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Itinerários terapeuticos

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  • Interface - Comunicao, Sade, EducaoISSN: [email protected] Estadual Paulista Jlio deMesquita FilhoBrasil

    Pinho, Paula Andra; Gomes Pereira, Pedro PauloItinerrios teraputicos: trajetrias entrecruzadas na busca por cuidados

    Interface - Comunicao, Sade, Educao, vol. 16, nm. 41, enero-junio, 2012, pp. 435-447Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho

    So Paulo, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=180122933016

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    Sistema de Informao CientficaRede de Revistas Cientficas da Amrica Latina, Caribe , Espanha e Portugal

    Projeto acadmico sem fins lucrativos desenvolvido no mbito da iniciativa Acesso Aberto

  • Itinerrios teraputicos:trajetrias entrecruzadas na busca por cuidados*

    Paula Andra Pinho1

    Pedro Paulo Gomes Pereira2

    PINHO, P.A.; PEREIRA, P.P.G. Therapeutic itineraries: paths crossed in the search for care.Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.41, p.435-47, abr./jun. 2012.

    The general purpose of this paper is topresent the therapeutic itineraries of HIV-positive people. These courses, consistingof unusual blends and compositions,reveal the complex ways in fighting HIV/AIDS taken by people who undergotherapies trying to restore or preservehealth. Admitting the existence ofnumerous available treatments, weanalyze the itineraries of therapies knownas being of the religious type in theirrelation to the biomedical model.Ethnography revealed that theinterlocutors do not separate the religiousand the biomedical therapy on differentlevels. What stood out was thesimultaneous interaction of the twosolutions employed for the samepurpose: health. It was possible toobserve a therapeutic continuum, i.e., theoptions are not isolated; rather, theyappear as consecutive parts that flowwithout clearly demarcated boundaries.

    Keywords: Therapeutic itineraries. Aids.Biomedicine. Religion.

    A proposta geral deste texto apresentaros itinerrios teraputicos percorridos porsujeitos soropositivos. Esses percursos,constitudos por inusitadas mesclas ecomposies, revelam caminhoscomplexos no enfrentamento do HIV/aids, de pessoas que transitam porterapias numa tentativa derestabelecerem ou preservarem a sade.Admitindo a existncia de numerosasterapias disponveis, nos empenhamosem analisar os itinerrios de terapias porelas denominadas de tipo religiosa, nasua relao com o modelo biomdico. Aetnografia revelou que as interlocutorasno separam a terapia biomdica dareligiosa em planos distintos. O quesobressaa era a interao concomitantedas duas solues agenciadas com omesmo propsito: a sade. Foi possvelobservar um continuum teraputico, ouseja, as opes no se isolam: antes,apresentam-se como partes consecutivasque fluem sem limites claramentedelimitados.

    Palavras-chave: Iitinerrios teraputicos.Aids. Biomedicina. Religio.

    * Elaborado com base emPinho (2010), pesquisafinanciada pela Capes.

    1 Programa de SadeColetiva, Departamento

    de Medicina Preventiva,Universidade Federal de

    So Paulo (Unifesp).R. Borges Lagoa, 1341,2 andar. So Paulo, SP,

    Brasil. [email protected]

    2 Departamento deMedicina Preventiva.

    v.16, n.41, p.435-47, abr./jun. 2012 435COMUNICAO SADE EDUCAO

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    A proposta geral deste texto apresentar os itinerrios teraputicos de usurios soropositivos doCentro de Referncia e Treinamento em DST/Aids (CRT) da cidade de So Paulo. A inteno seguir asdiferentes trajetrias de tratamento percorridas pelos sujeitos em busca de cuidados com a sade. Essespercursos, constitudos por inusitadas mesclas e composies, revelam caminhos complexos noenfrentamento do HIV/aids, narrando uma histria de pessoas que transitam por terapias numa tentativade restabelecerem ou preservarem a sade.

    O HIV/aids um dos mais graves problemas de sade pblica mundial, e, na atualidade, existemmais de trinta milhes de pessoas vivendo com a infeco viral. As questes relativas epidemia semodificaram ao longo das trs dcadas que passaram bem como transformaes socioculturais,bioticas, polticas e econmicas que ocorreram em decorrncia da molstia. Contudo, subsistemnumerosas lacunas e indagaes sobre a enfermidade, de forma que estudos junto queles que avivenciam carecem ser atualizados. (Para uma literatura a respeito da temtica, consultar Pereira, 2008,2004; Bastos, 2006; Trechler, 1999; Parker, 1997; Loyola, 1994; Paiva, 1992; Sontag, 1989).

    Diversos autores vm alertando que, embora a biomedicina detenha o monoplio legitimado dassolues curativas referentes s questes de enfermidade nas sociedades ocidentais contemporneas,mesmo nelas, no constitui a nica referncia para se pensarem as terapias e as formas de lidar com adoena (Luz, 2005; Laplantine, 2004; Camargo Jr., 2003; Gmes, 2003). Admitindo a existncia dessasnumerosas terapias disponveis, nos empenhamos em analisar os itinerrios de terapias denominadas,pelos interlocutores, como religiosas na sua relao com o modelo biomdico. Religio e sade tmuma ligao histrica, e curas fsicas e psquicas no raramente so vinculadas a formas de religiosidade(Berger, 2001, p.19). Ressalvamos que o emprego da expresso terapias religiosas no se trata de umaopo terica escolhida a priori e distante de nossa experincia em campo. Sua utilizao se justifica dadaa insistncia de nossos interlocutores em, durante a etnografia, contar-nos sobre os tratamentos ou curasreligiosos, os quais se mostraram prioritrios entre os demais recursos teraputicos existentes.

    Na etnografia realizada foi possvel verificar a complexidade das trajetrias, nas quais os usuriospesquisados recorrem aos tratamentos biomdicos e religiosos para lidarem com as dificuldadesimpostas pela infeco viral. Buscamos compreender a maneira pela qual nossos interlocutores aliam ostratamentos biomdicos aos de carter religioso, efetuando ntimas relaes entre sade/doena ereligiosidade. Seguindo os itinerrios teraputicos criados, procuramos averiguar como esses sujeitosarticulam e vivenciam as terapias.

    Durante o trabalho de campo, acabamos por nos aproximar mais efetivamente de 15 usurios, quese tornaram nossos interlocutores principais. Pudemos acompanh-los por sete meses e conseguimosentrevist-los em diversas ocasies. Os dados coletados se deram mediante observaes cotidianasfeitas na dinmica do CRT, anotaes no dirio de campo e entrevistas gravadas e transcritas. Cabe aquia ressalva: essas tcnicas oficiais de pesquisa so importantes, contudo, como sustenta Peirano(1992), a etnografia no se resume a elas. As experincias vivenciadas, os insucessos, os insights, asmatizes e contornos dos itinerrios teraputicos, enfim, tudo passvel de ser apreendido pelo olharantropolgico incorporado reflexo.

    A opo pela investigao etnogrfica deveu-se, em parte, por sua relevncia e atualidade naspesquisas em sade, sobretudo a partir da dcada de 1990 (Fontoura, 2007; Almeida Filho, 2003;Minayo, Minayo-Gomz, 2003; Parker, Ehrhardt, 2001; Vctora, Knauth Hassen, 2001; Minayo, 2000;Parker e Ehrhardt, 2001). Mesmo distante de certo tipo de rigor cientfico da metodologia quantitativaadvinda das cincias naturais cujas principais caractersticas so: a objetividade, neutralidade,tratamento estatstico dos dados, hipteses apriorsticas etc. , a etnografia tem se mostrado deveraspertinente na elaborao de diagnsticos concernentes sade (a respeito das possibilidades e,tambm, limites do emprego da etnografia nas pesquisas em sade: Caprara, Landim, 2008).

    Notadamente, as abordagens da Sade Coletiva tm procurado compreender mais amplamente aexperincia da enfermidade, buscando apreender os sentidos individuais, familiares e culturais doadoecer. O trabalho de campo etnogrfico, ao passo que sistematiza o observar, minudencia e descreveos estilos de vida e padres particulares de cultura, serve aos propsitos de lidar com um sujeito menosgenrico, pois, afinal, Talvez esta seja a condio mesma da pesquisa etnogrfica: cada caso, um caso(Peirano, 1992, p.14).

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    De maneira a elucidarmos os itinerrios teraputicos aqui seguidos,organizamos o texto da seguinte forma: em um primeiro instante, apresentamosnosso local de pesquisa, o Ambulatrio de HIV/aids do CRT stio privilegiado daetnografia e local onde conhecemos os sujeitos do estudo. Em seguida, versamossobre alguns conceitos de itinerrios teraputicos e apresentamos as interlocutorasescolhidas para compor este texto, que aqui chamaremos de Helena e Dulce3.Neste momento da explanao, direcionando nosso olhar para seus itinerrios,pontuamos algumas situaes vividas com a soropositividade nas quais elaspromoveram o encontro dos tratamentos religiosos e biomdicos. Analisando aconstruo de suas trajetrias, enfatizamos a interpenetrabilidade das duassolues contempladas, de forma a mant-las num fluxo contnuo no qual no hfronteiras claramente delimitadas que separam os usos de uma e de outra. Aofinal, tecemos algumas consideraes a respeito do que foi exposto, sempretenses conclusivas, mas refletindo um pouco sobre os itinerrios percorridos.

    Centro de Referncia e Treinamento em DST/aids

    Localizado no bairro Vila Mariana da capital paulista, o Centro de Referncia eTreinamento em DST/aids um servio pblico ambulatorial e hospitalar mantidocom recursos do Sistema nico de Sade (SUS). Trata-se do maior CRT de SoPaulo e do pas, sendo unidade de referncia normativa, avaliativa e decoordenao do Programa Estadual DST/Aids (PE) para preveno, diagnstico,controle e tratamento de doenas sexualmente transmissveis. Funciona no local oCTA Centro de Testagem e Aconselhamento , responsvel pela realizaogratuita e sigilosa dos testes de HIV e sfilis. Alm disso, a instituio modelar aoPrograma Nacional de DST/aids do Ministrio da Sade.

    Conjugadas responsabilidade de coordenao do PE, somam-se as atividadesdo CRT: elaborao e implantao de normas referentes s DSTs/aids para o SUS;criao de propostas e polticas pblicas preventivas; desenvolvimento deprogramas de formao e aperfeioamento de profissionais; aes de vigilnciaepidemiolgica e controle das DSTs/aids; assistncia mdico-hospitalar,ambulatorial e domiciliar aos pacientes; realizao e apoio de pesquisas cientficasnesse campo de atuao. Alm desses servios, o CRT promove campanhas,palestras e cursos para esclarecimento de dvidas e disponibiliza uma rede desolidariedade nos grupos de apoio, como o Grupo de Adeso, o Grupo deReduo de Danos e o Servio Ecumnico.

    A triagem e a admisso de novos usurios na instituio so feitas no servio deacolhimento. L estabelecido um primeiro contato com o paciente, no qualprofissionais do servio social procuram conhec-lo melhor e avaliar suasdemandas mais urgentes. nesse momento que a instituio e seus servios soapresentados e as primeiras dvidas esclarecidas. Ao final desta avaliao, opaciente ir marcar sua primeira consulta ambulatorial, realizada por uma equipemultiprofissional composta por infectologista, psiclogo, psiquiatra e assistentesocial. Esta equipe dever acompanh-lo ao longo de todo seu percursoteraputico e, quando possvel, ser formada sempre pelos mesmos profissionais.

    Adentrando o prdio h, primeira vista, um balco amarelo no qualrecepcionistas, com afazeres mltiplos, recebem grande quantidade detranseuntes. Prximo ao balco funciona o Pronto Atendimento doravante PA ,que recebe cerca de oitocentos pacientes ao ms. O PA, alm do servio deacolhimento j descrito, possui uma equipe de profissionais de sade de plantoque atende aqueles que possuem uma demanda clnica de urgncia bemcomum em razo das doenas oportunistas a que esto submetidos os

    3 Embora a discusso sobregnero seja bastante

    pertinente temtica daaids posto que, em um

    primeiro momento, ovrus acometeu

    homossexuais masculinos etravestis e,

    posteriormente, atingiutambm mulheres e

    crianas (processo queficou conhecido,

    respectivamente, comofeminizao e transmisso

    vertical da epidemia) ,no abordaremos aqui a

    questo, dada ainsuficincia de espaopara tratar de assunto

    polmico e complexo.Trabalhos a respeito:

    Passador (2009), Takyi(2003) e Terto Jr. (2002).

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    soropositivos. No mesmo corredor do PA situa-se a farmcia, onde os pacientes, com suas receitasmdicas, retiram mensal e gratuitamente sua medicao.

    Avanando nesse corredor h uma rampa que conduz ao Ambulatrio de HIV/aids. L sorealizados, aproximadamente, quatro mil atendimentos ao ms e, da totalidade de 70.277 usuriosmatriculados desde a implantao do CRT em 1995, 32.290 (46%) correspondem a pacientesacompanhados no local.

    Ao longo do espao ambulatorial, camisinhas e lubrificantes ficam disponveis e os usurios podem eso encorajados a peg-los sem limite de quantidade. Os pacientes tambm dispem de gua, caf elanche para consumo, alm de dois televisores, livros, revistas e panfletos informativos para distraodurante a espera pela consulta. A despeito desses passatempos, a maioria dos pacientes prefereconversar enquanto aguarda. No mais das vezes, o assunto norteador era a aids e episdios a elarelacionados: a descrio dos efeitos colaterais e as receitas pessoais para evit-los; as simpatias epromessas feitas almejando resultados de exames satisfatrios; o resultados desses exames; adificuldade de se manter um trabalho assalariado ou de viver com uma aposentadoria de valor irrisrio; omedo das doenas oportunistas.

    No perodo da etnografia, somados ao quadro de trinta infectologistas, havia mais quarenta e oitoespecialistas: dermatologistas, oftalmologistas, otorrinolaringologistas, hematologistas, cardiologistas,endocrinologistas, neurologistas, ortopedistas, urologistas, proctologistas, ginecologistas, um cirurgio;um acupunturista, nutricionistas, uma fonoaudiloga, um profissional que lida com tuberculose, um quetrata a lipodistrofia e outro que realiza o acompanhamento de mulheres grvidas durante o pr-natal. Narea da Sade Mental, havia psiquiatras, psiclogas e assistentes sociais responsveis pelosatendimentos.

    Encontramos os sujeitos da pesquisa nesse fluxo teraputico do CRT: consulta com o infectologista mdico principal do tratamento , seguida da coleta de exames, retorno mdico e, quando necessrio,os encaminhamentos para os especialistas responsveis por cada rea mdica. Discorreremos, a seguir,sobre itinerrios teraputicos, mais amide os itinerrios em que esto inseridas as duas interlocutorasque esse texto pormenoriza: Helena e Dulce.

    A construo dos itinerrios

    No Brasil, os estudos sobre itinerrios teraputicos so recentes: a bibliografia que se avoluma sobreo tema data, sobretudo, da ltima dcada. Ainda h uma persistente opo por descrever os itinerriosde maneira a pens-los como relacionados ao trnsito de sujeitos pelos aparelhos oficiais de sade hospitais, UBSs etc. O itinerrio, nessa perspectiva, considerado como um perambular de indivduospelas instituies de sade. Sob esse olhar ainda que, adiantamos, tais abordagens sejam interessantese importantes para, por exemplo, a elaborao de polticas pblicas , o itinerrio circunscrito aosservios de sade, excluindo-se partes significativas dos caminhos seguidos (como veremos adiante, asopes podem variar e se multiplicar sem conferir qualquer preponderncia s solues desse setor).

    Existe, nessa acepo, a pressuposio de que os itinerrios teraputicos gravitam em torno do eixobiomdico. Enxerga-se, nesse caso, apenas parte de uma travessia que - esperamos demonstrar -muito maior e mais complexa. Compreender o itinerrio de forma parcial, ou somente pelo prisma dovagar por instncias mdicos-hospitalares, acaba por indicar uma relao de exclusividade entre doena/cura e biomedicina. No entanto, essa no afigura ser a trajetria de nossos interlocutores, cujositinerrios parecem, mesmo, relativizar a prpria biomedicina.

    Na literatura internacional, o nome de John Janzen tem sido proeminente em questes de sade,doena e cura na frica desde 1960. O autor buscou uma compreenso contextual e holstica dasabordagens de doena e cura, combinando terapias africanas quelas procedentes da biomedicinaocidental, sendo pioneira sua discusso sobre itinerrios (Janzen 1992, 1978).

    Outra importante contribuio aos estudos de itinerrios teraputicos a reflexo socioantropolgicade Artur Kleinman (1980) sobre as condutas para tratar o processo aflitivo. Mediante o conceito demodelos explicativos, o autor estabelece a relao entre o contexto cultural e a ao singularizada decada sujeito na construo de seu itinerrio de cura. Kleinman tenta explicar a doena e o tratamento

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    tendo em vista a elaborao do significado pessoal e social da experincia da enfermidade. Essesignificado orientaria a escolha entre as terapias existentes, mas, no obstante a deciso do tratamentoser pessoal, ela carece das explicaes e conjuntura culturalmente admitidas pelo doente e por seugrupo. Outros trabalhos estrangeiros que abordaram o tema so os de Martinez (2006), Csordas eKleinman (1990) e Csordas (1988).

    No Brasil, Alves e Souza (1999) entendem por itinerrios teraputicos o conjunto de planos,estratgias e atitudes humanas constitudo pela juno de aes distintas, as quais formam uma unidadearticulada apta a criar significaes. Sustentam os autores, ainda, que as terapias escolhidas pautam-seem crenas e receitas prticas compartilhadas e contradas no decorrer de uma trajetria biogrficasingular (Alves, Souza, 1999, p.133).

    Entretanto, Alves e Souza observam que o reconhecimento da influncia de estruturas sociais nasaes humanas no implica que elas sejam decisivas na escolha teraputica. Tomando por suporte essateorizao, Tatiana Gerhardt (2006) evidenciou que os intricados caminhos teraputicos dos atoressociais de sua pesquisa so pautados no universo sociocultural individual e coletivo no qual seencontram. Igualmente aos autores supracitados, Gerhardt ratificou que os sujeitos compem suasaes em conformidade com o contexto em que esto inseridos.

    Neste artigo, assumiremos o itinerrio teraputico como os percursos na busca por cuidados; comotrajetrias na tentativa para solucionar problemas de doena; como movimentos para preservar ourecuperar a sade. Trata-se de um conjunto de planos e aes que se sucedem, mesclam-se ou sesobrepem para lidar com a enfermidade. Menos que algo substancial ou reificado, tem-se umamultiplicidade heterognea de movimentos, agenciamentos e concepes, a qual acarreta opesdiversificadas ou, como na situao que iremos abordar, uma interpenetrabilidade das opes.

    Da totalidade dos interlocutores ouvidos, seguiremos aqui as solues de tratamento de Helena eDulce, em razo de os encontros com elas terem sido mais frequentes se comparados aos dilogos comos demais participantes da pesquisa. Com elas estabelecemos um vnculo mais denso, que nospossibilitou acompanhar diversas dimenses de seus caminhos e conhecer mais detalhes sobre suastrajetrias em busca de cuidados.

    Seus tratamentos biomdicos se restringiam basicamente ao mbito do CRT, pois a instituio, comoelencamos acima, disponibiliza servios e profissionais de mltiplas competncias, os quais contemplamquase que integralmente as necessidades de ateno biomdica dos usurios. Alm das idas mensais farmcia comuns a todos os usurios , dos exames trimestrais de CD4 e carga viral (entre outros) edas consultas com os infectologistas, ambas faziam acompanhamento com outras especialidades.Helena, por estar abaixo do peso, era assistida quinzenalmente por um endocrinologista e por umanutricionista. E, em decorrncia de manchas no rosto, tratava-se com um dermatologista, que a viabimestralmente. Dulce, por sua vez, tinha igualmente retornos quinzenais ao endocrinologista e nutricionista, porm pelo motivo oposto ao de Helena: Dulce estava acima do peso. Mensalmente,visitava o cardiologista por sofrer de arritmia e tratava mais amide o pulmo em razo da tuberculose,doena que a afligiu no passado.

    Nossos encontros se deram entre esse perambular das duas interlocutoras pela instituio, em suasesperas por consultas ou na longa fila da farmcia. Nesses momentos que travvamos nossasconversas, algumas triviais, outras discutindo mais diretamente sobre suas buscas por cuidados. Mastodas fornecendo densas elaboraes sobre itinerrios.

    Helena

    Helena de estatura mediana e bastante magra. Tem cabelos lisos e negros, de corte tipo chanel.Seu branco rosto, de pele manchada, a faz aparentar ter mais idade do que seus 44 anos; e, quando denossos encontros, tinha uma expresso triste, que seus olhos castanhos evidenciavam com clareza.Evidncia corroborada durante a entrevista quando, ao relatar a difcil convivncia com a doena, seusgestos e feies faciais denunciavam o sentimento de sofrimento.

    Contou-nos que, quando seu marido morreu em um acidente na construo civil, uma enfermeirado Hospital das Clnicas local onde ele foi socorrido a informou de que ele era portador do vrus

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    HIV, e a orientou a fazer o teste. Assim Helena o fez e, emocionada, chorou ao nos revelar quemantm em segredo seus 14 anos de diagnstico positivo. Temendo desestruturar as relaes afetivasque mantm com sua famlia sua filha, j que os demais parentes residem em Salvador, de ondeHelena migrou h 23 anos , ela convive solitariamente com a aids por medo de rejeio. Viver namentira, disse, minha maior dificuldade com o HIV. Segundo relatou, falta-lhe coragem paraassumir que soropositiva, mesmo pessoa mais importante do mundo, que minha menina.Pausadamente, narrou:

    Eu nunca tive coragem para dizer Olha filha, eu tenho isso. Porque muito difcil, muitododo [comea a chorar e pega um leno de papel na bolsa]. Magoa muito, entendeu? [...]Porque s vezes eu queria conversar com ela. A j me... Eu tenho medo dela saber e noquerer me dar beijo, sabe? Por isso difcil admitir que eu estou com isso. Se eu contar, vaiser aquele alvoroo, aquela coisa. A pior. Ento eu preciso ficar em silncio, porque dimuito (solua). [...]. muito difcil, muito difcil.

    De suas palavras, possvel constatar que, na relao do conviver com HIV/aids com isso harticulao entre infeco e isolamento. Na solido de seu silncio, Helena sente-se obrigada a esconder,da prpria filha, a condio sorolgica, por medo de uma reao hostil, como o desprezo. Em seusdizeres, h claras evidncias de desalento porque di muito e retraimento eu preciso ficar emsilncio , sentimentos que podem lev-la a se autoisolar da vida social, culminado naquilo que HerbertDaniel (1991) chamou de morte social: processo de aniquilamento dos soropositivos por meio doapartamento social. Seu recolhimento tornou-se ainda maior quando teve de se afastar de seu empregoem uma editora, por motivos de sade. H oito anos sem trabalhar, Helena vive de uma irrisriaaposentadoria que, como ironicamente mencionou, ao menos assegura a gratuidade de transporte emseus deslocamentos do Parque de Taipas, bairro em que reside em uma das casas da Cohab.

    Helena sustentou que apenas a equipe do CRT onde faz tratamento desde 2003, quando, poropo, decidiu no se cuidar mais no Hospital Emlio Ribas , Deus e um padre sabem de suasoropositividade. Alm da ajuda mdica, relatou ser essencial o apoio do sacerdote para queconseguisse combater a doena, pois este lhe transmitia mensagens de f e esperana. Disse-nos estarmais apegada religio desde o diagnstico, porque sua f a faz se sentir menos s. E quanto maiscaminhos religiosos percorre, mais acolhida se sente.

    Colocada vis--vis com a enfermidade e ameaada pela infeco viral, recorre s possibilidadesoferecidas pela religio e constri continuamente seu itinerrio teraputico para promover a almejadasoluo curativa. Seguidora dos dogmas e rituais catlicos, confessa-se duas vezes por ano, vai missaaos domingos na Parquia Nossa Senhora das Dores, prxima a sua casa, e reza o tero todos os dias,agradecendo muito por estar viva e rogando por sade. Gosta da Renovao Carismtica Catlica ecomparece frequentemente s sesses de cura - encontros bastante comuns desse segmento docatolicismo. Para ela, a religio tratamento fundamental, tanto que afirma que somente as oraes afizeram no abdicar das solues mdicas oficiais, particularmente a adeso aos medicamentosantirretrovirais de difcil adaptao. Ademais, em sua concepo, o mdico instrumento divino e acura pela (bio)medicina dom de Deus.

    Os intricados caminhos do pensamento de Helena nos dizem algo de seu perambular em busca decuidados: uma vez que a biomedicina divina, abandonar o tratamento aloptico seria umadesobedincia divindade, por isso, seguir as prescries mdicas quase uma obrigao moral. H umelemento transcendental conjugado figura do mdico que cumpre os desgnios das divindades, porisso suas recomendaes devem ser seguidas.

    aspirando sade que Helena afirmou buscar o auxlio de terapias religiosas, nutrindo suasesperanas ancoradas nos poderes divinos para, conjuntamente faculdade humana, superar o desafioda epidemia que a cincia dos homens sozinha ainda no conseguiu suplantar. Como prtica recorrente,por exemplo, ela costuma ir Parquia Nossa Senhora da Sade localizada a alguns metros do CRT fazer uma orao antes de ir consulta com o infectologista. E, juntamente com a medicaoantirretroviral que carrega em sua ncessaire, traz uma imagem dessa Santa, para que todos os

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    remdios sejam bentos por ela. Essa mescla dos modernos medicamentos antirretrovirais e smbolosreligiosos parece mesmo ser a alegoria do itinerrio traado. possvel sugerir da que, para Helena, ossaberes das duas solues curativas se autorizam reciprocamente, de maneira a afianar a validade deambas entre as quais no parece haver contradio.

    H uma relativa possibilidade de escolha de terapias pensemos que, no caso da aids, o dispositivomdico-hospitalar (Foucault, 1972) geralmente coloca o no-tratamento ou outro tratamento (o nobiomdico) como inadequado, considerando tal postura at mesmo como mais uma patologia. Adespeito dessa mquina ou dispositivo e, muitas vezes, contra ela , nossos interlocutores selecioname orientam suas aes de acordo com as disponibilidades e com o universo simblico em que estoinseridos. Portanto, consoante a produo e interpretao do significado pessoal e social da experinciade doena, o soropositivo procede escolha das terapias disponveis e constri seu itinerrio teraputico(Good, 1994; Kleinman, 1980).

    Convm atentar tambm que a aids, doena at o momento sem expectativas de cura em curto emdio prazo, implica uma ponderao sobre a finitude da vida, colocando aquele que dela padece frente sua efemeridade. Tal situao dispe os sujeitos diante de novos quadros, incitando a indagaes e a(re)formulaes. Logo, no equivocado supor que essas pessoas que, muitas vezes, se encontram emsituao de fragilidade e vulnerabilidade vislumbrem a possibilidade de pensar por perspectivas nosomente biomdicas e recorram a diferentes agncias de soluo de tratamento. Assim, no implausvel considerar a experincia religiosa empregada no sentido teraputico, e no novidade pensarnas relaes entre terapias e religio, posto que a experincia da enfermidade no est distante deperspectivas religiosas. H muitos e slidos trabalhos sobre o tema, por exemplo, os estudos de Puttini(2004), Magnani (2002), Maus, Santos e Santos (2002); Galvo (1997); Rodrigues (1995); Rabelo (1994,1993), Carrara (1994), Laplantine (1994), Minayo (1994), Montero (1985); Loyola (1984) e Neves (1984).

    Dulce

    De maneira semelhante ao que pensa Helena, pondera tambm Dulce, uma senhora bastanterisonha que gosta de contar suas superaes vividas com o HIV, todas elas atribudas s bnos divinase aos medicamentos dos homens. Tambm aposentada desde o advento da aids em seu cotidiano,Dulce tem 47 anos e h 16 convive com a doena. Seu itinerrio teraputico, propiciado pela aids, teveincio em 1994, quando, aconselhada por uma amiga, foi ao Hospital So Paulo checar o que erampequenos pontos vermelhos em sua pele. Depois de alguns exames, Dulce foi informada de que estavacom plaquetopenia, doena na qual ocorre diminuio do nmero total de plaquetas no sangue e quepode culminar em severas hemorragias. Foi ento encaminhada para o centro de hematologia da SantaCasa de Misericrdia, onde foi prescrito um tratamento com corticides para reverter o quadro. Apstrs meses com essa teraputica, Dulce no obteve melhora e a contagem de suas plaquetas estavaainda mais baixa. Nesse momento, o hematologista que a acompanhava solicitou um teste de HIV, cujoresultado foi positivo. Aps algum tempo resistindo ao diagnstico, Dulce adoeceu e, bastanteenfraquecida, decidiu procurar o CRT.

    Dulce uma mulher robusta, de olhos e cabelos castanhos, ondulados, que se acabam no pescoo.Contou ser vaidosa, e sua aparncia corroborava a afirmao: estava bem elegante. Bastante perfumada,tinha os olhos maquiados e o blush dava um tom rosado ao seu rosto plido, da mesma forma que obatom rosa nos lbios. Mora em Perdizes, bairro nobre da zona oeste de So Paulo, e frequenta o CRTcom certa assiduidade, no apenas para suas consultas e exames, mas tambm para levar o evangelhoaos irmos. Segundo ela, a evangelizao uma das condies para ser uma boa crist, por isso adoutrinao faz parte de seu itinerrio teraputico, porque no basta rezar: para alcanar a graa preciso obrar, ser uma soldada do exrcito do Senhor (Csordas, 1988). Parece haver, no relato deDulce, quase um sentido de obrigao ou de compromisso militante para com Deus. Por isso, alm de iraos cultos, ela possui diversos afazeres no templo religioso que frequenta, os quais vo desde oscuidados com a limpeza at a assistncia aos participantes.

    Devido a problemas cardacos, toma flego para falar, de modo que parece estar a todo temposuspirando. Quase a todo instante remete seu discurso para Deus, muitas vezes se emocionando,

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    embora ponderando no ter sido devota no passado. Anteriormente ao diagnstico positivo, Dulceafirmou ter sido desmazelada com a religio, e foi a partir do HIV e por causa dele que pdeenxergar a glria do Senhor.

    Ela explicou que, no momento em que se tornou evanglica, passou a seguir os preceitos de suareligio e aprendeu que o corpo e o uso que dele se faz devem estar de acordo com os propsitosdivinos. Segundo sua representao, corpo e alma/esprito so inseparveis e, por isso, preciso manterambos em harmonia. E o HIV/aids tomado como oportunidade para recuperao da vida terrena apartir do cuidado com o cosmo: Para cuidar do corpo, da matria, tem que cuidar do esprito. Ouseja, a salvao da alma interfere na cura do corpo e ambos se sustentam, alimentando igualmente osdiscursos biomdicos e religiosos. Os cuidados com o corpo e com o comportamento dizem respeito,igualmente, aos cuidados com o esprito, na medida em que Nosso corpo sagrado.

    O soropositivo, parece nos dizer Dulce, no apenas doente que deve ser tratado pela soluobiomdica, mas tambm crente que deve ser salvo pelo terapeuta religioso. A religio, medida quenorteia as aes individuais e organiza o universo simblico de seu adepto, tambm promotora debem-estar. Certos princpios da religio podem induzir o crente a adotar atitudes de maior zelo ecuidado consigo, aumentando a probabilidade de se manter saudvel. Ademais, a f se configura comoprecondio essencial para ser agraciado pela cura de Deus, e dispe de um poder capaz de interferirna realidade, ou seja, dotada de eficcia simblica, a que se refere Claude Lvi-Strauss (2008).

    Ao estudar o xamanismo (Viveiros de Castro, 2002; Cunha, 1999), Lvi-Strauss constatou que acrena no sistema constri sua plausibilidade e, portanto, se crvel real. O xam, atravs do mito,produz uma induo simblica, ou seja, uma realidade simblica criada que induz as pessoas aacreditarem na cura. E essa propriedade indutora (Lvi-Strauss, 2008, p.217) faz com que o corpofisiolgico responda a essa induo e reaja organicamente a sua concepo de eficcia simblica.

    A eficcia mgica na cura se fundamenta na sua disposio de atribuir significados s desordensfisiolgicas. Dessa maneira, entrevemos que a religiosidade tomada como recurso sacral pelo qual hpossibilidades de se obter a cura da carne. Ela promove o (re)encontro do paciente com Deus e, seaquele seguir a palavra como repetidamente salientou Dulce , poder restabelecer a sade fsica ealcanar a redeno e salvao de sua alma.

    Nessas circunstncias, o recurso a outra agncia de tratamento no tem carter alternativo e nem hrelao de concorrncia entre as prticas. O intento na conjuno de terapias somar, e no substituir amedicao pela prece, pois a confiabilidade sustenta-se em ambas. Ocorre, sim, uma simbiose, a qual instituda a partir de snteses produzidas pelas pacientes-fiis. A recorrncia aos servios do CRT e orao, por exemplo, indissocivel. Em uma espcie de criao por amlgama, Helena e Dulceescolhem e tomam para si os elementos disponveis de cada soluo, manipulando suas combinaesreferenciais de modo a tornarem o tratamento satisfatrio para si.

    Ao circularem por diferentes instncias curativas, as interlocutoras promovem a articulao dosuniversos simblicos de cada qual, compondo-os em seu itinerrio teraputico sempre passvel detransformao. Tudo acontece como se as divises entre corpo e alma, biolgico e social, natureza ecultura, biomedicina e religio no operassem como guias para atuao e escolha das terapias. Ou seja,os itinerrios no atuam em conformidade com as divises que fundam a prpria biomedicina oumesmo as cincias sociais. Oposio contra a qual se colocaram Helena e Dulce. Inclusive, em partedas narrativas, a referncia aos saberes de uma e de outra parecem se confundir, como no depoimentode Helena:

    Eu estava internada e com um dreno, porque meu sangue estava txico por causa de umabactria. Todo mundo achou que eu fosse morrer, a enfermeira me contou depois. A eucomecei a rezar e o Senhor ia purificando o sangue, eu orava e o dreno ia refinando asujeira. E de tanto clamar a Deus, o dreno funcionou. Eu fiquei limpa e fui renovada emminha f.

    No relato de Helena, recursos religiosos como a meno a Deus e a orao e elementosbiomdicos como a necessidade de assepsia do sangue por um dreno apresentam-se misturados: ter

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    o corpo limpo compe-se com a renovao da f (Douglas, 1991), sem que haja fronteiras claras oudistines entre os processos. J na narrativa de Dulce, a figura de uma doutora serva de Deus mdica que a atendeu no hospital e que era crist parece ter sido fundamental para que, ungida porela, pudesse se curar de uma embolia pulmonar. Novamente, a complexidade de discernir as arraias deinfluncias de cada terapia:

    Eu fui internada no Emlio Ribas com embolia pulmonar. No respirava de jeito nenhum eestava ligada num monte de aparelhos. Mas tinha aquela mdica que cuidava de mim queera crist e, como diz na palavra, eu fui ungida em nome do Pai, do Filho e do Esprito Santopor aquela doutora serva de Deus. E de repente, fui tendo uma melhora. Fui melhorando,melhorando...

    Seguindo o mesmo matiz de raciocnio, Dulce postulou que Deus e o mdico seriam os responsveispor ela estar viva:

    Se eu estou viva, graas ao bom Deus e medicina [...] E o doutor me falou voc venceua morte. A eu falei, no doutor, no fui eu que venci a morte. Foi o senhor inspirado porDeus que venceu ela por mim.

    Novamente aqui se evidencia o carter de instrumento divino do mdico e a interpenetrabilidade dasinstncias biomdicas e religiosas, j que Dulce atribui a Deus e biomedicina o fato de no termorrido. Inclusive, no decorrer das entrevistas, houve certa dificuldade em estabelecer os limites entreo que era terapia religiosa e quais eram as prticas biomdicas. O que sobressaa era a interaocontnua das duas solues agenciadas com o mesmo propsito: a sade. A etnografia revelou que asinterlocutoras no separam a terapia biomdica da religiosa em planos distintos. Ao invs disso, foipossvel observar um continuum entre elas. Os itinerrios no so apenas caminhos pelas instnciasbiomdicas o CRT ou outros servios de sade e, mesmo quando acionados os aparelhos mdico-hospitalares, existe uma reconfigurao que, de certa forma, os transforma numa mescla entreperspectivas religiosas e cuidados biomdicos.

    E ainda que operem com eficcias distintas, as solues de uma e outra terapia so utilizadas no deforma paralela ou complementar, mas de maneira a reunir os saberes de ambas e maximizar suaseficcias. Ou seja, as opes no se isolam em planos distintos: antes, apresentam-se como partesconsecutivas que fluem sem limites claramente delimitados, pois, nessa espcie de liame religio-biomedicina, suas solues atuam de maneira adjacente.

    Se as narrativas das interlocutoras dizem algo, elas afirmam a constante interao de prticasteraputicas: o universo biomdico-religioso, leituras cruzadas de pessoas que se valem da biomedicinae veem mdicos como agentes religiosos; sujeitos que fazem uso de tcnicas ultramodernas e rezam;frmacos associados a oraes; apelo aos santos curadores e aos mdicos; espaos asspticoshospitalares com capelas. Investigar essas relaes foi um dos objetivos deste artigo e, acreditamos,uma agenda para Antropologia e Sade Coletiva no Brasil.

    Notas finais

    Os estudos acerca dos itinerrios teraputicos podem representar novas possibilidades para aapreenso e compreenso dos comportamentos concernentes aos cuidados com a sade. Nos itinerriosacompanhados aqui, as prticas e perspectivas religiosas fizeram emergir diferentes interpretaes daepidemia da aids, as quais passaram a negociar com os significados previamente adquiridos pelabiomedicina. Num movimento pendular, tais significados se agregaram, mesclando-se e (re)criandosentidos e experincias da doena. E os sujeitos, regendo essas vozes multplices em dilogo, criamseus versteis itinerrios teraputicos. So interaes concretas que viabilizam modos de manejar aenfermidade e ordenar a experincia com ela.

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    Advertimos que no se trata de uma escolha individual das terapias ou a utilizao utilitria decrenas pessoais, mas da criatividade dentro dos sistemas simblicos que produz uma imaginao quepermite trnsitos, fluxos, movimentos inusitados. O que nossos interlocutores parecem afirmar que,para eles, a questo no optar entre uma e outra, mas fluir, movimentar-se entre os espaos econcepes, transformando-as. Esses movimentos, essas travessias, esses fluxos intensivos permitemuma complexa forma de perceber e responder epidemia da aids, desautorizando anlises quepercebem as terapias existentes como blocos separados e estanques.

    As narrativas revelaram que a elaborao desses itinerrios uma realidade processual, posto quecontinuamente renovada e recriada. Pudemos inferir que as nossas interlocutoras circulando pelasagncias de soluo, de formas variadas e fluidas , no se detm com fixidez a nenhum modelo. Aoinvs de uma totalizao a priori de uma ou de outra instncia, evidenciou-se, ao contrrio, um campode possibilidades passvel de ser continuamente repensado e refeito. So experincias de naturezamutvel que, de maneira inacabada e indefinida, adquirem novos contornos e tonalidades.

    evidente que os agenciamentos e os fluxos que se mantm entre as solues curativas so bemmais complexos do que pudemos registrar neste texto, pois nossa descrio apenas mapeou algumasnuances de suas manifestaes. No h aqui, portanto, concluses definitivas. Trata-se de um desenhoparcial e inacabado de uma realidade que est sempre em fluxo. Uma interpretao com incertezas eaberta a novas definies, pois no h como impedir o escorregar das passagens. a partir delas que seestabelecem continuidades, por vezes no muito bem definidas ou apuradas, mas que constituem osmovimentos que compem as trajetrias.

    Antropologia permanece o desafio de acompanhar atentamente essa diversificao, de estreitaresses itinerrios continuamente modificados pelos sujeitos. A responsabilidade grande, pois apreendertais percursos significa compreender mais amide essas pessoas e sua marcha para manuteno da vida.E a travessia, como nos ensinou Guimares Rosa, sempre perigosa: Viver muito perigoso... Porqueaprender a viver que o viver mesmo... Travessia perigosa, mas a da vida.

    Colaboradores

    Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produo do manuscrito.

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    El propsito general de este texto es mostrar los itinerarios teraputicos recorridos porVIH-positivos. Estos cursos, constituidos por inusuales mezclas y composiciones,revelan caminos complejos en la lucha contra el VIH/SIDA, de personas que pasan atravs de terapias en un intento de restaurar o conservar la salud. Suponiendo laexistencia de numerosos tratamientos disponibles, nos esforzamos por analizar lositinerarios de las terapias denominadas por ellas de tipo religioso en su relacin conel modelo biomdico. La etnografa revel que los interlocutores no separan la terapiabiomdica de la religiosa en diferentes planos. Se destac la interaccin simultnea delas dos soluciones agenciadas para el mismo fin: la salud. Fue posible observar uncontinuum teraputico, es decir, las opciones no se separan: aparecen como partesconsecutivas que fluyen sin fronteras claramente delimitadas.

    Palabras clave: Itinerarios teraputicos. SIDA. Biomedicina. Religin.

    Recebido em 04/06/11. Aprovado em 25/09/11.

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