jb v.frades

5
O Conjunto Monumental e Artístico de Vilar de Frades Joaquim Vinhas Conjunto patrimonial de Vilar de Frades: classificações, abandonos e intervenções Vilar de Frades (S. João de Areia de Vilar, Barcelos), volvido quase um século de pontuais intervenções e sobretudo de abandonos, pode hoje orgulhar-se do seu valioso património, que em apreciável medida se deve à notável intervenção de conservação e restauro levada a cabo a partir da década de 1990 (primeiro pelo IPPAR e depois pela DRCN), intervenção que, diga-se de passagem, está longe de estar concluída. Esperemos que não venha o espantalho da crise inviabilizar a conclusão dos trabalhos! O conjunto patrimonial e artístico de Vilar de Frades, constituído pela igreja, claustro e ala nascente do extinto convento dos loios, foi interpretado, e bem, como imóvel que ultrapassa o interesse local e regional, pelo que foi elevado à categoria de monumento nacional em junho de 1910; enquanto o chafariz do antigo Terreiro dos Cabedais, atual pátio da Casa de Saúde pertencente à Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, veio a receber a mesma classificação em 1949. Este conjunto monumental foi recentemente reclassificado e viu alargada a sua classificação a todos os espaços da antiga cerca conventual e outras áreas adjacentes, galgando o Cávado e atingido Manhente, pelo Decreto n.º 7/2013 de 7 de maio. De fora ficou, lamentavelmente, o Santuário de Nossa Senhora do Socorro! Lapso que poderá muito bem vir a ser resolvido, caso os responsáveis pela classificação assim o entendam, pois é sabida a ligação umbilical da capela do Socorro ao convento de Vilar de Frades, que foi ereta a mando dos cónegos loios em 1619- 1620, na sequência de um temporal devastador, então conhecido como a tormenta de S. Sebastião. (Sobre as questões da classificação, quem classifica o quê, que critérios, que responsabilidades ou corresponsabilidades, com que finalidades, são tudo aspetos importantes para os quais não me parecem os poderes públicos estarem devidamente sensibilizados... Há muito a aprendermos sobre este vasto domínio!)

Upload: joaquim-vinhas

Post on 04-Aug-2015

130 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

O Conjunto Monumental e Artístico de Vilar de Frades

Joaquim Vinhas

Conjunto patrimonial de Vilar de Frades: classificações, abandonos e intervenções

Vilar de Frades (S. João de Areia de Vilar, Barcelos), volvido quase um século de pontuais intervenções e sobretudo de

abandonos, pode hoje orgulhar-se do seu valioso património, que em apreciável medida se deve à notável intervenção de

conservação e restauro levada a cabo a partir da década de 1990 (primeiro pelo IPPAR e depois pela DRCN), intervenção

que, diga-se de passagem, está longe de estar concluída. Esperemos que não venha o espantalho da crise inviabilizar a

conclusão dos trabalhos!

O conjunto patrimonial e artístico de Vilar de Frades, constituído

pela igreja, claustro e ala nascente do extinto convento dos

loios, foi interpretado, e bem, como imóvel que ultrapassa o

interesse local e regional, pelo que foi elevado à categoria de

monumento nacional em junho de 1910; enquanto o chafariz do

antigo Terreiro dos Cabedais, atual pátio da Casa de Saúde

pertencente à Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, veio a

receber a mesma classificação em 1949.

Este conjunto monumental foi recentemente reclassificado e viu

alargada a sua classificação a todos os espaços da antiga cerca

conventual e outras áreas adjacentes, galgando o Cávado e

atingido Manhente, pelo Decreto n.º 7/2013 de 7 de maio. De

fora ficou, lamentavelmente, o Santuário de Nossa Senhora do

Socorro!

Lapso que poderá muito bem vir a ser resolvido, caso os responsáveis pela classificação assim o entendam, pois é sabida a

ligação umbilical da capela do Socorro ao convento de Vilar de Frades, que foi ereta a mando dos cónegos loios em 1619-

1620, na sequência de um temporal devastador, então conhecido como a tormenta de S. Sebastião.

(Sobre as questões da classificação, quem classifica o quê, que critérios, que responsabilidades ou corresponsabilidades,

com que finalidades, são tudo aspetos importantes para os quais não me parecem os poderes públicos estarem

devidamente sensibilizados... Há muito a aprendermos sobre este vasto domínio!)

Legado histórico

Aqui, junto ao Cávado, na sua margem esquerda, Vilar de Frades é um espaço cultural privilegiado, porquanto tem para

mostrar ao visitante um valiosíssimo património histórico e artístico, edificado no sítio que os bons homens de Vilar de

Frades escolheram, em 1425, para a fundação de uma ordem religiosa de novo tipo: de carater secular e apostólico, adepta

dos princípios chãos do Evangelho, em ordem a uma reforma que contagiasse todo o clero que no geral levada uma vida

pecaminosa, indecente, devassa, segundo as palavras do seu fundador, o mestre João Vicente e seus colaboradores, que se

irmanaram no intuito de operar uma reforma profunda no clero.

Recorde-se que tal propósito reformista, da década de 1420, ocorria mais de um século antes do Concílio de Trento (1545-

1563), onde a Igreja, face à ameaça Protestante e aos clamores reformistas vindos do seu próprio seio, decidiu finalmente

fazer uma Reforma Católica, também conhecida como Contra Reforma por se erguer contra a chamada Reforma

Protestante.

A novíssima Congregação dos Cónegos Seculares de S. Salvador de Vilar de Frades, designação adotada entre 1425/31 e

1461, data esta em que, por instância do poder político junto da Santa Sé, a sede dos cónegos seculares é transferida de

Barcelos para Lisboa (Santo Elói), mudando a sua designação para Congregação de Cónegos Seculares de S. João

Evangelista, isto porque, dizem os cronistas do século XVII, a rainha D. Isabel, mulher de D. Afonso V, teria muita afeição

por esta figura tão próxima de Jesus Cristo.

Antes de avançarmos, convém relembrar as motivações que levaram o mestre João Vicente a liderar um projeto de

instituto religioso pioneiro em Portugal.

O século XIV fora marcado pela trilogia trágica da fome, da peste e da

guerra, criando-se condições para uma crise de consciências e de

mentalidades, geradora de um enorme problema dentro da Igreja Católica:

a falta de credibilidade de um clero que não era exemplar, quer porque

muitos dos seus membros eram ignorantes, quer porque a prática

quotidiana evidenciada desprezo pelos valores do humanismo e da

solidariedade, presentes em vários textos que constituíram o Evangelho

onde a vida de Cristo se plasmou, indissociável dos mais fracos e dos

oprimidos.

Foi pois um clamor de reforma, um grito vindo de dentro da Igreja, que

acompanhou o processo da instauração de uma nova ordem religiosa, que

desde o início se inspirou na de S. Jorge de Alga, Veneza, a quem S.

Lourenço Justiniano tinha dado alguns anos antes um conjunto de princípios

e um hábito azul, uns e outro adotados pelos bons homens de Vilar de

Frades e pelos cónegos loios ou azuis, em geral.

O ímpeto reformista (antes da reforma ter início no topo da hierarquia), cravado no solo de Vilar de Frades, rapidamente se

espalhou pelas redondezas, levando mesmo à sua implantação no território nacional, com as casas conventuais que foram

fundadas em Lisboa e no Porto, em Lamego e em Vila da Feira, em Coimbra e em Évora, somando ao todo 9 institutos,

vindo (para além dos princípios religiosos enunciados e da participação em reformas e ainda na tentativa de evangelização

africana) a constituir um autêntico potentado devido à sua dimensão económica e social, política e religiosa... Só o

Mestre João Vicente, médico da corte e lente

universitário, fundador da Congregação dos

Cónegos Seculares de S. Salvador de Vilar de

Frades, em 1425. Mais tarde veio a ser bispo de

Lamego e de Viseu.

convento de Vilar de Frades chega a ter propriedades em 126 freguesias, em Barcelos e em regiões circunvizinhas. Mas os

cónegos de Vilar de Frades granjearam prestígio e influências junto da arquidiocese de Braga (apesar dos conflitos com

alguns arcebispos, sobretudo com D. Fernando da Guerra, no século XV, devido ao seu desejo de autonomia face á Sé

bracarense), conseguindo ver-lhes anexadas 13 igrejas em escassas dezenas de anos.

Deve ainda acrescentar-se que o seu carater apostólico, as suas razões espirituais e temporais e as suas súplicas atraíram

apoios da Santa Sé, para além dos inequívocos privilégios dos monarcas e do apoio do conde de Barcelos e duque de

Bragança, senhor de um vasto poder territorial que por vezes conflituava com o senhorio da Cúria de Braga.

Mas antes de mais, a instituição que, a partir de 1461, passa a designar-se Congregação dos Cónegos Seculares de S. João

Evangelista, contava com os réditos dos fregueses, fossem as esmolas e rendas do povo comum e anónimo, fossem as

capelas de missas encomendadas para a salvação das almas e/ou os legados pios de famílias principais que, para glória no

céu, fizeram doações e administraram capelas privativas, como foram os casos da família Pereira ligada a D. Leonor de

Lemos, a família Sousa ligada a D. Teresa de Mendonça, a família Vilas Boas e os senhores da antiga honra de Fralães.

Legado patrimonial: arquitetónico e artístico

Fruto da memória histórica que se conserva em Vilar de Frades, e sobretudo pela beleza e complexidade de algumas das

suas obras emblemáticas, em particular a capela-mor, o transepto e a portada do período manuelino - obras realizadas

sensivelmente em 1510-1520, pagas por D. Diogo de Sousa (exceto o pórtico e as capelas do transepto) que pretenderia

patrocinar todas as obras da igreja caso os cónegos lhe tivessem esculpido as armas dos Sousas no arco-cruzeiro. Dizem os

cronistas que este prelado humanista, que protagonizou importantes reformas na cidade de Braga e na arquidiocese,

pretenderia mesmo edificar o seu sepulcro na capela-mor da igreja de Vilar de Frades.

Surpreendido, D. Diogo de Sousa chegou a Vilar de Frades e deparou com as armas da Congregação Evangelista,

exatamente no arco-cruzeiro, lugar onde esperava contemplar o seu brasão como sinal do reconhecimento e imortalização

do seu nome. Descanse em paz D. Diogo, pois os cronistas encarregaram-se de imortalizar o seu mecenato.

Estamos em crer que o projeto da igreja gizado

pelos padres de Vilar, deve ter sido fornecido por D.

Diogo de Sousa, que terá encomendado a planta ao

arquiteto biscainho João de Castilho (que se

encontrava em 1509 a trabalhar na Sé de Braga,

exatamente onde introduziu a famosa abóbada de

perfil rebaixado na capela-mor, que logo a seguir foi

aplicada em Vilar de Frades e mais tarde na igreja

dos Jerónimos, entre outras), embora o cronista de

1658 não mencione o seu nome e, antes pelo

contrário, afirma várias vezes que o autor da traça

foi o mestre pedreiro de Guimarães, João Lopes-o-

Velho.

Numa tentativa de superar os problemas da falta de financiamento do projeto, já que D. Diogo de Sousa deixou de pagar as

obras, os padres de Vilar mandaram fazer uma nave muito mais modesta que a prevista, com paredes delgadas e sem a

robustez necessária para resistir aos séculos, com uma cobertura simples e de madeira. Todavia, para a entrada da igreja

fizeram questão de mandar edificar um pórtico que igualasse o estilo patenteado na capela-mor, no cruzeiro e nas capelas

colaterais, estas últimas financiadas por duas sobrinhas do referido arcebispo, D. Leonor de Lemos e D. Teresa de

Mendonça.

Um século depois, na sequência da tormenta de S. Sebastião (uma tempestade que se abateu no país e que atingiu com

gravidade a estrutura débil de Vilar de Frades), os cónegos empreenderam um vasto conjunto de obras que levou à ereção

de novos espaços, que, ainda que com inúmeras obras posteriores, definiram o conjunto abrangente que agora se encontra

classificado como monumento nacional e área de proteção especial: a partir de 1619 começam as obras no vasto conjunto

conventual, localizado a poente, obras que ficaram incompletas até à última década do século XVII; a partir de novembro

de 1619 edificam a Capela de Nossa Senhora do Socorro, que foi inaugurada em agosto de 1620, no dia dedicado a Nossa

Senhora das Neves, dando origem a uma romaria anual; e empreendem o ambicioso projeto de reconstruir a nave da

igreja, incluindo a área do coro, coroada com uma abóbada monumental, que harmonizam com as obras do período

manuelino.

O século XVIII assistiu ao triunfo do barroco na igreja, sendo contratados artistas das cidades de Lisboa, do Porto, de Braga,

entre outras, para a realização de obras de talha dourada e policromada - o retábulo-mor e as capelas colaterais (por

contratos de 1696 e 1698) das mãos de António Gomes e Domingos Nunes, do Porto e do transepto e a generalidade das

capelas laterias que ladeiam a nave única -, de pinturas com ricas molduras de talha, de painéis azulejares que começam

nas paredes laterias da capela-mor (cerca de 1706-1708) e se estendem por duas capelas laterais (1736 e 1742), neste caso

assinados pelos azulejadores de Lisboa Bartolomeu Antunes e Nicolau de Freitas.

Na segunda metade do século XVIII e nos inícios do século XIX, importantes obras viriam a realizar-se em Vilar de Frades,

dentro do estilo neoclássico (de que a sacristia é um belo exemplo), obras que se estenderam à área do claustro, onde se

encontrava o chafariz setecentista (que na década de 1960 foi transferido para a cidade de Barcelos... Sou de opinião que

este chafariz, que está no Largo da Porta Nova, deveria regressar ao seu lugar de origem), mas também à fachada da igreja,

cujo risco deveria prever uma fachada revivalista de gosto românico-gótico, provavelmente para melhor enquadrar o

pórtico manuelino, que ainda hoje podemos observar.

A torre sul, inacabada, mostra a reutilização de uma arcada historiada do período românico e outras pedras que

pretendiam fazer reviver o passado glorioso do antigo mosteiro beneditino (que ali teria sido fundado em 566 por S.

Martinho de Dume e que, com interregnos, viria a perdurar até 1420). E, segundo o cónego Aguiar Barreiros, os anciãos das

redondezas, pais de seus pais, diziam em pleno século XIX que era intenção dos padres de Vilar de Frades derrubar a torre

norte e, no sítio dela, construírem uma torre que igualasse a que andavam a construir quando, lamentavelmente, as obras

foram definitivamente interrompidas. Decorriam pois as obras no claustro e na fachada principal, quando as invasões

francesas vieram perturbar a vida da nação e das gentes de Areias de Vilar; depois vieram os ingleses para nos libertar dos

franceses, mas criaram um clima de medo e repressão brutal até que eclodiu a revolução de 24 de agosto de 1820.

Com o liberalismo, repleto de episódios contraditórios e de uma devastadora guerra civil, particularmente violenta entre

1832-1834, de que saiu vencedor a ala moderada liderada por D. Pedro. No ano da vitória, 1834, devido à necessidade de

reformas e não menos porque largos setores da Igreja estiveram com D. Miguel, o liberalismo monárquico decretou a

extinção das ordens religiosas. Silenciaram-se as vozes dos cónegos de Vilar de Fardes... e o conjunto agora classificado

como monumento nacional entrou em declínio por mais de 150 anos. Hoje, vale a pena visitar ou revisitar um dos sítios

mais interessantes de que Barcelos se pode orgulhar e que se encontra na rede do turismo cultural e na rota do património

internacional.

Painéis de azulejo pintados a azul e branco, que terão revestido as paredes laterais da capela-mor, de provável

assentamento em 1706-1707, por Dionísio António. Representam figuras que colaboraram ativamente com o Mestre

João Vicente na fundação da nova ordem religiosa, incluindo S. Lourenço Justiniano e o Papa Gregório II.