livro alice lopes - conhecimento escolar conhecimento e cotidiano

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CONHECIMENTO ESCOLAR:CINCIA E COTIDIANO

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Reitor Antnio Celso Alves Pereira Vice-reitora Nilca Freire

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Conselho Editorial Elon Lages Lima Gerd Bornheim Ivo Barbieri (Presidente) Jorge Zahar (in memoriam) Leandro Konder Pedro Luiz Pereira de Souza

Alice Ribeiro Casimiro Lopes

CONHECIMENTO ESCOLAR:CINCIA E COTIDIANO

Rio de Janeiro 1999

Copyright 1999 by Alice Ribeiro Casimiro Lopes Todos os direitos desta edio reservados Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. proibida a duplicao ou reproduo deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer meios, sem a autorizao expressa da Editora.

EdUERJ Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Rua So Francisco Xavier 524 - Maracan CEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ Tel./Fax: (021) 587-7788 Tel. (021) 587-7789 / 587-7854 / 587-7855 e-mail: [email protected]

Coordenao de Publicao Coordenao de Produo Projeto Grfico e Capa Diagramao Reviso Apoio Administrativo

Renato Casimiro Rosania Rolins Heloisa Fortes Celeste de Freitas Ana Silvia Gesteira Maria Ftima de Mattos

CATALOGAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/PROTAT

L864

Lopes, Alice Ribeiro Casimiro. Conhecimento escolar : cincia e cotidiano / Alice Ribeiro Casimiro Lopes. Rio de Janeiro : EdUERJ, 1999. 236p. ISBN 85-85881-71-2

1. Currculos. 2. Abordagem interdisciplinar do conhecimento. I. Ttulo. CDU 371.214

memria do professor Jos Amrico Motta Pessanha, com quem aprendi, bachelardianamente, que somos o limite de nossas iluses perdidas

Sumrio

PREFCIO APRESENTAO INTRODUO A PROBLEMTICA I-

............................................................................................... 9 ............................................................................................. 13 ............................................................................................. 17DA

CULTURA

E DO

CONHECIMENTO ........................................... 33

Pluralismo e descontinuidade da razo, do real e do mtodo ............... 35 I.1 - Contra o monismo metodolgico nas cincias fsicas ................... 36 I.2 - Marx e a crtica ao empirismo nas cincias sociais ...................... 44 I.3 - Pluralismo, descontinuidade e argumentao ................................. 48

II - Cultura, saber e conhecimento ................................................................. 63 II.1 - Cultura ............................................................................................. 64 II.2 - Processo de diviso social da cultura ............................................ 73 II.3 - Seleo cultural ............................................................................... 84 II.4 - O problema da legitimidade dos saberes ...................................... 93 SABERESEM

RELAOSE

AOS QUAIS O

CONHECIMENTO

ESCOLAR

CONSTITUI .............................................................................. 103

III - Conhecimento cientfico ......................................................................... 106 III. 1 - O que cincia ? ....................................................................... 109 III. 2 - A descontinuidade no conhecimento cientfico ........................ 117 III. 2.1 - Recorrncia histrica ............................................................... 121 III. 2.2 - A ruptura entre conhecimento comum e conhecimento cientfico nas cincias fsicas .................................................. 123 III. 2.3 - Para uma nova cincia, uma nova filosofia .......................... 129 IV - O conhecimento cotidiano ...................................................................... 137 IV. 1 - Cotidianidade: vida e conhecimento ......................................... 139 IV. 2 - Conhecimento cotidiano: senso comum e saberes populares .. 147 IV. 3 - Conhecimento cotidiano e diviso social do conhecimento .... 1537

CONHECIMENTO ESCOLAR

EM

FOCO .................................................................... 157

V - Coordenao de anlises epistemolgicas e sociolgicas .................... 161 VI - Processo de disciplinarizao ................................................................ 175 VI.1 - A noo de disciplina ................................................................ 175 VI.2 - Estratificao e compartimentao do conhecimento ............... 183 VI.3 - Tenso disciplinaridade-interdisciplinaridade ............................ 194 VII - Processo de mediao (ou transposio) didtica ................................ 201 CONCLUSES ........................................................................................... 221

8

PREFCIO

Desagradam-me muitos prefcios. Alguns, dotados de alto teor laudatrio, limitam-se a derramar elogios sobre o autor e sua obra, buscando antecipar (nem sempre devidamente) o que precisaria ser opinio formada aps livre e cuidadosa leitura. Por exagerarem, no merecem ser levados a srio. Acabam fracassando, ento, na tentativa de convencer o leitor do valor do texto. Outros, muito extensos, esforam-se por aprofundar as questes tratadas no livro e, correndo em paralelo, tornam-se, quase, um outro livro. Em vez de estimularem, cansam o leitor. Em resumo, tanto a louvao como o minilivro cumprem mal a funo de propaganda. A meu ver, um bom texto pode dispens-los, pode falar por si mesmo. Como fugir, ento, a ambos? Que esperar de um prefcio? Talvez, como prope Magda Becker Soares, caiba a quem o redige esclarecer ao leitor por que o livro se sustenta por si prprio e como se situa no conjunto dos demais estudos da rea. Ou seja, tratar-seia de contextualizar o texto e destacar seus principais avanos. Por concordar, este o caminho que percorro ao prefaciar o livro de Alice Casimiro Lopes. A obra aborda questes de conhecimento escolar, portanto, questes de currculo. Se entendermos currculo como o faz Tomaz Tadeu da Silva, como o espao em que se desdobram as experincias de conhecimento que a escola propicia aos estudantes, o que Alice discute sem sombra de dvida, currculo. Seu livro, insere-se, ento, no conjunto da recente produo que toma o currculo como objeto de estudo. J vale, nesse ponto, assinalar uma contribuio: a autora d alento a um campo que, a despeito de um significativo9

desenvolvimento nas ltimas dcadas, ainda carece e precisa beneficiar-se de novas e originais reflexes. Mais voltado, em seus primrdios, para questes de ordem prtica, preocupado dominantemente com o processo de planejar, implementar e avaliar, o campo do currculo no Brasil ganha visibilidade, nas dcadas de 60 e 70, com os livros de Marina Couto, Dalila Sperb e Lady Lina Traldi. Nossas especialistas refletem, nesse momento, a preocupao com a construo cientfica, na escola, de um ambiente de aprendizagem capaz de proporcionar ao aluno experincias que instrumentalizassem o alcance de metas pr-definidas. Incorporam, assim, os pontos de vista dos autores americanos associados ao progressivismo americano e ao que no Brasil convencionamos chamar de tecnicismo. Na dcada de 70, o campo do currculo americano passa por um processo de reconceptualizao, em que se rejeitam os rumos e as nfases anteriores e se acentua o carter poltico das decises curriculares. Nesse processo notabilizam-se os nomes de William Pinar, Michael Apple e Henry Giroux, a despeito das diferenas que os distinguem. No Brasil, porm, somente nos anos 80, quando toda nossa literatura pedaggica sofre intensa transformao, que as discusses curriculares passam a dirigir sua ateno para a seleo do conhecimento escolar e seus efeitos no sucesso ou no fracasso de nossas crianas na escola. Defendem distintas perspectivas, nesse instante, os adeptos da pedagogia crtico-social dos contedos e os defensores da educao popular. Esse debate marca, inevitavelmente, os rumos do campo. Nessa mesma dcada de 80, nossos especialistas comeam a sofrer a influncia dos estudos da teoria crtica de currculo, tal como desenvolvida nos Estados Unidos, principalmente, e na Inglaterra. As atenes se desviam, ento, do planejamento para a compreenso do processo curricular, focalizando-se, dominantemente, questes de seleo, organizao, hierarquizao e distribuio do conhecimento escolar e relacionando-as estrutura de poder do contexto social mais amplo. A preocupao com tais temas evidente nas obras dos socilogos do currculo mais conhecidos entre ns Michael10

Apple, Henry Giroux, Peter McLaren, Michael Young e Basil Bernstein. A teorizao curricular crtica responsvel, em seus vinte e muitos anos de existncia, por numerosa produo, ainda que, ao final do sculo, seja vista em crise, com sua capacidade de anlise esgotada. Novas tendncias e novas influncias parecem contribuir para que se avalie que ela no mais responde aos desafios prticos que lhe so colocados. Penso, porm, que esse discurso, responsvel por significativa renovao no campo, apresenta, em tempos psmodernos, possibilidades no cumpridas e pode mesmo vir a oxigenarse com a contribuio dos novos referenciais que o atravessam. No pretendendo discutir a crise por que passa a tendncia crtica, deixo-a de lado. Volto renovao a que me referi para nela incluir os nomes de Ana Maria Saul, Iracema Lima Pires Ferreira, Jos Alberto Pedra, Jos Luiz Domingues, Nilda Alves e Teresinha Fres Burnham, membros histricos do Grupo de Trabalho de Currculo da ANPEd (Associao Nacional de Ps-graduao e Pesquisa em Educao), bem como os de Tomaz Tadeu da Silva, Alfredo Veiga Neto e Regina Leite Garcia, que mais recentemente vieram a se incorporar ao referido GT. Destaco tambm o nome de Lucola Santos que, ainda que participante de outro GT Didtica , tem apresentado expressiva contribuio para a discusso do conhecimento escolar. Alice Casimiro Lopes ilustre membro da chamada segunda gerao do GT de Currculo, juntamente com Corinta Geraldi, Elizabeth Macedo, Marlucy Paraso, Nereide Saviani, Regina Coeli Cunha e Sandra Mara Corazza, dentre outros, tem incorporado e revigorado as reflexes desenvolvidas pelos histricos sobre o conhecimento escolar. Mas em que, especificamente, Alice inova, neste livro que tenho o prazer de prefaciar? o que passo a comentar. Elaborado no incio da segunda metade da dcada de 90, o livro preserva, com muita propriedade, a preocupao da teorizao crtica com o conhecimento escolar. Procura entender como se d a sua produo no mbito da instituio educativa, bem como de que maneira tal processo pode facilitar a divulgao (no a trivializao) do chamado conhecimento cientfico, de tanto prestgio entre ns11

contemporaneamente. Nesse sentido, cabe realar o esforo por associar o que Mirian Warde chama de ensino de s discusses mais gerais que vm caracterizando o campo do currculo, reforando, portanto, o indispensvel dilogo entre os especialistas em ensino de cincias e os que estudam currculo e ensino em termos mais abrangentes. Alice vai ainda mais alm, ao caminhar na tenso que se estabelece quando se procura pensar processos prprios a qualquer conhecimento escolar, processos especficos de uma dada disciplina, relaes entre o conhecimento escolar e o saber de referncia, bem como situar as constituies e as caractersticas de uns e de outros no seio das discusses da cultura e de suas diferentes manifestaes. Da as indagaes que prope: que entender por conhecimento escolar? Como se forma esse conhecimento? H na escola possibilidade de criao de algo novo ou apenas se reelabora o que se produz em outros espaos? Que peculiaridades assume, nessa dinmica, o conhecimento cientfico escolar? Como se relaciona com as diferentes modalidades de produo cultural? Ressalto como importante contribuio da autora, ao desenvolver sua argumentao, a ousadia de articular as preocupaes e os referenciais da sociologia do currculo a consideraes de cunho epistemolgico, passo, segundo ela, indispensvel a uma compreenso mais profunda do conhecimento escolar. Alice acrescenta: essa articulao se deve fazer com o recurso no a qualquer epistemologia, mas a uma epistemologia histrica e a uma perspectiva descontinusta da cincia. Nesse quadro, relativismo e universalismo podem, a seu ver, ser repensados e melhor entendidos. No pretendo antecipar demais os argumentos e os pontos de vista de Alice. Terminando o prefcio, espero ter conseguido localizar o texto nos rumos do campo do currculo e destacar por que ele se sustenta por si prprio. Espero tambm ter estimulado o leitor a degust-lo, com prazer. Por via das dvidas, reitero o convite: leiam o livro. Vale a pena. Antonio Flavio Barbosa Moreira12

APRESENTAO

Inicialmente, este trabalho1 foi motivado pelo interesse de ampliar questes prprias da pesquisa em Ensino de Cincias, inserindo-as na problemtica do campo do Currculo. Aps mais de dez anos atuando como professora de Qumica, participando de encontros e desenvolvendo trabalhos de pesquisa em Ensino de Qumica, sentia a necessidade de ultrapassar as fronteiras da sala de aula de uma disciplina especfica para compreender a Educao como fenmeno social mais abrangente. Afinal, a Educao no restrita ao ensino, relao pedaggica professor-aluno, nem tampouco escola. Sem dvida fazem-se necessrios trabalhos de pesquisa com respeito s metodologias de ensino em Cincias, contudo no podemos desconsiderar as relaes entre as concepes de conhecimento e cultura e os processos de ensino-aprendizagem na sala de aula, sob pena de no conseguirmos melhorar nem compreender os processos gestados no espao escolar. Assim, foi no cruzamento desses contextos diversos que procurei me movimentar, tendo sido fundamental para isso a sintonia com o campo do Currculo. O foco central deste trabalho o conhecimento escolar e suas inter-relaes com o conhecimento cientfico e o conhecimento cotidiano. O eixo argumentativo orientador desta anlise a interpretao pluralista e descontinusta de cultura, fundamentada no pluralismo da razo, do real e do mtodo. Essa interpretao concebe a existncia de diferentes saberes embasados em diferentes racionalidades e, por conseguinte, concebe a existncia de uma ruptura entre conhecimento cientfico e conhecimento cotidiano.13

A partir desses pressupostos, proponho-me a analisar as contradies engendradas pela apropriao do conhecimento cientfico no espao escolar e o entendimento do conhecimento escolar como uma instncia prpria de conhecimento. Desta forma, objetivo contribuir para a anlise dos processos constitutivos do conhecimento escolar a partir de uma reflexo sobre currculo e cultura, questes centrais hoje nas pesquisas nos campos de Currculo e Didtica e que, a meu ver, precisam iluminar pesquisas em Ensino de Cincias. Em face deste objetivo, construo minha argumentao, considerando, como possveis leitores, pesquisadores e pesquisadoras nesses temas, mas tambm professores e professoras dos diversos nveis de ensino, bem como todos aqueles que se interessam pelos rumos da educao e da cultura neste pas. Como nunca demais reafirmar, todo trabalho de pesquisa e de reflexo terica pode ser solitrio, porm nunca deixa de ser coletivo (e socialmente construdo). H sempre a necessidade da colaborao direta e indireta de vrias pessoas, ainda que a responsabilidade pela produo final seja toda de quem assina. Assim, no possvel deixar de agradecer, especialmente: - ao professor Antonio Flavio Barbosa Moreira, pela constante cobrana e questionamento, pela disponibilidade, pelo apoio intelectual no processo de orientao da tese que deu origem a este livro, mas, acima de tudo, pela amizade; - aos professores Hilton Japiassu, Creso Franco Jnior, Gaudncio Frigotto e Pedro Benjamin Garcia, pelos comentrios feitos por ocasio da defesa de tese; - aos companheiros do Grupo de Trabalho de Currculo da ANPEd, interlocutores de minhas idias, sempre questionadores e, por isso mesmo, sempre colaboradores; - aos integrantes da Diviso de Ensino de Qumica da Sociedade Brasileira de Qumica, em especial ao Conselho Editorial de Qumica Nova na Escola Attico Chassot, Eduardo Mortimer, Jlio Lisboa, Lenir Zanon, Marcelo Giordan, Nelson Beltran, Roberto Ribeiro da Silva, Romeu Cardoso Filho e Roseli Schnetzler ,14

companheiros na difcil luta pela melhoria do ensino de Qumica no pas e, tambm, interlocutores, amigas e amigos com os quais tenho o privilgio de conviver; - minha famlia, por compreender minhas ausncias to freqentes e particularmente ao meu irmo Ricardo, pelas sugestes apresentadas, aps a leitura atenta dos originais; - aos amigos e s amigas da Escola Tcnica Federal de Qumica do Rio de Janeiro - escola onde fiz meu nvel mdio, onde posteriormente trabalhei por mais de dez anos como professora e que, por isso mesmo, marcou minha formao e minha vida; - aos alunos e s alunas, de hoje, de ontem e de sempre, freqentemente excludos das polticas culturais da escola, e por quem trabalho, cotidianamente, entre erros, acertos e tropeos. Mas tambm s professoras e aos professores, colegas em uma luta contra as relaes sociais cada vez mais produtoras de excludos, no apenas dos processos econmicos, mas do direito ao consumo e produo de cultura, conhecimento e cincia e a uma vida cotidianamente melhor; - e por fim, mas no por ltimo, ao Agostinho, companheiro de vitrias e derrotas, das muitas horas de sofrimento e alegria, das perdas e conquistas, desse desafio cotidiano, s vezes doloroso, s vezes inquietante, mas sempre fascinante, que viver.

NOTASO texto deste livro corresponde, com algumas adaptaes, tese de doutorado Conhecimento Escolar: quando as cincias se transformam em disciplinas, defendida na Faculdade de Educao da UFRJ, sob orientao do Prof. Antonio Flavio Barbosa Moreira. Parte deste texto, com moficaes, j foi previamente divulgado sob a forma de artigos, a saber: Bachelard: o filsofo da desiluso. Caderno Catarinense de Ensino de Fsica. Florianpolis, v. 13, n. 3, p. 178-276, dez, 1996; Conhecimento escolar em Qumica: processo de mediao didtica da cincia. Qumica Nova. So Paulo, v. 20, p. 563-568, set/out, 1997; Conhecimento Escolar: processos de seleo cultural e de mediao didtica. Educao & Realidade. Porto Alegre, 1997, v. 21, n. 1.; Conhecimento Escolar: interrelaes com conhecimentos cientficos e cotidianos. Contexto & Educao. Iju, Uniju, v. 11, n. 45, p. 40-59, jan/mar, 1997; Pluralismo Cultural e Polticas de Currculo Nacional. XX Reunio Anual da ANPEd . Caxambu, set. 1997.1

15

INTRODUO

Quando me propus a analisar as relaes entre o conhecimento escolar nas cincias fsicas e os demais saberes sociais, notadamente o conhecimento cientfico1 e o conhecimento cotidiano, tinha em mente cinco pressupostos centrais. O primeiro deles consistia na compreenso de que os problemas de ensino-aprendizagem, seja em cincias ou em qualquer outro campo do conhecimento, no se resumem a questes metodolgicas. Exigem, igualmente, uma profunda anlise do processo de construo social do conhecimento, dos processos histricos de construo dos conceitos cientficos e da legitimao ou no de diferentes saberes. Em outras palavras, h que se compreender os aspectos epistemolgicos e sociolgicos associados ao problema educacional de uma forma mais ampla. Em segundo lugar, considerava importante trazer para a reflexo do campo educacional as anlises da epistemologia histrica, uma epistemologia capaz de no limitar a compreenso do conhecimento: seja por consider-lo como produto absoluto, acabado, atemporal e anistrico, seja por recair em uma perspectiva relativista, que no admite a existncia de saberes mais favorveis do que outros em dado contexto objetivo. Essa minha considerao decorria do fato de constatar como a Nova Sociologia da Educao (NSE) marcou a Sociologia do Currculo e suas concepes de conhecimento com um vis crtico aos critrios epistemolgicos. Afinal, a NSE, ao se opor a uma Filosofia do Currculo de matriz racionalista anglo-saxnica, como a desenvolvida por Paul Hirst e Richard Peters, optou por no oferecer nenhum critrio de17

verdade e nenhuma epistemologia explcita, procurando problematizar tudo o que conta como conhecimento e discutir qual o status de quem valida como verdade dados conhecimentos. Nesse ponto de vista, o verdadeiro critrio de validao do saber encontrado na capacidade de um dado saber contribuir para a libertao humana2 . Com isso, a concepo sociolgica do currculo, no raramente, envereda por perspectivas relativistas3 e contribui para a viso de que todo o campo da epistemologia deve ser considerado como empirista, nos moldes do tecnicismo, ou como embasado em uma racionalidade limitada, tal qual o positivismo e o cartesianismo, sem admitir a possibilidade de uma epistemologia tambm problematizadora. Mas, ao contrrio, a epistemologia no se resume s perspectivas que concebem o conhecimento como fundamentado por uma entidade transcendente Deus, a Natureza ou a Razo. Essas so possveis epistemologias, que pouco tm a contribuir para uma perspectiva crtica, justamente por no se disporem a discutir as rupturas do conhecimento, sua pluralidade e o carter provisrio das verdades cientficas. Dessa forma, considerava poder contribuir para o trabalho da sociologia do currculo a partir das concepes da epistemologia histrica, visando a enriquecer a problematizao sobre o conhecimento escolar que vem sendo desenvolvida no pas4 . Em terceiro lugar, colocava-se como pressuposto central em minhas reflexes, o entendimento de que, embora a escola no seja restrita ao cognitivo, h nos processos curriculares uma centralidade do conhecimento e da cultura. Ainda que no possamos desconsiderar as demais instncias da escola o ldico, o afetivo, o corporal , o currculo eminentemente um campo de polticas culturais, terreno de acordos e conflitos em torno da legitimao ou no de diferentes saberes, capaz de contribuir na formao de identidades individuais e sociais. Na medida em que a escola compreendida socialmente como tendo por principal funo ensinar, transmitir conhecimento e cultura, de forma a tornar pblico um conhecimento privativo de determinados grupos sociais, apresentam18

se como extremamente relevantes as questes referentes ao conhecimento escolar. Como quarto pressuposto, situava-se o entendimento de que a perspectiva pluralista de cultura seria capaz de contribuir para a anlise de diferentes saberes sociais, inclusive do conhecimento escolar, sem submet-los idia de que so um conjunto de mltiplas manifestaes passveis de serem unificadas em um todo nico. Tal idia de uma multiplicidade emprica que em ltima instncia se organiza em um saber uno, justificado por uma razo, um real e um mtodo igualmente nicos, freqentemente se faz dominante, nos mais diferentes contextos sociais, e atua ideologicamente como valorizadora de alguns saberes (e algumas racionalidades) em detrimento de outros saberes (e de outras racionalidades). Portanto, deve ser questionada em seu prprio processo de constituio. Como quinto e ltimo pressuposto, existia a preocupao em entender a dimenso produtiva do conhecimento escolar, focalizada por Chervel 5 e Forquin6 , especificamente no mbito das cincias fsicas. Segundo esses autores, o conhecimento escolar essencialmente uma cultura de segunda mo em relao cultura de criao: subordinada funo de mediao didtica e determinada pelos imperativos decorrentes dessa funo. Ou seja, o conhecimento cientfico e/ou erudito no pode ser transmitido na escola tal qual produzido. H necessidade de processos de transposio didtica, capazes de tornar os saberes escolares dotados de especificidade, frente aos conhecimentos cientficos e/ ou eruditos. Nesse sentido, a escola verdadeiramente criadora de configuraes cognitivas e de habitus7 originais, constituintes de uma cultura escolar sui generis. Portanto, h uma diferena, no necessariamente indesejvel, entre saber ensinado e saber de referncia: as novas configuraes cognitivas, construdas pela escola ao reconstruir o saber de referncia, podem trabalhar no sentido de formar habitus desejveis no educando, habitus esses que no seriam produzidos pela simples transmisso do saber de referncia.19

Porm, quando se trata do conhecimento escolar nas cincias fsicas, a definio de suas caractersticas prprias se mostra mais controversa, uma vez que se trata de um conhecimento altamente valorizado socialmente, entendido como sistematizado e pr-definido. Ou seja, tende-se a considerar qualquer transformao do conhecimento cientfico no contexto escolar como um erro ou, ao menos, uma simplificao problemtica. Por outro lado, o conhecimento cientfico rompe com os princpios e formas de pensar cotidianos, com os quais o conhecimento escolar precisa dialogar, o que nos exige compreender como essas inter-relaes entre diferentes saberes sociais podem acontecer, de forma a favorecer a socializao do conhecimento. Assim, constitua-se como eixo articulador das questes decorrentes desses cinco pressupostos a preocupao com a pluralidade cultural e com os conhecimentos cientfico, escolar e cotidiano. A atualidade dessa temtica amplificada quando constatamos os processos contraditrios de valorizao / desvalorizao do conhecimento observados na sociedade brasileira. Concomitante ao discurso de que a escola a qualidade na escola pode salvar o pas, presente nos projetos de Qualidade Total lanados no Governo Fernando Collor, em todo discurso sobre a educao dominante na campanha eleitoral do ento candidato presidncia Fernando Henrique Cardoso, em 1994, e na atual proposta de seu governo, Acorda, Brasil. Est na hora da escola !, existe uma descrena quanto s possibilidades dessa mesma escola ensinar algo de til8 . O discurso oficial enfatiza a necessidade de mudar a escola para mudar a sociedade e faz prevalecer a idia de que a escola se modificar pela ao e vontade de cada um de ns, no pela implementao de um projeto poltico que associe Estado e sociedade civil organizada. Ao mesmo tempo, a mdia salienta a m qualidade de ensino e o despreparo dos professores como fatores justificadores das polticas governamentais. Por outro lado, constatamos, contraditoriamente, que o prprio conhecimento deixa de ser encarado como importante no sentido mais amplo de compreender / modificar uma realidade adversa,20

prevalecendo a nfase no senso comum. Ao mesmo tempo que a racionalidade parece perder foras na sociedade como um todo, a comear por uma valorizao ideolgica do misticismo. As cincias no so mais consideradas como instncia capaz de permitir a libertao humana, ainda que mantenham seu poder inequvoco e cada vez mais se articulem s polticas globais e s nossas aes cotidianas. Mesmo que essa perspectiva permita um questionamento salutar do modelo de razo ocidental, com base na matriz cartesiana, favorece a valorizao da des-razo, do irracional ou o enaltecimento do senso comum. Nesse contexto, tem-se todo espao aberto opinio, pelo puro e simples fato de ser opinio pblica, esvaziando-se aparentemente o espao dos especialistas. Um exemplo disso so os constantes levantamentos sobre os assuntos mais diversos: devemos ou no privatizar a Vale do Rio Doce?, O Plano Real vai ou no dar certo ?. Programas de televiso, a exemplo do Voc decide, propem aos espectadores a deciso sobre as mais diversas questes scio-comportamentais, como se estas pudessem ser decididas sem o aprofundamento do debate, e a opinio da maioria, por si s, fosse a verdade. Ao contrrio, como essa opinio muitas vezes a exacerbao de uma retrica doutrinria, nos dias de hoje muito bem representada pelo discurso da propaganda, esse discurso falsamente democrtico da maioria acentua a ao dos especialistas na defesa de um conhecimento privado contra um conhecimento realmente pblico. Em contrapartida, devido aos processos de globalizao da economia e mundializao da cultura, somos colocados em meio a um fluxo informacional cada vez maior. O acesso ou no a informaes privilegiadas define, no invariavelmente, a incluso ou excluso de pessoas nos processos de produo. Talvez nunca to claramente tenha se compreendido que o domnio do conhecimento, especialmente do conhecimento cientfico, central nos processos econmicos. Esse quadro traz conseqncias diretas para o panorama educacional, principalmente no que se refere funo de construo / transmisso cultural da escola. Afinal, tem sido essa a funo mais21

importante da escola discutida na Educao, notadamente, a partir dos anos 60. Desde ento, a crise da Educao vem sendo associada ao questionamento da legitimidade do que nela se ensina. Seja a partir da constatao de um descompasso entre o que se ensina na escola e as transformaes sofridas pela cincia e pela tcnica, nitidamente delineada na reao americana subida do Sputnik, seja pela problematizao do conhecimento, ou do que considerado conhecimento, a partir do desvelamento de seu carter arbitrrio e ideolgico. Mais precisamente a partir dos anos 70, temos o desenvolvimento do discurso de deslegitimao dos saberes ensinados (reprodutivismo), esboando-se, nos anos 80, a restaurao dos saberes (reao reproduo). Tambm nos anos 70, vemos emergir o movimento da NSE que, dentre suas principais concluses, destacou ser o conhecimento escolar constitudo por uma seleo particular e arbitrria de um universo muito mais amplo de possibilidades. H um processo de tradio seletiva, fruto de lutas e conflitos entre grupos e classes sociais, que atua no sentido de valorizar dado conhecimento. Nessa perspectiva, no existe nenhum currculo neutro e imparcial, nem tampouco um conhecimento escolar absoluto e imutvel. Grupos e classes dominantes atuam no sentido de valorizar suas tradies culturais como conhecimento, excluindo tradies culturais de grupos e classes subordinadas. Em vista disso, estudiosos em Currculo passam a compreender o processo de criao, seleo, organizao e distribuio do conhecimento escolar como estreitamente relacionado com os processos sociais mais amplos de acumulao e legitimao da sociedade capitalista9 . A compreenso desse fato no nos permite desconstruir o papel da escola como capaz de contribuir para a reproduo das relaes sociais excludentes, mas sem dvida nos permite desmascarar concepes tecnicistas e essencialistas de currculo, as quais desconsideram questionamentos quanto ao que se ensina na escola e tornam reificado o currculo tradicional. Bem como nos permite22

trabalhar no sentido de uma reformulao curricular que atenda aos interesses de parcelas mais amplas da sociedade. Por outro lado, essa estreita relao entre os processos curriculares e os processos socioeconmicos mais gerais no nos deve direcionar para um determinismo mecanicista. A afirmao dos condicionantes econmicos sobre a cultura no deve empobrecer o mundo simblico em geral, limit-lo ao campo das conseqncias da base material, menosprezando, ou mesmo ignorando, sua capacidade produtora. Assim, o contexto no qual se insere atualmente a escola brasileira vem redimensionar o intenso debate educacional dos anos 80, entre os adeptos da valorizao dos contedos e do saber elaborado e historicamente acumulado, e os que defendiam a valorizao dos processos de conscientizao, e consideravam tal saber como um saber da classe dominante. Como enfoca Santos10 , a primeira vertente ressalta a necessidade de a escola socializar os conhecimentos historicamente acumulados, o que, de certa forma, significa tornar a escola responsvel pela popularizao do conhecimento cientfico. A segunda vertente enfatiza a necessidade de a escola trabalhar com a cultura das camadas populares, rompendo a relao existente entre a cultura escolar e as experincias e cultura daqueles que detm o poder na sociedade. Hoje compreendemos o quanto essa dicotomia no se justifica, uma vez que nenhum processo de conscientizao pode ocorrer sem que esteja associado a processos de construo / transmisso de conhecimentos, assim como, independentemente de valorizarmos saberes historicamente acumulados, no podemos deixar de questionar as marcas de classe que assumem11 . A escola reproduz, mas tambm resiste, e nesse campo de contradies precisamos trabalhar para: socializar o conhecimento cientfico, dialogar com os saberes populares e desconstruir a valorizao ideolgica do conhecimento cientfico feita na escola, sem que haja, muitas vezes, efetivamente, o ensino desse conhecimento. Em suma, neste trabalho procuro apresentar uma23

contribuio da epistemologia histrica e da perspectiva descontinusta e pluralista para a anlise do conhecimento escolar, questionando tanto posies que supem existir um critrio de verdade nico para definir o currculo escolar, quanto a viso sociolgica que desconsidera aspectos epistemolgicos. Parto de algumas premissas, j devidamente desenvolvidas por outros autores, na definio do conhecimento escolar: 1) trata-se de um conhecimento selecionado a partir de uma cultura social mais ampla, que passa por um processo de transposio didtica, ao mesmo tempo que disciplinarizado; 2) constitui-se no embate com os demais saberes sociais, diferenciando-se dos mesmos. Em sntese, o conhecimento escolar define-se em relao aos demais saberes sociais12 , seja o conhecimento cientfico, o conhecimento cotidiano ou os saberes populares. Com base nesses pressupostos, argumento em favor da interpretao da cultura dentro de uma perspectiva pluralista e descontinusta, sob o marco da existncia de uma ruptura entre conhecimento cientfico e conhecimento cotidiano. Considero, portanto, que o conhecimento escolar apresenta a contradio de ter como objetivos a socializao do conhecimento cientfico e a constituio do conhecimento cotidiano. Assim, defendo que a via para superar essa contradio no pode ser a interpretao do conhecimento escolar como uma ponte, capaz de mascarar a pluralidade e a descontinuidade do conhecimento. Diferentemente, o conhecimento escolar deve ser compreendido a partir dos processos de transposio (mediao) didtica e de disciplinarizao, eminentemente constitutivos de configuraes cognitivas prprias. Entretanto, ao didatizar o conhecimento cientfico, o conhecimento no se deve constituir em obstculo epistemolgico. Ou seja, a produo de conhecimento na escola no pode ter a iluso de construir uma nova cincia, ao deturpar a cincia oficial, e constituir-se em obstculo ao desenvolvimento e compreenso do conhecimento cientfico, a partir do enaltecimento do senso comum. Ao contrrio, deve contribuir para o questionamento do senso comum, no sentido de no s modific-lo em parte, como limit-lo ao seu campo de atuao.24

O processo escolhido para construo deste trabalho, ele mesmo fruto de omisses e escolhas dentro de mltiplas possibilidades, foi organizado em sete captulos, componentes de trs grandes blocos de anlise. O primeiro bloco A problemtica da cultura e do conhecimento se compe de dois captulos. No primeiro captulo, analiso o pluralismo e o descontinusmo da razo, do real e do mtodo, princpios que fundamentam a interpretao pluralista da cultura e do conhecimento. Procuro demonstrar como as usuais concepes metodolgicas se aliceram em concepes monistas13 de real e de razo, e dessa forma fundamentam a subordinao das cincias sociais s cincias fsicas. Essa demonstrao feita pelo desenvolvimento do argumento de que as prprias cincias fsicas j no mais se fundamentam na viso unitria de real e de razo. Dessa forma, sustento que as rupturas no campo das cincias sociais devem ser compreendidas segundo caractersticas prprias, e no a partir da incorporao de modelos oriundos das cincias fsicas. No campo das cincias sociais, procuro analisar como o marxismo contribui para o questionamento das concepes epistemolgicas tradicionais. A partir das categorias totalidade e concreto-pensado, possvel desconstruir o empirismo e sua concepo de conhecimento como reflexo do real aparente. Na tentativa de compreender o modelo de cientificidade prprio das cincias humanas (e por isso mesmo sociais), defendo a perspectiva pluralista e argumentativa, questionadora do modelo reducionista de racionalidade ocidental. Com esse conjunto de argumentos, defendo, no segundo captulo, que a diversidade cultural funo no apenas da diversidade de classes sociais, mas tambm do fato de que diferentes saberes no podem ser reduzidos a uma nica razo, no se igualam do ponto de vista epistemolgico. Explicito, assim, as bases de interpretao da cultura e do conhecimento que utilizo. Ainda no segundo captulo, analiso o conceito de cultura em nossa sociedade de classes. Discuto seu processo de reificao e25

transformao em mercadoria, conduzido pela negao de sua relao com o trabalho. Em contrapartida, argumento em favor da interpretao pluralista da cultura, como forma de combater a tendncia uniformizante das diferenas culturais, tendncia esta que se constitui como crtica hierarquia dos saberes. Em outras palavras, compreendo que o questionamento s hierarquias culturais cultura culta, cultura popular no se deve fundamentar na homogeneizao epistemolgica dos saberes. Questiono, ainda, a identificao da cultura dominante com a cultura erudita, fator que facilmente justifica a desvalorizao das culturas populares, na medida em que a cultura erudita entendida como o que h de melhor na sociedade. Com essa interpretao de cultura, primeiramente focalizo os processos de seleo cultural. Desenvolvo o questionamento ao ponto de vista de que existe um conhecimento historicamente construdo, universal, sistematizado, dominante, e que deva ser ensinado a todos, indistintamente. Considero essa perspectiva de sistematizao e universalidade como idealista, por se colocar ao largo dos reais processos de construo do conhecimento dominante nas sociedades capitalistas contemporneas. O conhecimento dominante, o conhecimento das classes dominantes e que se faz hegemnico, nem sempre o conhecimento cientfico, universal. Muitas vezes no passa de senso comum, conhecimento de massas. Por sua vez, o processo de seleo cultural o processo construtor de uma tradio, ao construir o que considerado universal. Nesse processo, muitos conhecimentos so excludos e outros so privilegiados na organizao do currculo. Importa considerar ainda que, em uma sociedade na qual o conhecimento se constitui em capital cultural, nem todo conhecimento est disponvel para ser selecionado. Em seguida, desenvolvo o argumento de que diferentes saberes possuem legitimidade, sem que para isso tenham de ser cientficos: toda cincia um saber, mas nem todo saber cientfico. O ensino de cincias na escola deve procurar, justamente, construir um conhecimento que permita ao aluno identificar quando a cincia assume papel apenas mistificador, ou quando se tenta conferir a outros saberes26

a lgica cientfica, como forma de lhes conferir o poder da cincia. O terceiro e o quarto captulos compem o segundo bloco Saberes em relao aos quais o conhecimento escolar se constitui. Nesses captulos focalizo, respectivamente, o conhecimento cientfico e o conhecimento cotidiano, sob o prisma da descontinuidade epistemolgica: a construo do conhecimento cientfico se d contra, e no a partir do senso comum cotidiano. No campo das cincias fsicas, a epistemologia histrica mostra-se como instrumental de anlise privilegiado, e Bachelard, sem dvida, seu autor principal. Por ser o filsofo do descontinusmo, salientado, entre outros aspectos, por sua anlise das rupturas entre conhecimento comum e conhecimento cientfico, podemos, a partir de sua obra, enfrentar discusses sobre as relaes entre o conhecimento cientfico e o conhecimento cotidiano. Nas discusses sobre currculo e conhecimento escolar, a compreenso do conhecimento cientfico dentro da perspectiva da epistemologia histrica permite, igualmente, desconstruir interpretaes epistemolgicas positivistas que, a partir de um discurso definidor de critrios de demarcao entre cincia e no-cincia, objetivam desmerecer alguns saberes em detrimento de outros. Tais interpretaes costumam fazer-se a partir de uma anlise aistrica, absolutizada, que constri um discurso cientfico com base no qual saberes noestruturados so desautorizados segundo as regras previamente estabelecidas como definidoras do que cincia. Como afirma Lecourt 14 , Bachelard inaugura esse nopositivismo, distinguindo-se de tudo o que se pratica noutro lado sob a designao de epistemologia. Trata-se de uma epistemologia que se prope muito mais a uma anlise histrica das cincias, de suas revolues, bem como das dmarches do esprito cientfico15 . O chamado outro lado da tradio epistemolgica, que engloba tanto os empiristas lgicos como as perspectivas de Karl Popper e de Imre Lakatos, sempre se apresenta como a cincia da cincia ou a cincia da organizao do trabalho cientfico, ou ainda como uma filosofia cientfica, com base nos conceitos da lgica matemtica.27

Segundo Japiassu16 , trata-se de uma corrente epistemolgica lgica, que visa ao estudo e construo da linguagem cientfica, bem como a uma investigao sobre as regras lgicas que presidem a todo enunciado cientfico correto (positivismo anglo-saxnico). Ao contrrio, a epistemologia histrica nos faz questionar a possibilidade de definirmos de forma definitiva e universal o que cincia. Nessa perspectiva, cincia um objeto construdo socialmente, cujos critrios de cientificidade so coletivos e setoriais s diferentes cincias. No que se refere discusso sobre conhecimento cotidiano, encontro as melhores fundamentaes nos trabalhos de autores marxistas como: Antonio Gramsci, Karel Kosik e, especialmente, Agnes Heller. Todos os trs, de maneiras distintas, interpretam o conhecimento cotidiano de forma a no sacraliz-lo e nem tampouco desmerec-lo. Conseguem estabelecer um contexto prprio para sua atuao, ainda que admitam a necessidade de se questionar e se modificar continuamente tal conhecimento. Procuro analisar como o conhecimento cotidiano se relaciona com as aquisies cientficas, acentuando e defendendo a relao de exterioridade que mantm com as mesmas. Por outro lado, procuro diferenar o senso comum dos saberes populares. Parto do pressuposto de que o senso comum no se restringe a uma dada classe e se mantm como obstculo constante ao desenvolvimento do prprio conhecimento cientfico. Da a atitude crtica de o conhecimento escolar frente ao senso comum no implicar, necessariamente, um desmerecimento dos saberes populares. Ao contrrio, sua valorizao necessria dentro de uma perspectiva pluralista de interpretao dos saberes. No terceiro e ltimo bloco Conhecimento escolar em foco , enfoco o conhecimento escolar em quatro captulos distintos. No captulo cinco, destaco a contribuio da epistemologia histrica, tanto quanto a da sociologia do currculo, na anlise do conhecimento escolar. Argumento que a associao de pressupostos sociolgicos e epistemolgicos necessria para a compreenso desse conhecimento, desde que a articulao se d a partir de uma sociologia e uma epistemologia crticas.28

No captulo seis, analiso o processo de disciplinarizao, pela argumentao de que no podemos abdicar das disciplinas em nome de um projeto interdisciplinar centrado em princpios generalistas de unificao do conhecimento. Defendo a posio de que o combate ao processo de estratificao e compartimentao do conhecimento em disciplinas no deve ser empreendido a partir de um processo de homogeneizao epistemolgica dos saberes. Dessa maneira, procuro redimensionar a discusso sobre o conhecimento especializado frontalmente questionado pelo projeto interdisciplinar versus opinio. Interpretar essa oposio como permanente relao de domnio da opinio pelo conhecimento especializado por demais simplificador. Quantas vezes no observamos na mdia o conhecimento especializado ser silenciado, com a prevalncia da opinio, sequer realmente pblica, a servio da esfera pblica ? Quantas vezes no vemos o conhecimento escolar se afastar do conhecimento especializado e veicular a opinio hegemnica do senso comum, a retrica vazia, discurso justificador das relaes sociais dominantes ? Em nossa anlise do conhecimento escolar cabe tambm, portanto, a redefinio do papel social do discurso do especialista, porta-voz do discurso cientfico, e o conseqente redimensionamento do debate sobre a interdisciplinaridade. No captulo sete, analiso o processo de mediao didtica, defendendo ser este um termo mais apropriado para o processo de reconstruo dos saberes cientficos na escola do que o termo transposio didtica, extremamente ambguo, por tender a significar apenas reproduo de saberes. O processo de mediao didtica, articulado ao processo de disciplinarizao, um dos processos centrais de constituio do conhecimento escolar. No nvel bsico de ensino, a ausncia de maior profundidade da matematizao nas cincias fsicas exige o maior apelo s metforas, que tendem a se constituir em distores do conhecimento cientfico, reforando, indevidamente, a continuidade com o conhecimento cotidiano. nessa funo de mediao didtica que mais se evidencia o papel contraditrio do conhecimento escolar frente aos saberes cientfico e cotidiano.29

Concluo pela anlise das possibilidades do conhecimento escolar nas cincias fsicas, dentro da perspectiva pluralista e descontinusta, e contribuir para um projeto de formao cultural, direcionado para os interesses de parcelas mais amplas da sociedade. Em vista do fato de as cincias serem um saber extremamente valorizado em nossa sociedade, em nome do qual muitas vezes se exerce a dominao seja pela transformao do discurso tcnicocientfico em discurso de elite, seja pela veiculao da lgica do senso comum como lgica cientfica , o questionamento do conhecimento escolar nas cincias fsicas terreno frtil para explorarmos as contradies da escola.NOTAS1

A expresso conhecimento cientfico, no contexto deste trabalho, ser utilizada freqentemente restrita ao conhecimento nas cincias fsicas, o que no significa, contudo, desconsiderar a existncia de cientificidade no campo das cincias sociais, como analiso no captulo 1. 2 YOUNG, Michael. Taking sides against the probable: problems of relativity and commitment in teaching and the sociology of knowledge. In: JENKS, Chris (ed). Rationality, education and social organization of knowledge. London: Routledge & Kegan Paul, 1978. p. 86-95. 3 Para uma anlise das crticas feitas contra o relativismo terico da NSE, ver: FORQUIN, Jean-Claude (org.). Sociologia da educao - dez anos de pesquisa. Petrpolis: Vozes, 1995. 4 Ver trabalhos apresentados na ANPEd nos ltimos dez anos, especialmente nos GTs de Currculo e Didtica. 5 CHERVEL, Andr. Histria das disciplinas escolares: reflexes sobre um tema de pesquisa. Teoria e Educao. Porto Alegre, n. 2, p. 177-229, 1990. 6 FORQUIN, Jean-Claude. Saberes escolares, imperativos didticos e dinmicas sociais. Teoria e Educao, Porto Alegre, n. 5, p. 28-49, 1992. _________. Escola e cultura. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1993 7 Habitus um termo da filosofia escolstica reinterpretado por Bourdieu, no contexto do embate entre o objetivismo e a fenomenologia. Para Bourdieu, habitus definido como sistema de disposies durveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto , como princpio que gera e estrutura as prticas e as representaes que podem ser objetivamente regulamentadas e reguladas sem que por isso sejam o produto de obedincia de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeo consciente deste fim ou do domnio das operaes para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ao organizadora de um maestro (BOURDIEU, citado por ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da prtica. In: BOURDIEU, Pierre. Sociologia. Introduo e organizao de Renato Ortiz. So Paulo: tica, 1983. p. 15). Nesse sentido, o habitus se constitui de um conjunto de valores, formas de percepo dominantes, incorporadas pelo indivduo, e a partir dos quais ele percebe o mundo social, percepo que, por sua vez, regula sua prtica social.. O habitus sempre e unicamente

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uma internalizao, consciente ou no, no tem existncia exterior. O que tem existncia exterior a estrutura social, do qual ele expresso exteriorizada. 8 Para uma discusso sobre o contraditrio processo de utilidade o que intil tambm cumpre sua utilidade para determinados fins , ver: CHASSOT, Attico. Para que(m) til o ensino? Alternativas para um ensino (de qumica) mais crtico. Canoas: ULBRA, 1995. 9 SILVA, Tomaz Tadeu da. O que produz e o que reproduz na educao. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1992. p. 78. 10 SANTOS, Lucola. O processo de produo do conhecimento escolar e a Didtica. In: Conhecimento educacional e formao do professor. Campinas: Papirus, 1994. p. 27-38. 11 Para uma viso mais ampla dos debates do pensamento curricular brasileiro na dcada de 80, ver: MOREIRA, Antonio Flavio B. Currculos e programas no Brasil. Campinas: Papirus, 1990. p. 135-200. 12 SAVIANI, Nereide. Saber escolar, currculo e didtica. So Paulo: Autores Associados, 1994. p. 176-177. 13 Segundo Andr Lalande, o termo monismo designa genericamente todo sistema filosfico que considera o conjunto das coisas redutvel unidade, quer do ponto de vista da sua substncia, quer do ponto de vista das leis lgicas ou fsicas pelas quais so regidas, quer do ponto de vista moral. LALANDE, Andr. Vocabulrio Tcnico e Crtico da Filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 698. 14 LECOURT, Dominique. Para uma crtica da epistemologia. Lisboa: Assrio e Alvim, 1980. p. 8-9. 15 JAPIASSU, Hilton. Introduo ao pensamento epistemolgico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. p. 65. 16 JAPIASSU (1991) op. cit., p. 65.

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A PROBLEMTICA DA CULTURA DO CONHECIMENTO

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Contemplar o trabalho dos deuses. Os homens fazem. Os homens domam a natureza, esforam-se para dialogar com as vrias fomes e caam os animais e tambm caam os sonhos. e morrem.Moacyr Flix, Esquema

A perspectiva pluralista e descontinusta questiona basicamente nosso modelo de razo ocidental, centrado na unicidade do real e na idia de cultura como processo cumulativo de idias e smbolos. Esse modelo de razo fundamenta o monismo metodolgico, o que torna as cincias sociais subservientes ao modelo das cincias fsicas. Muitas so as crticas a essa equiparao de campos to diversos do conhecimento, normalmente baseadas no papel da ideologia e na crtica ao objetivismo, com a conseqente defesa da relao sujeitoobjeto nas cincias sociais. Menos freqentes, contudo, so as anlises das bases do monismo metodolgico, assim como seu questionamento no mbito das prprias cincias fsicas contemporneas, linha que aqui procuro desenvolver. Ou seja, procuro desconstruir o argumento monista pela raiz: no cabe defender para as cincias sociais o que sequer tem validade nas cincias fsicas.

Por sua vez, no campo especfico das cincias sociais, inegvel a contribuio do marxismo para a desconstruo do empirismo e das concepes realistas de conhecimento, bem como para a consolidao de teses descontinustas, com a defesa de uma sociedade dividida em classes com interesses econmicos e polticos contraditrios. Procuro, portanto, analisar essa contribuio, com nfase nas categorias de concreto-pensado e totalidade aberta. Entretanto, no sentido de avanar na crtica s concepes continustas e monistas da razo, enveredo pela discusso do pluralismo e da teoria da argumentao como forma de interpretao das cincias sociais. Sob o enfoque descontinusta e pluralista da razo se modifica nossa compreenso da cultura, do saber e do conhecimento. Argumento, assim, a favor da descontinuidade cultural, no sentido no apenas da existncia de uma diversidade cultural, em funo das divises sociais de classe, mas em funo de que diferentes saberes no podem ser reduzidos a uma nica razo, seja pela superao de um pelo outro, seja pela fuso de diferentes saberes. Com base na interpretao da cultura como um multiverso cultural, possvel questionar o processo de reificao e de transformao em mercadoria a que est submetida em nossa sociedade. Em seguida, analiso o processo de diviso social da cultura, com especial interesse pela diferenciao entre cultura erudita e cultura dominante, o que traz conseqncias importantes para a discusso sobre conhecimento escolar. Permite no s redimensionar a interpretao das pedagogias legitimistas e relativistas 1 , bem como problematizar a idia de conhecimento historicamente acumulado. Tendo em vista esses pressupostos, analiso a seleo cultural como processo definidor da cultura dominante, nem sempre erudita, nem sempre cientfica, muito menos universal. Posteriormente, analiso a descontinuidade dos saberes e as definies de saber e conhecimento, o que permite abertura para as discusses finais sobre o problema da legitimidade dos saberes.34CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIAE

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I - PLURALISMO

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DESCONTINUIDADE

DA RAZO,

DO REAL E DO MTODO

Quando nos debruamos sobre nossa tradio filosfica ocidental, constatamos a valorizao conferida ao discurso demonstrativo fundado em proposies evidentes, capaz de conduzir o pensamento concluso verdadeira inequvoca. Valoriza-se a lgica formal, a racionalidade instrumental, a razo que em ltima instncia encontra nos fatos ou na lgica formal sua justificativa. Trata-se de uma razo que se quer nica, estruturante de grandes explicaes monolticas, instauradora de todo real, uniforme e tambm nico - o real panormico, do qual julgamos dar conta apenas pelo nosso olhar. Nesse sentido, as concepes monistas de razo e de real engendram concepes monistas de mtodo, mtodo esse entendido como garantidor do conhecimento cientfico. Portanto, na medida em que tenciono defender a pluralidade cultural, preciso questionar as bases das perspectivas que defendem a unicidade dos saberes e da cultura. Assim, objetivo neste captulo argumentar em favor de uma razo plural, histrica e descontnua, que raciocina sem coagir, sendo capaz de interpretar a pluralidade do real e de questionar o monismo metodolgico. Parto da interpretao destas questes no mbito das cincias fsicas por serem estas freqentemente entendidas como o conhecimento cientfico por excelncia, de tal forma embasado em fatos objetivos, na lgica matemtica e construdo sob rigor metodolgico, que parece perder suas caractersticas de construo cultural humana. Ou seja, freqentemente as cincias fsicas so excludas do campo conflituoso, ambguo e contraditrio da cultura e so colocadas como referncia a todo saber que se pretenda objetivo. dessa forma que a reflexo sobre as cincias sociais se enriquece com a anlise da objetividade e das relaes sujeito-objeto, no no sentido usual de conceber que o vale para as cincias fsicas deve ser utilizado nas cincias sociais. Nos tempos atuais, em que a crtica s explicaes totalizantes, razo cartesiana e s perspectivas empiristas ouA PROBLEMTICADA

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positivistas, por vezes, se faz a partir de um discurso relativista do vale tudo, ou puramente ctico e niilista do nada vale, considero fundamental uma reflexo que aponte caminhos diversos para a razo e, portanto, para a cultura e o conhecimento. I. 1 - CONTRANAS O MONISMO METODOLGICO CINCIAS FSICAS

Ser a metodologia cientfica a cabal apresentao dos caminhos percorridos pelo pesquisador para alcanar seus resultados, numa perfeita equivalncia entre o significado etimolgico2 e o significado prtico do termo? Hoje, sem dvida, no poderamos repetir Descartes em seu Discours de la Mthode:Por mtodo, entendo as regras certas e fceis, graas s quais todos os que as observam exatamente jamais tomaro como verdadeiro aquilo que falso e chegaro, sem se cansar com esforos inteis, ao conhecimento verdadeiro do que pretendem alcanar3 .

Descartes no intencionava, com essas palavras, banalizar o mtodo cientfico, como primeira vista pode parecer, mas demonstrar sua clareza racional, lmpida e transparente; um mtodo capaz de permitir a explicao do mundo. Um mundo que como e assim pode ser compreendido, pois foi criado por um bom Deus, incapaz de criar coisas que seus filhos, ns, seres humanos, no compreendssemos 4 . Porm, como bem afirma Bachelard, o mtodo cartesiano que acerta to bem em explicar o mundo, no chega a complicar a experincia, o que a verdadeira funo da pesquisa objetiva5 . A cincia cartesiana simplifica a experincia, simplifica o complexo observado, enquanto a cincia contempornea procura ler o complexo real sob a simplicidade aparente dos fenmenos. Na cincia contempornea, como afirma Bachelard6 , o simples sempre o simplificado, aquilo que passou por um processo racional de simplificao. O sim36CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIAE

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ples em si no produz conhecimento, pois o composto, a relao entre entidades simples, que produz propriedades, atributos. Segundo a anlise de Canguilhem7 , Bachelard se prope a mostrar que a histria dos problemas cientficos no ordenada segundo sua complexidade crescente, porque o fenmeno inicial de uma pesquisa no um fenmeno primitivamente simples. A soluo achada que reflete sua claridade sobre os dados e demonstra o quanto o problema era obscurecido por graves erros. Por isso, Bachelard afirma que as regras do mtodo cartesiano so bvias, so os hbitos evidentes de um homem bem-educado8 ; no se aplicam complexidade da cincia contempornea, na qual os mtodos se diversificam, se multiplicam em funo das inmeras especializaes. As concepes metodolgicas do empirismo de Bacon, baseadas na induo rigorosa, na experimentao e na verificao constante, tambm no podem ser base das concepes metodolgicas contemporneas. Sem dvida compuseram, junto com o pensamento cartesiano, um projeto para a cincia at o final do sculo XIX. Permitiram maximizar a expanso da cincia ainda que hoje sejamos um misto de vtimas e heris desse projeto , porm no mais so capazes de interpret-la. Entre as proposies de Descartes e Bacon e as atuais concepes epistemolgicas, existem mais de trs sculos de discusses filosficas que no possvel traduzir em poucas linhas, sem o risco de efetuar uma canhestra e linear histria da filosofia. Procuro apenas salientar que, a despeito de refletirem diferentes concepes de mundo, o empirismo, o racionalismo e, tambm, o positivismo tm em comum o monismo metodolgico. Tanto concepes empricopositivistas9 , quanto concepes baseadas no racionalismo cartesiano10 impregnam o discurso cientfico do social e mantm essa iluso de mtodo como mapa da verdade. Por balizarem os caminhos a serem percorridos pelos pesquisadores, continuam a ser defendidas pelos que encaram essas concepes como a nica forma de nos afastarmos do relativismo. Seja por meio do rigor absoluto da matematizao, da quantificao (projeto cartesiano), ou por meio das evidncias da experincia (projeto baconiano).A PROBLEMTICADA

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Definido a partir das cincias fsicas, o mtodo cientfico, assim compreendido, tornou-se a garantia da objetividade, da neutralidade, do rigor e, portanto, da cientificidade de um conhecimento. Mas toda e qualquer concepo metodolgica est diretamente associada concepo de real preconizada e a uma dada concepo de razo. Essas so as concepes que precisamos analisar, quando pretendemos discutir a questo do monismo metodolgico. Segundo as concepes emprico-positivistas, o conhecimento advm da experincia: h um real dado em que a razo deve se apoiar. O real um todo nico, composto de fatos, fenmenos que se apresentam ao experimentador e que pressupem, portanto, uma nica razo capaz de dar conta dessa multiplicidade desconexa. Entendidas de uma maneira mais ampla, as concepes realistas, campo no qual o empirismo se enquadra, compreendem o modelo da teoria do reflexo11 . O conhecimento, como produto do processo de conhecer, reflete o real e tanto mais objetivo e cientfico ser, quanto maior for o grau de reflexo alcanado. Mesmo as concepes positivistas12 , que avanam ao salientar a necessidade do referencial terico, definidor da forma de interpretar os fatos, no rompem com a concepo realista, pois preconizam que a verdade est na Natureza, no fenmeno, e cabe ao pesquisador revel-la, torn-la visvel aos olhos, razo. Para o empirismo, a construo racional s se pode estruturar a partir da experincia sensvel. Para o positivismo, a teoria uma rede de pescar dados, mas os dados que orientaro a elaborao de novas teorias. Nessas perspectivas, observa-se a supervalorizao do mtodo cientfico. A partir das palavras de Nagel, podemos analisar uma verso elaborada da metodologia cientfica, segundo o empirismo-positivismo:No deve ser entendida como afirmando, por exemplo, que a prtica do mtodo cientfico consista em seguir regras prescritas para fazer descobertas experimentais ou para encontrar explanaes satisfatrias para fatos estabelecidos. No h regras de descoberta e inveno na cincia... Nem afirmando que a prtica do38CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA COTIDIANO

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mtodo cientfico consista no uso de algum conjunto especial de tcnicas em todas as pesquisas, independente do objeto ou do problema em investigao. Tal interpretao do dictum uma caricatura de sua inteno... Nem, finalmente, a frmula deve ser lida como reivindicando que a prtica do mtodo cientfico elimine efetivamente toda forma de bias ou fonte de erro pessoal que poderia de outro modo debilitar o produto da pesquisa, e mais geralmente que ela assegure a verdade de qualquer concluso alcanada pelas pesquisas que empregam o mtodo. A prtica do mtodo cientfico a crtica persistente dos argumentos, luz dos cnones postos prova para julgar a fidedignidade dos procedimentos atravs dos quais os dados da evidncia so obtidos e para avaliar a fora comprovadora da evidncia em que se baseiam as concluses. Se as concluses da cincia so os produtos de pesquisas conduzidas de acordo com uma poltica definida para obter e julgar a evidncia, a rationale para a confiana autorizada nestas concluses deve ser baseada nos mritos desta poltica13 .

A partir desse texto, constatamos que a confiana das concluses se alcana pelo mtodo aplicado aos dados de evidncia. Admitem-se, inclusive, tcnicas diversas, especficas a cada campo de atuao. Contudo, a matriz metodolgica possui uma raiz comum. H apenas um real, monolgico, portanto h apenas uma razo capaz de dar conta desse real, razo essa definidora dos critrios de demarcao entre cincia e no-cincia. A mitificao do mtodo foi tanta que retirou da cincia justamente sua funo de turbulncia, de audcia. No havia risco para a razo, pois o mtodo era sua defesa contra novas idias, novas formulaes, novas razes. No mbito da pesquisa do social, surgiram algumas das mais contundentes crticas a essa busca de status quo para as cincias sociais a partir do modelo das cincias fsicas. Todavia, preciso ressaltar o quanto esse modelo no se aplica mais s cincias que tm a Matemtica como principal linguagem. A cincia contemporneaA PROBLEMTICADA

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trabalha dentro de um pluralismo metodolgico, continuamente questionado pela teoria, que rompe com o realismo e com o racionalismo nos moldes cartesianos. A concepo realista da Natureza, to cara aos filsofos da matriz emprico-positivista, sofre seu primeiro grande abalo com o estabelecimento da hiptese quntica por Max Planck, em 1900. Segundo comentrios de Heisenberg14 , o prprio Planck custou a aceitar o rompimento com os pressupostos da Fsica Clssica, dado seu conservadorismo. Contudo, teve que se render necessidade de postular a descontinuidade na energia para interpretao da radiao trmica de um corpo negro15 . Com este trabalho, iniciou-se um campo de investigao dos mais ricos neste sculo: a Mecnica Quntica. principalmente a partir das interpretaes suscitadas por essa rea da Fsica que sero desenvolvidas epistemologias histricas como a de Gaston Bachelard. Com o filsofo francs, compreendo haver distino entre real cientfico e real dado. Na cincia, no trabalhamos com o que se encontra visvel na homogeneidade panormica. Ao contrrio, precisamos ultrapassar as aparncias. O aparente sempre fonte de enganos, de erros, e o conhecimento cientfico se estrutura pela suplantao desses erros, em um constante processo de ruptura com o que se pensava conhecido. Para o senso comum, a realidade uma s: aquela que se apresenta aos sentidos, o real aparente faz parte do senso comum. Portanto, ser essencialmente a partir do rompimento com esse conhecimento comum que se constituir o conhecimento cientfico. Conforme aponta Canguilhem, para Bachelard a cincia no capta ou captura o real, ela indica a direo e a organizao intelectual, segundo as quais nos asseguramos que nos aproximamos do real. no caminho do verdadeiro que o pensamento encontra o real; a realidade do mundo est sempre para ser retomada, sob responsabilidade da razo16 . Contra essa concepo unitria do real se colocar Bachelard:(...) ser demasiado cmodo confiar-se uma vez mais a um realismo totalitrio e unitrio, e responder-nos: tudo real, o eltron,40CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA COTIDIANO

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o ncleo, o tomo, a molcula, a micela, o mineral, o planeta, o astro, a nebulosa. Em nosso ponto de vista, nem tudo real da mesma maneira, a substncia no tem, em todos os nveis, a mesma coerncia; a existncia no uma funo montona; no pode se afirmar por toda parte e sempre no mesmo tom.17

Por que nem tudo real da mesma maneira? Por que a existncia no uma funo montona ? Porque h diferentes razes constitutivas de diferentes nveis de realidade. A realidade de um objeto que se apresenta aos olhos, que pode ser tocado, que possui lugar e forma definidos, no do mesmo nvel de realidade de uma molcula, a qual constitui e constituda pela teoria molecular a ela subjacente. Todavia, necessrio deixar claro que no se trata de uma distino entre realidade e idealizao. Molculas, tomos e eltrons no so idias que podem ser utilizadas enquanto os fatos assim o permitem, ou ainda abstraes racionais com as quais formulamos teorias. Trata-se de uma outra ordem de realidade, que no pode ser compreendida sem o uso da razo. A construo do objeto de conhecimento nas cincias fsicas realizada na relao sujeito-objeto, mediada pela tcnica. A cincia no descreve, ela produz fenmenos, com o instrumento mediador dos fenmenos sendo construdo por um duplo processo instrumental e terico. Mas no devemos atribuir a essa relao um subjetivismo inexistente. No caso, a influncia do sujeito sobre o objeto sempre mediada pela tcnica, pelo aparelho ou instrumento de medida. No se trata de uma influncia da psique individual do pesquisador sobre o objeto de pesquisa, gerador de um relativismo sem medida. Portanto, para compreendermos a noo de real nas cincias fsicas, a partir de Bachelard, precisamos ter muito clara a noo de fenomenotcnica18 . preciso haver outros conceitos alm dos conceitos visuais para montar uma tcnica do agir-cientificamente-no-mundo e para promover a existncia, mediante uma fenomenotcnica, fenmeA PROBLEMTICA CULTURA CONHECIMENTO

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nos que no esto naturalmente-na-natureza. S por uma desrealizao da experincia comum se pode atingir um realismo da tcnica cientfica..19

Em Le Rationalisme Appliqu, Bachelard discute o exemplo do espectrmetro de massa20 como estreita relao entre teoria e instrumento: o prprio instrumento teoria materializada, teorema reificado. As trajetrias que permitem separar ons nesse aparelho so produzidas tecnicamente, sem nenhuma seqncia com fenmenos naturais. Existe a teoria que permite a construo do aparelho e a teoria que permite a interpretao dos resultados; teoria essa que s adquire valor pelo processo de aplicao experimental. Por isso Canguilhem afirma que na cincia moderna, para Bachelard, os instrumentos no so mais objetos auxiliares. Eles so os novos rgos que a inteligncia se d para colocar fora do circuito cientfico os rgos dos sentidos, na qualidade de receptores21 . Na anlise da cincia qumica feita por Bachelard22 , podemos compreender melhor o processo de construo de fenmenos. A qumica, em sua histria, rompe com o imediato e abre espaos para o construdo, criando e atuando sobre a natureza a partir da tcnica. Ou seja, a qumica transforma-se em uma cincia elaborada sobre as bases de uma fenomenotcnica. Um bom exemplo disto so os processos de snteses de substncias qumicas inexistentes na Natureza, produzidas a partir do objetivo de se construir determinada propriedade. Como diz Bachelard, o qumico pensa e trabalha em um mundo recomeado. Se a natureza possui uma ordem, a qumica no se faz a partir dessa ordem: o qumico constri uma ordem artificial sobre a natureza. A razo qumica, em seu dilogo com a tcnica, avana na realizao do possvel. O possvel nunca gratuito, mas j est includo em um programa de realizao, j ordena experincias para a realizao23 . O possvel no o que existe naturalmente, mas o que pode ser produzido artificialmente. Com a diferenciao entre fenmeno e fenomenotcnica completa-se a compreenso da distino entre real dado e real cien42CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIAE

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tfico. O fenmeno o real dado, o mero evento. O real s adquire o carter de cientfico se objeto de uma fenomenotcnica. Ampliamos nossa compreenso de por que no podemos falar de uma funo montona do real: no real cientfico, necessrio o dilogo da razo com a experincia para estabelecer o processo de construo racional, mediado pela tcnica. Portanto, a filosofia do racionalismo aplicado24 , criada por Bachelard a partir da necessidade de uma nova filosofia que desse conta da interpretao de uma nova cincia, eqidistante do idealismo e do realismo, sendo crtica de ambos. A matria no uma iluso do sujeito, nem tampouco a realizao de uma idia: existe a experimentao que orienta a forma de aplicao da razo. Por outro lado, o real cientfico, a matria no mbito cientfico, no independe do sujeito, pois sua interpretao se vincula diretamente a uma teoria e a uma tcnica, mais precisamente, a uma fenomenotcnica. Nesse sentido, modifica-se completamente a noo de objetividade. O problema da objetividade passa a ser colocado em termos de uma objetivao procura do real.Determinar um carter objetivo no tocar em um absoluto, provar que se aplica corretamente um mtodo. Objetar-se- sempre que em virtude do carter revelado pertencer ao objeto que ele objetivo, quando jamais se fornecer outra coisa alm da prova de sua objetividade em relao a um mtodo de objetivao.25

Os mtodos de objetivao do conhecimento se multiplicam, diante da heterogeneidade do real. A cincia se especializa e no apenas diferentes tcnicas so construdas em diferentes campos, mas diferentes racionalidades engendram diferentes mtodos, caindo por terra o monismo metodolgico e a razo continusta. Como afirma Canguilhem26 , a epistemologia de Bachelard recusa a idia de que existe um mtodo positivo ou experimental constitudo de princpios gerais, cuja aplicao diversificada pela natureza dos problemas a responder.A PROBLEMTICADA

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Em outras palavras, um mtodo cientfico um mtodo que busca o risco. Seguro do adquirido, se arrisca em uma nova aquisio. A dvida est diante dele e no atrs, como na vida cartesiana. Por isso posso dizer sem grandiloqncia que o pensamento cientfico um pensamento comprometido. Sem cessar pe em jogo sua prpria constituio. H mais. Parece que, por um paradoxo notvel, o esprito cientfico vive na estranha esperana de que o mtodo mesmo fracasse totalmente. Pois o fracasso o fato novo, a idia nova.27

Mesmo porque, o fracasso de um mtodo sempre seguido de uma reorganizao do mtodo, em um racionalismo permanente que se ope, no apenas a todo empirismo, mas tambm idia de razo imutvel. No existe um mtodo a partir do qual novas teorias precisam ser verificadas / refutadas experimentalmente; existem variados mtodos pelos quais novos fatos precisam ser verificados teoricamente. Os mtodos cientficos no so mais do que o resumo de atitudes ganhas na longa prtica de uma cincia28 . Como o prprio estatuto de cientificidade das cincias fsicas adquire outros contornos, as cincias sociais ficam livres para construir seus prprios pressupostos. Se a Fsica Clssica era o prottipo incontestvel de cientificidade, destrudos seus alicerces to bem definidos, mais facilmente podemos pensar o social sem a seduo do monismo metodolgico, com o qual a compreenso do mundo fsico e do mundo social se fazem pelas mesmas bases. Por outro lado, no precisamos enveredar por um pessimismo que abandona ao irracional e opinio no apenas as cincias humanas, mas tudo que se refere ao nosso agir, aos problemas morais e polticos, tudo que se refere filosofia29 . I. 2 - MARXE A

CRTICA AO EMPIRISMO CINCIAS SOCIAIS

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Nas cincias sociais, uma das grandes rupturas com a viso empirista de compreenso do real e da metodologia cientfica se conso44CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIAE

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lida com o pensamento marxista. Marx30 desenvolve grande parte de sua obra em rompimento com a economia poltica clssica, opondo-se s concepes empiristas que norteavam os trabalhos at ento desenvolvidos, principalmente em sua tentativa de ser a descrio e a representao absoluta desse real. No h, contudo, representao alguma capaz de dar conta da totalidade do real em seus mltiplos e variados aspectos. Conseqentemente, o conhecimento emprico no consegue permitir a reapropriao desse real, pois o processo de abstrao constri um conhecimento absolutamente distante de seu ponto de partida. Marx inicia por modificar a forma de conceber o real. A realidade social um todo estruturado em suas mltiplas determinaes, contraditrio e possuidor de uma ordem que no est dada, no aparente, alm de ser histrica e ideolgica. Trata-se, como afirma Kosik31 , de uma totalidade concreta na qual cada fato pode ser racionalmente compreendido. O conhecimento dos fatos o conhecimento do lugar que eles ocupam na totalidade do prprio real. A construo de uma totalidade concreta implica obter-se uma viso de conjunto, sempre provisria, a partir de um processo de sntese de partes que apenas assim adquirem sentido. A totalidade sempre mais do que a soma das partes, pois inclui as contradies entre as partes e seus processos de mediao. Por isso, na perspectiva marxista, devemo-nos referir totalidade concreta como uma totalidade aberta, mvel, dialtica, unidade e multiplicidade contraditrias e indissoluvelmente ligadas, em oposio s totalidades fechadas e acabadas. Uma totalidade aberta, inclusive, pode englobar outras totalidades, igualmente abertas, que se implicam profundamente32 . Exatamente por se tratar de uma totalidade concreta e aberta, com determinaes no aparentes, que o processo de conhecer no se pode dar por via sensorial. A realidade no fornece diretamente dados capazes de permitir sua compreenso. O acesso imediato apenas nos fornecer fragmentaes do real, as quais s vo adquirir sentido quando descobrirmos suas determinaes. Mas isso no implica que o processo de conhecimento se d por ao do pensamento isolado do real (perspectiva idealista).A PROBLEMTICADA

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O todo, na forma em que aparece no esprito como todo-depensamento, um produto do crebro pensante, que se apropria do mundo do nico modo que lhe possvel, de um modo que difere da apropriao desse mundo pela arte, pela religio, pelo esprito prtico. Antes como depois, o objeto real conserva a sua independncia fora do esprito: e isso durante o tempo em que o esprito tiver uma atividade meramente especulativa, meramente terica. Por conseqncia, tambm no emprego do mtodo terico necessrio que o objeto, a sociedade, esteja constantemente presente no esprito como dado primeiro.33

A questo que se coloca : como se d o conhecimento da totalidade? Em primeiro lugar, preciso salientar no haver conhecimento absoluto da totalidade concreta, nem ser preciso o conhecimento de todas as determinaes para compreendermos a realidade. Mesmo porque, no se trata de um todo imutvel. Ao contrrio, h um processo de modificao constante, ainda que determinado. necessrio haver o acesso s determinaes fundamentais, o que s possvel a partir de um processo de formulao de conceitos simples, capazes de permitir o conhecimento do que no perceptvel. Ser preciso um trabalho terico de abstrao para fazer uma reconstruo da realidade, realidade essa que pensada, por ser alcanada pela via terica do pensamento. Mas que tambm concreta, por ser reconstruo do concreto real, conseqentemente determinada pela racionalidade do modo de produo, instituinte de limites histricos ao pensamento. O real s adquire esse carter concreto (concreto real, totalidade concreta) a partir do momento em que se tem a compreenso de suas determinaes essenciais.O concreto concreto por ser sntese de mltiplas determinaes, logo, unidade na diversidade. por isso que ele para o pensamento um processo de sntese, um resultado, e no um ponto de partida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e portanto46CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA COTIDIANO

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igualmente o ponto de partida da observao imediata e da representao. O primeiro passo reduziu a plenitude da representao a uma determinao abstrata; pelo segundo, as determinaes abstratas conduzem reproduo do concreto pela via do pensamento.34

Nesse sentido, o concreto produzido pelo pensamento concreto pensado no o prprio real, como tambm no o permite criar, mas construdo em interao com o real, possibilitando sua apropriao. O pensamento no produz realidades: o real sempre anterior ao pensamento e esse pensamento produz sempre uma teoria sobre o real.(...) Hegel caiu na iluso de conceber o real como resultado do pensamento, que se concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo e se movimenta por si mesmo, enquanto que o mtodo que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto para o pensamento precisamente a maneira de se apropriar do concreto, de o reproduzir como concreto espiritual. Mas este no de modo nenhum o processo de gnese do prprio concreto.35

No processo de construo do concreto-pensado (reconstruo do real), o pesquisador no cria determinaes inexistentes previamente no real. Ele constri categorias, a partir do concreto pensado, que permitem elucidar determinaes j existentes. Dentro dessa perspectiva, podemos igualmente compreender a heterogeneidade e a complexidade do real, sendo importante que a distino entre a realidade fsica e a realidade humano-social no seja vista em absoluto.O sujeito que conhece o mundo, e para o qual o mundo existe como cosmo ou ordem divina ou totalidade, sempre um sujeito social; e a atividade que conhece a realidade natural e humanosocial atividade do sujeito-social. A distino entre sociedade e natureza anda pari passu com a incompreenso de um fato: a realidade humano-social to realidade quanto as nebulosas, os tomos, as estrelas, embora no seja a mesma realidade. Da aA PROBLEMTICA CULTURA CONHECIMENTO

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suposio de que s a realidade natural autntica realidade; o mundo humano seria menos real, em comparao com uma pedra, um meteoro, ou o sol, e s uma realidade (a humana) seria compreensvel, enquanto a outra realidade (a natural) seria apenas explicvel.36

Justamente por compreendermos as mltiplas determinaes do real, no podemos reduzir a interpretao do social ao marxismo: nos afastamos do tempo em que interpretaes reducionistas de Marx desejavam dar conta de todas as esferas da vida social e humana, fosse a economia, a histria, a filosofia, a psicologia, a linguagem, e at as cincias fsicas e biolgicas, como foi proposto pelo lissenkismo. A idia de um paradigma dominante, seja ele marxista ou no, no parece enriquecer o debate nas cincias sociais, pelo menos quando entendemos a permanncia desse paradigma tal qual um perodo de cincia normal kuhniano: idias, crenas, valores, tcnicas compartilhados pelos membros de uma comunidade cientfica, garantidores da unidade dessa comunidade e de um perodo sem rupturas (revolues). Talvez, ao invs de to freqentemente nos referirmos crise dos paradigmas nas cincias sociais, devssemos pensar na prpria crise do conceito de paradigma37 . Melhor fazemos se procurarmos incorporar s cincias sociais a existncia de mltiplas racionalidades. Ao invs de um paradigma dominante, aprenderemos a conviver com uma pluralidade de teorias aplicveis a contextos diversos. Mas como, ento, podemos pensar na epistemologia das cincias humanas, esse conjunto esfacelado de discursos 38 , sem incorrermos no relativismo? I. 3 - PLURALISMO, DESCONTINUIDADEE

ARGUMENTAO

As cincias sociais e humanas lidam com um objeto que fala, linguageiro e, por isso mesmo, polissmico, no limitado parfrase matemtica, na qual o antecedente define o conseqente de forma indiscutvel. Mais que nunca o real plural, difuso, impiedoso48CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIAE

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com quem desejar aprision-lo em um conjunto harmnico de um discurso estabilizado apenas na monologia do A e do no-A. Ainda que qumicos contemporneos, como Isabelle Stengers39 , interpretem o objeto das cincias fsicas como um objeto que no fala, mas que o fsico faz falar, faz testemunhar uma legitimidade a seu favor, reafirmando a distino entre fato cotidiano qualquer fato e fato experimental trabalho experimental de fazer um fato falar a seu favor , a distino entre a fala de sujeitos e objetos permanece vlida. A polissemia dos sujeitos infinitamente maior; no pode ser controlada pela linguagem matemtica, como fazemos com os objetos cientficos. A linguagem puramente formal no pode expressar a vida humana e social. uma linguagem excessivamente perfeita, excessivamente clara; nela no cabem o erro, a dvida, o obscurantismo, as imperfeies da vida humana.Ou seja, quanto mais purifico minha linguagem nos sistemas formais, mais clareza eu consigo. A consistncia maior, tiro toda ambigidade e equivocidade, mas, ao mesmo tempo, tiro tambm toda concretude do discurso, toda circunstncia e historicidade. Fica sendo um discurso modelar, porm totalmente abstrato e atemporal, vlido apenas enquanto fechado nele mesmo. No serve para dizer coisa alguma, porque coisa alguma cabe nele, j que qualquer coisa o macularia de contingncia e comprometeria sua pureza.40

A constante tentativa de impor o modelo matemtico das cincias fsicas s cincias sociais, a metodologia das cincias fsicas s cincias sociais, marca de nossa tradio filosfica na modernidade. Como assinala Perelman41 , na modernidade temos a restrio do conceito de razo, a reduo da racionalidade racionalidade experimental, a limitao da prova racional prova analtica, demonstrativa, matemtica. Outras formas de provar no desaparecem, mas so desprestigiadas como no-cientficas. Todo homem considera que est raciocinando quando delibera, discute, argumenta, mas tais formas deA PROBLEMTICADA

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provar so desconsideradas como cientficas, ainda que as utilizemos todo tempo, mesmo nas cincias fsicas. Em direo oposta a essa tradio, precisamos abrir espao para novas formas de racionalidade, igualmente legtimas, no restritas evidncia e ao clculo. Precisamos de novas formas de racionalidade que no se restrinjam aos campos do universal, do eterno, do atemporal e do absoluto, mas sejam fundamentais para os campos do singular, do contingente, do histrico e do axiolgico. Novas formas de racionalidade para um tempo, como afirma Pessanha42 , em que a nfase na ruptura e no pluralismo maior do que a nfase na continuidade e na unidade.Durante muito tempo, principalmente no racionalismo clssico, considerou-se que o trabalho tpico da razo estaria justamente em descobrir a unidade por trs da multiplicidade fenomnica, em dissolver a pluralidade inerente ao sensvel e s opinies numa soberana Unidade, estabelecida pela viso certeira e integradora da Razo. O logos filosfico seria fundamentalmente ligador, unificador. Seu empreendimento constituiria uma correo das opinies por via do intelecto j devidamente corrigido, retificado: verdadeira ortologia cujo resultado final seria a substituio da multiplicidade da doxa pela unidade da cincia, da episteme. E que justificaria a construo de uma mathesis universalis, sonho claramente expresso e perseguido por Descartes: conhecimento absolutamente verdadeiro, indubitvel e universal, a respeito de tudo que pudesse ser perfeitamente enquadrado pela ptica de uma razo fatalmente absolutizadora posto que Razo Absoluta, razo do Absoluto, viso coincidente com o Olhar Eterno (de Deus). Fora desse territrio de necessrio consenso de todos os espritos aclarados pela cincia nica, ficaria o sombrio reino das impresses instveis e inconsistentes, das idias falsas e obscuras, da no-verdade.43

As concepes monistas compreendem a Razo como absolutizante e unificadora, portanto totalizante e totalitria. Desejam ser50CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIAE

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a palavra de Deus, divino olho onipresente e onisciente, que determina os caminhos a seguir. Rejeitam o plano humano, circunstancial, efmero, mutvel, por isso mesmo provisrio, histrico, concreto. Da Pessanha apontar para a necessidade da prpria mudana de linguagem: ao invs de falarmos em universo cultural, deveramos nos referir a multiverso cultural. Como contribuies fundamentais para redirecionar a discusso dos termos unidade / pluralidade, continuidade / ruptura, temos a antropologia (insistindo na diversidade de culturas), o marxismo (mostrando a sociedade dividida em interesses econmicos e polticos, no apenas diversos, mas contraditrios) e as cincias fsicas (construindo teorias, como a da Relatividade, que rompem com a viso universal instituda, no caso a Fsica Newtoniana). Mas defender o pluralismo, e por conseguinte as rupturas, no tarefa fcil. Com o que julga ser o aval de Deus, o homem entende-se apenas um desvelador de verdades, e nunca um construtor. Considera ele que o mundo est pronto, as verdades esto dispostas a serem reveladas, tudo est dado. Descartes j afirmava em seu Discours de la Mthode que (...) havendo somente uma verdade em cada coisa, qualquer um que a encontre saber tudo quanto h para saber44 . Subverter essa tradio antes de tudo uma atitude poltica. Afinal, o pluralismo se associa diretamente democracia, mas por isso mesmo implica a administrao de conflitos.A vantagem dos monismos fornecer, em cada campo, uma concepo sistematizada e racionalizada do universo, sob todos os aspectos, permitindo encontrar uma soluo nica e verdadeira para todos os conflitos de opinies e todas as divergncias. 45

Essa unidade que busca evitar o conflito parece-nos, primeira vista, garantidora de paz e consenso. Contudo, em nome de uma dada concepo nica de mundo que se exerceu e se vem exercendo no mundo a violncia, o autoritarismo. Em nome dessa razo nica,A PROBLEMTICADA

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da lgica que atende aos interesses das classes dominantes, que se justificam a misria e a barbrie.O inconveniente das ideologias monistas de favorecer um reducionismo por vezes dificilmente tolervel. Quando no chegam a prevalecer seu ponto de vista, podem justificar - em nome de Deus, da razo, da verdade, do interesse do Estado ou do partido - o recurso coao, o uso da fora em relao aos recalcitrantes. Aqueles que resistem deveriam ser reeducados e, se no se deixam convencer, devero ser punidos por sua obstinao ou por sua m vontade.46

Os pluralismos, inclusive o metodolgico, significam a dessacralizao e a humanizao da cultura47 . No se trata de considerar a existncia de uma raiz nica para toda essa multiplicidade, fazendo apenas com que se mascare a unidade na diversidade. Trata-se efetivamente de razes diversas, razes diversas, tanto na sucessividade, quanto na simultaneidade temporal. Os defensores das rupturas no conhecimento e na cultura no colocam a existncia de uma razo que vem ao longo do tempo se modificando, adquirindo novas formas, se travestindo em diferentes momentos. H efetivamente descontinuidades nas formas de se compreender o mundo. Ortiz 48 aponta para o fato de que, no momento em que setores das cincias humanas questionam a validade da razo universal, os administradores das grandes corporaes insistem sobre o tema. Preocupam-se no com filosofia, mas com o processo de globalizao: um produto universal quando possui abrangncia planetria, quando atinge o mercado mundial. A mundializao do consumo modifica a concepo de universalidade da filosofia iluminista, quando a afirmao do universal se fazia a despeito das diferenas. Hoje, as fronteiras da universalidade devem coincidir com as da mundialidade. O universal se materializa em mercadoria e constitui a nica verdade efetivamente partilhada por todos.52CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIAE

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Essas concepes nos abrem para outras questes. No enveredamos com isso no confuso campo do relativismo? Em nome da democracia, do pluralismo de razes, no passaremos a defender que tudo vale, qualquer mtodo se aplica, nenhuma teoria melhor que outra, nenhuma poltica mais correta? Ou procuraremos a argumentao capaz de levar ao consenso e, portanto, subentenderemos existir a possibilidade de consenso na sociedade de classes em que vivemos? No so essas as perspectivas que defendo. Sem dvida, percorre-se o fio de uma navalha: aparentemente so tnues os limites a separarem essas proposies, mas apenas aparentemente. Pluralismo no implica ecletismo, simbiose de concepes toricas contraditrias, nem ausncia de conflitos. No preconizo a sopa metodolgica, criticada por Lfebvre, nem tampouco defendo a concepo de Manheim, segundo a qual pontos de vista diferentes so complementares49 . Preconizo, sim, que concepes tericas diversas podem servir a contextos diversos e as associaes entre as mesmas devem ser realizadas, tendo em vista a resoluo das contradies porventura por elas apresentadas. Por exemplo, se articulamos aspectos de duas construes tericas distintas, como a epistemologia histrica de Bachelard e o materialismo histrico de Marx, precisamos explicitar o caminho que permite tais