letra e escrita

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  • Estilos da Clnica, 2003, Vol. VIII, no 14, 50-5950

    LETRA E ESCRITA INCONSCIENTE

    E a partir principalmente das considera-es de Freud acerca da noo de escrita na Inter-pretao dos sonhos que Lacan desenvolve concei-tos fundamentais em sua obra, como, por exem-plo, a noo de letra, que no cunhada comoconceito por Freud, mas utilizada enquanto ele-mento combinatrio na formao dos sonhos. Destemodo, com Lacan, a letra tem seu papel ampliadopara atingir a prpria instaurao do inconscien-te, concomitante instalao do sistema simbli-co e do significante, bem como do surgimento dosujeito propriamente dito (...). entre duas pala-vras e entre duas linguagens, que j denunciam nasua unidade distintiva a clivagem do sujeito pelaconsiderao do inconsciente, que a escrita se inse-re, sobretudo na forma de letra (Machado, 1998,pp. 105-6).

    Dossi

    CONSIDERAESSOBRE A LETRA E A

    ESCRITA NA CLNICAPSICANALTICA

    Cristine Lacet

    Psicanalista, mestranda em Psicologia Clnica peloInstituto de Psicologia da USP e psicloga do Servio de

    Psicologia do Instituto de Psiquiatria do Hospital dasClnicas da Faculdade de Medicina da USP.

    O conceito de letra tem vri-as acepes na teoria lacania-na, em alguns momentossendo praticamente identi-ficado noo de significan-te e em outros afastando-sedela; ora o conceito aproxi-mado da determinao sim-blica, ora o da sintaxe, datextualidade, e ora da lgicacombinatria. Portanto,quando nos referimos le-tra, ocorre perguntar de queletra se trata. Considerando-se a importncia do conceitode letra tanto no campo daconstituio subjetiva quan-to na formao do signifi-cante e seus efeitos e uso naclnica, pretende-se neste tra-balho trazer uma reflexosobre estes trs aspectos doconceito: a letra e a escritainconsciente, a letra e a cons-tituio subjetiva e a clnicado literal.Psicanlise; letra; escrita

    CONSIDERATIONS ABOUT THELETTER AND THE WRITING INPSYCHOANALYTIC CLINICThe concept of letter hasmany meanings in the Laca-nian theory. Sometimes it isanderstood as similar to thenotion of significant, in otherinstances it is meant to havea very different meaning.The concept of letter is thenapproached as one of symbo-lic determination, or as si-milar to the concept of syn-tax, textuality, or combina-tory logic. Taking into consi-deration the importance ofthe concept on the subjectiveconstitution, on the signifi-cant formation and its effectsand clinic application. Thisarticle intends to reflect aboutthese three aspects of the con-cept: the letter and the in-conscient writing, the letterand the subjective constituti-on and the literality clinic.Psychoanalysis; letter; writing

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    O esvaziamento de sentido da letra pode ser apontado comoponto fundamental que permite tanto a passagem histrica daletra escrita, como tambm a constituio do significante, dotrao e do inconsciente sob a forma de apagamento dos restosimaginrios do real, permitindo assim o engendramento do su-jeito no registro do simblico, como nos prope Lacan. E nessesentido o conceito de letra circula nos trs registros.

    A noo de letra, que no Seminrio XX, Mais, ainda lacandesigna como elemento de conjuno, um fator capital na es-truturao do inconsciente a partir da linguagem; h nessa defi-nio de inconsciente uma passagem necessria pela letra, queser posteriormente explicitada.

    Alguns esclarecimentos fazem-se necessrios no que tangea conceitos que participam dos campos tericos mais distintos:a linguagem a que se refere Lacan no se confunde com a lin-guagem tal como a concebem os lingistas: contrapartida obri-gatria dessa primeira verificao: o significante lacaniano nose confunde com o seu homnimo (e epnimo) saussuriano(Arriv, 1994, p. 96). E essa a pesquisa desenvolvida por Ar-riv, cujas principais concluses so as seguintes: enquanto emSaussure h uma teoria do signo, em Lacan h uma teoria dosignificante. Para Saussure, trata-se de um significante que es-tabelece uma relao de dualidade com o significado, em que osdois delimitam-se reciprocamente, como em sua famosa analo-gia com a folha de papel, da qual no se pode cortar o anversosem se cortar o reverso ao mesmo tempo; para Lacan, a relaoentre significante e significado de duplicidade, na qual o sig-nificante tem autonomia em relao ao significado, ou seja, nosentido diacrnico, com o tempo se produzem deslizamentos,modificando o contedo do significante a partir da evoluohistrica das significaes humanas. Lacan homologa linearida-de e diacronia: Colocar o princpio de linearidade dizer quefalar toma tempo: pe-se um significante depois do outro e serecomea. E, se a gente fizesse isso ininterruptamente durantealguns sculos, por certo traria algumas modificaes na pr-pria lngua. Sim. Mas fato que Saussure, aparentemente, noestabelece explicitamente essa relao entre linearidade e dia-cronia: a linearidade - que, preciso lembrar, s afeta o signifi-cante - , para ele, de natureza sincrnica. No para Lacan(Arriv, 1994, p. 101).

    Segundo Ritvo (2000), a letra, aqui considerada como traosignificante no corpo, o conceito que permite a distino entreo significante lingstico e o significante psicanaltico, no queintroduz o efeito de rasura, de apagamento, de desaparecimento.

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    A letra teria como propriedades ser diferente de tudo o que arodeia (propriedade esta compartilhada pela lingstica estrutu-ral) e ser diferente dela mesma. Numa referncia ao Seminrio IV.A relao de objeto, Ritvo sugere que a letra esteja do lado daprivao. Privao dessa metade do sujeito com a qual nunca secontou - a est o paradoxo. No que se tenha partido em duasmetades, uma perdida e outra ganha, mas sim que a ganha nuncaexistiu (2000, p. 13).

    Na concepo comum a letra A diferente de si porque nun-ca a repito de modo idntico. Para a psicanlise como se hou-vesse um A anterior ao A no pronunciado e inexistente que apon-tasse para a privao na origem. A letra est associada ao proble-ma estrutural da privao, privao de uma metade do sujeitoque nunca existiu; para Safouan, apenas o neurtico acredita queo A existe e o busca.

    Para retomar os efeitos de rasura e apagamento introduzi-dos pela letra psicanaltica, podemos trazer a cena do analisanteque diz que se lembra de algo, mas a lembrana enquanto retor-no do recalcado j no a mesma aps ser afetada pela censura.E nunca vamos encontrar essa primeira vez em que algo foidito, idntico a si prprio. Esse ponto onde entra a letra(Ritvo, 2000, p. 14).

    Desde A carta roubada a noo de letra j est associada aoefeito de desaparecimento. Lacan contradiz o provrbio scriptamanent, verba volant1 ao propor que as palavras, ao serem ditasao outro, no podem ser desditas, apagadas; o outro, enquantotestemunha, as escuta e registra; j os escritos podem ser rasura-dos, apagados. O inconsciente l uma escrita em runas e a trans-forma em significante. Mas, observem, trata-se obviamente deum campo metafrico - como se a funo do inconsciente consis-tisse em cifrar e decifrar continuamente marcas apagadas, marcasem estado de runas, marcas que se constroem e voltam a des-truir-se incessantemente. O que o inconsciente faz inventar,cifrar e no decifrar. O decifrar a suposio do inconsciente emrelao ao sujeito suposto saber, isto , um sujeito suposto deci-frador do que cifra o inconsciente, mas o que o inconsciente faz apenas trabalhar cifrando (cifrar, aqui, quer dizer inventar) (Ri-tvo, 2000, p. 16).

    Tambm a palavra qual nos referimos em psicanlise dife-rente daquela definida pelos lingistas, ou seja, sob a regra daassociao livre, possui outra estrutura, outro funcionamento.Entregar-se regra da associao livre acreditar que aquilo que dito o pela metade ou que a palavra no pode seno meio-dizer-se, falar qualquer coisa assim dizer o que no pode ser

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    dito, o discurso do inconsciente - o que diz Lacan no Seminrio I, Osescritos tcnicos de Freud - mostra-semascarado, criptografado, a prioriincomunicvel e se apodera dos ta-gesreste, de elementos vazios, para sefazer reconhecer. Os tagesreste des-critos por Freud como restos diur-nos, elementos errantes, destitudosde sentido e disponveis no pr-consciente, so justamente o mate-rial significante, fonemtico ou hie-rglifo esvaziado de sentido arti-culado em uma nova organizaopara expressar um novo sentido.Esse material significante no outra coisa seno escrita, sistemas deescrita (...). A equao d como re-sultado que o discurso do inconsci-ente se apodera do discurso superfi-cial atravs desses elementos esvazi-ados de sentido que so, repitamosmais uma vez, os tagesreste, ou for-mas errantes, ou material significan-te, ou sistemas de escrita fonemti-ca ou hierglifa. Esses elementos,que pertencem a um sistema de es-crita, podem entrar em uma novaorganizao ou combinatria, paratransferir uma mensagem do incons-ciente rumo superfcie (...), o meioque o inconsciente tem para se revelar o alfabeto, logo a escrita (Macha-do, 1998, pp. 127-9; grifo nosso).

    A partir do mecanismo de for-mao dos sonhos de Freud, de umatransferncia de valor entre os ter-mos, no caso dos tagesreste e de suacombinatria, Lacan prope a teo-ria do significante, que vai de en-contro noo de representao,pois o cerne de sua teoria justa-mente a ruptura com a idia de cor-respondncia biunvoca entre forma

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    e contedo, significante e significa-do. Qualquer imagem, figura oupalavra pode ser significante, funci-onar com estrutura de escrita, isto, organizar-se no sistema simbli-co e ser passvel de leitura, e paraque possam ser lidas devem funcio-nar como letras, esvaziadas de senti-do e destitudas de sua funo re-presentativa. Assim como as forma-es do inconsciente, os sistemas deescrita tm em comum o fato de se-rem legveis. Fazer passar uma men-sagem. Essa a astcia fundamen-tal que est no centro da invenoda escrita: a morte da imagem comorepresentao da realidade e sua uti-lizao exclusivamente pelo valorfontico ou de letra (Machado,1998, p. 140).

    O conceito de letra tem vriasacepes na teoria lacaniana, em al-guns momentos sendo praticamen-te identificado noo de signifi-cante e em outros afastando-se dela;ora o conceito aproximado da de-terminao simblica, ora o da sin-taxe, da textualidade, e ora da lgi-ca combinatria. Nesse sentido valeretomar a discusso feita por Ritvo(2000) acerca do conceito em psi-canlise, que diferente do concei-to no discurso acadmico. Segundoo autor, os conceitos vm resolver umproblema em determinada poca eacabam criando outro ou deixandoum resto de que outra concepo domesmo conceito vem tentar dar con-ta, pois os conceitos estruturam-seem funo de um ponto de impos-sibilidade, e o rigor psicanalticoconsistiria em apontar, em cadamomento, qual seria esse ponto deimpossibilidade.

    Dessa discusso podemos pen-sar que tambm o conceito de letrae sua articulao com o significanteseguem essa lgica, no sendo pos-svel estabelecermos uma evoluolinear e unvoca do conceito.

    Ritvo (2000) prope dois esta-tutos para a letra: o plo patemti-co, que est relacionado ao trao sig-nificante no corpo, e o plo mate-mtico, que deriva de matema e dizrespeito letra como ideal de trans-misso. No plo patemtico encon-tramos a oposio entre uma letrasignificante, letra inconsciente, re-lativa s formaes do inconscientee uma letra pulsional, que diz res-peito ao isso.

    Dessa forma, quando nos refe-rimos letra ocorre perguntar de queletra se trata. At o Seminrio IX, Aidentificao, a letra de que trataLacan est sempre referida ao signi-ficante, como elemento diferencialdo mesmo, diferente quanto ma-terialidade e estrutura. Milner(1996, p. 104) considera que a le-tra e significante so distintos noensino de Lacan, o significante con-sistiria em relao: Ele representapara e aquilo atravs do que issorepresenta; a letra mantm, decer-to, relaes com outras letras, masela no consiste somente em rela-es. Sendo apenas relao de dife-rena, o significante sem positivi-dade; mas a letra positiva em suaordem. A diferena significante sen-do anterior a toda qualidade, o sig-nificante sem qualidade, a letra qualificada (ela tem uma fisionomia,um suporte sensvel, um referente,etc.). O significante no idnticoa si, no tendo um si a que uma iden-

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    tidade possa lig-lo, mas a letra, no discurso em que se situa, idntica a si mesma. O significante sendo integralmente definidopor seu lugar sistmico, impossvel desloc-lo; mas possveldeslocar uma letra; assim, a operao literal por excelncia derivada permutao (testemunha a teoria dos quatro discursos). Pelamesma razo o significante no pode ser destrudo: ele no mxi-mo pode faltar em seu lugar; a letra com suas qualidades e iden-tidade pode ser rasurada, apagada, abolida (...). Sendo deslocvele empunhvel, a letra transmissvel; (...) um significante no setransmite e nada transmite: ele representa, no ponto das cadeiasem que se encontra um sujeito para outro significante. A posiode Milner, embora precisa, parece desconsiderar a evoluo doconceito na obra de Lacan, tomando as ltimas concepes desteacerca da letra, em detrimento de momentos em que toma a letrapor significante ou considera-a uma partcula deste ltimo.

    A diferena entre letra e significante enfatizada por Lacanna stima aula do Seminrio XVIII, De um discurso que no seria dosemblante, quando prope que no se confundam os dois concei-tos; entretanto, numa visita aos EUA em dezembro de 1975 afir-ma que o significante no fonema, letra.

    Ritvo (2000) esquematiza as formas que toma a letra noensino de Lacan: a) letra como fonema - A Instncia da Letra; b)letra como texto escrito; c) como partcula significante, comocarta, como envio - A carta roubada; d) essncia de significante,o diferenciando do signo. redutvel, em seu nvel mais sim-ples, ao trao - Seminrio IX, A identificao; e) limite, litoralentre saber e gozo - Seminrio XVIII, De um discurso que noseria do semblante -, quando afirma que o significante est nosimblico e a letra, no real; f ) letra algbrica constituinte dosmatemas, ideal de transmisso. Jogo de escritura - SeminrioXX, Mais ainda.

    A CONSTITUIO DO SUJEITO E DO SIGNIFICANTE

    A constituio do sujeito concomitante constituio dosignificante; alis, a possibilidade de esse sujeito se dizer em suasingularidade dada pelo seu engendramento na cadeia signifi-cante. Lacan prope, no Seminrio IX, A identificao, que a cons-tituio do significante ocorra em trs tempos: inicialmente h ainscrio de um trao, primeira marca recebida pelo sujeito (SI),seguida por seu apagamento ou rasura, que corresponderia ao queFreud prope como recalque, permanecendo inconsciente, e, porfim, um terceiro momento em que o sujeito pode se dizer a partir

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    da interpretao que faz das marcas que lhe foram inscritas (Fra-gelli, 2002).

    importante nesse caso fazer a distino entre rastro e sig-nificante; apesar de ambos afirmarem uma ausncia, o rastro,enquanto um primeiro nvel de substituio, ainda estabeleceuma relao de representao daquilo que no real sua origem; jo significante, como operador de linguagem, s pode remeter-sea outro significante em uma relao de representatividade, e, es-tando completamente esvaziado de sentido, no traz nenhumarelao com o objeto; significante e significado esto irremedia-velmente separados. O rastro seria, em seu carter evanescente, acondio para a existncia do significante, com seu apagamen-to, esvaziamento de sentido, que ganha estatuto de significante,e isso enraza esse ltimo no universo da escrita, no caso, repre-sentado pelo carter de impresso do rastro.

    Retomemos ento os tempos de constituio do sujeito e dosignificante:

    1o tempo: Do ponto de vista do significante, temos a inscri-o do trao e, do lado do sujeito, a formao e constituio daletra num tempo muito primitivo. Tomemos aqui a inscriomnemnica no beb da experincia de satisfao, a letra o ele-mento que foi considerado por Freud e isolado por lacan paratratar dessa singularidade do sujeito. o que, na trama da cons-tituio, marca a diferena mnima entre cada inscrio. o re-sultado do encontro da percepo com o que ser o sujeito, umacifra. O elemento mnimo de um enigma. Marca o tempo pri-meiro da instalao do significante, ofertando-se como suportematerial para que sobre ele a operao se desdobre (Fragelli,2002, p. 59).

    2o tempo: Trata-se do apagamento do trao para que se possaconstituir o significante, e essa operao realizada pelo recalqueoriginrio, impedindo que o trao tenha acesso conscincia, ins-tituindo S1, trao unrio, primeiro significante do sujeito. A partirdesse apagamento, tambm os significantes posteriores que poruma linha associativa estiverem ligados a S1 so recalcados; essessignificantes formam uma cadeia, iniciando a operao significan-te, imprimindo um texto ao inconsciente. O apagamento do tra-o faz uma marca, o S2 que se institui pelo mesmo movimentoque condenou S1 ao inconsciente. Assim ordenados, S1 - S2 estoligados, mas separados. A eles se juntaro outros significantes (S3,S4, Sn...), que montaro uma cadeia, e ento a operao signifi-cante poder se desenrolar (Fragelli, 2002, p. 62).

    3o tempo: o momento em que o sujeito desponta a partirda leitura das marcas anteriormente inscritas - e essa a condio

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    de sua constituio, dar uma signi-ficao prpria, interpretar suasmarcas no campo do Outro. O ope-rador dessa leitura seria o significan-te do Nome do Pai, aquele que con-firma a diviso do sujeito pela lin-guagem que submete o sujeito leisimblica, interditando o desejomaterno e possibilitando crianaum lugar diferente daquilo que fal-ta me. Essa interdio o que, aobarrar o gozo, articula a cadeia sig-nificante, e permite que as marcasdo Outro transformem-se em mar-cas prprias, para que o sujeito pos-sa se dizer.

    A partir da, podemos pensarque, se acessamos algumas leis defuncionamento do inconsciente, porque ele migrou do real para oregistro simblico: o significan-te que escava seu lugar no real sob aforma de letra, por meio do rastroapagado ou por meio do trao un-rio, sendo esses trs elementos a basedo funcionamento da escrita (Ma-chado, 1998, p. 193).

    O PRINCPIO DELEGIBILIDADE E ACLNICA DO LITERAL

    A ultrapassagem do real em di-reo ao simblico, condio para ofuncionamento do significante e,portanto, do sujeito e da cultura,est assentada na estrutura da escrita,na barra que se impe ao imagin-rio, que deve ser rasurado, para queo simblico instale-se como presen-a de uma ausncia. Lacan pdenos mostrar que a mesma imagem

    que cripta oferece a chave de suadecifrao sob a nica condio deser abordada como letra de uma es-crita no alfabtica (Machado,1998, p. 211).

    Bittencourt (2002) prope oabandono da lgica da compreen-so para se aceder ao registro da es-cuta literal; uma escuta desprendi-da de imagens figurativas. Buscaruma escuta literal implica no s umdesprendimento do imaginrio, mastambm numa relativizao do sim-blico a partir do corte que intro-duz a dimenso do real.

    Trata-se de uma clnica que -incidncia do real - subverte o ima-ginrio de uma clnica psicanalticada rememorao, de lacunas mn-micas que sero restitudas, porquetrabalha-se com a idia de que nose pode suturar tudo e porque noexiste reconstituio no sentido li-teral. uma clnica que subvertetambm a clnica do sentido. A cl-nica do literal no seria efeito decorte, enquanto um recurso da es-tratgia clnica? Corte que escava oliteral pela via da letra, instituindouma quebra na paixo pelo sentido.O sentido a paixo em responder:O que quer dizer? O simblico oque permite fazer sentido. A paixose quebra para que o inconscientecomparea em ato, abrindo a possi-bilidade de o sujeito do inconscien-te encontrar uma via por onde pos-sa meter as caras (Bittencourt,2002, p. 111).

    A clnica do literal empresta deLacan suas ltimas acepes acercado conceito de letra, aqui tomadacomo distinta do significante, comoaquela que corta o significante e leva

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    o sujeito do territrio do simblicopara o litoral do real. O corte pro-movido pela letra num significanteno seria a construo dessa frontei-ra que faz margem entre o simbli-co e o real, e que Lacan tenta nome-ar Lituraterre? (Bittencourt, 2002,p. 110).

    A escuta literal funda-se no cortecomo deciframento em conformida-de com o tempo lgico; a literalida-de aponta para um entrecruzamen-to de sentidos, lanando o sujeitopara o desconhecido. Fazendo bor-da ao real, oferece-se como suportepara a nomeao de significantes.

    Enquanto suporte do significan-te, a letra traz seus elementos mate-riais: o fnico e o grfico. O fnicoconstitui-se a partir da polissemiada lngua orientada pelo som e suasassonncias, dissonncias e homofo-nias. O grfico por sua vez regidopela escrita, o que se escreve, seregistra (aquilo que insiste em seescrever, como o sintoma).

    Ao simblico falta um signifi-cante que diga da coisa: Que troo este? A letra escreve essa falta eregistra o real, o registro do impos-svel: Eu sou cpia de uma ausn-cia (...) O literal seria um registroque sonha em encostar na coisa(Bittencourt, 2002, p. 116)

    A teoria do significante e os de-senvolvimentos acerca do conceitode letra representam grandes avan-os de Lacan no sentido de tirar apsicanlise do registro imaginrio,e isso se d a partir do momentoem que rompe com o paradigma darepresentao - o real no repre-sentado nem por imagens, nem porpalavras, e estamos fadados a con-

    tinuar tentando preencher esse bu-raco, essa falta estrutural no Ou-tro, com palavras. O princpio or-ganizador do significante a legi-bilidade, e no a representao.Para compreendermos a interdioda funo de representao dasimagens, podemos tomar o exem-plo do rbus proposto por Freudna Interpretao dos sonhos, em queas imagens so tomadas por seu va-lor associativo, e no no sentido derepresentar o que imaginariamentesugerem - a est sua condio delegibilidade, de letra.

    A escrita inconsciente ao mes-mo tempo meio de recalcamento epossilidade de revelao, ao mesmotempo que cripta o prprio ins-trumento de decifrao, e isso temalgumas conseqncias clnicas. Ofato de as formaes do inconscien-te, assim como a escrita, terem a le-gibilidade como caracterstica co-mum faz da interpretao analticaum processo de deciframento e lei-tura - literal, eu diria.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    Arriv, M. (1994). Lingstica e psicanlise.Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan e outros.So Paulo, SP: Edusp.

    Bittencourt, E. (2002). Da letra e da leiturana clnica do literal. Revista Literal - Le-tra e Escrita na Clnica Psicanaltica, no 5.

    Fragelli, I. K. Z. (2002). A relao entre escritaalfabtica e escrita inconsciente: Um insatru-mento de trabalho na alfabetiza;co decrian;cas psicticas. Dissertao de Mestra-do, Instituto de Psicologia, Universidadede So Paulo, So Paulo, SP.

    Lacan, J. (1998). Escritos (1966-98). Rio deJaneiro, RJ: Jorge Zahar.

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    Recebido em maio/2003.Aceito em julho/2003.

    Machado, A. M. N. (1998). Presena e impli-caes da escrita na obra de Jacques Lacan.Iju, RS: Ed. Uniju.

    Milner, J.-C. (1996). A obra clara. Lacan, acincia, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jor-ge Zahar.

    Ritvo, J. B. (2000). O conceito de letra naobra de Lacan. In A prtica da letra. Rio deJaneiro, RJ: Escola da Letra Freudiana.

    NOTA

    1 O escrito permanece, as palavras voam.