mamulengo: história e linguagem

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Mamulengo, teatro de bonecos popular brasileiro: história e elementos de linguagem Resumo: Este texto aborda aspectos relativos ao surgimento e fontes constituintes do Mamulengo e discute como os diversos elementos cênicos são combinados para que o evento teatral aconteça. 1 Introdução Walter Cedro, mamulengueiro de Brasília diz: Tem muita gente que pensa que é só enfiar a mão no corpo do boneco e começar a falar... as pessoas pensam que isso é uma coisa fácil, mas não é. (...) Você tem que ‘ralar’mesmo, tem que passar por muita coisa prá um dia você pegar e brincar legal mesmo! (Entrevista 2001) Na sua fala, Walter explicita o olhar simplista que, na maioria das vezes, é lançado sobre o ofício de se manipular um boneco e conseqüentemente, sobre o Mamulengo. Em geral, as tradições de teatro popular do nordeste têm sido referenciadas como “manifestações folclóricas”, muitas vezes vistas como “ingênuas”, “espontâneas”, manifestadas a partir da “inspiração” momentânea do mamulengueiro, como se prescindissem de elaboração prévia. Ao verticalizarmos o olhar, a partir de uma pesquisa mais profunda, veremos que, ao contrário do propagado, nele se articula um sistema complexo de signos que estão inseridos dentro do campo da tradição e que como tal, requerem inteligência 1 1 O termo é aqui utilizado na acepção de faculdade de aprender, apreender, compreender, transformar ou seja, processos que envolvem elaborações mentais complexas que, a princípio, são inerentes a todo e qualquer ser humano. Ao utilizar o termo, contraponho a idéia da arte como produto apenas do sentimento. ,

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Page 1: Mamulengo: História e linguagem

Mamulengo, teatro de bonecos popular brasileiro: história e elementos

de linguagem

Resumo: Este texto aborda aspectos relativos ao surgimento e fontes constituintes do Mamulengo e discute como os diversos elementos cênicos são combinados para que o evento teatral aconteça.

1 Introdução

Walter Cedro, mamulengueiro de Brasília diz:

Tem muita gente que pensa que é só enfiar a mão no corpo do boneco e começar a

falar... as pessoas pensam que isso é uma coisa fácil, mas não é. (...) Você tem que

‘ralar’mesmo, tem que passar por muita coisa prá um dia você pegar e brincar legal

mesmo! (Entrevista 2001)

Na sua fala, Walter explicita o olhar simplista que, na maioria das vezes, é

lançado sobre o ofício de se manipular um boneco e conseqüentemente, sobre o

Mamulengo. Em geral, as tradições de teatro popular do nordeste têm sido referenciadas

como “manifestações folclóricas”, muitas vezes vistas como “ingênuas”, “espontâneas”,

manifestadas a partir da “inspiração” momentânea do mamulengueiro, como se

prescindissem de elaboração prévia.

Ao verticalizarmos o olhar, a partir de uma pesquisa mais profunda, veremos

que, ao contrário do propagado, nele se articula um sistema complexo de signos que

estão inseridos dentro do campo da tradição e que como tal, requerem inteligência1

1 O termo é aqui utilizado na acepção de faculdade de aprender, apreender, compreender, transformar ou

seja, processos que envolvem elaborações mentais complexas que, a princípio, são inerentes a todo e

qualquer ser humano. Ao utilizar o termo, contraponho a idéia da arte como produto apenas do

sentimento.

,

Page 2: Mamulengo: História e linguagem

sensibilidade, tempo de elaboração e treino para que possam ser “manifestados” e que

cumpram seu objetivo final: comunicar-se com o público.

Esta visão reducionista do Mamulengo parece-me estar relacionada ao

preconceito que os grupos dominantes ou a chamada “camadas cultas” da sociedade têm

em relação à arte produzida pelas camadas populares, em geral, consideradas por esses

grupos como ingênuas.

Bakthin (1996:03), em seu livro “A Cultura Popular na Idade Média e

Renascença”, aponta para essa discussão ao assinalar que a ausência de estudos sobre a

literatura cômica popular é resultado da “concepção estreita” que se tem do “caráter

popular”, uma vez que “o humor do povo na praça pública” não foi considerado como

um objeto digno de estudo do ponto de vista “cultural, histórico, folclórico ou

literário”, ou seja, a arte popular não merecia ser estudada.

Encontro paralelo entre a observação de Bakthin e a ausência de estudos mais

sistemáticos sobre o Mamulengo, uma vez que este teatro de bonecos, surgido há mais

de dois séculos no Brasil, apenas muito recentemente tem sido considerado como um

campo sério e fértil para os estudiosos do teatro. Este estudo busca outro caminho.

Vamos começar esmiuçando um pouco a sua história.

2) Histórico

Pesquisas indicam que esta forma de teatro de bonecos remonta, provavelmente,

ao século XVIII, embora não haja documentos que comprovem o fato. Em seu livro

Travel in Brazil, publicado em 1816, Henry Koster, um inglês de pai português que

morou em Pernambuco até o início do século XIX fala da assistência de um "puppet

theatre" (teatro de bonecos) no norte de Olinda. Porém, não dá nenhum outro detalhe.

De Pernambuco, estas formas teatrais realizadas com bonecos se expandem

posteriormente para outros estados da região, apresentando especificidades e nomes

diversos: em Pernambuco chama-se Mamulengo; na Paraíba, Babau; enquanto no Rio

Grande do Norte e Ceará é respectivamente conhecida como João Redondo e Cassimiro

Coco.

Embora apresentem muitas similaridades, os diversos tipos de teatro de bonecos

praticados na região Nordeste, mantêm certas especificidades que os distinguem, mas,

principalmente, evidentes características que os une: estreita vinculação com as

camadas populares, pois na sua formação tradicional, este teatro de bonecos é feito

Page 3: Mamulengo: História e linguagem

pelos menos abastados da sociedade e a eles, preferencialmente, se destina; forte

conexão com a cultura da região; grande interatividade com o público, apresentando

como objetivo final, o riso.

Em relação aos elementos de linguagem pode-se dizer que os personagens são,

na sua maioria, personagens-tipo que expressam dilemas universais, ao mesmo tempo

em que estão conectados com os valores e o imaginário local. Os bonecos são

manipulados de baixo, com a visão do público sobre os manipuladores, bloqueada por

um tecido, ou barraca, que também recebe o nome de empanada, ou tolda.

(barraca)

Com o processo imigratório das populações nordestinas para os estados do

centro-sul a partir dos anos 70, o teatro de bonecos popular se expandiu para estas

regiões, firmando-se principalmente no Distrito Federal, onde recebe o nome de

Mamulengo.2

Até meados da década de 70, o Mamulengo, juntamente com os circos

mambembes e outros folguedos populares, era a diversão preferencial das populações de

baixa renda do interior e das capitais nordestinas, alcançando um grande número de

espectadores, sendo apresentado ao ar livre, em feiras, praças e pequenos sítios. Neste

último contexto, as apresentações ocorriam geralmente no período noturno e poderiam

durar até 08 horas. Embora cada vez mais raros, ainda hoje podemos encontrar este tipo

de espetáculo principalmente nas pequenas cidades do interior de Pernambuco.

Nestes novos contextos, assim como nas grandes cidades do Nordeste, o

Mamulengo tem sofrido alterações tanto na sua estrutura dramática (inclusão de novos

temas, cenas e personagens; tempo de duração do espetáculo), quanto no seu público

preferencial, que além das camadas populares, passou também a incluir as classes

médias e as platéias infanto-juvenis. Em conseqüência, observam-se espetáculos

destinados mais diretamente a estes novos públicos.

3

Pesquisas realizadas em jornais de Recife apontam que até os anos 40,

apresentações de Mamulengo eram bastante recorrentes nas festas religiosas

organizadas pelas paróquias daquela capital. O primeiro registro efetivo que se

2 Sobre este tema ver nesta publicação o artigo “Distrito Federal: o Mamulengo que mora nas cidades”. 3 Sobre este assunto ver nesta publicação o artigo “Mamulengo, tradição compartilhada - a participação

do público no teatro de bonecos pernambucano”.

Page 4: Mamulengo: História e linguagem

tem sobre uma apresentação de Mamulengo, data de 23 de dezembro de 1896 em

matéria publicada no “Diário de Pernambuco”. O anúncio convida a população

para os festejos natalinos, onde haverá apresentações de vários divertimentos

populares (entre eles o Mamulengo), banda de música, fogos de artifício e missa da

meia-noite. Informa ainda que os trens, o transporte público da época, circularão

até as seis horas da manhã seguinte, o que indica o grande afluxo de pessoas a este

tipo de festividade. A partir dos anos 30, celebrações natalinas passam também a

ser organizadas por entidades não religiosas, como fábricas (refinarias de açúcar,

companhias de tecelagem), sindicato de trabalhadores, entre outros.

Primeira notícia sobre uma apresentação de Mamulengo. Diário de Pernambuco, 23 de dezembro de 1896

(Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco).

Page 5: Mamulengo: História e linguagem

Notícia sobre apresentação de mamulengo em Recife. Diário de Pernambuco, 24 de dezembro de

1902 (Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco).

Paralelo à presença do Mamulengo em Recife, vamos encontrá-lo também no

interior do estado, principalmente na região da Zona da Mata. Até finais da década de

70, o Mamulengo juntamente com outros folguedos, era bastante popular, ocorrendo de

forma constante durante todo ano, mas principalmente nas datas festivas. Zé Divina,

mamulengueiro pernambucano, nascido em 1934, conta que antigamente os grupos de

Mamulengo percorriam longas distâncias, apresentando-se em vários sítios da região.

Os materiais do espetáculo (bonecos, barraca, instrumentos musicais) eram

transportados por animais, em geral burros, e os artistas iam a pé. Hoje em dia, o

transporte é feito em carro do próprio mamulengueiro ou alugado para a ocasião.4

4 Entrevista em março de 2004.

Page 6: Mamulengo: História e linguagem

Quanto aos brincantes, Hermilo Borba Filho afirma que “a memória dos

velhos não guardou nomes dos mamulengueiros”. A partir de suas pesquisas realizadas

em meados da década de 60, gravando espetáculos e entrevistas, é que se inicia um

registro desses artistas populares. Na região metropolitana de Recife, o primeiro

registrado por Borba Filho foi Severino Alves Dias, conhecido como Doutor Babau, um

mamulengueiro famoso e que exerceu grande influência sobre os mamulengueiros de

sua época.5

Anúncios de mamulengo apresentados por Babau em Casa Forte, Recife, publicado no Diário

Pernambuco, 1931 (Arquivo da Fundação Joaquim Nabuco).

5 Nas pesquisas realizadas em Jornais de Recife, Brochado (2005) indica significativa quantidade de anúncios de brincadeiras (espetáculos) apresentados por Babau, o que comprova a sua popularidade.

Page 7: Mamulengo: História e linguagem

Outro importante mamulengueiro descrito por Borba Filho foi Cheiroso, de

quem não se sabe o nome verdadeiro e cujo apelido provinha do fato de fabricar e

vender perfumes baratos. Notabilizou-se como artista de grande talento dando

espetáculos nos arrabaldes, festas e entidades e chegou a construir bonecos para uma

montagem do Teatro do Estudante de Pernambuco que criou um Departamento de

Bonecos por influência de Cheiroso.

O sucessor de Cheiroso foi Januário de Oliveira, conhecido como Ginu, de quem

Hermilo transcreveu peças (As bravatas do professor Tiridá na usina do coronel de

Javunda, Viúva Alucinada, entre outras) até hoje encenadas por vários grupos de teatro

de bonecos em Pernambuco e no Brasil.

Fora da região metropolitana de Recife podemos identificar outra linhagem de

mestres que tem início (até onde os historiadores conseguem registrar) nos fins do

século XIX em Carpina, com Chico Presepeiro, dono do Mamulengo Invenção

Brasileira. Em Vitória de Santo Antão surge Luís da Serra (1906) com o Mamulengo

Nova Invenção Brasileira. Outros importantes mamulengueiros são: Solon, nascido em

Pombos (1920) e radicado depois em Carpina; Zé da Banana (1932), Zé de Vina (1942)

e Zé Lopes (1950) de Glória de Goitá; Antônio Biló, (1932); João Nazário (1935) e

João Galego (1945), nascidos em Pombos, tendo este último se radicado em Carpina;

Saúba (1948) e Miro (1964) o mais novo deles, de Carpina. Dessa linhagem de

mamulengueiros famosos, estão vivos Zé de Vina, Zé Lopes, João Galego, Zé da

Banana, Miro e Saúba.

João Galego e Marlene Silva na sua rua, Carpina, PE, 2004. (Foto Izabela Brochado)

Page 8: Mamulengo: História e linguagem

Zé Lopes no seu ateliê - Glória de Goitá, PE, 2003. (Foto Izabela Brochado)

Saúba em frente à sua oficina – Carpina, PE, 2003. (Foto Izabela Brochado)

Page 9: Mamulengo: História e linguagem

3. As Fontes do Mamulengo A influência das tradições européias de teatro de bonecos na constituição do

Mamulengo foi ressaltada nos estudos de Hermilo Borba Filho (1966) e de Fernando

Augusto dos Santos (1979). Estes autores indicam as tradições de teatro de bonecos

oriundas dos ciclos da Natividade (presépios mecânicos e presépios de fala) e as

tradições populares de teatro de bonecos originárias da Comedia dell’Arte (Pulcinella,

Punch, Karagöz, entre outros) como fontes fundamentais do Mamulengo.

Em relação à sua gênese, Borba Filho (1966) e Santos (1979) indicam que o

Mamulengo teria nascido em Pernambuco a partir dos presépios de Natal trazidos ao

Brasil pelos padres franciscanos em meados do século 17. Muitos destes presépios, que

se tornaram bastantes populares no Nordeste a partir do século 18, representavam a cena

do nascimento de Cristo por meio de figuras articuladas. Segundo estes autores, ao

longo do tempo, esta forma religiosa de representação foi se secularizando a partir da

mistura com as tradições populares de teatro de bonecos originárias da Comedia

dell’Arte, e com outras expressões tradicionais da cultura nordestina, como a literatura

de cordel, o Cavalo Marinho (dança dramática), o Pastoril (dança do ciclo natalino),

gerando uma forma de teatro de bonecos destinada principalmente a um público adulto.

Embora seja evidente a influência de todas estas fontes na constituição do

Mamulengo, nos parece equivocado afirmar que o teatro de bonecos brasileiro tenha se

constituído a partir de um processo de secularização. Embora as evidências documentais

indiquem a presença de formas de teatro de bonecos profanas no Brasil somente a partir

do século 19 (Edmundo, 1932), como indicado pelo próprio Borba Filho (1966), nos

primeiros estágios de colonização do Brasil (séculos 16 a 18), as tradições profanas de

teatro de bonecos abundavam na Europa e provavelmente, alguns aventureiros que

aportaram no Brasil trouxeram consigo a sua mala de bonecos. Assim, preferimos

pensar que o Mamulengo, desde a sua base, recebeu influências tanto de tradições

religiosas, quanto das profanas.

As possíveis influências das tradições de bonecos europeus oriundos da

Commedia dell’Arte podem ser observadas em vários aspectos. As similaridades entre o

Mamulengo e estas tradições européias são bastante evidentes tanto na presença de

personagens6

6 Como citado acima, o intermediário muitas vezes recebe o nome de Arrilinquim, uma clara referência ao personagem Arlequim (Arlecchino) da Commedia dell’Arte. Além, Maria Helena Góis (1957) fala da presença de bonequeiros ambulantes, particularmente no norte de Minas Gerais e sul da Bahia que

, quanto no enredo e na estrutura de algumas cenas. Assim como nestas

Page 10: Mamulengo: História e linguagem

tradições de bonecos européias, muitos enredos presentes nos espetáculos de

Mamulengo consistem numa série de encontros e os conseqüentes conflitos entre os

personagens protagonistas representantes do povo (Benedito, Cassimiro Coco, Simão,

entre outros) e os representantes da elite (doutores, padres, policiais). Conflitos também

são estabelecidos entre os primeiros e os personagens sobrenaturais (Morte, Diabo).

Embora estas correspondências podem ser compreendidas como reflexo de certas

tendências inerentes às tradições populares de bonecos de luva, uma vez que

mecanismos similares podem operar sem uma conexão obvia, a similaridade entre

algumas cenas são evidentes. Para citar algumas: a freqüência de cenas de luta, suas

inevitáveis pancadarias; cenas em que personagens carregam um caixão e tentam

encaixar um morto dentro deste; cena da cobra, que parece ser uma adaptação da figura

do crocodilo presente nos espetáculos de Punch and Judy; entre outras.

No entanto, considerando hipóteses levantadas por alguns mamulengueiros

nordestinos a fonte primeira do Mamulengo encontra-se com os escravos africanos que

foram trazidos para o Brasil entre os séculos 16 e 19.

A primeira hipótese, de autoria de Mestre Ginu - Januário de Oliveira,

mamulengueiro pernambucano falecido em 1975, indica que o mamulengo teria surgido

em uma fazenda no interior de Pernambuco, como represália de um escravo (Tião) ao

seu patrão, um rude fazendeiro possuidor de muitos escravos. Após uma surra dada pelo

senhor, Tião se embrenha no mato e começa a esculpir um boneco com a cara do patrão.

Ao voltar para a senzala, Tião o apresenta aos escravos. O patrão, sabendo do ocorrido,

exige que Tião faça outros bonecos, incluindo ele mesmo e outros personagens da

fazenda.7

A segunda, do bonequeiro Manuel Francisco da Silva diz que o teatro de

bonecos teria nascido em uma fazenda no interior da Bahia, criado por uma negra

escrava que construiu “uma variedade de bonecos representando os homens e os bichos

do ambiente”. A escrava, além de pedir autorização ao seu senhor para apresentar a

brincadeira, chamou-a de Capitão João Redondo em homenagem a ele.

8

apresentavam um repertório de velhas comédias que abordavam o amor interrompido entre dois jovens pela autoridade paterna, e que eram protegidos pelo empregado denominado “Brigela” (Brighella).

Como

apontado acima, este é o nome dado ao teatro de bonecos popular no Rio Grande do

Norte.

7 Borba Filho, Fisionomia, 73/4. 8 Borba Filho, Fisionomia, 73.

Page 11: Mamulengo: História e linguagem

Estas hipóteses podem ser compreendidas como representações simbólicas da

importância dos africanos como agente formador do teatro de bonecos popular

brasileiro, nota-se que os protagonistas são em geral representados por bonecos de raça

negra. Elas podem ainda ser consideradas como uma “mitologia” do Mamulengo criada

a partir da imaginação dos mamulengueiros. No entanto, considerando o grande

número de africanos trazidos para o Brasil e a sua enorme contribuição ao

desenvolvimento da sociedade e cultura brasileiras, podemos também conceber as

tradições de teatro de bonecos africanas como uma fonte importante na constituição do

Mamulengo.

Temas relativos à sexualidade, expressos principalmente nas parodias de coito e

nas inúmeras referências textuais constitui parte significativa do espetáculo de

Mamulengo e de algumas tradições africanas de bonecos (Bonecos da Sociedade Ekon -

Nigéria; Bonecos Gelede dos povos Yorubá - Nigéria e Benin). Em contraste com estas,

sexualidade aparece de forma secundária nas tradições populares de teatro de bonecos

na Europa. Além, representações das atividades de trabalho são recorrentes no teatro de

bonecos Africanos (principalmente nos Gelede) e no Mamulengo. Muitas das figuras

presentes nas duas tradições são bastante similares em seus aspectos técnicos de

construção, pontos de controle e articulação, tais como piladores e peneiradores de

grãos, tocadores de ganzá, entre outros.

Finalmente, verifica-se a estreita vinculação do Mamulengo com os folguedos

populares nordestinos. Muitas das passagens (cenas) 9

9 O termo “cena” é designado pelos mamulengueiros como “passagens”, o que reforça a noção do espetáculo como várias cenas nas quais os personagens “passam”.

que compõe o espetáculo são

quase adaptações destes folguedos para o teatro de bonecos, como por exemplo, o

Pastoril, O Maracatu e o Bumba-meu-Boi/ Cavalo Marinho.

Page 12: Mamulengo: História e linguagem

O Capitão do Cavalo- Marinho “Alumiara Zumbi”, Olinda, PE, 2003. Foto Izabela

Boneco de vara do Mestre Solon representando o Capitão do Cavalo-Marinho. Museu do Mamulengo, Olinda, PE. Foto Izabela Brochado.

Conjunto de bonecas do pastoril, do Mestre Solon. Museu do Mamulengo, Olinda, PE. Foto (Izabela Brochado)

Bonecas do Pastoril dos Mestres Luiz da Serra e Pedro Rosa. Museu do Mamulengo, Olinda, PE. Foto (Izabela Brochado)

Page 13: Mamulengo: História e linguagem

4. O Espetáculo de Mamulengo: estrutura, enredos e temas

Em relação à sua estrutura verificam-se basicamente dois tipos do espetáculo. O

primeiro apresenta um único enredo com inicio, meio e fim. O mais comum narra a

aventura do protagonista (um vaqueiro de cor negra conhecido como Benedito, Baltazar

ou Cassimiro-Côco), empregado numa fazenda de um rico latifundiário e que encontra

vários oponentes, lutando com estes e, quase sempre, os matando. O conflito em geral,

gira em torno do fato do vaqueiro querer dançar na festa de seu patrão com, nada mais,

nada menos, que a filha (ou mulher) deste. Neste contexto, vários oponentes aparecem

para confrontar o vaqueiro, como o policial, o padre, o doutor (médico e/ou advogado),

entre outros. A peça em geral termina com a vitória do vaqueiro, que domina a festa e

namora a filha do patrão.

Em algumas versões, as cenas de confronto são interconectadas com pequenas

passagens, sem aparente conexão com o enredo. A mais comum, mostra o protagonista

dançando com seu mais precioso animal, o Boi.

O segundo tipo de espetáculo apresenta uma estrutura episódica, composta por

uma sucessão de cenas (ou passagens como se referem os bonequeiros) com enredos

diversos, que são selecionadas e ordenadas com o objetivo de se “montar” o espetáculo.

Algumas destas cenas apresentam um enredo completo com início, meio e fim outras,

entretanto, são compostas por apenas uma ação como uma cena de dança; a passagem

de um, ou mais, personagens que tecem algum comentário; dois cantadores que

realizam uma disputa de versos; entre outros. A grande maioria destas cenas faz parte

do repertório tradicional do Mamulengo e tem sido repassada oralmente de uma geração

de mamulengueiros à outra. Outras, entretanto, são criações individuais que abordam

temas atuais.

O processo de seleção e ordenamento das cenas realizado pelo mamulengueiro

serve a diferentes funções. Primeiramente, é utilizado para diferenciar seus próprios

espetáculos um do outro, e também para torná-los distintos dos espetáculos de outros

mamulengueiros da mesma região e que possuem repertórios similares. Em segundo

lugar, o mamulengueiro precisa adaptar o seu espetáculo de acordo com o contexto da

apresentação (o lugar, o público, o tempo disponível para realização do mesmo).

Finalmente, a combinação pode ser resultante da reação do público assim como, da

Page 14: Mamulengo: História e linguagem

disposição do próprio mamulengueiro. Dessa forma, o número e os tipos de cenas que

aparecem nos podem variar bastante, assim, um mesmo mamulengueiro pode realizar

espetáculos que durem de 01 a 08 horas.

Além dos fatores estruturais, variações ocorridas na estrutura do espetáculo e no

texto são também resultantes do grande uso de improvisações advindas, principalmente,

do jogo verbal entre os bonecos (bonequeiros), o intermediário (Mateus) e o público.

O texto do Mamulengo, assim como outros elementos do espetáculo, tem

passado por muitas alterações. Cenas derivadas dos folguedos populares (Maracatu de

Simão, Pastoril) assim como aquelas originárias dos presépios (São José, O Rico Rei

Avarento), entre outras, bastante populares outrora, praticamente não mais existem.10

4.1 Tipos de Cenas

No entanto, ainda hoje persistem cenas que podem ser consideradas como verdadeiras

“relíquias”, mantendo até os dias atuais conexões com antigas formas de representação,

como a cena dos “Caboclinhos” onde quatro caboclos dialogam em forma de versos

remanescentes dos autos de Natal trazidos pelos Jesuítas.

Esta estrutura episódica aparece principalmente no Mamulengo da Zona da Mata

de Pernambuco e pode ser observada nos espetáculos de Zé Divina, Zé Lopes e João

Galego, entre outros.

Fernando Augusto dos Santos em seu livro Mamulengo: um povo em forma de

bonecos (1979) agrupa os diversos tipos de passagens (cenas) em cinco categorias:

pretexto, narrativas, briga, dança e peças ou tramas.

Passagens pretexto, como o próprio nome diz, é uma desculpa para que o boneco

suba ao palco sem uma justificativa lógica, apenas para dizer algum gracejo, saldar o

público, dizer um verso: “a intenção visível não é narrar, nem interpretar um

personagem qualquer em uma situação determinada”.11

10 Segundo Zé de Vina, as cenas com temática religiosa eram bem mais freqüentes no passado (até meados da década de 70), sendo atualmente raramente

encenadas, uma vez que não encontram a mesma ressonância no público atual. (Entrevista em Lagoa de Itaenga em 23/03/2004). Santos (1979:24) observa que o

Mamulengo “na sua forma atual praticamente perdeu o caráter religioso, apesar de ligeiros remanescentes”.

11 Santos, Mamulengo, 142.

Passagens narrativas são claramente influênciadas pelos repentistas, onde um ou

dois bonecos narram/cantam estórias imaginárias, fatos e acontecimentos. Nestas cenas

os bonecos sobem ao palco, narram/cantam e saem.

Page 15: Mamulengo: História e linguagem

Passagens de briga são bastante comum e mostram bonecos que lutam entre si

manejando porretes, facões e revólveres e apresentando variados tipos de

movimentação.

Passagens de dança são acompanhadas por música e servem principalmente para

conectar as cenas. Nelas, os mamulengueiros mostram a sua destreza na manipulação

dos vários tipos de figuras que se movimentam de forma cômica ou sensual.

Passagens de peças ou tramas são como pequenas peças que podem ser

remetidas a: comédia; sátira social; farsa; moralidades; ou autos.

As categorias apontadas por Santos nos ajudam a compreender as diversas

naturezas das cenas. No entanto, observa-se que, em algumas delas, estas classificações

se mesclam e portanto, não devem ser consideradas como demarcações rígidas. Além,

podemos ainda incluir outra categoria, ou seja, as cenas de quête criadas com o objetivo

específico de arrecadar contribuições monetárias do público

Cena dos Repentistas no Mamulengo do Mestre Zé Lopes. Glória de Goitá,

Page 16: Mamulengo: História e linguagem

Goiaba dança forró com Carolina, a filha do Coronel. Mestre Zé Lopes, Glória de Goitá, 2002.

Page 17: Mamulengo: História e linguagem

5. Elementos de Linguagem

Como um teatro de bonecos, o Mamulengo articula vários códigos para que ocorra o

espetáculo. Estes códigos podem ser divididos em dois grupos: visuais e auditivos.

Como apontado anteriormente, o boneco representa um personagem-tipo e, portanto,

possui uma caracterização visual específica: traços fisionômicos, figurinos, articulações

em variadas partes do “corpo” que possibilitam movimentos diferenciados que

comunicam situações e emoções.

Estes bonecos/ personagens aparecem em um espaço cênico, num pequeno palco

conhecido como tolda, empanada ou barraca que pode ser apenas um tecido esticado

entre dois suportes, ou ainda apresentar uma estrutura complexa como uma mini cópia

de um palco italiano, com cenários de fundo e também placas pintadas com figuras ou

desenhos decorativos, e letreiros com informações sobre o grupo.

Estes bonecos/ personagens possuem um discurso (fala) veiculado a partir de uma voz

com timbre, ritmo, intensidade, altura que contam histórias, comunicam situações e

emoções.

5.1 - Os Bonecos/Personagens

No Mamulengo, assim como em todo teatro de boneco, o ator é o próprio

boneco. Diferente do ator humano, que representa personagens diversos conforme a

peça teatral, o boneco, já no momento da sua construção plástica, configura-se, se não

como um personagem específico, pelo menos com características que o configuram

como um 'personagem- tipo'12

12 Podemos, no entanto, encontrar bonecos que funcionam como uma 'forma', ou seja, um protótipo

básico que pode ser 'vestido' conforme as características da personagem que desempenhará numa

produção específica. Exemplos deste tipo podem ser encontrados nas companhias européias que

apresentavam (e apresentam) óperas ou melodramas com bonecos de fio, como exemplo, a Cia Eugenio

Colla de Milão. No que se refere ao Mamulengo, podemos encontrar bonecos que representam sempre os

mesmos personagens, mesmo que atuem em diferentes peças (como è o caso do vaqueiro e do

latifundiário), e ainda, bonecos que embora mantenham suas características físicas, podem representar

diferentes personagens.

. Assim, o boneco apresenta-se como “síntese

configurada de um determinado tipo ou ser”. (Santos:1979:178). Nisto, ele aproxima-

Page 18: Mamulengo: História e linguagem

se bastante dos atores da Commedia dell’ Arte, que também se especializavam em um

“personagem-tipo” atuando em diferentes enredos e tramas.

No entanto, os atores humanos inexoravelmente partem do seu próprio corpo,

com todas as possibilidades e limitações que este apresenta, para construir seus

personagens, transfigurando-se (transformando-se em outra figura) durante o

espetáculo. Diferente destes, o boneco - ator de madeira - é já, na sua configuração

primeira e única, um símbolo13

O mamulengueiro é quase sempre o escultor e o manipulador/animador do

boneco. Portanto, suas ações/falas e suas configurações visuais são aspectos

inseparáveis. Como disse Mestre Solon, mamulengueiro pernambucano, já falecido,

"quando vou fazendo os bonecos, eu já vou fazendo a história.”

específico.

Essa invariabilidade apresentada pelo boneco leva-nos a relacioná-los com as

máscaras. Etimologicamente a palavra ‘máscara’, do latim, significa persona. Daí se

pode concluir que a máscara é uma representação simbólica de um papel social, uma

personificação. Nesse sentido, os bonecos/personagens do Mamulengo podem ser

considerados como representações simbólicas de papéis sociais, assim como são seus

comparsas Karagós, Pulcinella, Jean Klassen, Petrushka, Robertos, entre outros.

Estes papéis sociais transparecem tanto nas representações visuais dos bonecos,

quanto nas ações e falas que se desenvolvem durante a brincadeira (apresentação

teatral) aspectos que discutirei mais adiante.

Do ponto de vista plástico, o boneco do Mamulengo não é representado de

forma realista. Mesmo quando se trata da representação de seres-humanos, o escultor

não busca uma “imitação” das formas anatômicas reais. Nisto diferem bastante das

marionetes de fio tradicionais que tentam assemelhar-se à figura humana “com todas

as falsidades que isto implica” (Borba Filho:1987:227). O distanciamento da

representação naturalista propicia ao mamulengueiro uma liberdade de expressão,

tanto na construção plástica, quanto nas falas e ações dos personagens, mesmo que

ele, o artista, esteja em constante diálogo com uma determinada tradição.

14

13 Símbolo é aqui compreendido como aquilo que, por sua forma ou sua natureza evoca, representa ou

substitui, num determinado contexto, algo abstrato ou ausente.

14 Revista Mamulengo, n.07, 1987, p.36.

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5.2 Representação visual dos bonecos

As figuras apresentam grande variedade em relação aos aspectos físicos:

tamanho, peso, materiais, articulações, técnicas de construção e controle. A maioria é

entalhada em mulungu e imburama, dois tipos de madeira leves encontradas no

Nordeste. Bonecos feitos totalmente em tecido (principalmente na representação das

personagens femininas), papelão, bucha vegetal, entre outros materiais, embora menos

recorrentes, também são observados.

Bonecos de madeira mulungu em processo de construção. Mestre João Galego, Glória de Goitá, 2003.

Foto Izabela Brochado.

Tipos de bonecos

O elemento comum que liga todos os tipos de bonecos do Mamulengo é que eles são

manipulados por baixo, podendo o manipulador estar em pé, ou sentado. Em uma

primeira e ampla classificação podemos dividí-los em quatro tipos. luva; varas ou

varetas; o corpo inteiro esculpido na madeira; e bonecos mecânicos. No entanto,

observa-se figuras que misturam técnicas como veremos a seguir. Os diversos tipos de

bonecos apresentam distintas funções no espetáculo.

Luva: são os mais recorrentes, sendo usados quando o personagem requer movimentos

precisos dos braços e mão, como por exemplo: agarrar objetos, acariciar outro boneco, etc.

Estes movimentos expressam certas facetas do comportamento humano, em geral,

apresentadas de forma exagerada. Quase sempre possuem a cabeça e as mãos esculpidas

Page 20: Mamulengo: História e linguagem

em madeira e o corpo de tecido confeccionado como uma túnica, onde o manipulador

coloca uma das mãos . Bonecos de luva com fio aparecem nas figuras que apresentam

articulaçao na boca, língua e olhos, movimentados a partir de fios manipulados pela outra

mão do bonequeiro. Diferentemente de alguns bonecos de luva europeus, os do mamulengo

não possuem pernas.

Varas e varetas: São configurados de corpo inteiro que, tanto pode ser inteiramente de

tecido, inteiramente de madeira, ou uma mistura dos dois materiais. Quando o tecido é

usado, ele é preenchido com retalhos ou espuma que dao materialidade ao corpo do

boneco. Possuem uma vara central que dá sustenção à figura e muitas vezes possuem

varetas nas pernas e braços, que permitem movimentos bastante àgeis aos membros.

Aparecem principalmente nas cenas de dança, onde o foco está centrado nos

movimentos (cômicos ou sensuais) das figuras. Assim como os de luva, alguns bonecos

de vara ou varetas podem apresentar fios que são usados tanto para produzir movimentos

faciais, como dos membros.

Boneco de corpo inteiro de madeira: são rígidos e apresentam poucos movimentos

(alguns apresentam articulações nos ombros) e são manipulados diretamente pelos pés.

Quase sempre representam autoridades (policiais e fazendeiros) o que demonstra uma

conexão entre a rigidez da forma visual e as características de personalidade desses

personagens.

Bonecos Mecânicos – são um grupo de figuras que apresentam movimentos repetitivos

criados por algum mecanismo. O mais simples é o Pisa-Pilao, ou Pisa-Milho,

representado por uma, ou duas figuras que “pilam” grãos. O mais complexo é a Casa-

de-Farinha, que apresenta por um grande número de figuras e um complexo mecanismo

de articulação e movimentação que mostram temas diversos, como a fabricação da

farinha de mandioca, cenas de escravos em trabalhos forçados, entre outros. Bonecos

mecânicos quase nunca aparecem como personagem, mas sim, como um elemento de

cena, sendo principalmente utilizados para intercalar as cenas, ou no fim do espetáculo.

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Bonecos de Vara. Mestre Zé Divina. Lagoa de Itaenga, 2003.

Boneco de Vara, Acrobata. S.Id.

Page 22: Mamulengo: História e linguagem

5.3 Personagens

Falar dos diversos tipos de personagens presentes no Mamulengo demandaria

muito mais espaço do que este breve estudo permite. Para se ter uma idéia da extensão

do número de figuras, alguns mamulengueiros da Zona da Mata pernambucana possuem

até 100 bonecos, que raramente são apresentados no mesmo show. Em geral, usam em

média 30 figuras em uma apresentação. No entanto, mamulengueiros de outras regiões

possuem um número bem mais reduzido, chegando a se apresentarem com cerca de 08

bonecos.

Os personagens do Mamulengo são, majoritariamente, personagens-tipo e estão

divididos em três grupos: os seres humanos, os animais, e os sobrenaturais. Como

personagens-tipo, sintetizam os diversos tipos de personalidade e papéis sociais que

expressam dilemas universais e, ao mesmo tempo, estão estreitamente conectados com

história da região. E como tal são formados, ao mesmo tempo em que expressam o

contexto histórico de suas produções.

A grande maioria dos personagens tem sido repassada de uma geração à outra de

mamulengueiros. Outros, são criações particulares de um determinado artista. Em

relação aos personagens tradicionais, alguns têm mantido os mesmos nomes, outros,

entretanto, apresentam variações, embora seus atributos (físicos e psicológicos) assim

como, suas funções no espetáculo permanecem iguais.

Muitas vezes estes personagens possuem canções específicas que informam

sobre seus atributos e que são executadas antes mesmo das suas entradas em cena.

Assim, indicam ao público qual o personagem, e conseqüentemente a cena, que será

apresentada.

Humanos

Os personagens humanos são a grande maioria e em linhas gerais podemos dizer

que nas suas configurações expressam: classe social, raças, idades e gêneros. A

combinação destes quatro fatores cria uma gama de tipos que, embora possam aparecer

com nomes variados dependendo da região, apresentam funções similares nos

espetáculos

Classe social: representantes das camadas populares (trabalhadores, artistas,

vagabundos) e representantes do poder (fazendeiros, policiais, padres, médicos). São

Page 23: Mamulengo: História e linguagem

sempre contrapostos em situações de conflico, e quase sempre, o primeiro grupo é o

vencedor;

Raças: brancos, negros, índios e mestiços. Quase sempre o herói é de raça negra e os

poderosos, de raça branca. Uma exeção é Simão, um dos principais protagonistas do

mamulengo da Zona da Mata de Pernambuco que, diferentemente de seus comparças

negros (Benedito, Baltazar, Joaquim Bozó) é branco. Índios aparecem principalmente

nas cenas dos “Caboclinhos”, uma representação do folguedo onônimo que mostra um

grupo de indios dançando, cantando e dizendo loas (versos).

Idades: em contraposição à quase existência de crianças, existe grande quantidade de

velhos (viúvas assanhadas e velhos maliciosos) e adultos. Esta característica demonstra

a ligação do Mamulengo com o universo adulto.

Gênero: enquanto os personagens masculinos são representados de forma mais

individualizada, apresentando características mais específicas (nome; função específica

no espetáculo; profissão), as personagens femininas são construídas de forma mais

genérica e quase nunca possuem uma profissão e poucas vezes um nome fixo. São na

sua maioria classificadas como: solteiras, casadas ou viúvas. No entanto, um dos

personagens mais recorrentes e de atributos bem marcados é Quitéria, a mulher do

fazendeiro. Este último aparece com nomes diversos (Mané Pacaru, Mané de Almeida,

Capitão João Redondo).

Velho. Mestre Pedro Rosa. Museu do Homem do Nordeste, Recife. Foto Izabela Brochado

Page 24: Mamulengo: História e linguagem

Coronel Mané Pacaru. Museu do Mamulengo, Olinda. Foto Izabela Brochado

Doutores – Museu do Mamulengo, Olinda. Foto Izabela Brochado

Policiais. Museu do Mamulengo, Olinda. Foto Izabela Brochado

Page 25: Mamulengo: História e linguagem

Sobrenaturais

Dentre os personagens sobrenaturais, os mais comuns são a Morte e o Diabo.

Este último recebe nomes diversos (e.g., Capiroto, Coisa Ruim, Anjos dos Olhos de

Fogo) e quase sempre aparece em cena para levar para o inferno as almas pecaminosas

(viúvas assanhadas; filhos ingratos; avarentos). Enquanto o Diabo aparece como um

personagem cômico, a Morte é solene, quase hierática, representada por uma figura

branca de longos braços. Além destes dois, observa-se também a presença de vampiros,

e outros ligados especificamente ao imaginário brasileiro como, o papa-figo, o curupira,

personagens com três cabeças, entre outros.

Diabo, de Luiz da Serra e Morte de Pedro Rosa. Museu do Homem do Nordeste, Recife. Foto de Izabela

Brochado

Animais

Diferentemente das fábulas, no Mamulengo os animais nunca falam e os mais

comuns são o boi e a cobra. A recorrência do Boi tanto pode ser uma evidência da

importância do animal na região, como estar relacionada aos folguedos que encenam a

morte e ressurreição de um boi (Bumba-meu-Boi, Cavalo Marinho, Boi de Reis), que

são bastantes populares no Nordeste. Outros animais que aparecem com certa

Page 26: Mamulengo: História e linguagem

freqüencia são pássaros, cavalos, porcos, entre outros, evidenciando a relação do

Mamulengo com o contexto rural.

Burro. S.id. Museu do Homem do Nordeste, Recife. Foto de Izabela Brochado

5.4 Movimentos e Gestos dos bonecos

São determinados pelos aspectos técnicos de construção relacionados aos materiais, às

articulações, ao tamanho e ao peso das figuras.

Além das qualidades físicas dos bonecos, os seus movimentos e gestos estão

relacionados com aspectos expressivos que o manipulador deseja comunicar. Assim,

podemos dividir os movimentos realizados pelos bonecos em quatro tipos:

A) Movimentos funcionais: expressam uma ação corriqueira e comunicam exatamente o

que mostram, por exemplo:

• Movendo-se devagar: caminhando

• Movendo-se rápido: correndo

• Ficando de pé parado

• Deitando na frente no palco

• Levantando-se, etc.

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B) Movimentos que acompanham e reforçam a fala: como a grande maioria dos

bonecos não possui movimento facial é o seu movimento o indicador de sua fala,

evidenciando qual dos bonecos em cena que está falando. Os movimentos mais comuns

são:

• Bater com a mão no palco

• Bater uma mão na outra

• Mover a cabeça de um lado a outro

C) Movimentos que expressam emoções e sentimentos: estes movimentos expressam

um estado emocional do boneco /personagem e como tal, possuem uma um aspecto

sintático (o movimento em si) e um semântico (a sua significação). Vejamos alguns

exemplos:

Semântico Sintático

Se exibindo Caminhando orgulhosamente de um lado a

outro

Pensativo Segurando a cabeça com a mão

Satisfação Esgregando as mãos uma na outra

Rindo Sacudindo-se

Felicidade Pulando

Medo Tremendo

Chorando Abaixando a cabeça e sacudindo-a entre as

mãos

4) Movimentos intencionalmente compostos para expressarem uma mensagem dirigida

a outro personagem: assim como o anterior, estes movimentos também possuem dois

aspectos. Alguns exemplos são:

Semântico Sintático

Chamando a atenção de alguém Bater a mão na cabeça, nas costas

ou no ombro de outro boneco

Saudando Abaixando a cabeça

Page 28: Mamulengo: História e linguagem

Expressão de amor Acariciando e abraçando o outro

boneco

Agressão Bater com a cabeça no outro

Expressão de indiferença Virar de costas pro outro

5.5 A Voz do Boneco

Para expressar a variedade de vozes, o mestre mamulengueiro deve ser capaz de

imitar o repertório sócio linguístico do grupo (comunidade/sociedade) que representa.

Isto é conseguido com a composição de elementos que formam as diferentes qualidades

da voz humana como: volume, tom, timbre, ritmo. Além destes, o mamulengueiro

utiliza ainda sotaques, imitações de línguas estrangeiras (o padre que fala “latim”), erros

gramaticais, entonações distorcidas (rouquidão, fala fanhosa, etc) para caracterizar a voz

do personagem. Assim, um rico e vasto espectro de formas e maneiras de falar são

trazidos à cena, enfatizando a importância da qualidade vocal do mestre

mamulengueiro. A quantidade e qualidade das vozes produzidas, é um dos principais

atributos para se julgar a qualidade de um mamulengueiro

6. Conclusão

Ao olharmos um pântano de cima, veremos uma água parada. Se afundarmos no

pântano, munidos de óculos de mergulho, veremos uma grande quantidade de vidas que

nele habitam. Se aprofundarmos ainda mais a nossa pesquisa, podemos chegar a

conhecer as inter-relações entre estes organismos e entre eles, e o seu meio ambiente.

Assim também acontece com as expressões da cultura.

Ao verticalizarmos o nosso olhar sobre o teatro de bonecos popular do nordeste,

poderemos compreender a sua complexidade, tecida ao longo do tempo e em diferentes

espaços. Poderemos compreender como os bonequeiros articulam os códigos desta

linguagem artística para se comunicarem com o seu público e como estes elementos se

relacionam com outros aspectos da cultura. Esta postura investigativa põe abaixo visões

pré-conceituosas e pré-concebidas acerca da produção dos artistas populares, levando-

nos a compreender, de forma mais aprofundada, sobre o teatro de bonecos, e sobre

aspectos da nossa identidade cultural.

Page 29: Mamulengo: História e linguagem

A função do professor é estimular e guiar os seus alunos nas suas pesquisas. Para tal, o

professor precisa ter, ele mesmo, percorrido alguns caminhos e continuar instigado a

percorrer outros que ainda não conhece.

Bibliografia

BORBA FILHO, Hermilo. Fisionomia e Espírito do Mamulengo. Rio de Janeiro:

INACEM, 1987.

BROCHADO, Izabela C. ______. “Distrito Federal: o Mamulengo que mora nas

cidades - 1990-2001.” Dissertação, Universidade de Brasília, Brasília, 2001.

______. “Mamulengo Puppet Theatre in the Sócio Cultural Context of Twentieth

Century Brazil.” Tese, Trinity College University of Dublin, 2006.

PASQUALINO, Antonio. “Marionettes and Glove Puppets: Two Theatrical Systems of Southern Italy.” Semiotica, 47, No.4 (1983), 219-280.

TILLIS, Steve. Toward an Aesthetic of the Puppet: Puppetry as a Theatrical Art.

London, Greenwood, 1992