melhor exercitar-se a mocidade em jogosnacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro,o cacete, a faca de ponta, por exemplo? Não é que

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me repugne a introdução dessas coisas exóticasentre nós. Mas gosto de indagar se elas sãoassimiláveis ou não.” Não é lindo?

Pois bem, décadas após essa estonteanteprospecção, ocorre um episódio de extrema ironiapor mim vivenciado, que acredito valer a pena sercontado. Lá pelos idos de 2003, fui convidado peloentão ministro da Cultura, Gilberto Gil, para umacerimônia no Palácio do Planalto. Sim! Eu haviarecém-entrevistado o ministro para a minha finadarevista Outracoisa, para tentar extrair dele algumaopinião sobre o jabá, uma vez que estávamos comuma lei de criminalização na Câmara dosDeputados e precisávamos do apoio do ministro,cantor, compositor e ser histórico. Essa entrevistadurou umas duas horas em seu gabinete emBrasília, e ele, com sua virtuosa técnica de evasãoverbal, formulou circunvoluções acrobáticas dealtíssima estupefaciência, algo que soava como“...a reverberação cósmica da parafuseta interferirá

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nas ondas cerebrais, provocando uma sensaçãotelepática de integração universal da alma coletivacom a alteridade de ser o não ser, para que, então,a poesia da ciência introjete-se por completo narazão da emoção” (?).

E declaração sobre o jabá que é bom, nada...escapuliu mais uma vez. E por isso, ou apesardisso, criou-se um vínculo inesperado entre nós.Pelo menos, inesperado pra mim. Daí, presumo,que saiu o tal convite para a cerimônia noPlanalto. Além de me convidar efetivamente, logoem seguida me telefona um assessor seu mepedindo o esdrúxulo e surreal favor de, “se fossepossível, já que eu era um colega de profissão (!),que eu trouxesse o violão do ministro comigo, poisele iria dar uma canjinha na tal cerimônia”.

Isso é que chamo de quebra total de protocolo.

Sem muitas alternativas, um tanto surpreso, umtanto constrangido, meio que numa sinuca de bico,aceitei o pedido. Contudo, conhecendo a índole de

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nosso então ministro, fiquei com duas pulgas atrásdas duas orelhas. Quando desembarco noaeroporto de Brasília com aquele improváveltrambolho a tiracolo, sou recebido solenementepor um carro oficial e levado direto ao Ministérioda Cultura.

E lá ia eu, griladão, a bordo de um carro chapabranca do ministério, doido para entregar aquelaincômoda encomenda a seu dono. Chegando aogabinete do ministro, me livrei do instrumento omais rápido possível e, logo em seguida, meconduziram para outro prédio, para um salãoenorme onde já ocorria uma série de discursos dasmais altas autoridades da nossa República. Haviauma cadeira especialmente reservada a minhapessoa, logo na primeira fila.

Bom, é aí que eu queria chegar. É nessemomento solene que acontece o episódioemblemático que corrobora os nossos paradoxosincuráveis. A história do Gil é só pra dar um

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colorido especial, uma apimentada, uma coloraçãona aura do “causo”.

Eis que sobe ao púlpito o nosso ilustríssimosenador Aloizio Mercadante, que, em meio ao seuemocionado discurso, lança um pensamento queme arrebatou! Proferiu algo do tipo: “Meusamigos, temos que lutar pelo que é genuinamentenosso, como o futebol. Eu jamais gostaria depresenciar um filho meu jogando futebolamericano ou beisebol. Futebol, sim, é coisanossa, não podemos deixar que coisas estrangeirasinvadam nossa cultura.” (!!!)

Após ouvir uma coisa dessas, foi inevitávelpensar em nosso saudoso Graciliano e seusdelirantes prognósticos nacionalistas, pensar nointrigante paradoxo... futebol é cópia de inglês,futebol é coisa nossa, e concluir como nós somossoberbos em relação à absorção de cultura externa.

Só pra finalizar o episódio da festança lá doPalácio do Planalto: no dia seguinte, já em casa,

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abro um jornal carioca e, surpreso, leio namanchete do seu glorioso caderno de cultura algocomo “Lobão, de violão embaixo do braço, viraroadie do ministro Gilberto Gil”.

Voltando ao assunto em questão, para além dofutebol, no caso do roquenrou, fora essesempecilhos acima descritos, ainda temos deconviver com a famigerada “proteção de mercado”,que acaba com a possibilidade de implementarmosuma qualidade tecnológica realmente competitivae profissional: as taxas de importação sãoproibitivas e a indústria nacional, a despeito deesforços heroicos de alguns empreendedores,jamais conseguiu sair da total indigência emtermos internacionais.

E por falar em leis de proteção de mercado,existe uma outra, famigerada, que exige a presençade artistas brasileiros em festivais internacionais.Mais uma vez, o que era para proteger vira contra

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o artista, pois, com essa obrigação, o empresárioacaba contratando goela abaixo o produto nacionale o tratamento é, inevitavelmente, de última. Piorpara todos.

Ao invés de haver uma infraestrutura no nossodia a dia — que permita a esse tipo de culturaexistir de forma normal, prosperar e, assim, pormerecimento e vontade do público e doempresário, ingressar pela porta da frente dosfestivais —, acabam por enfiar os artistasbrasileiros em palcos coadjuvantes, em horáriospouco significativos, com visibilidade, som, luz,tudo sensivelmente inferior.

Agora, se você tentar modificar a situação, comoaconteceu comigo no bisonho “episódioLollapalooza”, você se fode em verde e amarelo.

Contarei a história como se passou:

Fui contatado pela produção do festivalLollapalooza para tocar em sua primeira edição

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brasileira, fato esse que muito me entusiasmoupor ser um festival mais para o alternativo, sem agrandiloquência de um Rock in Rio. Já havia umapromessa contratual escrita e, às vésperas doevento, a inevitável assinatura do contratodefinitivo. Foi quando me deu um estalo e cismeiem telefonar para o produtor nacional do festivalpara saber de mais detalhes. Aí a coisa encrencou.O nosso estimado produtor me esclareceuefusivamente que eu iria tocar no horário “filé” dasbandas nacionais, o que muito me deixouespantado, pois, de cara, já revelava um apartheidentre as bandas nacionais e as internacionais. Algoestranhíssimo para aquele festival de cunhoalternativo, cuja tradição era de incrementar aintegração das bandas, e o que estava me sendoinformado era justamente o contrário. Eu iria tocaràs duas da tarde, ou seja, todos os outros artistasbrasileiros iriam tocar antes de mim!

Eu exclamei assustado: “Mas o que é isso?

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Assim é muito barra pesada! Apartar os artistasbrasileiros do resto do festival é no mínimoesculhambante!”

Ele tentou me explicar que o festival tinha suasregras quanto à escolha do line-up, que havia sidouma exigência “dos gringos” e que não mepreocupasse com o horário, pois era um festival decaracterísticas diurnas, e eu voltei à carga alegandosaber disso tudo, mas as atrações “filés”começariam a tocar ao cair da tarde, quando osistema de luz faz a diferença, e eu só tocaria sefosse incluído para tocar pelo menos no fim datarde, mas às duas da tarde, de jeito nenhum.

Ele tentou me alertar mais uma vez sobre o fatode “os gringos serem durões” e terem regras muitorestritas em relação aos artistas brasileiros e quenão havia essa opção: ou eu tocava às duas datarde ou nada feito.

Nada feito.

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Qual seria o problema em integrar todos osartistas de todos os lugares? Por que criar essasituação de afastamento de grupos?

O produtor, em tom melífluo, acenou com umaentrevista especial na Rolling Stone comigo, oMarcelo Nova e o Perry Farrell, mas, já que eu merecusava a tocar, a entrevista estava, desde então,cancelada. Bem, só me restou dizer a ele quefizesse bom proveito da tal entrevista, pois eu jáhavia decidido não assinar mais o contrato.

Desliguei o telefone e pensei: “Bem, não perdinada...”

Isso aconteceu numa sexta e a tal entrevistaseria realizada na segunda.

Enquanto isso, eu tinha um show em Belém doPará no sábado, e durante a viagem fiqueimatutando e intuí que, se não tomasse umaatitude pública, eles poderiam inventar alguma

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coisa e que, talvez, eu pudesse convencer meuscolegas a não tocar no festival. Comecei a escrevera história com a intenção de divulgar o texto nainternet. Fiquei grande parte da viagem elaborandoo conteúdo, quando a minha querida assessorapara assuntos da internet, a Sheila, que estava novoo, me deu uma ideia de maior espectro: realizarum pronunciamento filmado comigo falando,explicando o acontecido e, claro, convocando osartistas nacionais a fazer o boicote ao festival,usando como arma justamente a infame lei deproteção ao artista nacional, que impede o festivalde ser realizado se não houver atrações brasileiras.

Eu logo pensei: bom, se sou o mais bemcolocado em termos de horário, será muito fácilconvencer os outros artistas a não participar doevento, proporcionando uma paralisação em suarealização. Isso, no meu entender, poderia mudarmuito o rumo não só das negociações, mas dequalquer outro festival dali em diante.

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Afinal de contas, ninguém ali queria nenhumabsurdo, nenhum pedido fora de propósito, apenaso devido respeito com a nossa história, com nossosnomes, e não nos expor numa situação pífiadaquelas. O que sempre almejei em festivaisinternacionais foi a integração com outras bandasde outros países, trocar informações,eventualmente fazer umas jams, como todo mundofaz.

Quando chegamos em Belém, nos aboletamosno restaurante do hotel, eu dei uma ensaiada noque iria dizer e, via iPad, a Sheilinha me gravou.

Imediatamente colocamos no YouTube, e emmeia hora já tinha mais de 150 mil visitas.

A Folha de S.Paulo me telefona pedindo um artigopara segunda. Eu teria um prazo para entregá-loaté o domingo de manhã e tinha show namadrugada de sábado. Topei. Dormi uma hora e

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meia depois do show e acabei por entregar o artigo15 minutos antes do prazo final. Beleza!

Só me restava esperar até segunda pra ver o roloque daria, enquanto as visitações no YouTubearrebentavam. Sinceramente, eu confesso a vocêsestar convicto de que, por causa da imposiçãoabsurda e humilhante da produção do festival,todos os artistas haveriam de topar o boicote...mas um silêncio absoluto já anunciava a olímpicaamarelada.

Na manhã de segunda eu ligo meu computadorpara assistir ao vivo a apresentação oficial doLollapalooza versão brasileira. Apreensivo, assistoao vocalista do Jane’s Addiction apresentandoexclusivamente as atrações internacionais e meioque se desculpando por não ter tido tempo de seinformar sobre as atrações locais, e disse queachava o cantor do Rappa... sexy (!).

Logo em seguida ele passa a bola para oprodutor das atrações nacionais, que começa

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sorrindo e anuncia a seguinte mensagem: “OLobão, vocês sabem como é que é... tem muitotalento, mas é meio lunático, ficou por aí dizendoque o line-up seria separado entre atraçõesnacionais e internacionais... Loucura... Imagina!Isso nunca aconteceu. Lobão é mesmo um caramuito louco, he, he...” etc. e tal... E começou aanunciar as datas... todas trocadas!

Eu, sinceramente, poderia esperar tudo, menosaquela encenação surreal, e comecei a teclar noTwitter, tentando alertar sobre a farsa que seimpunha na maior cara de pau. Foi quando ogabaritado jornalista Jamari França me tuitoudizendo que tinha ficado com a pulga atrás daorelha e foi investigar o fato, perguntando aosoutros artistas contratados se era verdade o que eutinha dito. Para meu espanto, segundo ele, todosafirmaram que eu estava maluco, que nunca haviaacontecido esse formato excludente de line-up, que

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o pessoal do festival estava sendo muito gente finacom eles.

O jornalista, não satisfeito, resolveu perguntar aoutros artistas que haviam participado de outrosfestivais do mesmo formato se aquilo procedia. Eeles afirmaram que, infelizmente, o sistema era deintimidação, tipo pegar ou largar, e outras coisasmais. Ainda tive que ouvir o nosso querido PerryFarrell me dar um conselho: quando um dia eutivesse alguma música transformada em hit, eupoderia, sim, pleitear fechar o festival (!).

Quer dizer, chute no saco, dedo no olho e, maisuma vez, eu banquei o idiota: nada se encaixavaem nada. Uma farsa. Não sei por que cargas-d’água ninguém da imprensa explicou ao Farrell aminha situação de artista veterano com pelomenos duas dezenas de hits nacionais e jamaishavia pleiteado fechar o festival. Pois, por aquelecritério, por sua lógica, pelo número de hits, seriaeu realmente a fechar o festival.

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E no meio dessa baixaria toda, o que pedi foium lugar mais decente, ao cair da tarde, parapoder me valer da iluminação no meu show etalvez fazer contato amigável com um músico dealguma banda.

Durante aquela bagunça, o Farrell, já apavoradocom a pressão que estava levando, confessou,entre tantos outros foras, que a versão brasileirado festival era apenas um remendo financeiro pararealizar a versão chilena, essa, sim, completa, coma Björk. Que ele amava o Brasil etc. e tal...

Também não podemos esquecer daapresentação do Roger com o Ultraje a Rigor, noSWU, um mês antes, fazendo um showmemorável num espaço de cinco metrosquadrados, desfilando um hit atrás do outro, com aplateia em delírio, sendo inexplicavelmenteenxotado do palco em rede nacional.

Isso tudo para depois me deparar com algumascriaturas indignadíssimas com a petulância de

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minha recusa de tocar às duas da tarde, quevinham com a absurda indagação: “Afinal decontas, quem é você pra querer fechar um festivalinternacional?”

Apesar de tudo isso, sou um otimista. Não vejomotivo real para nos colocarmos tão vacilantes einseguros sempre que nos metemos em relaçõesinternacionais, exceto por termos entranhada essamentalidade insular que nos aparta do mundoexterior. Um pouco de petulância não faz mal aninguém.

Tenho absoluta certeza da qualidade, dacriatividade, da excelência de uma enormequantidade de artistas, tanto os que já estão aí naluta há um tempão quanto os da nova geração,uma safra cheia de novas sonoridades, novosconceitos, novas estéticas, com mais ousadia eatitude, pronta para fazer a diferença nessapasmaceira que é o cenário musical brasileiro, com

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suas numerosas bandas, instrumentistas, cantorese compositores.

Eu nutro verdadeira esperança de algum dia nãomais aceitarmos essa posição acanhada e diminutadiante do mundo, tomando, de uma vez por todas,a tão ansiada vergonha na cara e erguendo, assim,altaneiros, a cabeça, convictos do nosso valor,orgulhosos do que produzimos, a nos impor, nãopor conceitos nacionalistas recalcados demalandro-agulha, mas unicamente por nossomérito quando, por fim, deixaremos de ser umpovo a amarelar em qualquer situação de maiorpressão e que, livres dessa pouco edificantesíndrome de capacho de rendez-vous tupiniquínica,possamos escrever páginas mais gloriosas da nossaHistória.

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CAPÍTULO 5

O REACIONÁRIO

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Estamos em um período em que há pessoas quevivem para o Estado e não o Estado para aspessoas. Num período em que a opinião contráriaestá sofrendo reações sem precedentes. Nuncaantes na história deste país a expressão “patrulhaideológica” foi tão precisa e sombria. Nem mesmonos anos 1960/1970, quando a inventaram.

Para deixar mais claro o que estou dizendo, voucontar um episódio que me aconteceu para, logoem seguida, entrarmos no assunto propriamentedito. Vocês devem ter ouvido falar na lei Rouanet,não é? Vocês devem também saber que o intuitodessa lei é fomentar a cultura, ajudar artistas emcomeço de carreira, artistas que transitam emsegmentos menos populares, empreendimentos dearrojo artístico, sem muito compromisso com omercado, podendo ser das áreas de cinema, teatro,dança, música etc.

Pois bem, até aí eu acho lindo e a aplaudo depé, mesmo preferindo que o Estado não se

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manifestasse na iniciativa privada, todavia, comonão poderia deixar de ser, esse beloempreendimento de auxílio à cultura tornou-seum balcão de negócios dos mais despropositados epicaretas.

Como o nosso showbiz tem graves defeitos deinfraestrutura, como a meia-entrada (50%deduzidos do seu valor são uma bomba atômica nasua agenda de trabalho e no seu orçamento) que ogoverno nos tributa e, por incrível que pareça, nãodá a menor bola para os catastróficos resultados.Não estou aqui querendo destituir ninguém dameia-entrada, seja ela de estudante, seja elafalsificada, muito embora o número de carteirasfalsificadas seja alarmante. Estou, sim, exigindouma reparação automática do governo, que nostira esse percentual monstruoso e não faz nada.Vocês já imaginaram, ao término do mês, chegaruma grana 50% menor do que se esperavareceber? Simplesmente metade do seu salário?

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Vocês já imaginaram um advogado fazer o seuserviço e, de repente, uma criatura apresentar umacarteira que lhe concedesse 50% de desconto? Semhaver nenhum modo de reparo.

Os planos de saúde funcionam mais ou menosassim, né? Sempre com o devido ressarcimento.Mas com artista, não. Não imagino o que passapela cabeça dos governantes para adotarem essamedida absurda com essa sem-cerimônia toda.Fora os problemas de logística nos aeroportos,estradas em péssimas condições, um Ecad que sónos complica e se nega a ser transparente em suaarrecadação, com o beneplácito do governo, e umaOrdem dos Músicos que só nos obriga a pagar suataxa anual para nos retribuir com uma inutilidadeabsoluta.

Com tudo isso para resolver, o nosso governosegue com a lei Rouanet e eis que surge a terrívelrealidade: os artistas mais consagrados são os que

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mais se beneficiam! São milhões e milhões jogadosnas mãos de algumas dezenas de outras centenasque formaram uma panelinha e a todo momentoaparecem com projetos mirabolantes no Ministérioda Cultura. (Para quem quiser saber comofunciona a lei, a quem ela está beneficiando, ospretextos mirabolantes para formular eventossurreais, as quantias astronômicas concedidas aempreendimentos suspeitos, quando não de totaldesimportância, deem uma clicada no site doMinistério da Cultura e façam uma varreduravocês mesmos. Depois me contem.)

É um tal de comemorar aniversário de carreira,de lançar DVD celebrando seja lá o quê, deproduções cinematográficas das mais variadas,peças de teatro, e por aí vai.

E a lei se torna um elemento perverso, pois oministério (que não tem responsabilidade algumanesse sentido, pois está simplesmente cumprindoa determinação da lei) apenas aprova a isenção da

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verba do imposto de renda através de empresasque, uma vez optando por patrocinar odeterminado empreendimento, evento ou artista,conseguem isenção fiscal. Ou seja, a verba doimposto da empresa, que o artista captou, já vaidescontada direto para o autor da petição. E temgente negando de pés juntos que isso não édinheiro público!

O fato é que o artista de mais nome, oempreendimento de maior apelo mercadológicosão mais beneficiados, pois as empresas podem teruma isenção maior com o evento de maiorvisibilidade e acabam optando pelos peixesgrandes.

Ou seja, ao invés de o governo usar essesimpostos que as empresas deixam de pagar, e quepoderiam viabilizar o showbiz em geral,ressarcindo as meias-entradas e melhorando toda ainfraestrutura, fica viabilizando isenções fiscais deempreendimentos de poucos (não tão poucos

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assim), contudo, os mesmos de sempre.

É só conferir.

Aconteceu comigo uma história jocosa. Como aminha empresa, a Universo Paralelo, se expandiue ganhou novos funcionários, minha mulher, quetambém é minha sócia na empresa, formulou umasérie de eventos com artistas em início de carreirae exposições de arte de fotografia, encaminhou umpedido de patrocínio através da lei Rouanet. Eachou muito natural incluir meu nome nessa listasem ter me notificado, pois, segundo ela, souconsiderado um artista alternativo, que não tocanas rádios mainstream, e tínhamos acabado deproduzir um projeto de DVD/CD de formaindependente, arcando com todos os seus custos.

Depois de um determinado período de tempo,chega às minhas mãos a aprovação do projeto parauma turnê de quase dois milhões de reais!

Eu fiquei bastante constrangido, envergonhado

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com a aprovação, pois nunca passou pela minhacabeça captar patrocínio pela lei Rouanet! Sabiaque era crescidinho o suficiente para me excluir dorol dos beneficiários e de imediato comecei aredigir uma carta ao Ministério da Culturaagradecendo de coração a aprovação do meu nome,mas de forma alguma poderia aceitar captar aquelemontante através daquele dispositivo. Eu ainda meconsidero um hit maker, que produz música populare deveria estar tocando nas rádios, e, se não toco,problema meu, não vou ficar pedindo ajuda aogoverno pra resolver meus problemas particulares.E acabei devolvendo os documentos de aprovaçãojunto com a carta e fim de papo.

Sei que muita gente vai me chamar de otário oucoisa parecida, mas é assim que eu sou, e se todoartista mais ou menos consagrado fizesse issopoderíamos pleitear outras formas de intervençãodo Estado (já que ela existe), como, por exemplo,

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cobrir o valor da meia-entrada para todos oseventos artísticos, pois é imoral nos tirararbitrariamente o fruto do nosso suor.

Apenas nos deixar arrecadar aquilo que éplanejado e orçado. Nem mais nem menos.

Ou arrumar os aeroportos e a sua logística paranos facilitar o transporte, principalmente do nossoequipamento, que, além de correr sérios riscos dedano, demora muito para chegar a seu destino,sem contar o transporte, que custa uma fortuna.

Agora o Ministério da Cultura vem com umaoutra medida de intervenção implementando cotaspara negros na cultura. É óbvio que isso é fora depropósito. E, me pondo no lugar de um artistanegro, eu logo pensaria: ué, mais uma vez estãotentando me tratar como um café com leite?

Por que cargas-d’água não fazem o serviçocompleto e, com a grana astronômica que é

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arrecadada através de uma das cargas tributáriasmais escorchantes do planeta, nos retribuem comserviços corretos e uma infraestrutura no mínimodecente, implementam um sistema de ensino justoe eficiente de verdade para todos?

Na educação, as pessoas são submetidas abancadas racialistas para analisar e julgar se acriatura é ou não pertencente a um grupo étnico! Eo mérito daqueles que estão se esforçando paraentrar numa universidade?

E aqueles pais pobres que abdicaram de ter maisconforto para pagar a educação de seus filhos emescolas particulares, uma vez que as escolaspúblicas estão em estado terminal? E as grevesintermináveis nas universidades?

Será que ninguém enxerga que ao tomar essasmedidas não haverá a tal reparação histórica aosnegros e índios, pois, na verdade, todos temossangue negro, índio e europeu. O que aconteceráserá a formação de grupos de intolerância e ódio

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racial como a Ku Klux Klan, por um lado, e osBlack Panthers, por outro. Haverá umconstrangimento tácito nas relações entre osgrupos que agora serão definidos por bancadasracialistas nas universidades, incentivos à cultura ecargos do governo. Um grupo de pessoasarregimentado pelo governo irá definir se você épreto, branco, mestiço ou índio e ninguém seenvergonha?

E esse constrangimento, esse estranhamento,vem acontecendo há algum tempo.

Vou contar uma história que aconteceu comigolá pelos idos de 2003, quando fui chamado aparticipar de uma campanha eleitoral do PT emFortaleza (só para lembrar, eu jamais participei denenhum evento de cunho político que não fosse degraça, por acreditar estar cumprindo o meu papelde cidadão).

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Fomos a Fortaleza (eu e meu produtor, ByraDorneles) participar de uma série de eventos doPT para as eleições municipais na cidade. Fizemosprogramas de TV, fomos a comícios, eu acabeirealizando uma apresentação só de violão numapraça pública para o partido, entre outras coisas.No meio desses eventos, eis que surge um grandeamigo meu, bom e velho companheiro, um rapperde Brasília, muito empolgado, me convidando parafazer uma palestra, um workshop na periferia dacidade sobre como estava produzindo minharecém-lançada revista (a Outracoisa), para trocarumas ideias com a rapaziada, do tipo como furar obloqueio imposto pelas rádios do mainstream epelas grandes gravadoras, como vender CDsencartados em revistas para driblar os impostoscontidos na venda exclusiva de CDs, e outrosassuntos.

É claro que fiquei muito empolgado com apossibilidade de fazer novos contatos, descobrir

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novos artistas e novos empreendedores por lá.Combinamos de nos encontrar numa tardeensolarada de meio de semana, e meu amigorapper chega com um carro concedido pelo PT.

Eu estou todo municiado de vários números daOutracoisa, alguns prospectos e algumas unidadesda Lobão Manifesto, revista-protótipo que encartavao CD A vida é doce, por ser o pioneiro nas bancas, opivô da lei da numeração de CDs e o primeiro CDnumerado na história.

Naquela época, estávamos ajudando a redigiruma lei que intimidasse o uso estratosférico dojabá (o jabá acabou com a diversidade musical nasrádios) com o deputado federal Fenando Ferro, doPT de Pernambuco, e havia muitas chances, assimcomo aconteceu com a lei da numeração, de essanova lei antijabá ser aprovada, portanto assuntonão faltaria àquela reunião na periferia deFortaleza.

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E lá fomos nós. Depois de uns quarentaminutos de viagem, chegamos ao local e logocomeçamos a desembarcar o material quecolocaríamos numa mesa no centro do pátio deuma casa. Mas, para meu espanto, a recepção foifria, para não dizer hostil.

Na hora, eu nem encasquetei muito comqualquer possibilidade de aquela manifestação seralgo pessoal, pois sempre fui muito bem-chegadoem todas as comunidades por onde transitei esempre fui considerado um irmão, umcompanheiro de fé, historicamente um elementopertencido e muito bem-vindo.

Pois bem, adentramos a casa, nos dirigimos àmesa, nos sentamos, eu, Byra e meu amigo rapper,que logo em seguida fez uma pequenaapresentação da minha pessoa, falou sobre o queeu estava empreendendo, a revista, o jabá. Derepente, um cara da audiência se levanta, seencaminha em direção ao meu amigo rapper,

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estende a mão e, ostensivamente, começa a falarcom ele como se eu e o Byra não estivéssemospresentes. De imediato, para tentar quebrar o gelo,eu peço a palavra, me apresento e estendo a mãopara o cara. Ele me olha e num gesto brusco retiraa mão do meu alcance, dizendo: “Escuta aqui, eunão aperto mão de branquela, tá ligado?” E olhoupro meu amigo rapper, emendando: “Qual é a tuade trazer playboy aqui pra comunidade, mano?”Olha, a partir daí, me foi subindo o sangue pelocorpo, me dando um ódio e, furibundo, dou umtapa de mão espalmada no tampo da mesadevolvendo a delicadeza: “Branquela é o caralho,rapá! Eu estou aqui para somar, com todo amor erespeito por todos vocês, que merda é essa?! Éracismo, é? Então vamo todo mundo pradelegacia!”

O carinha não deu a menor pelota para meuirado e peremptório protesto, se virou de costaspara a mesa e convocou a audiência, que deveria

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ser composta de uns noventa a cem manos,proferindo algo como “Quem é matador aí pode selevantar”. Uns oitenta se levantaram devagar,todos de braços cruzados, todos esperando pelapróxima palavra de ordem.

Não sei o que me deu, mas, ao invés de meintimidar com aquela manifestação explícita derepúdio e ameaça, dei um segundo tapa maisviolento ainda na mesa, sussurrei para o Byra algocomo “Vai reunindo as revistas que sujou...” e,com a ira dos rejeitados, comecei a proferir asexpressões que fossem, ao meu entender, as maisofensivas e contundentes possíveis, como “Escutaaqui! É guerra, né? É guerra, né? Pois vocês todosvão se foder, seus otários! Porque eu vou comer ocu da avó de vocês!”. (Não sei de onde havia tiradoaquela expressão de profundo mau gosto, masdevo ter achado sonora, eficaz e semanticamentedolorosa.) Ajudando a recolher rápido as revistasda mesa, me levantando aos poucos, sem tirar o

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olho daqueles “matadores” que já seencaminhavam em nossa direção, continuei arepetir aquela frase horrorosa, de efeito surreal:“Eu vou comer o cu da avó de vocês, seusmerdas!” E numa agilidade que só a adrenalinanos concede, pulei para o lado, olhei pro Byra epro meu amigo rapper e disse: “Sebo nas canelas,rapaziada!”

Adotamos um ritmo cadenciado, de marcha a ré,eu os encarava com o braço direito esticado, odedo em riste, ameaçador, continuava a xingá-losaos berros. Creio que os mantive paralisados poralguns instantes devido ao meu insólitocomportamento, contudo apertávamos o passoexponencialmente (sempre de marcha a ré) e osmatadores, quando se deram conta, já estávamospróximos a um portão gradeado. Em umdeterminado momento, fizemos um giro de corpoe saímos embocetados em direção ao carro. Esseportão seria a nossa salvação, pois por uma fração

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de segundo que os caras não nos pegaram e nosfizeram picadinho de playboy. Eu tive tempo deempurrar violentamente o portão gradeado na carada galera, fazendo um estrondoso ruído, e foi esseo tempo para que entrássemos no carro eimplorássemos para o motorista sair dali o maisrápido possível. Parecia filme de mafioso! Omotorista acelerou o motor e as rodas começarama derrapar no terreno empoeirado do local para,logo em seguida, sairmos em desabalada fuga pelasvielas da comunidade.

Ainda deu tempo para que eu abrisse a janela docarro e mandasse mais uma vez: “Se ‘fuderam’! Euvou comer o cu da avó de vocês!”

Quando chegamos a salvo no hotel, a adrenalinabaixou e meu amigo rapper estava visivelmenteconstrangido. Me pediu mil desculpas pelo mal-entendido, me prometeu voltar à comunidade paraque a rapaziada fizesse uma autocrítica, pois o

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clima era realmente tenso e eles meio que seprecipitaram.

E foi isso que aconteceu, no dia seguinte ele foià comunidade, mas, por via das dúvidas, disse aele que, se fosse preciso, daria o meu perdão via e-mail ou coisa parecida. Voltar lá, nunca mais.

É claro que possuo amigos no rap, como o meuamigo de Brasília e alguns outros mais, todavia oclima é sempre tenso.

Depois desse malparado, ainda tentei meaproximar, sempre com alguém do PT do lado,fazendo contato com os Racionais para ver se haviauma possibilidade de união de forças, pra tentarconvencê-los de que tinha gente bacana, amiga ecompanheira, que por acaso poderiam ser brancos,mas de boa vontade. Que deveria reinar entre nóso espírito de irmandade e de combate a qualquertipo de preconceito ou segregação. Mas, nas duasvezes que tentei me aproximar, recebi umarecepção fria e acabei desistindo de vez.

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Moral da história: é muito triste perceber —apesar de toda a minha história, todo o meu amorpela cultura negra e toda a minha imersão nela,com todos os meus amigos, irmãos, colegas debateria, minhas tias queridas que me “adotaram”na Mangueira — que, de uma hora para outra, mesinto excluído de uma cultura que é parteintegrante da minha vida, da minha formação, daminha expressão. De uma hora para outra mesinto impossibilitado de transitar e conviver comtantas pessoas que amo de verdade.

É muito triste perceber um retrocesso nasrelações já tão conflituosas entre os brasileiros.

Todos nós sabemos do preconceito racial porparte da tal elite branca, de como ele é perpetradoe toda a sua história. Sabemos como é violento e,ao mesmo tempo, velado, como é excludente ecínico.

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E eu sempre lutei contra ele desde criança. Todocidadão com o mínimo de esclarecimento e bomsenso irá concordar que temos obrigação deformular e aplicar outras normas de conduta emnossa sociedade.

Agora, é de bom alvitre que todos nós saibamosquem é quem nessa bagunça toda. Dessa maneira,estamos atirando para qualquer lado e eliminandoaliados ou criaturas inocentes. Não podemos acharque resolveremos injustiças históricasimplementando outras, nem sair por aí taxando deracista qualquer um que tenha alguma objeçãorazoável às cotas raciais.

Podemos muito bem ter os mesmos anseios dejustiça e tolerância sem necessariamenteconcordarmos com os meios a serem aplicados.

Por isso este capítulo começou abordando ofenômeno desagradável e arbitrário da patrulhaideológica, pois ela, antes de mais nada,impossibilita a aproximação de pessoas que podem

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ter opiniões diferentes a respeito das coisas, maspodem também ser aliadas em outras tantas ou,no mínimo, oponentes que mereçam respeito eadmiração.

Se não, nós perdemos qualquer critério epassamos a agir na base da paixão futebolística: ouvocê é do meu time ou você é um filho da puta.

E é exatamente isso que se passa em nossaatual conjuntura. As pessoas estão sendo movidas,antes de mais nada, por ódios apaixonados, porsentimentos reativos de vingança. O governo temajudado bastante a causar mais distanciamento emnossa sociedade pregando ódio às elites, ao lucro,ao patrão, ao branco, ao heterossexual, aoreligioso em geral. Temos obrigação de perceber aspessoas de boa vontade, honestas e companheirasque existem em todas as classes sociais. E quetambém estão lutando por um país mais civilizado,mais igualitário, com educação de alto nível paratodos, com saúde de alto nível para todos.

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Para terminar, eu gostaria de relembrar que fizcampanha para o PT desde 1989. Voltei a fazer em2002 e 2004. Existe gente que acha contraditórioeu ter sido indexado por 11 anos pela Globo poraquele clássico episódio do Faustão, em 1989(quem quiser ver, acesse o YouTube...), e derepente, segundo essas pessoas, estou a vociferarcontra o PT como se simplesmente eu tivessesurtado, ou pior: como se eu fosse um compradopela “direita reacionária”. Lamentável.

Pois bem, comecei a me assustar com o PT (emuito tarde) desde que o Lula chamou o Gil para oMinistério da Cultura, porque ele sabia muito bemser justo o Gil um dos principais aliados dasgrandes gravadoras (falei sobre o assunto com oLula várias vezes na época da briga pelanumeração de CDs). Ele colocou a raposa nogalinheiro e, de fato, para a música independente epara quem não era da sua turma foi um desastre.

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Fui me desiludindo com o PT no transcorrer desua administração aloprada e incompetente, equando chegamos ao episódio do mensalão eucansei de vez, pois até então estava sofrendocalado, sem emitir qualquer opinião contrária.

Desde então, minha repulsa e contrariedade aopartido são explícitas e amplamente difundidas.Portanto, para os que tiverem disponibilidade detempo para me odiar, pelo menos que me odeiemcom algum embasamento.

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CAPÍTULO 6

VIAGEM AO CORAÇÃO DOBRASIL

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Há certas ocasiões em que somos compelidos aacreditar no destino arquitetando aventurasinsólitas para nossas vidas, apesar de sermos nósmesmos os patrocinadores desse destino. Foiexatamente o que aconteceu quando aceitei, sempestanejar, de bate-pronto, participar de umprestigiado programa de jornalismo investigativonuma TV aberta, como repórter.

Eu explico: no meio daquela confusão dofestival Lollapalooza, recebi um chamadotelefônico da produção do dito programa mefazendo um convite formal para que eu integrassea equipe. Confesso a vocês estar um tanto cansadode fazer televisão, iniciando as minhas novascomposições, fazendo riffs na guitarra, temas naviola de dez cordas, entabulando levadas nabateria, enfim, estava em pleno processo deconcepção do que será meu próximo álbum,portanto estaria fora de cogitação aceitar qualquercoisa que me desviasse desse objetivo.

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Todavia, sob o impacto da explanação infame dosimpático empresário responsável pela pauta daefeméride musical já citada, me veio à cabeça que,aceitando o convite do programa, eu, em algummomento, poderia sugerir uma pauta investigativasobre como a cena do rock funciona aqui no Brasil,como os grandes festivais tratam os artistasnacionais e internacionais, como a subserviênciapatológica do “astro” de rock brasileiro o leva aaceitar qualquer proposta, como o empresárionacional se utiliza disso e o grande abismoexistente nas relações entre artistas locais e deoutras partes do globo, em especial quando setratava de um festival de característicasalternativas, como o Lollapalooza.

Com essa ideia ingênua e delirante em mente,no decorrer de uma semana já fazia parte daequipe do programa.

Isso foi em meados de novembro, mas eu sócomeçaria a trabalhar mesmo dali a três meses,

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numa megaempreitada cujos jovens produtores doprograma estavam customizando, justo para minharetumbante estreia: uma viagem de uma semana aum garimpo recém-legalizado, no coração dafloresta amazônica, com direito a jornada de trêsdias de barco, mais meio dia de caminhonete,muito calor, tempestades tropicais, mosquitos e oescambau. Fiquei animadíssimo!

Embarcaríamos para Manaus em meados defevereiro, e até lá tive tempo de adquirir meuequipamento de selva, tomar as devidas vacinas edar tratos à minha imaginação do que estaria porvir naquela aventura, pois, de uma forma ou deoutra, iria fazer uma viagem não como músico,mas em condições completamente diversas dasque estou acostumado.

INÍCIO DA JORNADAEstou em Manaus, num hotel cinco estrelas,

absorvendo os últimos momentos de conforto que

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a civilização poderia me proporcionar. Saboreio atemperatura amena do ar-condicionado, cercadopor uma dúzia de travesseiros, assisto a umdocumentário no History Channel depois de umbelo jantar em um restaurante de comidas típicasdo norte do Brasil, que eu e o Diego, o cameraman,tivemos o prazer de desfrutar.

No dia seguinte, parto com uma equipe de maistrês pessoas (câmera: Diego, diretor: Rondon, eprodutor local: Denilson) para a tão imaginadajornada ao coração da Amazônia, rumo ao garimpodo Eldorado do Juma, localizado às margens do rioJuma, entre os municípios de Novo Aripuanã eApuí, o primeiro garimpo legalizado no Brasil.Nosso trajeto seria feito por barco e essa viagem deManaus até Novo Aripuanã duraria umas 32 horas(2.319km).

Iniciamos as filmagens na entrada do magníficoTeatro Municipal de Manaus, fazendo algumasindagações sobre o paradeiro do garimpo para

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populares, transeuntes e turistas sob um sol derachar. O ar é pesado, úmido, sufocante, e láestava eu, todo aparatado para aquela aventuraequatorial, de bermudas, chapéu, repelente demosquito, protetor solar, mochila, sapatosespeciais e meu violão com o corpo de fibra decarbono, instrumento feito com um materialvirtualmente indestrutível e imune a qualquertemperatura.

Logo de cara, recebo o roteiro e constato não setratar simplesmente de um programa dejornalismo investigativo: era uma espécie de realityshow também!

Começo a lê-lo e verifico ser algo além de umasimples reportagem: deveria atuar! E o roteirosugeria a aventura de um músico falido (eu),lançado no meio da mata em desesperada buscapor ouro. O detalhe é que essa “piada” já haviasido sugerida pela produção em São Paulo e eu já

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não tinha achado muita graça naquele script.Houve uma reunião e, depois de algum tempo eum certo esforço, confessei aos jovens executivosdo programa não me sentir muito à vontade comaquele tipo de humor, que aceitara entrar noprograma para fazer reportagens sérias, sempreparticipando da feitura das pautas, e não gostariade bancar o metido a engraçadinho,principalmente quando o personagem em questãoera eu mesmo.

Todavia, lá estava o roteiro intacto, como se nãohouvesse acontecido nada, e comecei a desconfiarque o fato de ter aceitado o convite para fazeraquele programa naquelas condições não tinhasido exatamente um bom negócio.

Não preciso comentar sobre minha totalperplexidade quando, ainda aturdido, iniciei aminha vã tentativa de convencer o Rondon areformular imediatamente aquele texto, pois nãoera aquilo o acordado etc. e tal.

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O grande problema, segundo Rondon, era o talprograma ser um franchising e haver regras rígidas aseguir, além de os jovens executivos serembastante rígidos quanto à fidelidade da pauta e, porconseguinte, ele lamentava muito, mas seriaforçado a realizar o roteiro exatamente comoestava no papel.

Eu ainda iria ter brigas homéricas com oRondon, muito embora, desde o primeiro instanteque o conheci, tivesse sentido imensa simpatia porele (e ele, certamente, por mim). No transcurso detoda a viagem, estaríamos condenados a atritos pormotivos dos mais diversos, com impropérios dosmais furibundos de ambos os lados. Ele, resolutoem me fazer cumprir o roteiro, e eu, tentando detudo e por tudo escapar daquela armadilha.

Estava em ampla desvantagem, pois eram trêscontra um no meio do nada. Apesar de tudo isso,ou talvez por tudo isso, nos tornaríamos grandesamigos, e acabou prevalecendo a camaradagem

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entre nós quatro.

Logo após fazer a primeira cabeça do programa,o Denilson sugere almoçarmos num botecotradicional de Manaus, o Galo Carijó, para logo emseguida prosseguirmos o trabalho. (Cabeça é otermo designado para a introdução de cada parteda matéria, e essas cabeças seriam feitas e refeitasinúmeras vezes, até a exaustão, quando acabouvirando uma piada interna, uma vinheta entre nós,tipo “se não se comportar direitinho a gente vaifazer uma cabeça, hein?”)

Pensei que ainda poderia desfrutar de maisalguns momentos de uma temperatura menosabrasiva enquanto estivéssemos almoçando, masnão era aquele o caso: apesar de haver uma sériede restaurantes refrigerados, o Rondon achou debom alvitre abandonarmos os velhos hábitos e nosaclimatarmos de vez à nossa nova realidade.

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Perambulamos por dezenas de ruas de Manausfazendo algumas cenas fakes em que eu perguntavaonde poderia encontrar ouro, tudo, é claro, filmadocom todo aquele aparato, de mochila nas costas,violão pendurado, como se estivesse em plenaselva. Me sentia um palhaço, suando em bicas eexausto com toda aquela tralha pesada edesnecessária no meio do calor sufocante. Tudoera feito no sentido de me provocar a maior fadigapossível, no intento de extrair “maiordramaticidade” à história.

Nossa última e mais fundamental providênciana capital manauara foi a compra da minha redenuma casa especializada, onde fui tratado comtoda a atenção pelo simpático proprietário, queacabou me oferecendo a melhor rede de sua loja,rede salvadora, companheira de toda aquelaviagem (e até os dias de hoje). Em seguida, nossoimediato embarque no cais de Manaus.

E lá vou eu, debaixo de uma chuva de

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proporções amazônicas, de mochila nas costas,chapéu, violão e um saco enorme com a rededentro, parecendo mais um Indiana Jonesretirante, com um sem-número de curiosos aobservar aquela improvável criatura, fazendoinúmeras “cabeças” e alguns “fakes”, simulandoperguntas de forma um tanto afetada a qualquertranseunte que passasse naquela via-crúcisencharcada, até chegarmos ao cais.

A PARTIDA DE MANAUSA barcaça Almirante Alfredo Zanys estava ancorada

na borda do cais, com uma visível escada deacesso, mas a equipe achou mais interessantepegar uma voadeira, dar uma volta em torno dabarcaça e embarcar de maneira mais...retumbante.

Depois de uma escalada desajeitada pelas gradesda lateral da popa, no meio daquele toró dosinfernos, embarco com toda aquela tralha (fora o

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equipamento de filmagem da equipe) e sounotificado de um fato que não me deixou nem umpouco empolgado: somente eu iria habitar aterceira classe, ou seja, dormiria ao relento, narede. O restante da equipe viajaria de camarote naprimeira classe, com direito a cama e ar-condicionado (muito embora eu comprovasseposteriormente não serem as suas instalações lámuito superiores às minhas).

O calor e a umidade são intensos, o barco, todopintado de branco, tem uns trinta metros decomprimento, com três andares: o porão onde ia acarga (muitos aparelhos eletrônicos, comotelevisores, antenas parabólicas, vídeos,computadores, e víveres) era também local dedescanso de tripulantes. No segundo andar, ondeeu me alojaria, ia a rapaziada. Havia mais de umacentena de pessoas empoleiradas em suas redesnaquele convés, só se conseguia andar com algumadesenvoltura nos corredores, e olhe lá.

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Fiquei perturbado com a visão doamontoamento de redes, o burburinho, as malas epertences pessoais espalhados pelo chão, bichos,galinhas, cachorros e até um gatinho recém-nascido, de uma argentina hiponga que viajavapara Porto Velho com o propósito de experimentaro Santo Daime. No terceiro andar ficava o dequeenorme, que nos permitia uma vista esplêndida de360 graus, com uma seção de cabines na proa,onde ficava a sala de comando, a lanchonete,cadeiras, mesinhas de ferro e uma imensa caixa desom plantada na frente do balcão que não paravade tocar um tecnobrega ensurdecedor.

Estávamos no final da tarde, a chuva tinha dadouma trégua e o cenário era deslumbrante, bíblico!O céu iluminado pelos últimos raios de solvarando as nuvens carregadas, o rio Negro a seperder de vista, as embarcações ao redor e nós nodeque, chupando um picolé cor-de-rosa sabor não-

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sei-o-quê. Após mais algumas discussões, outrastantas “cabeças” cobrindo as boas-vindas e asexplicações técnicas do capitão, o registro de meuprimeiro banho no banheiro comunitário, mínimo,fétido e cheio de baratas (acabei tomando dois,pois o primeiro não tinha sido filmado), e oprovidencial encontro com Isvar, um ex-garimpeiro e aventureiro que seria meu bomcompanheiro até chegarmos em Novo Aripuanã.

Isvar, um caboclo safo, muito prestativo, cheiode histórias, me ajudou a montar a rede, meensinando como atar o nó numa coluna demadeira do convés. Coloquei minhas tralhas dolado da rede, firmando o meu apertado território,quando percebi de cara que meu chapéu haviasumido. Pensei: bom sinal não é... Indiana Jonesnão perde chapéu...

Como era de se esperar, me aboletei num dospiores lugares do navio, pois, infelizmente, eu forao último passageiro a chegar e acabei sendo

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contemplado com um espaço em cima do motor.Além do calor e do barulho insuportáveis, atrepidação me dava a nítida sensação de estardentro de um liquidificador. Ainda por cima,estava no meio do corredor, onde todas as pessoas,ao passar, roçavam e tropeçavam na minha rede,me causando uma profunda irritação, isso semfalar do inesperado frio à noite, do vento da chuvae da água do rio na maré alta, que entrariam pelasfrestas das grades do convés durante asmadrugadas.

Quando a rapaziada da equipe se recolhe emseus camarotes, dá um desamparo e um alívio aome sentir só naquela imensidão. De repente, meflagro estendido no chão de madeira da proa daembarcação, olhando o céu escuro e denso, semestrelas, a ouvir aquele tecnobrega estridente,quando percebo um alvoroço de vozes vindas dalanchonete, com gritos e frases do tipo: “Parem

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com essa música dos infernos, em nome de Jesus!Isso é coisa de Satanás! Parem essa música dodemônio!” É um grupo de uma dúzia deevangélicos cercando o sujeito da lanchonete, comsuas Bíblias em riste, obrigando-o a parar deimediato aquela manifestação profana.

Nunca imaginei que em algum dia da minhavida conseguiria ficar tão feliz com qualquer ato derepressão religiosa e desfrutar de um alívioredentor nos meus ouvidos, permitindo à minhaalma ignorar o significado sombrio daquelamanifestação intransigente dos crentes.

Todavia, aquele silêncio imposto, infelizmente,seria momentâneo. Em poucos instantes, comouma espécie de castigo dos céus, retornou obarulho ensurdecedor, só que a partir de então, eaté o fechamento da lanchonete (que abria às oitoda manhã e fechava às 22), ouviríamos músicatecnobrega, mas... evangélica!... acompanhada pelacantoria fervorosa dos fiéis.

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Como deveriam ser umas oito da noite, teriapela frente umas duas horas de somrebolativo/religioso na caixa, no volume 11, comdireito a um karaokê ensandecido dos crentes,numa manifestação de sua fé cheia de suingue,furiosa, impositiva e barulhenta.

Permaneço no deque até não haver maisninguém por perto, quando a temperatura começaa baixar bruscamente e, pela primeira vez desdeque acordei no já longínquo hotel cinco estrelas,tenho um momento de paz, solidão e silêncio.

Até retornarmos a Manaus, não haveria maiscontato com a civilização: sem celular, seminternet, a equipe aboletada em seus camarotes eeu no meio daquela imensidão.

Fico naquele estado de torpor filosófico até omomento em que começa a chover forte, a fazermuito frio e, sendo assim, decido enfrentar o meu

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destino lá embaixo, em cima do trepidante eruidoso motor, meu novo cafofo.

Quando estou arrumando meus pertencesembaixo da rede, surge, em meio àquelailuminação precária, o simpático rosto de umamoça pendurado na rede vizinha que, numradiante sorriso, me dá boas-vindas: “Bem-vindo,Lobão! Não se assuste, não, que aqui todo mundose ajuda, viu? Muito prazer, meu nome é Ivana eeu estou indo pra Porto Velho. Vai pra látambém?”

A sua voz e sua solicitude renovaram minhasforças e impediram que eu caísse em depressão.“Olha, se quiser carregar o iPad ou o celular, temuma tomada logo aí, em cima da sua rede, viu?”Em seguida, começou a contar sua história: estavainternada no hospital do câncer de Barretos, SãoPaulo, e, por falta de dinheiro, teve que voltar paraSantarém, onde morava sua família.

Para renovar seu direito de internação através

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do SUS, Ivana pegou aquele barco em Santarém (jáestava viajando havia mais de três dias até chegar aManaus) para ir até Porto Velho (mais cinco dias),onde conseguiria o passe do SUS para então poderfazer o mesmo trajeto de volta a Santarém, pegarum avião para São Paulo, um ônibus para Barretose retornar ao hospital, e aí, sim, continuar otratamento. Tinha uma perna amputada bemacima do joelho em virtude de um câncer e,segundo ela, apesar de sua alegria, não lhe restavamuito tempo. Era comovente perceber o seucarinho pelo pessoal do hospital, pelos médicos,enfermeiras. Me pediu para que a visitasse (emtempo) em Barretos e, na medida do possível, querealizasse um programa especial sobre a bela obrado hospital.

Ivana viajava com uma irmã e um menino comsua rede colada à minha e transformou-se numporto seguro no meio daquela confusão,precariedade e barulho.

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Toda vez que a chamava, a qualquer hora do diaou da noite, Ivana vinha em meu auxílio.Conversávamos, cada um com a cabeça de fora darede, como se elas estivessem soltas no ar, como ogato de Alice no País das Maravilhas... Sempre aosberros, em virtude do barulho implacável domotor. Ela me desconcertava tanto com seu bomhumor desafiando a severidade de sua doença,fazendo troça de seu estado de saúde, me deixandobastante envergonhado pelas razões frívolas dasminhas aflições e dos meus mesquinhosinfortúnios.

No meio da madrugada, aparece a equipe parafilmar uma “cabeça” noturna para o programa,eternizando a grandeza da minha fadiga, do meudesconforto, tudo de maneira tão bem-produzida etão repetida que era inevitável me sentir umtremendo canastrão. Além daquelas intervenções,o Diego sempre me dava uma minicâmera para me

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filmar durante as noites.

Pela manhã, lá pela hora do café, a fila para orango cobria toda a extensão do convés, e acordeilevando um monte de cutucadas de pernas, joelhose canelas. Como sou um poço de timidez, simuleiprocrastinar minha soneca reforçandonervosamente as bordas da rede (estava acentímetros do chão) com os braços em cruz,acreditando me refugiar naquele invólucro, comouma lesma na concha pronta para ser esmagadapor uma botina.

Havia uma outra fila para o fétido banheiro, dasmesmas proporções que a fila do café, cada umcom sua toalha, escova e pasta de dente na mão, epercebi que não adiantaria fugir daquela realidade:eu teria que me levantar e enfrentar a situação.

Após os registros da minha já enturmadíssimapessoa nas duas respectivas filas, subimos para odeque, a fim de pegar uma brisa benfazeja, um arfresco e uma temperatura agradável enquanto se

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podia, pois, a partir das nove horas, o calorvoltaria inclemente e o deque ficaria inabitável.

Como estávamos praticamente sozinhos, decidilevar um som com meu violão, me sentando nobanco lateral do deque e, sem muitas delongas,comecei a tocar um teminha hidrofolk emhomenagem àquela paisagem monumental daságuas do rio Madeira desfilando diante dos nossosolhos, quando, para nossa surpresa, eis que ouçouma voz ao meu lado, a uns dois metros dedistância, de um rapaz sentado no mesmo banco,numa atitude de ostensiva repreensão à minhahumilde e despretensiosa performance, em estadode transe a entoar fervorosos cânticos de louvor aJesus, num volume bem superior ao meu, como seenxotasse Satanás!

Sim! Era um rapaz de uns 19, 20 anos,evangélico e, pelo visto, ofendidíssimo com o somque eu estava produzindo, a bradar com aconvicção inviolável dos eleitos, a plenos pulmões,

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hinos religiosos com o firme intuito de parar aminha execução, coisas do tipo “Jesus vencerá emsua glória e esplendor, xô, Satanás!”. Tudo demaneira tão sutil que não pude evitar me sentirum Exu de beira de rio sendo exorcizado por umfanático intolerante. Acabei botando a viola nosaco...

Filmamos uma “cabeça” registrando a insólitaintervenção, aquela cena inacreditável, glauberianae, se não fosse algo verdadeiramente assustadorem sua essência, seria um incidente hilariante.

Começava a perceber um clima de escancaradapatrulha religiosa por todo lugar que passávamos(em Manaus, um grupo de evangélicos na praça doteatro me deu uma encarada feia e começou arezar alto, fazendo o sinal da cruz), e o barco nãoseria exceção, sendo a minha vez de levar umacarteirada daquele ser enviado sei lá de quem...

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Em seguida, fiquei matutando o porquê daquelefrenesi intenso em relação à minha pessoa e, numestalo, matei a charada! Me lembrei que eu erauma das figuras mais exibidas (em termostelevisivos, é claro) nos horários religiosos de umatelevisão evangélica de espectro nacional como aencarnação do demônio! Não deixava de me sentirum tanto importante com tanta precaução a meurespeito.

Na verdade, eu e a Rita Lee, sempre que haviaum assunto relacionado a delinquência,roquenrou, drogas e mau comportamento dequalquer natureza, lá estávamos na telinhaevangélica marcando presença como exemplos anão serem seguidos.

Fiquei alguns instantes meditabundo lá na popa,ao lado de uma enorme bandeira do Brasil fincadaa tremular, olhando para o horizonte varonildaquelas matas, e concluí meio assustado: “Rapaz,a Mensagem é a Mídia, Rita Lee é o Diabo e eu sou

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o Terror dessas criaturas!”

Antes do almoço, Isvar, com sua extensaexperiência na selva, me contou os perigos acaminho daquela aventura que só estava em seuinício, me alertando sobre a malária, os jacarés-açus, as piranhas, as onças-pintadas, o corrupião,os naufrágios no rio Madeira, a drásticadiminuição da fofoca no garimpo do Juma (fofoca éa gíria dos garimpeiros para designar um fluxogrande de ouro no garimpo). “Olha, pelo que eusei, você não vai mais encontrar ouro por lá, não.A fofoca acabou já faz tempo, mais fácil você dar decara com uns jacarés-açus na margem do rio ouuma onça-pintada te espreitando na mata... Etoma cuidado com piranha (as do rio), que temmuita, e ainda por cima periga de você voltar commalária, rapaz!”

Ele estava adorando ver meu espanto.

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Já havíamos passado pelo rio Negro, descidopelo Amazonas para o leste e dobrado o cotovelofluvial na cidade de Itacoatiara, voltando paraoeste, pelo rio Madeira. O Diego e o Denilsonpediram ao capitão permissão para filmar a barcadentro de uma voadeira e passaram boa parte datarde rodeando o Alfredo Zanys. Eu e Rondonassistimos a tudo do deque, na lanchonete,tomando um guaraná. Estava só na base da barrade cereal e não conseguia de forma alguma comero rango do almoço. Por isso mesmo, me sentia umfefeca, um fresco, mimado.

Por sinal, tentamos fazer uma “cabeça” na salado almoço comigo, sentado com os outroscomensais, tipo Jesus na última ceia (estavaaboletado bem no centro de uma larga mesa).Quando chega o macarrão, câmera rodando, eu, demicrofone de lapela, começo a falar o texto meioengrolado e, ao me servir, meu estômago dá umarevirada, tenho vontade de vomitar. Vexame.

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Abortada a “cabeça”, saio do recinto com cara detacho.

Passamos por algumas cidades ribeirinhas,gente nas vilas saindo para pescar, fiéis em bandoindo rezar a caminho das igrejas, ao solequatorial... Uma paisagem luxuriante. Naquelaregião dá para se ver as duas margens do rio. Naágua barrenta, centenas de troncos enormesflutuam ameaçadoramente correnteza abaixo, indoao encontro do barco que sobe rio acima... Se umdaqueles tarugos pegasse a proa, poderiafacilmente furá-la, provocando um enorme rombo,e acontecer um sério acidente. E o Isvar a desfilarhistórias de naufrágio.

No horizonte, muitas nuvens escurasdespejando uma cortina de chuva grossa fundindo-se com a fumaça que brotava do coração dafloresta... Fogo e água. Muito calor ao entardecer.O sol mergulha no rio, a chuva começa a riscar o

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céu a perseguir o barco, nos pegando em cheio.

Não havia muita coisa para fazer, o tempo searrastava, só nos restavam as “cabeças”, algunstakes e papos ocasionais.

Quando ficava sozinho, entrava facilmentenaquele estado de marasmo psicodélico,promovido pelo excesso de calor e pelo tédio, melembrando de aventuras pretéritas nos inúmerosrincões desse Brasil...

Me veio à cabeça um acústico em Barra doGarças, cidade dos discos voadores, onde fiz umshow dentro de uma reserva indígena, responsávelpor contatos com ETs locais e pela credibilidade detodos os avistamentos na região, misturandopajelança com ficção científica. Lembrei da nossaintrépida e improvisada saída da reserva, numfusquinha azul, o piloto com a mão quebradamanuseando o câmbio, acelerando enlouquecido a

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pequena viatura, até a hora em que nos aparece,no final de uma curva, uma boiada sagarânica,obrigando-o a pisar bruscamente no freio, parando,providencialmente, em cima de dezenas de zebusimóveis, com aqueles olhares contemplativos, nosdeixando cercados por um monte de vacas quebotavam seus carões curiosos dentro da janela, nomeio daquela imensidão de savana empoeirada.Isso quando já tínhamos cruzado o sul de MatoGrosso, em pleno planalto goiano, na tentativadesesperada de pegar o último voo para casanaquele dia.

Ao chegar ao aeroporto, sabendo que o avião jáestava com os motores ligados, um desesperotomou conta de mim, invadi a pista numa correriadestrambelhada e me aboletei esbaforido na frenteda aeronave, como fez aquele chinês na frente deum tanque, na praça da Paz Celestial, implorandopara que o comandante me deixasse entrar dequalquer maneira. O comandante, comovido com

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meu desespero e minha determinação, abriu aporta, ordenou que eu subisse imediatamente, medeu um reservado esporro indicando um assento eprosseguiu a decolagem...

Me veio também à lembrança as castanheirasgigantes despejando castanhas fatais, que faziamum barulhão surdo ao cair em terra, nasimediações de Santarém, quando eu e meu amigodo peito, o produtor e poeta Byra Dorneles, nosembrenhamos na floresta com um cara que fezquestão de nos levar até uma ilha paradisíaca nomeio do rio Tapajós, a apenas duas horas dacidade. Isso depois de termos visitado um terraçode uma lanchonete na beira do rio, para ver oboto-cor-de-rosa, sendo que a grande atraçãomesmo foi um urubu pousado, hierático comouma estátua, a meio metro de nossa mesa.Desconfiei que se tratava de um animalconcursado pelo Ministério do Turismo, diante desua civilidade e profissionalismo no trato com os

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turistas.

A ilha, fora a frondosa paisagem e o ruído dascastanhas despencando de árvores de mais dequarenta metros no meio da mata, me fazialembrar de vez em quando o piscinão de Ramos,com aquelas centenas de carros de portas traseirasescancaradas, tocando tecnobrega a todo o volume,churrasco de peixe, farofa e cerveja na prainha.Cada carro tocando uma coisa diferente do outro...A Amazônia e seus contrastes.

E por falar em piscinão... Passava uma torrentede imagens na minha cabeça, como um trailer defilme B de terror, os shows de playback na BaixadaFluminense, aquele Ford Galaxy preto, caindo aospedaços, em plena contramão na Rio-Petrópolis, àsduas da matina, sem farol, a 120 por hora, parachegarmos mais rapidamente ao nosso destino,depois de seis shows realizados numa noite, numclube cujo palco era o trampolim de uma piscinaabandonada e vazia... E a pedrada que me

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nocauteou em Conselheiro Lafaiete, num showdentro de uma exposição agropecuária, antesmesmo que eu sequer pudesse dar um “boa tarde,rapaziada”. Fiquei uns seis meses com o topo dacabeça completamente dormente...

Entrava em devaneios relembrando momentosventurosos nos puteiros de beira de estrada quenossa banda tanto tinha carinho em animar, emplena e moribunda Transamazônica. Nossa turma,depois de dias perdida na selva, conseguindo umacarona na boleia de um caminhão que,providencialmente, nos recolocava na civilização.

Me recordo, melancólico, de Porto Velho, naépoca da eleição de 1989, “patrocinado” porsimpáticos deputados do estado, cheirando epadusabor querosene, de graça, num palacete cheio debelas garotas de programa, tudo por conta dosnossos parlamentares anfitriões (dinheiro público,na certa), numa festa que duraria uma semanainteira...

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Inevitável cair em nostálgica divagação e revivermeu mergulho semissuicida nas águas turbulentasde fim de tarde do rio Amazonas, num píer emruínas, em Macapá, testemunhando um bando demoleques alegres a mergulhar na margem, todoscaindo de bicicleta na água, achando aquilo umabarbada, e eu, ingênuo, no afã de imitá-los, quasesendo tragado pela correnteza pororóquica domagnífico rio, pois resolvi mergulhar justo navirada da maré... Atualmente, construíram umbelo restaurante na ponta do tal píer, onde já comialgumas vezes, grelhado, um delicioso “filhote”,que é um peixe amazônico.

E quando quase fui linchado em Garanhuns?Que emoção! É delicioso e surreal saborear umfondue na serra pernambucana, em plena cidade dapistolagem. Em Rio Branco, a Polícia Federal emnosso encalço, mais um show com energia elétricacortada, nossa equipe sendo apedrejada com oônibus batendo em retirada. Em Boa Vista, apagão

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toda noite... Apagão, não: racionamento deenergia.

A pitoresca sensação de chegar de busum emImperatriz e poder assistir a um duelo, como numbangue-bangue glauberiano... Ninguém acertouninguém, com direito a happy end! Em seguida,meus pensamentos migravam em direção ao sul,em plena excursão na serra gaúcha, quando a filhade um delegado, nossa fã, fugiu de casa dentro donosso ônibus e teve uma overdose de cocaína naporta do hotel. Nós a abandonamosdelicadamente, depois de constatar que haviasobrevivido ao ataque, para uma fugacinematográfica pelas curvas daquela serramaravilhosa...

Em Maceió, recordo a multidão iracunda porquea polícia desligou, como de costume, a energiaelétrica em toda a cidade em minha homenagem,destruindo o equipamento e jogando areia no querestou. As blitzes em qualquer aeroporto que

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parávamos, em todas as estradas, todo oequipamento revirado, anos a fio a conviver comaquele estranho protocolo... Quantas recordações!

Aquilo, sim, era puro roquenrou tupiniquim.Aquilo, sim, era o Brasil que aprendi a amar,mesmo sendo o nosso Brasil um lugar onde aprópria história é de mentirinha, suas conquistassão de mentirinha, seus heróis são de mentirinha,suas revoluções são de mentirinha... Onde só oautoengano coletivo é de verdade.

Cai a noite e o rio se estreita mais ainda. Depoisdo jantar, a maioria dos passageiros vai para odeque assistir a novela da Globo, tão onipresentequanto as Assembleias de Deus plantadas por todoo caminho. A imagem é cheia de fantasmas, fatoque me ajuda a abstrair mais os meuspensamentos.

Quando termina a novela, o cara da lanchonete

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liga o tecnobrega a todo o vapor e dá para se ouviro eco surdo da batida na floresta a nossa volta,encoberta pelo breu. Não tinha jeito: ou vocêencarava o barulho do motor ou a zoeira daquelacaixa de som enorme.

Tudo se acalma depois da meia-noite e oRondon descobre um passageiro pitoresco comuma história interessante do outro lado do convés.Alcançamos o lado oposto, no meio daquele montede redes, num escuro absoluto, quando aparece onosso entrevistado. Chama-se Mário, um senhorque ficou cego e ganha a vida vendendo canetasnas ruas de Manaus. Seu Mário também exibia,como todas as pessoas que encontrávamos, umaalegria improvável e exuberante quandocomeçamos a nossa curiosa conversa. Ele nosexplica que sua cegueira era de família, que 90%dos homens ficavam cegos com a idade, porém,exceto por aquele detalhe, era uma pessoa muitovigorosa etc. e tal, quando, de súbito, irrompe das

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trevas uma voz fantasmagórica e familiar no meiodaquele murundu de redes, a bradar palavras decura, com os braços estendidos e mãos espalmadasem direção ao simpático ceguinho: “Abra o olho eenxergue em nome de Jesus!”

Das profundezas de sua rede, iluminado peloflash do Diego, eis que surge o semblantetransfigurado daquele mesmo sujeito que, no diaanterior, cantava hinos religiosos e preventivos nodeque em minha intenção, quando eu tentavalevar um sonzinho no meu violão.

Nós não acreditamos na cena! O jovem beatonos encara com os olhos arregalados esperandopor uma ação milagrosa que, infelizmente, teimavaem não se concretizar. Seu Mário, sem perder ohumor, se dirige ao aspirante a AntônioConselheiro dizendo: “Dá licença um pouquinho?”E engata uma quinta... “Aí, o meu sobrinho foitirar de madrugada o leite e a vaca ficou preta eficou tudo na sombra... Ele não achou mais a

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vaca... he, he, he! Ficou ceguinho!” O minimessiasde araque desapareceu como por encanto dentroda sua rede e não mais foi visto em todo otranscorrer da viagem.

Depois de uma pequena dose de eternidade, oIsvar me avisa que chegaremos em Novo Aripuanãpela madrugada, e eu não sei se fico alegre oumais desamparado.

O barco atraca lá pelas três e meia da manhã.Arrumo minhas coisas, violão no bag, mochila nascostas. Isvar e eu trocamos nossos telefones,jurando nos falar assim que possível, as redes aomeu redor balançam ritmadamente, com arapaziada toda dentro delas nos dando o últimoadeus. Fico de coração apertado ao abraçar a Ivana,que, com um sorriso invencível, me dá um beijo eum bilhetinho que carrego comigo até hoje: “Eunão tenho religião, eu tenho um Deus lindo quecuida de mim e me faz essa pessoa feliz. Ivana

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Nascimento.”

CHEGADA NA CIDADE-FANTASMAAo pisar em terra firme, sinto o bafo quente no

ar, mesmo no meio da madrugada, e logo, a algunsmetros do ancoradouro, me deparo com umaestupenda escadaria íngreme de uns cem degraus,que era o único acesso à cidade. Subimos com todaa nossa tralha enquanto o Rondon me explica quenão há um local definido para ficar, e eu deveriasair pelas ruas vazias em busca de pousada.

Depois de perambular em desassossego,encontro um cidadão que me indica um hotelzinhoa uns quinhentos metros dali. Chego à portaria dohotel, um homem atende e me leva até os meusaposentos. Abro a porta e dou de cara com umbaratão andando tranquilo pelo chão. Um fortecheiro de urina dá ao cômodo um clima debanheiro de estádio de futebol, mas não faziamal... o quarto tem um ar-condicionado! Corro e

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ligo o aparelho no máximo e me encosto nelesorvendo cada lufada de ar fresco. Estou em estadode graça com aquela temperatura magnífica,quando o pior acontece: um apagão (ou umblecaute, como assim sugere nossa governantamáxima). Breu total, ligo o iPad para poderenxergar alguma coisa e tento, do jeito que posso,me acomodar na cama. Rezo para ter bateria osuficiente até o amanhecer.

O cansaço me vence e acabo tirando um cochilo.

Acordo com a luz matinal vindo direto nos meusolhos.

Lá pelas sete da manhã, o pessoal aparece evamos todos tomar um delicioso café da manhã nohotel. Não comia nada de mais substancioso desdeo Galo Carijó, só guaraná e barra de cereais.Estamos nos preparando para partir quando oRondon me adverte que não há nenhuma

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condução programada pela produção paraseguirmos viagem, e dependeríamos da minhainiciativa para conseguir sair dali.

Depois de perambular naquele sol de nove damanhã em busca de transporte, me deparo comuma Rural Willys que num passado distantedeveria ter sido pintada de verde, toda suja delama, com uma caçamba carregada de um galão deplástico de mil litros de óleo diesel, além de outrastantas tralhas.

Era esse o nosso transporte! Sem cinto desegurança e ar-condicionado, suspensãoclaudicante, os bancos forrados por uma espécie detapeçaria vermelha de lã, que só turbinava ocalor...

Os rapazes da equipe viajariam atrás feitosardinhas (eles não podiam aparecer nareportagem) e eu na frente, de copiloto, ao lado donosso intrépido piloto, o Ailton. O Denilson“escolheu” viajar na caçamba, em cima do enorme

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galão de diesel, e passou todo o percursodependurado, enfrentando heroicamente o sol derachar e a chuva torrencial.

Depois de muita briga e reclamações indignadasda minha parte, seguimos viagem lá pelas nove emeia da manhã com aquele sol de rachar o bico.Depois de uns 15 minutos, o Ailton para e dácarona para mais dois passageiros quemagicamente conseguiram se empoleirar, a fazercompanhia ao Denilson.

Começa a chover forte e a Rural adentra a matafechada. O Ailton, um exímio piloto, faz opercurso como quem dirige num Rali Paris-Dakar.Os galhos entram chicoteando pela janela, buracosenormes fazem a caminhonete pular feito pipoca,sempre, naturalmente, numa velocidadeestonteante.

Percebo que estamos nos infiltrando no meio do

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nada, a quilômetros de distância de qualquervivalma, posto de gasolina, lanchonete, poste deluz, só mata fechada, mata queimada, pântanos,pontes de troncos de madeira prestes a desabar. Senão fosse o cenário dantesco do abandono e dasterras devastadas pelo fogo, seria de uma belezaúnica.

De vez em quando passávamos por algumbarracão abandonado e o Ailton, muito animado,me explicava que, quando havia algum problemacom a condução, ele simplesmente armava suarede numa árvore ou num daqueles barracões-fantasmas e ficava lá até aparecer alguém, coisaque poderia durar uns dois ou três dias.

Começo a sentir um espírito de liberdadenaquilo tudo... Afinal de contas, já sabia dar nó emrede, e ter uma rede por perto dá uma sensação deque você carrega consigo seu lar ambulante paraqualquer lugar.

Ailton disse ser bom caçador, havia trabalhado

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para uma firma como rastreador de mata, erealmente estava se sentindo em casa. Paramos devez em quando para fazer um xixi e esticar aspernas em meio a leitos de riachos deslumbrantes.

Chegamos às margens do rio Juma aocrepúsculo, lá pelas sete da noite, quando aindahavia alguma luz no céu, e o cenário era de umabeleza sombria. Dava para se ver a outra margem,ainda que escurecesse rapidamente e faltasse umbom pedaço de rio para se atravessar. Uma grandebalsa jazia atracada, sem ninguém à vista. Ailtonnos alerta que, se não chegasse alguma pessoa dovilarejo dos garimpeiros, acabaríamos por passar anoite ali mesmo, pois ele teria de voltarimediatamente para Novo Aripuanã.

Os mosquitos apareceram como num passe demágica, em meio a uma nuvem espessa, para nosdar boas-vindas, e tratamos de nos besuntar derepelente. Começamos a desembarcar o

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equipamento quando o Rondon pede que eu medesloque até a margem e grite por alguém, e lá fuieu, meio anestesiado de cansaço, gritar por algumbarqueiro providencial. Passam-se uns vinteminutos e nada... Começo a ficar apreensivo,quando notamos um movimento nos igarapés naoutra margem. Para nosso rejúbilo, era umavoadeira vindo em nossa direção.

Com as sombras da noite nos engolindo, fuiobrigado a colocar duas vezes a minha bagagem navoadeira, simplesmente porque me precipitei e meesqueci de fazer a “cabeça”!

No meio da travessia me bate um pânico, umdesespero, e tudo que eu mais ansiava naquelemomento era sair daquele lugar. Continuávamostotalmente desconectados da civilização; acomunicação externa só se dava pelo rádio dacooperativa.

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Finalmente, depois de três dias e meio deviagem, alcançamos a vila do garimpo de Eldoradodo Juma no momento em que as minhas relaçõescom o resto da equipe estavam maiscomprometidas do que nunca. Tudo o que queriaera tomar um banho, amarrar a minha rede emqualquer lugar e desabar, desaparecer, evaporar.

Ao chegarmos à vila, fomos apresentados ànossa anfitriã, a Rússia, um ser de resplandecentealegria, uma querida pessoa que nos acolheu comtodo o carinho e iria nos hospedar no barraco dasede da Cooperjuma. “Trouxe chapéu, protetorsolar, repelente de mosquito? O sol no garimpocastiga muito, hein? Já veio muito jornalistaestrangeiro por aqui. O cara da BBC também veiogarimpar... Ficou vermelho que nem um camarão.Cara muito bacana. Eles trouxeram um monte decaixas de uísque. Foi muito divertido”, explicava aRússia com um sorriso maroto, nos deixandosentir que seríamos muito bem-tratados naquele

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lugar.

Me lembrei do meu chapéu e pressenti quepoderia ter sérios problemas com a sua falta, mas,no meio daquele cansaço todo, aquilo era o demenos.

Atravessamos a vila, entre barracos esparsos,um bar, uma vendinha, uma... Assembleia deDeus! Sim, aquele era um garimpo atípico. Nãohavia mais puteiros, tiroteio, jogatina, bebedeira.Isso acabou quando foi legalizado, depois dequatro anos de intensa atividade extrativista (afofoca), justamente quando entrava em francodeclínio, em 1º de maio de 2011. Pelo que sededuz, há fortes indícios de que essa legalizaçãotenha sido de cunho eleitoreiro.

Aqueles contrastes todos, a beleza do rio, aimensidão da floresta, pássaros, araras, convivendocom a devastação dos igarapés (dez mil hectares deterra destruída), o barulho das bombas de sucção,a lama, a miséria. Um lugar de improvável clima

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de harmonia e paz entre seus habitantes, quandogeralmente um garimpo é lugar de violência eprostituição.

A corrida do ouro promoveu uma intensamigração para o local e uma degradação ambientalsem precedentes na Amazônia. “O garimpo atraiumuita gente que vivia nos bolsões de miséria queainda existem na Amazônia, e fechá-lo seriaprecipitado”, conta a chefe do grupointerministerial formado pelo governo federal paraordenar o garimpo, Maria José Salum, doMinistério de Minas e Energia.

Chegamos à sede da Coooperjuma, um barracode madeira pintada de amarelo, teto de zinco, trêscômodos, uma geladeira com TV em cima, umamesa, uma balança de pesar ouro, um cartaz dacooperativa pregado na parede e eu, sem pensarduas vezes, começo a amarrar a minha rede nomeio da sala, preparando meu cafofo local.

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Tudo que desejava era tomar meu banho, e paraisso deveria ligar a bomba do poço, mas, paratanto, precisava de gasolina e, logo de cara, temosque sair pela vila à cata de combustível.

A vida ali era muito dura, e o simples fato deligar uma lâmpada era uma aventuraextraordinária. A Rússia me leva até o galpão dagasolina, a uns trezentos metros da sede, e láenchi um galão de vinte litros que trazia comigo.Volto botando os bofes pra fora e sendo filmado, éclaro.

Demoramos uma meia hora para colocar abomba para funcionar, até que, finalmente, iriatomar meu tão esperado banho!

Mas como nada naquele lugar era tão fácilassim, ao ligar a torneira do chuveiro dou de caracom uma aranha cabeluda pendurada na parede doboxe, do tamanho de um siri, e comecei a pensarcom meus botões: se tento dar uma chinelada naaranha, periga de ela me atacar; vou é entrar de

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mansinho no chuveiro e fingir que ela não está acinco centímetros de meus testículos, ligar a águae tomar meu banho sem fazer muitos movimentosbruscos, só no sapatinho...

Depois do abençoado banho, demos um rolépela vila, bem na hora da novela das oito, comtodo mundo aboletado nos bancos do barzinhocurtindo aquele momento máximo de lazer. Era agrande diversão da rapaziada, pois logo em seguidaao término da novela os geradores da vila sãotodos desligados.

Com toda a equipe assentada em seusrespectivos cômodos, cada um na sua rede, meembrulho dentro da minha como se estivesse emum útero e tudo de repente fica negro. Um breuamazônico cobre os meus olhos e, com a chegadada madrugada, o frio invade os meus ossos.Começo a tremer, sem acreditar que pudesse haversemelhante queda de temperatura num lugar tãoquente quanto aquele, não obstante já ter sentido

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aquele frio no barco, mas como é fácil esquecer dofrio naquela região... Me enrolo em cada pedaço deroupa que levei, sem conseguir nenhum resultadosatisfatório. Às vezes, ligava o iPhone só parailuminar o recinto e verificar se a aranha dochuveiro não tinha vindo me visitar, e, de vez emquando, fazia minhas “autocenas” de exaustão efrio com a minicâmera do Diego.

MÃOS À OBRA! AO GARIMPOLevanto da rede lá pelas cinco da manhã sem ter

dormido mais que duas horas, e ninguém estáacordado. Vou passear pela vila, filmar a paisagemcom o meu iPad, para ver se tem alguma coisaaberta, pois, como pode se imaginar, estou mortode fome. Chove torrencialmente e penso napossibilidade de adiarmos a minha garimpagempara o dia seguinte, o que me deixa um tantoatemorizado com a perspectiva de ter alongada anossa estada.

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Foi aí que minha vidinha veio a ter um grandeconsolo por meio da aquisição de dois queridoscompanheiros de viagem: o Hulk, um vira-latãomalhado, e o Tony, um pato simpático e muitosocial que ficava rondando alegremente fazendoquén-quén pelos arredores do nosso barraco.

Os rapazes acordam lá pelas sete da matina ecomeçam os preparativos para a filmagem daminha performance no garimpo, pois eutrabalharia como um garimpeiro comum emtempo integral, das sete da manhã às seis da tarde.

A chuva arrefece e nós paramos no bar danovela das oito para tomar um salvador café bemforte e comer um pão de queijo. Finalmente, apósuma caminhada de uns trezentos metros,começamos a ouvir o barulho das bombas desucção. De repente, nos deparamos com aquelaimensa devastação, diante de uma clareira àsmargens do rio Juma, do tamanho de uns trêscampos de futebol, meio que submersa por um

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palmo de água enlameada, restolho da extração,num caos de lama, terra avermelhada, barrancos,piscinões de água prateada e buracos enormes.Parecia um outro planeta, um lugar atingido poruma saraivada de asteroides. Me senti em Marte.

Em meio àquela paisagem de ficção científica,eis que surge o Celso, chefe dos garimpeiros,retornando do buraco da zona de extração.Homem de fala pausada, atencioso, devia estarcom a minha idade, uns cinquenta e tantos anos,pele curtida pelo sol, conta que aquele local já teveos seus dias de glória e atualmente vivia seu tristeocaso, justo no momento em que fora legalizado.Há quatro anos, chegara a obter quatro a cincoquilos de ouro por dia, quando hoje em dia é raroextrair cinquenta gramas — e com essamatemática, não dá nem para pagar o diesel damáquina.

Solícito, ele me encaminha para o barraco dasferramentas e, logo em seguida, nos dirigimos aos

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barrancos íngremes, de cinco a seis metros deprofundidade, pelas trilhas repletas de lamaescorregadia.

Descemos até o local da garimpagem, muitobarulho, jatos d’água jorrando das mangueiras,picaretas, peneiras, e, no meio dessa confusãoatordoante, o Celso me conta que a cooperativaestava esperando um financiamento para adquiriro maquinário apropriado para continuar a extraçãono subsolo, uma vez que a superfície já estavaesgotada e com aquelas ferramentas artesanais nãohaveria muito mais o que fazer por ali.

Segundo ele, o processo de extração tem quatroetapas: exploração do barranco, sucção da água,repescagem do material e resumo do material comsubstâncias químicas.

Me livro dos sapatos, dos óculos e mergulhoentusiasmadamente no trabalho pesado encarando

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uma picareta. Àquela altura do campeonato, odesconforto desapareceu junto com o cansaço equalquer possível inadequação. Estava feliz do ladodos meus novos companheiros e orgulhoso por tera oportunidade de passar por aquela incrívelexperiência. O calor é intenso, um mormaçotraiçoeiro impera, cozinhando a pele, e, sem meusaudoso chapéu, em 15 minutos estava todo rosa.Passo uns quarenta minutos naquela função,quando o Celso me convoca para pilotar amangueira. É um trabalho bastante perigoso: umgarimpeiro havia se ferido gravemente, perdendotodos os dentes, com um coice da pressão da água.Esse jato d’água ajuda a desbastar o barranco eescoar a lama com cascalho, pedras e outrosdetritos para um piscinão de coleta. Outro colegamorreu soterrado por um barranco, havendomuitos garimpeiros com diversos tipos demutilação.

De repente, um silêncio cobre o sítio numa paz

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momentânea. O motor da bomba parou por faltade combustível, e, como não poderia deixar de ser,vou lá ajudar a puxar a corda para religar amáquina, enquanto o Diego vai filmando tudo e oRondon vai me passando o texto, mesmo sem quetivéssemos um só momento de concordância emrelação ao que eu iria falar.

A essa altura, estou enturmadíssimo com arapaziada e um dos meus novos colegas me mostraa boca cheia de ouro. “Aqui ninguém mete a mão”,explica o Roberto Carlos, com seu áureo sorriso.

Dá para imaginar que não demoraria muito paraque eu cometesse a minha primeira gafe: estousubmerso de lama na piscina de coleta aentrevistar entusiasmado um garimpeiro no meiodaquele barulho todo quando ele me aponta umavara de uns três metros de comprimento. Semouvir direito o que ele estava dizendo, deduzi setratar de um artefato para desbastar o barranco.Sem transição, empunho a vara, começando

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desajeitadamente a cutucar a terra. O cara cai nagargalhada, larga o que estava fazendo e vem emmeu auxílio, explicando a sua verdadeira função: atal vara era apenas para se escorar, como se fosseum poleirinho, para facilitar ergonomicamente oacesso a pedras mais robustas que se assentam nofundo do piscinão...

Trabalhamos até uma e meia da tarde, quandopercebo que estou morto de fome e todoqueimado: do rosa fui ao roxo.

Paramos com tudo e nos encaminhamos paraum casebre de madeira que fazia o papel decantina, onde nos aguardava uma senhora muitosimpática com um almoço celestial: frango assadocom arroz, feijão e uma saladinha. Não comia umarefeição desde o café da manhã em Novo Aripuanã,mas refeição de verdade, mesmo, não comia desdeo Galo Carijó, em Manaus.

Enquanto almoçamos, o Celso me explica comdetalhes como é dividido o dinheiro no garimpo:

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30% para o garimpeiro, 10% para a cooperativa e60% para o dono do garimpo mais os custos deprodução.

Agora, uma coisa que me deixou curioso foi otal dono do garimpo. Quem seria o dono dogarimpo, uma vez que eram terras do governo?Mas achei melhor não entrar em detalhes, mesmoporque a pauta deveria ser “favorável”.

Bato dois pratos e entro em estado de rejúbiloproteico!

Depois da boia, voltamos para o serviço, dessafeita em cima de uma prancha de madeira de unstrês metros de altura, com uma inclinação de unsvinte graus, uns dez metros de comprimento, numformato de calha, toda forrada de telas de ferropregadas na madeira. No topo, um barril de metalcom uma mangueira jorrando águaincessantemente no seu interior. O trabalho é

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desconfortável e perigoso, pois a prancha estácheia de pregos debaixo de toda aquela águalamacenta.

Segundo mais informações do Celso, o grama doouro varia de 85 a 86 reais, em Porto Velho já são90, e quanto mais longe, mais caro o grama doouro. São necessárias 10 a 12 horas por dia paraextrair pelo menos cem gramas, para não terprejuízo, ou seja, àquela altura do campeonato,com a fofoca fenecida, era uma batalha perdidatodo aquele esforço. De súbito, o barril estremece,aderna traiçoeiramente e quase despenca em cimado meu querido pé, que decerto seria amputado seo barril tivesse caído.

Estava na cara que o dia de trabalho seria maisum dia em vão quando começa a “bateção” dastelas em um outro barril, no pé da prancha,escorrendo a água enlameada da calha para dentro,e eu tentando desajeitadamente dar a minhacontribuição, a bater a tela e fazer a peneiração

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com uma cumbuca.

Por fim, temos o resultado do dia: umaquantidade ínfima de ouro.

Logo em seguida, nos dirigimos a outro piscinãode coloração prateada suspeita e, assolado pelavisão apocalíptica do cenário, indagoeducadamente se não estaria contaminado demercúrio: “Não. A gente não trabalha comazougue, não”, responde sorrindo um dosgarimpeiros que estava com metade do corposubmersa naquela água. De imediato, me convidapara entrar. Eu, por minha vez, tímido, insiromeus pés o mais raso possível. Ele, para me provarque estava em um meio saudável, retira umacastanha do Pará do bolso submerso de suabermuda, dá uma mordida e me oferece. Meio queem pânico, mastigo a castanha com um sorrisoamarelo, filosofando: “Puxa vida... que trabalhãopra essa merrequinha, né?” E ele me responde:“Pois é... acabou a fofoca por aqui. Fofoca boa tá

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no Jacaré, aqui do lado. Lá eles tiram uns cincoquilos num só dia, e por isso mesmo tá cheio demulher por lá. A mulherada toda se mandoudaqui. Só tem mulher onde tem fofoca.”

Subimos com o precioso e escasso material até omesmo local do rango e lá nos pedem para nãofilmarmos o processo final; suspeito de queutilizavam o azougue (mercúrio) para asublimação. Em seguida, acendem um maçaricoem direção ao metal na cumbuca e, como que porum passe de mágica, aquela substância prateada setransforma em ouro. No caso, 26,3 gramas deouro, como foi consignado na pesagem final. Adivisão foi a seguinte: 2,6 gramas, os 10% dacooperativa, 16,2 gramas, os 60%, que dão 1.152reais, 1.000 reais para o aluguel do trator, 400reais para o combustível... Moral da história:depois de dez horas de trabalho, 248 reais deprejuízo!

FESTA NA FLORESTA

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Saio um tanto perplexo com toda aquela terrívelrealidade, todo enlameado, com queimaduras desegundo grau nos ombros, bolhas nos dedos dasmãos, os pés furados, e como a bomba-d’água donosso barraco não está ligada, me disponho atomar um banho de rio.

Caminho até a margem (o barracão devia estar avinte metros do rio) e encaro as águas escuras doJuma acompanhado do Hulk e do Tony,impressionado com o papo do Isvair, imaginandopiranhas, jacarés-açus, ariranhas e pirarucusvindos das profundezas. Não havia como entrargradativamente, banhando os pés, e depoisfilosofar na companhia de meus dois amigos;tratava-se de uma ribanceira cheia de pedregulhose lama. Percebendo que precisava radicalizar, meencho de coragem e mergulho aterrorizado,verificando ser o rio muito mais fundo do queimaginava, mesmo colado à margem. Aquilo maisparecia um poço! Entro em pânico e tento

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desesperadamente sair. A margem é alta, íngremee cheia de lama muito escorregadia. Para chegar asalvo em terra firme, tenho que fazer uma série decircunvoluções esdrúxulas, me agarrando aobarranco. Uma cena ridícula. Resultado: saio maisenlameado do que entrei, ligeiramente humilhado,tendo como único respaldo emocional aindiferença tranquila e cúmplice dos meus doisamigos.

Ao cair da noite, nos recompensamos com umdelicioso jantar patrocinado pela Rússia norestaurante local, pilotado por dona Maria, umasenhora que sempre viveu de prestação de serviçoao garimpo. Uma cozinheira soberba e requintada,que, se pudesse, chamaria para abrir umrestaurante chiquérrimo nos Jardins. Comemospeixes recém-pescados do rio, uns assados, outroscomo ensopado, arroz, feijão, uma salada com asverduras colhidas diretamente de sua horta e umapimenta local saborosíssima, muito quente

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(chumbinho), com que ela acabou mepresenteando. Um jantar inesquecível.

Logo em seguida, vamos todos assistir àfamigerada novela das oito para depois fazer umsarau antológico de despedida, regado a cerveja, navendinha que ficava em frente ao barzinho da TV.

Arrebanhei meu violão no intuito de tocar umascanções para a rapaziada, todo mundo fazendo lá elá, lá, lá... e lá, lá, lá (a Rússia revirava os olhinhosde felicidade), quando surge uma dupla sertanejalocal de garimpeiros, o Neneca e o Tibúrcio, que sejuntam a nós. O Neneca, muito arisco e tímido,reluta em aceitar o violão para nos dar umapalinha, desconfiadíssimo da minha pessoa,quando percebe a braçadeira e fica maravilhado:“Olha, vou te dizer uma coisa... se eu tivesse umabraçadeira igual a essa, nunca mais precisava defazer pestana, sô!” É claro que dei a braçadeira depresente para o Neneca, ainda que a montagem doprograma tenha feito o público acreditar que eu

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estava dando o violão. Animadíssimo, pegou oviolão e começou a dedilhá-lo executando seurepertório. O Tibúrcio, mais arisco e desconfiadoainda, cantava com muita malandragem, comexpressões marotas, e, quando estava mais àvontade na nossa roda, nos confessou ter perdidouma boa parte da mão numa bomba de sucção. Osdois começaram entoando uma canção muitoengraçada e maliciosa, com o intuito de dar umasacaneada no Nascimento, o dono da venda, comuma letra que dizia algo mais ou menos assim:“Gavião só dorme no pau e vive com o pinto nobico...” A noite estava deliciosa e todos nós caímosna gargalhada.

Em um determinado momento, o Tibúrcio, jácompletamente descontraído, me convida para darum pulo até o seu barraco, ao lado da venda,enquanto Neneca continua a mandar ver no violão.Me mostra um estoque clandestino de cachaça,abrindo prontamente uma garrafa, e me oferece

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uma dose: “Sabe que aqui está proibido bebedeirade cachaça? Lá fora, só cerveja, senão pode dartiroteio.” Num pacto de cumplicidade ecamaradagem, tomamos uns goles generosos evoltamos para a festa, que bem cedo chegava aofim. Uma festa cercada pela floresta, no coração deuma vila de garimpeiros, no coração da Amazônia,no coração do Brasil.

Tínhamos plena consciência de que estávamostodos ali, naquele momento raro, compartilhandouma felicidade genuína, pura e verdadeira. Namanhã seguinte, todos voltariam para aquela vidade sonhos e reveses, na esperança de, quem sabeum dia, achar um barranco cheio de ouro.

Ao deitar na rede, no meio daquela escuridão,me bateu uma alegria búdica. Me sentia em casa...Aquele local, de uma hora para outra, se tornaraaconchegante, como se toda a floresta meabraçasse. Percebo a presença do Hulk deitado aopé da rede, o Tony refestelado no jardim, os

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rapazes da equipe roncando numa incrível sinfoniade apneia, cansaço e recompensa.

O ÚLTIMO DIA NA VILADe manhã, sou acordado com a Rússia batendo

na porta acompanhada de uma figura impoluta:uma linda arara vermelha e azul, moradoraoriginal da floresta que fez amizade com arapaziada da vila e em especial com nossa anfitriã.Tratava-se de uma ave incrível... se refestelandonos braços dela, voando raso entre os telhados dosbarracos... A Rússia perguntava o nome dela e elarespondia: “Eu sou a Laura! Eu sou a Laura!”Voou até o barzinho da novela das oito, onde jáhavia uma xícara de café e um pão, especialmenteservidos para ela. A Laura pegava o pão no bico,embebia na xícara e, depois, comia. Em seguida,muito enturmada e faceira, ia saudar todos oshabitantes do local gritando seu nome, aos quatrocantos, pousando na janela de cada um a berrar:“Eu sou a Laura! Eu sou a Laura!”

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Rússia, no afã de fazer uma aproximação maiorcomigo, disse para eu dar, sem medo, o braço paraa Laurinha se aprochegar, quando,sorrateiramente, toda meiga, se encosta em mim esem a menor cerimônia começa a me furar oantebraço com toda a calma do mundo! E eu iaaumentando o diapasão das minhas súplicas: “Pô,Laurinha. Laura, pô! Porra, Laaaaura!” Fez umburaco que dava para colocar um piercing. Foiencantador.

Na hora da nossa última refeição na vila, donaMaria fez questão de caprichar ao máximo nassuas habilidades culinárias e nos presenteou comum lauto banquete, uma enorme variedade depratos na mesa num desfile de peixes variados,cozidos, aves, arroz, feijão, farofa e saladas.

Chegamos ao restaurante sabendo que teríamosum almoço e tanto de despedida, contudo, no meiodaquela efeméride gastronômica, sofremos um

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baque, um choque! Todos nós, perplexos e semsaber como reagir, testemunhamos algodevastador: entre aqueles deliciosos acepipes, jaziaelegante e dourado, envolto em tomates, folhasverdes e batatas, o meu querido Tony! Dona Mariaassou o Tony!

Aguardava na tristeza daquela perda, envolto emprofundo luto, ao lado do Hulk, a chegada denossa viatura na vila, quando mais um acidenteacontece: o Pedro, vulgo Bin Laden (receberaaquela alcunha em virtude de sua magreza defaquir, sua tez bronzeada e sua barbamuçulmânica), o cara que tomava conta da bomba-d’água, teve uma séria crise de hérnia quandotentava colocar o motor de cordinha parafuncionar, no intuito de nos proporcionar o últimobanho. Numa daquelas braçadas olímpicas, ele seentorta todo, e torto permanece, com terríveisdores. Nós iríamos ter de levá-lo conosco até o

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hospital da cidade de Apuí.

Enfim, chega a caminhonete com um bomatraso, nos despedimos de todos com muitaemoção, e a Rússia, sempre com a Laura noombro, nos deseja ver em breve, sendo que, dapróxima vez, para registrar a volta triunfal dafofoca ao garimpo do Eldorado do Juma. Entramosna Mitsubishi preta e lá fomos nós pegar a balsa,quando o Hulk sai em disparada ao lado dacaminhonete a latir, nos dando adeus.

Todavia, os setenta quilômetros que nosseparavam de Apuí se transformariam numaepopeia de mais de seis horas para chegar à cidade.Tivemos um sério problema com a roda traseira eparamos oito vezes para conseguir, com muitogatilho e improvisação, chegar sãos e salvos aonosso destino.

Após a internação do pobre Bin, rumamos

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felizes em direção ao hotel, porém, como nãopoderia deixar de ser, ao ultrapassarmos operímetro urbano, percebemos que rolava aqueleapagão familiar, tão onipresente e constante emnossas terras quanto as Assembleias de Deus e asnovelas das oito.

Pernoitamos no hotel Silverado depois de umalegre passeio pela noite apuiense, quandocelebramos o sucesso de nossa empreitada comuns espetinhos de frango e umas boas cervejas.Entretanto, contrariando nossas expectativas, asaventuras não haviam terminado ainda: na manhãseguinte, ao chegarmos ao aeroporto da cidade,uma surpresa. Não havia vivalma no lugar!Nenhum atendente, serviçal, garçom... Ninguém.

Esperamos nosso avião naquele sítio-fantasma,naquelas dependências totalmente desabitadas, porumas duas horas, imaginando como serão ospróximos oitocentos aeroportos que a nossagovernanta nos prometeu. Quando avistamos a

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aeronave chegando, nossa alegria se assemelhava àde náufragos num resgate. Me aboleto no lugar docopiloto e desfruto do passeio filmando aquelaspaisagens incríveis, sobrevoando aquela regiãodeslumbrante, exuberante, com aquela floresta,seus rios, barcos, as nuvens cinza das queimadasflutuando sobre o coração da Amazônia por maisduas horas até aterrissarmos em Manaus.

Me despeço dos meus companheiros de equipe,pois prosseguiriam no trabalho com outrareportagem. Com todos os atritos e arranca-rabosno transcurso da nossa aventura, nascia ali umsentimento de afeto e camaradagem por todos, eem especial pelo Rondon, que se tornou um amigodo peito. Dedico este capítulo a ele, a seuprofissionalismo e a sua incansável paciência.

Depois de aproveitar aquele resto de dia emManaus passeando por suas ruas, pela praça doteatro, fuçando livrarias, escolho um belo

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restaurante tradicional no afã de comer umexcelente pirarucu com um Chablis geladíssimo.Ao cair da noite, já refestelado no meu quarto dehotel cinco estrelas, preparando minha bagagempara a viagem de retorno a São Paulo na manhãseguinte, me vem à cabeça toda essa experiênciaformidável, esse mergulho de corpo e alma numBrasil profundo, e o que fica no ar, além do amor,da miséria, da beleza, do afeto, do abuso e dadevastação, é a percepção da Terra do Nunca comonossa sina: de um lado, a luta titânica de um povoque, numa alegria perturbadora, disputa palmo apalmo com a impossibilidade seu pedaço deexistência, enquanto de outro prevalecem,intactos, incólumes, perenes e gloriosos, os pilaresda nossa ruína.

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CAPÍTULO 7

CONFESSO A VOCÊS:

SOU UMA BESTA QUADRADA

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Durante os muitos anos da minha formação, eaté bem pouco tempo atrás, tive uma posturabastante ambígua em relação a uma série deconceitos e ideias sem nunca ter me preocupadomuito com esse desleixo ontológico. Ora meaproximava de ideias de esquerda, ora pisavafundo na jaca do hedonismo alienado, algo vistocomo típico da decadência burguesa, umacontradição bastante reprovável e muitas vezes,para piorar minha situação, conseguia unir os doistipos de comportamento, numa alegrepromiscuidade esquizofrênica.

Ao longo do meu período de existência, sempreme perguntava por que eu me sentia mais chique,mais inteligente, mais enturmado, mais sexy, medeclarando um cara de esquerda. O que haveria detão sedutor numa doutrina em que, sinceramente,nunca tive muita paciência para me aprofundar,além de uma sistemática antipatia a quase tudo oque dela exalava?

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Devia ser porque havia tantas discrepâncias nomundo... Enquanto magnatas emperucados, debotox, compravam em Las Vegas automóveisimpensáveis para qualquer cidadão, grande partedo mundo vivia em meio à fome e à miséria. Seriaisso?

Com todos esses contrastes absurdos, nãopoderia passar pela minha cabeça que um sistemasocialista pudesse ser bem mais cruel, injusto eineficaz do que as agruras e excentricidadesdeliquescentes do capitalismo.

Sendo um garoto rebelde, optei pelo roquenrou,que, apesar de todo o seu glamour, constatei termuitos componentes do pensamento de esquerdaou, quem sabe, a esquerda os tenha açambarcado.Mas o rock, aqui no Brasil, era a manifestaçãomais grotesca e reprovável da decadênciacapitalista.

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Ser roqueiro e ser de esquerda chegou a ser umparadoxo, pelo menos nestas plagas, assim comoem Cuba. Contudo, no Primeiro Mundo era umaconduta antiestablishment, antissistema, umcomportamento pacifista de hippie e sandinista, depunk. Na verdade, na América, desde omovimento beatnik e a música folk de protesto,havia um sério engajamento de tendênciasocialista e antigoverno, principalmente depois doassassinato de John Kennedy, eclodindo em todo oseu esplendor na Guerra do Vietnã.

Eu me lembro perfeitamente daquele dia emque mamãe me trazia do Colégio Pernalonga emseu fusca vermelho, quando, ao descer na garagemdo nosso prédio, em Copacabana, grita no rádioum locutor histérico a notícia que paralisou omundo: Kennedy havia sido assassinado. Minhamãe deu um pulo no assento, abandonando ofusquinha enviesado entre as pilastras, bateu asportas, deixando minha merendeira presa, e eu

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gritava: “Mãe, tô com a merendeira presa na portado carro!” E ela me respondeu aos prantos, já coma porta do elevador aberta: “Larga essa merendeirae vem comigo, mataram o Kennedy! Mataram oKennedy!”

Viver naqueles anos não era fácil: a qualquermomento esperávamos por um ataque nuclear, asrelações dos Estados Unidos com a ex-UniãoSoviética estavam no auge da tensão, e ainda porcima tinha a China com o Mao praticandoatrocidades, Cuba mandando centenas de pessoaspara o paredão...

E mamãe morrendo de medo de uma invasãocomunista por aqui. O governo do Jango estavaperdendo as rédeas, greves, comícios emsindicatos, a luta armada era uma conversacorriqueira nos botequins e tudo indicava que,depois do comício da Central do Brasil,entraríamos numa guerra civil.

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Veio a passeata da “classe média reacionária”,mais de oitocentas mil pessoas pedindo que oExército tomasse conta do poder, a essa altura docampeonato completamente entregue ao iminentegolpe da esquerda que nos transformaria deimediato numa ditadura bananocomunista.

Pois bem, os militares tomam o poder numarevolução de pijama e nos salvam daquele tristedestino, de virarmos um Cubão. Contudo,acabamos numa ditadura militar que duraria 23anos, e durante o transcorrer desse período omilitar, em geral, se tornou o grande vilãonacional.

Todavia, nossos intelectuais, artistas ejornalistas, que sempre, em sua grande maioria,foram de esquerda, continuaram a sua jornadadoutrinária, e quem não tinha nada a ver com opato acabou tendo que passar todas as privações deum Estado de exceção.

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A maior peculiaridade da criatura de esquerda éa sua absoluta incapacidade de enxergar o óbvio: aesquerda, definitivamente, não funciona. Quandose referem a ela como utopia, nada pode ser maisapropriado. Talvez pelo fato de o esquerdista ser,antes de tudo, uma vítima e um mago dapropaganda (Sim! A única grande virtude docomunista é a propaganda), a população em geralacabou por demonstrar simpatia e compaixãopelos pobres e nossa História esqueceu que foramjusto os movimentos de esquerda, em pleno vigore ação desde os anos 1930, os grandes e únicospatrocinadores da ditadura em que passamos aviver. Isso é algo que, inexplicavelmente,relutamos em engolir. Como o militar foitransformado numa figura execrável, umtorturador, privador de nossa liberdade e de nossosdireitos, ficou fácil transformar uma doutrinaabsurda, repressora, genocida e inoperante emalgo libertário, martirizado, romântico, justo eprogressista.

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Bom, a propaganda é a alma do negócio, não éverdade?

Nos Estados Unidos, com a guerra do Vietnã, acontracultura americana toda foi para a esquerda euma revolução comportamental sem precedentesse iniciou: direitos civis, luta contra o racismo,festivais de rock vaticinando contra a guerra e, apartir de então, tudo o que não era careta era deesquerda, inclusive as drogas.

Che Guevara, uma figura execrável, umpsicopata genocida, se transformou em ídolo pop.Quando o capturaram juntamente com seuscompanheiros na Bolívia, encontraram armas emunições nas mochilas de seus comandados,enquanto nos personal belongings do comandante,um nécessaire com um espelho e um pente (decabelo). Sem contar o chororô, implorando paraque não o matassem, que ele seria maisimportante vivo do que morto. O pente e o espelho

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deveriam ser para a ocasião do antológicojulgamento que acabou não acontecendo.

Me lembro quando fui pela primeira vez aosEstados Unidos, em pleno Watergate, e ficavamaravilhado em ver a cara do Nixon estampadaem rolos de papel higiênico, toda aquela fúrialibertária do rock ’n’ roll, o Lennon recebendomedalha do Fidel. Power to the People, Working ClassHero.

Nunca havia me passado pela cabeça que Cubaera e é uma ditadura militar! Comandantesfardados de verde-oliva... mas não sãoreconhecidos como tal. Por quê?

Tudo isso produzia uma tremenda confusão naminha cabeça, pois, se o rock, perante aintelligentsia brasileira, era tido como colonizaçãodo imperialismo americano, um gênero quepromovia a alienação cultural, algo a serrepudiado, com direito até a passeata contra aguitarra elétrica, como esse rock poderia ser, ao

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mesmo tempo, aquela manifestação de rebeldia, dereivindicação dos direitos dos negros, doshomossexuais, das mulheres, do amor livre, JaneFonda posando no front com os vietcongues,Rolling Stones filmando com Godard, como ocapitalismo poderia produzir algo tão... deesquerda assim? Culpa.

Ao adentrar a minha idade adulta, me via comoum anarquista desajustado que estava cagando umbalde para política, ditadura, direita ou esquerda.Comecei a ler escritores anarquistas, comoKropotkin, Bakunin, Proudhon, fora os beats,Kerouac, Burroughs, Ginsberg, com o intuitoinconsciente de me livrar daquela miscelâneaideológica que muito me atormentava, sem me darconta de que estava sendo apenas um ser fashionansiando por aprovação da minha turma.

Não conseguia me enquadrar nas doutrinasvigentes: a direita era a imagem da caretice,conservadora e, antes de tudo, me perseguindo por

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todos os lados aonde ia, fora o fato de, naqueletempo, ser caracterizada como uma vilã quechancelava torturadores e nos tolhia a liberdade.

Na verdade, o Brasil nunca teve uma direita.Teve e continua tendo um irremissível coronelatohereditário.

A esquerda, a meu ver, um bando de frouxos,opacos, desprovidos de qualquer estilo que nãofosse o arquétipo do desgrenhado barbudo desandália de couro, se vitimizando de tudo e detodos, recalcado com o brilhantismo alheio, cheiode palavras pedantes como utopia, engajamento,contextualização, plenária, incrivelmente mecativou, creio que por pura imbecilidade da minhapessoa. E como eu sou comum...

Comecei a atuar através de alguma forma demanifestação política em pleno governo Sarney,meu primeiro alvo. Antes, ainda no governo

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Figueiredo, a canção “Ronaldo foi pra guerra” eraum hino à total desimportância da minha geração,e nesse mesmo disco tive uma música censurada(chiquérrimo), mesmo sendo desprovida do menorcunho político. Chamava-se “Teoria darelatividade” e tratava de um nerd que precisavadividir sua namorada com outro por ler muitoslivros.

Soube da morte do Tancredo pelo PlanetaDiário... Ainda me lembro da manchete: “DonaRisoleta parte para a carreira solo!”

O Sarney era para mim tudo o que poderiarepresentar de mais medíocre e retrógrado no país,e não desconfiava de que aquilo era apenas umprelúdio. Eu poderia incluir aqui a minha prisão eseus quatro anos posteriores como típicaperseguição política, mas prefiro acreditar que fuitratado simplesmente como um mero marginal,que minha péssima conduta poderia levar todauma geração para a delinquência juvenil. Uma

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espécie de subversão de segunda classe. Creio quepeguei um certo asco de autoproclamadosperseguidos políticos.

Desandei a fazer canções meio que de protesto(eu detesto canções de protesto), como“Revanche”, “O eleito”, “Quem quer votar”,“Panamericana”, “Presidente mauricinho”, e nesseritmo fui me engajando, meio que no vai da valsa,na ala esquerda, principalmente por acreditar ser oSarney o representante mais vil da direita.

Eu explico o porquê do vai da valsa. A minhaprimeira manifestação explícita de animal político-partidário foi quando voltei de um longo períodono exterior (minha fuga para Los Angeles durouquase um ano, até prescrever meu delito), e logoao retornar percebi estarmos numa frenéticacampanha presidencial.

Como era uma anta apartidária, e alijado dequalquer informação sobre o pleito, assim que umjornalista me perguntou em quem eu iria votar,

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respondi entusiasmado, sem titubear: no RobertoFreire! Imaginava Roberto Freire ser o famosopsiquiatra e escritor de livros que havia lido comsofreguidão, como o iconográfico Sem tesão não hásolução, criador da somaterapia, uma espécie deterapia anarquista.

Pois bem, o jornalista, motivado por minhaentusiasmada opção, teve a incrível ideia de fazerum encontro da minha pessoa com o tão aclamadocandidato. Num curtíssimo espaço de tempo, unsdois dias após a conversa telefônica, lá vou eu meencontrar com o Roberto Freire, quando sofro umbaque. Era outro Roberto Freire!

E olha que não estava nem um pouco a fim devotar no Lula por achar o PT meio comunista, umtanto grotesco, meio sectário, e, sem maisdelongas, caio no colo do Partido ComunistaBrasileiro!

A minha sorte foi ter me simpatizado bastantecom o Roberto Freire e seu candidato a vice,

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Sérgio Arouca. Pensei com meus botões... são unscaras corretos, o comunismo está moribundo eeles não têm cara de comissários da KGB, portantovou engatar uma quinta e seguir em frente.

Para resumir a conversa: eu me tornei um dosprincipais cabos eleitorais do Roberto Freire, oacompanhava para os debates nas televisões erádios (o Brizola sempre me fuzilava com aqueleolhar emoldurado por grossas sobrancelhas),viajava pra cima e pra baixo no jatinho do partido,para comparecer aos comícios em várias capitais,quando acabei fazendo amizade com um dos maishistóricos comunistas do Brasil, o grande SalomãoMalina, o último secretário-geral do partido aquino Brasil, um senhor muito simpático e doce,herói de guerra, que tinha uma mão amputada emvirtude de uma explosão de granada na SegundaGuerra Mundial, fato esse que me levou adescobrir, emocionado, que ele havia lutado naItália, na mesma companhia do meu querido tio,

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que, por seu turno, perdera um rim, o baço e partedo intestino. Era uma festa papear com aquelafigura histórica. Passávamos a maior parte dotempo das viagens ouvindo o Salomão contar suasincríveis aventuras, tanto na guerra como em suasescaramuças comunistas.

Quando ele morreu, em 2002, senti a perda deum tio querido. Fiquei muito triste também com amorte do Sérgio Arouca, uma querida pessoa e umexcelente médico. Quanto ao Roberto Freire, é umdos poucos oposicionistas do atual governo e nutrosimpatia e admiração por ele.

No segundo turno, como achava o Collor umtremendo canastrão, o que restou foi juntar-meaos outros 99% de artistas e intelectuais, todoscantando “Lula lá”. Até o Cazuza era PT! Não seise o Renato Russo cairia nessa roubada... Não eraa cara dele.

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O PT nunca me cativou de verdade, detestavapadre da Teologia da Libertação, não suportavaaquela aura chicobuárquica, mas àquela altura docampeonato acreditava que um partido com gentediferente, que primava por ser honesto, deveria tera sua chance de governar o país, daí mergulhei decabeça e desandei a aparecer em todos oscomícios, inclusive naquele célebre, da Candelária,em que o Luís Carlos Prestes se fez de pedestalsegurando o microfone para que eu cantasse“Revanche”.

O episódio do Faustão, pelo qual tantos mecobram coerência histórica, eu contei em detalhesno 50 anos a mil e, se vocês quiserem rever, está noYouTube. A partir daquele período, eu não estariamais alijado do jogo político no país. Virei umpetista circunstancial, mesmo porque aquelapatuscada no Faustão formou uma espécie de elometafísico com o partido.

Na minha sanha contra o Collor, em meio a sua

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enorme popularidade, tive a ideia luminosa decompor uma música em sua homenagem, e, juntocom meu então parceiro Tavinho Paes, cometemos“Presidente mauricinho”... Talvez em virtude dainadequação da época em que foi lançada, obteveum retumbante fracasso comercial e absoluta faltade empatia popular. Mas a letra eu vou colocaraqui para elucidar uma história trajocosa que logoem seguida contarei:

O presidente sai de moto

Pelo eixão monumental

O presidente anda a mil

No país do carnaval

O presidente tira fotos

Com um índio no palácio

O presidente sai com o papa

E sua corte é um esculacho

O presidente tá no Polo Sul

Tá jogando com a seleção

O presidente de avião a jato

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Dá mais bandeira que doidão

O presidente casou com uma gata

Dispensou e casou com outra

A gata era milionária

Não ligou e deu a maior força

Aí... aí... aí, ô, jet ski...

O presidente é um lorde inglês

Sonhando com o Primeiro Mundo

Ser presidente até que é um bom emprego

Num país de vagabundos

Já foi marca de cigarros

De conhaque e de cachaça

O presidente é a maior palha

E ainda vai virar fumaça,

Aí… aí... aí, ô, jet ski!

Babaca! Ba-ba-ca! Sai daí, seu BA-BA-CA!

Pois bem, estávamos em plena campanha para aprefeitura de São Paulo em 1992, e o candidato doPT era o nosso doce e querido Eduardo Suplicy,figura por quem tenho o maior carinho. Como não

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seria difícil de imaginar, fui convocado para daruma palinha num grande comício que seriarealizado no Vale do Anhangabaú com a presençade mais de trezentas mil pessoas. Cheguei ao localde violão em punho e um assistente de campanhame sugeriu uma apresentação ao lado do Olodum,que já estava no palco em possante performance,quando tive um estalo: vou tocar “Presidentemauricinho” em ritmo de reggae!

Fui chamado ao palco e, sem transição, fiz umapequena preleção com a galera do Olodumexplicando como seria nossa apresentação: bastavaque eles tocassem reto aquele ritmo cadente,característico do grupo, e eu inseriria a minhacanção no groove deles.

E não é que ficou joia? Caiu como uma luva! Derepente lá estava eu cantando “Aí, tum tumpratirum dum, aí, ô, jet ski!” cheio de suingue,virado praticamente numa entidade baiânica, como nosso simpático e animado candidato sentado à

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direita do palco batendo os pés acompanhando oritmo.

A plateia começou a cantar, receio que semmuita convicção do que a canção poderia retratar,mas o ritmo era epidêmico, o refrão, jocoso,animação geral, quando um dos assistentes,suponho eu, aparentando estar possuído por umadaquelas ideias brilhantes do gênero “vamosaproveitar o delírio popular”, sussurrou algumacoisa na orelha do candidato que, célere, selevantou sorridente, saltitante, sambante e,acompanhando a levada do Olodum, caminhouimpávido na minha direção. A plateia ululava,tambores trovejavam seus graves por todo o Valedo Anhangabaú e eu cantei a parte da letra quedizia “Babaca! Ba-ba-ca!”. Ele visivelmente seassustou, seu semblante escureceu... Eu, inocente,o observei surpreendido, entretanto prosseguiresoluto: “Sai daí, seu BA-BA-CA!!!!!!” O pobre, deimediato, encolheu os ombros, esticou os braços

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espalmando as mãos numa mímica tipo não queroincomodar, imaginando imerecidamente umainadequada carapuça a lhe cair, que o impropérioda letra, sabe-se lá Deus por quê, dirigia-se a suapessoa, fez um giro de 180 graus e, resignado, saiude fininho como um garoto flagrado roubando docena geladeira!

A apresentação murchou instantaneamente comum “ohhhhhhhh!” coletivo, que ninguém queriaadmitir ouvir, o ar exalava a perplexidade da perdapor toda a extensão do Vale do Anhangabaú e eumatutei: pronto, agora a vaca foi pro brejo.

Mas foi na campanha de 2002 que eu mais meembrenhei pela eleição do maior número decandidatos do PT, em virtude da minha outracampanha, pela numeração de CDs. Toquei emquase todos os recantos do país. A lei foi sugeridapela deputada federal Tania Soares (que entrara navaga de Marcelo Déda, de Sergipe), e com a

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amizade que desenvolvemos estava mais próximoque nunca do PT, muito embora ela fosse filiadaao PCdoB.

Estava tão dentro do partido que acabei portornar meu advogado o Luiz Eduardo Greenhalg,ou seja, frequentava o chamado núcleo duro doPT.

Já havia participado de dois Fóruns Mundiais,sendo que num eu toquei para mais de cinquentamil pessoas e no outro fiz uma palestra sobre ojabá e a censura através do poder econômico.Também fiz uma ponta para o Fantástico, comorepórter por um dia, numa matéria sobre as rádioscomunitárias, assunto em que acabei virandoexpert e militante, e quase fui linchado junto coma equipe da Globo por um grupo de estudantes quevendia camisetas do Che a preços escorchantes.

Nesse meio-tempo, virei membro honorário doMST e participei de algumas ações, como visitarcompanheiros presos numa penitenciária no

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interior de São Paulo por, simplesmente,vandalizarem cabines de pedágio, frequentei umcurso de férias na Unicamp, recebendo um kit comprodutos feitos pelos membros da entidade.Assistia com entusiasmada resignação aencenações do Teatro do Oprimido.

Adorava passear pela orla de Ipanema com acamisa do MST.

Todavia, o encontro mais emblemático que tivefoi com o então candidato Lula no diretóriocentral, em São Paulo, na campanha presidencialde 2002, ao lado do Zé Dirceu, do Mercadante e deoutras figuras impolutas do partido, quandoiniciamos uma conversa numa sala reservada,onde eu disse, meio embaraçado, que endossariasua campanha caso ele se propusesse a continuar oprocesso de numeração dos CDs (na verdade,teríamos a lei promulgada ainda no governo FHC)e um programa que tivesse a educação como foco

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central, a exemplo da Coreia do Sul, para que emdez anos estivéssemos em condições de exportarcientistas para o mundo. Lula me explicou serexatamente isso que iria implementar, que aeducação era o foco principal de seu programa degoverno etc. e tal, quando acontece um inusitado econstrangedor apagão que durou uns vinteminutos! Alguns pigarros, fósforos riscados, aquelafalta de assunto...

Minha mulher, Regina, que estava a meu lado otempo todo, com aquela percepção cruel que só asmulheres possuem, me sussurrou logo que a luzvoltou: esse cara que está ao lado do Lula (no caso,o Zé Dirceu) deve tomar uns antidepressivos, temuma salivinha branca nos cantos da boca. E sabe oque mais? Esse Lula é um tremendo picareta. Todomentiroso olha para cima quando mente, vocêreparou que ele só olhava pra cima até a luzapagar? Pode escrever: desse mato não saicachorro.

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Ainda me considerava um crédulo militante dopartido, mesmo quando Lula convocou o GilbertoGil para o Ministério da Cultura, me deixando emestado de choque por alguns dias. Na verdade, coma minha frágil formação política, eu nunca pudeaventar a possibilidade de apoiar comunistas! Fatoque vim a perceber muito recentemente e, porisso, me senti na obrigação moral de escrever umcapítulo dedicado a exibir a minha intensaimbecilidade.

O primeiro estágio do meu desligamento foi aperplexidade e a indignação com a abundância detrambiques monumentais, e o segundo foi saberque são trambiques por uma causa, para eles,nobre. A impressão que o PT passava de ética, dehonestidade, de um partido diferenciado dosoutros, de tantos artistas e intelectuais bacanasenvolvidos, só poderia ser uma coisa positiva. Nãopoderia passar pela minha cabeça que estava

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lidando com um monte de sectários firmementeengajados em restaurar o comunismo em toda aAmérica do Sul! E quando soube que o Foro deSão Paulo foi fundado em 1991 pelo Lula e peloFidel Castro, me senti um retardado que fincou opé em acreditar em Papai Noel para sempre, umabesta quadrada, um imbecil passivo, um idiota útildurante esses anos todos, me dando ao luxo de teresse desleixo ontológico, a posar de progressistano meio de uma turma que nunca foi nem será aminha.

E lá pelos idos de 2004, apesar de tantasamizades e camaradagem conquistadas, pulei fora.

Da indignação veio a curiosidade: por que essescaras roubam tanto com essa pinta de salvadoresda pátria? Há alguma coisa que os difere de umSeverino Cavalcanti, de um Renan Calheiros, deum Sarney, de um Maluf, muito embora sejamtodos aliados ferrenhos? E como estava lá dentro,percebia uma improvável filtragem por parte da

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mídia que eu, até então, considerava inimiga doPT.

A partir de um determinado momento, umaatmosfera de militância, controle e nacionalismochauvinista entra em cena. Na música, a MPB éressuscitada através de subterfúgios postiços,novos elementos aparecem como sombrasesquálidas dos velhos mestres, a grife“universitário” explode em todo o paísproporcionando uma das piores manifestaçõesmusicais de todos os tempos.

As falcatruas mais escabrosas são expostas semque haja algum tipo consistente de protesto, muitopelo contrário, os índices de aprovação ao governosó aumentam.

Parti do princípio de que um governo deesquerda, com índices de corrupção jamais obtidosna História de um país dos mais corruptos, com

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uma educação de resultados lamentáveis,assistencialismo em todas as áreas e, ao mesmotempo, um orgulho, uma jactância, umaindulgência para com o autoengano de proporçõesalarmantes, só poderia se basear na ode àprecariedade, ao mau-caratismo, à paralisia, ao“joão sem bracismo” macunaímico.

E nada nos explica melhor do que essescânones.

Não possuímos melhor álibi: através do pior,nos convencemos ser os melhores. Ninguém emoutra parte do globo teve a cara de pau de edificaruma tese na qual o menos gabaritado, o maisincapaz, é eleito de forma triunfal como um serdivinizado por sua absoluta falta de condição decompetir com outras culturas, por sua displicenteausência de mérito. Tudo aqui é distribuição. Nadase conquista.

Como explicar essa leniência com as atrocidadesem Cuba? Como explicar o horror do governo pela

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ditadura militar apoiando tantas outras muito maissanguinolentas? A justiça é coisa de burguês e nóstemos a vingança como justiça deles e um direitosonâmbulo para os aliados.

Tenho plena consciência de que tomar umaposição antiesquerda sendo um músico, em plenoBrasil, é uma atitude no mínimo imprudente,quando não suicida, devido à intensidade etruculência da patrulha. Mas querem saber de umacoisa? Foda-se a patrulha.

Uma sociedade que não prioriza o indivíduo estáfadada a colecionar um bando de frouxos, pois ofrouxo unido jamais será indivíduo.

Somos obrigados a admitir que estamos lidandocom sociopatas que não possuem o menor sensode autocrítica e anseiam por aniquilar aconvivência com oposições e qualquer tipo deadversário. Testemunhar esses absurdos em

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desfile e permanecer imune a qualquer autocríticaé uma prova definitiva de imbecilidade eterna,portanto prefiro ser uma humilde besta quadradaassumida, ainda com alguma chance de me tornaruma criatura melhor, a ser um imbecil eterno.

P.S.: E agora não me venham mais comcobrança de coerência histórica.

Uma pequena introdução ao próximocapítulo:

No próximo capítulo, vou fazer uma invasão aoManifesto antropófago do Oswald de Andrade. Vocêspoderiam me perguntar: mas por quê? Mas porquê?

E eu respondo.

Desde que fui introduzido no movimento daSemana de 1922 na escola, nunca consegui meidentificar com aqueles conceitos de primitivismo,

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precariedade, preguiça, mau-caratismo, exotismo,antropofagia. Pensei que minha antipatia fosseadvinda do fato de ser matéria de moral e cívica,uma aula que achava cafona e pouco genuína(estávamos em 1972 e o governo Médicitransformou o cinquentenário do movimento numacontecimento onipresente em toda a vidanacional), mas fui percebendo que era algo maisprofundo do que isso.

Pois bem, essa sensação pelo menos me moveua dar um mergulho nas obras mais representativasdo movimento para justamente decifrar o queestava faltando para, enfim, me render aos seustão unânimes, consagrados e assimiladosconceitos, que acabaram por se tornar nossa maisgenuína representação de caráter, de arte e deidentidade.

Eles podem não ter me emocionado da maneiraque sempre esperei me emocionar, mas, aomenos, me inspiraram um insight bastante

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interessante, que seria a mola propulsora destelivro: por que não conseguimos nos livrar dessesconceitos tão sem propósito, sedimentados nanossa alma, sacralizados em todas essas décadas?

Esse manifesto, publicado em 1928, acabouvirando uma das pedras fundamentais do nossopensamento e da nossa estética. E depois de sercoadjuvante do icônico Macunaíma, a partir dosanos 1960 tornou-se onipresente na cultura e nocomportamento dos brasileiros.

Tenho certeza de que não iria perder o meutempo gratuitamente — no duro trabalho que deupara, antes de tudo, ler grande parte da obra e davida do Oswald e, logo em seguida, dissecar,decifrar, pesquisar, ler, reler, tresler todo o seuantológico e enigmático manifesto na íntegra — seessa peça da literatura tupiniquim (olha omanifesto aí) não tivesse uma presençaincontestável na nossa maneira de viver, de

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pensar, de comer, de falar, de escrever e de seenxergar (ou não).

Esse manifesto nasceu no bojo do movimentohomônimo criado por Oswald, junto com RaulBopp e Alcântara Machado, e teve a participação deilustres nomes da nossa poesia, literatura,jornalismo e artes plásticas. Foi inspirado nosManifestos do surrealismo (André Breton, mesmo como Oswald detratando o dito-cujo), no Manifestocomunista (Karl Marx e Friedrich Engels), noManifeste cannibale (Francis Picabia), na descobertado inconsciente e a teoria do totem/tabu (Freud),na questão do bom selvagem elaborada porfilósofos franceses (Rousseau e Montaigne) e nateoria da barbárie tecnicizada (HermannKeyserling).

Tinha como roteiro (Oswald amava roteiros)fazer renascer o primitivismo, os valoresindígenas, o comunismo primevo, o matriarcado, ainocência do selvagem e a liberação dos instintos

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(mais) primitivos. Muitos conceitos na Europaforam devidamente “antropofagizados” pelomovimento, que sempre relutou em produzir“macaquices”.

Quero ressaltar que acho a cultura indígenariquíssima e que a considero parte integrante danossa civilização. O ponto em questão é quererincorporar um índio idealizado (e alienígena àformação dos nossos intelectuais, assim como àmaioria da nossa sociedade) como sendo o “Bem”para reagir contra a cultura europeia (a do homembranco), o “Mal”.

Contudo, o modernismo, com o intuito dequebrar todas as regras vigentes, romper com oacademicismo da época e com a culturalusitana/europeia, terminou por se fixar como adoutrina dominante e, desde então, passou a sernossa cartilha de catequese, a nossa novaortodoxia acadêmica, que vigora com mão de ferro

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até os dias de hoje. Seus conceitos estão presentes,incrustados no nosso imaginário coletivo, no nossocaráter, na nossa cultura, na nossa vida, sem amenor resistência, sem o menor constrangimento,sem sequer o mínimo questionamento, quandonão com um absoluto e incondicional fervorreligioso por esse acontecimento que marca nossahistória e nossa psique de forma indelével.

Algumas vozes se insurgiram, ainda queprevalecesse uma observação de viés ideológico(seus maiores críticos, quase sempre mais àesquerda, acreditavam ser um movimentoaburguesado, imitativo, superficial), mas foramsempre contestadas e caladas. Portanto, até agoranão houve um grupo representativo de criaturasque se propusesse a engendrar uma nova estética,uma nova maneira de ser, livre dessa invariânciacontínua.

Enfim, nós, de forma um tanto anacrônica,ainda estamos a viver esses conceitos. E podemos

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afirmar sem a menor sombra de dúvida que oManifesto antropófago é uma das suas fontes maispossantes, lado a lado com o romance do Mário deAndrade, o não menos antológico Macunaíma (oherói sem nenhum caráter), também publicado em1928, que, por sinal, foi escrito a título de troça danossa malandragem e da nossa indolência, masacabou sendo seguido rigorosamente ao pé da letrapor nossos intelectuais pósteros, quando inseridoem nosso imaginário, sacramentando a nossaíndole.

É muito interessante perceber que oconcretismo, a literatura e o teatro brasileiros, aMPB, a Tropicália, o jornalismo, a sociologia, oCinema Novo, as artes plásticas, a política, asrelações entre as pessoas repetiram e repetem,levando tudo muito a sério, os motes dessemanifesto: o nacionalismo como roteiro, aprecariedade como bandeira, a preguiça como

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virtude, a ausência de caráter como esperteza, asfrases evasivas como estilo, a antropofagia comovingança caraíba da Pátria em relação ao mundocivilizado e também como desculpa para sepermitir copiar as ideias de outras culturas e sairpor cima, cozinhando um inimigo comestível comoálibi.

Tentarei, nessas próximas páginas, da maneiramais clara e agradável possível, criar uma espéciede diálogo, conversando com o Oswald (que é umafiguraça interessantíssima e por quem acabeinutrindo o maior carinho e admiração) e seuManifesto para, assim, tentar entender alguma coisado que se passava na cabeça do cacique-mor domovimento, seu contexto histórico e suasreverberações nos dias atuais, e decifrar suapersonalidade brilhante, sua genialidade, sualinguagem cifrada, suas piadas, seus arroubosproféticos, seu ufanismo histriônico e seusparadoxos.

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Questionarei por que intelectuais, artistas,escritores, cineastas, de uma forma ou de outra,vêm seguindo todos esses fundamentosesquisitíssimos e, aparentemente, imutáveis. Porque nossa sociedade engoliu e continua engolindoessa história toda?

Enfim, tentarei, de fato, entender por que agente é assim.

Ao final do texto, haverá um glossário paraelucidar alguns termos e personagens que nãoforam objetivamente abordados ou podem terficado obscuros para a compreensão do leitor.

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CAPÍTULO 8

A UTOPIA ANTROPOFÁGICAREVISITADA

— Carta aberta de Lobão aOswald de Andrade

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Meu querido Oswald, lendo mesmerizado o seupoderoso Manifesto antropófago, me flagreiescrevinhando freneticamente nos espaços do livrouma série de perguntas e algumas discordânciasque acabaram por se transformar nessa carta,portanto, achei de bom alvitre colocá-las na ordemdo próprio Manifesto para que você possa ter umaideia das minhas dúvidas, do meu afeto, da minhaatenção, respeito e ocasionais divergências. Sendoassim, para começar, eu gostaria muito de saber:por que cargas-d’água você define que “Só aANTROPOFAGIA nos une.

Socialmente. Economicamente.Filosoficamente”?

Por quê? Por quê? Me perdoe, querido Oswald,ao mesmo tempo que só a antropofagia nos une nanossa miséria social, econômica, filosófica, moral,

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política, cultural, ela nos aparta de todas aspossibilidades de crescimento vindas de nósmesmos e do resto do mundo.

Esse imperativo antropofágico não passa de umadesculpa esfarrapada a encobrir um clamorrecalcado de um nacionalismo reativo. Ocanibalismo, como signo de deglutição crítica dooutro, simplesmente nos amputará o própriosentido crítico.

A antropofagia só nos uniu em torno de umressentimento soberbo, sonso e velado.

Nos decretar antropófagos é uma maneira umtanto imbecil de ser brasileiro, uma afirmação quenos conduz a perpetuar a permanência de toda anossa precariedade nacional, abdicando dequalquer preocupação em organizar uma sociedadeque realmente funcione.

E quanto a... “Única lei do mundo. Expressão

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mascarada de todos os individualismos, de todosos coletivismos. De todas as religiões. De todos ostratados de paz...”

Única lei do mundo. Só isso?

Será que vamos passar toda a nossa existênciaalimentando nossa alma de um ressentimentoinerme, mascarado por uma comunhão pseudo-onipotente e sacralizada de alegria, Carnaval ecinismo, como desforra?

Você não pode imaginar quantos idiotas dosmais variados sexos bradarão, inflados de paixãotelúrica: “Tupi or not tupi, that is the question.”

Só que, Tupi or not tupi, unfortunately, hasnothing to do with the question, Oswald.

E aqui começa uma ladainha dos “contra”:Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos

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Gracos.

E a sua catequese? Ela é forte, pesada. O quefarão dela?

Contra a mãe dos Gracos? Contra a moral e avirtude, atributos greco-romanos que elasimboliza? Essa falta de moral, de ética, essaausência de anseio por virtude serão nossa marcaregistrada perante nós mesmos e o mundo. Piorpara nós.

Oswald, receio te contar que essa deploráveldeclaração, totalmente incompatível com suaíndole gentil... “Só me interessa o que não é meu.Lei do homem. Lei do antropófago”, chancelaráalmas pósteras que desfrutarão, sem pestanejar,desse achado despropositado e deselegante,repletas de uma iluminação inadequadíssima.

Não seria mais interessante, mais simples, maisgeneroso e mais eficaz pensar: Só me interessa o

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que posso Ser, pois, se a priori não me interessa oque é meu, parte do que sou, como posso vir a seralguém em sua plenitude através de um clamorsecundário do que não tenho, almejando algo deoutro alguém?

Tenho certeza de que se você estivesse por aquinos dias de hoje não escolheria afirmar que...“Estamos fatigados de todos os maridos católicossuspeitosos postos em drama. Freud acabou com oenigma mulher e com os sustos da psicologiaimpressa...”

Só para atualizá-lo, o dr. Freud nunca conseguiudecifrar o enigma mulher. Nem ele, nem ninguém,e para piorar a situação, sua tese do inconscientevirou peça de museu.

A reação inflamada dos ofendidos utilizará dasformas mais vis e obtusas sentenças como... “Oque atropelava a verdade era a roupa, o

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impermeável entre o mundo interior e o mundoexterior. A reação contra o homem vestido. Ocinema americano informará.”

Sinto te dizer que o que atropela a verdade éoutra verdade vestida de certeza absoluta, vestidade única lei do mundo, Oswald, pois a certeza dacerteza faz o louco gritar. E como tem loucogritando certezas irreversíveis por aí.

E ficar pelado por ficar pelado não adianta; setornou, ultimamente, uma prática um tantobanalizada. Hoje em dia, por qualquer coisinha ascriaturas tiram a roupa e saem por aí balançandoseus penduricalhos íntimos a protestar.

E essa brasilidade fake, afetada, aflita edesprovida de paralaxe? “Filhos do sol, mãe dosviventes. Encontrados e amados ferozmente, comtoda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados,pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra

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grande...”

Hipocrisia da saudade é aquela que você tem dasua Oca de faz de conta, da sua Taba pra francêsaplaudir na Sorbonne.

Amigo Oswald, a saudade é de um vazio deconcreto armado, palpável, onde a solidãoreverbera o eco infinito da nossa alma. Por quealmejar ser amado com toda a hipocrisia dasaudade? Saudade é coisa séria.

Quer saber de uma frase que ecoará através dostempos como um vaticínio sombrio de um profetaque mirou no que viu e acertou no que não viu?Essa aqui: “Foi porque nunca tivemos gramáticasnem coleções de velhos vegetais. E nuncasoubemos o que era urbano, suburbano,fronteiriço e continental.

Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Umaconsciência participante, uma rítmica religiosa.”

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Você tem razão, nossa gramática, geografia,matemática, leitura estão caindo aos pedaços.Somos um dos piores do mundo.

Consciência participante é um clichê queenvaidece os preguiçosos no mapa-múndi do Brasile os atola na ideologia da indolência, umverdadeiro botox da funcionalidade: por umavaidade improvável, tudo se paralisa em nome dapreguiça e só temos como resultado uma pioraconsiderável na face combalida da realidade.

Consciência participante, só se for paracombinar de sair em micareta ou lincharadversários ideológicos, e a rítmica religiosa querola nos dias de hoje, Oswald, é aterrorizante,deprimente, pode acreditar. O que tem de picaretamilionário fundando novas religiões e explorandoa ignorância e a miséria alheias... ou religiososhonestos sendo defenestrados por fanáticos ateus.

E enxergar o Brasil como um mapa-múndidentro do mundo só auxiliou o isolamento

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umbigocêntrico em que nos encontramos.

E uma sentença exclusora e xenófoba como:“Contra todos os importadores de consciênciaenlatada. A existência palpável da vida. E amentalidade pré-lógica para o sr. Lévy-Bruhlestudar”, cairá como uma luva nos corações ementes dos recalcados e dos impotentes dos diasatuais.

Você está importando uma consciência que nãoé sua, de um mundo fora de você, querendo forçara barra de se colocar como um índio imaginário,intocado pela civilização, num processo deesquartejamento da própria alma, do seu próprioEu.

Essa preocupação em condenar importação eexportação de coisas abstratas como arte, poesia,consciência (mesmo enlatada) me assusta.Teremos como filhote dessa mentalidade o

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conceito de proteção de mercado, ointervencionismo estatal. Esse tipo de conceitogerará uma famigerada xenofobia, que arbitrará afavor de “coisas nossas”, o que são e o que não são“coisas nossas” e que, simplesmente, noscondenará à mediocridade eterna.

Copiamos tudo fingindo que somos os reis dacocada preta, tirando essa onda furada de canibale, por isso mesmo, não nos enturmamos nunca, járeparou?

No século XXI, haverá um sem-número decriaturas adotando sobrenomes indígenas emprotestos duvidosos contra a vilania do homembranco, numa manifestação triste de piedadepreconceituosa.

Sim, pois acreditamos que o indígena é umaalma primitiva “do Bem” e, pela lei, inimputável!,enquanto o homem branco, um espertalhãoaproveitador “do Mal”, sempre explora ossilvícolas imaculados.

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Quanto ao que você quis dizer a respeito daexistência palpável da vida, sinceramente, atéagora, depois de ler e reler o parágrafo algumasdezenas de vezes, eu te confesso humilde que nãoconsegui entender se você é a favor ou contra a talenigmática existência palpável da vida.

E na questão da mentalidade pré-lógica, intuoque você tentou sutilmente exibir ao leitor algumacoisa como única, primeva, inigualável, umamentalidade pré-lógica tupi prevalecendo soberanasobre toda a civilização ocidental, para esfregar nacara de um sr. Lévy-Bruhl (um especialista emmente primitiva) varado de admiraçãoantropológica, uma nova hegemonia planetáriaconquistada através de uma magia pindorâmica aesmagar todo o conhecimento ortodoxo racionaldo Ocidente. Seria isso? Ou não?

Tenho que admitir a você minha admiração peloseu possante topete em elaborar algo como...

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“Queremos a Revolução Caraíba. Maior que aRevolução Francesa. A unificação de todas asrevoltas eficazes na direção do homem. Sem nós aEuropa não teria sequer a sua pobre declaraçãodos direitos do homem”, flagrado numa ampla etotal falta de desconfiômetro! “Sem nós, a Europanão teria sua pobre declaração dos direitos dohomem” é demais, Oswald!

Revoltas eficazes? Depende do que você entendepor eficazes. Mais eficaz que a Revolução Russa eos seus massacres de dezenas de milhões dejudeus, ciganos, homossexuais e não simpatizantesdo regime? Dos seus infames gulags?

Maior que a Revolução Francesa e seusRobespierres de plantão, bradando “liberté, égalité,fraternité” e executando sumariamente milharesde pessoas com suas decapitações voluptuosas,isso tudo para desaguar de forma patética numsangrento Império napoleônico?

Será que, no fundo, você quer mesmo é

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competir com a França, na posição de fã, usandoexatamente os conceitos criados por eles, e fazquestão de nos enxergar dessa maneira ridícula efantasiosa, em especial, por conveniência?

Pensa bem, reagir aos males da culturaeuropeia, repudiar tudo o que o homem brancofaz, insistindo em reinventar um ser exótico, naïf,primitivo, canibal, nos deixará sempre naretaguarda do mundo, vulneráveis, subjugáveis,apartados, e você entrou no jogo direitinho, comoum aluno que vai entregar a maçã ao professor.

Será que, no fundo, você não está doido poruma aprovação de seus heróis, lá do outro lado doAtlântico, ávido por um beneplácito da matriz?Reverberante de um exacerbado entusiasmo porRousseau e seu homem natural? Um fiel seguidorda visão de Montaigne, do selvagem puro, de ararano ombro, a acreditar que comer o outro seriamenos cruel do que torturar e estraçalhar o corpohumano vivo “sob o pretexto de piedade e

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religião”?

Será que você não juntou toda essa informaçãona sua cabecinha e pariu um samba do pajézureta?

Por isso a sua aversão à cópia. Pois, de formaum tanto (me perdoe pelo termo) desonesta,reativa, ornamental, oblíqua e insegura de simesmo, você, dando uma de joão sem braço,emulando uma antropofagização canastrona,simplesmente copia tudo, Oswald.

O que, em outro tipo de circunstância, com umoutro tipo de posicionamento, quem sabe umpouco mais humilde, honesto, preciso e generoso,com uma autoestima mais desenvolvida, seria algomuito natural, louvável e inteligente.

Afinal de contas, é através da mimese que ahumanidade amplificou e continua amplificandotodo o seu conhecimento. Com a vantagem de nãoprecisar comer ninguém. Uma maneira meio

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obtusa de querer ser moderno, não acha?

Aliás, é assim que funciona todo o seureceituário: colocar um cocar/álibi de camuflagemna cabeça como salvo-conduto de acesso aosmovimentos europeus do seu tempo e de outrostambém, convicto de que sua cenográficaoriginalidade o tornará genuíno, imune ao pasticheatravés de sua deglutição sacralizada e cabotina.Um raciocínio típico de malandro-agulha, queadora dar uma espetada, mas acaba sempretomando no buraco. Lamento te informar, caroamigo, que a sua estrambólica Revolução Caraíbanão passa duma declaração de amor às avessasproferida por um antropófago francófilo.

E “A idade de ouro anunciada pela América. Aidade de ouro. E todas as girls”?

E como usufruir dessa idade de ouro anunciada?Como “importar” alguma tecnicidade para seu

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bárbaro vacante de iniciativa empreendedora?Pegando carona em seu progresso através de umaincrível pajelança e da magia do ziriguidum? Etodas as girls, de preferência, na sua garçonnière.

Em um átimo filosobólico/poético,você nãoestaria a arquitetar uma Pindorama francófila aoproferir que a “Filiação. O contato com o BrasilCaraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. Ohomem natural. Rousseau. Da Revolução Francesaao Romantismo, à Revolução Bolchevista, àRevolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado deKeyserling. Caminhamos”?

Não sei, não, mas nem sempre as síntesesacabam funcionando, Oswald. A síntese é boaquando auxilia o entendimento, englobando osignificado de várias coisas, o que não édefinitivamente o caso. O contato com o BrasilCaraíba, amigo, posso te afirmar, nem no terreirodo cacique Pena Branca.

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E como diria o próprio Keyserling: “Não se podeconseguir nenhum progresso verdadeiro querendofacilitar as coisas.” E é justamente o que maisacontece por aqui.

E para te dar uma dica bacana, um bárbarotecnicizado, pra mim, é um cara tocandoroquenrou, amigo, e no volume onze!

Será que, com esse tipo de frase de efeito com aqual você está prestes a nos brindar em seguida,acabaremos por experimentar e potencializar onosso naufrágio moral e existencial, num desfilede cacoetes de vaidade desprovidos da menorrazoabilidade ou merecimento?... “Nunca fomoscatequizados. Vivemos através de um direitosonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ouem Belém do Pará.”

E eu te respondo: Fomos, sim, Oswald. E como.Não tape o sol com essa peneira furada, irmão.

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Pois é com essa sua entusiasmada negligênciapatriótica que, sem perceber as catequesesescancaradas, viemos a parir monstruosidadesreligiosas, prenhes de farsantes, reacionários epicaretas.

Quanto ao direito, sim, temos um direitorealmente sonâmbulo. Julga dormindo, e aodespertar profere “Esperemos o acórdão. Julguei,mas não fui eu!”, para acabar absolvendo aqueleque se defende com o clássico “Não sabia de nada!Peidei, mas não fui eu!”.

Direito sonâmbulo, lerdo, injusto e cínico.

E o desastre em vislumbrar com um desatentodeleite que “nunca admitimos o nascimento dalógica entre nós”?

Tanto pior para nós. Por isso a falta dehonestidade e clareza em nossos arbítrios eargumentações. Só com delírio não chegaremos a

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lugar algum.

Seria chique dizer: “Contra o padre Vieira.Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganharcomissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha issono papel, mas sem muita lábia”?

Coitado do padre Vieira, Oswald, você e sualusofobia que nos apartará de Portugal por ser...reacionário escrever de “forma culta” o português.

Teimaremos em escrever a “língua do povo”,esquecendo que esse povo não lê absolutamentenada. Renegaremos a cultura europeia, seus poetase seus romancistas, seus filósofos, seus cientistas,patrocinando um atraso de mais de quarenta anosem relação ao mundo civilizado...

Mas, se assim você o sentencia, será ele, nossoglorioso padre Antônio Vieira, o pole position entremilhões de prevaricadores, amigo. O Brasil sefirmará como o país do jabá, da propina, do

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mensalão, do caixa 2, da festa com o dinheiropúblico. Viveremos numa cleptocracia. E com umdos impostos mais escorchantes do mundo. E semretorno algum. Tudo isso escancarado, explícito,na nossa cara! E nós?

Nós continuaremos a rebolar sorrindo, alegres,do jeito que você acha bacana. Nada anda por aquisem um dinheirinho por debaixo do pano ou pordentro da cueca, irmão. Com essa obsessãomórbida de se apartar da cultura portuguesa eeuropeia, você fala como se fosse um cacique deverdade, um Oswald Guarani-Kaiowá de Andrade,vislumbrando altaneiro os horizontes varonis deuma pátria que, em sua triste atualidade de séculoXXI, está completamente falida de caráter, desaúde, de educação e de infraestrutura. Noentanto, você aí, em meados do século XX, estámais para um índio de butique, para um guricriado pela avó, de penacho Chanel em riste,fazendo manha para ser levado à matinê do baile

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de Carnaval do Clube Pinheiros.

Por pura culpa, se investe do que considera sersua própria vítima, idealizando-a, encarnando-a,incorporando-a, canibalizando-a.

Você não está comendo bispos Sardinhas aoluar, Oswald. Você está simplesmentevampirizando uma realidade alienígena,falsificando seu verdadeiro Ser.

E o lampejo prototropicalista de que “Sópodemos atender ao mundo orecular”?

E por que não atender ao mundo com todos ossentidos?

Então oremos por toda a nossa misériaimagética de nós mesmos. Fixada como dogmairrevogável e sacralizado, por séculos e séculos,amém. E ai de quem piar contra.

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É terrível constatar que a cretinice endêmica decentenas de milhares de antas por metro quadradoexplodirá de rancor apaixonado quando vierem abradar repletos de pequenez subdesenvolvida esseseu desatino romântico, de que... “Tínhamos ajustiça codificação da vingança. A ciênciacodificação da Magia. Antropofagia. Atransformação permanente do Tabu em totem.”

E você acha bonito imaginar ou conceber umajustiça codificada em vingança? A herança dessaexcentricidade retórica nos cobrará muitosdesastres.

A magia codificada da ciência é a de coçarritualisticamente o saco ignorando o resto domundo, nos hipnotizando, nos induzindo aalimentar essa manifestação patética denacionalismo chauvinista subscrita pelapropaganda oficial e pela ideologia do governo.

Tabu em totem seria uma heráldica retrô narepresentação do tabu? Realmente, é um conceito

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fundamental para a dinâmica da nossa paralisia.

Olha, é duro ter que te dizer isso, mas, paraquem almeja arquitetar uma nova potênciacultural no cenário do mapa-múndi, gastar seuprecioso tempo imaginando obsessivamente tabus,totens e caldeirões repletos de inimigos sagrados edevidamente cozidos, me perdoe, Oswald, é, nomínimo, lastimável.

Com essa lenga-lenga, até este exato momentojamais ganhamos um Nobel de Literatura ou dequalquer outra disciplina.

E o mais grave disso tudo é que esse festival derevanches conceituais vai fazer brotar um númeroassustador de antas, cavalgaduras e picaretasformidáveis nas nossas hostes de artistas, poetas,estudantes e intelectuais, que o seguirãofervorosamente, sem o menor questionamento,sem um pingo sequer de desconforto ouconstrangimento dessas barbaridades.

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Todo o nosso imaginário ficará infestado poressa lambança ontológica até os dias de hoje,querido amigo.

A essa altura do Manifesto, nós constatamosoutra sentença reativa, paralisante e piegas dotipo: “Contra o mundo reversível e as ideiasobjetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamentoque é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema.Fonte das injustiças clássicas. Das injustiçasromânticas.

E o esquecimento das conquistas interiores.”

E você acha inteligente ansiar por um mundoirreversível?

Contra os idiotas da objetividade, tudo bem,mas ideias objetivadas, em si, podem formarplanos, metas, fazer a gente começar a crescer eandar com as próprias pernas, tornar os roteirosviáveis, factíveis, concretos.

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Vítima do sistema: aí está uma pieguiceautocomiserada que se tornou o nosso modusinoperandi.

Quanto ao restante do que você pretendeu dizer,ou não, irá desembestar uma gama de sujeitos afalar e a escrever igualzinho a você e um sem-número de toupeiras a aplaudir, dissimulandoentender algo que possui muito pouco a serentendido.

E ansiar por “Roteiros. Roteiros. Roteiros.Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros”?

— E depois?

E o que dizer de... “O instinto Caraíba”?

— Instinto Caraíba de quem, cara-pálida? (Meperdoe a infame piada.)

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Oswald, essa aqui tem uma pegada que ostropicalistas irão morrer de inveja! “Morte e vidadas hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos aoaxioma Cosmos parte do eu. Subsistência.Conhecimento. Antropofagia.” É de umacosmicidade luminescente!

Subsistência é forte... não seria melhor almejara superexistência?

Não deve ser muito confortável nem, muitomenos, confiável lidar com uma nação que tem aantropofagia como símbolo de suacultura/civilização, não acha? Deve serinteressante imaginar as relações internacionais deuma diplomacia de antropófagos com o resto domundo...

Não sei, não, já que você gosta tanto desínteses, frases soltas, mais parecendo riffs, do tipodessas: “Morte e vida das hipóteses...”, “Daequação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos partedo eu”, acho que você se tornaria mais claro e

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menos pedante fazendo um bom roquenrou, que ésíntese pura.

Tenho certeza de que, depois dessa experiência,você iria querer jogar essa baboseira pernósticatoda fora, Oswald. Isso faz mal à saúde mental efísica.

Tu tens verve, sangue no olho e calor nocoração. Está mais do que na cara que, por trásdesse histrião iracundo, és um homem cheio debondade, uma doce criatura, um delicado, umgozador, um meigo. Agora só falta começar apensar com mais clareza, menos rancor e menospresepada retórica de significado duvidoso. Deixeisso para seus fiéis e crédulos seguidores, queesses não têm lá muito jeito mesmo...

E lá vamos nós embarcando em mais um...contra! “Contra as elites vegetais. Emcomunicação com o solo”...

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Elite vegetal, nos dias de hoje, Oswald, estámais para o Greenpeace e para o PV. Rola umaclorofilocracia bem próxima a um fascismo verdeem todos os quadrantes do mundo.

Elites vegetais, no seu caso, são elites quebuscam se basear na cultura europeia. Esse tipo desentimento originará o tal do multiculturalismo,que é uma espécie de compartimentação dacultura, impossibilitando a troca entre elas. Esseumbigocentrismo excludente, que na sua época jáera uma péssima escolha, irá gerar um exército defundamentalistas obtusos. Não seria maisinteressante a cultura brasileira assumir suavocação interculturalista, aglutinadora e terrealmente um papel de real importância no cenáriomundial? Deixar esse folclore restritivo,primitivoide, multiculturalista e reativo para lá?Não seria melhor ansiarmos por uma participaçãomais universal e um maior acesso a outrasculturas? Uma integração real com as mais

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variadas civilizações?

Poderemos adiantar, sem sombra de dúvida, queuma afirmação como a próxima será o filé-mignondos idiotas da subjetividade, o cavalo de batalha deum sem-número de salafrários intelectuais!“Nunca fomos catequizados. Fizemos foi oCarnaval. O índio vestido de senador do Império.Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas deAlencar cheio de bons sentimentos portugueses.”

E agora você quer um branco, pelado, sefingindo de canibal, figurando numa peça do ZéCelso no Teatro Oficina, cheio de sentimentospseudolibertários, querendo comer Caetano?

Carnaval... Por sinal a gente só fez Carnaval atéhoje. E essa monomania de festividade histérica,que tanto nos caracteriza, não tem dado resultadosmuito satisfatórios há muitos Carnavais, amigo.Muito embora a grande maioria dos nossos

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pensadores, cegos à realidade brutal que nosassola, se ufane e defenda com unhas e dentesesse estranho comportamento, essa ditadura daalegria por nós praticada e cultuada.

Bem que poderíamos focar nossas energias emcoisas mais interessantes e ambiciosas do que essaobsessão pela carnavalidade como epicentro denossa percepção do cosmos.

Agora, quanto à catequese, nós somos o país dacatequese, da cartilha, do panfleto. Sempre fomoscatequizados por qualquer coisa e subservientes aqualquer um. O povo mais crédulo e fácil de semanipular do mundo. O paraíso de qualquermarqueteiro.

Até tu, Oswald, na tua sanha em não seres oque és, para tentares ser o que nunca foste,entraste nessa através de uma esquizoide cartilhafrancotupinambática: tu já viste algum caciqueAndrade? Cacique Prado? Cacique Salgado?Cacique Almeida? Acorda, amigo.

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É com pesar que sou obrigado a te informar quefazer esse tipo de analogia explicando que “Játínhamos o comunismo. Já tínhamos a línguasurrealista. A idade de ouro.

Catiti Catiti

Imara Notiá

Notiá Imara

Ipeju”, é uma infeliz mistura de cafonice,credulidade naïf e cabotinismo.

Vou te contar uma passagem que acaba de vezcom essa lorota: tem uma cena clássica de umfilme americano do final do século XX, Indiana Jonese os caçadores da arca perdida, quando ele, o herói, sedepara com um ser hostil, um ser exótico, umtuaregue furibundo, que começa a fazercircunvoluções corporais ameaçadoras com umacimitarra cortando o ar, e o nosso Indiana,fleumaticamente, saca do revólver e BANG! Fim de

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papo.

Esse é o seu caso. Idade de ouro, não. Idade daPedra. IDADE DA PEDRA!

Modernismo de marcha a ré, Oswald!

Escolher esse caminho é assinar nossa sentençade morte. A natureza não elege vulneráveis.

Essa rapaziada que você tanto idealizaembevecido, esse silvícola comunista de linguagemsurreal cósmica idealizado por você não tinhasequer inventado a roda, Oswald. VAMOS PARA OESPAÇO!

E o que dizer de: “A magia e a vida. Tínhamos arelação e a distribuição dos bens físicos, dos bensmorais, dos bens dignários. E sabíamos transpor omistério e a morte com o auxílio de algumasformas gramaticais”?

A única magia que rola por aqui é aquela que

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faz desaparecer o fruto do suor do nosso trabalhodireto para os bolsos daqueles que elegemos e parasuas quadrilhas. Distribuição dos bens físicos?Bens físicos deveriam ser conquistados por seumerecimento e não através de distribuição. Maisum hábito a ser perpetuado por aqui com adistribuição de bolsas, vales, cotas, cargos deconfiança e propinas.

Achar que sabíamos transpor o mistério e amorte em algum momento da História ou da Pré-História é, no mínimo, insano; ainda mais sob osauspícios pífios de formas gramaticais. É precisonos exigir muito, mas muito mais para chegarmosa algum lugar. E a gente nem sequer saiu dalargada.

Nós vivemos queimando largadas, amigo.

Quando você confessou que: “Perguntou a umhomem o que era o Direito. Ele te respondeu que

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era a garantia do exercício da possibilidade. Essehomem chamava-se Galli Mathias. Comeu-o.”Enrubesci.

É o tipo do assunto que você poderia manter emseu foro íntimo, Oswald.

Ao colocar o insight “Só não há determinismoonde há o mistério. Mas que temos nós comisso?”, seremos forçados a concluir que...

Nós nunca temos nada a ver com nada,inclusive com o significado das coisas, queridoamigo. Com essa mentalidade, você só vaiincrementar um obscurantismo cheio de retóricaexcludente e nebulosa para confeccionar umacenografia de um mistério piegas, cínico, poucocorajoso e sinistramente determinista: seremospseudossilvícolas, culpados por sermos o que nãoconseguimos admitir ser, preguiçosos soberbos eincompetentes para sempre.

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Na obsessão em se apartar da história dacivilização ocidental manifestada em mais um“Contra as histórias do homem que começam noCabo Finisterra. O mundo não datado. Nãorubricado. Sem Napoleão. Sem César”, euperguntaria:

Por que não incluir tudo o que possa serconhecimento, tudo que valha a pena, sem essasmuletas lambuzadas de bílis?

Alinhavando “A fixação do progresso por meiode catálogos e aparelhos de televisão. Só amaquinaria. E os transfusores de sangue”, eu diriaque:

Progresso não se fixa, Oswald, se conquista, enão deve ser temido, muito menos desprezado.

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E por que “Contra as sublimações antagônicas.Trazidas nas caravelas”?

Vou tentar passar essa sua frase para algo maisproativo: a favor das sublimações dascompatibilidades entre todos nós, seres de boavontade, compatibilidades que levaremos, livres detodo o ódio, em nossas naves espaciais.

Nós também fomos trazidos pelas caravelas.Estamos todos juntos e misturados nas galés, nassenzalas e nas matas. Não existe um só brasileirovivo, incluso em nossa sociedade, que possaafirmar alguma pureza étnica, Oswald. Ainda bem.Não podemos exorcizar os crimes de gerações quenos precederam através de um simplório e inócuoautomartírio.

Temos, sim, que resolver nossos problemas,retardamentos, desastres e paralisias de maneiraincisiva, através do conhecimento, da vontade e doesclarecimento, e, se possível, o quanto antes. Nãotemos mais tempo para ações inconsequentes,

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folclóricas e rancorosas.

Sendo assim, e por isso mesmo, não podemosesquecer que somos indivíduos e respondemospelos nossos atos, nunca pelos atos de quem querque seja. Não adianta sair por aí de tanga para noseximir de uma culpa que não é nossa. Vamosincluir, Oswald, e VAMOS PARA O ESPAÇO!

E, quando você desfere uma pérola tonitruantecomo essa, mais uma vez a insistir... “Contra averdade dos povos missionários, definida pelasagacidade de um antropófago, o visconde deCairu: — É mentira muitas vezes repetida”?

A pergunta que não que calar é: E por acaso,antropófago lá tem alguma condição de ser sagaz?O antropófago por hobby, por crença, por adesão,por metáfora, por patologia ou por recalque é amais miserável condição de qualquer ser, queridoOswald. Se fosse sagaz, não optaria por ser

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antropófago. É inadmissível a prática daantropofagia por opção ou por ser fashion. Só emúltimo caso de sobrevivência ou, na melhor dashipóteses, como simbologia litúrgica, o que, aoque tudo indica, não é o seu caso.

A “mentira muitas vezes repetida”... deglutindoGoebbels até sua antropofagia virar verdade?

Se você soubesse quantos cretinos fundamentaisregurgitarão (uma metáfora digestiva em suahomenagem) por aí, convictos e contritos, essasatrocidades como verdades sagradas para,convenientemente, mascarar a própriaimbecilidade...

Não seria uma espécie de fuga deresponsabilidade e culpa de burguês acomunistadoafirmar que “não foram cruzados que vieram.Foram fugitivos de uma civilização que estamoscomendo, porque somos fortes e vingativos como o

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Jabuti”?

Fugitivos de uma civilização que estamoscomendo é ótimo! Cruzado ou fugitivo, nesse casonão faz a menor diferença. Eles, querendo ou não,somos nós. Isso é autofagia! E, ao contrário do quevocê pensa, estamos longe de ser algo próximo defortes, Oswald. Amarelamos com assustadoraconstância. Aí a vingança se transforma em rancor.

Você não vai chegar a lugar algum querendoinfantilmente fugir dos fantasmas desses fugitivosse emperiquitando de plumas e cocares de araque,como uma peruca na cabeça de um careca (o únicoa não se tocar da própria peruquice) e, ainda porcima, ao importar o rancor do pobre Jabuti, correro risco de acabar por adotar sua estonteantevelocidade como legado existencial que setransformará em norma de conduta e dinâmica dosseus crédulos e fiéis seguidores.

Ou seja, um Brasil pindoramizado, devagar,quase parando...

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E almejar um purismo autóctone é poucointeligente, um tanto esquizofrênico e bastantenazistoide. Não é a sua cara, Oswald.

Ao condicionar “Se Deus é a consciência doUniverso Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes.Jaci é a mãe dos vegetais”, eu te digo uma coisa,Oswald: nacionalizar divindade a essa altura docampeonato é de última, irmão. E lá vamos nósenfrentar aquela ladainha demagógica de deusasmatriarcas... e índias. Não faltarão histéricos abradar essas babaquices por aí, numa epidemia defervor fundamentalista tupi e canalhice oportunistapor todo o território nacional.

E envaidecer-se por acreditar que “Não tivemosespeculação. Mas tínhamos adivinhação. TínhamosPolítica, que é a ciência da distribuição. E umsistema social-planetário”, fornecerá um profundo

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lastro para o ideário rastaquero/comunistoide...

Hoje em dia, somos pura especulação, Oswald.Sistema social planetário? Hegemonia de sua leiúnica do mundo? Mau negócio. Adivinhação? Vocêquer dizer orelhada? Ciência da distribuição?Distribuição de quê? De favores? De pastasministeriais? Assistencialismo?

Além do mais, esses argumentos alucinados, naprimeira pessoa do plural, incitarão uma plêiadede asnos vindouros, entusiastas maníacos, bem-intencionados, no entanto impotentes em suamornice comportamental, passadistas (pois é,quem diria?), todos à procura da adivinhação fácil,de um sistema social planetário comunistoide, deuma pureza de raiz piegas. Transformando a suavisão vanguardista em retardamento social, mentale acadêmico.

O mesmo metabolismo de sempre (outrametáfora digestiva, em sua homenagem). Todos àprocura do canto do sabiá-preguiça, da magia, da

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orelhada, do joão-sem-bracismo, à procura idiota efalsa de uma linha evolutiva da música, das artesplásticas, da literatura: “Meu pai era paulista, omeu avô pernambucano...” Idealizando o brasileirocastiço, puro, não contaminado (como se isso fossepossível), entoando odes a uma desencavadametarraça superior, suas características exclusivasdos eleitos por um destino mágico e outros tantosmilhares de atrocidadezinhas mais, Oswald.

“De William James e Voronoff. A transfiguraçãodo Tabu em totem.” Seria uma construção de umálibi para sua poética perversãoobsessivo/antropofágica?

E eu emendaria concluindo: o totem em dogma.Querendo se livrar de um academicismo, semperceber (e, quero acreditar, sem querer), criasteum outro bem mais tenaz, tacanho e duradouro.Uma boa parte de intelectuais e artistas brasileirospeca por pusilanimidade, por falta de ousadia, e

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sempre está à cata de um corrimão conceitual peloqual se guiar. Não largam dele nem que a vacatussa. Se cagam de medo de errar ou de perdersuas miseráveis posições no métier ou nossubsídios pouco decorosos da lei de incentivo àcultura. Estamos nessa besteirada há noventaanos. Sem nenhuma relevante contestação dealgum grupo significativo. Quem se levantousozinho foi devidamente evaporado.

Oswald, você não imagina que esse temerárioespírito libertário de desconstrução moralembutida em “O pater familias e a criação da Moralda Cegonha: Ignorância real das coisas + falta deimaginação + sentimento de autoridade ante aprole curiosa” poderá acarretar!

Essa moral está bem estragadinha, viu? Acegonha, hoje em dia, não está muito em voga.Creio que quase mais ninguém sabe que se usavaa historinha da cegonha que trazia os bebês para a

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mamãe quando engravidava... Atualmente, obarato é transformar as menininhas em miniputasno vestir, no maquiar e no dançar, acelerando,inclusive, o processo de menstruação das pobres,Oswald. Uma loucura!

Fecho com você em relação à ignorância real dascoisas. Hoje em dia, você sabia que a média anualde leitura do brasileiro universitário é de menos deum livro por ano? E que 90% desse ínfimo númerosão livros de autoajuda ou doutrinas fajutas daesquerda?

E nós, em estado de graça, a sambar na maiorfelicidade, num rebolado febril, improvável,inexplicável, indesculpável, nas praças, nasavenidas, nos botequins.

Quando você diz que... “É preciso partir de umprofundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus.Mas o Caraíba não precisava. Porque tinha

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Guaraci”, estaria tropicalizando o ateísmo ou não?

Parabéns para o Caraíba. Nem eu, nem você,nem o resto da população, na real mesmo,conseguiríamos, com toda a honestidade, aalteridade necessária para penetrar numa realidadecaraíbica. Agora, sejamos mais humildes edeixemos afirmações delirantes de lado.

Crente por crente, o ateu é um crente do Nada,e o Nada é Deus de ninguém, portanto nãopermitirá quem quer que seja a ter alguma vagaideia de Deus e, com todo o respeito, fodam-se oCaraíba e a pobre Guaraci, Oswald. Não dá paraviver nem pensar de marcha a ré.

Se a vida tem algum sentido, este é para cima epara a frente.

E ao ouvir uma frase como “O objetivo criadoreage como os Anjos da Queda. Depois Moisésdivaga. Que temos nós com isso?”, te peço perdão

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pelo pito, mas...

Oswald, chega de ser palerma!

Alguém de razoável inteligência não ficariaconstrangido em perceber que um cara esperto evivaz como você foi capaz de proferir semelhanteestultice: “Antes de os portugueses descobrirem oBrasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”?

E você, eu e a esmagadora maioria dosbrasileiros que aqui habitam simplesmente nãoexistiriam. O Brasil sem os portugueses teriadescoberto a felicidade, o coelhinho da Páscoa, osaci-pererê, o Bozo e o Papai Noel, Oswald.

E lá vamos nós, mais uma vez encarar o blocodo contra! “Contra o índio de tocheiro. O índiofilho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis egenro de d. Antônio de Mariz.”

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Ressentimento não é exatamente vingança. Oupior, uma vingança impotente, atolada naimpotência da impotência. Querendo ser contra oíndio de tocheiro, você está tentando, de novo,exaltar a pureza do indígena intacto.

Indígena, hoje em dia, usa calção Adidas, camisade futebol e relógio de pulso, além do cocar, edeveria ser um cidadão comum, sair daquelasreservas miseráveis que antropólogos em toda asua estupidez ideológica teimaram por transformarem museu com gente viva dentro.

O índio, na verdade, está louco para poderestudar, estudar em faculdade, gerar riquezas epoder ser preso se ferir o código penal. Ser umsubcidadão protegido pelo Estado é um tipo depiedade inadmissível.

A Catarina de Médicis, por pior que tenha sido,que ironia!, pelo menos inventou os talheres.

Querido Oswald, mais uma vez eu insisto: com

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essa mania, você vai propiciar que grandes nomesda nossa terra divaguem por essas obscuras plagasconceituais do rancor messiânico, e haverácriaturas das mais variadas origens proferindoabsurdos do tipo: “Seremos uma Roma lavada emsangue negro e índio!” Anti-imperialistas, nas suasreluzentes caras de pau, almejando ser um grandeimpério, pacifistas e progressistas, em umdespudorado delírio cívico, ansiando por vingançae separação.

A falta de rigor em nossa autopercepção, napercepção do mundo, do universo, resulta numavisão de parâmetros completamente arbitrários,passionais, delirantes e parciais.

Não poderíamos nos dar ao luxo de semelhanteindulgência. A História nos cobrará um ônusmonumentalmente trágico.

Querido Oswald,com essa célebre frase, esse

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verdadeiro mantra: “A alegria é a prova dos nove”,você não sente lá no fundo que acabará dandomunição para uma plêiade de boçais jactarem-sedas mais cínicas e procrastinantes reivindicações?

Contudo, haveremos de constatar que alegriasem motivo é um triste resultado dessa prova dosnove. Nós deveríamos nos ater ao simples fato dehaver ou não motivo para estarmos alegres. Agora,alegria, alegria, não, né? Alegria comendo cocô étriste! Senão, noves fora, um bobo alegre.

Ansiar por um matriarcado de Pindorama nãoseria um singelo equívoco, Oswald?

O matriarcado, como dizia Chesterton, é umaespécie de anarquia moral em que a mãepermanece fixa, sozinha, porque os pais são fujõese irresponsáveis. É muito mais uma precariedadede hábitos, uma fraqueza de caráter, do quepropriamente uma opção, Oswald.

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Reagir, reagir, reagir?... “Contra a Memóriafonte do costume. A experiência pessoalrenovada.”

E viva o quê? A Amnésia? O Esquecimento? Aexperiência pessoal pode se renovar sem precisaraniquilar a experiência precedente. Muito pelocontrário: uma mente de razoável inteligência sótende a se fortalecer ao ter uma experiênciapessoal renovada, principalmente, por usufruir deuma boa relação com a fonte do costume, aMemória.

Concretar a esmo jactando-se de que “Somosconcretistas. As ideias tomam conta, reagem,queimam gente nas praças públicas. Suprimamosas ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros.Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos enas estrelas”, não seria, no mínimo, um

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pensamento raquítico?

Mas tem concretista concretando até os dias dehoje com ares de vanguarda, Oswald. E cagandouma goma que vou te contar.

Suprimir ideia é mau negócio. Ideia não éideologia, portanto ideia alguma é capaz dequeimar ninguém em praça pública. As ideologiasé que costumam fazer isso. A sua, por exemplo,não queima pessoas na praça pública, mas cozinhainimigos sacralizados em caldeirões na floresta, eainda por cima os come.

E a paralisia, lamentavelmente, é aespecialidade da casa, essa, sim, impossível desuprimir. Te garanto.

E que tal mais um “Contra Goethe, a mãe dosGracos e a Corte de d. João VI”?

Tudo bem quanto à corte do d. João VI e sualamentável trajetória. Mas, sem ela, fatalmente

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estaríamos bem pior. E lá vem você encrencandocom a Cornélia outra vez só porque ela parece felize satisfeita em ser uma mãe exemplar no seuestilão greco-romano? Contra o Goethe? Bem,seria porque, simplesmente, Goethe detestavapreguiçosos?

Te confesso que me dá uma certa melancoliaintuir um mergulho seu numa ladainha pós-barroca/psicodélica/psicanalítica/stalinista, n’“Aluta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura— ilustrada pela contradição permanente dohomem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista.

Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Paratransformá-lo em totem. A humana aventura. Aterrena finalidade. Porém, só as puras elitesconseguiram realizar a antropofagia carnal, quetraz em si o mais alto sentido da vida e evita todosos males identificados por Freud, males

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catequistas.

O que se dá não é uma sublimação do instintosexual. É a escala termométrica do instintoantropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e criaa amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, aciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos aoaviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nospecados de catecismo — a inveja, a usura, acalúnia, o assassinato.

Peste dos chamados povos cultos ecristianizados, é contra ela que estamos agindo.”

...Não sei, não, mas acho que você estáprocurando o dionisíaco na cumbuca errada.Vamos ser mais honestos e claros e constatar queninguém aqui acredita em sacralizar inimigoalgum. Isso é um ponto fundamental.

É muito mais um pretexto para odiar, copiar,eliminar, negar, trapacear, excluir, invejar atravésde uma tese absolutamente estrambólica, sonsa e

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malandro-agúlhica.

Teorizar sobre a sacralização da antropofagiapara assegurar um passaporte para um neolíticotecnopop não está com nada, meu amigo. Sinto teinformar, mas a absorção do inimigo sacrosimplesmente o transformará, em poucas horas,através do seu tabu antropofágico, num totemprosaico e malcheiroso, Oswald.

Males catequistas, o seu discurso éfundamentalmente catequista.

Discurso esse que, sinto muito te dizer, virá acausar inúmeros males como esses aqui perfilados,voluptuosos e impressos em nossa conduta, nossacultura e nossa maneira de ser.

Ser contra povos cultos e cristianizados, em prolde uma suposta esperteza retrô/exotique, não será,definitivamente, uma atitude inteligente. Esse tipode reação nos deixará mais ilhados, mais obtusos,mais autistas culturais e muito mais atrasados do

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que sempre fomos.

Creio que você se precipita apaixonado de maise rigoroso de menos em conceitos confusos edescompensados, querido amigo. A culturaindígena é linda, mas não é possível retroceder aroda da civilização para chegarmos a um lugar emque nem roda havia e de que na verdade,psiquicamente, nos recusamos a sair, sob a égideda culpa e do orgulho nascido do recalque e dacovardia. Não será dessa forma que conseguiremosnos enxergar de verdade.

Não será eficaz nem muito bonito querer se“apropriar” de uma maneira de viver que nunca foisua, incorporá-la e utilizá-la para engendrar umarevolução de araque e renegar qualquer influênciada sua própria essência, europeia, portuguesa eponto, queira você ou não. Convivamosnaturalmente e em harmonia com todas as nossasmatrizes: a negra, a branca e a índia. São todasnossas, sendo assim, desfrutemos delas com todos

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os seus defeitos e virtudes, pois todas nos sãonecessárias, dignas do nosso afeto, e excluiralguma delas só nos fará menores.

Essa obsessão em excluir para purificar jamaisserá uma solução (ainda bem). A Solução Final doHitler é filha dessa mesma obsessão, desse mesmofascínio obtuso. Se você tivesse um pouco mais detempo, estou certo de que seria o primeiro a fazeruma autocrítica e clamaria por novos rumos,novos acontecimentos, novos horizontes, novasestéticas, para nos livrarmos de vez dessatremenda fanfarronada oligofrênica que grudou nonosso imaginário.

E aí vem o onipresente contra!... “ContraAnchieta cantando as 11 mil virgens no céu, naterra de Iracema — o patriarca João Ramalhofundador de São Paulo”!

Contra, contra, contra, contra. Eu contei

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explícitos 15 “contras” no seu manifesto! Acho quevocê não se deu conta, querido Oswald, mas estásofrendo de um recalque eliminatório deproporções pindorâmicas.

Mais uma dose de lusofobia com: “A nossaindependência ainda não foi proclamada. Frasetípica de d. João VI: — Meu filho, põe essa coroana tua cabeça antes que algum aventureiro o faça!Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar oespírito bragantino, as ordenações e o rapé deMaria da Fonte”?

Trocando em miúdos, Oswald, te garanto queestamos numa merda de fazer gosto. Podeacreditar. Mesmo sem o espírito bragantino, semrapé ou ordenação, seja lá de quem for. Mesmonossa economia conquistando um lugar dedestaque no mundo, jamais abandonamos aprecariedade, a corrupção, pesos e medidasarbitrários, a breguice, a incompetência, o

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assistencialismo, o nepotismo, o peculato, ademagogia, o simplismo, o coronelato com osmesmos coronéis de sempre e alguns outros tantosengrossando o cordão de bandidos no poder, apéssima educação, a total falta de seriedade e aeterna procrastinação.

Ainda somos uma chula capitania hereditária,querido amigo... só que mais brega ainda!

Todo mundo é filho de alguém, sobrinho defulano, neto de beltrano, amigo ou amante desicrano. E varados de um orgulho baseado nessapermissividade brincalhona e salafrária, nesseeterno oba-oba rebolativo, nessa violênciacarnavalizada, nessa incrível habilidade de torceros fatos e trapacear sempre, lá vai o Brasildescendo a ladeira.

Por isso é que te enchi tanto o saco durantetodo o nosso papo. O buraco é bem mais embaixoe, infelizmente, você tem toda razão: a nossaindependência ainda não foi proclamada. Estamos

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presos, atávicos a um passado delirante eirrefutável. A uma autoimagem delirante eirrefutável.

E o seu desfecho, como não poderia deixar deser, retumba crivado por mais um sonoro contra,não é verdade?... “Contra a realidade social,vestida e opressora, cadastrada por Freud — arealidade sem complexos, sem loucura, semprostituições e sem penitenciárias do matriarcadode Pindorama.

Oswald de Andrade, em Piratininga,ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.”

Olha, Oswald, eu quero te agradecer do fundodo meu coração por permitir, mesmo sem saber,poder escrever essa carta, pela minha invasão, porpermitir sentir sua presença tão próxima, tãofamiliar, tão acolhedora em meio ao atrito, à

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discordância, à turbulência do embate e, no meiodisso tudo, poder te dizer sem a menor ironia quete amo.

Como falei anteriormente, você é um caraúnico, genial, um vulcão, um apaixonado, umacriatura adorável, cheio de ideias admiráveis, comuma abastada cultura do mundo, do nosso país, danossa história.

Mas eu te digo, repetindo o que já afirmei váriasvezes, só para finalizar: você ficaria apavorado aotestemunhar a asfixia intelectual, cultural eideológica, o ufanismo vagabundo, descabido eparalisante, a morte da complexidade, da vontade,da ousadia, da excelência, da memória emdetrimento do simplório, da preguiça, doacanhamento, da precariedade, da amnésia, queseus conceitos e fundamentos, lamentavelmente,ajudaram a chancelar, e continuam ajudando apromover esse estado de suspensão perpétua naalma dos filhos dessa terra que deveria ser

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reconhecida por... Pendurama. Pendurama doGarrote Vil, Vil, Vil!

Vontade de potência é algo que não rola poraqui de jeito maneira, Oswald.

A bundamolice comportamental, a flacidezfilosófica e a mediocridade nacionalista seespraiam hegemônicas. Todo mundo por aquialmeja ser funcionário público, militante departido, intelectual subvencionado pelo governo oucelebridade de televisão, amigo. Com exceção demeia dúzia de três ou quatro que, via de regra, sãocaçados como ratazanas subversivas, ou melhor,no jargão em voga, como porcos reacionários, e eusou um deles.

E quer saber?... Às vezes, mesmo morando nafilosofia, somos compelidos a rimar amor e dor e éisso aí.

Vamos sair para beber alguma coisa, vamos parao centro da cidade, para a noite iluminada da sua

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tão querida cidade, que, também agora, é umpouco minha e, depois de uma grande festa, depoisde alguns antológicos papos de botequim, meuamigo, meu irmão, você me dará um forte abraço,eu te darei outro e, juntos, vamos para o espaço!

Lobão, São Paulo, um ano após ofatídico fim do mundo, 2013 A.D.

FIM

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GLOSSÁRIO

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Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha: Oswaldconstrói uma nova marcação temporal para aexistência brasileira, que começaria no primeiroato antropófago de que se tem notícia em nossasterras: em 1556, o bispo Sardinha naufragou nolitoral do Nordeste e foi devorado pelos caetés.

Cabo Finisterra: acidente geográfico localizado naEspanha, citado como referência às grandesnavegações ibéricas iniciadas no século XV.

Caraíbas: foram os primeiros nativos americanos atravar contato com os portugueses, no século XV,e os primeiros a serem escravizados. Eramantropófagos. Foram dizimados por doenças epelos maus-tratos decorrentes da escravidão.

Catarina de Médicis (1519-89): nascida emFlorença, casou-se com Henrique II e se mudoupara a França, onde foi coroada rainha. Foi aresponsável por somar novos elementos aoshábitos franceses tradicionais. Por exemplo, não setinha o hábito de usar talheres durante as refeições

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até a sua chegada.

Catiti Catiti/ Imara Notiá/ Notiá Imara/ Ipeju:poema indígena. Traduzido por Couto Magalhãescomo: “Lua nova, ó lua nova! Assoprai em fulanolembranças de mim.”

Cobra grande: é o espírito das águas segundo amitologia indígena. Inspirou o poema “CobraNorato” (1931), de Raul Bopp.

Cornélia Graco: esposa de Tibério Graco e mãe deTibério e Caio Graco. Símbolo de condutairrepreensível, de mãe educadora, de virtude eretidão moral. Seus filhos tornaram-se os maishonestos e ilustres de todos os romanos de seutempo.

Cruzado: moeda portuguesa fabricada com ouro eprata.

D. João VI (1767-1826): rei de Portugal que fugiupara o Brasil na época da invasão das tropasnapoleônicas. Foi para o Rio de Janeiro com toda a

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sua corte.

Elite vegetal: referência àqueles que copiavam osmodelos europeus. O “vegetal” faz analogia a seressem mobilidade ou capacidade crítica paramudanças.

Galli Mathias: o termo “galimatias” significadiscurso confuso ou obscuro.

Goethe (1749-1832): romancista, filósofo, poeta edramaturgo. Um dos maiores escritores da línguaalemã. É de sua autoria a frase “O declínio daliteratura indica o declínio de uma nação”.

Guaraci e Jaci: divindades indígenas equivalentesao Sol e à Lua, respectivamente. Representam osprincípios que controlam o mundo.

Hermann Keyserling (1880-1946): primeiropensador moderno a conceber e promover acultura planetária, além do nacionalismo e doetnocentrismo cultural, baseado noreconhecimento do valor e da validade das culturas

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e filosofias não ocidentais. Criou a expressão“bárbaro tecnicizado”.

Índio de tocheiro: afilhado de Catarina de Médicise genro de d. Antônio de Mariz. Ao fazer referênciaa personagens extraídos de contos indianistas,Oswald mostra a rejeição indígena à civilizaçãobranca e cristã ocidental.

Iracema: personagem do livro homônimo de Joséde Alencar e ícone de brasilidade no auge doromantismo.

Jabuti: quelônio que habita as matas brasileiras.De acordo com as religiões indígenas, representa aperseverança e a força.

José de Anchieta (1534-97): padre jesuíta espanholque veio para o Brasil no início da colonização afim de catequizar os índios.

Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939): filósofo esociólogo francês. Estudou as sociedadesprimitivas para provar que a moral era ditada pelas

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épocas históricas e pelos grupos sociais.

Maria da Fonte: camponesa que, em 1846,comandou uma revolução contra a opressãopolítico-econômica do reinado de Maria da Glória,em Portugal.

Padre Antônio Vieira (1608-97): jesuíta nascidoem Lisboa, grande orador, de ideias avançadas paraseu tempo. Oswald o menciona no contexto dainvestida político-econômica portuguesa naexploração do açúcar maranhense, que beneficiouapenas a metrópole e deixou a colônia em situaçãode miséria.

Pindorama: terra de palmeiras, em tupi.

Piratininga: nome indígena da região onde nasceuposteriormente a cidade de São Paulo.

Serge Voronoff (1866-1951): cirurgião russo queviveu na França e ficou famoso como especialistaem enxertos e experimentos glandulares paraaprimoramento de raças de animais.

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Visconde de Cairu (1756-1835): José da SilvaLisboa, economista e político liberal brasileiro,contrário à permanência dos jesuítas no país.

William James (1842-1910): Filósofo norte-americano ligado ao pragmatismo e um dosfundadores da psicologia moderna.

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BIBLIOGRAFIA

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Editora responsável

Cristiane Costa

Produção

Adriana Torres

Ana Carla Sousa

Produção editorial

Mônica Surrage

Preparação de texto

Gabriel Machado

Revisão

Eduardo Carneiro

Pesquisa bibliográfica

Amanda Braz

Tatiana Rodrigues

Projeto gráfico e Diagramação

Celina Faria

Produção de ebook

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S2 Books

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