lÉvy, pierre. as tecnologias da inteligência

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AS TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA O Futuro do Pensamento na Era da Informática Pierre Lévy Tradução Carlos Irineu da Costa

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  • AS TECNOLOGIAS

    DA INTELIGNCIA

    O Futuro do Pensamento na Era da Informtica

    Pierre Lvy

    Traduo

    Carlos Irineu da Costa

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    AS TECNOLOGIAS DA INTELIGNCIA O Futuro do Pensamento na Era da Informtica

    Traduo

    Carlos Irineu da Costa

    Um dos principais agentes de transformao das sociedades atuais a tcnica. Ou melhor, as

    tcnicas, sob suas diferentes formas, com seus usos diversos, e todas as implicaes que elas tm sobre o nosso cotidiano e nossas atividades. Por trs daquilo que bvio, estas tcnicas trazem consigo outras modificaes menos perceptveis, mas bastante pervarsivas: alteraes em nosso meio de conhecer o mundo, na forma de representar este conhecimento, e na transmisso destas representaes atravs da linguagem.

    Dentre a grande quantidade de tcnicas existentes, Lvy decidiu privilegiar, nesta anlise, as tcnicas de transmisso e de tratamento das mensagens, uma vez que so as que transformam os ritmos e modalidades da comunicao de forma mais direta, contribuindo para redefinir as organizaes.

    Em um momento dado, a significao e o papel de uma configurao tcnica no podem ser separados de um projeto social mais ample que move esta configurao. importante tambm compreender o estgio atual da tcnicas como resultado de uma srie de disputas entre os diversos atores sociais, de projetos rivais constantemente em choque, de novas descobertas imprevistas que podem alterar radicalmente o uso, e portanto o sentido e o destino de um dado objeto tcnico.

    Uma certa configurao de tecnologias intelectuais em um dado momento abre certos campos de possibilidades (e no outros) a uma cultura. Quais possibilidades? O que a tcnica, e como influencia os diferentes aspectos de nossa sociedade? Em que medida de indivduos ou projetos singulares conseguem alterar os usos e sentidos da tcnica? A tcnica necessariamente racional e utilitria?

    Lvy prope aqui o fim da pretensa oposio entre o homem e a mquina .Ataca tambm o mito da tcnica neutra, nem boa, nem m. Mostra como ela est sempre associada a um contexto social mais amplo, em parte determinando este contexto mas tambm sendo determinada por ele. Desta forma, a tcnica torna-se apenas uma dimenso a mais, uma parte do conjunto do jogo coletivo, aquela na qual desenham-se as conexes fsicas do mundo humano com o universo.

    Nosso propsito consiste antes de mais nada em designar as tecnologias intelectuais como um terreno poltico fundamental, como lugar e questo de conflitos, de interpretaes divergentes. Pois ao redor dos equipamentos coletivos da percepo, do pensamento e da comunicao que se organiza em grande parte a vida da cidade no quotidiano e que se agenciam as subjetividades dos grupos.

    As mudanas esto ocorrendo em toda parte, ao redor de ns, mas tambm em nosso interior, em nossa forma de representar o mundo. urgente que nos equipemos com ferramentas para poder pensar estas mudanas, avali-las, discut-las em suma, particular ativamente da construo de nossos destinos. E este livro uma importante ferramenta.

    Carlos Irineu da Costa

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    AS TECNOLOGIAS DA INTELIGNCIA O Futuro do Pensamento na Era da Informtica

    Introduo Face Tcnica I A METFORA DO HIPERTEXTO 1. Imagens do Sentido 2. O Hipertexto 3. Sobre a Tcnica Enquanto Hipertexto - O Computador Pessoal 4. Sobre a Tcnica Enquanto Hipertexto A Poltica das Interfaces 5. O Groupware 6. A metfora do Hipertexto

    II OS TRS TEMPOS DO ESPRITO: A ORALIDADE PRIMRIA, A ESCRITA E A INFORMTICA

    7. Palavra e Memria 8. A Escrita e a Histria 9. A Rede Digital 10. O Tempo Real 11. O Esquecimento

    III RUMO UMA ECOLOGIA COGNITIVA

    12. Para Alm do Sujeito e do Objeto 13. As Tecnologias Individuais e a Razo 14. As Coletividades Pensantes e o Fim da Metafsica 15. Interfaces

    Concluso Por uma Tecnodemocracia Bibliografia Geral

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    INTRODUO: FACE TCNICA

    Novas maneiras de pensar e de conviver esto sendo elaboradas no mundo das telecomunicaes e da informtica. As relaes entre os homens, o trabalho, a prpria inteligncia dependem, na verdade, da metamorfose incessante de dispositivos informacionais de todos os tipos. Escrita, leitura, viso, audio, criao, aprendizagem so capturados por uma informtica cada vez mais avanada. No se pode mais conceber a pesquisa cientfica sem uma aparelhagem complexa que redistribui as antigas divises entre experincia e teoria. Emerge, neste final do sculo XX, um conhecimento por simulao que os epistemologistas ainda no inventariaram.

    Na poca atual, a tcnica uma das dimenses fundamentais onde est em joga a transformao do mundo humano por ele mesmo. A incidncia cada vez mais pregnante das realidades tecnoeconmicas sobre todos os aspectos da vida social, e tambm os deslocamentos menos visveis que ocorrem na esfera intelectual obrigam-nos a reconhecer a tcnica como um dos mais importantes temas filosficos e polticos de nosso tempo. Ora, somos forados a constatar o distanciamento alucinante entre a natureza dos problemas colocados coletividade humana pela situao mundial da evoluo tcnica e o estado do debate "coletivo" sobre o assunto, ou antes do debate meditico.

    Uma razo histrica permite compreender esse distanciamento. A filosofia poltica e a reflexo sobre o conhecimento cristalizaram-se em pocas nas quais as tecnologias de transformao e de comunicao estavam relativamente estveis ou pareciam evoluir em uma direo previsvel.

    Na escala de uma vida humana, os agenciamentos sociotcnicos constituam um fundo sobre o qual se sucediam os acontecimentos polticos, militares ou cientficos. Apesar de algumas estratgias poderem cristalizar-se explicitamente em torno de uma inovao tcnica, este era um caso excepcional [77]1. Tudo comeou a mudar com a revoluo industrial, mas apesar das anlises de Marx e alguns outros. o segredo permaneceu bem guardado. O sculo XX s elaborou reflexes profundas sobre motores e mquinas operatrizes, enquanto que a qumica, os avanos da impresso, a mecanografia, os novos meios de comunicao e de transporte, a iluminao eltrica transformavam a forma de viver dos europeus e desestabilizavam os outros mundos. O rudo dos aplausos ao progresso cobria as queixas dos perdedores e mascarava o silncio do pensar.

    Hoje em dia, ningum mais acredita no progresso e a metamorfose tcnica do coletivo humano nunca foi to evidente. No existe mais fundo sociotcnico, mas sim a cenas mdias. As prprias bases do funcionamento social e das atividades cognitivas modificam-se a uma velocidade que todos podem perceber diretamente. Contamos em termos de anos, de meses. Entretanto, apesar de vivermos em um regime democrtico, os processas sociotcnicos raramente so objeto de deliberaes coletivas explcitas, e menos ainda de decises tomadas pelo conjunto, dos cidados. Uma reapropriao mental do fenmeno tcnico nos parece um pr-requisito indispensvel para a instaurao progressiva de uma tecnodemocracia. para esta reapropriao que desejamos contribuir aqui, no caso particular das tecnologias intelectuais.

    Algum talvez objete que a evoluo da informtica no muito adequada a qualquer tipo de debate democrtico ou a decises " polticas". Parece-nos, entretanto, que a informatizao das empresas, a criao da rede telemtica ou a "introduo" dos computadores nas escolas podem muito bem prestar-se a debates de orientao, dar margem a mltiplos conflitos e negociaes onde tcnica, poltica e projetos culturais misturam-se de forma inextrincvel. Tomemos o caso da.

    1 os nmeros entre colchetes remetem bibliografia geral que est no fim do livro. Alm disso, no final de cada captulo h a meno dos ttulos citados ou usados em cada um deles.

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    informtica escolar na Frana. Durante os anos oitenta, quantias considerveis foram gastas para equipar as escolas e formar os professores. Apesar de diversas experincias positivas sustentadas pelo entusiasmo de alguns professores, o resultado global deveras decepcionante. Por qu? certo que a escola uma instituio que h cinco mil anos se baseia no falar/ditar do mestre, na escrita manuscrita do aluno e, h quatro sculos, em um uso moderado da impresso. Uma verdadeira integrao da informtica (como do audiovisual ) supe portanto o abandono de um hbito antropolgico mais que milenar, o que no pode ser feito em alguns anos. Mas as "resistncias" do social tm bons motivos. O governo, escolheu material da pior qualidade, perpetuamente defeituoso, fracamente interativo, pouco adequado aos usos pedaggicos. Quanto formao dos professores, limitou-se aos rudimentos da programao (de um certa estilo de programao, porque existem muitos deles... ), como se fosse este o nico usa possvel de um computador!.

    Foram tiradas lies das muitas experincias anteriores neste assunto? Foram analisadas as transformaes em andamento da ecologia cognitiva e os novos modelos de constituio e de transmisso do saber a fim de orientar a evoluo do sistema educativo a longo prazo? No, apressaram-se em colocar dentro de sala as primeiras mquinas que chegaram, Em vez de conduzir um verdadeiro projeto poltico, ao mesmo tempo acompanhando, usando e desviando a evoluo tcnica, certo ministro quis mostrar a imagem da modernizao, e no obteve, efetivamente, nada alm de imagens. Uma concepo totalmente errnea da tcnica e de suas pretensas "necessidades", s quais acreditou-se (ou fez-se acreditar) que era necessrio "adaptar-se", impediu o governo e a direo da Educao nacional de impor fortes restries aos construtores de material e aos criadores de programas. Eles no foram forados a inventar. Seus comandatrios parecem no ter entendido que a poltica e a cultura podem passar polo detalhe de uma interface material, ou por cenrios de programas bem concebidos.

    Ora, tentarei mostrar neste livro que no h informtica em geral, nem essncia congelada do computador, mas sim um campo de novas tecnologias intelectuais, aberto, conflituoso e parcialmente indeterminado. Nada est decidido a priori. Os dirigentes das multinacionais, os administradores precavidos e os engenheiros criativos sabem perfeitamente (coisa que a direo da Educao nacional parecia ignorar) que as estratgias vitoriosas passam pelos mnimos detalhes "tcnicos", dos quais nenhum pude ser desprezado, e que so todos inseparavelmente polticos e culturais, ao mesmo tempo que so tcnicos...

    No se trata aqui, portanto, de uma nova "critica filosfica da tcnica", mas antes de colocar em dia a possibilidade prtica de uma tecnodemocracia, que somente poder ser inventada na prtica. A filosofia poltica no pode mais ignorar a cincia e a tcnica, No somente a tcnica uma questo poltica, mas ainda, e como um todo, uma micropoltica em atos, como veremos em detalhes no caso das interfaces informticas.

    A questo da tcnica ocupa uma posio central. Se por um lado conduz a uma reviso da filosofia poltica, por outro incita tambm a revisitar a filosofia do conhecimento. Vivemos hoje uma redistribuio da configurao do saber que se havia estabilizado no sculo XVII coma generalizao da impresso. Ao desfazer e refazer as ecologias cognitivas, as tecnologias intelectuais contribuem para fazer derivar as fundaes culturais que comandam nossa apreenso do real. Mostrarei que as categorias usuais da filosofia do conhecimento, tais como omito, a cincia, a teoria, a interpretao ou a objetividade dependem intimamente do usa histrico, datado e localizado de certas tecnologias intelectuais. Que isto fique clara: a sucesso da oralidade, da escrita e da informtica como modos fundamentais de gesto social do conhecimento no se d por simples substituio, mas antes por complexificao e deslocamento de centros de gravidade. O saber oral e os gneros de conhecimento fundados sobre a escrita ainda existem, clara, e sem dvida iro continuar existindo sempre. No se trata aqui, portanto, de profetizar uma catstrofe cultural causada pela informatizao, mas sim de utilizar os trabalhos recentes da psicologia cognitiva e da

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    historia dos processas de inscrio para analisar precisamente a articulao entre gneros de conhecimento e tecnologias intelectuais. Isto no nos conduzir a qualquer verso do determinismo tecnolgico, mas sim idia de que certas tcnicas de armazenamento e de processamento das representaes tornam possveis ou condicionam certas evolues culturais, ao mesmo tempo em que deixam uma grande margem de iniciativa e interpretao para os protagonistas da historia.

    Finalmente, a uma interrogao sobre as divises mais fundamentais do ser que nossa reflexo sobre as tecnologias intelectuais ir nos conduzir. O que acontece com a distino bem marcada entre o sujeito e o objeto do conhecimento quando nosso pensamento encontra-se profundamente moldado por dispositivos materiais e coletivos sociotcnicos? instituies e mquinas informacionais se entrelaam no ntirno do sujeito. A progresso multiforme das tecnologias da mente e dos metas de comunicao pode ser interpretada como um processo metafsico molecular, redistribuindo sem descanso as relaes entre sujeitos individuais, objetos e coletivos. Quem pensa? o sujeito nu e mondico, face ao objeto? So os grupos intersubjetivos? Ou ainda as estruturas, as lnguas, as epistemes ou os inconscientes sociais que pensam em ns? Ao desenvolver o conceito de ecologia cognitiva, irei defender a idia de um coletivo pensante homens-coisas, coletivo dinmico povoado por singularidades atuantes e subjetividades mutantes, to longe do sujeito exangue da epistemologia quanto das estruturas formais dos belos dias do "pensamento 68".

    Em seu livro Entre dire et faire [98], Daniel Sibony mostrou at que ponto o objeto tcnico e mais geralmente a imensa maquinaria do "fazer" contemporneo encontravam-se impregnados de desejo e subjetividade. Sem negar a abordagem inteiramente apaixonante tentada por Sibony, persegui o objetivo contrrio: mostrar a quantidade de coisas e tcnicas que habitam o inconsciente intelectual, at o ponto extremo no qual o sujeito do pensamento quase no se distingue mais (mas se distingue ainda) de um coletivo cosmopolita2 composto por dobras e volutas do qual cada porte , por sua vez, misturada, marmoreada ou matizada de subjetividade branca ou rosa e de objetividade negra ou cinza.

    Seguindo esta concepo da inteligncia, muitas vezes deixei a tcnica pensar em mim (como fizeram meus ilustres predecessores Lewis Mumford e Gilbert Simondon) ao invs de debruar-me sobre ela ou critic-la. Que o filsofo ou o historiador devam adquirir conhecimentos tcnicos antes de falar sobre o assunto, o mnimo. Mas preciso ir mais longe, no ficar preso a um "porto de vista sobre... " para abrir-se a possveis metamorfoses sob o efeito do objeto. A tcnica e as tecnologias intelectuais em particular tm muitas coisas para ensinar aos filsofos sobre a filosofia e aos historiadores sobre a histria.

    Quanto valeria um pensamento que nunca fosse transformado por seu objeto? Talvez escutando as coisas, os sonhos que as precedem, os delicados mecanismos que as animam, as utopias que elas trazem atrs de si, possamos aproximar-nos ao mesmo tempo dos seres que as produzem, usam e trocam, tecendo assim o coletivo misto, impuro, sujeito-objeto que forma o meto e a condio de possibilidade de toda comunicao e todo pensamento.

    SOBRE O MAU USO DA ABSTRAO

    2 A palavra cosmo-polits, que significa cidado do mundo (do cosmos), foi cunhada pelos filsofos cnicos e retomada pelos esticos. Longe de considerar apenas o fato de pertencer comunidade poltica ateniense ou romana, o sbio esticos e sabia e se desejava cidado de uma cidade da dimenso do universo, no excluindo nada nem ningum, nem o escravo, nem o brbaro, nem o astro, nem a flor. Preconiza-se nesta obra um retomo grande tradio antiga do cosmopolitismo no somente por razes de simples humanidade, mas tambm em vista de uma plena integrao das dimenses tcnicas e ecolgicas na reflexo e ao polticas.

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    Antes de abordar o tema principal deste livro, que o papel das tecnologias da informao na constituio das culturas e inteligncia dos grupos, parece-me necessrio esclarecer um certa nmero de idias sobre a tcnica em geral, tcnica que hoje objeto de muitos preconceitos.

    Nestes ltimos anos, efetivamente, numerosas obras de reflexo sobre este assunto foram publicadas em lngua francesa. Entre elas, destaca-se um grupo importante que compartilha uma orientao globalmente antitcnica. Jacques Ellul, Gilbert Hottois, Michel Henry e, ta1vez em menor grau, Dominique Janicaud tm em comum a concepo de uma cincia e de uma tcnica separadas do devir coletivo da humanidade, tornando-se autnomos para retornarem e imporem-se sobre o social com a fora de um destino cego, A tcnica encarna, para eles, a forma contempornea do mal. Infelizmente, a imagem da tcnica como potncia m, inelutvel e isolada revela-se no apenas falsa, mas catastrfica; ela desarma o cidado frente ao novo prncipe, o qual sabe muito bem que as redistribuies do poder so negociadas e disputadas em todos os terrenos e que nada definitivo. Ao exprimir uma condenao metal a priori sobre um fenmeno artificialmente separado do devir coletivo e do mundo das significaes (da "cultura"), esta concepo nos probe de pensar ao mesmo tempo a tcnica e a tecnodemocracia.

    No momento em que dezenas de trabalhos empricos e tericos renovam completamente a reflexo sobre a tecnocincia no mais possvel repetir, com ou sem variantes, Husserl, Heidegger ou Ellul. A cincia e a tcnica representam uma questo poltica e cultura1 excessivamente importante para serem deixadas a canga dos irmos inimigos (cientistas ou criticas da cincia) que concordam em ver no objeto de seus louvores ou de suas censuras um fenmeno estranho ao funcionamento social ordinrio.

    No existe uma "Tcnica" por trs da tcnica, nem "Sistema tcnico" sob o movimento da indstria, mas apenas indivduos concretos situveis e datveis. Tambm no existe um "Clculo", uma "Metafsica", uma "Racionalidade ocidental", nem mesmo um "Mtodo" que possam explicar a crescente importncia das cincias e das tcnicas na vida coletiva. Estas vagas entidades trans-histricas, estes pseudo-atores na realidade so desprovidos de qualquer eficcia e no apresentam simetricamente qualquer ponto de contato para a mnima ao real. Frente a estas abstraes, evidentemente ningum pode negociar nem lutar. Mesmo com as melhores intenes do mundo, toda teoria, explicao ou projeto que faa apelo a estes macroconceitos espetaculares e ocos no pode fazer entra coisa seno despistar, engrossar a cortina de fumaa que abriga os prncipes modernos de olhares e desencorajar os cidados a se informarem e agirem.

    Tambm no h maior progresso em direo a anlises concretas quando se explica o desdobramento da tecnocincia pela economia, sociedade, cultura ou ideologia. Obtm-se ento estes famosos esquemas nos quais a Economia determina a sociedade, que determina a ideologia da qual faz porte a cincia, que aplicada sob a forma de tcnica, a qual modifica o estado das foras produtivas, que por sua vez determina a economia, etc.

    Mesmo um diagrama tecido por estrelas entrecruzadas e munido de todos os anis de retroao desejados ainda seria mistificador. Porque aquilo que ligaramos por setas seriam dimenses de anlise, ou pior: pontos de vista congelados em disciplinas.

    Pela voz de Heidegger, a faculdade de filosofia acredita controlar a faculdade de cincias: a verdade das cincias est na metafsica. Mas as entras faculdades tambm querem sua parte, e logo as cincias esto sitiadas pelas faculdades de teologia, de historia, de sociologia, de lingstica, de economia, pelas escalas de engenharia, laboratrios de antropologia, etc. Podemos imaginar todas as permutaes que quisermos nos papis de sitiados e sitiantes: a tcnica ou a religio determinando a economia, esta ltima determinando a metafsica, e assim por diante.

    por isto que no h mais sentido em sustentar que a essncia da tcnica ontolgica (Heidegger), que a essncia do capitalismo religiosa (Max Weber) ou que a metafsica depende da

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    economia em ltima instncia (marxismo vulgar). Nem a sociedade, nem a economia, nem a filosofia, nem a religio, nem a lngua, nem mesmo a cincia ou a tcnica so foras reais, elas so, repetimos, dimenses de anlise, quer dizer, abstraes. Nenhuma destas macroentidades ideais pode determinar o que quer que seja porque so desprovidas de qualquer meio de ao.

    Os agentes efetivos so indivduos situados no tempo e no espao. Abandonam-se aos jogas de paixes e embriaguez, s artimanhas' do poder e da seduo, aos refinamentos complicados das alianas e das reviravoltas nas alianas. Transmitem uns aos outros, por um sem nmero de metas, uma infinidade de mensagens que eles se obrigam a truncar, falsear, esquecer e reinterpretar de seu prprio jeito. Trocam entre si um nmero infinito de dispositivos materiais e objetos (eis a tcnica!) que transformam e desviam perpetuamente.

    No rio tumultuoso do devir coletivo, possvel discernir vrias ilhas, acumulaes, irreversibilidades, mas por sua vez estas estabilidades, estas tendncias longas mantm-se apenas graas ao trabalho constante de coletividades e pela reificao eventual deste em coisas (eis de novo a tcnica!) durveis ou facilmente reproduzveis: construes, estradas, mquinas, textos em papel ou fitas magnticas...

    A servio das estratgias variveis que os opem e os agrupam, os seres humanos utilizam de todas as formas possveis entidades e foras no humanas, tais como animais, plantas, leveduras, pigmentos, montanhas, rios, correntes marinhas, vento, carvo, eltrons, mquinas, etc. E tudo isto em circunstncias infinitamente diversas. Vamos repetir, a tcnica apenas a dimenso destas estratgias que passam por atores no humanos.

    A TCNICA PARTICIPA ATIVAMENTE DA ORDEM CULTURAL, SIMBLICA, ONTOLGICA OU AXIOLGICA

    No h nenhuma distino real bem definida entre o homem e a tcnica, nem entre a vida e a cincia, ou entre o smbolo e a operao eficaz ou a poisis e o arrazoado. sempre possvel introduzir distines para fins de anlise, mas no se deve tomar os conceitos que acabamos de forjar para certos fins precisos como sendo regies do ser radicalmente separadas.

    Podemos distinguir, por exemplo, como fez Kant, entre um domnio emprico (aquilo que percebido, que constitui a experincia)e um domnio transcendental (aquilo atravs de que a experincia possvel, que estrutura a percepo). Em sua Crtica da razo pura, Kant atribuiu esta funo de estruturao do mundo percebido a um sujeito transcendental a-histrico e invarivel. Hoje, ainda que caractersticas cognitivas universais sejam reconhecidas para toda a espcie humana, geralmente pensa-se que as formas de conhecer, de pensar, de sentir so grandemente condicionadas pela poca, cultura e circunstncias. Chamaremos de transcendental histrico aquilo que estrutura a experincia dos membros de uma determinada coletividade. Certamente podemos ressaltar a diferena entre as coisas em sua materialidade utilitria e as narrativas, smbolos, estruturas imaginrias e formas de conhecer que as fazem parecer aquilo que elas so aos olhos dos membros das diversas sociedades consideradas.

    Mas quando colocamos de um fada as coisas e as tcnicas e do outro os homens, a linguagem, os smbolos, os valores, a cultura ou o "mundo da vida ", ento o pensamento comea a resvalar. Uma vez mais, reificamos uma diferena de ponta de vista em uma fronteira separando as prprias coisas. Uma entidade pode ser ao mesmo tempo objeto da experincia e fonte instituinte, em particular se diz respeito tcnica.

    O cmulo da cegueira atingido quando as antigas tcnicas so declaradas culturais e impregnadas de valores, enquanto que as novas so denunciadas como brbaras e contrrias vida.

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    Algum que condena a informtica no pensaria nunca em criticar a impresso e menos ainda a escrita. Isto porque a impresso e a escrita (que so tcnicas! ) o constituem em demasia para que ele pense em apont-las como estrangeiras. No percebe que sua maneira de pensar, de comunicar-se com seus semelhantes, e mesmo de acreditar em Deus (como veremos mais adiante neste livro) so condicionadas por processas materiais.

    Mais profundamente, a tcnica toma parte plenamente no transcendental histrico. Para citar apenas este exemplo clssico, sabemos que o espao e o tempo tal como os percebemos e vivemos hoje na Europa ou na Amrica do Norte no resultam apenas de discursos ou de idias sobre o tempo e o espao, mas igualmente de toda um imenso agenciamento tcnico que compreende os relgios, as vias de comunicao e transporte, os procedimentos de cartografia e de impresso, etc.

    Michel Serres sugeriu em La Distribution [97] que a mquina a vapor era no apenas um objeto, e um objeto tcnico, mas que podamos ainda analis-la como o modelo termodinmico atravs do qual autores como Marx, Nietzsche ou Freud pensavam a historia, o psiquismo, ou a situao do filsofo. Eu mesmo tentei mostrar, em La Machine Univers [71], que o computador havia se tornado hoje um destes dispositivos tcnicos pelos quais percebemos o mundo, e isto no apenas em um plano emprico (todos os fenmenos apreendidos graas aos clculos, perceptveis na tela, ou traduzidos em listagens pela mquina), mas tambm em um plano transcendental hoje em dia, pois, hoje, cada vez mais concebemos o social, os seres vives ou os processos cognitivos atravs de uma matriz de tortura informtica.

    A experincia pode ser estruturada polo computador. Ora, a lista dos objetos que so ao mesmo tempo estruturas transcendentais infinitamente longa. O telgrafo e o telefone serviram para pensar a comunicao em geral. Os servomecanismos concretos e a teoria matemtica da informao serviram como suporte para a viso ciberntica do mundo, etc. Os produtos da tcnica moderna, longe de adequarem-se apenas a um uso instrumental e calculvel, so importantes fontes de imaginrio, entidades que participam plenamente da instituio de mundos percebidos.

    Se algumas formas de ver e agir parecem ser compartilhadas por grandes populaes durante muito tempo (ou seja, se existem culturas relativamente durveis), isto se deve estabilidade de instituies, de dispositivos de comunicao, de formas de fazer, de relaes como meto ambiente natural, de tcnicas em geral, e a uma infinidade indeterminada de circunstncias. Estes eqilbrios so frgeis. Basta que, em uma situao histrica dada, Cristovo Colombo descubra a Amrica, e a viso europia do homem encontra-se transtornada, o mundo pr-colombiano da Amrica est ameaado de arruinar-se (no somente o imprio dos Incas, mas seus deuses, seus cantas, a beleza de suas mulheres, sua forma de habitar a terra ). O transcendental histrico est merc de uma viagem de barco. Basta que alguns grupos sociais disseminem um novo dispositivo de comunicao, e todo o equilbrio das representaes e das imagens ser transformado, como vimos no caso da escrita, do alfabeto, da impresso, ou dos meios de comunicao e transporte modernos.

    Quando uma circunstncia como uma mudana tcnica desestabiliza o antigo equilbrio das foras e das representaes, estratgias inditas e alianas inusitadas tornam-se possveis. Uma infinidade heterognea de agentes sociais exploram as novas possibilidades em proveito prprio (e em detrimento de outros agentes), at que uma nova situao se estabilize provisoriamente, com seus valores, suas morais e sua cultura locais. Neste sentido, a mudana tcnica uma das principais foras que intervm na dinmica da ecologia transcendental. A tcnica no sinnimo de esquecimento do ser ou do deserto simblico, ao contrrio uma cornucpia de abundncia axiolgica, ou uma caixa de Pandora metafsica.

    Iniciada no fim do sculo XVIII, a presente mutao antropolgica somente pode ser comparada revoluo neoltica que viu surgirem, em poucos sculos, a agricultura, a criao de animais, a cidade, o Estado e a escrita. Dentre todas s transformaes fundamentais que afetaram os pases desenvolvidos na poca atual, ressaltemos o desaparecimento do mundo agrcola, o

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    apagamento da distino cidade/campo e conseqente surgimento de uma rede urbana onipresente, um novo imaginrio do espao e do tempo sob a influncia dos metas de transporte rpidos e da organizao industrial do trabalho, o deslocamento das atividades econmicas para o tercirio e a influncia cada vez mais direta da pesquisa cientfica sobre as atividades produtivas e os modos de vida. As conseqncias a longa prazo do sucesso fulminante dos instrumentos de comunicao audiovisuais ia partir do fim da Segunda Guerra Mundial) e dos computadores ia partir do fim dos anos setenta) ainda no foram suficientemente analisadas. Uma coisa certa: vivemos hoje em uma destas pocas limtrofes na qual toda a antiga ordem das representaes e dos saberes oscila para dar lugar a imaginrios, modos de conhecimento e estilos de regulao social ainda pouco estabilizados. Vivemos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova configurao tcnica, quer dizer, de uma nova relao com o cosmos, um novo estilo de humanidade inventado.

    Nenhuma reflexo sria sobre o devir da cultura contempornea pode ignorar a enorme incidncia das mdias eletrnicas (sobretudo a televiso) e da informtica. Em La Machine Univers, como neste livro, restringi minhas reflexes aos computadores.

    No ser encontrada aqui, portanto, nem uma apologia nem uma critica da informtica em geral, mas sim um ensaia de avaliao das questes antropolgicas ligadas ao usa crescente dos computadores: o transcendental histrico ameaado pela proliferao dos programas.

    Razes de duas ordens diferentes levaram-me a empreender a redao desta obra apenas dois anos aps a publicao de La Machine Univers, sobre um tema bastante prximo. Em primeiro lugar, no plano das idias, um certa nmero de criticas justificadas foram feitas a meu trabalho precedente. Tal como estava descrita em La Machine Univers, a evoluo tcnica parecia obedecer, por isomorfismo ou analogia, a uma estrutura abstrata e separada dos casos do devir histrico: o "clculo". Alm disso, esta estrutura calculante foi identificada como Ocidente. Eu havia institudo a cultura acidental, a partir de sua origem grega, em uma posio de realce, uma posio "calculante", precisamente, em vez de analis-la como resultado provisrio de uma dinmica ecolgica complexa e do encadeamento contingente de circunstncias histricas. O problema das tradues, das mediaes concretas pelas quais a essncia calculante da cultura grega teria chegado at ns, amplificando-se e endurecendo-se em tcnica e depois em informtica, este problema fundamental infelizmente no foi colocado, ou o foi de forma excessivamente alusiva. Isto quer dizer que este novo livro seria pura e simplesmente a critica do primeiro? No, pois eu continuo defendendo a maior parte das teses desenvolvidas em La Machine Univers, sobretudo a critica das teorias formais e tecnicistas do pensamento e do cosmos. Desejo apenas sinalizar ao leitor que o trabalho sobre as implicaes culturais da informtica foi retomado a partir do ponto mais fraca da obra anterior, aquele que se refere s transmisses, s tradues e s deformaes que modelam o devir social. Eis aqui portanto um livro sobre as interfaces.

    Quanto segunda ordem de razes, est relacionada com uma mudana de posio do analista em relao a seu objeto. O autor de La Machine Univers decerto havia desenvolvido um longo e minucioso trabalho de pesquisa sobre a informtica, sua teoria, suas realizaes e seus usos; mas o fazia enquanto socilogo, historiador ou filsofo, quer dizer, querendo ou no, do exterior. O autor da presente obra, por outro lado, participou da realizao de dois sistemas especialistas3 enquanto engenheiro do conhecimento, e encontra-se ativamente envolvido em diversos projetos de multimdia interativa de suporte informtico. Ao tornar-se um ator da evoluo tcnica (por pouco que seja), ele descobriu que a margem de liberdade neste domnio era muito maior do que geralmente dito. As pretensas "necessidades tcnicas" na maior parte do tempo so apenas mscaras de projetos, de orientaes deliberadas ou de compromissos estabelecidos entre diversas foras antagonistas, das quais a maior parte no tem nada de "tcnica". Ora, a perspectiva de La Machine Univers era um pouco paradoxal, j que, indeterminista e antimecanicista nas ordens 3 LVY Pierre, L'ldographie dynamique, La Dcouverte, Paris, 1991

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    fsica, biolgica e cognitiva, mantinha ares de necessidade na ordem cultural, qual pertence a tcnica.

    Ao abandonar uma posio de observador externa, no estaria eu arriscado a perder ao mesmo tempo toda recuo, toda espirito crtico? Muito pelo contrrio, j que, como veremos, os criticas mais radicais e mais eficazes da corrente principal da evoluo da informtica situaram-se precisamente no terreno da tcnica. os inventores, engenheiros, cientistas, empresrios e investidores que contribuem para edificar o tecnocosmos onde viveremos daqui em diante so impulsionados por verdadeiros projetos polticos rivais, eles fazem referncia aos imaginrios antagonistas da tcnica e das relaes sociais. Se o devir da cidade contempornea depende pelo menos tanto da evoluo tecnocientfica quanto do resultado das eleies, eu no estava deixando o domnio da critica social ou da interrogao filosfica afirme aproximar do cerne da atividade tcnica.

    A primeira parte deste livro, "A metfora do hipertexto", consagrada informtica de comunicao naquilo que ela tem de mais original cm relao s outras mdias. Veremos em particular que o hipertexto (cujo conceito ser amplamente definido e ilustrado) representa sem dvida um dos futuros da escrita e da leitura. Mas, longe de limitarem-se a uma simples pintura das novas tcnicas de comunicao de suporte informtica, as pginas que se seguem entrelaam sempre um fio reflexivo ao fio descritivo. O que a comunicao? O que o sentido? Ao acompanharmos a histria do computador pessoal, veremos que a criao tcnica pode ser pensada dentro do modelo da interpretao e da produo de sentido, que por sua vez remete a uma teoria hipertextual da comunicao

    No a primeira vez que a apario de novas tecnologias intelectuais acompanhada por uma modificao das normas do saber. Na segunda parte deste livro: " Os trs tempos do esprito, oralidade, escrita, informtica", tomaremos uma certa distncia em relao s evolues contempornea, s, ressituando-as em uma continuidade histrica.

    De que lugar julgamos a informtica e os estilos de conhecimento que lhe so aparentados? Ao analisar tudo aquilo que, em nossa forma de pensar, depende da oralidade, da escrita e da impresso, descobriremos que apreendemos o conhecimento por simulao, tpico da cultura informtica, com os critrios e os reflexos mentais ligados s tecnologias intelectuais anteriores. Colocar em perspectiva, relativizar as formas tericas ou criticas de pensar que perdem terreno hoje, isto talvez facilite o indispensvel trabalho de luta que permitir abrir-mo-nos a novas formas de comunicar e de conhecer.

    A tese defendida neste livro refere-se a uma histria mais fundamental que a das idias: a histria da prpria inteligncia. Os coletivos cosmopolitas compostos de indivduos, instituies e tcnicas no so somente meios ou ambientes para o pensamento, mas sim seus verdadeiros sujeitos. Dado isto, a histria das tecnologias intelectuais condiciona(sem no entanto determin-la ) a do pensamento. Este o tema principal da ecologia cognitiva, cujo programa esboamos na terceira e ltima parte deste livro. Ao propor uma abordagem ecolgica da cognio, minha maior esperana a de contribuir para renovar o debate em andamento sobre o devir do sujeito, da razo e da cultura.

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    I. A METFORA DO HIPERTEXTO

    1. IMAGENS DO SENTIDO

    PRODUZlR O CONTEXTO

    Seria a transmisso de informaes a primeira funo da comunicao? Decerto que sim, mas em um nvel mais fundamental o ato de comunicao define a situao que vai dar sentido s mensagens trocadas. A circulao de informaes , muitas vezes, apenas um pretexto para a confirmao recproca do estado de uma relao. Quando, por exemplo, conversamos sobre o tempo com um comerciante de nosso bairro, no aprendemos absolutamente nada de novo sobre a chuva ou o sol, mas confirmamos um ao outro que mantemos boas relaes, e que ao mesmo tempo nossa intimidade no ultrapassou um certo grau, j que falamos de assuntos andinos, etc.

    No apenas quando declaramos que "a sesso est aberta", ou em certas ocasies excepcionais, que agimos ao falar. Atravs de seus atos, seu comportamento, suas palavras, cada pessoa que participa de uma situao estabiliza ou reorienta a representao que dela fazemos outros protagonistas. Sob este aspecto, ao e comunicao so quase sinnimos. A comunicao s se distingue da ao em geral porque visa mais diretamente ao plano das representaes.

    Na abordagem clssica dos fenmenos de comunicao, os interlocutores fazem intervir o contexto para interpretar as mensagens que lhes so dirigidas. Aps vrios trabalhos em pragmtica e em microsociologia da comunicao, propomos aqui uma inverso da problemtica habitual: longe de ser apenas um auxiliar til compreenso das mensagens, o contexto o prprio alvo dos atos de comunicao. Em uma partida de xadrez, cada novo lance ilumina com uma luz nova o passado da partida e reorganiza seus futuros possveis; da mesma forma, em uma situao de comunicao, cada nova mensagem recoloca em jogo o contexto e seu sentido. A situao sobre o tabuleiro de xadrez em determinado momento certamente permite compreender um lance, mas a abordagem complementar segundo a qual a sucesso dos lances constri pouco a pouco a partida talvez traduza ainda melhor o esprito do jogo.

    O jogo da comunicao consiste em, atravs de mensagens, precisar, ajustar, transformar o contexto compartilhado pelos parceiros. Ao dizer que o sentido de uma mensagem uma "funo" do contexto, no se define nada, j que o contexto, longe de ser um dado estvel, algo que est em jogo, um objeto perpetuamente reconstrudo e negociado. Palavras, frases, letras, sinais ou caretas interpretam, cada um sua maneira, a rede das mensagens anteriores e tentam influir sobre significado das mensagens futuras.

    O sentido emerge e se, constri no contexto, sempre local, datado, transitrio. A cada instante, um novo comentrio, uma nova interpretao, um novo desenvolvimento podem modificar o sentido que havamos dado a uma proposio ( por exemplo) quando ela foi emitida...

    Se estas idias so de alguma forma vlidas, as modelizaes sistmicas e cibernticas da comunicao em uma organizao so no mnimo insuficientes. Elas consistem quase sempre em designar um certo nmero de agentes de emisso e recepo, e depois em traar o percurso defluxos informacionais, com tantos anis de retroao quanto se desejar.

    Os diagramas sistmicos reduzem a informao a um dado inerte e descrevem a comunicao como um processo unidimensional de transporte e decodificao. Entretanto, as mensagens e seus significados se alteram o deslocarem-se de um ator a outro na rede, e de um momento a outro do processo de comunicao.

    O diagrama dos fluxos de informao apenas a imagem congelada de uma configurao de comunicao em determinado instante, sendo geralmente uma interpretao particular desta

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    configurao, um "lance" no jogo da comunicao. Ora, a situao deriva perpetuamente sob o efeito das mudanas no ambiente e de um processo ininterrupto de interpretao coletiva das mudanas em questo. Identidade, composio e objetivos das organizaes so portanto periodicamente redefinidos, o que implica uma reviso dos captadores e das informaes pertinentes que eles devem recolher, assim como dos mecanismos de regulagem que orientam as diferentes partes da organizao rumo a seus objetivos. nesta metamorfose paralela da organizao e de seu ambiente que se baseia o poder instituinte da comunicao; vemos que ela est mal representada pelos diagramas funcionais dos fluxos de informao.

    Porque transformam os ritmos e as modalidades da comunicao, as mutaes das tcnicas de transmisso e de tratamento das mensagens contribuem para redefinir as organizaes. So lances decisivos, "metalances", se podemos falar assim, no joga da interpretao e da construo da realidade.

    CLARES Os atores da comunicao produzem portanto continuamente o universo de sentido que os

    une ou que os separa. Ora, a mesma operao de construo do contexto se repete na escala de uma micropoltica interna s mensagens. Desta vez, os jogadores no so mais pessoas, mas sim elementos de representao. Se o assunto em questo , por exemplo, comunicao verbal, a interao das palavras constri redes de significao transitrias na mente de um ouvinte.

    Quando ouo uma palavra, isto ativa imediatamente em minha mente uma rede de outras palavras, de conceitos, de modelos, mas tambm de imagens, sons, odores, sensaes proprioceptivas, lembranas, afetos, etc. Por exemplo, a palavra " ma " remete aos conceitos de fruta de rvore, de reproduo; faz surgir o modelo mental de um objeto basicamente esfrico, com um cabo saindo de uma cavidade, recoberto por uma pele de cor varivel, contende uma polpa comestvel e caroos, ficando reduzido a um talo quando o comemos; evoca tambm o gosto e a consistncia dos diversos tipos de ma, a granny mais cida, a golden muitas vezes farinhenta, a melrose deliciosamente perfumada; traz de volta memrias de bosques normandos de macieiras, de tortas de ma, etc. A palavra ma est no centra de toda esta rede de imagens e conceitos que, de associao em associao, pode estender-se a toda nossa memria. Mas apenas os ns selecionados pelo contexto sero ativados com fora suficiente para emergir em nossa conscincia.

    Selecionados pelo contexto, o que isto quer dizer? Tomemos a frase: "Isabela come uma ma por suas vitaminas. " Como a palavra "ma", as palavras "come" e "vitaminas" ativam redes de conceitos, de modelos, de sensaes, de lembranas, etc. Sero finalmente selecionados os ns da minirrede, centrada sobre a ma, que outras palavras da frase tiverem ativado ao mesmo tempo; neste caso: as imagens e os conceitos ligados comida e diettica. Se fosse "a ma da discrdia" ou a "ma de Newton", as imagens e os modelos mentais associados palavra " ma " seriam diferentes. O contexto designa portanto a configurao de ativao de uma grande rede semntica em um dado momento. Reiteremos aqui a converso do olhar j tentada para a abordagem macroscpica da comunicao: podemos certamente afirmar que o contexto serve para determinar o sentido de uma palavra; ainda mais judicioso considerar que cada palavra contribui para produzir o contexto, ou seja, uma configurao semntica reticular que, quando nos concentramos meta, se mostra composta de imagens, de modelos, de lembranas, de sensaes, de conceitos e de pedaos de discurso. Tomando os termos leitor e texto no sentido mais amplo possvel, diremos que o objetivo de toda texto o de provocar em seu leitor um certo estado de excitao da grande rede heterognea de sua memria, ou ento orientar sua ateno para uma certa zona de seu mundo interior, ou ainda disparar a projeo de um espetculo multimdia na tela de sua imaginao.

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    No somente cada palavra transforma, pela ativao que propaga ao longo de certas vias, o estado de excitao da rede semntica, mas tambm contribui para construir ou remodelar a prpria topologia da rede ou a composio de seus ns. Quando ouvi Isabela declarar, ao abrir uma caixa de ravilis, que no se preocupava com diettica, eu havia construdo uma certa imagem de sua relao com a comida. Mas ao descobrir que ela comia uma ma " por suas vitaminas", sou obrigado a reorganizar uma parte da rede semntica a ela relacionada. Em termos gerais, cada vez que um caminho de ativao percorrido, algumas conexes so reforadas, ao passo que outras caem aos poucos em desuso. A imensa rede associativa que constitui nosso universo mental encontra-se em metamorfose permanente. As reorganizaes podem ser temporrias e superficiais quando, por exemplo, desviamos momentaneamente o ncleo de nossa ateno para n audio de um discurso, ou profundas e permanentes como nos casos em que dizemos que "a vida "Ou "uma longa experincia" nos ensinaram alguma coisa.

    O sentido de uma palavra no outro seno a guirlanda cintilante de conceitos e imagens que brilham por um instante ao seu redor. A reminiscncia desta claridade semntica orientar a extenso do grafo luminoso. disparado pela palavra seguinte, e assim por diante, at que uma forma particular, uma imagem global, brilhe por um instante na noite dos sentidos. Ela transformar, talvez imperceptivelmente, o mapa do cu, e depois desaparecer para abrir espao para entras constelaes.

    SEIS CARACTERSISTICAS DO HIPERI'EX'TO

    Cada um em sua escala, os atores da comunicao ou os elementos de uma mensagem

    constroem e remodelam universos de sentido. Inspirando-nos em cortas programas contemporneos, que descreveremos abundantemente na continuao desta seo, chamaremos estes mundos de significao de hipertextos.

    Como veremos, n estrutura do hipertexto no d conta somente da comunicao. Os processos sociotcnicos, sobretudo, tambm tm uma forma hipertextual, assim como vrios outros fenmenos. O hipertexto talvez uma metfora vlida para todas as esferas da realidade em que significaes estejam em jogo.

    A fim de preservar as possibilidades de mltiplas interpretaes do modelo do hipertexto, propomos caracteriz-lo atravs de seis princpios abstratos.

    l. Principio de metamorfose

    A rede hipertextual est em constante construo e renegociao. Ela pude permanecer estvel durante um certa tempo, mas esta estabilidade em si mesma fruto de um trabalho. Sua extenso, sua composio e seu desenho esto permanentemente em jogo para os atores envolvidos, sejam eles humanos, palavras, imagens, traos de imagens ou de contexto, objetos tcnicos, componentes destes objetos, etc.

    2. Princpio de heterogeneidade

    Os ns e as conexes de uma rede hipertextual so heterogneos. Na memria sero encontradas imagens, sons, palavras, diversas sensaes, modelos, etc., e as conexes sero lgicas, afetivas, etc. Na comunicao, as mensagens sero multimdias, multimodais; analgicas, digitais, etc. O processo sociotcnico colocar em jogo pessoas, grupos, artefatos, foras naturais de todos os tamanhos, com todos os tipos de associaes que pudermos imaginar entre estes elementos.

    3. Princpio de multiplicidade e de encaixe das escalas

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    O hipertexto se organiza em um modo "fractal", ou seja, qualquer n ou conexo, quando analisado, pode revelar-se como sendo composto por toda uma rede, e assim por diante, indefinidamente, ao longa da escala dos graus de preciso. Em algumas circunstncias crticas, h efeitos que podem propagar-se de uma escala a outra: a interpretao de uma vrgula em um texto (elemento de uma microrrede de documentos), caso se trate de um tratado internacional, pode repercutir na vida de milhes de pessoas (na escala da macrorrede social).

    4. Princpio de exterioridade

    A rede no possui unidade orgnica, nem matar interno. Seu crescimento e sua diminuio, sua composio e sua recomposio permanente dependem de um exterior indeterminado: adio de novos elementos, conexes com outras redes, excitao de elementos terminais (captadores), etc. Por exemplo, para a rede semntica de uma pessoa escutando um discurso, a dinmica dos estados de ativao resulta de uma fonte externa de palavras e imagens. Na constituio da rede sociotcnica intervm o tempo toda elementos novos que no lhe pertenciam no instante anterior: eltrons, micrbios, raios X, macromolculas, etc.

    5. Princpio de topologia

    Nos hipertextos, tudo funciona por proximidade, por vizinhana. Neles, o curso dos acontecimentos uma questo de topologia, de caminhas. No h espao universal homogneo onde haja foras de ligao e separao, onde as mensagens poderiam circular livremente. Tudo que se desloca deve utilizar-se da rede hipertextual tal como ela se encontra, ou ento ser obrigado a modific-la. A rede no est no espao, ela o espao.

    6. Princpio de mobilidade dos centros

    A rede no tem centra, ou melhor, possui permanentemente diversos centros que so como pontas luminosas perpetuamente mveis, saltando de um n a outro, trazendo ao redor de si uma ramificao infinita de pequenas razes, de rizomas, finas linhas brancas esboando por um instante um mapa qualquer com detalhes delicados, e depois correndo para desenhar mais frente outras paisagens do sentido.

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    2. O HIPERTEXTO

    MEMEX A idia de hipertexto foi enunciada pela primeira vez por Vannevar Bush em 1945, em um

    clebre artigo intitulado "As We May Think" [62]. Bush era um matemtico e fsico renomado que

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    havia concebido, nos anos trinta, uma calculadora analgica ultra-rpida, e que tinha desempenhado um papel importante pra o financiamento do Eniac, a primeira calculadora eletrnica digital. Na poca em que o artigo foi publicado polo primeira vez nosso autor encontrava-se na chefia do organismo encarregado de coordenar o esforo de guerra dos cientistas americanos, sob as ordens do Presidente Roosevelt.

    Por que "As we may think " ? Segundo Bush, a maior parte dos sistemas de indexao e organizao de informaes em uso na comunidade cientfica so artificiais, cada item classificado apenas sob uma nica rubrica, e a ordenao puramente hierrquica (classes, subclasses, etc. ). Ora, diz Vannevar Bush, a mente humana no funciona desta forma, mas sim atravs de associaes. Ela pula de uma representao para outra ao longo de uma rede intrincada, desenha trilhas que se bifurcam, tece uma trama infinitamente mais complicada do que os bancos de dados de hoje ou os sistemas de informao de fichas perfuradas existentes em 1945. Bush reconhece que certamente no seria possvel duplicar o processa reticular que embasa o exerccio da inteligncia. Ele prope apenas que nos inspiremos nele. Imagina ento um dispositivo, denominado Memex, para mecanizar a classificao e a seleo por associao paralelamente ao princpio da indexao clssica.

    Antes de mais nada, seria precisa criar um imenso reservatrio multimdia de documentos, abrangendo ao mesmo tempo imagens, sons e textos. Certos dispositivos perifricos facilitariam a integrao rpida de novas informaes, outros permitiriam transformar automaticamente a palavra em texto escrito. A segunda condio a ser preenchida seria a miniaturizao desta massa de documentos, e para isto Bush previa em particular a utilizao do microfilme e da fita magntica, que acabavam de ser descobertos naquela poca. Tudo isto deveria caber em um ou dois metros cbicos, o equivalente ao volume de um mvel de escritrio. O acesso s informaes seria feito atravs de uma tela de televiso munida de alto-falantes. Alm dos acessos clssicos por indexao, um comando simples permitiria ao feliz proprietrio de um Memex criar ligaes independentes de qualquer classificao hierrquica entre uma dada informao e uma outra. Uma vez estabelecida a conexo, cada vez que determinado item fosse visualizado, todos os outros que tivessem sido ligados a ele poderiam ser instantaneamente recuperados, atravs de um simples toque em um boto. Bush retrata o usurio de seu dispositivo imaginrio traando trilhas transversais e pessoais no imenso e emaranhado continente do saber. Estas conexes, que ainda no se chamavam hipertextuais, materializam no Memex, espcie de memria auxiliar do cientista, uma porte fundamental do prprio processo de pesquisa e de elaborao de novos conhecimentos. Bush chegou mesmo a imaginar uma nova profisso, uma espcie de engenharia civil no pois das publicaes, cuja misso seria a de ordenar redes de comunicao no centro do corpus imenso e sempre crescente dos sons, imagens e textos gravados.

    XANADU

    No incio dos anos sessenta, os primeiros sistemas militares de teleinformtica acabavam de

    ser instalados, e os computadores ainda no evocavam os bancos de dados e muito menos o processamento de textos. Foi contudo nesta poca que Theodore Nelson inventou o termo hipertexto para exprimir a idia de escrita/leitura no linear em um sistema de informtica. Desde ento, Nelson persegue o sonho de uma imensa rede acessvel em tempo real contendo todos os tesouros literrios e cientficos do mundo, uma espcie de Biblioteca de Alexandria de nossos dias. Milhes de pessoas poderiam utilizar Xanadu, para escrever, se interconectar, interagir, comentar os textos, filmes e gravaes sonoras disponveis na rede, anotar os comentrios, etc. Aquilo que poderamos chamar de estado supremo da troca de mensagens teria a seu encargo uma boa parte das funes preenchidas hoje pela editorao e o jornalismo clssicos. Xanadu, enquanto horizonte

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    ideal ou absoluto do hipertexto, seria uma espcie de materializao do dilogo incessante e mltiplo que a humanidade mantm consigo mesma e com seu passado.

    Ainda que milhares de hipertextos tenham sido elaborados e consultados aps as primeiras vises de Vannevar Bush e Theodore Nelson, at o momento nenhum deles tem a amplitude quase csmica imaginada por estes pioneiros, e h trs razes para isto. Em primeiro lugar, em um plano estritamente informtico, no se sabe ainda como programar bancos de dados acima de uma certa ordem de grandeza. Os algoritmos que so eficazes abaixo de um certa limite para gerir uma grande quantidade de informaes revelam-se impotentes para tratar as gigantescas massas de dados implicadas em projetos como Xanadu ou Memex. Em segundo lugar, a indexao, a digitalizao e a formatao uniforme de informaes hoje dispersas em uma infinidade de diferentes suportes pressupem o emprego de meios materiais avanados, a reunio de muitas competncias e sobretudo muito tempo; o que equivale a dizer que ela seria extremamente cara. Enfim, e esta no uma dificuldade menor, a constituio de hipertextos gigantes supe um minucioso trabalho de organizao, de seleo, de contextualizao, de acompanhamento e de orientao do usurio, e isto em funo de pblicos bastante diversos. Ora, quem, em 1990, possui as competncias necessrias no plano da concepo de hipertextos com vocao universal, j que, no domnio da multimdia interativa, tudo, ou quase tudo, ainda est para ser inventado?

    Hoje, portanto, no encontramos hipertextos universais, mas sim sistemas de porte modesto, voltados para domnios bem particulares, como a edio de obras de caracterstica enciclopdica em CD-ROM (o compact disc digital), o aprendizado e diversos programas de auxlio ao trabalho coletivo. Eis aqui dois exemplos do que possvel realizar hoje.

    MOTOR! Um aprendiz de mecnico v surgir na tela sua frente o esquema tridimensional de um

    matar. Com a ajuda de um cursor comandado por um mouse, ele seleciona uma determinada pea do motor. A pea muda de cor enquanto seu nome carburador, por exemplo aparece na tela. O jovem mecnico clica outra vez o mouse sobre o carburador. A pea ento ampliada at ocupar toda a tela. O aprendiz escolhe no menu a opo "animao". Um filme didtico, em cmera lenta, passa a mostrar o interior do carburador em funcionamento, os fluxos de gasolina, de ar, etc., sendo representados em cores diferentes, de forma que seja fcil compreender seus respectivos papis. Enquanto o filme exibido, uma voz em off explica o funcionamento interno do carburador, expe seu papel na organizao geral do motor, cita os possveis defeitos, etc.

    O mecnico interrompe o filme e retorna viso inicial do motor escolhendo a opo "retorno ao incio" no menu. Agora, em vez de comear sua explorao selecionando a imagem de um rgo (o que lhe permitia conhecer o nome deste rgo, e depois descobrir seu funcionamento), escolhe a opo "mostre" e digita no teclado: "o balancim". O balancim ento colorido de maneira a contrastar com o esquema do conjunto do motor, e o aprendiz pode continuar sua explorao... Se tivesse escolhido a opo "simulao de defeitos" no lugar de "mostre", terra assistido a um pequeno filme mostrando um cliente trazendo seu carro oficina e descrevendo os diversos barulhos estranhos e irregularidades de funcionamento que o fizeram procurar o mecnico. Depois disto nosso aprendiz poderia escolher entre alguns testes, experincias e verificaes para determinar com preciso o defeito e consert-lo. Se ele tivesse decidido "fazer rodar o motor em marcha lenta e escutar", por exemplo, terra realmente ouvido o barulho de um motor com o defeito a ser descoberto. Se o aprendiz no tivesse achado o problema aps um nmero estabelecido de tentativas e erros, o sistema teria indicado os procedimentos a seguir para determinar a natureza exata do defeito, teria mostrado no esquema do motor, eventualmente utilizando seqncias animadas, a relao entre os sintomas e a disfuno do carro, terminando pela demonstrao dos reparos a serem efetuados. Em 1990, todos os dados necessrios ao funcionamento de um destes

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    sistemas de auxlio ao aprendizado da mecnica de automveis podem residir em um compact disc com poucos centmetros de dimetro e rodar em um microcomputador de alta performance. Podemos imaginar bancos de dados interativos como este nas diversas especialidades da engenharia ou da medicina.

    CCERO O professor de civilizao latina pediu turma que preparasse o tema de diverses em Roma

    para a semana seguinte. Uma estudante est diante de um terminal de tela grande em uma das salas do Campus, a no ser que esteja sentada em casa frente a seu microcomputador pessoal, ligado por modem rede da universidade.

    Aps ter chamado o programa Ccero, diversos cones dispostos sobre a tela indicam-lhe as possveis formas de explorar a civilizao romana: perodos, personagens histricos, textos, visita guiada a Roma... A estudante escolhe a visita guiada. O programa pergunta ento qual o tema da visita. Aps ter digitado "as diverses", um mapa de Roma no sculo II d.C. aparece, com os parques indicados em verde, as termas em azul), os teatros em amarelo e os circo sem vermelho. O nome de cada local colorido est indicado em maisculas. A jovem latinista clica ento sobre o teatro de Marcelo, a oeste do campo de Marte, porque nota que neste setor h uma forte concentrao de teatros: l se encontram tambm os teatros de Pompeu e de Balbino. Atravs deste gesto simples, nossa estudante desce na cidade, aterrissando no local precisa que ela havia selecionado. Perto do teatro de Marcelo h algumas pessoas em trajes romanos: um guia, um explicador de latim, um quiosque de livros... Ela escolhe o guia e lhe pede uma introduo geral arte dramtica em Roma. Graas a uma srie de esquemas e planos arquitetnicos comentados pela voz do guia, ela descobre, por exemplo, a diferena entre as construes gregas e as romanas, porque muitos dos teatros romanos tm o nome de polticos famosos, quais so os grandes autores de comdias e tragdias, e suas contribuies histria do teatro. Aps uma srie de informaes gerais deste tipo, o guia conta-lhe os detalhes da construo do templo de Marcelo, mostrando-lhe depois as peculiaridades arquitetnicas do monumento enquanto visitam-no (uma microcmera havia filmado a maquete do teatro reconstitudo). Depois, andando pelo campo de Marte, dirigem-se para o teatro de Pompeu...

    Aps ter visitado cinco teatros desta forma, a estudante rel as notas que tomou durante sua visita: os planos arquitetnicos dos teatros romanos, o texto de certas passagens do comentrio do guia, uma lista bibliogrfica de textos antigos ou modernos relacionados ao teatro. Todas estas notas so diretamente transferidas pra seus arquivos pessoais de textos e imagens, e ela poder servir-se delas ou cit-las em um ensaio ou exerccio escolar. Na bibliografia que seu guia lhe forneceu ou que ela obteve em um dos quiosques de livros que encontrou durante sua visita, os textos marcados com uma estrela esto diretamente disponveis a partir de Ccero, os outros devendo ser procurados na biblioteca da universidade. Nossa estudante decide ler o Anfitrio, de Plauto, que est marcado com uma estrela. Um analisador sinttico e morfolgico assim como um dicionrio latim-francs (o "Gaffiot eletrnico") permitem que ultrapasse rapidamente as dificuldades apresentadas pelo texto. Enquanto l a pea de Plauto, ela escreve "na margem" alguns comentrios que sero invisveis para os prximos leitores, mas que poder encontrar na tela e ampliar na prxima leitura. Abandonando o texto antes que terminasse de l-lo, deixa uma marca que lhe permitir voltar automaticamente ltima passagem que leu. Na prxima aula. de civilizao latina, cada estudante ter alguma coisa diferente para dividir com os outros: um ter visitado as termas, outro ter lide e comentado no Ccero trechos de obras modernas sobre os jogos de circo em Roma, etc.

    Os sistemas educativos e de documentao que acabamos de descrever no existem ainda sob esta forma, em 1990. o primeiro condensa diversos programas j prontos ou em curso de

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    desenvolvimento. O segundo prefigura a realizao daquilo que por enquanto apenas um projeto dirigido pelo professor Bernard Frisher da Universidade da Califrnia em Los Angeles [2]. A terminologia para a denominao de tais sistemas ainda no foi definida. Devemos falar de multimdia interativa? De hipermdia? De hipertexto? Escolhemos aqui o termo hipertexto, deixando clara que ele no exclui de forma alguma a dimenso audiovisual. Ao entrar em um espao interativo e reticular de manipulao, de associao e de leitura, a imagem e o som adquirem um estatuto de quase-textos.

    Tecnicamente, um hipertexto um conjunto de ns ligados por conexes. Os ns podem ser palavras, pginas, imagens, grficos ou partes de grficos, seqncias sonoras, documentos complexas que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informao no so ligados linearmente, como em uma corda com ns, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexes em estrela, de medo reticular. Navegar em um hipertexto significa portanto desenhar um percurso em uma rede que pode ser to complicada quanto possvel. Porque cada n pode, por sua vez, conter uma rede inteira.

    Funcionalmente, um hipertexto um tipo de programa para a organizao de conhecimentos ou dados, a aquisio de informaes e a comunicao. Em 1990, sistemas de hipertexto para o ensina e a comunicao entre pesquisadores esto sendo desenvolvidos experimentalmente em cerca de vinte universidades da Amrica do Norte, bem como em vrias grandes empresas. Estes hipertextos avanados possuem um grande nmero de funes complexas e rodam em computadores grandes ou mdios. Existem ainda no comrcio uma dezena de programas para computadores pessoais que permitem a seus usurios a construo de seus prprios hipertextos. Estes programas mais rudimentares permitem, entretanto, a construo de bases de dados com acesso associativo, muito imediato, intuitivo, combinando som, imagem e texto. Em 1990, a maior parte dos usos registrados destes sistemas de hipertexto para computadores pessoais estava relacionada formao e educao.

    ALGUMAS INTERFACES DA ESCRITA O hipertexto retoma e transforma antigas interfaces da escrita. A noo de interface, na

    verdade, no deve ser limitada s tcnicas de comunicao contemporneas. A impresso, por exemplo, primeira vista sem dvida um operador quantitativo, pois multiplica as cpias. Mas representa tambm a inveno, em algumas dcadas, de uma interface padronizada extremamente original: pgina de ttulo, cabealhos, numerao regular, sumrios, notas, referncias cruzadas. Todos esses dispositivos lgicos, classificatrios e espaciais sustentam-se uns aos outros no interior de uma estrutura admiravelmente sistemtica: no h sumrio sem que haja captulos nitidamente destacados e apresentados; no h sumrios, ndice, remisso a outras partes do texto, e nem referncias precisas a outros livras sem que haja pginas uniformemente numeradas. Estamos hoje to habituados com esta interface que nem notamos mais que existe. Mas no momento em que foi inventada, possibilitou uma relao com o texto e com a escrita totalmente diferente da que fora estabelecida como manuscrito: possibilidade de exame rpido do contedo, de acesso no linear e seletivo ao texto, de segmentao do saber em mdulos, de conexes mltiplas a uma infinidade de outros livras graas s notas de p de pgina e s bibliografias. talvez em pequenos dispositivos "materiais" ou organizacionais, em determinados modos de dobrar ou enrolar os registros que esto baseadas a grande maioria das mutaes do "saber".

    A impresso, por sua vez, se estrutura sobre um grande nmero de caractersticas de interface estabilizadas antes do sculo XV e que no so bvias: a organizao do livro em cdex (pginas dobradas e costuradas juntas) e no em raios; emprego do papel e no do papiro, da tabuinha de argila, ou do pergaminho; a existncia de um alfabeto e de uma caligrafia comuns maior parte do espao europeu, sem dvida graas reforma caligrfica imposta autoritariamente

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    por Alcuno na poca de Carlos Magno (os problemas de padronizao e de compatibilidade no datam de hoje).

    A mutao da impresso em si foi completada por uma transformao do tamanho e peso dos incunbulos. Na Idade Mdia os livros eram enormes, acorrentados nas bibliotecas, lidos em voz alta no atril. Graas a uma modificao na dobradura; o livro torna-se porttil e difunde-se maciamente. Em vez de dobrar as falhas em dois (in folio), comeou-se a dobr-las em cita (in octavo). Mas para que o Timeu ou a Eneida coubessem em um volume to pequeno, Aldo Manucio, o editor veneziano que promoveu o in-octauo, inventou o estreita caractere itlico e decidiu livrar os textos do aparelho critica e dos comentrios que os acompanhavam h sculos... Foi assim que o livro tornou-se fcil de manejar, cotidiano, mvel, e disponvel para a apropriao pessoal [11]. Como o computador, o livro s se tornou uma mdia de massa quando as variveis de interface "tamanho" e "massa" atingiram um valor suficientemente baixo. O projeto poltico-cultural de colocar os clssicos ao alcance de todos os leitores em latim no pode ser dissociado de uma infinidade de decises, reorganizaes e invenes relativas rede de interfaces "livro".

    O agenciamento complexo que o documento impresso constitua continuou a se disseminar e a ramificar aps o sculo XV. A biblioteca moderna, por exemplo, surgiu no sculo XV111. As colees de fichas classificadas em ordem alfabtica, construdas a partir das pginas de apresentao e dos ndices dos livras, nos permitem considerara biblioteca como um tipo de megadocumento relativamente bem sinalizado, no qual possvel deslocar-se facilmente para achar aquilo que se procura, com um mnimo de treinamento.

    O jornal ou revista, refugos da impresso bem como da biblioteca moderna, so particularmente bem adaptados a uma atitude de ateno flutuante, ou de interesse potencial em relao informao. No se trata de caar ou de perseguir uma informao particular, mas de recolher coisas aqui e ali, sem ter uma idia preconcebida. O verbo to browse ( "recolher", mas tambm "dar uma olhada") empregado em ingls para designar o procedimento curioso de quem navega em um hipertexto. No territrio quadriculado do livro ou da biblioteca, precisamos de mediaes e mapas como o ndice, o sumrio ou o fichrio. Ao contrrio, o leitor do jornal realiza diretamente uma navegao a olho nu. As manchetes chamam a ateno, dando uma primeira idia, pinam-se aqui e ali algumas frases, uma foto, e depois, de repente, isso, um artigo fisga nossa ateno, encontramos algo que nos atrai... S podemos nos dar conta realmente do quanto a interface de um jornal ou de uma revista se encontra aperfeioada quando tentamos encontrar o mesmo desembarao num sobrevo usando a tela e o teclado. O jornal encontra-se toda em open field, j quase inteiramente desdobrado. A interface informtica, por outro fada, nos coloca diante de um pacote terrivelmente redobrado, com pouqussima superfcie que seja diretamente acessvel em um mesmo instante. A manipulao deve ento substituir o sobrevo.

    O SUPORTE INFORMTICO DO HIPERTEXTO Estes inconvenientes da consulta atravs da tela so parcialmente compensados por um certa

    nmero de caractersticas de interfaces que se disseminaram em informtica durante os anos oitenta e que poderamos chamar de princpios bsicos da interao amigvel:

    a representao figurada, diagramtica ou icnica das estruturas de informao e dos comandas (por oposio a representaes codificadas ou abstratas);

    o uso do "mouse" que permite ao usurio agir sobre o que ocorre na tela de forma intuitiva, sensoriomotora e no atravs do envie de um seqncia de caracteres alfanumricos;

    os "menus" que mostram constantemente ao usurio as operaes que ele pode realizar; tela grfica de alta resoluo. Foi neste reduto ecolgico da interao amigvel que o hipertexto pde ser inicialmente

    elaborado e depois disseminar-se.

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    Realizando o sonho de Vannevar Bush, mas atravs de tcnicas diferentes daquelas imaginadas em 1945, os suportes de registro tico como o compact disc oferecem uma enorme capacidade de armazenamento em um volume bastante pequeno. Eles certamente tero um papel importante na edio e distribuio de quantidades muito grandes de informao sob forma hipertextual. Leitores laser miniaturizados e telas planas ultraleves tomaro estes hipertextos to fceis de consultar na cama ou no metr quanto um romance policial.

    NAVEGAR Partindo de traos tomados de emprstimo de vrias outras mdias, o hipertexto constitui,

    portanto, uma rede original de interfaces. Algumas particularidades do hipertexto (seu aspecto dinmico e multimdia) devem-se a seu suporte de inscrio tica ou magntica e a seu ambiente de consulta do tipo "interface amigvel". As possibilidades de pesquisa por palavras-chave e a organizao subjacente das informaes remetem aos bancos de dados. clssicos. O hipertexto tambm desvia em seu proveito alguns dispositivos prprios da impresso: ndice, thesaurus, referncias cruzadas, sumrio, legendas... Um mapa ou esquema detalhado com legendas j constitui um agenciamento complexo para uma leitura no linear. A nota de p de pgina ou a remisso para o glossrio por um asterisco tambm quebram a seqencialidade do texto. Uma enciclopdia com seu thesaurus, suas imagens, suas remisses de um artigo a outro, por sua vez uma interface altamente reticular e "multimdia". Pensemos na forma de consultar um dicionrio, onde cada palavra de uma definio ou de um exemplo remete a uma palavra definida ao longo de um circuito errtico e virtualmente sem fim.

    O que, ento, torna o hipertexto especfico quanto a isto? A velocidade, como sempre. A reao ao clique sobre um boto (lugar da tela de onde possvel chamar um outro n) leva menos de um segundo. A quase instantaneidade da passagem de um n a outro permite generalizar e utilizar em toda sua extenso o princpio da no-linearidade. Isto se torna a norma, um novo sistema de escrita, uma metamorfose da leitura, batizada de navegao. A pequena caracterstica de interface "velocidade" desvia todo o agenciamento intertextual e documentrio para outro domnio de uso, com seus problemas e limites. Por exemplo, nos perdemos muito mais facilmente em um hipertexto do que em uma enciclopdia. A referncia espacial e sensoriomotora que atua quando seguramos um volume mas mos no mais ocorre diante da tela, onde somente temos acesso direto a uma pequena superfcie vinda de outro espao, como que suspensa entre dois mundos, sobre a qual difcil projetar-se.

    como se explorssemos um grande mapa sem nunca podermos desdobr-lo, sempre atravs de pedaos minsculos. Seria preciso ento que cada pequena frao de superfcie trouxesse consigo suas coordenadas, bem como um mapa em miniatura com uma zona acinzentada indicando a localizao desta frao ( "Voc est aqui" ). Inventa-se hoje toda uma interface da navegao, feita de uma infinidade de microdispositivos de interface deformados, reutilizados, desviados.

    MAPAS INTERATIVOS Podemos representar de vrias maneiras a conectividade de um hipertexto. A visualizao

    grfica ou diagramtica , evidentemente, o meto mais intuitivo. Mas quais sero as extenses, as escalas, os princpios de organizao destes mapas de conexes, destas bssolas conceituais nas redes de documentos?

    Um mapa global no estaria arriscado a tornar-se ilegvel a partir de uma certa quantidade de conexes, a tela cobrindo-se de linhas entrecruzadas, em meio as quais no seria possvel distinguir mais nada? Algumas pesquisas contemporneas parecem mostrar que representaes de conexes em trs dimenses seriam menos embaraadas e mais fceis de consultar, dada uma

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    mesma quantidade, que as representaes planas. O usurio terra a impresso de entrar em uma estrutura espacial, e nela deslocar-se como dentro de um volume.

    Podemos tambm construir mapas globais em duas dimenses, masque mostram apenas os caminhos disponveis a partir de um nico n: seja ele o documento de partida, a raiz do hipertexto, ou ento o documento ativo no momento. Imaginemos um mapa das estradas francesas no qual estariam representadas apenas as estradas que levassem de Bordeaux s outras cidades quando estivssemos em Bordeaux, de Toulouse s outras cidades quando estivssemos em Toulouse, etc. A cada momento, a complexidade visual ficaria assim reduzida ao mnimo necessrio.

    possvel ainda focalizar detalhadamente a informao mais importante em determinado momento, representando em pontilhado ou em escala menor a informao marginal. Trabalharamos ento com lupas, sistemas de zoom, e escalas graduadas sobre uma representao diagramtica ou esquemtica do hipertexto.

    Podemos deixar que o usurio represente apenas o subconjunto do hipertexto que considere pertinente. Ele consultaria ou modificaria mais freqentemente a estrutura de seu prprio "novelo de conexes' do que o do megadocumento. Terra a impresso de estar percorrendo a sua subrede privada, e no a grande rede geral.

    Para. ajudar a orientar os que se aventuram nas vias tortuosas dos dispositivos hipertextuais ou multimdias, pensa-se tambm em colocar mdulos inteligentes ou pequenos sistemas especialistas em alguns de seus desvios4. Estes sistemas especialistas poderiam tambm fornecer informaes mais refinadas queles que no se contentassem com uma simples navegao. J existem geradores de sistemas especialistas capazes de se conectar de forma simples em hipertextos padro para microcomputadores. Os prprios sistemas especialistas podem ser considerados como um tipo particular de hipertexto: uma manta discursiva condensada ou redobrada (a base de conhecimentos) desdobrada sob mil facetas diferentes pela mquina de inferncia de acorda com o problema especifica com a qual se confronta seu usurio. Hipertextos, agenciamentos multimidas interativos e sistemas especialistas tm em comum esta caracterstica multidimensional, dinmica, esta capacidade de adaptao fina s situaes que os tornam algo alm da escrita esttica e linear. Eis por que estes diferentes modos de representao que utilizam um suporte informtico combinam-se facilmente, tornam-se rede.

    Esta descrio das solues imaginadas para orientar o usurio e representar a organizao dos caminhas possveis entre diferentes documentos de um hipertexto est incompleta, mas d uma idia do tipo de soluo que se tem em mente em 1990. Estudos de ergonomia e de psicologia cognitiva sobre a compreenso de documentos escritos mostram que, para entender bem e memorizar o contedo dos textos, indispensvel que os leitores depreendam sua macroestrutura conceitual [49]. Mas construir esquemas que abstraiam e integrem o sentido de um texto ou, de forma mais geral, de uma configurao informacional complexa, uma tarefa difcil. As representaes do tipo cartogrfico ganham hoje cada vez mais importncia nas tecnologias intelectuais de suporte informtico, justamente para resolver este problema de construo de

    4 Os sistemas especialistas so programas de computador capazes de substituir (ou, na maior parte dos casos, ajudar) um especialista humano no exerccio de suas funes de diagnstico ou aconselhamento. O sistema contm, em uma "base de regras", os conhecimentos do especialista humano sobre um domnio em particular a "base de fatos" contm os dados (provisrios) sobre a situao particular que est sendo analisada; a "mquina de inferncia" aplica as regras aos fatos para chegar a uma concluso ou a um diagnstico. Os sistemas especialistas so utilizados em domnios to diversos quanto bancos, seguradoras, medicina, produo industrial, etc. Sistemas especialistas muito prximos daqueles que mencionamos aqui auxiliam usurios pouco experientes a orientarem-se no ddalo dos bancos de dados e das linguagens de pesquisa sempre que eles precisam achar rapidamente (sem um longo treinamento prvio) uma informao on line.

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    esquemas. Diagramas dinmicos so empregados em software houses (auxlio programao), em sistemas de auxlio concepo, escrita, gesto de projetos, etc. Os esquemas interativos tornam explicitamente disponveis, diretamente visveis e manipulveis vontade as macroestruturas de textos, de documentos multimdias, de programas informticos, de operaes a coordenar ou de restries a respeitar. Os sistemas cognitivos humanos podem ento transferir ao computadora tarefa de construir e de manter em dia representaes que eles antes deviam elaborar com os fracos recursos de sua memria de trabalho, ou aqueles, rudimentares e estticos, do lpis e papel. Os esquemas, mapas ou diagramas interativos esto entre as interfaces mais importantes das tecnologias intelectuais de suporte informtico.

    A memria humana estruturada de tal forma que ns compreendemos e retemos bem melhor tudo aquilo que esteja organizado de acordo com relaes espaciais. Lembremos que o domnio de uma rea qualquer do saber implica, quase sempre, a posse de uma rica representao esquemtica. Os hipertextos podem propor vias de acesso e instrumentos de orientao em um domnio do conhecimento sob a forma de diagramas, de redes ou de mapas conceituais manipulveis e dinmicos. Em um contexto de formao, os hipertextos deveriam portanto favorecer, de vrias maneiras, um domnio mais rpido e mais fcil da matria do que atravs do audiovisual clssico ou do suporte impresso habitual.

    O hipertexto ou a multimdia interativa adequam-se particularmente aos usos educativos. bem conhecido o papel fundamental do envolvimento pessoal do aluno no processo de aprendizagem. Quanto mais ativamente uma pessoa participar da aquisio de um conhecimento, mais ela ir integrar e reter aquilo que aprender. Ora, a multimdia interativa, graas sua dimenso reticular ou no linear, favorece uma atitude exploratria, ou mesmo ldica, face ao material a ser assimilado. , portanto, um instrumento bem adaptado a uma pedagogia ativa.

    RQUIEM PARA UMA PGINA Quando um leitor se desloca na rede de microtextos e imagens de uma enciclopdia, deve

    traar fisicamente seu caminho nela, manipulando volumes, virando pginas, percorrendo com seus olhos as colunas tendo em mente a ordem alfabtica. Os volumes da Britannica ou da Universalis so muito pesados, inertes, imveis. O hipertexto dinmico, est perpetuamente em movimento. Com um ou dois cliques, obedecendo por assim dizer ao dedo e ao olho, ele mestra ao leitor uma de suas faces, depois entra, um certa detalhe ampliado, uma estrutura complexa esquematizada. Ele se redobra e desdobra vontade, muda de forma, se multiplica, se corta e se cola entra vez de outra forma. No apenas uma rede de microtextos, mas sim um grande metatexto de geometria varivel, com gavetas, com dobras. Um pargrafo pode aparecer ou desaparecer sob uma palavra, trs captulos sob uma palavra do pargrafo, um pequeno ensaio sob uma das palavras destes captulos, e assim virtualmente sem fim, de fundo falso em fundo falso.

    Na interface da escrita que se tornou estvel no sculo XV e foi sendo lentamente aperfeioada depois, a pgina a unidade de dobra elementar do texto. A dobradura do cdex uniforme, calibrada, numerada. Os sinais de pontuao, as separaes de captulos e de pargrafos, estes pequenos amarrotados ou marcas de dobras, no tm, por assim dizer, nada alm de uma existncia lgica, j que so figurados por signos convencionais e no talhados na prpria matria do livro. O hipertexto informatizado, em compensao, permite todas as dobras imaginveis: dez mil signos ou somente cinqenta redobrados atrs de uma palavra ou cone, encaixes complicados e variveis, adaptveis pelo leitor. O formato uniforme da pgina, a dobra parasita do papel, a encadernao independente da estrutura lgica do texto no tm mais razo de ser. Sobra, sem dvida, a restrio da superfcie limitada da tela. Cabe queles que concebem a interface fazer desta tela no um leito de Procusto, mas sim uma ponte de comanda e de observao das metamorfoses

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    do hipertexto. Ao ritmo regular da pgina se sucede o movimento perptuo de dobramento e desdobramento de um texto caleidoscpico.

    BIBLIOGRAFIA AMBRON Susann et HOOPER Kristina (sob a direo de), Interactive Multimedia,

    Microsoft Press, Redmond, Washigton, 1988.

    BOORSTIN,Daniel, Les Dcouvreus, Deghers, Paris, 1986 (1 edio americana, The Discoverers, Random House, New York, 1983).

    BALPE Jean-Pierre et LAUFER Roger (sob a direo de), Instruments decommunication volus, hypertextes, hypermdias, editado pelo "Groupe Paragraphe" de l'universit Paris-VIII (2, rue de la Li bert - 93526 Saint-Denis Cedex2), 1990.

    DELEUZE Gilles, Le Pli, Minuit, Paris, 1988.

    Groupware, dossi da revista Byte, dcembre 1988.

    GUINDON Raimonde (sob a direo de), Cognitive Science and its Applications for Human-Computer Interaction, Lawrence Erlbaum, Hillsdale, New Jersey, 1988.

    Hypertext, dossi da revista Byte, octobre 1988.

    LAMBERT Steve et ROPIEQUET Suzanne (sob a direo de), CD ROM, The New Papyrus, Microsoft Press, Redmond, WA., 1986 (contm a reproduodo texto de BUSH Vannevar, "As we may think", originalmente publicado no The Atlantic Monthly em 1945 ).

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    3. SOBRE A TCNICA ENQUANTO HIPERTEXTOO COMPUTADOR PESSOAL

    DESORDEM E CAOS: SILICON VALLEY

    Na metade da dcada de setenta, uma pitoresca comunidade de jovens californianos margem do sistema inventou o computador pessoal. Os membros mais ativos deste grupo tinham o projeto mais ou menos definido de instituir novas bases para a informtica e, ao mesmo tempo, revolucionar a sociedade. De uma certa forma, este objetivo foi atingido.

    Silicon Valley, mais do que um cenrio, era um verdadeiro meio ativo, um caldo primitivo onde instituies cientficas e universitrias, indstrias eletrnicas, todos os tipos de movimentos hippies e de contestao faziam confluir idias, paixes e objetos que iriam fazer com que o conjunto entrasse em ebulio e reagisse.

    No incio dos anos setenta, em poucos lugares no mundo havia tamanha abundncia e variedade de componentes eletrnicos quanto no pequeno crculo radiante, medindo algumas dezenas de quilmetros, ao redor da universidade de Stanford. L podiam ser encontrados artefatos informticos aos milhares: grandes computadores, jogos de vdeo, circuitos, componentes, refugos de diversas origens e calibres... E estes elementos formavam outros tantos membros dispersos, arrastados, chocados uns contra os outros pelo turbilho combinatrio, experincias desordenadas de alguma cosmogonia primitiva.

    No territrio de Silicon Valley, nesta poca, encontravam-se implantadas, entre outras, a NASA, Hewlett-Packard, Atari e Intel. Todas as escolas da regio ofereciam cursos de eletrnica. Exrcitos de engenheiros voluntrios, empregados nas empresas locais, passavam seus fins de semana ajudando os jovens fanticos por eletrnica que faziam bricolagem nas famosas garagens das casas californianas.

    Vamos seguir, como exemplo, dois destes jovens, Steve Jobs e Steve Wozniac, enquanto eles realizavam sua primeira mquina, a blue box, uma espcie de auxlio pirataria, um pequeno dispositivo digital para telefonar sem pagar. Ambos cresceram em um mundo de silcio e de circuitos. Evoluram em uma reserva ecolgica, indissoluvelmente material e cognitiva, excepcionalmente favorvel bricolagem high tech. Tudo estava ao alcance de suas mos. Poderamos encontr-los em um apartamento de So Francisco, ouvindo as explicaes de um pirata telefnico em cantata (gratuito) com o Vaticano. Ou ento pesquisando em revistas de eletrnica, tomando nota de idias, levantando bibliografias. Continuavam suas pesquisas na biblioteca de Stanford. Faziam compras nas lojas de sobras de componentes eletrnicos. Graas a um amigo pertencente a Berkeley, desviaram os computadores da universidade para efetuar os ltimos clculos para seus circuitos. Finalmente, algumas dezenas de exemplares da blue box foram construdas e os dois Steve ganharam algum dinheiro, antes de perceber que a Mfia estava ficando interessada no assunto e abandonar o jogo.

    Milhares de jovens divertiam-se desta forma, fabricando rdios, amplificadores de alta fidelidade e, cada vez mais, dispositivos de telecomunicao e de clculo eletrnico. O nec plus extra era construir seu prprio computador a partir de circuitos de segunda mo. As mquinas em questo no tinham nem teclado, nem tela, sua capacidade de memria era nfima e, antes do lanamento do Basic em 1975 por dois outras adolescentes, Bill Gates e Paul Allen, elas tambm no tinham linguagem de programao. Estes computadores no serviam para quase nada, todo o prazer estava em constru-los.

    O campus de Berkeley no ficava muito longe; a paixo pela bricolagem eletrnica se misturava ento a idias sobre o desvio da alta tecnologia em proveito da "contracultura" e a slogans tais como Com-puters for the people (computadores "para o povo" ou "ao servio das

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    pessoas"). Entre todos os grupos da nebulosa underground que trabalhavam para a reapropriao das tecnologias de ponta, o Homebrew Computer Club, do qual Jobs e Wozniac faziam parte, era um dos mais ativos. Fica subentendido que seus membros mais ricos dividiam suas mquinas com os outros e que ningum tinha segredos para ningum. As reunies do clube eram no auditrio do acelerador linear de Stanford. Este era o lugar para fazer com que os outros admirassem ou criticassem suas ltimas realizaes. Trocavam-se e vendiam-se componentes, programas, idias de todos os tipos. Assim que eram construdos, logo aps emitidos, objetos e conceitos eram retomados, transformados pelos agentes febris de um coletivo denso, e os resultados destas transformaes, por sua vez, eram reinterpretados e reempregados ao longo de um ciclo rpido que talvez seja o da inveno. Foi deste