lisboa capital repÚblica popular # 2015

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O amor enquanto dependência Por Ana Sofia Fonseca REPORTAGEM ANáLISE Portugal, Uma granja e um banco Artigo de Eduardo Paz Ferreira PONTO DE SITUAçãO Ainda somos um país independente? Raquel Varela, Vítor Rua, Ana Cristina Leonardo, Carmo Afonso DISTRIBUIÇÃO GRATUITA ABRIL, 2015 CRóNICAS DE Nuno Miguel Guedes, Isabel Lucas, Eduardo Cintra Torres, António Cabrita INDEPENDêNCIAS

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O “LISBOA, CAPITAL, REPÚBLICA, POPULAR” de 2015 propõe uma reflexão sobre a Independência, num diálogo constante entre a sua definição, constrangimentos e valorização. Como grande tema central, um ensaio em torno da pergunta “Ainda Somos um país independente?”.

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Page 1: LISBOA CAPITAL REPÚBLICA POPULAR # 2015

O amor enquanto dependênciaPor Ana Sofia Fonseca

reportagem AnálisePortugal, Uma granja e um bancoArtigo de Eduardo Paz Ferreira

Ponto de SituaçãoAinda somos um país independente?Raquel Varela, Vítor Rua, Ana Cristina Leonardo, Carmo Afonso

DISTRIBUIÇÃO GRATUITAABRIL, 2015

CróniCas deNuno Miguel Guedes, Isabel Lucas,Eduardo Cintra Torres, António Cabrita

i n d e p e n d ê n c i a s

Page 2: LISBOA CAPITAL REPÚBLICA POPULAR # 2015

02 I ABRIL, 2015

DIRECÇÃO DO PROJECTO: ALEXANDRE CORTEZ E GONÇALO RISCADODIRECÇÃO E COORDENAÇÃO EDITORIAL: BRUNO VIEIRA AMARALASSISTENTE EDITORIAL E PESQUISA: MARTA GAMITO E SARA CUNHADESIGN E ILUSTRAÇÃO: YUP / VISUAL STUDIO

COLABORADORES: JOSé PEDRO MONTEIRO, ANA CRISTINA LEONARDO, ANA JORGE, ANA SOfIA fONSECA, ANTóNIO CABRITA, ANTóNIO RODRIGUES, CARMO AfONSO, DIANA GARRIDO, EDUARDO CINTRA TORRES, HELENA VELOSO, SOfIA AfONSO, MARIA JOÃO LOBATO, ISABEL LUCAS, EDUARDO PAZ fERREIRA, fRANCISCO MENDES DA SILVA, GONÇALO TOCHA, JOANA STICHINI VILELA, JOÃO LAMEIRA, JOÃO PAULO COTRIM, LUíS GREGóRIO, NUNO MIGUEL GUEDES, PAULO fREIXINHO, PEDRO PEREIRA ROMANO, PEDRO RAMOS PINTO, RAQUEL VARELA, RENATO fILIPE

CARDOSO, SUSANA ROMANA, VíTOR RUA. DIOGO CUNHA, TâNIA PINTO, CáTIA ESTEVES, fABIANA CRUZ, MILENE ROGADO, MARIA MáXIMO E CREMILDE PRATAS..................................................................................EQUIPA CTL: GONÇALO RISCADO, ALEXANDRE CORTEZ, JOÃO TORRES, JOÃO RISCADO, PEDRO AZEVEDO, DéBORA MARQUES, SíLVIA COSTA, SARA CUNHA, MARTA GAMITO E MARIANA CRUZ.

IMPRESSÃO: GRAfEDISPORTIMPRESSÃO E ARTES GRáfICAS, S. A.TIRAGEM: 10.000 EXEMPLARES..................................................................................WWW.CTLISBON.COMOffICE@CTLISBON.COMT. 21 343 01 07

DECLARAÇÃO DE INTERDEPENDÊNCIA

QUANDO, NESTE PONTO DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE, SE TORNA CADA VEZ MAIS NECESSÁRIO

RECONHECER AS QUALIDADES ESSENCIAIS QUE NOS UNEM

É TEMPO DE REAFIRMAR AS VERDADES QUE TEMOS POR EVIDENTES:

QUE TODOS OS SERES HUMANOS NASCEM IGUAIS E ESTÃO LIGADOS ENTRE SI;

QUE PARTILHAMOS A PROCURA DA VIDA, LIBERDADE, FELICIDADE, ALIMENTOS, ÁGUA, HABITAÇÃO,SEGURANÇA, EDUCAÇÃO, JUSTIÇA E ESPERANÇA NUM FUTURO MELHOR;

QUE O CONHECIMENTO, A ECONOMIA, A TECNOLOGIA E O AMBIENTE SÃO ESSENCIALMENTE INTERDEPENDENTES;

QUE O QUE NOS FAZ AVANÇAR ENQUANTO ESPÉCIE É A NOSSA CURIOSIDADE, A CAPACIDADE DE PERDOAR,A CAPACIDADE DE AGRADECER, A NOSSA CORAGEM E O NOSSO DESEJO DE NOS LIGARMOS…

QUE O QUE PARTILHAMOS ACABARÁ POR NOS AJUDAR A ATINGIRO NOSSO POTENCIAL MÁXIMO;

QUE ENQUANTO DEVEMOS ENCARAR OS NOSSOS PROBLEMAS DE FORMA SÉRIA,NÃO NOS DEVEMOS LEVAR DEMASIADO A SÉRIO;

PORQUE OUTRA DAS COISAS QUE NOS UNE É A CAPACIDADE DE RIR E O DESEJO DEAPRENDER COM OS NOSSOS ERROS

PARA QUE POSSAMOS APRENDER COM O PASSADO, COMPREENDER O NOSSO LUGARNO MUNDO E USAR O NOSSO CONHECIMENTO COLECTIVO PARA CRIAR UM FUTURO MELHOR;

O FUTURO SERÁ AQUILO QUE QUISERMOS QUE SEJA.

ENTÃO, ENQUANTO ESPÉCIE QUE SABE RIR, PÔR QUESTÕES E LIGAR-SE,TALVEZ ESTEJA NA HORA DE FAZER ALGO RADICAL E GENUÍNO.

AO LONGO DOS SÉCULOS, DECLARÁMOS INDEPENDÊNCIA.

TALVEZ ESTEJA NA HORA DE, ENQUANTO SERES HUMANOS,DECLARARMOS A NOSSA INTERDEPENDÊNCIA

CRÉDITOS: DECLARAÇÃO DE INTERDEPENDÊNCIA É UM FILME DE 4 MINUTOS, REALIZADO POR TIFFANY SHLAIN E ESCRITO POR TIFFANY SHLAIN, KEN

GOLDBERG AND SAWYER STEELE. O FILME ESTÁ DISPONÍVEL EM WWW.LETITRIPPLE.ORG/A_DECLARATION_OF_INTERDEPENDENCE

Page 3: LISBOA CAPITAL REPÚBLICA POPULAR # 2015

EDITORIALBRUNO VIEIRA AMARALQuarenta anos depois das independências das antigas colónias e quase trinta anos depois da adesão de Portugal à União Europeia, em que estado se encontra a nossa independência? Uns, os apocalípticos, dirão que abdicámos da nossa soberania a troco das lentilhas de Bruxelas; outros, os integrados, dirão que a construção de uma Europa unida não seria possível sem algumas cedências e que os ganhos foram muito maiores do que as perdas. Os saudosos não se darão por vencidos e argumentarão com o abate da nossa gloriosa frota pesqueira, o sabor da nossa fruta feia e não normalizada, o tempo em que não nos vergávamos aos interesses estrangeiros. A verdade é que esse tempo foi também o tempo do “orgulhosamente sós”. É a esse tempo que querem regressar os que descobriram recentemente a magia da palavra pátria e suas derivadas? Não deve ser.Olhando para a nossa história, vemos que a independência de jure quase sempre foi acompanhada de várias dependências de facto: o comércio transcontinental, o ouro do Brasil, a “aliança” com Inglaterra ou, nos nossos dias, a União Europeia. E o que é trágico (por se repetir constantemente, sem que tenhamos a capacidade de retirar alguma lição da história) é a reiterada incapacidade de aproveitar o melhor dessas dependências para desenvolver o país e beneficiar a sociedade no seu todo. Se é inegável que a entrada na União Europeia contribuiu bastante para um salto na qualidade de vida dos portugueses nas últimas décadas, também é verdade que o modelo de desenvolvimento e as opções políticas

dos sucessivos governos não resolveram as nossas debilidades estruturais. A nossa particular vulnerabilidade à crise é prova disso.E um país tão dependente e tão vulnerável só pode produzir cidadãos receosos, amedrontados, manipuláveis, avessos ao risco, permeáveis a todas as narrativas venham elas do governo, dos partidos, dos sindicatos ou da comunicação social. É essa a nossa maior fragilidade porque a independência de um país mede-se não tanto pelas suas relações com os outros países como pela liberdade, independência e sentido crítico dos seus cidadãos. Por isso é que o “orgulhosamente sós” do salazarismo nos parece de uma triste ironia.Há pouco tempo, a RTP 2 exibiu um documentário sobre o escritor transmontano J. Rentes de Carvalho. Sou um leitor e admirador dos seus livros, mas aprecio quase tanto a sua coragem, liberdade e independência, qualidades que, entre nós, são raras. Pensar pela própria cabeça não é, no caso de Rentes de Carvalho, uma aspiração longínqua, antes uma prática diária (leiam, para vosso bem, o blogue “Tempo Contado” ). A questão que me coloco é a de saber se aquele homem teria as mesmas qualidades se, em vez de ter ido para a Holanda, onde vive há mais de meio século, tivesse ficado por cá. Creio que não. Talvez mantivesse alguma irascibilidade (porque a herança genética também conta) mas duvido que fosse tão livre. E um país independente nunca poderá ser outra coisa que não uma comunidade de homens e mulheres livres. É isso que somos?

ÍNDICE03 Editorial

04 Seek ye firSt the political kingdom: deScolonização e independência no Século XXJosé pedro monteiro

03 I ABRIL, 2015

06 Adolfo MARiA, uM livRe pensAdoR exilAdoAntónio Rodrigues

As independênciAs e os seus fAntAsMAsAntónio cabrita

07 IndependêncIa oumorte desemprego diana garrido

dalIberdadenuno miguel guedes

08 CinCo Constrangimentos à liberdade jornalístiCaeduardo Cintra torres

a independênCianão foi uma deCisãoisabel lucas

10 PORTUGAL:UmA GRAnjA e Um bAncOeduardo Paz Ferreira

12 PONTO DE SITUAÇÃOVários Autores

15 SE FOSSE AMOR,NÃO MAGOAVAAna Sofia Fonseca

16 viver independenteAna Jorge

17 A INDEPENDÊNCIA POSSÍVELJoão Lameira

POr CONtA PróPrIAOu DE OutrEm?Gonçalo tocha

18 CINCO PERGUNTAS AUM EDITOR INDEPENDENTEJoão Paulo Cotrim

CENTéSIMA PáGINA :UMA lIvRARIA INDEPENDENTEHelena Veloso, Sofia Afonso e Maria João Lobato

19 questionáriode elevado grau de dificuldade (sem google)

Palavras cruZadasPaulo freixinho

20 plano nacionalde loucurarenato Filipe cardoso

Apoio à Divulgação

Page 4: LISBOA CAPITAL REPÚBLICA POPULAR # 2015

Passe o truísmo, o processo que levou à independência de dezenas de novos estados foi marcadamente característico do século XX. As independências americanas nos séculos anteriores tiveram uma natureza diferente, na medida em que o poder passou para as elites de extracção europeia. O notável insucesso da revolução anti-esclavagista haitiana é um bom indicador das condições históricas possíveis da época. O que tornou particular o processo de descolonização do século XX é que ele conjugou a independência e auto-determinação nacional com a rejeição de qualquer tipo de hierarquização e diferenciação raciais, mecanismos centrais do novo imperialismo europeu. É importante sublinhar que o colonialismo europeu em África e na Ásia foi caracterizado, com importantes variações, por sistemas profundamente racializados e retoricamente civilizadores, que codificavam jurídica e politicamente a diferença étnica e racial, com implicações nefastas no capítulo dos direitos (desde o direito a votar ao singelo direito de não trabalhar). Estas realidades fizeram germinar a contestação anti-colonial, associando a “missão civilizadora” europeia a pura hipocrisia. Não é, pois, estranho que quando questionado acerca do que pensava sobre a “civilização europeia”, Ghandi tenha respondido “I think it would be a good idea”. A descolonização não pode, pois, ser dissociada de um fenómeno mais

amplo de contestação a ideias e programas racistas. A descolonização global foi, também, profundamente marcada por contingências históricas e por oscilações que ajudam a compreender o ressentimento, que não foi exclusivamente português, acerca da brusquidão e do sentido da descolonização. Por exemplo, no fim da Primeira Guerra Mundial, os ideais de auto-determinação foram entusiasticamente promovidos pelo presidente norte-americano, Woodrow Wilson, gerando esperanças nos quatro cantos do mundo. Mas quando movimentos anti-coloniais, como o Congresso Nacional da Índia, tentaram fazer valer o seu direito à auto-determinação, depararam-se com a rejeição ou mesmo repressão pelas potências coloniais. Seria apenas após a Segunda Guerra Mundial que a Índia viria a alcançar a sua independência, tal como outras nações asiáticas. O esforço de guerra, a fragilidade estratégica dos impérios europeus, a invasão de inúmeras colónias pelo Japão, a rejeição, pelo menos em teoria, da solução imperial pelas duas super-potências, foram factores que contribuíram para a retirada imperial na Ásia. Mas, mais uma vez, se a guerra foi global, o seu impacto nas colónias foi diferenciado. Por exemplo, a Malásia, a braços com uma sublevação de inspiração comunista, ou as colónias africanas teriam de esperar pelo menos mais uma década até alcançarem a

independência. Paradoxalmente, essa foi uma década em que as potências coloniais redobraram esforços para preservar a sua presença em África. Mas as crescentes pressões locais, o gradual descrédito do racismo institucionalizado e a transformação da ordem internacional (cujo símbolo maior foi a realização da conferência de Bandung, em 1955) acabaram por propiciar a retirada formal dos impérios.A experiência portuguesa marcou, de forma incontornável, a forma como se pensa a descolonização em Portugal. Tal como persiste o mito que o império foi excepcional, persiste também a ideia que a descolonização foi excepcional, ainda que num sentido negativo. O melhor antídoto para esta ideia é perceber a complexidade e a variedade das várias descolonizações. Afinal, outros poderes imperiais não hesitaram em empregar a força para preservar o império, como sucedeu na Indochina, no Quénia ou na Indonésia. Tal como em Portugal, as várias descolonizações tiveram um forte impacto nas sociedades metropolitanas, como se pode verificar no caso dos debates públicos sobre a Argélia ou a Rodésia. Acima de tudo, é importante reter que não houve uma causa fundacional da descolonização nem esta foi um processo determinado exclusivamente pelas elites imperiais. Constituiu antes um processo turbulento, contraditório e acelerado: líderes nacionalistas que tinham estado presos foram

apresentados poucos anos depois como líderes respeitáveis, como foi o caso de N’Krumah e Kenyatta; a “Argélia francesa”, que em 1958 era tida como fundamental para os destinos da Grande França, em 1962 passara a constituir um fardo. Desta feita, a descolonização não representou uma inevitabilidade histórica: por exemplo, aqueles que contestaram o colonialismo nem sempre equacionaram auto-determinação com independência. Alguns deles queriam apenas ser cidadãos de pleno direito de uma unidade multi-nacional. Foram as circunstâncias históricas específicas, como a gradual deslegitimação internacional da solução imperial ou a incapacidade ou falta de vontade das administrações imperiais de integrarem social e politicamente as populações coloniais, que levaram movimentos sociais e políticos a seguir o conselho de N’Krumah: “Seek ye first the political kingdom, and all else shall be added unto you”.Em suma, o processo de descolonização global que marcou o século XX agitou ódios e paixões, foi traumático e conturbado. Também por isso, a descolonização merece hoje ser conhecida e estudada na sua inteira complexidade.

Seek ye firSt the political kingdom: deScolonização e independência no Século XXJosé Pedro Monteiro

04 I ABRIL, 2015

Há quarenta anos a grande maioria das colónias portuguesas alcançava a independência, e o império, que se imaginava de quinHentos anos, ruía. para uns, a “descolonização exemplar”, para outros, uma catástrofe. e, no entanto, os eventos que tiveram lugar no império português fizeram parte de um processo global que, de forma variada, marcou a História do século xx de todos os impérios europeus. independentemente do juízo que cada um possa fazer acerca da descolonização, esta marcou profundamente a História desse século, apesar da sua relativa clandestinidade nas narrativas presentes, em detrimento de fenómenos mais populares como a guerra-fria ou o nazismo.

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05 I ABRIL, 2015

E.U.A.4 de Julho

de 1776 COLÔMBIA 10 de julho

de 1810BRASIL

7 de Setembro de 1822

LIBÉRIA 26 de Julho

de 1847

FINLÂNDIA 6 de Dezembro

de 1917

ÍNDIA 17 agosto

de 1945

NAMÍBIA 1990

SUDÃO DO SUL

2011

TIMOR--LESTE

2002 INDEPENDÊNCIAS

INDEPENDÊNCIASRECENTES

ARGÉLIA 3 de Julho

de 1962

QUÉNIA 12 de Dezembro

de 1963

Independências

Movimentos Independentistas: Alguns exemplos

Dependências de Portugal

MONTENEGRO 2006

R.D. CONGO 30 de Junho

de 1960

ERITREIA 1993

DEPENDÊNCIA DO SOBRENATURAL

(Milagre De Ourique)

DEPENDÊNCIA DOS ESPANHÓIS

DEPENDÊNCIA DO OURO DO BRASIL

DEPENDÊNCIA DA ALIANÇA

COM OS INGLESES

DEPENDÊNCIA DO HOMEM

PROVIDENCIA

DEPENDÊNCIA DA EUROPA.

CÓRSEGA

ESCÓCIA

PAÍS BASCO

QUÉBECIRLANDA DO NORTE

CABINDA

CATALUNHA

FLANDRES

TIBETE

Infografia: Luís Gregório

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Logo na semana em que aterrei em Maputo, em 2005, vi um filme seminal sobre Moçambique. Chamava-se “25” e é do brasileiro Celso Dias que presciente, oportuno, foi para a rua com a câmara captar

o clima da véspera da aclamação da independência e o os dias imediatos. O documentário vivia da espontaneidade dos populares e da tensão que se gera quando a euforia e a apreensão se geminam. O eixo do filme é a passagem da meia-noite, no dia da independência, quando, deambulando pela marginal de Maputo, a multidão vai para a praia curtir e esperar que amanheça sobre um país novo.A meio do trajecto pela longa avenida, destaca-se um jovem de 18/20 anos que se dirige a um fotógrafo: “tira-me uma fotografia, porque nunca me vi!”. Foi o momento que mais me tocou e tomei-o como metáfora de um país que acedia pela primeira vez à visibilidade, à assumpção do seu nome.A seguir a qualquer independência instaura-se uma outra gramática da visibilidade, com novos

comportamentos, expectativas, hierarquias e interditos, que autoriza uma suposta nova cultura; a qual coloca imediatamente na sombra aspectos e nomes que até aí vingavam. Em Moçambique idem, e instalou-se um território espectral, “entre”, onde pontuam uma série de vultos que os moçambicanos não querem reconhecer como seus, nem Portugal os reivindica como era exigível: Grabato Dias/António Quadros, Orlando Neves, Glória de Sant’Anna, na literatura, ou Lopes Barbosa, no cinema, são figuras que pairam nesse limbo. Todos eles superlativos, e de todo não merecedores do exílio perpétuo para que os atirou a independência.Lopes Barbosa, é o autor de um filme espantoso, em 73, “Deixem-me ao Menos Subir às Palmeiras”, baseado num conto do escritor Luís Bernardo Honwana; uma longa de denúncia do colonialismo em formato 35 mm, e a preto e branco. Os recursos eram escassos, mas a inteligência narrativa, e a coragem de realizar um filme com as comunidades e falado em shangana, resolveu essas deficiências. É um filme a um tempo contemplativo e político, à altura do melhor Jean Rouch ou dos momentos altos do Cinema Novo português, mas de repente o produtor, Courinha Ramos, escapuliu-se com

a película e Lopes Barbosa esteve 30 anos sem conseguir localizar o filme. Foi descoberta há poucos anos uma cópia, que agora tem corrido alguns festivais e deixa toda a gente estupefacta. O realizador quer voltar a rodar, mas temem-se os fantasmas, mesmo que viçosos após quarenta anos de trevas — sobretudo se o fantasma fez algo muito bem.O ano passado percorri seis províncias do norte de Moçambique com o realizador Fábio Ribeiro, em repéràge. No miolo dos distritos, nas picadas e no mato, éramos rodeados por crianças que ficavam estáticas diante do carro. Não percebíamos porquê. Até que o Fábio notou que eles fixavam os olhos no brilho translúcido da carlinga, nas sombras dos vidros. E fez-se luz: estavam fascinados pelo seu reflexo, pois não têm espelhos em casa.Creio que a verdadeira independência começa quando já não precisamos de nos ver ao espelho, que só aí começa a autonomia criativa. Então, perdemos o medo de ressuscitar como nossos todos os fantasmas e não apenas aqueles que a moda ou a ideologia consentem.

OPINIÃO

06 I ABRIL, 2015

As IndependêncIAs e os seus FAntAsmAscRÓnIcA António CAbritA

Na capa de “Angola no Percurso de um Nacionalista : Conversas com Adolfo Maria”, publicado em 2006 pela editora Afrontamento, a foto chama a atenção pelo contraste: numa reunião do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) no mato, Adolfo Maria é o único branco e o único sem camuflado. É quase a metáfora perfeita para este velho nacionalista angolano que a PIDE prendeu por lutar pela independência de Angola, que o MPLA ostracizou por ser membro da Revolta Activa – uma facção do partido, liderada por Mário Andrade, que se opunha à corrente de Agostinho Neto – e que sobreviveu fechado num apartamento de Luanda durante quase três anos para evitar ser morto pelos

seus antigos companheiros, antes de se entregar e ser expulso e condenado ao exílio.Apesar de viver em Portugal desde 1979 e ser filho de portugueses de Chaves, continua a considerar-se angolano e a viver quotidianamente os problemas do seu país – ninguém é capaz de lhe exilar o pensamento. É comentador residente do programa da RDP África “Debate Africano” e colaborador habitual do “Chá”, mensário angolano de cultura.Desde que publicou em livro essa longa conversa com Fernando Tavares Pimenta, em 2006, já editou mais duas obras que acabam por se interpenetrar. A primeira, “Angola, Sonho e Pesadelo”, é um exercício de memória desses quase três anos de “auto-cárcere”; a segunda, “Na Terra dos TTR”,

foi escrita durante esse período e é um romance de fantasia sobre um mundo onde a espécie humana deixou de recorrer à faculdade de pensar.Adolfo Maria, que nasceu em Luanda em 1935, foi um dos dirigentes do Cineclube de Luanda e da Sociedade Cultural de Angola, fez parte da redacção do jornal “Cultura” e do diário “ABC” antes de deixar Angola em 1962 para prosseguir, no exterior, a luta contra o poder colonial português. Passou por Argel e por Brazzaville, dirigiu o Departamento de Informação e Propaganda do MPLA e a sua rádio, a Angola Combatente, além de ter feito parte do Centro de Estudos Angolanos.

Adolfo MARiA, uM livRe pensAdoR exilAdoAntónio RodRigues

Page 7: LISBOA CAPITAL REPÚBLICA POPULAR # 2015

07 I ABRIL, 2015

Quando ainda trabalhava em imprensa, assisti à frustração de uma colega a quem foi encomendada uma peça pelo director da publicação. Ela não via interesse no artigo, que consistia em entrevistar um jornalista cuja fama não é das melhores e cujo interesse, de facto, era zero. Mas ela lá foi, devidamente obrigada. Quando voltou tinha alguns dados interessantes, coisas que não deixavam bem visto o tal jornalista. Comentários desagradáveis sobre outras pessoas, escárnios e mal dizeres. Quando o director soube que a minha colega planeava escrever o que tinha visto e ouvido – e que era a verdade – ameaçou-a com despedimento. Para tornar tudo mais fofinho também a humilhou um bocadinho. Porque receber 500 euros não é humilhante o suficiente.O conselho de redação soube da história, planearam-se intervenções, todos nos insurgimos em conversas sussurradas, jurámos tomar medidas. Mas no fim ninguém disse nada, a minha colega não se podia dar ao luxo de perder o emprego e nunca mais se falou sobre o caso. A peça saiu, sem a verdade. A culpa da falta de independência também é dos jornalistas mas o medo de perder o emprego, o medo de ser substituído pelos milhares de estagiários que de bom grado trabalham horas a fio sem qualquer remuneração, só pelo prestígio (e sonho) de assinarem o seu nome, é aterrorizador.

A ditAdurA dos cliques fAz com que se escrevAm Artigos Absurdos, de mAu gosto, de conteúdo tão relevAnte como umA borbulhA no queixo de umA pulgA, com títulos dúbios ApenAs pArA levAr o leitor A clicAr. onde é que está A independênciA disso?

A verdade é que o trabalho numa redação é precário. A informação é feita, na sua maioria, por jornalistas que recebem o ordenado mínimo e por estagiários que vão entrando e saindo sem deixar memória. miúdos acabados de sair da faculdade começam logo a trabalhar

mesmo que não façam a mínima ideia de como se escreve um artigo. fazem o que lhes mandam sem pensar nem levantar ondas, sem questionar se faz sentido ou não, porque não sabem, porque não é suposto.nenhum director me veio pedir que não escrevesse isto ou aquilo mas já me pediram que escrevesse sobre este ou aquele fulano. sobre um livro que um amigo tinha editado, mesmo que falasse sobre a patologia vegetal do pessegueiro. são os chamados “broches”, em bom rigor jornalístico. todos fazemos, ninguém gosta. lembro-me da sensação de impotência, “eu não quero fazer isto”, parecida àquela que sentimos em miúdos quando os pais mandam e desmandam porque “as crianças não têm quereres”. os jornalistas também não. num jornal onde trabalhei houve uma guerra interna entre administrador e jornalistas, dinheiro vs informação, com ameaças de parar as rotativas, um braço de ferro entre verdade e interesses financeiros. O problema era uma capa sobre um banco com o qual o administrador do jornal não queria arranjar uma guerra (tinha lá muito dinheiro investido). As rotativas não pararam e a capa saiu para a rua. o incidente foi esquecido.hoje a verdade é subjectiva (não é, mas há quem ache que sim) e as coisas nunca são como se diz. diz-se bem de todos os restaurantes novos que abrem mesmo que sirvam cocó de pássaro em cama de palha porque nunca se sabe se vão precisar de uma página de publicidade. A ditadura dos cliques faz com que se escrevam artigos absurdos, de mau gosto, de conteúdo tão relevante como uma borbulha no queixo de uma pulga, com títulos dúbios apenas para levar o leitor a clicar. onde é que está a independência disso?chegará o dia em que ninguém se lembrará do que era ser independente. do que era escrever livremente, de contar o que de facto de passa, o que de facto viu acontecer sem medo de perder o emprego. e esse dia, temo, é amanhã.

IndependêncIa ou morte desemprego DIANA GARRIDO

Há aquele magnífico início de The “Go-Between”, de L.P.Hartley: “O passado é um país estrangeiro.

Lá fazem as coisas de outra forma”. A tradução pode ser livre e apressada mas não consegue beliscar nem a grandeza literária da frase nem sequer – o que mais me interessa – a sua verdade. Não sou de grandes nostalgias: o que está feito, está feito e agora mesmo há coisas por fazer. Mas interessa-me os legados, o que ainda vive, o que permanece. Em certa medida, O Independente teve esse papel – o de ser pioneiro em muitíssimas coisas no jornalismo português, muitas vezes contra tudo e contra todos. E já que me perguntam: tive muito orgulho e sorte de lá ter trabalhado.Até àquele dia 20 de Maio de 1988 eu não tinha jornal. Havia o Expresso, rigoroso e bem feito, mas aborrecido e sem um lampejo de criatividade. Havia O Jornal, com estupendos jornalistas- escritores, como o Assis Pacheco e onde o próprio Miguel Esteves Cardoso começou a publicar. E havia isto: quase toda a imprensa nacional – assumidamente de esquerda ou centro-esquerda, exceptuando o Semanário ou os jornais extremistas como O Dia ou O Diabo – replicava tiques do PREC, dogmas partidários, e uma forma de fazer jornalismo que para um rapaz de 20 e poucos anos - mais habituado a ler o Daily Telegraph do que o Le Monde ou mesmo o Libération —parecia antiquada. O Independente surge assim como um jornal com um editorial assumidamente conservador – o que não quer dizer que a sua redacção o fosse, antes pelo contrário. Dou a palavra ao meu então director e agora amigo Miguel Esteves Cardoso: “[‘O Independente’] era uma coisa moderna, normal. Uma coisa não respeitadora dos respeitinhos, e sem

medo. Tinha havido o Estado Novo e a censura. Há esse medo de arreliar uma pessoa, de magoar pessoas, e nós, talvez inconscientemente, talvez irresponsavelmente, não tínhamos medo. E não tínhamos medo de não ser de esquerda.”. Esta posição granjeou-nos inimigos. Fui chamado de fascista, barrado no altar de jornalistas que era o bar Snob. Fui chamado de mau jornalista porque escrevia na primeira pessoa e usava nos meus textos descrições que muitas vezes incluíam marcas comerciais — coisa que segundo o cânone vigente (apenas em Portugal) não se podia fazer. Esta ideia do «isso não se pode fazer», “isto é jornalismo, isso não é” - uma concepção totalitária e corporativa — ainda nos estimulava mais ao desrespeito. E no processo, a romper barreiras.Pertenci ao Caderno 3, de 1988 a 1990, altura em que um grupo de amigos em que me incluí resolveu partir para fazer a revista Kapa. O que era o Caderno 3? Miguel: «O jornal era um grupo de pessoas, mas a parte cultural era feita por mim e a parte política pelo Paulo [Portas]. O Caderno 3 tinha muitos jornalistas conservadores, mas muitos não o eram, não era importante. Fazíamos aquilo que nos apetecia.» Naquela altura suspeito que mais ninguém podia fazer isso. Pior: muito menos agora. Tudo para vos dizer o seguinte: O Independente tinha a sua linha política definida e assumida. Muitas das suas famosas manchetes sobre políticos reflectiam essa mesma linha. Mas o mais importante nessa aventura que fez escola é reter isto: aquele jornal, aquela redacção, aquele jornalismo mais do que independente, era livre. E não vejo maior ambição.

Nota: as declarações de Miguel esteves cardoso são extraídas de uMa eNtrevista publicada No seMaNário expresso, eM 24 de Março de 2012.

DaliberDaDeCrÓNiCa NuNo Miguel guedes

COMUNICAÇÃO SOCIALO “i” da SiC e da TVi garanTe-nOS que eSTeS prOjeCTOS SãO independenTeS, O que leVará OS maiS CíniCOS a COnCluir que a falTa deSSa VOgal na rTp equiVale a falTa de independênCia. pOrém, a queSTãO da independênCia da COmuniCaçãO SOCial nOS nOSSOS diaS Vai muiTO além dO eVenTual COnTrOlO pOlíTiCO. inTereSSeS eCOnómiCOS, reCeiTaS de publiCidade e “linhaS ediTOriaiS” Também deTerminam COnTeúdOS. além diSSO, aS COndiçõeS Cada Vez maiS difíCeiS dOS jOrnaliSTaS põem em CauSa a neCeSSária independênCia para eSCruTinar OS pOdereS. e iSSO debiliTa a Saúde da nOSSa demOCraCia.

Page 8: LISBOA CAPITAL REPÚBLICA POPULAR # 2015

A independência não foi uma decisão, mas sempre foi uma vontade. Um dia houve uma reestruturação e não havia mais motivos para adiar o inevitável. Ser jornalista fora de uma redacção no pior momento do

mercado. Objectivamente era isto. Havia muitos anos de experiência, ter passado por sítios muito diferentes, com funções distintas — numa altura em que os jornais disputavam as pessoas pagando-lhes mais —, capacidade de adaptação e perceber que, cada vez mais no osso, as redacções precisam das ideias de quem as tem de ter para poder subsistir. Nesta engrenagem, a minha história era só mais uma história comum, mas era a que eu tinha. E é a única que tenho para contar. Desde esse dia, há três anos, não houve mais uma folga, todos os projectos de férias ficaram adiados, e os de vida ficaram condicionados a um trabalho com tanto de criatividade quanto de precariedade. As redacções mudaram e nunca estiveram

tão dependentes de trabalho independente, mas nunca como agora esse trabalho foi tão pouco valorizado. Uma entrevista ou uma reportagem custam a um jornal em média um terço dos valores de há dez ou 15 anos. Não há estudos que digam isso, mas a experiência confere. E o jornalista independente adapta-se, raramente pode lidar apenas com o “dead-line” de um jornal, tem de se multiplicar em valências e meios numa agenda pessoal gerida com a mesma austeridade e rigor que os orçamentos cada vez mais curtos dos jornais reféns de um modelo de negócio que tarda em acompanhar o que se espera do jornalismo hoje. E o que se espera? Que seja exigente, aprofundado, criativo, rigoroso, mais próximo, mais célere, mais estimulante. Tudo isso. Ou seja, pede-de quase tudo ao jornalista, serviço público aos jornais e lucro às empresas que o fazem. É possível conciliar? Ser independente hoje é saber estar sozinho com uma visão global. Também ir tacteando à procura de respostas enquanto se reage ao momento porque tem de ser. Procurar informação, verificar a veracidade, dar-lhe

contexto. Ou ter uma ideia, trabalhá-la, complexificá-la, contá-la de forma estimulante e esperar ser o mais bem pago possível por isso. Ser gestor de si próprio e também o elemento criativo, produtivo, ser espectador e actor de um processo em curso que continua a ter mais perguntas do que respostas: o que é ser jornalista hoje.Agora é um dia de cada vez e muita itinerância. Nas madrugadas de escrita não tocam telefones. É possível ser jornalista assim, à distância, solitário. A internet, o Skype, o mail e toda a informação disponível substituíram conversas de café, almoços prolongados, discussões ferozes onde os mais novos aprendiam com os mais velhos. As redações já não são assim. Os jornais já se fazem pouco assim. Precisam do “input” do independente que, no entanto, para ser livre na sua tarefa quer ver reconhecida essa necessidade.Naquela primeira manhã eu sabia muito pouco acerca desta independência onde continuo hoje de forma muito pouco arrogante mas com menos angústia.

08 I ABRIL, 2015

Em 2004, escrevi sobre um episódio no jornalismo da SIC que levou quatro dos seus jornalistas a escrever cartas ao director, furiosos. Constatara eu que, numa redacção, há constrangimentos que levam os jornalistas a informar ou opinar num certo sentido ou a praticar autocensura. O título do meu artigo? Era uma frase que roubei ao sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, dum livro de 1925: “O jornalismo é livre, os jornalistas não.”Os constrangimentos dum jornalista são inúmeros, desde os da sua própria formação, ideologia, idade, origem social, até ao ambiente colectivo em que se insere, à orientação do media e por aí adiante. Hoje, nas empresas de televisão, como nos outros media, notam-se especialmente cinco constrangimentos. 1º, a “racionalização” dos “recursos humanos”, com cortes de pessoal na maioria das redacções. Tal incute o medo do despedimento e impede a veleidade de realizar jornalismo que “incomode”. Muitos jornalistas não “incomodam” para não serem “incomodados”.2º, a submissão ao que se considera ser o interesse do espectador ou leitor, limitando o espectro de temas a cobrir.3º, a ditadura informativa das “agências de comunicação”, que encharcam os emails e telemóveis de todos os jornalistas com informação e propaganda dos

seus clientes empresariais e políticos.4º, o “magistério de influência” do patronato em muitas empresas (mas não todas). Se o patronato pretende fazer passar opções políticas e de negócios, elas acabam por ser uma espada que paira sobre a liberdade jornalística.5º, a eterna influência das instâncias políticas. É a mais referida, mas muitas vezes invisível, dado que os jornalistas que a ela se sujeitam fazem os possíveis por iludir as suas próprias opções políticas e o enviesamento que introduzem no noticiário que realizam ou, sendo chefes, orientam. A governação Sócrates foi a que mais a evidenciou essa influência, ultrapassando todos os limites na intervenção directa dentro das redacções, no afastamento de pessoas, na tentativa de compra de media para os controlar. No governo seguinte, após o episódio Relvas (uma brincadeira ao pé do socratinismo), a pressão governamental desapareceu, cabendo aos partidos da maioria tentar influenciar o noticiário. Esse é um jogo normal e eticamente aceitável, se respeitar as opções editoriais. Mas não nos livra das tentativas de enviesamento por outros meios por parte das forças políticas. Veja-se como Sócrates, apesar de afastado do governo, manteve poder nos media, daí resultando uma administração da Controlinveste que pareceu nomeada por si e a nomeação de dois amigos pessoais

para directores do Jornal de Notícias e da TVI — com resultados à vista.Dado que, por natureza, em Portugal o círculo da liberdade de cada um, dos media e da sociedade em geral é bem pequeno, a medição da (in)dependência de cada media é tarefa árdua — e que ninguém realiza. Os observatórios que houve e que há nada fazem, e as “análises” do parlamento e da ERC são ridículas e insultos à inteligência dos espíritos livres. A única forma de os cidadãos poderem avaliar seria acompanhar muito e de perto a produção mediática, o que raros fazem, por falta de tempo, de interesse, de meios. O pluralismo mediático costuma ser apontado como um remédio que estabelece um certo equilíbrio entre múltiplos enviesamentos de múltiplos media. É verdade, em especial desde a explosão das redes digitais sociais. Todavia, não anula a influência de enviesamentos concretos sobre receptores que só contactam com um ou dois media; e até o pluralismo não é remédio, como vimos na governação Sócrates: quem não dissesse que Sócrates era o “melhor primeiro-ministro do mundo”, como tanto se leu, viu e ouviu, era perseguido ou ostracizado. Mas, como dizia o outro, vivemos no melhor dos mundos possíveis. Sejamos optimistas.

A independênciA não foi umA decisãocRÓnicA Isabel lucas

CRóniCa

CinCo Constrangimentos à liberdade jornalístiCaoPiniÃo EDUARDO CINTRA TORRES

CRÓNICA

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É com viva emoção que colaboro neste número do Lisboa Capital República Popular, que me faz recuar aos tempos em que na velhíssima redacção do jornal fundado por António José de Almeida, entre o busto venerado da República e o não menos venerado gabinete de Raul Rego, mais tarde Pena de Ouro da Liberdade, me iniciava no jornalismo com todo o entusiasmo dos meus vinte anos e a simpática tutela de alguns dos mais importantes nomes da imprensa da época.

A declArAção schumAn, texto fundAdor do processo de integrAção europeiA, ApontAvA pArA um cAminho sereno que não colocAriA especiAis problemAs às independênciAs umA vez que, A virem A conhecer limitAções, estAs ocorreriAm nA bAse de umA livre trAnsferênciA.

eram tempos bem diferentes esses, com ritmos de trabalho totalmente diversos, em que havia espaço para esperar tranquilamente nos cafés a chegada dos ardinas que traziam os jornais da tarde: dos jornais censurados primeiro, dos jornais fervilhantes de agitação e confronto depois. mais tarde os vespertinos foram desaparecendo. A república foi o primeiro. nascera com a primeira república, sobrevivera à longa ditadura, mas não conseguiu aguentar o embate da radicalização.evoco estes tempos já distantes — mas tão vivos na minha memória —, não apenas por exercício nostálgico, mas porque creio que para se compreender o modo como é hoje encarada a questão da independência nacional, é preciso remontar a esse período com as contradições que encerra e os termos em que marcou o posicionamento das forças políticas e dos cidadãos no futuro.A esquerda antifascista unia-se em torno da defesa do reconhecimento da independência das colónias, afirmando o direito destas a viver sem tutelas e a existirem como estados livres, tendo dificuldade em separar a questão da independência nacional do patriotismo bafiento do salazarismo, simbolizado no slogan “portugal unido do minho até timor” e enquadrado pela entrega de condecorações às viúvas de guerra no dia de camões, de portugal e da raça. e, acima de tudo, no malfadado

“orgulhosamente sós”, com que respondíamos à generalizada condenação da nossa política colonial.A democracia viria a tornar clara a existência de sensibilidades muito diversas na esquerda portuguesa, ainda que a questão não tenha sido objecto de uma análise aprofundada.

nuncA conseguimos ultrApAssAr um sentimento de desconfiAnçA em nós próprios quAnto à cApAcidAde de promover reformAs sem ser por constrAngimentos exteriores.

A extrema-esquerda enquadrava a questão da independência nacional num quadro de internacionalismo proletário, que levava a que a “internacional” facilmente substituísse a portuguesa. o reflexo anti-imperialista (leia-se anti-americano e anti-nAto), fazia com que se proclamasse energicamente uma ideia de independência nacional. José mário branco, no festival da canção da rtp de 1975, apresentava uma espécie de revisão do hino nacional – Alerta – e cantava “pelo pão e pela paz e pela nossa terra e pela independência e pela liberdade”, ou “abaixo o imperialismo. independência nacional”.na área da social democracia no seu conceito mais alargado, o slogan criado por mário soares, “A europa connosco”, lançava a ideia de que a democracia portuguesa precisava de se escorar na aproximação à europa ocidental e às instituições comunitárias, secundarizando as relações com áfrica, ainda encaradas à luz dos efeitos provocados pelos tempos coloniais e da instabilidade criada após as novas independências.iniciava-se, assim, um caminho que levaria à adesão de portugal às então intituladas comunidades europeias, sob a batuta especialmente enérgica de mário soares e medeiros ferreira. este último, no seu livro testamento, “não há mapa cor de rosa. A história (mal)dita da integração”, viria a formular um julgamento severo sobre os caminhos da união europeia e as consequências que estavam a ter para portugal.A declaração schuman, texto fundador do processo de integração europeia, apontava para um caminho sereno que não colocaria especiais problemas às independências uma vez que, a virem a conhecer limitações, estas ocorreriam na base de uma livre transferência: “A europa não se fará de um golpe, nem

numa construção de conjunto: far-se-á por meio de realizações concretas que criem em primeiro lugar uma solidariedade de facto”.o tratado de roma incluía um preâmbulo igualmente marcado por este tipo de preocupação mas poucos, muito poucos, foram capazes de identificar os riscos implícitos: risco de destruição do estado Social através da afirmação incontrolada da política de concorrência e de limitação da soberania nacional pela atribuição de poderes a uma entidade supranacional independente dos estados.entre esses poucos, esteve um dos maiores estadistas franceses do século xx, pierre mendès france que, apesar das suas posições europeístas, votou em 1957 contra a criação do mercado comum, explicitando as razões da sua oposição, num discurso cada vez mais recordado, pela enorme perspicácia e capacidade de prever evoluções posteriores.

o pArlAmento europeu é, nestA mAtériA, totAlmente irrelevAnte. nA comissão e no conselho europeu, Aí sim, estão concentrAdos todos os poderes.

o discurso parte da interrogação: como fazer a europa sem desfazer a frança? esta questão, obviamente transponível para portugal ou qualquer outro estado membro, tem-se colocado com crescente intensidade, porque se verificou, rapidamente, a razão de ser do alerta de Mendès France quando afirmou: “a abdicação de uma democracia pode tomar duas formas, ou o recurso a uma ditadura interna pela entrega de todos os poderes a um homem providencial ou a delegação destes poderes numa autoridade externa, a qual em nome da técnica exercerá realmente o poder político porque em nome de uma economia sã facilmente se vai ditar uma política monetária, orçamental, social, finalmente “uma política”, no sentido mais largo da palavra, nacional e internacional”.e assim foi, em larga medida porque, como também sinalizava mendès France, se verificou que nunca conseguimos ultrapassar um sentimento de desconfiança em nós próprios quanto à capacidade de promover reformas sem ser por constrangimentos exteriores.mas se o mercado comum introduzia já elementos de limitação da soberania nacional, particularmente para os estados que pela sua pequena dimensão ou fraco governo não conseguiam impor os seus

interesses aos meios comunitários, o tratado de maastricht e os que se lhe seguiram foram muito mais longe.por um lado, procurou-se criar uma unidade política europeia, ideia que encontraria a sua expressão mais evidente no projecto de constituição europeia, recusado pelos eleitorados nacionais aos quais foi submetido, mas que deixou os seus germes no tratado de lisboa, no qual se afastaram os símbolos mais evidentes do federalismo, sem se afastarem muitas soluções do projecto de constituição.por outro — e este é o aspecto mais importante — ao avançar-se para uma união económica e monetária, assente numa moeda única e num banco central europeu independente, os estados abdicaram de uma das suas mais importantes prerrogativas de soberania: a política monetária.é certo que se mantiveram os bancos centrais, concebidos basicamente como sucursais do bce e transformados em gabinetes de estudos e, até há pouco, agentes autónomos de regulação do sector financeiro nacional, poderes exercidos em alguns casos de forma muito deficiente.os poderes orçamentais foram, entretanto, limitados de forma significativa pela exigência, num primeiro momento, de défices inferiores a 3% do PIB e de uma dívida pública abaixo dos 40% do PIB. Mais tarde os 3% seriam aliás substituídos pela regra de ouro, que impõe o equilibro orçamental e que deverá ser incluída nas constituições nacionais.o estabelecimento destes limites e a atribuição à comissão de poderes para os fazer respeitar, constituiu a via de abertura para uma situação aberrante em face dos valores democráticos, assente no tratado intergovernamental e no six pack e no two pack, que não só espartilham o poder de decisão financeira como levam a que os parlamentos, cuja origem histórica remonta à afirmação da soberania financeira dos povos, sejam esbulhados dos seus poderes.

o governo Alemão considerA-se obrigAdo A defender os interesses do seu eleitorAdo - nA interpretAção que deles fAz -, ignorAndo o resto dos cidAdãos europeus.

quando o orçamento é apresentado à Assembleia da república já foi previamente escrutinado, corrigido e aprovado pelas instâncias europeias. Aos deputados, eleitos para imporem aquilo que os portugueses desejam como padrão de decisão financeira, restam apenas

PORTUGAL:UmA GRAnjAe Um bAncOEduardo Paz FErrEira

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minudências irrelevantes. O pretexto que viabilizou este caminho anti-democrático foi a chamada crise das dívidas públicas soberanas, totalmente provocada pela crise do sistema financeiro privado e pela decisão política de proteger esse sistema à custa da generalidade dos cidadãos. Poder-se-ia pensar que este caminho, que nunca me pareceria desejável, fosse compensado por poderes acrescidos do Parlamento Europeu. Mas nada se revelaria mais errado. O Parlamento Europeu é, nesta matéria, totalmente irrelevante. Na Comissão e no Conselho Europeu, aí sim, estão concentrados todos os poderes.Poder-se-ia, por outro lado, admitir que esta quebra de poderes seria compensada pela solidariedade europeia, mas hoje todos sabemos que ela não existiu e todos sabemos como, sobretudo a partir da imposição do protectorado da troika, fomos submetidos a um grau de intervenção em assuntos nacionais, por parte de ministros, comissários ou meros burocratas de segunda linha de organizações financeiras internacionais, verdadeiramente humilhante. Juncker, Presidente da Comissão Europeia, reconheceu-o e, como bom católico, afirmou que a União tinha pecado contra a dignidade dos portugueses e de outros povos. O primeiro-ministro de Portugal, Pedro Passos Coelho desmentiu-o: nunca se tinha sentido humilhado.E nós como nos sentimos? Seguramente

muito humilhados. Em certo sentido, gratos a Juncker pela admissão de culpa, mas estupefactos com a ausência de consequências da declaração, até que percebemos que este nada podia e que ia, ele próprio, ser humilhado, quando o fabuloso Presidente do Euro grupo, Diejsselboem, deitou para o lixo o projecto que o Presidente da Comissão acordara com a Grécia.

importA pôr de pé um novo sistemA produtivo, AbAndonAndo-se umA economiA Assente em bAncos e hipermercAdos, imAgem perfeitA dA réplicA de oliveirA mArtins em 1881: “portugAl o que é? umA grAnJA e um bAnco”.

só então se percebeu, na sua verdadeira plenitude, a transferência de poderes da comissão para o conselho europeu operada pelo tratado de lisboa — que em nada contribuiu para o reforço da democracia na união europeia. nela lidera hoje a Alemanha e o governo alemão considera-se obrigado a defender os interesses do seu eleitorado — na interpretação que deles faz —, ignorando o resto dos cidadãos europeus.todos podemos perceber esta pulsão, mas o absurdo está em não termos votado nem

legitimado esse governo e, no entanto, ele decidir do nosso destino, porque pertencemos a uma união de estados que a Alemanha quer manter, sem todavia se sentir minimamente obrigada a disso tirar consequências.chegamos, assim, ao ponto em que dois caminhos se tornam possíveis: um primeiro é o da aceitação da limitação da independência nacional no quadro de um projecto federal, de uma união dos estados europeus; um segundo é o do combate no interior da união, tal como ela agora existe e no quadro institucional que a regula, por um reequilíbrio de poderes.A primeira via, que corresponderia, aliás, à concretização de um velho sonho de pensadores como vitor hugo, está hoje em dia seriamente comprometida, porque o “federalismo técnico” em que temos vivido mais não fez do que dividir a europa e fomentar rivalidades e ódios, mesmo onde não existiam ou, pelo menos, não se manifestavam. A ideia de aproximação dos estados está, agora, mais afastada do que no início do processo de integração europeia.resta-nos, então, o segundo caminho, concretizável com outros políticos e com outra energia anímica, particularmente dos partidos socialistas e social-democratas, que se esperaria que fossem capazes de se congregarem numa frente anti-austeridade e de se irmanarem num esforço para que a Alemanha deixe de pensar em ter uma europa Alemã para

passar a ser uma Alemanha europeia, como tanto desejava o grande thomas mann.são evidentemente altas as probabilidades de esse caminho não resultar, o que implica que se disponha de um plano b e que se estude adequadamente as consequências da saída da zona euro ou até da união europeia. não é um caminho que pessoalmente deseje, mas não posso entender que se não procure uma análise de custos/benefícios. obviamente que no quadro desse plano b se impõe rever toda a política de alianças e prioridades da política externa portuguesa.todos sabemos, por outro lado, que os limites da independência nacional não resultam apenas da existência da união europeia e que, num mundo globalizado, somos permanentemente confrontados com decisões tomadas no exterior, com consequências fortíssimas sobre a nossa comunidade.por tudo isso, teremos de pensar, no futuro, a questão da independência nacional em íntima conexão com a coesão social e com a reconstituição dos laços sociais profundamente destruídos nos últimos anos. simultaneamente, importa pôr de pé um novo sistema produtivo, abandonando-se uma economia assente em bancos e hipermercados, imagem perfeita da réplica de oliveira martins em 1881: “portugal o que é? uma granja e um banco”.

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Raquel VaRela[HISTORIADORA)independentes, de quem? na adesão à moeda única, era claro que um tecto de défice de 3% implicaria taxas de crescimento de 5% — totalmente impossíveis. A única forma de manter o sistema a funcionar na Alemanha era elevar as dívidas públicas do sul da europa. entretanto, internamente congelavam-se os salários aos trabalhadores alemães. este foi o modelo de saída da Alemanha depois da reunificação: exportar. Para exportar era preciso alguém que comprasse. e esse alguém, para comprar, contraiu dívida.A ideia de fazer uma frente do sul da europa contra o norte é angustiante e contra ela têm surgido amplos sectores europeus, que agora, depois de décadas de integração, se sentem, parte deles, efectivamente europeus. o modo de produção capitalista precisa de um estado nacional porque precisa de uma força de trabalho nacional. daí que a globalização seja efetiva na divisão internacional do trabalho, mas jamais na globalização de direitos sociais. isto é, precisa, para manter salários baixos, da competição entre os trabalhadores. qualquer saída que deixe outros trabalhadores, seja de outro país, de outra região ou de outra empresa, entregues à sua própria sorte, tem por resultado deixar-nos a nós próprios entregues à nossa própria sorte.

FraNcIscO MeNdes da sIlva[AdvogAdo)portugal ainda é um país independente e soberano? que há de novo na vida da pátria que suscite a angústia? se pensarmos que a tragédia das nações foi sempre a de quererem ser simultaneamente livres e protegidas, talvez não vivamos hoje nem mais nem menos do que essa tensão originária e intrínseca, como todas as nações, em todas as épocas. é certo que o país já foi mais soberano – por exemplo antes do 25 de Abril. mas essa era uma soberania do estado, não do povo, e menos uma manifestação de liberdade do que de isolamento, ele próprio uma forma de protecção. depois de Abril quisemos a protecção da integração, da modernidade e do cosmopolitismo – no fundo, a protecção de podermos ser como os outros. o problema é que para isso precisámos verdadeiramente da protecção dos outros, credores providenciais que nos foram garantindo o modo de vida. se há algo de inusitado na presente circunstância são os novos assomos de amor à soberania de quem no passado a entregou de maneira tão solícita aos políticos e contribuintes de outros países. seja como for, com mais ou menos rédeas orçamentais, o que é um país independente no mundo singular e intrincado de 2015? E o que é, afinal, um país soberano na europa, este continente-subúrbio de algumas cidades-estado, quase sem barreiras físicas à busca da felicidade?

PONTO DESITUAÇÃO

O pOrtuguês médiO – que aliás se acha superiOr a tOda a gente – acOrda de manhã e pensa: “quandO O dia chegar aO fim ainda terei trabalhO?”. Outra questãO premente que lhe acOde aO espíritO enquantO O cOrpO mastiga sem cOnvicçãO a sandes de queijO matinal é: “ainda sOmOs um país independente?” cOmO as respOstas simples nãO sãO a especialidade dO pOrtuguês médiO, cOnvOcámOs váriOs pOrtugueses acima da média (aceitamOs a acusaçãO de elitismO) para resOlver O enigma. e, afinal, ainda sOmOs Ou já nãO sOmOs um país independente?

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Pedro Pereira romano[Ex-jornalista)segundo o dicionário, “independência” é a capacidade de agir com autonomia e livre de constrangimentos. se a independência é isto, não há dúvida de que portugal é hoje menos independente. quase tudo o que fez nos últimos quatro anos foi, em boa medida, para responder a exigências externas: objectivos para o défice, metas para a dívida e mil e uma reformas estruturais. ninguém corta salários à função pública para exercer autonomia.mas até que ponto é que esta situação é nova? A verdade é que desde 1993 que portugal já aceita restrições às suas finanças públicas (Tratado de Maastricht). desde 1986 que transpõe para a legislação nacional um sem número de directivas europeias (adesão à cee). e desde 1960 que boa parte das suas barreiras comerciais são determinadas num fórum internacional (eftA). Aceitamos regras destas desde o tratado de tordesilhas.tudo isto representa perda de independência. mas representa também uma série de outras coisas: inflação baixa, acesso aos mercados europeus, livre circulação de pessoas na europa, etc. deste ponto de vista, a perda de independência é uma realidade tão inegável quanto trivial. A verdadeira questão é se o que ganhámos compensa tudo aquilo de que abdicámos.

aNa crIstINa leONardO[JornAlistA)em 2014, o presidente da entidade de serviços partilhados da Administração pública (sic), escrevia num artigo de opinião que «a marca portugal no mundo precisa de ser reinventada». notei a falta da proposição «de». não era gralha. o texto não versava camonianamente sobre «a marca de portugal no mundo». era mesmo sobre «a marca portugal no mundo». recuando a 2007, a então directora de comunicação e marketing do icep garantia em entrevista que «a marca portugal existe (...) num sentido do conceito de marca: percepção, conjunto de atributos associados a determinado emissor que afecta a noção de valor que é atribuída a tudo o que esse emissor produz». dentro do espírito, foi criado em 2011 pelo ministério da economia um selo com os dizeres «portugal sou eu», que substituía o entretanto descontinuado «compro o que é nosso». e seria imperdoável não citar as sub-marcas “Allgarve”, “europe’s West coast” ou o impagável “impulso Jovem”. se um país é uma marca com valor de mercado, e não uma entidade geográfica, histórica e linguística, vive, naturalmente, sob o cutelo de olivença. Fica a dúvida se, descontada a inflação, a marca portugal não terá custado mais caro do que a batalha de são mamede.

carMO aFONsO[AdvogAdA)o melhor de portugal veio sempre ao de cima nos momentos em que até era compreensível que as coisas não tivessem corrido bem. foi um herói: lutou pela independência, conquistou territórios, descobriu outros, voltou a lutar pela independência, repetidas vezes, acabou com a ditadura de uma forma pacífica e instituiu a democracia. Mas, como os heróis, portugal nunca mostrou vocação para o dia seguinte, para o esforço paciente do quotidiano. e é assim que muitos portugueses se vêem agora, no dia seguinte ao da revolução, na gestão do seu quotidiano. talvez isso explique a inércia e a apatia geral do país num momento em que, como poucas vezes, está ameaçada a sua independência. os portugueses ainda não estão em crer que o dia seguinte já passou e que é preciso acordar o herói. Alvíssaras a quem convencer os portugueses que novamente é preciso lutar pela independência; um lugar no panteão para quem, logo a seguir, os convencer a viverem uma vida independente.e, em todo o caso, um pouco de poesia sempre:“pertenço a um género de portuguesesque depois de estar a índia descobertaficaram sem trabalho.” (álvaro de campos)

PedrOraMOs PINtO(HistoriAdor)

independência a quanto obrigas! prender a própria mãe (d. Afonso henriques), mandar matar a nora (d. Afonso iv), espetar uma faca no homem que o convida a jantar (d. João i), tudo isto ainda só na idade média. é a preocupação que leva à corrida a áfrica no século xix, estendendo o colonialismo português à custa da independência de outros povos. em nome dela foi destronada a monarquia e, alguns anos mais tarde, a 1a república. é em nome da independência que foi instituída uma ditadura de cinco décadas, que se suprimiu a democracia e se embarcou numa guerra sem senso quando os povos africanos reclamaram a sua. não é que a independência não seja importante – é-a, mas em que termos e a que custo? A independência de um país não é um fim: só pode ser um meio para conquistar a liberdade e dignidade de cada um.quer queiramos quer não, como país estaremos sempre (e sempre estivemos) inseridos num contexto regional e global. nem os países mais ricos são totalmente independentes do resto do mundo; e há desafios críticos, como as mudanças climatéricas, que só se irão resolver cedendo autonomia de um modo pactuado, democrático e recíproco, no plano internacional. não sou contra a integração de portugal num projeto europeu que amplie as nossas liberdades, direitos e perspectivas. o problema da união

europeia é ter esquecido a centralidade desse contrato. As políticas da ue, dos nossos governos (eleitos, e por isso, em parte nossa responsabilidade), e o poder exercido pela promessa de investimento, fazem-nos menos livres. sair da ue traria a independência nominal, mas seria sem dúvida oca: pobre, quem sabe menos democrática, e sem dúvida à mercê de outras potências. só na construção de uma europa mais democrática e mais justa nos vejo mais independentes.

susaNa rOMaNa[guionistA)tal como o bugs bunny (sim, são estas as minhas referências culturais) eu tenho um Anjinho e um diabinho acampados nos meus ombros. estão ambos a recibos verdes – o que quer dizer que ambos trabalham muito e a desoras e sem licença para se queixarem. o diabinho diz-me que não, claro que não somos independentes. por causa da troika, da precariedade, da merkel, do estado islâmico, do bolo do caco, da austeridade, do starbucks, do bipartidarismo, do sentimento de impotência, da moda da zumba, das low cost e do bes. mas depois o Anjinho tosse, com aquela sua voz fininha (juro que no bugs bunny era assim), aclara o tom e diz: “preferias estar orgulhosamente só? Antes é que era bom? tem juízo”. e o Anjinho enche-me de pudores, porque é para isso que os Anjinhos servem. somos independentes que chegue para escrever sobre a independência, o que parece uma redundância mas é ainda uma conquista perigosamente recente. somos independentes que chegue para escolher mandar os outros à merda, sendo sempre dependentes do resultado dessa escolha. uns dias isso chega-me. na maioria, não.

vítOrrua(Músico e coMpositor) houve recentemente um documentário que me fez pensar muito sobre o significado de “evolução” e que me fez ver com uma claridade estonteante o nosso futuro próximo independentemente deste ou daquele partido ou político.Era um filme sobre uma pequena aldeia no interior de portugal, em que o realizador mostrava imagens de casas de pedra rústicas (das que hoje ou são patrimônio da humanidade ou são albergues rurais chiques) e um povo que vivia do que produzia: o pão, o queijo, cultivavam os seus legumes e frutas e tinham as suas galinhas e coelhos.A voz off enquanto víamos essas belas e poderosas imagens, dizia-nos: “esta aldeia viveu reprimida pelo regime fascista e vejam que o que produzem com tanto custo, se traduz unicamente em que cada família produza o suficiente só para eles próprios. mas com a chegada de um engenheiro agrónomo especializado, tudo está prestes a mudar e esta aldeia irá entrar numa nova era: uma era do avanço tecnológico que caracteriza a nossa época”.

rapidamente esta visão foi transformada em tractores a gasolina, pesticidas a serem usados poluindo plantas, as vacas e cabras e porcos foram metidos em autênticos matadouros, comendo rações transgénicas, vivendo sob a luz artificial, todos em condições ignóbeis, leite a ser mugido por máquinas mecânicas, a sugarem pus das tetas das vacas que vão ficando com feridas em processos cruéis e atrozes, árvores a serem cortadas e casas rústicas a serem substituídas por casas “emigrant style”.“Agora sim, este povo, vive condignamente numa era de evolução e avanços tecnológicos próprios de um ser humano”, dizia a voz “off”. este paradoxal exemplo fílmico fez-me pensar: “algum dia iremos retomar a nossa liberdade nacional”.e pensei que no “dia em que a crise terminar”, isto é o que irá acontecer:vamos recuar décadas no ensino, cultura e Arte, investigação, saúde, reformas se é que ainda existirão. e, lembrei-me de tudo isto e a única coisa que me quero recordar, era de como viviam felizes aqueles aldeões daquela “aldeia atrasada”...

JOaNastIchINIvIlela[JornAlistA)por momentos, pensei que já tínhamos sido um país independente e senti um frisson. Aquela ilusão de poder dos 14 anos, quando decides afirmar a tua independência e vais roubar um cigarro. para mim, a questão foi deus. mais ou menos por essa altura, resolvi que não acreditava em deus, ao que o padre da minha paróquia retorquiu, porque é que não acreditas em deus se acreditas que o homem foi à lua? A resposta, na verdade, tinha muito mais a ver com uma necessidade de não acreditar do que com a conquista do espaço. por causa daquilo a que aos 14 anos chamamos “a liberdade”. mesmo sabendo eu, malgrado, que este raciocínio era um salto de fé - não tão grande como o que neil Armstrong disse que a humanidade dera com ele, mas pelo menos idêntico ao que a fé exigia. nunca fomos um país independente. nunca seremos. nem é preciso olhar para a história, que está cheia de dependências. A independência é inatingível por perfeição. mas também é preciso acreditar que ela é possível. e a história também está cheia de alucinados. chamámos-lhes heróis. num momento em que tudo é discurso, cinismo e instagram, talvez faça falta esse bocadinho de poesia. Acreditar porque precisamos disso. e à pergunta, ainda acreditas que podemos vir a ser um país independente, responder, mesmo que a medo, talvez depois de avistarmos uma pedra lunar, sim, acredito.

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Malditos. Malditos olhos. Malditos olhos que ainda brilham quando recorda o passado. “Amor”, horas infinitas a acariciar o cabelo dele, “môr”, os braços, as pernas. Ele também gostava das pernas dela, “deixas-me louco”, e falava-lhe ao coração: “Como é que demorei tanto tempo a perceber que eras só tu que eu queria? És a minha princesa, só minha, o meu amor.” Cada palavra dele, um chuto de adrenalina no coração dela. Ainda agora, a lembrança ilumina-lhe o olhar, como ainda agora?, tantas perguntas, tão poucas respostas: “Ele foi o melhor e o pior da minha vida”. Aquele homem, o que lhe mostrou o céu e condenou ao inferno.Paula Santos é um suspiro, sempre a um passo da revolta, a um passo da saudade. O amor foi a sua droga, “o diabo de uma dependência” que quase a matou. Por mais que ele a maltratasse, continuava ao seu lado. Presa. Paixão no lugar de algemas. Seria mesmo amor? Conseguiu separar-se há três anos, mas não há dia sem memória. A distância estende a mão à lucidez: “Era um amor doentio, perdi a minha personalidade”. Foram cinco anos de coração e corpo em chamas, ora romance ora violência. Quantas vezes foi espancada? “Muitas...” Quantas vezes foi insultada? “Perdi a conta...” Por que é que não o deixou antes? “Porque não podia viver sem ele...” Um suspiro, o olhar sombrio: “Dependia dele para tudo”. Não entrava num café sozinha nem ia ao supermercado sem autorização. Nos piores dias, chegou a levar o companheiro para o trabalho: “Ele queria que os meus colegas nos vissem juntos e eu, apesar da vergonha, acedia”.

«pAulA sAntos é um suspiro, sempre A um pAsso dA revoltA, A um pAsso dA sAudAde. o Amor foi A suA drogA, “o diAbo de umA dependênciA” que quAse A mAtou. por mAis que ele A mAltrAtAsse, continuAvA Ao seu lAdo. presA. pAixão no lugAr de AlgemAs. seriA mesmo Amor?»

na altura, nem imaginava chamar-se co-dependência o que lhe enchia o peito. rita morais, psicóloga no villa ramadas, um centro de tratamento de adições, tem ideias claras: “o amor pode ser uma droga. As pessoas que sofrem de amor obsessivo têm comportamentos semelhantes aos dependentes de cocaína ou de heroína. há a tendência de inverter prioridades, tudo funciona em torno daquela pessoa ou consumo”. A dependência emocional surge, muitas vezes, associada a outros fenómenos: “A violência doméstica está

presente em imensos casos”.paula é rosto da estatística. uma em cada cinco mulheres da união europeia é vítima de violência doméstica, revela a Agência europeia dos direitos Fundamentais. Em Portugal, 85% das vítimas deste crime são mulheres, garante o último relatório do ministério da Administração interna. mais: 78 por cento não depende economicamente do agressor e nove por cento tem estudos superiores. paula revê-se no retrato - concluiu o bacharelato, nunca precisou da carteira do companheiro. está sentada, as mãos desassossegadas na chávena de chá. Algo lhe diz que tudo seria mais fácil, se a dependência fosse económica. dinheiro é assunto que se resolve, “pior é resolver o coração”. e a cabeça. leva uma mão ao cabelo comprido, desfaz um nó. quantos punhados de cabelo ele lhe arrancou? “A dependência pouco se explica.” e a dela começou no primeiro dia em que o viu. tinha oito anos.

«o Amor pode ser umA drogA. As pessoAs que sofrem de Amor obsessivo têm comportAmentos semelhAntes Aos dependentes de cocAínA ou de heroínA. há A tendênciA de inverter prioridAdes, tudo funcionA em torno dAquelA pessoA ou consumo.» ritA morAis, psicólogA

veio ao mundo em Abril de 1969. A mãe, que amargara a gravidez inteira, trocou lamego pelo porto semanas antes do nascimento, a conselho de um parente, médico de ofício. fevereiro despedira-se num tremor de terra, o chão a fugir dos pés, 13 mortos no pior sismo dos últimos calendários. Antes que a terra tremesse de novo, o melhor era a mulher, necessitada de cuidados especiais, estar perto do hospital. Ainda mais, o marido cumpria o dever na guerra colonial. José salvador embarcara para a guiné logo depois do casamento e, não fosse uma bala quase lhe levar o pé, nunca regressaria à metrópole uma semana depois de a filha nascer. Não rastejou nem um ano de G3 a tiracolo, mas o que lá passou vincou-o para sempre. mal ouvia um barulho, no impulso da lei do mato, o homem saltava para trás do sofá, certo de emboscada. quando paula apagou as duas velas, a família desceu até lisboa. o pai empregou-se na indústria farmacêutica, a mãe continuou o caminho de professora primária, ensinar a magia das letras e a razão das contas. foi na capital que paula deu de caras, pela primeira vez, com o homem que havia

de lhe condicionar a vida inteira. filho de gente próxima da família, meia dúzia de anos mais velho: “mal os meus olhos encontraram os deles, estremeci”. Ainda brincava com bonecas.

«umA em cAdA cinco mulheres dA união europeiA é vítimA de violênciA domésticA, revelA A AgênciA europeiA dos direitos fundAmentAis. em POrTuGAl, 85% dAS vítimAs deste crime são mulheres, gArAnte o último relAtório do ministério dA AdministrAção internA.»

Anos depois, no mais negro dos dias, os seus olhos haviam de se cruzar de novo. foi na manhã em que paula recebeu a notícia da morte do pai. José salvador tinha apenas 37 anos quando um camião atropelou o renault 5 da família. ele sem respirar e a mulher em coma no hospital. nos seus 14 anos, paula era uma lágrima perdida, o pai sempre fora ponto cardeal primeiro da sua bússola. familiares e amigos emprestaram-lhe o ombro, o rapaz por quem há muito suspirava também. mas tinha preço o seu abraço.o romance foi uma montanha-russa. em rigor: paula namorava com ele, ele namoriscava o mundo inteiro. “sabia que tinha outras, cheguei a conhecer algumas, mas aceitava as migalhas que me dava. o que é que podia fazer? ele dizia-me que era assim...” calava e sofria. um dia, um convite de casamento - ele no altar com outra e ela num mar de lágrimas. primaveras passadas, também ela aceitaria aliança, faria “a sua vida”. mas a ausência dele era sempre a maior das presenças. reencontram-se mais de uma dúzia de anos depois. ela está divorciada, ele seguro: “quero ver-te”. o tempo parece não ter passado, são de novo adolescentes. Horas infinitas, ela a acariciar o cabelo dele, “môr”, os braços, as pernas. ele também gostava das pernas dela, “deixas-me louco”, e falava-lhe ao coração: “como é que demorei tanto tempo a perceber que eras só tu que eu queria? és a minha princesa, só minha, o meu amor”. às vezes, fazia suas as canções de João pedro pais: “dá-me vontade de te ter a meu lado / vendo-te olhar para mim”. A voz dele era um arrepio na coluna dela, “o pico da adrenalina”. faltava-lhe ouvir o fim da música: “Mentira! Mentira! mentiraa”.começaram a viver juntos num princípio de inverno, os primeiros tempos, lua-de-mel igual à dos filmes. depois, o ciúme, a desconfiança. A obsessão. Paula pousa a chávena de chá, respira fundo:

“As mensagens fofinhas tornaram-se obrigação, se não atendesse o telefone, ele desconfiava, insultava-me... E eu deixei... não dava um passo sem ele, deixei de sorrir, de falar com as pessoas. vivia em função dele”. porquê? “porque os momentos bons eram maravilhosos, de uma intensidade que desconhecia”. corriam o país de mota, os dois de fato motoqueiro e sorriso adolescente. mas os instantes felizes foram ficando cada vez mais breves. “eu estava viciada naqueles picos de adrenalina. nunca experimentei drogas, mas deve ser a mesma coisa, tem um lado muito bom que nos arrasta para a desgraça”.A psicóloga rita martins traz o assunto estudado: “é mais difícil perceber que alguém está dependente de outrem do que de droga porque é menos visível. mas não só os comportamentos são semelhantes como o sofrimento e a dor são iguais. recebo muitas pessoas com co-dependência que são tratadas como se tivessem apenas depressão, é mais difícil retirar-lhes a medicação do que a alguém que toma fármacos para aliviar a ressaca de cocaína”.paula treme memórias. o chá frio, uma mão esquecida no cabelo. cerra as pálpebras, suspira. tem de lembrar os maus momentos, tantos. A primeira vez que ele lhe bateu foi no quarto, “uma chapada”. ela indignou-se, ameaçou pô-lo na rua, nem o pai alguma vez lhe levantara a mão. “mas o que faria sem ele?” A vida inteira dependeu de uma figura masculina - o pai, ele, o marido, ele. e ele chorou como um bebé, pediu perdão, convenceu-a de que a culpa era dela, “deixas-me louco”, jurou nunca mais lhe bater, “és a minha princesa”. mas as tréguas foram sol de inverno. A violência fez-se rotina e ela trancou as nódoas negras em silêncio. espancada na rua, murros, pontapés. espancada em casa, pontapés, murros. saco de pancada. um traumatismo craniano, um maxilar quebrado, um ouvido sem serventia. no último dia, o corpo arremessado contra a marquise, ela em vidros no chão. “pu-lo fora de casa e fui para o hospital. finalmente, pu-lo fora de casa”. por ela, sobretudo pela filha:- outra vez, mãe?!- Outra vez, filha. Mas foi a última vez.tem 46 anos, acompanhamento psicológico, cicatrizes que não saram. Aos poucos, conseguiu deixar de o perseguir nas redes sociais, conseguiu perder o medo de o encontrar na rua “e sentir de novo borboletas no estômago”. cada dia é uma conquista e uma luta para não recair na dependência emocional. mas malditos olhos. malditos olhos que ainda brilham. malditos olhos que ainda brilham quando pensa naquele homem. “não nele, só nas partes boas daquele amor”. um amor louco, ou melhor, uma obsessão. se fosse amor, não magoava

SE FOSSE AMOR,NÃO MAGOAVAREPORTAGEM AnA SofiA fonSecA

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A ideia de cinema independente (não necessariamente de um cinema independente) nasce nos Estados Unidos da América, país em que a indústria cinematográfica sempre foi forte e comportou, em tempos, produtoras não alinhadas com os grandes estúdios fundadores do poderio e influência de Hollywood. Hoje em dia, muito depois de quase todas essas produtoras independentes terem sido engolidas pelo sistema, continua a usar-se a expressão “cinema independente” para identificar aquele tipo de filmes que foge à massificação do blockbuster. Um pouco como aconteceu na música: indie deixou de significar “feito por uma pequena editora” para ser um género musical que ninguém sabe descrever muito bem. Em Portugal e em todos os países em que a indústria cinematográfica não é auto-sustentável (a vasta maioria, Estados Unidos e Índia são das poucas excepções), o cinema, para existir com alguma continuidade, será sempre dependente dos apoios do Estado. No nosso país, para lá de uma ou outra experiência bem sucedida de produção sem apoios estatais - por parte de televisões, no caso de “Morangos com Açúcar - O Filme”, ou filmes de amigos com participações pro bono (ou quase) de actores e técnicos -, não se poderá falar de um cinema verdadeiramente independente do ponto de vista financeiro. Nos tempos da ditadura, essa dependência ao Estado obrigava a um alinhamento ideológico, ao cumprir dos projectos estéticos dos responsáveis do regime.Ao leme do Secretariado da Propaganda Nacional, António Ferro levou uma geração de realizadores talentosos - António Lopes Ribeiro, José Leitão de

Barros - para adaptações académicas de grandes obras literárias portuguesas e tentou forçá-la para longe das “comédias à portuguesa” que desprezava, não conseguindo inteiramente cumprir esse objectivo. No entanto, outras propostas, que fugissem a qualquer desses “géneros”, foram desaparecendo. Veja-se o caso do recém-falecido Manoel de Oliveira. Embora tivesse a princípio a protecção de Lopes Ribeiro, nunca foi um cineasta querido do regime (enquanto este durou, filmou três longas-metragens). “Aniki-Bobó”, de 1942, neo-realista avant la lettre, mostrando a pobreza das crianças da Ribeira portuense, não foi bem aceite. Menos ainda os seus filmes posteriores, progressivamente mais “difíceis”. Leitão de Barros, embora tenha sido sempre um realizador próximo do regime (e autor de alguns filmes interessantes como “Maria Papoila”), jamais pôde fazer algo parecido a “Maria do Mar”, de 1930, que mostrava a dureza da vida dos pescadores da Nazaré. Mesmo não havendo filmes abertamente de propaganda - a excepção é “A Revolução de Maio”, escrito pelo próprio Ferro e por Lopes Ribeiro e realizado pelo último (que nunca foi bem amado) —, havia uma correcção estética (a nível das temáticas, da representação do povo, etc.), a que as próprias comédias (normalmente espaço para todo o tipo de subversões) tinham de obedecer. O Cinema Novo haveria de romper com esse estado de coisas nos anos 60, mas os cineastas que o compuseram cedo perceberam a necessidade de apoios, viessem de onde viessem. Apesar dos sucessos de estima de “Os Verdes Anos” de Paulo Rocha e Belarmino de Fernando Lopes, o público português não acorreu a vê-los, bem

pelo contrário. António da Cunha Telles, o produtor desses primeiros esforços, depressa se encontrou na falência. Nessa altura, a Fundação Gulbenkian, através do Centro Português de Cinema, veio suprir a falta de apoios estatais momentaneamente. Depois do 25 de Abril, o Instituto Português de Cinema, sob as diversas nomenclaturas (actualmente chama-se Instituto do Cinema e Audiovisual), viria o ser o garante desses subsídios no apoio ao cinema. Se a partir daí passou a poder-se falar de uma independência artística (face ao Estado), nunca faltaram vozes críticas. A famigerada divisão entre cinema comercial e cinema artístico (bastante simplista) é acirrada pelos limitados fundos disponíveis. Cineastas mais próximos do “cinema comercial”, como António-Pedro Vasconcelos, põem em causa a atribuição dos subsídios a certos cineastas em detrimento de outros. Manoel de Oliveira, com apoio garantido ano após ano nas últimas décadas, era um dos principais visados. Poderão ter tido alguma razão num ou outro caso (no de António de Macedo, por exemplo, que não filma há mais de vinte anos), mas uma escolha implica necessariamente que uns fiquem de fora. E é impossível que qualquer critério, seja ele qual for, agrade a todos. Sendo a dependência financeira em relação ao Estado uma necessidade (como é), cabe a todos encontrar o critério mais justo e a cada um defender a sua independência.

A INDEPENDÊNCIA POSSÍVELJoão Lameira

“Eu fui um revolucionário por conta própria e não por conta de outrem” Camilo de Mortágua

Parece que a grande mudança de paradigma no cinema se deu quando os filmes deixaram de ser feitos por uma elite endinheirada. Os não ricos também podem, desde há algumas décadas, fazer cinema. Não é uma mudança estética, é uma mudança de produção. Este facto, no entanto, não implica um valor qualitativo em si, principalmente se o cinema pobre copiar o cinema rico. Ou seja, se quem tem poucos meios de produção tentar fazer um filme como se tivesse muitos meios, desvirtuando as suas origens e não potenciando a sua originalidade. Os meios devem adequar-se às condições de produção e à realidade que se filma:

reajustando-se às novas condições sociais, o cinema do século XXI deveria ser mais regional, local, pessoal (ou unipessoal), intimista, mínimo, próximo das pessoas e da natureza que filma, com mais tempo e menos meios. Uma das grandes vantagens da nova tecnologia digital de alta resolução é permitir produções cada vez mais mínimas, nas quais a qualidade final de imagem já não é um problema. Talvez depois de passada esta euforia do Super HD, 4K ou 100K e resolvido que estará o problema da resolução de imagem, possamos voltar-nos em direcção ao humano. O dito cinema pobre não significa independência ou, ainda, ser independente: ser verdadeiramente independente em países como Portugal talvez só seja possível ao fazer um filme em auto-produção, sem estar ligado a uma empresa produtora, e sem apoios estatais.

Nesse caso, só se presta contas a si próprio e a quem se filma. E, na verdade, devido à evolução tecnológica, isto já se pode fazer um filme quase sozinho, sem muito dinheiro. Logicamente, isto tem consequências, tanto no filme como na nossa própria vida: é preciso tempo, dedicação e paixão. Se os modos de produção estão em constante renovação, e ao deixarmos que os filmes reflictam o seu modo de produção, será possível criar novas formas de fazer cinema e de chegar a novos resultados, por vezes, inesperados. Escravos do digital, escravos do capital: convém não esquecer que a rápida evolução tecnológica no vídeo será sempre uma falsa democratização se cairmos no engodo do mercado. As novas câmaras de vídeo digital estão feitas para durar 10 anos no máximo, seja pelos materiais de que são feitas, seja pelo

formato suportado. Se tentarmos seguir a par e passo esta linha de evolução, seremos escravos do digital e do capital. Seremos menos independentes.Filmes em pacotes: as novas regras nos apoios estatais de cinema em Portugal não prenunciam boas notícias. Para o desenvolvimento e escrita de filmes documentários, por exemplo, agora só se aceitam pacotes de 3 projectos apresentados por uma empresa produtora. O que quer dizer que um realizador sem produtora e que tenha um projecto de filme para desenvolver não se pode candidatar. Isto é sintomático de uma sociedade cultural elitista, regulada por poucos e desfasada da nova realidade do cinema: há cada vez mais pessoas a filmar.Nota fiNal sobre o titulo deste textocaMilo de Mortágua, uM dos últiMos revolucioNários roMâNticos, diz de si próprio: “eu fui uM revolucioNário por coNta própria e Não por coNta de outreM”.

por conta própria ou de outrem?crónica GONÇALO TOCHA

CINEMA E LIVROSIndependente – como em cInema Independente ou músIca IndIe – tornou-se numa marca a coberto da qual são vendIdos alguns produtos cuja únIca qualIdade serIa essa suposta IndependêncIa. mas a verdadeIra IndependêncIa dos agentes culturaIs como os que aquI apresentamos – cIneastas, edItores e lIvreIros – é fundamental para a exIstêncIa de dIversIdade de ofertas e propostas artístIcas. e essa dIversIdade é um bem em sI mesmo. a avalIação da qualIdade, que não deve ser suspensa apenas por se tratar de um “Independente”, vIrá depoIs.

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17 I ABRIL, 2015

CINCO PERGUNTAS A UM EDITOR INDEPENDENTEJOÃO PAULO COTRIM Editor da Abysmo

O “DURANTE BOA PARTE DO SÉCULO XX, O MERCADO DE EDIÇÃO E VENDA DE LIVROS FOI, NO SEU TODO, VISTO COMO UMA OPERAÇÃO NO LIMIAR DA RENTABILIDADE. OS LUCROS VIRIAM ASSIM QUE OS LIVROS CHEGASSEM A UM PÚBLICO MAIS AMPLO ATRAVÉS DA VENDA DOS PAPERBACKS E DOS CLUBES DO LIVRO. E SE ISTO É EXACTO PARA A NÃO-FICÇÃO, TANTO MAIS PARA A LITERATURA. ERA ESPERADO QUE UM ROMANCE DE ESTREIA PERDESSE DINHEIRO (E DE MUITOS AUTORES JÁ SE DISSE TEREM ESCRITO MUITOS ROMANCES DE ESTREIA). TODAVIA, SEMPRE HOUVE EDITORAS QUE CONSIDERAVAM QUE A EDIÇÃO DE NOVOS ROMANCISTAS DEVIA CONSTITUIR UMA PARTE IMPORTANTE DO CONJUNTO DA SUA PRODUÇÃO.NOVAS IDEIAS E NOVOS AUTORES DEMORAM A SER ACEITES. PODEM PASSAR VÁRIOS ANOS ATÉ QUE UM ESCRITOR ENCONTRE UM NÚMERO DE LEITORES QUE SEJA SIGNIFICATIVO A PONTO DE JUSTIFICAR OS CUSTOS DA PUBLICAÇÃO DO SEU LIVRO. MESMO A LONGO PRAZO, O MERCADO NÃO PODE SER CONSIDERADO UM JUIZ ADEQUADO PARA O VALOR DE UMA IDEIA, COMO PROVAM, DE FORMA ÓBVIA, AS CENTENAS OU ATÉ MILHARES DE LIVROS QUE NUNCA FIZERAM DINHEIRO. ASSIM, TODA ESTA NOVA ABORDAGEM – A DECISÃO DE PUBLICAR APENAS OS LIVROS QUE PODEM TRAZER LUCRO IMEDIATO – ELIMINA AUTOMATICAMENTE DOS CATÁLOGOS UM VASTO NÚMERO DE OBRAS DE RELEVO.MAS EXISTE OUTRA DIFICULDADE. ENQUANTO A FICÇÃO E A POESIA PODEM SER ESCRITAS POR AUTORES QUE TRABALHAM A TEMPO INTEIRO NOUTRAS OCUPAÇÕES, OS AUTORES DE ENSAIOS PRECISAM DE ADIANTAMENTOS OU DE OUTRA FORMA DE AUXÍLIO QUE OS PERMITA SUSTENTAR AS SUAS PESQUISAS. É NESTA IMPORTANTÍSSIMA ÁREA QUE TEMOS ASSISTIDO AO DECLÍNIO MAIS ACENTUADO. O “MILTON POR NASCER”, DA ELEGIA ESCRITA NUM CEMITÉRIO DE ALDEIA, DE THOMAS GRAY, FOI SUBSTITUÍDOPELO “FOUCAULT POR NASCER”, O PENSADOR QUE NÃO TEM OS MEIOS OU O APOIO NECESSÁRIOS PARA ESCREVER O LIVRO QUE VAI MUDAR A FORMA COMO PENSAMOS, O QUE PODE ACONTECER AINDA QUE SEJA APENAS UM PEQUENO NÚMERO DE PESSOAS A COMPRÁ-LO.E FINALMENTE, COMO EM QUALQUER OUTRO ASPECTO DO MERCADO LIVRE, TEMOS O PROBLEMA DE ESTE NÃO SER UM JOGO JUSTO. AS GRANDES EMPRESAS, QUE PUBLICAM OS LIVROS MAIS COMERCIAIS, TÊM GRANDES ORÇAMENTOS PUBLICITÁRIOS AO SEU DISPOR, EQUIPAS DE VENDAS ENORMES E UMA REDE DE CONTACTOS COM A IMPRENSA EXTREMAMENTE OPERATIVA. TUDO ISTO PERMITE QUE OS SEUS LIVROS RECEBAM A ATENÇÃO DESEJADA. AS PEQUENAS EDITORAS NÃO CONSEGUEM COMPETIR EM PÉ DE IGUALDADE E TÊM A VIDA BEM MAIS DIFICULTADA QUANDO QUEREM ARRANJAR UM ESPAÇO PARA OS SEUS LIVROS, QUER NAS LIVRARIAS, QUER NAS CRÍTICAS DE IMPRENSA.”scHiffriN, aNdré – o Negócio dos livros: coMo os graNdes grupos ecoNóMicos decideM o que vaMos ler. lisboa: livraria letra livre, 2013, p. 127-129

Centésima Página :Uma livraria indePendente em bragaCrÓniCa Helena Veloso, sofia afonso e Maria João lobato

Em 1999, abrimos uma livraria. Sem rótulo. Apenas livraria. O que uma livraria deve ser: aberta, diversa, sem

censura, favoritismos, tentando dar aos livros e seus autores um espaço condigno e boa companhia. Mesmo com alguma especialização, mas sem desprezo por nenhum livro ou público. Hoje, 15 anos depois, somos independentes. Na margem? Porque nos mantivemos fora das tendências de uniformização, de favoritismos e cópias de projectos aparentemente mais rentáveis, embora limitados por regras ditadas por grandes grupos agora geridos por CEO, que dispensam os editores e que perguntam: quem é este autor? Vende? Desconhecem que os grandes autores vendem-se sempre e para sempre, enquanto outros duram seis meses ou nem isso. Consideramo-nos independentes porque abrimos as portas a pequenas editoras e temos em permanência (ou tentamos ter, pois não temos folga financeira para isso) os catálogos de editoras pequenas mas incontornáveis, pois representam a alternativa na uniformização editorial vigente. E o nosso top de vendas (que também fazemos) é “estranho”, no mínimo. Tem livros de poesia, teatro (sim, teatro), clássicos, livros infantis, e autores ditos “difíceis”. Mas que, contra todas as expectativas dos grandes gestores, se vendem. Apenas precisam de espaço e tempo. Seremos independentes porque passados 15 anos fazemos parte de um grupo cada vez mais reduzido? Porque criticamos, discordamos, não abdicamos e avançamos segundo a nossa convicção? Talvez. Mas não por querermos ser rebeldes ou diferentes ou rabugentas. Apenas porque o tempo nos tem mostrado que temos razão nas opções e decisões que tomamos. Aos poucos, e 15 anos volvidos, algumas editoras e distribuidoras aderem à nossa proposta. E com bons resultados. Mas a ditadura financeira impõe-se e dita as regras. Compreendemos que as sucessivas falências e desilusões conduzam a isso. Mas é urgente perceber que não é possível impor a um mercado imperfeito como é o cultural as boas práticas dos produtos comuns de consumo.Devemos uma homenagem aos nossos públicos. Pela sua fidelidade, pela relação de confiança e de proximidade construída, partilham connosco a convicção de que este modelo é válido.Somos felizes? Às vezes. Receamos estar presas a uma ideia condenada, mas ainda não nos sentimos prontas a desistir. Sentimos que há uma tendência de inversão do mercado e seus agentes e queremos esperar um pouco mais. Mais 15 anos? Mas será que sobreviveremos a 2015? É a nossa dúvida ano após ano.

1. De que depende um editor independente? Depende de si – principal qualidade e não menor defeito. Mas pensar que a vontade move montanhas talvez o ajude no momento de arrumar os armazéns. No limite pode bem independer de tudo e todos, até de leitores. Nunca de leituras. 2. DO o que pode uma editora independente oferecer de diferente aos seus leitores? A combinação única de gosto e saber, uma intuição que ajuda a tatear no escuro. Ou seja, oferece risco e uma ideia, talvez em demasia, oferece ainda a crença na palavra (na vez do dinheiro). Tendo em conta o panorama, oferece literatura de risco, passe a redundância. 3. E aos seus autores? Oferece uma ética e uma comunidade, se for caso disso. Oferece sobretudo um rosto, ainda que em debate, além do comentário aceso, da avaliação cuidada, da confidência selvagem, da lúdica construção, do acompanhamento extremo. 4. O futuro da diversidade editorial está nas micro-editoras? Sem dúvida. Sobretudo em Portugal, capital dos macacos de imitação: em resultando copiamos. Por isso somos todos gourmet e sexy, do prego de atum ao jovem escritor. Continua muito por explorar e quase tudo por editar, mesmo para além da poesia. Mas as micro-editoras com personalidade serão sempre o laboratório da biodiversidade. 5. Como se mantém a independência num mercado dominado pelos grandes grupos editoriais? Inventando, por tentativa e erro. Pensando e arriscando, na vez de copiar os manuais do já feito. Convocando outros modos de fazer, obedecendo à curiosidade, procurando proximidades na vez de capital. Enfim, lendo. Lendo muito.

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Mulher, sim, mas branca, heterossexual, de classe média (precarizada, é certo), e, como tal, em relativo conforto numa matriz de “privilégios” (palavra operante mas deslegitimadora daquilo que são, grosso modo, direitos, em acepção que acredito extravasar o legalismo). Podia, num esforço de localização da minha experiência objectiva (e tantas vezes subjectivada), aqui traduzida em texto, desdobrar-me em adjectivos que não

meros artefactos estéticos (e tão pouco estáticos). Não o vou fazer, assumindo que o epíteto “independente” me consente, por vezes, a fuga à exigência do detalhe nas justificações. Permito-me, porém, em tão só aparente contradição, mas valendo-me da mesma premissa, ir um pouco mais além nesta última ideia.Mulher, sim, cuja independência, conceito polissémico diga-se, se vê com frequência, negociada, constrangida e, nas entrelinhas, vigiada. Economicamente independente e, para tal, contratualmente dependente, com futuro a curto prazo incerto, contrariamente ao termo. Assim, em constante tensão entre a procura independente de criação de uma dependência (tanto quanto possível criativa), como forma de manutenção da desejada “antítese”. Em ansiedade na antevisão da eventual necessidade de regresso à dependência parental, cujo desejo é ver circunscrita às emoções. É um problema geracional? Não! É político!Solteira, a viver só, e deliberadamente independente face a uma contratualização

(inclusive tácita) de afetos (se é disso que falamos). À data, sem qualquer apelo da maternidade. Independente no privado mas face à vigilância dos corpos emanada do público, numa ruptura cuidadosa. Feminista! – Ah! Isso explica tudo! – Não, não explica. Ilustra o compromisso com a luta por uma independência que não é só minha, nem só das mulheres, que na diversidade é colectiva e global. Mulher, sim, e/ mas Filha de Abril (e inimiga declarada de Novembro). Em dívida para com as mães e pais da Revolução face a boa parte do que sou, do que me é permitido, mas também do que insisto em exigir. Refiro-me à dita independência e/ou liberdade. Ao contrário de outras dívidas, involuntariamente contraídas, considero que esta deve ser efectivamente paga, via luta pela sua recriada efectivação. Não intento com este situar cronológico, obscurecer toda uma genealogia de resistências, combates e insurreições (colectivas e individuais). Pretendo apenas enfatizar “as portas que Abril abriu”, as que deixou entreabertas, as que destrancou. Como nunca antes, para as (e também pelas) mulheres foram muitas. Da vontade e das práticas em subversão se fez lei. Associada à diluição de obstáculos sociomorais, com ela se ampliou o espectro das oportunidades, no trabalho, na educação, na(s) família(s), nos corpos. Mas, entre persistentes marcas de passado e ofensivas de presente, a liberdade em igualdade revela-se um projecto inacabado.

18 I ABRIL, 2015

viver independenteCrÓniCA AnA JORGE

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19 I ABRIL, 2015

Horizontais1- Sigla do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que, em 24 de Setembro de 1973, declarou unilateralmente a independência da Guiné-Bissau (reconhecida a 10 de Setembro de 1974). 5- (...) Cabral, em 20 de Janeiro de 1973, é assassinado, em Conacri, por dois membros do seu próprio partido. 11- Interjeição designativa de dor. 12- «Lápis (...)», símbolo da censura no Estado Novo. 13- Ínsula. 14- Seguir até. 15- Abreviatura de Terabyte (Informática). 16- Foi desviado por Henrique Galvão e tinha o nome de Santa Maria (1961). 18- Tornar ondulado. 22- Onde, a 15 de Janeiro de 1975, foi assinado um acordo entre o estado português e os dirigentes dos três movimentos (MPLA, a UNITA e a FNLA), no qual se estabelecia como data para a independência de Angola o dia 11 de Novembro de 1975. 24- Disciplina. 26- Organização das Nações Unidas. 27- Érbio (s.q.). 28- Associação Internacional para o Desenvolvimento. 29- Tântalo (s.q.). 30- Grande preguiça. 32- Gosto. 34- Tens a natureza de. 36- Diário. 38- Oferecer. 39- Mário (...), ministro que fez a descolonização (foi o primeiro a pegar na pasta dos Negócios Estrangeiros após a revolução de 25 de Abril). 42- Forma um só. 44- Sódio (s.q.). 46- Interjeição que designa repulsa ou raiva. 47- Costume. 48- Erradamente. 49- Grosa (abrev.). 50- Movimento que defendia a imediata independência das colónias. 51- Banquete que se dá pela ocasião do casamento. 52- Prefixo (novo). 53- Território que passou para a soberania chinesa a 20 de Dezembro de 1999. 55- Sufixo (agente). 56- Ponto cardeal. 57- A unidade. 58- Queimas.

Verticais2- Vento brando e aprazível. 3- Segundo. 4- Conseguiu a sua independência a 5 de Julho 1975 (duas palavras juntas). 5- Criador. 6- Mililitro (abrev.). 7- «Dia da (...)», como também é denominado o dia 25 de Abril. 8- Centilitro (abrev.). 9- Interjeição que exprime admiração. 10- Memória de computador. 14- País que invadiu o território de Timor Leste, em 7 de Dezembro de 1975, interrompendo o processo de descolonização (independência: 20 de Maio de 2002). 15- Sinal gráfico que serve para nasalar a vogal a que se sobrepõe. 17- Baixios. 19- O dobro de um. 20- Anno Domini. 21- Cidadãos de nacionalidade portuguesa que regressaram à pátria após a independência das colónias portuguesas em África. 23- O conjunto das aves de uma região ou país. 25- Oceano. 31- Autores (abrev.). 33- Bário (s.q.). 35- Redução de senhor (popular). 37- Capital da Zâmbia, onde, a 7 de Setembro de 1974, é assinado um acordo entre o governo português e a FRELIMO que, no essencial, estipula a proclamação da independência de Moçambique a 25 de Junho de 1975. 40- Capital da Argélia, onde, a 26 de Novembro de 1974, foi assinado um acordo entre representantes do MLSTP e de Portugal onde se previa a independência de S. Tomé e Príncipe (12 de Julho de 1975). 41- Invulgar. 43- Redução das formas linguísticas “em” e “o” numa só. 45- Em forma de asa. 47- Interjeição que designa cansaço. 48- Molibdénio (s.q.). 50- 3000 em numeração romana. 51- Autocarro. 52- Despido. 54- Elas.

Horizontais: 1- PAIGC. 5- AMÍLCAR. 11- UI. 12- AZUL. 13- ILHA. 14- IR. 15- TB. 16- NAVIO. 18- ONDEAR. 22- ALVOR. 24- ORDEM. 26- ONU. 27- ER. 28- AID. 29- TA. 30- SORNA. 32- SABOR. 34- ÉS. 36- DIAL. 38- DAR. 39- SOARES. 42- UNE. 44- NA. 46- IRRA. 47- USO. 48- MAL. 49- GR. 50- MFA. 51- BODA. 52- NEO. 53- MACAU. 55- OR. 56- SUL. 57- UM.

58- ASSAS.

Verticais: 2- AURA. 3- II. 4- CABOVERDE. 5- AUTOR. 6- ML. 7- LIBERDADE. 8- CL. 9- AH. 10- RAM. 14- . 15- TIL. 17- VAUS. 19- DOIS. 20- AD. 21- RETORNADOS. 23- ORNIS. 25- MAR. 31- AA. 33- BA. 35- SOR. 37- LUSACA. 40- ARGEL. 41- RARO. 43- NO. 45- ALAR. 47- UFA. 48- MO. 50- MMM. 51- BUS. 52- NU. 54- AS.

PALAVRAS CRUZADASPOR PAULO FREIXINHO

questionáriode elevado grau de dificuldade (sem google)quem deu o grito do ipiranga?A) Pedro ÁlvAres CAbrAlb) d. Pedro IC) ArAújo lImA

em que data foi declarada a independência dos eua?A) 4 de julho de 1786b) 14 de julho de 1789C) 4 de julho de 1776

em que cidade nasceu simon Bolívar?A) lA PAzb) lImAC) CArACAs

quem foi o primeiro líder (primeiro-ministro) democraticamente eleito da atual repúBlica democrática do congo?A) PAtrICe lumumbAb) josePh KAsA-vubuC) josePh mobutu

quem é o autor da letra do hino de angola?A) luAndIno vIeIrAb) gostInho netoC) mAnuel ruI monteIro

em que capital europeia foi assinado o acordo de paz que pôs fim à guerra civil moçamBicana em 1992?A) lIsboAb) PArIsC) romA

qual a área de formação académica de amílcar caBral?A) engenhArIA CIvIlb) AgronomIAC) FIlosoFIA

quem foi o primeiro presidente de timor-leste?A) josé rAmos-hortAb) mÁrIo CArrAsCAlãoC) XAnAnA gusmão

de que antiga colónia espanhola, carlos manuel de céspedes é considerado o pai da pátria?A) CubAb) méXICoC) equAdor

Ben Bella foi presidente de que antiga colónia francesa?A) mAlIb) ArgélIA b) senegAl

soluções: 1 - B) 2 - C) 3 - C) 4 - A) 5 - C) 6 - C) 7 - B) 8 - C) 9 - A) 10 - B)

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ABRIL, 2015

PlaNO NacIONalde lOucura

Inasceste quando os pais conquistaram direito ao acento

para lamentar sentaram-se lestos nos descuidados intensivosjunto à matilha de cães que nos lambe o talho em grupo

sanguíneo, por ti levei porrada, o arco-íris partiu-meoito costelas, fui obrigado a desossar da imaginária o coração

por mais moedas que insira só sonho em cores primáriasresta-me o pensamento, família numerosa sem subsídio

fundo europeu que financie o fresco da esperança, como essescigarros ministeriais que limpam o sabor da incompetência

no final pressiona-se e é tudo, sorri-lhes a boca como serecém-parida sob um sol a estrear, venha a nós

um anjo factor cinquenta made in china – rejubilemos!praias escanhoadas por hordas de sonâmbulos em busca de cor

quiçá lhes calhe o fulgor da aparição na transitiva verdadedeus é o cameraman de palito ao canto e navalha intransitiva

IIas prestações da mobília não me cabem na imitação da salaporém em casa tenho sempre algo que se coma alcoólicoum es’carro tacionado à portas, submarinamente híbrido

hoje o cinema entrou-me no olho pelos óculos tridimensionaisà penafiel, come pipocas, asno, come pipocas, agora

o meu pénis parece o john malkovich e tenho as finançasà perna para me extorquir a multa pela apropriação indevidao garboso chefe da repartição dominatrix mandou um chicotepor carta registada e com aviso de escravatura, apalpou-me

a vida e massajou-me todos os pontos erógenos da carteira até ao final felizvi-me com metafísica de bolso, a viver de joelhos, a hibernar

nos espelhos, a pagar o que devo

IIIindeciso entre a cova gente e a cs, vomitei em ambas as duase optei por despenhar-me suicidamente no vvrrrruuuuuumm

jornal vvrrrruuuuuumm lisboa capital república popularsobretudo por ser dia das mentiras e algures ter lido:

lavar a cara com a primeira urina da manhã faz bem à pelenada melhor portanto que mijar nas campas alheias

a ver que flores de plástico acodem neste musgo de costelasfalsas consciências descartáveis biodesagradáveis em cupãoreparei depois que ao dito manca o estatal epitáfio sonoro

sua excelência o benfazejo carimbo do plano nacionalde loucura, saravá! ó bela pomba pincelada da liberdadeo plano nacional de loucura é bom comó milho, no país

prostrados a ler somos cada um seu próprio touro de mortedúcteis enforcados amadores a darem corda às crianças

vá, aprende a saltar, rapaz, salta até ao pescoçopor outras palavras, no ofício mercantil de maternidade,

puta que pariu a pátria que nos pariu, velhas criançasde más famílias mas dos mais reputados livros e jornais

ah! as crianças são o futuro, claro enquanto não apodrecedêem-lhes coisas lindas a ler, que façam pandã com a dose

de estupidez extralarge das pipocas.

renAto filipe cArdoso

progrAMAQuArtA . 22 ABril . 18H30 / povo . POetas dO POvO: POesIa e INdePeNdÊNcIa . lAnÇAMento do JornAl . entrAdA livre

seXtA . 24 ABril . 18H30 / povo . deBate: as dePeNdÊNcIas da crítIca . entrAdA livreseXtA . 24 ABril / MusicBoX . ABerturA de portAs Ás 22H00 . MuNdO MalaMBa . celeste/MarIPOsa aPreseNta KalaKa .

NOIte PrINcIPe . entrAdA: 5 euros