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1 A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL E A LEITURA NO SÉCULO XIX NO ROMANCE LA REGENTA, DE LEOPOLDO ALAS “CLARÍN” ISABELA ROQUE LOUREIRO UFRJ/ 2007

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1

A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL E A LEITURA NO SÉCULO XIX NO

ROMANCE LA REGENTA, DE LEOPOLDO ALAS “CLARÍN”

ISABELA ROQUE LOUREIRO

UFRJ/ 2007

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A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL E A LEITURA NO SÉCULO XIX NO

ROMANCE LA REGENTA, DE LEOPOLDO ALAS “CLARÍN”

por

ISABELA ROQUE LOUREIRO

Mestrado em Letras Neolatinas- Literaturas Hispânicas

Dissertação de Mestrado em

Literaturas Hispânicas, apresentada

à Coordenação dos Cursos de Pós-

Graduação em Letras da

Universidade Federal do Rio de

Janeiro.

Orientadora: Professora Doutora

Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.

Faculdade de Letras da UFRJ

1º semestre de 2007

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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

LOUREIRO, Isabela Roque. A educação sentimental e a leitura no século

XIX no romance La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”. Dissertação de

Mestrado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos

Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro,

2007. 150 fls.

Banca Examinadora Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (UFRJ) Orientadora Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva (UFRJ) Professora Doutora Gladys Viviana Gelado (UFF) Professora Doutora Lívia Maria Freitas Reis (UFF) Professor Doutor Julio Aldinger Dalloz (UFRJ) Examinada a Dissertação

Conceito:

Em: / / 2007.

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4

Para a família Loureiro, que preenche de alegria minha vida com seu amor e carinho.

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5

AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter iluminado o meu caminho, especialmente nos momentos

difíceis.

À minha querida orientadora, professora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri, pela

inigualável dedicação, paciência, incentivo e amizade.

À amável professora Doutora Cláudia Luna, que, desde a graduação, pôde

acompanhar os meus primeiros passos no mundo das Literaturas

Hispânicas.

Ao professor Doutor Julio Dalloz, por sua generosidade, carinho e ajuda na

obtenção de referências bibliográficas para o desenvolvimento deste

trabalho.

Ao CNPQ, pela bolsa que me foi concedida e que muito contribuiu para a

realização deste projeto.

À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da

Faculdade de Letras da UFRJ, por todo apoio.

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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

Aos meus queridos pais, Léia e César Loureiro, por todo carinho,

companheirismo, compreensão e amor incondicional dedicados a mim ao

longo de minha trajetória. Obrigada por estarem presentes em todos os

momentos de minha vida. Amo vocês.

À minha amada irmã, Bruna Loureiro, pela infinita paciência, incentivo,

cumplicidade e amor. Tê-la ao meu lado é, indubitavelmente, um presente de

Deus.

Ao meu avô Jorge Cid Loureiro, que, mesmo distante, sempre esteve

presente em meu coração.

Aos meus queridos padrinhos, Fátima e Marcos Caselli, por todo carinho e

atenção.

Aos queridos amigos Antônio Freitas, Ana e Marina Zalona, Rafael Rios e

Mário Klaes, que muito contribuíram para a realização desta pesquisa.

Aos companheiros que, direta ou indiretamente, me ajudaram na elaboração

deste trabalho, aos quais certamente seria impossível agradecer

nominalmente.

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Arrebatar a lo real el principio de la realidad. Y arrebatar al cuadro el principio de la representación.

Jean Baudrillard

Pies para qué los quiero si tengo alas pa’ volar.

Frida Kahlo

Lire, c’est boire et manger. L’esprit que ne lit pás maigrit comme le corps qui mange pas.

Victor Hugo

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LOUREIRO, Isabela Roque. A educação sentimental e a leitura no século

XIX no romance La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”. Dissertação de

Mestrado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos

Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro,

2007. 150 fls.

RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo estudar a educação

sentimental no século XIX e as figuras da leitura e do leitor no

romance naturalista La Regenta (1884-1885), do escritor

espanhol Leopoldo Alas “Clarín”, tomando como base a teoria

crítica de Roger Chartier, Nora Catelli, Gérard Genette e

Ricardo Piglia.

Verificaremos a influência do ato de ler nos protagonistas

leitores da obra com o propósito de constatar que a leitura

pode apresentar inúmeras conseqüências (efeitos) na vida

dos mesmos, principalmente se levarmos em consideração o

fato de que o imaginário alimentado pelos livros pode projetar-

se em atos e fatos. Ainda consideraremos o estudo dos

movimentos realista/ naturalista na Espanha oitocentista e o

estudo do narrador do romance, que descreverá a atmosfera

ficcional de La Regenta com imagens vinculadas à leitura.

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LOUREIRO, Isabela Roque. A educação sentimental e a leitura no século

XIX no romance La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”. Dissertação de

Mestrado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos

Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro,

2007. 150 fls.

RESUMEN

Esta investigación tiene como objetivo estudiar la educación

sentimental en el siglo XIX y las figuras de la lectura y del

lector en la novela naturalista La Regenta (1884-1885), del

escritor español Leopoldo Alas “Clarín”, considerando la

teoría crítica de Roger Chartier, Nora Catelli, Gérard Genette

y Ricardo Piglia.

Verificaremos la influencia del acto de leer en los

protagonistas lectores de la obra con el propósito de

comprobar que la lectura puede presentar innumerables

consecuencias (efectos) en la vida de los personajes,

principalmente si consideramos el hecho de que el imaginario

alimentado por los libros puede proyectarse en actos y

hechos. También consideraremos el estudio de los

movimientos realista/ naturalista en Espanha decimonónica y

el estudio del narrador de la novela, que describirá el mundo

de La Regenta con imágenes relacionadas a la lectura.

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LOUREIRO, Isabela Roque. A educação sentimental e a leitura no século

XIX no romance La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”. Dissertação de

Mestrado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos

Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro,

2007. 150 fls.

ABSTRACT

The aim of the present work is to study sentimental education in

the nineteenth century as well as look into both elements,

reading and the reader him/herself, in the naturalistic novel La

Regenta (1884-1885), written by the spanish novelist Leopoldo

Alas “Clarín” by taking Roger Chartier’s, Nora Catelli’s, Gérard

Genette’s and Ricardo Piglia’s critical theory not only as a

starting point, but also as a basis for our study.

It is our intention to verify the influence that the act of reading

inflicts upon the novel’s reading protagonists in order to prove

that reading may indeed present several consequences (effects)

in their lives, especially if we take into consideration the fact that

the imaginative aspect brought on by the books themselves may

project itself into acts and facts. Furthermore, we shall discuss

the realistic and naturalistic movements in nineteenth century

Spain, as well as study the novel’s narrator, who will describe

the fictional atmosphere within La Regenta with imagery related

to its reading.

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SINOPSE

As figuras da leitura e do leitor no romance naturalista La Regenta

(1884/1885), de Leopoldo Alas “Clarín”. Os espaços e os tempos da leitura

na sociedade burguesa da segunda metade do século XIX e a sua relação

com o realismo/ naturalismo espanhol.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................p.13

CAPÍTULO I

O REALISMO/ NATURALISMO COMO LEITURA DO MUNDO

1.1. Leopoldo Alas “Clarín”: o autor-leitor...............................................................p.23

1.2. O naturalismo em Leopoldo Alas “Clarín”........................................................p.42

1.2.1. Os caracteres singulares do naturalismo espanhol em La Regenta......p.48

1.3. La Regenta e a tradição do realismo espanhol...............................................p.69

CAPÍTULO II

LA REGENTA: O RETRATO DE UMA SOCIEDADE LEITORA

2.1. Do acesso restrito à democratização do texto impresso.................................p.85

2.2. As figuras da leitura e do leitor em La Regenta...............................................p.97

2.2.1. Os espaços de leitura na obra..............................................................p.107

2.2.2. As leituras de Ana Ozores e as quatro fases correspondentes à educação

da personagem...............................................................................................p.115

2.2.2.1. A educação feminina no século XIX..................................... p.115

2.2.2.2. O movimento krausista na Espanha......................................p.119

CONCLUSÃO.......................................................................................................p.139

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................p.143

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INTRODUÇÃO

A realidade se entrega a fim de que seja possível sua representação.

Figuras, de Genette

Os temas de verdades morais de que trata o narrador, no universo

literário, devem ser figurados por metáforas e comparações extraídas da

realidade física, do mundo real, e, em razão disto, a figura torna-se o

principal ornamento do discurso, e sua existência “depende totalmente da

consciência que o leitor toma ou não da ambigüidade do discurso que lhe é

proposto” (GENETTE, 1972, p.207). Desta forma, para estudarmos as figuras

da leitura e do leitor no romance naturalista La Regenta (1884/1885), de

Leopoldo Alas “Clarín”, tivemos de resgatar o conceito de figura da Retórica

Clássica, que deve ser indiscutivelmente entendida como “um sistema de

figuras” (Ibidem, p.201).

Segundo Genette, a retórica das figuras possui a ambição de

estabelecer um código das conotações literárias ou dos Signos da Literatura,

como os chamou Barthes. Cada vez que o narrador emprega uma figura

reconhecida pelo código, este encarrega sua linguagem não somente de

exprimir seu pensamento, “mas também de comunicar uma qualidade épica,

lírica, didática, oratória, etc, de designar-se a si mesmo como linguagem

literária e de significar a literatura” (Ibidem, p.211), e é por isso que a

Retórica pouco se importa com a originalidade ou a novidade das figuras,

que são qualidades da produção individual. O que realmente lhe importa é a

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clareza e a universalidade dos signos poéticos, ou seja, é poder encontrar no

segundo nível do sistema (literatura) a transparência e o rigor que

caracterizam já o primeiro (a língua).

O tema da leitura possibilita várias perspectivas que podem ser

sintetizadas em duas orientações: a sociológica, que se ocupa do leitor real,

e a que se ocupa do modo como as figuras da leitura e do leitor se

constituem no próprio texto literário. Com base nestas orientações,

verificamos que a leitura não deve ser compreendida apenas como um ato

intelectual, ou seja, como um meio de se construir conhecimento, mas

também como um ato físico, e, muitas vezes, sensual, que permite uma

expressiva interação (diálogo) entre o livro e o leitor, e atualmente uma das

grandes polêmicas geradas em torno do futuro do livro, frente ao avanço

cada vez maior do meio digital, se relaciona a esta questão: a perda da

sensibilidade.

O corpo, distanciada a mente envolvida na leitura, inicia suas próprias relações com o suporte, com o elemento material. O argumento geral, o mais espontâneo, que se usa quando se debate a leitura frente à tela do computador, é que não se pode tocar! (Joaquín Mª Aguirre Romero, 2006. Tradução nossa)1

E será justamente este distanciamento que privará o indivíduo leitor,

habituado às sensações vinculadas à matéria (formato, cheiro, peso, textura,

número de páginas), dos inúmeros efeitos sensíveis produzidos pelo livro

(objeto). Muito mais que um suporte material de uma determinada

1 “el cuerpo, aislada la mente absorta en la lectura, entabla sus propias relaciones con el soporte, con el elemento material. El argumento general, el más espontáneo, que se esgrime cuando se debate la lectura ante la pantalla del ordenador es que ¡no puede tocarse!”.

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informação, o livro, <<depósito material de la palabra>>, deve ser

compreendido, segundo Escarpit, como “o instrumento mais simples que, a

partir de um dado ponto, é capaz de liberar uma multidão de sons, de

imagens, de sentimentos, de idéias, de elementos de informação, abrindo-

lhes as portas do tempo e do espaço”2 para seus leitores. A partir desta

definição, o autor, diferente de muitos que o reduzem meramente a uma

dimensão material, espacial e superficial sobre os quais se inscrevem os

signos representativos de determinados suportes intelectuais (Otlet, 1934)3,

não busca tanto a materialidade deste objeto tão essencial à nossa cultura,

mas sim a sua funcionalidade, referindo-se a sua incrível capacidade

metafórica de representar sons, sentimentos e imagens, fundamentais à

criação de novos mundos, de novas realidades por meio da escritura.

E é sobre esta funcionalidade que pretendemos dedicar-nos ao longo

do nosso trabalho. Múltiplo, único e insubstituível, o livro, muito mais que um

investimento, um objeto de decoração ou um status symbol, “um sinal de que

se pertence a uma determinada classe social” (ESCARPIT, 1976. p.18), é

fonte de conhecimento para a realização de novas experiências. Sua incrível

capacidade de difundir idéias, pensamentos, faz com que deixemos, para um

segundo plano, todos os aspectos relacionados a sua materialidade, para,

por fim, nos restringir e considerar todos aqueles essenciais à formação do

2 Definições agrupadas como Documento II, em Escarpit, Robert y otros, Hacia una sociología del hecho literario. Madrid: Edicusa (Ed. Cuadernos para el diálogo), 1974. pp.275-276. “el instrumento más sencillo que, a partir de un punto dado, es capaz de liberar una multitud de sonidos, de imágenes, de sentimientos, de ideas, de elementos de información, abriéndoles las puertas del tiempo y del espacio”. 3 Ibidem, pp.275-276.

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leitor, em especial os relativos à sensibilidade, à educação sentimental: uma

educação feita por meio dos livros.

A partir do século XVIII, as camadas sociais tiveram acesso à leitura, e

esses novos leitores (burgueses, nobres, operários, magistrados, mulheres e

outros), além de obras técnicas (manuais, dicionários, guias, livros didáticos

e gramáticas), necessitavam de livros de distração e de imaginação, escritos

em língua romance, fato que justifica a ascensão e o apogeu do romance na

sociedade européia do século XIX, a maior consumidora deste gênero

literário.

Depois de uma longa jornada de trabalho nas fábricas ou de um dia

estressante cuidando das atividades domiciliares e dos filhos, homens e

mulheres de diferentes classes sociais e faixas etárias, com o objetivo de

abrandar as frustrações e tensões decorrentes de suas obrigações diárias,

recorrem à literatura, ao texto literário. Sentados em uma aconchegante

poltrona de veludo, ou até mesmo deitados em uma confortável cama, estes

leitores, geralmente centrados em sua privacidade absoluta, dedicavam uma

expressiva parte do tempo à leitura, sobretudo, a de romances que

representavam, através de construções literárias, o cotidiano da classe

burguesa, dado que torna relevante a idéia de a figura do leitor estar

relacionada principalmente ao desenvolvimento da própria burguesia, tanto

pela modernização das técnicas de impressão e distribuição do livro, como

pelo direito legal de todo cidadão ao ensino, à educação.

O leitor identificava-se plenamente com o universo literário construído

pelo narrador, por meio do ato literário. Nesta esfera literária, os leitores da

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época deparavam-se com personagens leitores e escritores, ou seja,

encontravam as representações de seres também comprometidos com a

prática da leitura e da escritura e muitas outras imagens (figuras) resgatadas

pelos narradores diretamente do mundo real, e será esta atmosfera ficcional

que tentaremos analisar no romance La Regenta, obra repleta de ilustres

leitores que lêem para poder viver no real os efeitos da leitura.

Será, portanto, este o domínio que pretendemos explorar, para melhor

compreender uma das partes mais originais e criativas da vida dos livros de

ficção: a sua incrível e inigualável capacidade de representar, por meio de

figuras, uma determinada realidade.

Sendo assim, para analisar a forma como a leitura e o livro se tornam

objetos da própria literatura e como se configura a noção de leitura e leitor na

obra, nos pareceu pertinente seguir a segunda orientação, apoiando-nos nos

estudos de Genette (1972), que, em Figuras, desenvolve uma ampla

indagação sistemática e um exame múltiplo sobre a natureza e o uso da

literatura, e nos estudos de Piglia (2004), que considera a incorporação pelos

textos literários das figuras da leitura e do leitor.

No entanto, antes de adentrarmos no universo ficcional de La

Regenta (segundo capítulo), dedicaremos um tópico ao escritor Leopoldo

Alas, o autor-leitor, destacando, em especial, as leituras que o mesmo

realizou ao longo de sua trajetória como jornalista, crítico literário e

romancista. Almejamos corroborar o importante papel que o ato de ler

assume na vida do escritor asturiano que, quanto mais se dedicava à prática

da leitura, mais experiências e conhecimentos acabava construindo. É

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necessário comentar que, para a realização desta análise, nos apoiaremos

na teoria crítica de Antonio Vilanova, José María Martínez Cachero, John W.

Kronik, Mariano Baquero Goyanes e Ricardo Gullón.

Ao estudarmos os principais aspectos sócio-econômicos e políticos da

Europa do século XIX, observamos que inúmeras foram as transformações

que se implantaram, neste período, no cenário europeu, o que muito

contribuiu para o desenvolvimento das ciências exatas e humanas e para a

consolidação do racionalismo econômico que acompanha de forma contínua

o processo de industrialização progressiva. Dentro desta mais nova esfera

de empreendimentos e conquistas, ambos acarretados pela prosperidade da

classe burguesa e pelo fortalecimento do regime capitalista, principal difusor

das idéias de modernização e urbanização das grandes capitais, notamos a

manifestação de uma expressiva inquietação por parte de muitos artistas e

intelectuais que, em oposição ao idealismo romântico da antiga escola, o

Romantismo, passam a privilegiar uma arte compromissada com o real, com

a representação da realidade.

Da mesma maneira que o artista deveria arrebatar à pintura o princípio

da representação, o narrador do romance realista/ naturalista deveria retratar

o mais fielmente possível, no espaço ficcional, um mundo que ele se deteve

a observar e a documentar. Desta forma, ao invés de fantasias românticas e

espaços idealizados, geralmente inexistentes e imaginários, verificamos que

grande parte dos escritores do século XIX se propunha a pintar a realidade,

de modo a apresentar, por meio de construções literárias, um verdadeiro

painel social, político e cultural da época. E, para melhor determinar esta

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tendência, promoveremos uma breve análise sobre o movimento naturalista

no século XIX, a fim de apresentar a teoria difundida pelo escritor francês

Emile Zola e as principais doutrinas naturalistas resgatadas pelo escritor

Leopoldo Alas “Clarín”, encantado com a possibilidade de renovar a

produção literária na Espanha naquele período. Realizaremos também uma

análise sobre os caracteres singulares do naturalismo espanhol em La

Regenta, retomando, de fato, alguns dos principais conceitos difundidos

pelos movimentos realista/ naturalista no século XIX. Para tal, nos

apoiaremos nos estudos de Francisco Rico, Germán Gullón, Gonzalo

Sobejano, Walter Pattison e Yvan Lissorgues.

E, por fim, encerraremos o primeiro capítulo com um estudo sobre La

Regenta e a tradição do realismo espanhol, apresentando as importantes

contribuições de duas grandes obras da literatura espanhola, El Lazarillo de

Tormes e Don Quijote de la Mancha, para a constituição dos romances

realistas/ naturalistas na Espanha do séc. XIX. Pretendemos comprovar que

houve, sobretudo, por parte de Clarín, a intenção de resgatar destas obras o

primordial papel que a leitura passa a assumir na narrativa e, especialmente,

na construção dos personagens leitores. Para a elaboração deste, nos

apoiaremos nas teorias de Benito Pérez Galdós, Fernando Lázaro Carreter,

Ian Watt, Jeremy T. Medina, María Tereza Zubiaurre, Ricardo Senabre e

Yvan Lissorgues.

No segundo capítulo, analisaremos o crescimento do público leitor na

Europa, priorizando principalmente o ingresso do público feminino no mundo

das letras como leitoras e escritoras. Analisaremos também o surgimento de

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20

uma literatura voltada para atender aos novos anseios da classe burguesa,

dando valor ao expressivo consumo de romances, lidos principalmente pelas

mulheres que passavam grande parte de seu tempo em casa, cuidando da

educação dos filhos e das tarefas domésticas. Para a realização destas

análises, são fundamentais os estudos desenvolvidos por Roger Chartier,

Nora Catelli, Guglielmo Cavallo e Alberto Manguel, teóricos que consideram

a importância e os efeitos da leitura na formação das sociedades modernas.

Levando em consideração o fato de que a sensibilidade moderna se

educou em romances e contos que “devolviam aos leitores imagens� nítidas,

enfáticas� dos resultados da educação pelos livros” (CATELLI, 2001, p. 19.

Tradução nossa)4, o que evidencia a ocorrência da educação sentimental,

estudaremos a forma como os protagonistas de La Regenta, em especial a

jovem Ana Ozores, têm seus imaginários alimentados pelos livros. Porém,

antes de chegarmos propriamente ao sub-capítulo dedicado exclusivamente

às leituras feitas pela personagem principal, apresentaremos uma breve

análise sobre os espaços de leitura no romance.

Tendo em vista a difusão das campanhas de alfabetização e o

crescimento do público leitor, sobretudo do feminino, houve, a partir da

segunda metade do século XIX, um notável crescimento de espaços

destinados à leitura. A sociedade burguesa torna-se uma grande

consumidora da literatura produzida na época, principalmente dos romances,

o que proporcionou a fundação de muitas bibliotecas públicas, gabinetes de

4 “devolvían a los lectores imágenes- nítidas, enfáticas- de los resultados de la educación por

los libros”.

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leitura e bibliotecas particulares, e, em razão disto, avaliaremos como estes

espaços, externo e internos, se configuram na narrativa de Clarín. Para a

realização desta análise, tomaremos como referência a teoria crítica de

María Tereza Zubiaurre.

A partir das múltiplas leituras realizadas e do conhecimento construído

por meio das mesmas, Ana Ozores, a maior leitora de toda a obra, passa a

interpretar o mundo, a realidade em que vive, de uma maneira romântica e

idealizada, tal como aquela vivenciada pelas encantadoras heroínas das

narrativas românticas que tanto admirava. E, ao estudarmos os quatro

períodos correspondentes à educação da protagonista, pretendemos verificar

o incrível poder que o ato de ler exerce sobre a protagonista que vive no real

os efeitos das leituras.

O objetivo de fazer da vida uma grande aventura romântica entra em

conflito com as exigências da disciplina familiar que, por sua vez, também se

encontram ameaçadas pelas inúmeras transformações, sobretudo, as de

ordem social. Com base nisto, pretendemos evidenciar o fato de que Ana

Ozores viu provavelmente no adultério uma nova possibilidade de descobrir

o amor, sentimento que até então desconhecia, rompendo, assim, com os

pilares fundamentais do modelo de feminilidade difundido nos países

católicos.

Antes de iniciarmos nossas análises sobre as leituras realizadas pela

jovem, nos pareceu pertinente elaborar um breve comentário sobre a

educação feminina no século XIX e, posteriormente, sobre o movimento

krausista na Espanha, a fim de que se possa compreender nossa proposta

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de dividir o período correspondente à educação da mesma em quatro fases,

apresentando, detalhadamente, em cada uma delas, os tutores responsáveis

por sua educação, quais os textos lidos por ela e, por fim, quais os

conseqüentes efeitos acarretados pela prática da leitura.

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I. O REALISMO/ NATURALISMO COMO LEITURA DO MUNDO

1.1. Leopoldo Alas “Clarín”: o autor-leitor

A personalidade de Leopoldo Alas como escritor é a de um moralista em duplo sentido: observador penetrante da vida social e defensor de um ideal de justiça e verdade, cuja falta de efetividade no mundo o leva à irritação e à melancolia. (…) Espírito religioso, mente necessitada de nutrição filosófica, excelente educador, incansável leitor e espectador do desenvolvimento literário europeu desde seu retiro provinciano, Clarín cumpriu sua vocação de moralista na crítica, no conto e no romance. (SOBEJANO, 1981. p.25. Tradução nossa)5.

Em 1852, a cidade de Zamora fora contemplada com o nascimento de

um dos escritores mais célebres da literatura espanhola: Leopoldo Alas. Filho

do governador civil da cidade, depois de uma breve passagem em León,

Alas se muda com sua família, em 1859, para Oviedo (Astúrias), cidade

provinciana que, anos mais tarde, se tornará cenário de um dos maiores

romances naturalistas do século XIX: La Regenta.

Aos dezesseis anos de idade, Leopoldo Alas, sempre muito engajado

em atividades políticas, especialmente as que se relacionavam ao

republicanismo, funda, em 1868, o jornal manuscrito Juan Ruiz, podendo

este ser compreendido como o primeiro grande passo dado pelo escritor, que

será consagrado, logo em seguida, pelas diversas colaborações em vários

dos jornais ovetenses da época, sobretudo os que defendiam os ideais

5 “La personalidad de Leopoldo Alas como escritor es la de un moralista en doble sentido:

observador penetrante de la vida social y defensor de un ideal de justicia y verdad, cuya falta de efectividad en el mundo le lleva a la irritación y a la melancolía. (…) Espíritu religioso, mente necesitada de nutrición filosófica, excelente educador, infatigable lector y espectador del desenvolvimiento literario europeo desde su retiro provinciano, Clarín cumplió su vocación de moralista en la crítica, en el cuento y en la novela”.

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progressistas e republicanos que muito estiveram presentes em toda sua

vida. No ano seguinte, o jovem Alas ingressa na faculdade de Direito de

Oviedo, se licenciando quase três anos mais tarde.

Em 1871, com o objetivo de doutorar-se em Direito e estudar Letras,

dado o enorme gosto pelas atividades literárias e jornalísticas, Leopoldo

dirige-se à capital e ingressa na Universidade Central de Madrid, uma das

mais importantes instituições de ensino universitário do país. Lá, entra em

contato com os catedráticos González Serrano, Castelar, Salmerón, e

Francisco Giner de los Ríos, e esta aproximação permite, de fato, o

amadurecimento do jovem asturiano, deslumbrado, cada vez mais, com o

conhecimento e com os frutos que pôde colher destas sólidas amizades.

O estreitamento dos laços com os respectivos intelectuais e com outros

jovens, dentre os quais podemos destacar o escritor Palacio Valdés, que

detinha o mesmo ideal político que o seu, proporcionou-lhe uma experiência

imensurável, e uma notável prova disto foi a publicação do jornal de

conteúdo satírico Rabagás, em 1872, que, com altas doses de humor e

ironia, criticava os mais diversos setores conservadores da sociedade

espanhola. Neste mesmo período, as contribuições dadas por Alas aos

jornais madrilenhos da época foram crescentes, o que indiscutivelmente vem

a corroborar o êxito obtido pelo escritor, que passa a ter a sua assinatura

muito requisitada no meio da imprensa: “a assinatura de Leopoldo Alas ou de

Page 25: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

25

<<Clarín>>, prestigiosa e seguida sempre com interesse, era solicitada com

insistência e abundância” (CACHERO, 1993, p.210. Tradução nossa)6.

O jornal madrilenho El solfeo também contou com inúmeras

colaborações de Alas, que, no dia 11 de abril de 1875, estréia o pseudônimo

Clarín, tomado de La vida es sueño, de Calderón de la Barca, para assinar

os artigos que passara a publicar no periódico satírico. Neste mesmo ano,

publica seu primeiro Estilicón, que pode ser encontrado na seção intitulada

Azotacalles de Madrid. E, em razão destas e de muitas outras participações

nos jornais que se manifestavam em oposição ao governo totalitarista e

monárquico na Espanha da segunda metade do século XIX, se instaura sua

“mala fama ovetense”, sobretudo após a publicação do artigo “La verdad

suficiente”, na revista Ecos del Nalón, em 1878, que provocou um enorme

conflito na capital asturiana. É interessante comentar que um dos principais

objetivos do escritor era mostrar, por meio da crítica literária, a mesquinharia

humana, buscando, assim, resgatar e valorizar uma literatura de qualidade

que, a duras penas, podia ser encontrada na Espanha, país que, em pleno

final do século XIX, ainda se encontrava marcado pela decadência

econômica, social, política e literária. Neste mesmo ano, doutorou-se em

Direito na Universidade Central de Madrid, apresentando a memorável tese

“El derecho y la moralidad”, dedicada especialmente ao professor Giner de

los Rios. Nela, Clarín proporciona-nos uma ampla reflexão sobre a real

importância da moralidade, em outras palavras, dos valores humanos,

6 “La firma de Leopoldo Alas o de <<Clarín>>, prestigiosa y seguida siempre con interés, era solicitada con insistencia y abundancia” .

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26

defendendo a concepção de que “debemos ser morales en todo y para todo,

debemos ser justos en todo y para todo; nada hay justo que no sea moral, ni

nada moral que no sea justo” (ALAS, 2001), o que, certamente, reafirma a

defesa de uma das virtudes mais elementares ao homem: a integridade.

Defendia também a idéia de que o sujeito não deveria anular-se, mas

sim “recuperar su dignidad y cumplir su destino”, o que nos faz pensar na

justificação de uma maior autonomia do indivíduo, que deveria posicionar-se

em luta dos seus direitos, muitas vezes, falseados e ignorados pela política

imperante. Para Alas, “sólo es libre el ser que por sí piensa y obra”, e, em

razão disto, combater a violação daquilo que fora destinado legalmente a

todos os cidadãos tornou-se uma das principais propostas do escritor, que

acreditava que o mais indispensável ao ser humano era “hacer en la fuente

universal y primitiva de la conciencia racional luz para caminar”, justificando,

assim, o seu empenho em pôr todos os meios dependentes de sua liberdade

para a educação e o desenvolvimento intelectual.

No ano de 1880, Clarín ingressa na redação do jornal satírico Madrid

Cómico, e, um ano depois, reedita seus primeiros e mais famosos escritos,

dentre os quais podemos destacar o conto “El diablo en la Semana Santa”,

em Solos de Clarín, coleção de artigos de crítica literária, com prólogo de

Echegaray. É oportuno comentar que, na obra, o autor apresenta-nos um

expressivo panorama da época, que se desdobra desde o mordaz

desmascaramento dos falsos valores até o exame ponderado das obras de

Galdós, Valera, Campoamor, Echegaray e muitos outros consagrados

escritores da literatura espanhola.

Page 27: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

27

Em 1882, Leopoldo Alas é nomeado catedrático de Economia Política e

Estatística da Universidade de Zaragoza, e, neste mesmo ano, se casa com

Onofre García Argüelles. Escreveu também no jornal La Unión, no

bissemanal Gil Blas, na Revista de Astúrias e na Ilustración Gallega y

Asturiana, e, finalizando o período em Madrid, publica também, com a

colaboração de Armando Palacio Valdés, La Literatura em 1881, um notável

livro composto de artigos críticos sobre as produções dramáticas de 1881. A

deficiente realidade literária espanhola urgia por mudanças, e uma das

grandes propostas dos autores do livro era justamente resgatar, dentro da

ampla desordem estabelecida, a verdadeira arte literária, ou seja, o que era

digno de ser admirado e tido como exemplo. Desta forma, falar sobre a

decadência vigente com o objetivo de valorizar alguns nomes e produções

literárias de valores excepcionais, foi realmente mais que necessário, em

especial, pelo fato de ambos se mostrarem partidários do avanço e do

progresso cultural.

Clarín, assim como seu companheiro Palácio Valdés, defendeu, de fato,

uma renovação na produção literária espanhola contemporânea,

empenhando todos os seus esforços numa luta intensa e cansativa, que, não

obstante, teve como resultado a vitória dos adversários, tal como podemos

ver no seguinte fragmento: “é cansaço o que sente, acaso certa náusea pelo

espetáculo em torno, tão radicalmente negado à correção e, igualmente, ter

consciência de que muito do batalhado foi como sermão perdido”

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(CACHERO, 1993. p.220. Tradução nossa)7. La Literatura em 1881 trata-se,

portanto, de <<un resumen de la vida literaria>>, ou melhor, de <<una

espécie de crónicas de las letras>>. Um ano depois, em 1883, retorna a

Oviedo como catedrático de Direito Romano e Direito Natural, e, a partir

deste momento, o escritor nunca mais abandonou a capital de Astúrias. Dois

anos depois, em 1885, surgem os dois tomos de La Regenta, editados em

Barcelona por Daniel Cortezo, na Biblioteca Arte y Letras, com ilustrações de

Juan Llimona e gravuras de Gómez Pólo.

Publicada num período conflitante, marcado pelas disputas entre

progressistas e conservadores, La Regenta provocou uma verdadeira

revolução na provinciana cidade, alvo de inúmeras críticas e sátiras feitas

pelo escritor, que condenava, principalmente a hipocrisia dos habitantes e a

corrupção e a falsa religiosidade dos membros clericais.

Em 1886, funda a revista Folletos Literarios, composta de ensaios,

comentários, sátiras, discursos e outros tipos de texto, e, no mesmo ano,

publica o livro de contos Pipá. Por ser um homem de grandes inquietações

literárias e filosóficas, Alas é constantemente atacado pela oposição, em

especial por Luis Bonafoux, que, no folhetim “Yo y el plagiario Clarín”, o

acusava de plagiar as obras de Gustave Flaubert e Emile Zola, obrigando

Leoplodo Alas a pronunciar-se imediatamente em defesa de sua vasta

produção literária, tal com o fez em Mis Plagios, em 1888. No ano seguinte,

publica Mezclilla, um volume de crítica.

7 “es cansancio lo que siente, acaso cierta náusea por el espectáculo en torno, tan radicalmente negado a la corrección e, igualmente, el tener conciencia de que mucho de lo batallado fue como sermón perdido”.

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A intenção satírica constituiu uma parte fundamental tanto em suas

narrações mais extensas como breves, e esta será um dos motivos que irá,

em 1890, despertar a fúria de Angel Rodríguez, clérigo que empreenderá

uma severa perseguição aos escritos de Alas. Os ataques continuam

freqüentes e cada vez mais atrozes. Não obstante, Clarín não se intimida

com as críticas e censuras impostas pelos rivais, combatendo-as bravamente

em muitos dos jornais locais, o que, de fato, vem a comprovar a ilustre

vitalidade de uma personalidade indiscutivelmente comprometida com a

moralidade, justiça e sensatez.

Como crítico literário, trabalhou arduamente. Escreveu para muitos

jornais e revistas da época, pois sua condição de crítico, respeitado, temido e

até odiado, proporcionou-lhe muita fama, e esta acabou convertendo-o em

uma pessoa dedicada exclusivamente ao trabalho. Clarín vivia para escrever.

Muito mais que um ofício, a escritura impôs-se como uma tarefa purificadora,

essencial à vida do escritor.

Em 1891, publica o livro Su único hijo, podendo este ser compreendido

como a expressão estética de um Clarín mais experiente e maduro.

A evolução das obras literárias de Clarín mantém-se paralela às obras

críticas que o mesmo produzia, e uma grande prova disto é a publicação de

Doña Berta, Cuervo, Superchería, Adiós Cordera!, considerado por muito

críticos como um dos melhores contos da língua espanhola, publicado no

jornal El Liberal, e Ensayos y Revistas, em 1892. No ano de 1893, publica El

señor y lo demás son cuentos, e, em 1884, edita uma coleção de críticas

literárias, intitulada de Paliques.

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30

Para Leopoldo Alas, o exercício da escritura era muito mais que uma

atividade ocasional, era uma verdadeira vocação a qual se dedicou com

muito esforço, paixão e fervor, superando, assim, todas as reações e

manifestações de oposição à sua obra, hoje estudada por muitos

pesquisadores que visam, sobretudo, resgatar uma das vozes de maior

integridade ética e cultural da Espanha. E, em se tratando da vasta produção

literária de Clarín, vimos que esta não é composta apenas por contos,

romances, ensaios e críticas; conta também com a estréia de duas peças

teatrais.

Desde sua juventude, Alas já demonstrava uma predileção pelo teatro,

o que o levou a escrever mais de quarenta dramas, todos perdidos, segundo

nos aponta Cachero, no texto “Versos y Teatro” (CACHERO, 1993, p.214).

Jovem, chegou a acreditar que sua vocação era o teatro. Queria ser ator e

autor, e, devido a este sentimento, ou melhor, a este desejo, muito

entranhado na alma do escritor, Clarín estréia uma peça dramática de

assunto histórico, intitulada de El cerco de Zamora, em um ateneu estudantil

em Oviedo. Anos depois, esta paixão pelas artes cênicas reflorescerá. Em

1895, produz a peça Teresa, um ensaio dramático em prosa, estreando-a no

dia 20 de março, no teatro Español de Madrid.

Com a intenção de apresentar os conflitos atuais aos quais a

humanidade estava submetida, o mesmo que se fazia nos romances, tanto

Leopoldo Alas como outros escritores espanhóis, dentre os quais podemos

destacar o mestre Benito Pérez Galdós, acreditavam que deveria haver uma

“substancial renovação para a cena espanhola contemporânea” (Ibidem,

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p.214), crença que muito desagradou não só o público, como também a

crítica. Esta promoveu um verdadeiro ataque ao drama de Clarín, em

especial pelo fato de este retratar situações violentas, presentes no cotidiano

de pessoas humildes que viviam num ambiente longe de ser requintado,

luxuoso, e, em razão destas críticas feitas a Teresa, Alas é mais uma vez

obrigado a defender-se publicamente contra toda a difamação germinada

após a estréia da peça.

Consagrado por seu estilo independente, irreverente e, acima de tudo,

original, Alas sempre se mostrou adepto de uma contínua peregrinação

cultural. Evidenciou-nos ser “incapaz de se afiliar por muito tempo em um

ismo mais ou menos deslumbrante e mais ou menos de moda, fosse este o

krausismo ou o naturalismo à maneira francesa” (GOYANES, 1956, p.13.

Tradução nossa)8, e esta visão pode ser magistralmente notada em Cuentos

Morales, obra publicada em 1895, em que o escritor afirma não seguir

inspiração alheia, muito menos tendências da moda, mas sim impulsos

naturais provenientes de experiências construídas ao longo da vida. Citamos:

“(...) no sigo inspiración ajena, ni pruritos de la moda, ni nada que se le

parezca: no sigo más que naturales impulsos que la edad imprime en quien

llega a la mía” (ALAS, 1973. p.8).

Em Cuentos Morales, notamos também a presença de um Clarín mais

maduro e extremamente convicto de seus ideais. Muito mais que descrever o

mundo exterior, narrando as vissitudes históricas, políticas e sociais,

8 “incapaz de afiliarse por mucho tiempo en un ismo más o menos deslumbrador y más o

menos de moda, ya fuera este el krausismo o el naturalismo a la manera francesa”.

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Leopoldo Alas interessa-se mesmo pelo homem interior, ou seja, por seus

mais íntimos pensamentos, aspirações e conflitos, o que o faz interessar-se

posteriormente pela utilização de alguns conceitos do espiritualismo em

muitas de suas obras literárias.

No ano de 1898, O escritor apóia a criação da Extensão Universitária

em Oviedo, transformando-se em um dos principais pioneiros das atividades

universitárias. Dois anos depois, em 1901, no mesmo ano em que se publica

a edição de La Regenta com o prólogo de Benito Pérez Galdós, Alas, no dia

13 de junho, morre vítima de uma tuberculose intestinal.

Ao participar de diversas correntes filosóficas e literárias, Leopoldo Alas

adquire, ao longo de sua vida, experiências de diversos níveis, sobretudo as

que se relacionam à leitura, fundamentais para a publicação de La Regenta,

obra que por si só conseguiu enquadrá-lo na galeria dos melhores

narradores da literatura espanhola de todos os tempos.

Clarín “escrevia concentrado, abstraído, pondo a alma inteira na pluma,

metido no papel, vendo seus personagens, movendo-os ou analisando-os

com a força poderosa de seu espírito penetrante e trazendo à tona toda a

reserva de sua cultura” (POSADA, 1909, p.172-173. Tradução nossa)9.

Apresentou-nos, assim, todo o seu conhecimento construído a partir da sua

própria experiência como leitor, ou melhor, como autor-leitor, e, no decorrer

desta produtiva trajetória, marcada por muita dedicação, esforço e superação

dos próprios limites, vimos que, apesar de o próprio autor se declarar

9 “escribía concentrado, abstraído, poniendo el alma entera en la pluma, metido por el papel, viendo sus personajes, moviéndolos o analizándolos con la fuerza poderosa de su espíritu penetrante y trayendo a juego toda la reserva de su cultura”.

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“partidario del arte por el arte, en el sentido de mantener como dogma seguro

el de su sustantividad independiente” (ALAS, 1973, p.7) e afirmar que “no

hay moda literaria, ni reacción que valgan para sacarme de esta idea”

(Ibidem, p.7), as influências do naturalismo espanhol em muitas de suas

obras são evidentes.

Leopoldo Alas, interessado desde sua juventude pela poesia, pelo

teatro e pelo jornalismo, passa a demonstrar-nos um visível interesse pelo

romance, definido por Ian Watt como “veículo literário lógico de uma cultura

que, nos últimos séculos, atribui valor sem precedentes à originalidade, à

novidade. Por isso, o romance foi denominado de “novel” (1984, p.19), e esta

predileção, a nosso ver, foi provavelmente despertada pela grande

admiração que o escritor sentia pelos principais representantes do

movimento realista/ naturalista na Europa oitocentista, tal como podemos

comprovar em Cartas a Galdós, publicadas na Revista de Occidente (1964,

p.214):

Los dos únicos novelistas vivos que me gustan en absoluto son usted y Zola. ¿Qué le falta a usted? Muchas cosas que tiene Zola. ¿Y a Zola? Muchas cosas que tiene usted. ¿Y a los dos? Algunas cosas que tenía Flaubert. ¿Y a los tres? Algunas que tenía Balzac. ¿Y a Balzac? Otras que tienen ustedes tres.

E, talvez, tenha sido esta a admiração que o motivou a buscar, nas

obras destes escritores, a base para fundamentar um dos seus principais

propósitos: retratar a realidade, maior fonte de inspiração para “seu assunto,

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seus personagens e a forma de suas obras no mundo tal qual é”

(PATTISON, 1969, p.43. Tradução nossa)10.

Outra possível justificativa para explicar a grande preferência de Alas

pelo romance seria pelo fato de ele próprio encontrar-se em condições

excepcionais para penetrar nas criações alheias, dado o seu ofício de crítico

literário, o que indiscutivelmente lhe permitiu um amplo conhecimento das

técnicas narrativas predominantes naquele período. A crítica literária foi, sem

dúvida alguma, quem lhe proporcionou um imensurável conhecimento de

todos os problemas do romance, e La Regenta, por apresentar uma estrutura

formal perfeita, é uma notável prova disto.

Perpassar, portanto, pela biografia de Leopoldo Alas “Clarín” foi

extremamente necessário para melhor compreendermos sua paixão pela

literatura. Desde jovem, o escritor asturiano demonstrou-nos um expressivo

interesse pelo mundo das letras, e foi, sem dúvida, essa paixão pela leitura,

pelos livros, que despertou um dos seus maiores talentos: a escrita.

Muito do êxito conquistado por Clarín deve-se principalmente a sua

experiência como crítico literário. Admirador dos principais representantes do

realismo/ naturalismo europeu, Zola, Flaubert e Balzac, escritores que

exerceram uma notável influencia na produção literária do autor de La

Regenta, a colaboração de Leopoldo Alas para com a difusão dos

movimentos na Espanha oitocentista tornou-se cada vez mais intensa.

Acompanhado por muitos críticos literários e escritores, dentre os

quais podemos destacar a ilustre figura de Benito Pérez Galdós, essa nova

10 “su asunto, sus personajes y la forma de sus obras en el mundo tal cual es”.

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geração de escritores da qual Leopoldo Alas participava, pretendia erradicar

o sedentarismo que contaminava a mente de muitos acadêmicos da época e

que corrompia o juízo de muitos críticos literários. Citamos:

Yo no estoy solo, algunos buenos amigos me ayudan en la tarea de llamar gato al gato; pero aún somos muy pocos en comparación de la falange de críticos y gacetillos que descubren todos los días un genio al volver de una esquina o de un Ateneo” (ALAS, 1971, p.20).

Inconformado com a falta de rigor e critério, Leopoldo Alas acreditava

que deveria haver uma verdadeira renovação na produção literária

espanhola do século XIX. Para isso, defendeu o regresso às origens dos

movimentos realista/ naturalista, resgatando as principais propostas

defendidas por seus precursores. Em seguida, adaptou-as à nova realidade

espanhola que, por sua vez, já possuía uma expressiva tradição proveniente

da picaresca e de Cervantes.

Na coletânea de críticas intitulada de Solos de Clarín, notamos

claramente esta preocupação por parte do escritor. Na obra, Leopoldo Alas

afirma que:

Se ha escrito mucho, y para estudiar concienzudamente el estado de nuestras letras en este último lustro, no bastará conocer los libros y las comedias que merecieron aplauso, sino también aquellos productos averiados de la medianía o de la nulidad que sin merecerlo lo obtuvieron, o que sin obtenerlo lo solicitaron” (ALAS, 1971, p.21).

Segundo Alas, tanto as produções dignas de aplauso como aquelas

dignas de repúdio deveriam ser analisadas e estudadas pela crítica literária,

pois só assim se chegaria a um consenso do que realmente deveria ser, por

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mérito, considerado de qualidade, de conteúdo próprio para ser lido. Para o

exercício de sua função, Alas teve de ser implacável em suas observações e

críticas, o que gerou, em muitos casos, a discórdia de muitos acadêmicos e a

simpatia daqueles que acreditavam na importância de um juízo coerente,

independente do prestígio literário que os escritores detinham. E, assim,

procedeu Clarín em sua árdua missão como crítico literário de inúmeras

obras, sobretudo, dos romances publicados no período correspondente à

ascensão do naturalismo na Espanha, como foi o caso de La familia de León

Roch, de Pérez Galdós.

No livro Solos de Clarín, Leopoldo Alas demonstra-nos possuir um

profundo conhecimento das técnicas narrativas empregadas pelo

contemporâneo, e as aplaude com louvor, em especial, por se tratar de uma

produção que difunde, além de questões sociais, grandes ensinamentos,

distanciando-se cada vez mais da novela meramente descritiva.

Las novelas contemporáneas del señor Pérez Galdós son tendenciosas, sí, pero no se plantea en ellas tal o cual problema social, como suele decir la gacetilla, sino que, como son copia artística de la realidad, es decir, copia hecha con reflexión no de pedazos inconexos, sino de relaciones que abarcan una finalidad, sin lo cual no serían bellas, encierran profunda enseñanza, ni más ni menos, como la realidad misma que también encierra, para el que sabe ver... (ALAS, 1971, p.203).

Não se trata, portanto, de uma cópia fragmentada e desconexa da

realidade, mas sim de uma produção que promove uma verdadeira reflexão,

por parte do narrador, sobre o mundo real, sobre a vida. Para Clarín, “el

novelista cumple con su comedido cuando de su obra se puede obtener- por

quien pueda- lecciones de que otros no tiene ni acaso necesidad”, e Galdós,

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indiscutivelmente, consegue atingir tal objetivo, já que muito pode ser

aprendido com a leitura do respectivo romance.

Ao longo do artigo, Leopoldo Alas chama-nos a atenção para a

seguinte questão:

Podríamos creer que el escaso movimiento que se nota en la primera parte era defecto capital de la novela, mientras no es más que una manera de exposición, que han usado otros notables novelistas: Víctor Hugo, por ejemplo, en los Trabajadores del mar, en el Hombre que ríe y tal vez en los Miserables.” (ALAS, 1971, p.204).

Neste comentário, o autor-leitor, além de explicar aos leitores que a

falta de movimento presente na primeira parte da obra trata-se de um

procedimento narrativo adotado por muitos escritores europeus, demonstra

também um expressivo conhecimento desta mesma técnica na produção do

escritor francês Victor Hugo. Tal fato nos permite destacar novamente o

papel essencial que a leitura passa a ter na vida de Leopoldo Alas, tornando-

se, assim, o principal sustento para o escritor.

Outra crítica merecedora de ser comentada refere-se à arte de

escrever, em outras palavras, ao dom da escrita:

El señor Pérez Galdós ha sabido tocar tan difícil materia con todo el arte que requería, y en cierto sentido son los capítulos que consagra a Luis Gonzaga lo más grande y admirable que hasta hoy ha salido de su pluma. Fácil es leer y admirar la propiedad de aquellas místicas lucubraciones; pero ¡cuán difícil escribirlas de tal suerte! Mucho más difícil porque el señor Galdós no es un místico y ha llegado a tan propiedad no por exaltación, como llegaron muchos místicos, sino a fuerza del ingenio. (Ibidem, p.207).

A sutileza utilizada por Pérez Galdós para abordar os temas mais

profundos e densos de toda a obra é o que indubitavelmente fez com que

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38

Clarín admirasse cada vez mais aquele que “ha elevado la novela española a

unas alturas que no eran de prever pocos años hace”. (ALAS, 1971, p.209).

Segundo a crítica feita por Leopoldo Alas, os episódios referentes ao

personagem Luis Gonzaga são os mais belos e louváveis que o autor já

produziu. Soube abordar, com total profundidade, as meditações e reflexões

místicas do protagonista de forma tão precisa que o próprio Clarín não teve

outra alternativa a não ser reconhecer o mérito e o engenho de Galdós ao

descrever uma atmosfera tão repleta de sensibilidade e misticismo religioso.

A todo instante, notamos a presença de críticas positivas que

corroboram a maestria da obra. Seja com relação aos procedimentos

narrativos adotados por Galdós ou com relação ao estilo, todas vêm ao

encontro do sucesso acarretado pela publicação de La familia de León Roch,

e para Clarín só restou dizer-lhe: “Por mi parte, estoy tan satisfecho... No

tengo consejos que dar ni repararos de consideración que poner” (ALAS,

1971, p.209), o que realmente evidencia a perfeição e a complexidade da

primeira parte da obra. E o leitor, diante de uma série de elogios, dificilmente

se sentirá desmotivado para lê-la.

Na crônica referente à segunda parte do romance La familia de León

Roch, notamos que o tema do adultério é novamente revisitado. Depois de

Madame Bovary, vários foram os escritores que recorreram à figura da

<<imperfecta casada>>, em outras palavras, da mulher pecadora que via no

adultério um caminho para encontrar a tão desejada felicidade. No entanto,

nem todos os autores conseguiram retratar tão intensamente, no universo

ficcional de suas obras, o respectivo tema tal como fizeram Leopoldo Alas,

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39

em La Regenta, Flaubert, em Madame Bovary, e Eça de Queirós, em O

primo Basílio.

Gran acierto ha mostrado el señor Pérez Galdós con no quebrantar el lazo del matrimonio de la manera precipitada y un tanto grosera de que suelen hacerlo multitud de autores traspirenaicos que queriendo probar arduas tesis jurídicas, sólo prueban la anemia moral que padecen. (ALAS, 1971, p.311).

Em La familia de León Roch, a questão da traição fora abordada de

uma forma díspar. No lugar da heroína adúltera, encontramos a personagem

María Egipcíaca, a esposa traída. Não obstante, apesar da seriedade do

tema, Pérez Galdós, segundo o implacável crítico asturiano, soube como

nenhum outro narrador retratá-lo sem que seus protagonistas principais

perdessem o brilho e a força presentes em suas almas. Por nenhum

momento perdem a originalidade, espontaneidade e beleza. O romancista

espanhol consegue o inalcançável:

Un hombre casado, y casado por amor, con una mujer que ni sueña con ser infiel a su esposo, ha de justificar su conducta al perder el apego a su hogar para llevar el corazón y encaminar sus pasos al hogar de otra mujer; esto ha de hacerse sin que ese hombre aparezca como un malvado, sin que la mujer que acoge al sin albergue se nos figure liviana; y más de esto, sin que la esposa que pierde al marido sea una adúltera, ni una harpía, ni siquiera una mujer vulgar en el fondo. ¿Consigue todo eso Pérez Galdós? Por lo que conocemos de su novela preciso es confesar que hasta ahora sí. (Ibidem, p.311).

O cuidado e o rigor com que o assunto da trama de La familia de León

Roch fora tratado foi o que, sem dúvida, contribuiu para o sucesso do

romance aplaudido pela crítica literária e pelo público leitor, diferentemente

de Doña Luz, de Juan Valera. Segundo Alas, Valera era capaz de

compreender “cuánto bueno se puede extraer del tesoro de las letras sabias,

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40

a qué puede llegar una erudición vasta, profunda y bien dirigida por el

raciocinio y el gusto” (ALAS, 1971, p.308), no entanto, falha ao produzir uma

obra desprendida de grandes dotes de originalidade. Diante da

grandiosidade de muitas produções literárias da época, a <<Luz>> do

romance valeriano inevitavelmente ofuscou-se. Citamos:

¿Y Doña Luz? Si Pepita Jiménez no anduviese por esos mundos, Doña Luz sería más encomiada; pero esta luz se eclipsa ante la perla de las novelas españolas contemporáneas. No es que sea igual argumento ni los recursos del arte idénticos; pero hay grandes analogías, y sobre que estas sutilezas psicológicas no son para muy traídas y llevadas, el desempeño es inferior con mucho en esta ocasión (Ibidem, p.308).

Conforme o juízo de Clarín, fundamentado a partir das diversas

leituras realizadas, nota-se que muitas são as semelhanças entre Doña

Perfecta (1879) e Pepita Jiménez (1874), seu primeiro e maior romance, e

estas, inevitavelmente, contribuíram para com a pouca autenticidade da obra

que “enseña a no mezclar lo divino con lo humano, como ya Cervantes

quería” (ALAS, 1971, p.309).

Mais uma vez a leitura passa a assumir um papel primordial na vida

de Leopoldo Alas “Clarín”. Para exercer a função de crítico literário, teve de

ler diversas obras que variavam desde as comédias até os romances

publicados na época, e foi a partir deste contato efetivo com os textos

literários que o autor-leitor pôde aprimorar e aperfeiçoar as técnicas

essenciais à escrita; logo não é gratuito o fato de La Regenta ser um dos

romances mais complexos e estruturados de todos os tempos.

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Desta forma, vimos que todas estas leituras realizadas por Clarín ao

longo de sua vida se converteram em importantes experiências para o

escritor, e estes conhecimentos, construídos pela constante prática da

leitura, foram, indubitavelmente, essenciais para que Leopoldo Alas pudesse

produzir uma das maiores obras naturalistas do século XIX: La Regenta.

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1.2. O naturalismo em Leopoldo Alas “Clarín”

“Pelo que sabemos os limites entre <<realismo>> e <<naturalismo>>

são difíceis de serem definidos no mundo hispânico” (LISSORGUES, 1982.

p.404. Tradução nossa)11, e, em razão disto, alguns teóricos classificaram

Leopoldo Alas de realista e outros de naturalista, sobretudo pelo fato de

aceitar e inclusive apropriar-se de muitos postulados da ciência experimental

nos campos da Fisiologia, da Psicologia e da Sociologia e de alguns

aspectos temáticos e estéticos das teorias naturalistas e das obras literárias

de Emile Zola. A nosso ver, ambas as classificações estariam corretas, pois

o naturalismo espanhol é um movimento que se origina do realismo, ou seja,

constitui-se a partir de muitas diretrizes realistas, e, talvez, seja por isso que

haja uma grande dificuldade em definir os limites entre um Clarín realista e

um Clarín naturalista.

No caso de La Regenta, por ser um romance publicado no final do

século XIX, período em que as teorias naturalistas estavam em plena

vigência, e por várias destas se encontrarem presentes na obra, decidimos,

em nossos estudos, considerá-la naturalista, levando em conta o fato de que

o naturalismo é um desdobramento do movimento realista na Espanha.

A fervorosa revolução provocada por Zola, com a publicação de

L’Assomoir (1877), contagiou muitos escritores espanhóis que se motivaram

com as possibilidades de se criarem novas formas narrativas, inspiradas na

11 “Por lo que sabemos hasta la fecha <<realismo>> y <<naturalismo>> son difíciles de deslindar en el mundo hispánico”.

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43

tradição nacional e nas novas correntes naturalistas, em particular nas

francesas. Leopoldo Alas, assim como Galdós, Valera e Pardo Bazán, com o

propósito de revitalizar a produção literária espanhola da época, resgatou

alguns dos principais postulados deste movimento, e, para melhor

compreendê-los, nos pareceu interessante tecer alguns comentários, em

especial, sobre o movimento naturalista europeu, que teve como

representante máximo o escritor francês Emile Zola.

Segundo as teorias do movimento naturalista europeu, o romancista,

depois de uma minuciosa documentação de dados, deveria tratá-los com um

critério experimental, e Zola foi o primeiro romancista que tratou de aplicar o

método filosófico e científico do positivismo na narração literária. O escritor

francês é, como ele próprio declara, um determinista, uma vez que tem

consciência de que a forma de comportamento do homem depende das

circunstâncias materiais de sua vida. Reconhece, sem sombra de dúvidas, as

teorias positivistas de Taine e Auguste Comte e as incorpora em seus textos

literários, atribuindo às Ciências Sociais uma importante tarefa: a de

transformar e melhorar as condições externas da vida humana.

O escritor naturalista pretende “indicar os viveiros em que o germe

criminal se esconde, (...) mostrar o meio social em que se desenvolvem ou

eliminar as enfermidades do vício ou da dor eterna” (PATTISON, 1969, p.43.

Tradução nossa)12, com o objetivo de transmitir a impressão de fidelidade em

relação à experiência humana, e talvez tenha sido por isso que as produções

12 “indicar los viveros en que el germen criminal se esconde, (...) mostrar el medio social en que se desarrollan o extirpan las enfermedades del vicio o del dolor eterno” .

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literárias que incorporaram o método científico tiveram uma grande aceitação

de todo aquele emergente público leitor, deslumbrado pelos progressos

científicos, materiais e artísticos de seu tempo.

Aprimorando ainda mais os componentes básicos do discurso realista,

notamos que o naturalismo considerava relevante a adaptação do indivíduo

ao meio e sua luta pela existência, assim como os fatores sociais,

educacionais e ambientais que, por sua vez, podem explicar a conduta dos

personagens. Desta forma, não se torna gratuito o fato de Clarín ter dedicado

os capítulos IV e V de La Regenta aos períodos correspondentes à educação

de Ana Ozores, apresentando, através de uma minuciosa descrição dos

ambientes e das personagens envolvidas neste processo, um verdadeiro

estudo sobre como se formou o imaginário, ou melhor, a subjetividade da

protagonista, que, desde criança, demonstrara um imenso interesse pela

leitura, pelo ato de ler.

O naturalismo vai buscar quase todos os seus critérios de

probabilidade no empirismo das ciências naturais, difundindo a importância

da análise psicológica dos personagens, da valorização do desenvolvimento

do enredo, da descrição dos ambientes (espaços públicos e privados), da

idéia de que todo o fenômeno natural tem o seu lugar numa cadeia aberta

com condições e motivos, e do predomínio do método de observação

científica que, por sua vez, não desconsidera nenhum incidente por menor

que este seja.

Os naturalistas passam a priorizar uma vida dedicada à observação

do interior humano, e o surgimento da Psicologia no século XIX sintetizará

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cientificamente esta noção. Segundo Germán Gullón, “nos romances da

segunda época, também denominados contemporâneos, o fisionômico, as

descrições dos personagens pertencentes ao grupo dos bons ou dos maus,

desaparecem, e nascem no texto seres de enorme complexidade”13 (1993,

p.4), e esta poderá ser compreendida à medida que o leitor das narrativas

oitocentistas se depararem com temas relacionados a paixões incontroláveis,

sonhos, desejos, ganância, fervor religioso e “a tudo quanto cai na parcela do

humano concebido com a latitude do psicológico, que abriu portas a

sentimentos anteriores negados”14 (Ibidem, p.4), fato que corrobora o

processo de interiorização do romance espanhol.

De acordo com a crítica espanhola, Benito Pérez Galdós foi o

introdutor do naturalismo na Espanha como romance La desheredada

(1881), no entanto, só depois de alguns anos é que o escritor, acompanhado

por Leopoldo Alas, finalmente, declarou-se partidário do movimento

naturalista que se fundamentava na teoria de Emile Zola. Citamos:

Nem se quer quis reconhecer por aquelas datas qualquer vínculo com a arte zolesca. Só ao longo dos anos e desde a distância da recordação, terminou por confessar que ele, junto com Clarín, tinham feito parte em seu dia <<naquela procissão do naturalismo>>. (MIRALLES, 1989, p.15. Tradução nossa)15

13 “en las novelas de la segunda época, también denominadas contemporáneas, lo fisonómico, las descripciones de los personajes pertenecientes al grupo de los buenos o de los malos, desaparecen, y nacen en el texto seres de enorme complejidad”. 14

“a todo cuanto cae en la parcela de lo humano concebido con la latitud de lo psicológico, que abrió puertas a sentimientos anteriores negados”. 15 “Ni siquiera quiso reconocer por aquellas fechas cualquier vínculo con el arte zolesco. Sólo al cabo de los años y desde la distancia del recuerdo, terminó por confesar que él, junto con Clarín, habían formado parte en su día <<en aquella procesión del naturalismo>>”.

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Assim como Galdós, Clarín também incorporou, a sua maneira, as

doutrinas da escola moderna, e uma delas refere-se ao determinismo

hereditário que, segundo Miralles (1989, p.15), segue o seu curso inexorável,

ao fio temporal, marcado pelo duplo signo de uma degradação física e

espiritual. E, em razão desta deterioração, surge ainda a questão da pressão

do meio, presente tanto nos ambientes urbanos e rurais como no entorno

social. No entanto, ao mesmo tempo em que identificamos várias influências

do naturalismo de Zola nas produções dos escritores espanhóis, deparamo-

nos também com profundas diferenças que os separam, dentre elas, citamos

a própria questão do entorno social que assume mais protagonismo em Zola

que em Clarín e Galdós, por exemplo.

Outra notável questão relaciona-se à recriação do mundo físico no

universo literário, ou seja, a representação da realidade exterior feita por

meio de uma minuciosa e detalhada descrição, um importante recurso

lingüístico, que “supõe a existência de um mundo objetivo mais adiante do

fato escrito” (KRONIK,1988, p.2. Tradução nossa)16, e este mundo será

retratado, em especial por Leopoldo Alas “Clarín”, em La Regenta, com o

objetivo de convertê-lo em um instrumento de denúncia social, evidenciando,

assim, o deplorável estado das classes desfavorecidas, a ociosidade da nova

geração de jovens, a corrupção dos governantes, o culto à aparência, a

hipocrisia da burguesia, a frivolidade da aristocracia, as injustiças trabalhistas

e outros males, tal como o fez Zola em muitas de suas obras.

16 “supone la existencia de un mundo objetivo más allá del hecho escrito”.

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A sociedade européia do século XIX torna-se a principal fonte de

conteúdo necessário para a produção de uma obra literária. Assim como o

fez Flaubert em Madame Bovary, em 1856, muitos foram os romancistas que

passaram a colher materiais diretamente do cotidiano, produzindo, a partir

dos processos de observação e documentação, um verdadeiro panorama

sócio-econômico, político e cultural da época.

Benito Pérez Galdós, no prefácio de Misericórdia (1897), confirma a

prática desse importante estudo empreendido pelos escritores europeus,

acentuando, sem sombra de dúvidas, a árdua missão de retratar, muitas

vezes, o ignorado e o excluído, em outras palavras, os espetáculos mais

tristes da degradação humana. Citamos:

Em Misericordia me propus descender às capas ínfimas da sociedade matritense, descrevendo e apresentando os tipos mais humildes, a suma pobreza, a mendicidade profissional, a desocupação viciosa, a miséria dolorosa quase sempre, em algunos casos picaresca ou criminosa e merecedora de correção. Para isto tive de dedicar-me a longos meses de observações e estudos diretos do natural, visitando as guardas de gente miserável ou meliante que se alberga nos populosos bairros do Sul de Madri. Acompanhado de policiais, vasculhei as <<Casas de dormir>> das ruas de Mediodía Grande e do Bastero, e para penetrar nas repugnantes casas (...) tive de disfarçar-me de médico da Higiene Municipal. (GALDÓS, 1990, p.207. Tradução nossa)17

Ao analisarmos este fragmento, vimos também que havia um

interesse muito explícito em retratar as classes menos privilegiadas, ou seja, 17

“En Misericordia me propuse descender a las capas ínfimas de la sociedad matritense, describiendo y presentando los tipos más humildes, la suma pobreza, la mendicidad profesional, la vagancia viciosa, la miseria dolorosa casi siempre, en algunos casos picaresca o criminal y merecedora de corrección. Para esto hube de emplear largos meses en observaciones y estudios directos del natural, visitando las guardias de gente mísera o maleante que se alberga en los populosos barrios del Sur de Madrid. Acompañado de policías, escudriñé las <<Casas de dormir>> de las calles de Mediodía Grande y del Bastero, y para penetrar en las repugnantes viviendas (...), tuve que disfrazarme de médico de la Higiene Municipal”.

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<<las capas ínfimas de la sociedad matritense>>, e, para isso, o próprio

Galdós teve de disfarçar-se de médico. O escritor, por meio de uma profunda

investigação fundamentada na observação e documentação da realidade,

aprendeu a partir de sua própria experiência, e, este conhecimento,

construído gradativamente por meio de longos meses de análises e estudos,

tornar-se-á de extrema importância para a construção do respectivo romance

e de muitos outros de sua autoria.

Há, por parte dos escritores espanhóis, uma expressiva sede de

objetividade que, a propósito, vem ao encontro do distanciamento do fulcro

subjetivo presente nas narrativas românticas, compostas, muitas vezes, por

enredos inverossímeis. Coube ao narrador destes romances a ilustre tarefa

de desnudar as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima,

expondo, da forma mais nítida possível, os diferentes temperamentos e as

profundas inquietações da natureza humana, geralmente manifestadas pela

influência do meio, como é o caso de Oviedo, provinciana cidade retratada

por Leopoldo Alas em La Regenta (1884-1885).

1.2.1. Os caracteres singulares do naturalismo espanhol em La

Regenta

No sé si sabrá Vd. que yo también me he metido a escribir una novela, vendida ya (aunque no cobrada) a Cortezo de Barcelona. Si no fuera por el contracto, me volvería atrás y no la publicaba: se llama La Regenta y tiene dos tomos- por exigencias editoriales. Creo que empieza demasiada gente escribir novelas, y al pensar, de repente, que yo también voy a prevaricar me dan escalofríos. Hablando en secreto, creo firmemente que los únicos novelistas verdaderos son Vd. y Pereda, y de la parte contraria Alarcón y algo Valera, cuando

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Dios quería [...] Ahora figúrese Vd. lo que me parecerá de mí mismo. No me reconozco más condiciones que un poco de juicio y alguna observación para cierta clase de fenómenos sociales y psicológicos, algún que otro rasgo pasable en lo cómico, un poco de escrúpulo en la gramática... y nada más. Me veo pesado, frío, desabrido..., y, en fin, ha sido una tontería meterme a escribir novelas. ¿Con qué cara voy a insultar en adelante a los demás?18

Em Cartas a Galdós, Clarín confessa ao escritor estar escrevendo o

romance La Regenta, fato até então mantido em sigilo absoluto. Por vários

momentos, o implacável crítico literário mostra-se receoso e preocupado com

a repercussão que a obra poderia assumir, em especial, no âmbito

acadêmico da época.

O medo e a insegurança, capazes de provocar <<escalofríos>>, se

apoderam do autor-leitor que, inicialmente, chega a arrepender-se de ter se

dedicado à produção de romances. No entanto, meses depois, o

arrependimento momentâneo de Leopoldo Alas “Clarín” é desfeito e, no lugar

de temores e preocupações, surge uma sensação de confiança que

corroborava a idéia de que o escritor estava definitivamente no caminho

correto. La Regenta foi considerada unanimemente pela crítica como o

melhor romance naturalista espanhol do século XIX.

A notícia de que Clarín publicara a obra difundiu-se rapidamente pelos

círculos literários da época, e, em seguida, pelo público leitor, graças à

distribuição de um prospecto de propaganda feito pela <<Biblioteca Arte y

Letras>>.

18 CLARÍN. Cartas a Galdós. Revista de Occidente, Madrid, 1964. p.220-221.

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Dividida em dois volumes, a primeira parte é formada pelos quinze

primeiros capítulos, e a segunda, pelos capítulos XVI a XXX. Concebida a

partir de uma ótica naturalista, notamos a essência do movimento espanhol

completamente entranhada em várias páginas do romance, especialmente,

nas que se destinam a descrever um dos personagens mais elementares à

trama: Fermín de Pas. Vejamos:

El Magistral, olvidado de los campaneros, paseaba lentamente sus miradas por la ciudad escudriñando sus rincones, levantando con la imaginación los techos, aplicando su espíritu a aquella inspección minuciosa, como el naturalista estudia con poderoso microscopio las pequeñeces de los cuerpos. No miraba a los campos, no contemplaba la lontananza de montes y nubes; sus miradas no salían de la ciudad. (ALAS, 1997, p.64).

Da mesma forma que os naturalistas analisavam minuciosamente os

seus objetos de estudo, o clérigo procedia igualmente, empreendendo longas

e profundas observações sobre a provinciana cidade, que acabou

transformando-se em uma de suas maiores presas.

Vetusta exercia-lhe fascínio. A sede incontida de dominá-la intensifica-

se, sobretudo pelo fato de Fermín possuir pleno poder sobre as

consciências, obtido por meio das confissões gerais feitas pelos <<fiéis>> da

cidade. No entanto, será este poder que o religioso crê deixá-lo isento,

imune, dos males que contaminavam Vetusta que o levará a apaixonar-se

pela bela Ana Ozores e a cometer o sacrilégio, corroborando, assim, a

fragilidade do ambicioso protagonista, em outras palavras, a fraqueza do

homem.

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A vulnerabilidade feminina também é destacada pelo narrador de La

Regenta. Ana Ozores, a personagem mais bela de toda Vetusta, é a

representação do conflito existente entre a carne e o espírito, e esta relação

conflitante irá marcar toda a existência da protagonista duplamente

assediada por Fermín e Álvaro Mesía. Alma e corpo, segundo Vives (2000),

“lutam para conseguir o domínio absoluto: obedecer ao chamado da carne

significa abandonar as exigências do espírito e vice-versa”19, e esta

incompatibilidade fez com que a mesma se sentisse, por vários momentos,

dominada por forças opostas, tal como observamos no seguinte fragmento:

Dividía el tiempo entre el mundo y la iglesia: ni más ni menos que doña Petronila, Olvido Páez, Obdulia y en cierto modo la Marquesa. Se la vio en casa de Vegallana y en las Paulinas, en el Vivero y en el Catecismo, en el teatro y en el sermón. Casi todos los días tenían ocasión de hablar con ella, en sus respectivos círculos, el Magistral y don Álvaro, y a veces uno y otro en el mundo y uno y otro en el templo; lugares había en que Ana ignoraba si estaba allí en cuanto mujer devota o en cuanto mujer de sociedad. Pero ni De Pas ni Mesía estaban satisfechos. Los dos esperaban vencer, pero a ninguno se le acercaba la hora del triunfo. (ALAS, 1997, p.587).

Sufocada pela dualidade de seus sentimentos, Ana Ozores não resiste

à pressão e entrega-se a Álvaro Mesía, consumando, assim, o adultério.

Desta forma, consideramos que a maestria do autor-leitor não se encontra

propriamente na história da traição, da infidelidade feminina, mas sim na

dramática luta entre dois grandes pólos: o sagrado e o profano.

Como vimos, Ana Ozores vive cedendo oras aos latentes impulsos

carnais, oras às obrigações de esposa e aos deveres religiosos, e esta

19 “luchan por conseguir el dominio absoluto: obedecer a la llamada de la carne significa abandonar las exigencias del espíritu y viceversa”.

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relação inconciliável fez com que muitos críticos da época acusassem

injustamente o escritor asturiano de plágio, dada as semelhanças existentes

entre as primeiras obras naturalistas publicadas no século XIX. Apesar de

ambas tratarem de questões relacionadas ao adultério, La Regenta é única.

Sua complexidade consiste, antes de tudo, em desconstruir a idéia do

tradicional triângulo amoroso, ou seja, a estrutura do marido traído, da

esposa infiel e do amante sedutor. Além destas três importantes figuras,

deparamo-nos na narrativa de Clarín com mais uma: a do clérigo apaixonado

que assumirá, através da inversão� método de elaboração textual�, o papel

de esposo enganado. Ao contrário do que se esperava, será Fermín de Pas

o principal responsável pela vingança de Ana Ozores, e não o seu legítimo

marido, don Victor Quintanar. Este é, portanto, um dos maiores engenhos do

narrador.

A originalidade de La Regenta também pode ser encontrada em

outros aspectos. Muitas foram as novidades empreendidas por Leopoldo

Alas, sobretudo, as que se relacionam às técnicas narrativas. No primeiro

volume, notamos que o narrador não se limita apenas a apresentar os

personagens; expor os ambientes e as primeiras fases da ação,

aprofundando os movimentos interiores dos protagonistas de maneira ativa,

pelo contrário, apresenta ação: os capítulos IV e V que narram a conturbada

infância e juventude de Ana Ozores, os que relatam o passado de Fermín de

Pas e de dona Paula, mãe do personagem, e muitos outros.

Leopoldo Alas estabelece, ao longo do romance, uma continuidade

narrativa entre os elos da estrutura, relacionando figuras e situando-as no

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espaço e tempo. O mesmo ocorre com os personagens secundários de La

Regenta, “observados com igual cuidado que os protagonistas”20. Sua

existência textual, “não é menos sólida, pois idêntico princípio- o da

autenticidade- os rege” (Ibidem, p.13)21, o que por si só justifica a extrema

importância dos dois mais puros personagens secundários de toda a obra:

Tomás Crespo, Frígilis, companheiro de caça e melhor amigo de Quintanar,

e o bispo Caimorán, o único religioso dotado de uma espiritualidade sincera.

Ainda com relação à estrutura da obra, notamos que a correlação das

apresentações e das ações, a diversidade dos espaços públicos e privados,

o silencio momentâneo do narrador, de forma a deixar os leitores de frente

aos personagens para que estes possam vê-los, escutá-los e julgá-los, o

enfoque sucessivo dos mesmos em grupos sociais e familiares, a

fragmentação e a súbita mudança do discurso narrativo- o relato cortado pelo

diálogo, a narração pela descrição e outros- são recursos que

impreterivelmente tendem a estimular a receptividade e o interesse dos

leitores de La Regenta, que, dificilmente se sentirão desmotivados, diante da

peculiaridade e originalidade do enredo.

Conhecida pela profundidade e complexidade da trama, La Regenta,

de Leopoldo Alas “Clarín”, é um dos romances naturalistas mais articulados

da literatura espanhola do século XIX. Considerando a expressiva e

inigualável experiência do escritor como renomado crítico literário e jornalista

de importantes jornais da época, vimos que estas atividades foram

20 Ver o prólogo de La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”, escrito por Ricardo Gullón (1997, p.13). “observados con igual cuidado que los protagonistas”. 21 “no es menos sólida, pues idéntico principio- el de la autenticidad- los rige”.

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fundamentais para a construção da obra que retrata, com muita maestria, a

provinciana cidade de Oviedo, intitulada de “Vetusta”.

Publicada entre os anos de 1884 e 1885, o romance naturalista

provocou uma grande polêmica em vários setores da cidade, em especial,

naqueles que se encontravam sob as rédeas de uma das instituições mais

poderosas daquele período: a Igreja Católica. Desta forma, não nos cabem

dúvidas de que há uma proposta, assim como em El Lazarillo, por parte do

narrador, de enfatizar a inexorável exploração da maldade humana, a fim de

evidenciar a assustadora ausência de caridade no seio de uma sociedade

orgulhosa por intitular-se <<cristã>>.

Contra o seu poderio abusivo e, em muitos casos, arbitrário, o

narrador Clarín, implacável em suas críticas, promove inúmeras denúncias,

evidenciando-nos, ao longo dos trinta capítulos da obra, a arrogância, a

ambição e a imoralidade de muitos membros religiosos que, em vários

episódios, mostravam-se avessos à própria doutrina católica, ensinada por

eles.

Com o auxílio do narrador, conseguimos desvendar o proibido, ou

seja, tudo aquilo que era escondido, omitido pelo silêncio. A verdade

submerge e, junto a ela, surgem inúmeras indagações sobre infinitas

questões, dentre elas a simonia praticada por alguns eclesiásticos que

visavam o lucro com as vendas de artigos religiosos, e foi a partir desta

denúncia que conseguimos penetrar, e, neste aspecto, destacamos

novamente a primordial contribuição do narrador, na atmosfera ficcional de

La Regenta.

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Ambientada em um período correspondente à vida do escritor

asturiano, La Regenta, segundo Beser (1982, p.69), é “um estudo de uma

concepção romântica da vida, mas situada num marco realista, e é este o

marco que converte o livro em romance”22. Grande parte de seus

personagens, em especial a principal protagonista da obra, Ana Ozores,

preservava, no fundo de suas almas, idéias puramente românticas, que se

transformavam, muitas vezes, em aspirações massacradas por uma

realidade esmagadora que assiduamente condenava toda e qualquer

manifestação que entrasse em conflito com os valores pré-determinados por

ela. Citamos:

Nada más ridículo en Vetusta que el romanticismo. Y se llamaba romántico todo lo que fuese vulgar, pedestre, prosaico, callejero. Visita era el papa de aquel dogma antirromántico. Mirar a la luna medio minuto seguido era romanticismo puro; contemplar en silencio la puesta del sol... ídem; respirar con delicia el ambiente embalsamado del campo a la hora de la brisa... ídem; decir algo de las estrellas... ídem, encontrar expresión amorosa en las miradas, sin necesidad de ponerse al habla..., ídem; tener lástima de los niños pobres..., ídem; comer poco..., ¡oh!, esto era el colmo del romanticismo (ALAS, 1997, p.479).

Sendo assim, notamos que em Vetusta não havia lugar para o lirismo

e para o romantismo, mas sim para a repressão e contenção das verdadeiras

paixões e desejos. Ser sentimentalista era algo <<cursi>>, inapropriado para

aquela realidade tão irretorquível, e esta idéia fica-nos clara, sobretudo, em

uma cena em que a Marquesa de Vegallana e Saturnino Bermúdez

conversam justamente sobre esta questão. Vejamos:

22

“un estudio de una concepción romántica de la vida, pero situada en un marco realista, y es este marco el que convierte el libro en novela”.

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-Yo no soy sentimental- decía ella a don Saturnino Bermúdez, que la oía con la cabeza torcida y la sonrisa estirada con clavijas de oreja a oreja-, yo no soy sentimental, es decir, no me gusta la sensiblería..., pero leyendo ciertas cosas, me siento bondadosa..., me enternezco..., lloro..., pero no hago alarde de ello (Ibidem, p.544).

Neste mundo, venciam, ou melhor, sobreviviam aqueles que

sabiamente separavam suas fantasias e sonhos da realidade, não permitindo

jamais se deixar influenciar pelo lado emotivo, sentimental, tal como vimos

nas palavras da Marquesa, dona Rufina de Robledo. A razão, em muitos

casos, direcionada para proveitos próprios, era a principal arma contra a

sensibilidade e o escapismo romântico que tomaram conta de inúmeros

protagonistas da obra, sobretudo, dos personagens leitores que tiveram seus

imaginários alimentados pelos livros.

Adentrando ainda mais na esfera literária de La Regenta, notamos

uma característica interessantíssima: a polifonia da obra. Cada personagem

se comunica, se expressa com a sua própria voz, ou seja, com o seu próprio

discurso, o que nos faz pensar imediatamente em Don Quijote, o primeiro

romance moderno a empreender esta grande transformação na narrativa. No

romance clariniano, temos um narrador externo onisciente que pode

apresentar aos leitores tudo que desejar. Este, por meio de vários

procedimentos narrativos, dentre eles a técnica do refletor23, permite que o

público leitor acompanhe passo a passo a evolução do enredo da obra.

Nenhum ínfimo detalhe lhe é omitido; tudo é posto em evidência, e, para 23 Coube ao narrador, por meio da técnica do refletor, a minuciosa tarefa de penetrar na alma, ou melhor, nas galerias mais íntimas por onde transita o pensamento dos protagonistas, de maneira a representar a voz particular de cada um deles (os seus discursos), expondo, assim, aos leitores de La Regenta, a forma com a qual cada um refletia. Assume, portanto, o papel de transmissor, de emissor do ato da linguagem.

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melhor aclarar esta idéia, nos pareceu interessante citar um fragmento em

que o narrador, através deste procedimento, consegue apresentar-nos as

mais íntimas aflições do covarde Álvaro Mesía e a fulminante raiva de Fermín

de Pas, rivais que disputavam o amor de Ana Ozores. Citamos:

Don Álvaro tuvo un poco de miedo, de aprensión de miedo. <<Si este hombre- pensó-, enamorado de la Regenta, desairado por ella, se volviera loco de repente al verme, creyéndome su rival y se echara sobre mí a puñetazo limpio aquí, a solas...>> Mesía recordaba la escena del columpio en la huerta de Vegallana. El Magistral pensó por su parte al ver a don Álvaro: <<¡Si yo me arrojara sobre este hombre y como puedo, como estoy seguro de poder, le arrastrara por el suelo, y le pisara la cabeza y las entrañas...!>> Y tuvo miedo de sí mismo (Ibidem, p.752).

Antes mesmo de chegar ao capítulo que narra a consumação do

adultério, o leitor, plenamente consciente de todos os fatos e acontecimentos

sucedidos no decorrer do relato, já prevê, por conhecer o que cada

protagonista pensa, a tragédia que está por vir, imaginando a gravidade das

conseqüências que a traição de Ana Ozores poderá assumir no romance. E

não são somente os leitores que prevêem a desventura; alguns

protagonistas de La Regenta também são dotados de dom premonitório. No

capítulo XVI da obra, podemos ver claramente a manifestação da

premonição, ou seja, deste método de elaboração textual tão precioso à

narrativa de Clarín, na cena em que a protagonista Ana Ozores, ao assistir a

peça Don Juan Tenorio, de Zorrilla, promove uma analogia entre o drama

representado no coliseu de Vetusta e a sua própria vida:

Como se había empeñado la imaginación exaltada en comparar lo que pasaba en Vetusta con lo que sucedía en Sevilla, sintió supersticioso miedo al ver el mar en que paraban aquellas aventuras del libertino andaluz; el pistoletazo con que don Juan

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saldaba sus cuentas con el comendador le hizo temblar; fue un presentimiento terrible. Ana vio de repente, como a la luz de un relámpago, a don Víctor vestido de terciopelo negro, con jubón y ferreruelo, bañado de sangre, boca arriba, y a don Álvaro con una pistola en la mano, enfrente al cadáver (Ibidem, p.509).

Outra importante característica da obra, resgatada, provavelmente, da

literatura picaresca, é o relato retrospectivo. Assim como o narrador de El

Lazarillo de Tormes, Clarín, para melhor definir e explicar as origens de dois

dos principais protagonistas da obra, Ana Ozores e Fermín de Pas, regressa

ao passado, apresentando-nos um verdadeiro histórico sobre a vida e a

trajetória dos mesmos. Através deste procedimento, torna-se possível a

compreensão dos motivos essenciais que levaram a jovem a buscar no amor

proibido a felicidade que tanto almejava encontrar e as razões pelas quais o

clérigo torna-se um dos protagonistas mais inescrupulosos de todo o

romance. Muito mais que uma identidade, um nome, ambos possuem uma

história, e, ao propor esta viagem ao tempo, ao período correspondente à

infância de Ana e de Fermín, presente nos capítulos IV, V, e XV,

conseguimos verificar a existência de muitos aspectos semelhantes em suas

vidas, o que possivelmente poderia justificar a afinidade e a simpatia que,

inicialmente, um teve pelo outro. De confessor, o personagem transforma-se

gradativamente em amigo, em fiel confidente da mente mais conflitante de

toda a cidade, dividida ora pelos impulsos carnais, ora pelos impulsos

religiosos. Fermín de Pas, atordoado pela possibilidade de tê-la física e

espiritualmente, se apaixona inevitavelmente pela bela Ozores, tornando-se

um ser desejante. Mais uma vez será a presença feminina que motivará a

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manifestação do desejo masculino. Sendo assim, el Magistral de Vetusta

passará a viver para a sua paixão:

No quería más que hundir el alma en aquella pasión innominada que le hacía olvidar el mundo entero, su ambición de clérigo, las trampas sórdidas de su madre de que él era ejecutor, las calumnias, las cábalas de los enemigos, los recuerdos vergonzosos, todo, todo, menos aquel lazo de dos almas, aquella intimidad con Ana Ozores (Ibidem, p.635-636).

E esta intimidade ganhará proporções avassaladoras, ao longo dos

capítulos de La Regenta, à medida que o clérigo vai passando por um

processo de transformação, de metamorfose. O leitor da obra vai se

conscientizando de que por debaixo das vestes religiosas há um homem

como qualquer outro, que sente, que chora, que sorri, que mente, e que,

sobretudo, deseja: “El Magistral no era el hermano mayor del alma, era un

hombre que debajo de la sotana ocultaba pasiones, amor, celos, ira...”

(Ibidem, p.746), e foi justamente esta nova condição, a de ser desejante, que

o levou à perdição, à desgraça, uma vez que passou a contrariar uma série

de valores morais e religiosos defendidos pela soberana Igreja Católica e por

ele mesmo em seus pomposos sermões pronunciados na catedral da cidade.

Aquella felicidad que saboreaba De Pas como un gastrónomo los bocados, aquella libertad, aquella pereza normal que el verano hacía más voluptuosa para su cuerpo robusto, los sueños vagos de amor sin nombre, la deliciosa realidad de ver a la Regenta a todas horas y mirarse en sus ojos y oírla dulsísimas palabras de una amistad misteriosa, casi mística, hacían desear a don Fermín que el sol se detuviera otra vez, que el tiempo no pasara. Aquel agosto, tan triste para don Víctor, era para el Magistral el tiempo más dichoso de su vida (Ibidem, p.664-665).

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Mais uma vez a idéia de desejo ressurge na narrativa de Clarín. O

protagonista, que teve sua infância e adolescência comprometidas com os

estudos, conteve, nestas fases, muitos dos seus sonhos e aspirações em

prol da formação eclesiástica, acompanhada passo a passo por dona Paula,

a mãe do personagem. Uma das mentes intelectuais mais brilhantes da

sociedade vetustense, rica de conhecimentos teóricos, porém pobre de

experiências de vida, diante do novo, do sentimento desconhecido, mostra-

se completamente perturbado, a ponto de comprometer a temível e

inabalável imagem que levara anos para ser construída.

A comparação feita pelo narrador, no capítulo XI da obra: “Se parecía

un poco a su querida torre de la catedral, también robusta, también

proporcionada, esbelta y bizarra, mística; pero de piedra” (Ibidem, p.326), se

desfaz durante o relato. O coração de Fermín de Pas, incipiente em

relacionamentos amorosos, abandona o seu estado original, o de

<<piedra>>, e passa a ganhar vida, manifestando sentimentos jamais

experimentados por ele, e, com o propósito de corroborar esta idéia, nos

pareceu interessante citar um fragmento em que o clérigo se revolta ao

descobrir a traição de Ana Ozores, evidenciando-nos, assim, a dor, a

emoção sentida pela perda. Vejamos:

Había paseado pisando con ira, con largos pasos, como si quisiera rasgar la sotana con rodillas; aquella sotana que se le enredaba entre las piernas, que era un sarcasmo de la suerte, un trapo de carnaval colgado al cuello. Él, él era el marido- pensaba- y, no aquel idiota, que aún no había matado a nadie (Ibidem, p.904-905).

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61

O desejo converte-se em desgraça. Inconformado por ter fracassado,

por ter perdido Ana Ozores para um de seus maiores opositores, o sedutor

Álvaro Mesía, o clérigo, com o seu coração corroído pelos ciúmes e pela ira,

vai se colocar na posição de marido traído e, a partir daí, irá conspirar contra

a amada, empreendendo um monstruoso plano de vingança, que resultará

na morte do ex-regente de Audiência, don Victor Quintanar, e na

desmoralização da personagem feminina mais cobiçada de toda a obra.

Desiludido em sua dor, vemos nitidamente o protagonista se

recompor, regressando ao seu estado inicial. Desprovido de compaixão e de

piedade, o clérigo negará o perdão a Ana Ozores, castigando-a severamente

por meio da indiferença e do desprezo. Recobra sua verdadeira identidade,

aquela que nos fora apresentada no primeiro capítulo da obra: “Era

montañés (...). Cuanto más subía más ansiaba subir; en vez de fatiga sentía

fiebre que les daba vigor de acero a las piernas y aliento de fragua a los

pulmones. Llegar a lo más alto era un triunfo voluptuoso para De Pas”

(Ibidem, p.63), e será esta ambição desmedida pelo poder, seguida pela

presença de um orgulho ferido, que ressuscitará a real essência do único

personagem que conhecia <<la Vetusta subterránea>>, a cidade oculta das

consciências.

Narrativa construída sob a séria prerrogativa de fazer chocar através

do riso, de estabelecer uma denúncia pela ironia, de expor atrozmente a

decadência e corrupção do clero como um dos males que corrompia a

sociedade ovetense da época, aos olhos do escritor asturiano, vimos que o

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62

humor e a ironia são dois importantes recursos estilísticos utilizados por

Clarín na crítica à sociedade espanhola oitocentista.

Por muitas vezes, o narrador opta por um tom mais humorado, dando

preferência ao patético, ao ridículo. Aposta, cada vez mais, não na

agressividade do relato, mas sim na ironia do discurso, tal como pudemos

observar no seguinte fragmento: “don Santos es un tonel en persona y tiene

más espíritu de vino en el cuerpo que sangre en las venas; es una mecha

empapada en alcohol..., prenda usted fuego y verá” (Ibidem, p.668-669). O

alcoolismo do protagonista Santos Barinaga, ou seja, o vício compulsivo pela

bebida, é tratado no romance com altas doses de humor e irreverência, e

este tom cômico está presente, inclusive, na própria essência, natureza do

personagem, amargado pela falência de seus negócios. Vejamos:

- Todo es inútil..., la Iglesia me ha arruinado..., no quiero nada con la Iglesia... Creo en Dios, creo en Jesucristo... que era... un gran hombre..., pero no quiero confesarme, señor Carraspique, y siento... darle a usted este disgusto. Por lo demás..., yo estoy seguro... de que esto que tengo... se curaría..., o por lo menos... se..., se..., con aguardiente... (Ibidem, p.687).

Através do discurso do narrador, verificamos que há, muito mais que

uma crítica social, uma exposição da condição humana: a de degradação.

Desta forma, a trágica condição de Santos Barinaga é o que

verdadeiramente o torna uma das figuras mais risíveis de toda a obra.

Em: “su marido era botánico, ornitólogo, floricultor, arboricultor,

cazador, crítico de comédias, cómico, jurisconsulto; todo menos un marido”

(Ibidem, p.296), notamos que Víctor Quintanar também não foge das

picantes doses de humor empregadas pelo narrador de La Regenta. Em

Page 63: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

63

muitos episódios da obra, deparamo-nos com a figura de um ser paternalista

que mais podia ser compreendido como um pai, ao invés de marido: “Su Ana

era como su hija... Y él sentía su deshonra como la siente un padre” (Ibidem,

p.887). Tinha por Ana um querer bem diferente daquele que se espera entre

dois amantes apaixonados motivados pelos impulsos carnais. Na relação

entre ambos não havia erotismo, sensualidade e desejos. O cavaleiro a via

apenas como uma pobre mulher que necessitava de proteção, enquanto o

que Ana Ozores mais necessitava era amor, e foi justamente esta ausência

do elemento masculino, da figura do marido, na vida de Ana, que a motivou a

buscar nos braços de Álvaro Mesía o sentimento que tanto desejava sentir,

conhecer.

O riso sempre foi usado para castigar tudo aquilo que ferisse o valor

moral de um grupo social ou pôr em risco as várias formas de hierarquia, e

esta punição, aplicada em muitos protagonistas da obra, é geralmente fatal,

já que os indivíduos não conseguem adaptar-se, ou melhor, sobreviver à

cruel realidade representada pelo narrador em La Regenta. E, por trás de

todos os risos, não podemos nos esquecer de talvez o maior deles: o riso do

criador, detentor de uma das vozes mais conscientes de toda a narrativa,

dada a sua capacidade de penetrar nas galerias mais profundas e interiores

do pensamento de cada um dos personagens.

Explorando um pouco mais a genialidade do narrador de La Regenta,

notamos que este tende a estimular a receptividade dos leitores da obra.

Recursos como a fragmentação, a mudança súbita do discurso� relato

interrompido pelo diálogo, por exemplo� e o silêncio momentâneo do

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64

narrador, deixando os personagens frente a frente com o leitor, permitem que

este penetre mais facilmente na atmosfera ficcional do romance.

Outro importante elemento que vem a facilitar o acesso do mesmo ao

mundo fictício é o espaço geográfico que se limita à capital provinciana

(Vetusta/ Oviedo). Por ser uma geografia conhecida, sobretudo pelo

narrador, que retrata os principais pontos da cidade: a catedral, as paisagens

naturais de Astúrias, os bairros da cidade, o cassino, as populosas ruas do

Boulevard, o teatro e outros, notamos que os leitores dificilmente terão

dificuldades de adentrar na atmosfera ficcional da obra; pelo contrário, muito

se identificarão com as paisagens descritas por Clarín.

Mundo e consciência, tempo histórico (período correspondente à

Restauração Borbônica na Espanha), tempo psicológico e tempo cronológico

se interagem harmonicamente, dando mobilidade e visibilidade à narrativa. O

tempo será o elemento que promoverá múltiplas mudanças no

comportamento, atitudes, e nos sentimentos dos protagonistas, tornando-se,

assim, primordial à ocorrência do relato retrospectivo e à série de

antecipações (premonições) e inversões que permeiam os dois volumes da

obra.

Por inúmeras vezes, o narrador de La Regenta faz alusão a

acontecimentos reais, como foi o caso da Revolução de Setembro e da

perda da última colônia espanhola, Cuba, tal como pudemos observar no

presente fragmento: “Bueno estaría que ahora que vamos a perder Cuba,

resto de nuestras grandezas, nos diéramos esos Aires de señores y

midiéramos el paso...” (ALAS, 1997, p.502), e possivelmente foi esta

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65

familiarização, esta proximidade com o real, que fez com que o leitor da

época se motivasse cada vez mais com aquele universo, com aquela

construção ficcional tão semelhante a sua realidade, evitando, desta forma, a

desmotivação e o desinteresse por uma narrativa que pouco se preocupava

com a vulgaridade do incidente, mas sim com a forma como este lhe fora

apresentado ao longo dos capítulos da obra.

No entanto, a audaciosa proposta de retratar a realidade na esfera

literária provoca inúmeras críticas, principalmente por parte dos acadêmicos

mais tradicionais. Desde a segunda metade do século XIX, o realismo é tido

como objeto de controvérsias, e, no início do século XX, notamos que esta

situação persiste. Na crítica espanhola, o filósofo Ortega y Gasset

empreende em Meditaciones del Quijote uma implacável crítica contra as

manifestações realistas, alegando ser o termo <<realismo>> algo

verdadeiramente inquietante, dada a ambigüidade e nebulosidade da

<<incómoda palabra>>. No artigo “Arte artístico” (ORTEGA Y GASSET,

1932. p.892-896), considerado um importante manifesto das vanguardas por

tratar de temas relacionados à desumanização da arte, o escritor também

promove um notável ataque ao realismo e, especialmente, aos leitores que

buscavam esse tipo de obra, fato que vem a corroborar a existência de uma

expressiva oposição ao movimento realista na época.

A imprecisão do conceito de realismo também é uma questão

discutida pelo escritor espanhol Ramón Menéndez Pidal, ao afirmar que este

Page 66: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

66

se trata de um “nome sumamente impreciso”24 (1949, p.641. Tradução

nossa). Não obstante, essa falta de rigor apontada pelos acadêmicos ao se

tentar retratar o mundo real na ficção será diluída se examinarmos o

movimento realista, assim como propõe Lázaro Carreter (1979), como

conceito crítico-literário, com independência de sua manifestação em uma

literatura concreta. Considerar-se-á, portanto, a existência de realidades

realistas, ou seja, “fenômenos que em sua versão literária são identificáveis

pelo leitor, métodos que permitem tal identificação e linguagens que a

promovam com independência de seus referentes”25 (Ibidem, p.135.

Tradução nossa).

A literatura, segundo as correntes realistas/ naturalistas, deve ser

verdadeira e garantir a fidedigna representação da realidade, obedecendo ao

princípio aristotélico (mímesis) de que o mero reconhecimento proporciona

prazer ao leitor. Desta forma, o realismo deve ser interpretado, desde a

perspectiva do século XIX, como “um último e ansioso esforço de

sistematização do mundo”26 (ZUBIAURRE, 2000, p.94. Tradução nossa),

tratando de apropriar-se, mediante um complicado processo de interiorização

e domesticação, da realidade exterior, com a intenção de torná-la, por fim,

compreensível.

No entanto, apesar da objetividade difundida pelo realismo e

posteriormente pelo naturalismo, o escritor espanhol continua sendo, em

24

“nombre sumamente impreciso”. 25 “fenómenos que en su versión literaria son identificables por el lector, métodos que permiten tal identificación y lenguajes que la suscitan con independencia de sus referentes”. 26 “un último y ansioso esfuerzo de sistematización del mundo”.

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67

muitos aspectos, um romântico (MEDINA, 1979, p.64), fato que vem a

corroborar a importância da tradição cervantina para a formação dos

movimentos na Espanha oitocentista. Segundo cita Lázarro Carreter (1979,

p.122), o realismo para Giner (1876) “não é possível sem uma dose de

idealismo, em que consiste apresentar a realidade extirpando os acidentes

perturbadores que contém e a colocando de modo que o artista possa

introduzir nela sua vida espiritual própria”27, e é exatamente esta marca

deixada por esta nova geração de escritores que diferenciará a produção

literária espanhola das demais obras européias.

Diferentemente daqueles que identificavam o realismo com a

“carência de invenção e de amor à forma e de reflexos sentimentais”28

(ORTEGA, 1912, p.566. Tradução nossa), muitos escritores e críticos, dentre

os quais destacamos Dámaso Alonso, passaram a admitir o ingresso do

idealismo na narrativa realista, em outras palavras, da fantasia, da

espiritualidade, da transcendência, da imaginação ou da decidida desordem

do perceptível, tal como nos aponta Carreter (Ibidem, p.125), e Leopoldo

Alas “Clarín” foi, incontestavelmente, um deles. Daí explica-se a

complexidade e riqueza de La Regenta.

Direcionando nossas pesquisas à tradição do realismo espanhol, nos

pareceu de extremo valor regressar às origens da picaresca, que tem como

grande marco a publicação da obra El Lazarillo de Tormes, e do primeiro

27 “no es posible sin una dosis de idealismo, el cual consiste en presentar la realidad extirpando los accidentes perturbadores que contiene y disponiéndola de modo que el artista pueda introducir en ella su vida espiritual propia”. 28 “carencia de invención y de amor a la forma y de reverberaciones sentimentales”.

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68

romance moderno, Don Quijote de la Mancha, no intuito de corroborar o

motivo pelo qual os romancistas espanhóis do séc. XIX atribuíram um mérito

especial ao gênero romanesco. Zubiaurre afirma que “os próprios escritores,

sobretudo Clarín e a Pardo Bazán, fizeram notar que o romance realista

peninsular deve mais ao ilustre e intenso realismo da picaresca e de

Cervantes que ao modo decimonônico “importado” da França” (ZUBIAURRE,

2000, p.81-82. Tradução nossa)29, e, com base nestas palavras, tentaremos

apresentar uma relação existente entre ambos, expondo suas respectivas

contribuições, em especial as relacionadas à leitura, para as produções

literárias do século XIX que retratam a importância das figuras da leitura e do

leitor, como é o caso do romance La Regenta.

29 “los propios escritores, sobre todo Clarín y la Pardo Bazán, hicieron notar que la novela realista peninsular debe más al ilustre e intenso realismo de la novela picaresca y de Cervantes que al modo decimonónico “importado” de Francia”.

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69

1.3. La Regenta e a tradição do realismo espanhol

O romance, de fato, nasce na rua- basta lembrar-se do gênero picaresco (…)- e é em sua origem, vagabunda e viajante. (ZUBIAURRE, 2000, p.92)30

Em oposição aos elementos maravilhosos que compunham os

principais episódios das narrativas de cavalaria, aos ambientes bucólicos e

idealizados freqüentados pelos intelectuais pastores, que se dedicavam a

intermináveis discussões de cunho filosófico, e aos amores e desventuras

amorosas, presentes nas narrativas sentimentais, vimos que, a partir da

segunda metade do século XVI, surge, na Espanha, um novo gênero

literário, a picaresca, consagrado com a publicação da obra La vida de

Lazarillo de Tormes y sus fortunas y adversidades (1554), de autoria

anônima, o que muito contribuiu para a ruptura da literatura idealizante

predominante na época.

Desde o Renascimento, existia uma tendência cada vez mais forte para substituir a tradição coletiva pela experiência individual como arbítrio último da realidade, e essa transposição parece ter assumido importante papel no cenário geral do nascimento do romance. (WATT, 1984, p.21).

Dada a necessidade narrativa de criar uma produção literária que se

aproximasse cada vez mais do verossímil, de forma a substituir a tradição

coletiva pela experiência individual, notamos que El Lazarillo de Tormes vem

ao encontro dessa nova perspectiva, principalmente se levarmos em

consideração o fato de a picaresca atribuir um imensurável valor à

30 “La novela, de hecho, nace en la calle- basta acordarse del género picaresco (…)- y es en su origen, vagabunda y viajera”.

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70

individualização dos personagens, sucedida a partir das experiências dos

mesmos, e à presença de referentes históricos bem marcados por dois

elementos essenciais à narração: o tempo e o espaço, mudanças inovadoras

na literatura.

Em Lazarillo de Tormes, o uso da primeira pessoa, no início do

prólogo, que compõe a estrutura externa da obra, nos remete, desde o

princípio, à idéia de um relato autobiográfico. A partir da leitura do prólogo,

evidencia-se a necessidade do narrador, Lázaro adulto, de retratar, com altas

doses de ironia, a vida <<exemplar>> de Lazarillo, personagem de baixo

nível social, apresentando, ao longo do relato, os quatro grandes motivos da

obra: entreter, si considerarmos a leitura uma atividade que promove a

diversão do leitor; ensinar, uma vez que o próprio narrador nos afirma que

sua vida pode servir de exemplo, que os leitores podem aprender com suas

experiências; informar, sobretudo, devido às circunstâncias de miséria e

pobreza, que as pessoas não têm valores, e, por fim, relatar a verdade,

razão relacionada à revelação do <<caso>>.

Lázaro, diferentemente dos personagens leitores dos romances

realistas/ naturalistas, não lê. Não há nenhum episódio na obra em que o

encontramos em contato com a leitura; no entanto, apesar de não atuar

como leitor, atua como escritor, autor de sua própria biografia. Escreve para

ser lido, para que os leitores da obra se conscientizem de sua história de

vida, e, para melhor aclarar esta idéia, citamos um fragmento do prólogo que

justifica essa intenção:

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71

Suplico a Vossa Mercê que receba o pobre serviço da mão de quem o fizera mais rico, se seu poder e desejo se conformassem. E pois como Vossa Mercê escreve que se lhe escreva e relate o caso muito por extenso, pareceu-me não tomá-lo pelo meio, senão do princípio, porque se tenha inteira notícia de minha pessoa.31

Estruturada em forma de correspondência, constatamos a existência

de dois destinatários: Vuestra Merced, uma pessoa aparentemente de

estrato social superior ao do narrador, e o leitor. Nela, o narrador irá relatar o

seu <<caso>>; em outras palavras, irá descrever o adultério de sua esposa

com o arcipreste de San Salvador, o que lhe garantiu uma melhor qualidade

de vida com a aquisição de algumas vantagens materiais concedidas pelo

religioso.

Ao longo da narrativa de El Lazarillo de Tormes, o narrador, no intuito

de retratar a traição, empreende um verdadeiro relato retrospectivo de sua

vida, iniciado a partir do primeiro tratado, que parte do nascimento do

personagem Lazarillo às margens do rio Tormes. Citamos:

Pois saiba Vossa Mercê antes de qualquer coisa que a mim chamam Lázaro de Tormes, filho de Tomé González e de Antona Pérez, naturais de Tejares, aldeia de Salamanca. Meu nascimento foi dentro do rio Tormes, por causa do que tomei o sobrenome, e foi desta maneira: meu pai, que Deus o perdoe, tinha cargo de prover a moenda de uma azenha ribeirinha àquele rio, na qual foi moleiro há mais de quinze anos; e estando minha mãe uma noite na azenha, prenha de mim, veio-lhe o parto e pariu-me ali. De maneira que com verdade posso dizer-me nascido no rio. (Ibidem, p.39).

31

A vida de Lazarillo de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Edição, tradução, estudo e notas de Alex Cojorian. Prefácio de José Antonio Pérez. Ed. Bilingüe. Brasília: Círculo de estudos clássicos de Brasília, 2002, p.37.

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72

Em uma análise mais aprofundada do fragmento citado, notamos que

o simples fato de o narrador especificar a razão pela qual o personagem

recebera o sobrenome do rio Tormes já nos dá uma ampla idéia de uma das

grandes mudanças promovidas pelo novo gênero, que passa a valorizar a

questão da identidade, da memória. Lázaro não só apresenta uma

explicação sobre as suas origens, como também uma nova perspectiva

literária, caracterizada pela predileção pelas experiências individuais em

oposição às coletivas.

A partir desta transposição, consolida-se na literatura a noção de

personagens, entidades que possuem, dentro da esfera literária, uma história

fundamentada em circunstâncias e espaços determinados, ao contrário do

que sucedia antigamente nos mitos e fábulas, por exemplo, quando <<tipos

gerais>> ou <<protótipos>> se recortavam num universo “predeterminado

por uma convenção literária apropriada” (WATT, 1984, p.23). E ainda é válido

comentar que essa noção de personagens vem ao encontro da proposta da

literatura produzida no século XIX, que visava romper com a tradição

clássica, abruptamente vinculada à preferência pelo geral e pelo universal.

Os escritores realistas/ naturalistas também passam a considerar a

especificidade dos personagens, constituída por meio das experiências

individuais. E, em razão deste notável interesse pela individualização dos

mesmos, nos pareceu compreensível a existência de muitos romances,

principalmente os publicados a partir da segunda metade do século XIX,

dentre os quais podemos destacar Madame Bovary (1856), Tristana (1892) e

La Regenta (1884/1885), que têm como título o nome de protagonistas

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73

femininas, o que vem a corroborar a retomada de muitos aspectos, em

especial, os que se relacionam à construção da identidade dos

protagonistas, difundidos pela picaresca e, posteriormente, aprimorados pelo

genial estilo de Cervantes. Consideravam também o fato de os personagens

poderem ser construídos através das próprias experiências do narrador,

como é o caso do mouro Almudena, em Misericordia (1897), extraído

diretamente do mundo real por uma <<feliz coincidencia>>, segundo nos

relata Benito Pérez Galdós no prefácio do romance:

O mouro Almudena <<Mordejai>>, que papel principal tem na ação de Misericordia, foi arrancado do natural por uma feliz coincidência. Um amigo, que como eu acostumava perambular de rua em rua observando cenas e tipos, disse-me que no Oratório do Cavaleiro de Graça pedia esmola um cego esfarrapado, que por sua fachada e linguagem parecia de estirpe maometana. Acudi a vê-lo e fiquei maravilhado com a selvagem rudeza daquele infeliz, que em espanhol escrito com caracteres árabes interrompido a cada instante por juramentos terríficos, me prometeu contar-me sua romântica história em troca de um modesto socorro. Levei-o comigo pelas ruas centrais de Madri (…). Deste modo adquiri esse tipo interessantíssimo, que os leitores de Misericordia encontraram tão real. (GALDÓS, 1990, p.208. Tradução nossa)32

Imbuído pelo propósito de representar a realidade, Galdós recria,

através de suas experiências de leitura33, <<Mordejai>>, retratando os mais

32 “El moro Almudena <<Mordejai>>, que parte principal tiene en la acción de Misericordia, fue arrancado del natural por una feliz coincidencia. Un amigo, que como yo acostumbraba a flanear de calle en calle observando escenas y tipos, díjome que en el Oratorio del Caballero de Gracia pedía limosna un ciego andrajoso, que por su facha y lenguaje parecía de estirpe agarena. Acudí a verle y quedé maravillado de la salvaje rudeza de aquel infeliz, que en español aljamiado interrumpido a cada instante por juramentos terroríficos, me prometió contarme su romántica historia a cambio de un modesto socorro. Le llevé conmigo por las calles céntricas de Madrid (…). De este modo adquirí ese tipo interesantísimo, que los lectores de Misericordia han encontrado tan real”. 33 No próprio fragmento, o escritor comenta-nos a forma com a qual conseguira adquirir esse <<tipo interesantísimo>>. Galdós, por meio da leitura do discurso de Mordejai (sua romântica história de vida), obtém informações e dados, e estes foram fundamentais para que o autor pudesse construir o personagem Almudena, a <<representação>> do mouro Mordejai em Misericordia. E, como vemos, o resultado desta leitura não poderia ser outro: genial.

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74

distintos aspectos de sua personalidade, dentre os quais podemos destacar

a linguagem, e, para melhor confirmar esta idéia, citamos um fragmento em

que o mouro Almudena dialoga com a personagem Benigna, evidenciando a

grande pluralidade lingüística existente na sociedade madrilena da época, da

mesma maneira como o fez Cervantes, em Don Quijote. Citamos:

Isto pensava, quando Almudena, voltando de uma meditação calculista, que devia ser muito triste pela cara que fazia, lhe disse: - Não ter tu coisa que peinhorar? - Não, filho: já penhorei tudo, até as cédulas. - Não ter pessoa que priestar ti? (GALDÓS, 1994. p.38. Tradução nossa)34

A prosa de Leopoldo Alas, segundo Ricardo Senabre (2001), também

conta com a ilustre e complexa mescla de modernidade e populismo. O

escritor reconhece que, dada a sua fervorosa inclinação às atividades

jornalísticas, foi praticamente impossível dedicar-se a um estilo

exclusivamente nobre, e que certas formas anti-acadêmicas acabavam

brotando de sua pluma, sem que o mesmo pudesse evitá-las ou contê-las.

Senabre também destaca que o uso do discurso indireto livre permitiu que

Clarín representasse, sem a necessidade de recorrer ao diálogo, tal como o

fez Galdós em Misericordia, o estilo e o vocabulário próprios de cada

personagem, uma inovação cervantina. Sendo assim, podemos afirmar que a

linguagem tornou-se, para estes escritores, um precioso tesouro para a

construção da narrativa moderna, pois permitiu uma maior riqueza de

34

“Esto pensaba, cuando Almudena, volviendo de una meditación calculista, que debía de ser muy triste por la cara que ponía, le dijo: - ¿No tenier tú cosa que peinar? - No, hijo: todo empeñado ya, hasta las papeletas. - ¿No haber persona que priestar ti?”

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75

descrições e imagens, proporcionando uma verdadeira renovação estética

nos textos literários da época.

Desta forma, poderíamos explicar a sensação de o personagem ser

para os leitores uma figura tão real, tão próxima da realidade, e, partindo

destas constatações, não se torna gratuita a forma como o romancista do

século XIX “anuncia a sua intenção de representar um personagem como

indivíduo em especial, atribuindo-lhe um nome, exatamente como acontece a

uma pessoa real” (WATT, 1984, p.26). Neste sentido, conceder ao

personagem um nome próprio, em outras palavras, a mais pura expressão

verbal da identidade de cada indivíduo, seria possivelmente uma tentativa de

aproximação do mundo real, de forma a criar no espaço literário uma

sensação de reconhecimento, ou melhor, de identificação e não de

afastamento da realidade.

É evidente que, na literatura anterior ao século XVI, os <<tipos>>

possuíam um nome, uma identificação, porém o que pretendemos colocar

em questão é a não tentativa, por parte dos escritores de antigamente, de

individualizá-los. Não havia uma preocupação em especificar o que, hoje,

denominamos de personagens, e, devido à falta de determinação, a

picaresca assume um papel definitivo na história da literatura espanhola, pois

é com este gênero literário que surge a primeira tentativa do romance

moderno, dada a intenção de individualizar os protagonistas.

Outra grande mudança promovida relaciona-se à questão dos

espaços. Estes, diferentemente dos espaços das narrativas idealizantes, que

geralmente não estabeleciam vínculos de conexão com a realidade, são bem

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76

definidos. Já no prólogo, ao relatar o nascimento e as origens, <<el linaje>>

de Lazarillo, vemos uma nítida preocupação por parte do narrador em situar

os leitores da obra em um espaço, assim com um tempo (período

correspondente à infância do personagem), altamente específico: o rio

Tormes, em Salamanca.

No primeiro tratado, também podemos notar esta determinação

espacial: “Saímos de Salamanca, e chegando à ponte, está a sua entrada

um animal de pedra, que quase tem forma de touro...” (Ibidem, p.45), que se

aprimora ao longo dos sete tratados. Desta forma, os leitores de El Lazarillo

de Tormes podem perfeitamente acompanhar a evolução espaço-temporal

do personagem que perpassou, em sua penosa trajetória como serviçal,

pelos mais distintos lugares que constituíam a geografia da Espanha naquele

período.

Em La Regenta também identificamos a importância que assume o

elemento espaço na narrativa de Leopoldo Alas “Clarín”. No primeiro capítulo

da obra, pudemos observar, por meio de uma descrição minuciosa que nos

dá noção de uma imagem quase cinematográfica do lugar, um retrato de

Oviedo no final do século XIX, cidade que serviu de cenário para uma das

mais complexas tramas literárias, devido à existência de distintos níveis

narrativos, ambientes sociais e intensos conflitos interpessoais. Citamos:

La heroica ciudad dormía la siesta. El viento sur, caliente y perezoso, empujaba las nubes blanquecinas que se rasgaban al correr hacia el norte. En las calles no había más ruido que el rumor estridente de los remolinos de polvo, trapos, pajas y papeles que iban de arroyo en arroyo, de acera en acera, de esquina en esquina revolando y persiguiéndose, como mariposas que se buscan y huyen y que el aire envuelve en sus

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77

pliegues invisibles (…). Vetusta, la muy noble y leal ciudad, corte en lejano siglo, hacía la digestión del cocido y de la olla podrida, y descansaba oyendo entre sueños el monótono y familiar zumbido de la campana de coro, que retumbaba allá en lo alto de la esbelta torre en la Santa Basílica. (ALAS, 1997, p.55).

A todo o momento, Clarín insere os seus leitores em uma atmosfera

bem próxima àquela de que foi testemunho. Devido à proposta realista de

aproximar-se cada vez mais da realidade, verificamos que o espaço, um dos

elementos mais importantes para a edificação da ficção realista no século

XIX, apresenta-se de forma determinada, específica, o que nos faz

compreender o fato de o autor, assim como Emilia Pardo Bazán, ter atribuído

extremo valor à picaresca.

No decorrer da narrativa de La Regenta, o leitor tem o privilégio de

percorrer os mais distintos lugares que compõem a arquitetura de Vetusta,

desde os espaços internos, como os freqüentados salões do palácio dos

Vegallanas, onde ocorriam as maiores festas da sociedade vetustense, até

os espaços externos, como grande parte das estreitas e úmidas ruas do

bairro da Encimada e as populosas e tumultuadas ruas do Boullevard, além

dos espaços intermediários, como os corredores da imponente e histórica

catedral da cidade.

Em Tristana, vemos igualmente a posição de destaque que assume o

espaço na narrativa de Benito Pérez Galdós. Muito mais que situar

espacialmente o leitor da obra, percebemos que o espaço, interagindo com

outro recurso essencial à narrativa oitocentista, a descrição, também

proporciona uma nítida idéia da condição social daqueles seres que por ali

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78

circulam. No capítulo VI do romance, ao empreender uma minuciosa

descrição da casa de Tristana e don Lope, o narrador revela-nos a crise

financeira vivenciada pelos protagonistas, que têm de vender seus bens para

continuar garantindo o mínimo de condições necessárias para a

sobrevivência. Citamos:

Os horizontes da vida fechavam e enegreciam cada dia mais adiante da senhorita de Reluz, e aquele lugar desagradável, frio de afetos, pobre, vazio em absoluto de ocupações gratas, sobrecarregava-lhe o espírito. Porque a casa, a qual brilhava restos de instalações que foram luxuosas, ia ficando mais feia e triste que se possa imaginar; tudo anunciava penúria e decadência; nada do quebrado ou deteriorado se substituía nem se reparava. (GALDÓS, 2004, p.67. Tradução nossa)35

Outra importante contribuição para o realismo/ naturalismo espanhol

foi o livro El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de Miguel de

Cervantes. Dentre um amplo universo de propostas temáticas, decidimos

dedicar-nos à leitura, considerada o recurso mais precioso para a vida do

protagonista leitor Alonso Quijano. Muito mais que uma prática essencial à

instrução, o ato de ler é tido principalmente como algo imprescindível à

natureza humana dos protagonistas leitores, e muitos escritores realistas/

naturalistas do séc. XIX, dentre eles o autor de La Regenta, resgataram essa

importante questão, crucial para a composição de suas obras.

Conhecido como um libro hecho de libros, por apresentar, em seu

conjunto, uma ampla mostra de vários gêneros literários da época, vimos que 35

“Los horizontes de la vida cerraban y ennegrecían cada día más delante de la señorita de Reluz, y aquel hogar desapacible, frío de afectos, pobre, vacío en absoluto de ocupaciones gratas, le abrumaba el espíritu. Porque la casa, en la cual lucía restos de instalaciones que fueron lujosas, se iba poniendo de lo más feo y triste que es posible imaginar; todo anunciaba penuria y decaimiento; nada de lo roto o deteriorado se componía ni se reparaba”.

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79

o ato de ler assume um duplo papel de destaque: o primeiro relacionado à

construção do romance em si, ou seja, de toda sua estrutura, e, neste ponto,

é oportuno comentar a experiência do próprio Cervantes como autor-leitor e

critico literário, e o segundo, relativo à composição de dom Quixote,

personagem que lê para viver.

Acreditamos que, a partir das leituras realizadas (narrativas de

cavalaria, pastoris, mouriscas, picarescas, sentimentais, exemplares e

outras) e do conhecimento construído por meio das mesmas, foi que o autor

pôde dar vida aos episódios mais famosos de toda a obra: “Molinos de

viento”, “La novela del Curioso Impertinente”, “El cuento de la pastora

Marcela”, “La grande aventura de la Cueva de Montesinos”, “La Conquista

del yelmo de Mambrino” e “Los extraños acontecimientos en la venta”, que,

na verdade, representam um resumo dos gêneros narrativos (ainda) vigentes

naquele período. E, considerando esta variedade literária presente nas

encantadoras páginas de Don Quijote, nos pareceu interessante contemplar

a idéia de que as leituras formam não só a base para a criação de sua obra,

como também a base de um dos maiores protagonistas da história universal.

Em nossos estudos, notamos que a leitura pode, muitas vezes,

transformar o personagem-leitor em um herói trágico, em um indivíduo

amargurado pelo fracasso e derrota de suas experiências pessoais. Alonso

Quijano é uma grande prova disto. Dada a leitura exaustiva de inúmeros

livros de cavalaria, transforma-se em Dom Quixote, o cavaleiro andante mais

conhecido de todos os tempos, e, para explicar melhor a transformação

sofrida pelo personagem, nos pareceu de extrema importância citar uma

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80

cena, relacionada à leitura, em que o personagem de Cervantes, ao ler os

textos de forma desmedida e compulsiva, perde a razão, o juízo, e passa a

dar vida ao universo ficcional das narrativas de cavalaria, tornando-se o

protagonista principal de sua própria história. Citamos:

(...) passou as noites lendo de claro em claro, e os dias de turvo em turvo; e assim, o pouco dormir e o muito ler, se lhe secaram de tal maneira o cérebro, que acabou perdendo o juízo. Sua fantasia preencheu-se de tudo aquilo que lera nos livros, assim de encantamentos como de contendas, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas e disparates impossíveis; e se lhe assentaram de tal modo na imaginação que era verdade toda aquela trama das sonhadas invenções que lia, que para ele não havia outra história mais certa no mundo. (CERVANTES SAAVEDRA, 1961, p.5. Tradução nossa)36

E também:

(…) pareceu-lhe conveniente e necessário, assim, para o aumento de sua honra como para o serviço de sua república, transformar-se em cavaleiro andante, e sair pelo mundo com armas e cavalo em busca de aventuras e a exercitar-se em tudo aquilo que havia lido (...). O coitado se imaginava coroado pelo valor do seu braço, pelo menos no império de Trapisonda; e assim, com estes tão agradáveis pensamentos, impelido pelo estranho gosto que neles sentia, deu-se pressa em concretizar seu intento. (Ibidem, p.6. Tradução nossa)37

Neste episódio de Don Quijote, muito mais que uma prática, que um

exercício, a leitura está representada como uma forma de vida, como

36 “En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer, se le secó el celebro, de manera que vino a perder el juicio. Llenósele la fantasía de todo aquello que leía en los libros, así de encantamentos como de pendencias, batallas, desafíos, heridas, requiebros, amores, tormentas y disparates imposibles; y asentósele de tal modo en la imaginación que era verdad toda aquella máquina de aquellas soñadas invenciones que leía, que para él no había otra historia más cierta en el mundo. 37 “(…) le pareció convenible y necesario, así para el aumento de su honra como para el servicio de su república, hacerse caballero andante, y irse por todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo aquello que él había leído (...). Imaginábase el pobre ya coronado por el valor de su brazo, por lo menos, del imperio de Trapisonda; y así, con estos tan agradables pensamientos, llevado del extraño gusto que en ellos sentía, se dio prisa a poner en efecto lo que deseaba”.

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elemento indispensável à existência do personagem-leitor. Neste aspecto,

vimos que o ato de ler não só alimenta o imaginário do protagonista em

questão, mas também contribui para a construção de um universo, ou

melhor, de uma realidade imaginária que mais pode ser compreendida como

um refúgio contra a hostilidade do mundo. Alonso Quijano aloja-se nesta

esfera idealizada e, ao longo do processo de quijotização, permanece

convicto de seus deveres e obrigações para com a sociedade a qual se

empenhara em defender.

No romance La Regenta, Leopoldo Alas também apresenta como

tema central o fracasso e a desilusão da principal protagonista da obra: Ana

Ozores. Da mesma maneira que Alonso Quijano, a heroína de Clarín vê-se

constantemente frustrada e amargurada pelas atrozes imposições da

sociedade vetustense que arduamente condenava suas aspirações e “seus

fúteis esforços para alcançar uns ideais pouco realistas”38 (MEDINA, 1979,

p.30. Tradução nossa), demonstrando, assim, o resgate de um importante

tema inaugurado por Cervantes e retomado por escritores do século XIX

como Galdós, em Tristana, e Eça de Queirós, em O crime do padre Amaro.

Dom Quixote, durante sua trajetória como cavaleiro andante, quer

impor seu ideal sobre as convenções sociais e sobre as mazelas da vida

cotidiana, atuando como uma espécie de redentor humano de uma prosaica

realidade que todos os dias o massacra e o ultraja. O personagem se

converte, portanto, em campeão da honra, da bondade e da justiça,

encantando milhões de leitores pela forma idealista como via seu mundo.

38 “his futile attempts to realize his “unrealistic” ideals”.

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Desta forma, para o generoso cavaleiro poder sobreviver às incuráveis

dores provocadas por sua maior inimiga, a esmagadora realidade, e a tudo

aquilo que o angustiava e o fazia sofrer, fora preciso ler, fora necessário

adentrar nas narrativas de cavalaria, sobretudo nas mirabolantes páginas de

Amadís de Gaula, para melhor viver, em seu universo imaginário, tudo aquilo

que o havia fascinado e encantado de forma arrebatadora. E, assim, Dom

Quixote, acompanhado de seu fiel escudeiro, Sancho Panza, sai em busca

de novas aventuras, de novas experiências, e são justamente estes

conhecimentos construídos por meio das leituras que motivaram os

protagonistas leitores do romance naturalista La Regenta a viverem no real

os efeitos acarretados pelo ato de ler, comprovando o quão fundamental foi o

primeiro romance moderno para a formação do realismo/ naturalismo

espanhol.

Miguel de Cervantes, por meio da burlesca figura de Dom Quixote

desconstrói, dentre outros gêneros, a narrativa cavaleiresca e todos os seus

elementos maravilhosos, dando-lhes um tom cômico, irônico e, muitas vezes,

grotesco, dada a violência e agressividade de muitas das cenas que

compõem o livro.

Tudo, o amor cortês, o código de valores do herói, as batalhas e as

origens, fora utilizado como objeto de paródia em Don Quijote com o objetivo

de criticar o gênero cavalheiresco e seu estilo falso e descomedido. É

oportuno comentar que o processo de loucura de Quixote, o recurso mais

crucial de todo o romance, nos pareceu ter sido um mecanismo

propositalmente utilizado por Cervantes com a intenção de exaltar a

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83

compulsão do personagem pela leitura, revelando-nos, assim, os efeitos

ocasionados por ela. E, para melhor aclarar esta idéia, citaremos um

fragmento em que Alonso Quijano vende o pouco que possuía para comprar

novos livros e, desta forma, dedicar-se ao ato de ler:

É, pois, de saber que este sobredito fidalgo, nos minutos em que estava ocioso (que eram a maior parte do ano), dedicava-se à leitura de livros de cavalaria, com tanta paixão e gosto, que se esqueceu por completo do exercício da caça e até mesmo da administração de sua fazenda; e a tanto chegaram a sua curiosidade e desatino, que vendeu muitos alqueires de terra de plantio para comprar livros de cavalaria, levando para casa todos que pôde encontrar. (CERVANTES SAAVEDRA, 1961, p.4. Tradução nossa)39

Novamente, resgatamos a idéia de que a leitura assume uma notável

importância na obra, pois é a partir desta atividade tão essencial ao ser

humano que o personagem-leitor Alonso Quijano irá construir o

conhecimento para viver novas experiências, dando vida a tudo aquilo que

havia lido nas narrativas de cavalaria.

Por meio da leitura, vemos não só o nascimento de um dos maiores

protagonistas da literatura, Dom Quixote, mas também o surgimento de um

mundo imaginário, criado pelo mesmo, onde perpetuam a virtude, a

franqueza e o amor, e talvez seja por estas características e pela

imensurável paixão pelo ato de ler que Alonso Quijano se torna um dos

maiores ou senão o maior exemplo de figura do leitor. Daí, a extrema

39 “Es, pues, de saber que este sobredicho hidalgo, los ratos que estaba ocioso, que eran los más del año, se daba a leer libros de caballerías, con tanta afición y gusto, que olvidó casi de todo punto el ejercicio de la caza y aun la administración de su hacienda. Y llegó a tanto su curiosidad y desatino en esto, que vendió muchas hanegas de tierra de sembradura para comprar libros de caballerías en que leer, y así, llevó a su casa todos cuantos pudo haber dellos”.

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importância de resgatá-lo para fundamentar nossos estudos sobre as

representações imaginárias do ato de ler na ficção e as figurações dos

leitores no romance naturalista de Leopoldo Alas.

Antes mesmo da publicação de La Regenta, as figuras da leitura e do

leitor já ocupavam um papel de grande destaque em duas importantes obras

da literatura espanhola, El Lazarillo de Tormes e Don Quijote de la Mancha,

e, com as diversas transformações políticas, econômicas, sociais e

educacionais ocorridas na Europa oitocentista, o que proporcionou uma

difusão maior do texto impresso e o crescimento do público leitor, estas

figuras reaparecem com maior intensidade e expressão nos romances

publicados a partir da segunda metade do século XIX.

A publicação de obras como Madame Bovary, O primo Basílio,

Tristana e La Regenta, coincidentemente, correspondem ao período em que

houve um considerável ingresso do público leitor, em especial do feminino,

no mundo das letras. Devido ao fomento de muitas campanhas educacionais

na Europa, o aumento das tiragens e a circulação de livros, as mulheres,

especialmente, passam a ter um maior acesso à literatura produzida na

época, e, em razão disto, não nos surpreende o fato de encontrarmos na

atmosfera literária de vários romances a figura de muitas mulheres leitoras.

Sendo assim, antes de iniciarmos nossas análises sobre as figuras da

leitura e do leitor no romance naturalista La Regenta, nos pareceu oportuno

considerar um dos acontecimentos mais importantes para a difusão destas

nas produções literárias do século XIX: a democratização do texto impresso.

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II. LA REGENTA: O RETRATO DE UMA SOCIEDADE LEITORA

2.1. Do acesso restrito à democratização do texto impresso

No mundo ocidental, a leitura “constituía-se, da Antigüidade até a

Idade Média, em exercício para uma elite erudita” (LOBO, 1992, p.231), ou

seja, era uma atividade restrita e limitada, destinada somente a uma

pequena parcela da sociedade, composta por membros da alta nobreza e do

clero. No Renascimento, com o surgimento da nova técnica desenvolvida por

Johannes Gutenberg e com a difusão da alfabetização através das escolas,

essa situação se modifica, e esta mudança, sem dúvida, muito contribuiu

para a formação de um novo panorama social, político e cultural na Europa.

A partir destas transformações, a cópia manuscrita40 deixa de ser o

único recurso disponível para garantir a multiplicação e a circulação dos

textos no cenário europeu, e por reduzir bastante o custo da fabricação do

livro, o tempo necessário para a sua produção, que era longo ao tempo do

manuscrito, a invenção de Gutenberg possibilita, já na primeira metade do

século XV, a circulação dos textos em uma escala antes impossível e

inimaginável. Com isso, cada leitor pode ter acesso a um número maior de

livros, e cada livro pode atingir um número maior de leitores.

40

É oportuno comentar que a cópia manuscrita, geralmente realizada pelos monges, era uma prática artesanal, lenta e, muitas vezes, imprecisa, pois se cometiam muitos erros. Além disso, os livros eram tão caros que só os mais nobres e o clero tinham dinheiro suficiente para comprá-los e se instruir.

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86

Nos séculos seguintes, XVI e XVII, notou-se que essa disposição

ainda se mantém muito presente na sociedade européia, que, por sua vez,

teve de reorganizar seus tradicionais sistemas políticos e sociais em

decorrência do surgimento de novas cidades, ao invés de feudos, e de

regiões cada vez mais voltadas às práticas comerciais. Neste caso, tanto a

escrita como a leitura tornam-se atividades essenciais ao homem,

principalmente para aqueles que se empenham em fortalecer o capitalismo.

Viva, Diderot!, gritaram e depois: <<Bravo Voltaire! Aos menos eles são contra a ignorância e o fetichismo do povo. Mostram-lhe os caminhos da liberdade! Emancipam-no! Em primeiro lugar, que todo o mundo saiba ler jornais! Não mais analfabetos! Que votem! Que leiam!>> (tradução nossa) 41.

No século XVIII, período marcado pelo predomínio das idéias

iluministas42, pelas fervorosas manifestações burguesas e pelo processo de

industrialização, o texto impresso passa a exercer um papel definitivo “nas

adesões à revolução, no interesse pela política, nas diversas expressões de

rebeldia, e até na invasão, por parte das mulheres ou dos burgueses e

trabalhadores, de ordens da vida social antes vedadas a eles” (CATELLI,

41 CÉLINE, L.-F. Viaje al fin de la noche [1932]. Trad. de Carlos Manzano. Barcelona: Edhasa, 1993. In: CATELLI, Nora. Testimonios tangibles- Pasión y extinción de la lectura en la narrativa moderna. Barcelona: Editorial Anagrama, 2001. p.17. “¡Viva, Diderot!, gritaron y después: <<¡Bravo Voltaire! ¡Al menos ésos son tipos que no dejan reventar en la ignorancia y el fetichismo al buen pueblo! ¡Le muestran los caminos de la libertad! ¡Lo enmancipan! En primer lugar, ¡que todo el mundo sepa leer los periódicos! ¡No más analfabetos! ¡Que voten! ¡Que lean!>>”. 42 É importante comentar que tanto Voltaire como Diderot acreditavam na idéia de que o povo poderia conquistar sua liberdade por meio da leitura, e, devido a isto, defendiam veemente as propostas de escolarização da nação, o que muito contribuiu para o fim da ignorância e da alienação do povo, manipulado pelo regime monárquico. A partir daí, o proletariado, principalmente, passou a ver a instrução como um caminho de emancipação, ou seja, passou a vê-la como instrumento de luta ideológica contra a política e o sistema vigentes.

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2001. p. 28. Tradução nossa)43. Posteriormente à consolidação do

capitalismo e às diversas transformações ocasionadas pelo sistema, nasce

na Europa uma importante expressão popular, antes reprimida pela

arbitrariedade dos governos conservadores. Neste período, muitas vozes

ocultas, através de jornais, revistas e folhetins, começam a se manifestar,

todas a favor de uma sociedade mais livre, a qual os indivíduos pudessem

ter, de fato, todos os seus direitos reconhecidos e não oprimidos.

A literatura, que até então pouco se preocupava com as expressões

políticas e sociais, passa a ser, sobretudo a partir da segunda metade do

século XVIII, um importante veículo de transmissão e discussão de idéias,

uma vez que questões relacionadas à atualidade são incluídas nos textos

literários. Sendo assim, desde a Revolução Francesa, principal

acontecimento do século XVIII, o homem passa a conquistar, a partir do texto

impresso, uma forte presença no espaço político e social, ultrapassando os

limites de suas capacidades individuais, e é nesse contexto burguês que

vamos verificar um dos maiores acontecimentos do século XIX: o

crescimento do público leitor.

No século XIX, a rápida expansão da imprensa popular, acompanhada

da extraordinária proliferação de todos os gêneros, é “o fenômeno mais

importante do movimento editorial do século XIX” (CHARTIER, Anne-Marie &

HÉBRARD, Jean, 1995. p.30). Nesta época, jornais como Le Figaro, The

Times e La Gaceta se fortalecem na Europa e no mundo inteiro, estimulando

43 “En las adhesiones a la revolución, en el interés por la política, en las diversas expresiones de rebeldía, y hasta en la invasión, por parte de las mujeres o de los burgueses y trabajadores, de órdenes de la vida social antes vedados”.

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o crescimento do público leitor cada vez mais interessado na aquisição da

informação e do conhecimento. Outro excelente exemplo, que marca a

importância dos meios de comunicação no processo de democratização do

texto e do surgimento de um novo público leitor, é o jornal cubano La Aurora,

publicado em 22 de outubro de 1865 por Saturnino Martínez. Charuteiro e

poeta, Martínez teve a idéia de publicar um jornal para os trabalhadores da

indústria de charuto El Fígaro, abordando questões relacionadas à política e

à cultura; publicava artigos sobre ciência e literatura (poemas e contos). No

jornal, foram publicados também trabalhos dos principais escritores e

intelectuais cubanos da época, além de traduções de autores europeus como

Chateaubriand, críticas de livros, peças teatrais e denúncias sobre as

péssimas condições de trabalho. Os trabalhadores das fábricas de charutos

pagavam um leitor, que se sentava junto às bancadas de trabalho e lia alto

enquanto eles manuseavam o fumo. O material dessas leituras, escolhido de

antemão pelos operários, variava, segundo Manguel, “(...) de histórias e

tratados políticos a romances e coleções de poesias clássica e moderna”

(MANGUEL, 2002, p.135), e o sucesso das leituras públicas, realizadas nos

próprios locais de trabalho, foi tão surpreendente que outras fábricas

começaram a seguir o exemplo da El Fígaro, fato que corroborou a grande

capacidade de organização e entrosamento das classes operárias no século

XIX, período determinado pelo crescimento das idéias socialistas e pela

expansão dos movimentos trabalhistas.

Marcado, portanto, pelo fortalecimento da imprensa, pela urbanização

das novas cidades, pela industrialização e pela organização da vida pelos

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parâmetros da burguesia, o século XIX assume, indiscutivelmente, um

importante papel na história da leitura no mundo ocidental, contribuindo,

assim, com o notável ingresso de um novo público no mundo das letras,

dentre os quais podemos destacar o feminino.

Com a massiva expansão do texto impresso, um dos públicos mais

favorecidos no século XIX foi o feminino. Motivadas com a formação de um

novo panorama social, cultural e educacional, as mulheres passam a

ingressar, com muito prazer, no mundo da leitura, tornando-se,

indiscutivelmente, expressivas consumidoras da literatura popular, em

especial do romance44. Este, por sua vez, é constantemente lido, relido,

decorado, citado e recitado, e sua leitora se identifica plenamente com as

personagens, decifrando “sua própria vida através das ficções” (CAVALLO &

CHARTIER, 2002, p.29).

Por serem consideradas criaturas de capacidade intelectual limitada,

imaginativa, frívola e emotiva, os romances eram, em sua maioria,

produzidos para o público feminino, e estes, dado o tratamento da vida

íntima, faziam parte da esfera privada a qual estavam submetidas as

mulheres burguesas naquele período. Já as leituras práticas e instrutivas,

que se distanciavam desse universo mágico presente nos romances, eram

destinadas aos homens, principalmente por se referirem aos assuntos

públicos, que geralmente se relacionavam à política.

44 Segundo Watt, em Realismo e forma romanesca (1984, p.45-46), o romance pode ser definido como relatório completo e autêntico da experiência humana, uma vez que proporciona a seus leitores pormenores da história, tais como a individualidade dos personagens e as particularidades do tempo e dos espaços, ambos altamente determinados pelo narrador.

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Imbuídas por um espírito leitor, muitas mulheres passam a dedicar o

seu tempo para ler, desejar e sonhar com os mundos imaginários ou

concretos que lhes chegavam por meio da leitura, compensando-as das

frustrações e das sensações de isolamento que sentiam devido ao grande

tempo de permanência nos espaços privados. Com isso, é válido comentar

que a expansão do número de leitores de romances no século XIX deve ser

atribuída não só à crescente escolarização das classes médias, mas

principalmente à necessidade de ocupar o tempo com lazer (entretenimento),

compensando, assim, o tempo vivido na privacidade doméstica.

Por outro lado, se analisarmos a história da leitura no século XIX,

veremos, segundo as idéias de Chartier e Cavallo (2002), que o ingresso do

público feminino no mundo das letras como leitoras e, principalmente, como

escritoras não foi um acontecimento pacífico. Embora o próprio Platão

tivesse defendido a idéia de que a educação seria um direito igual para

ambos os sexos na tão idealizada república, um de seus discípulos,

Teofrasto, argumentava que se deveria ensinar às mulheres apenas o

suficiente para administrar um lar, porque a educação avançada “transforma

a mulher numa comadre preguiçosa e briguenta”45. A partir desta visão,

partilhada por alguns autores, vimos que, para muitos homens, seria melhor

que uma mulher não compreendesse muito do que lesse nos livros, já que

nada seria mais insuportável do que a instrução feminina. E combater essa

lamentável visão foi, sem dúvida, uma das principais dificuldades

45 Ver Platão. “Laws”. ed. Rev. R.G. Bury (Cambrigde, Mass., Londres, 1994), VII, 804 c-e. In: MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.256

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enfrentadas pelas mulheres oitocentistas, principalmente para aquelas que

se dedicavam a produzir uma literatura voltada para o universo feminino.

Ao longo do século XIX e até bem entrado o XX, a Igreja católica não deixa de estigmatizar o perigo de determinados gêneros literários como o romance e, mais particularmente o romance naturalista. A abundância de obras, folhetos e sermões, muitos deles publicados na tipografia católica, é reveladora das preocupações da Igreja frente ao que considera como uma conseqüência <<perversa>> do racionalismo e do determinismo. (HIBBS-LISSORGUES, 1989, p. 12. Tradução nossa)46.

Durante muitos séculos, a leitura feminina foi submetida a um severo

controle que justificava a mediação necessária do clero e de poderes

absolutos, por temor às interpretações selvagens e grotescas que podiam

levá-las ao caminho da perdição. Satirizando essa intervenção, Voltaire no

panfleto satírico “Sobre o terrível perigo da leitura” escreve ironicamente que

os livros “dissipam a ignorância, a custódia e a salva-guarda dos estados

bem policiados”47, com o intuito de evidenciar a existência da censura como

uma forma, ou melhor, como uma prática bastante utilizada pelas

autoridades para assegurar o poder público. E, com o objetivo de ilustrar um

pouco mais a censura ao conteúdo improper, citamos o fato de a junta militar

liderada pelo general Augusto Pinochet ter proibido, em 1981, a leitura de

Don Quijote de la Mancha no Chile, alegando que o livro continha “um apelo

pela liberdade individual e um ataque à autoridade instituída” (MANGUEL,

46 “A lo largo del siglo XIX y hasta bien entrado el XX, la Iglesia católica no deja de estigmatizar el peligro de determinados géneros literarios como la novela y, más particularmente la novela naturalista. La abundancia de obras, folletos y sermones, muchos de ellos publicados en la prensa católica, es reveladora de las preocupaciones de la Iglesia frente a lo que considera como una consecuencia <<perversa>> del racionalismo y del determinismo”. 47 Ver Voltaire, “De l’horrible danger de la lecture”, em Mémoires, suivis de mélanges divers et precédés de “Voltaire Démiurge” par Paul Souday (Paris, 1927).

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2002, p. 320), ou seja, conteúdos ameaçadores para a manutenção do

regime ditatorial.

O controle ao conteúdo impróprio também está presente no universo

literário de várias obras. Emma Bovary, personagem do romance Madame

Bovary, desde sua adolescência, foi uma grande amante da leitura, e,

percebendo a frenética compulsão da nora pela atividade (a “fúria de ler”), a

sogra de Emma argumentava que os romances lidos por ela deveriam ser

proibidos, pois contaminavam sua alma. Consciente, então, do perigo que

estes poderiam lhe causar, a mãe tenta convencer o filho, Charles Bovary, a

cancelar a assinatura de livros e revistas que Emma mantinha junto a uma

biblioteca, fato que nos evidencia uma constante preocupação em controlar o

conteúdo lido pelas mulheres e o acesso público a eles� por empréstimos.

O conhecimento em demasia, para muitas autoridades religiosas,

poderia representar o desestruturamento do juízo, a contaminação da alma,

podendo levar não só mulheres como também muitos homens ao caminho

da perdição. Sendo assim, o conteúdo destinado ao público feminino deveria

ser cuidadosamente selecionado para que esse não pudesse ocasionar

danos à natureza feminina. E, dentro desse contexto de contenção e, muitas

vezes, de censura do texto impresso, nos pareceu interessante também

destacar um episódio do romance O crime do padre Amaro, de Eça de

Queirós, em que as fervorosas beatas, D. Josefa Dias, D. Maria de Assunção

e D. Joaquina Gansoso, decidem queimar, na casa da S. Joaneira, com total

autorização dos três padres, Natário, Amaro e o Cônego Dias, um volume da

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revista portuguesa Panorama, além de um lenço, uma luva e uma cigarreira,

pertencentes ao “ímpio”, o ex-noivo de Amélia.

João Eduardo, autor do polêmico artigo publicado no jornal Voz do

Distrito, que criticava a tirânica atuação do clero na sociedade portuguesa,

em especial em Leiria, fora excomungado pela Igreja Católica, após ter

agredido fisicamente o padre Amaro. Toda a cidade levantou-se contra o

jovem que, movido por um desgostoso sentimento de perda e por ciúmes

incontroláveis, teve sua vida marcada pela fanática perseguição de seus

inimigos. Rotulado como “o excomungado” por denegrir a moral e conduta

dos padres, a presença de João Eduardo passa a se tornar indesejável, e

igual a sua existência, todos os seus objetos passam a ser veemente

condenados, fato que explica a grande aversão de Natário e a exaltação das

beatas ao encontrarem, na casa de S. Joaneira, um exemplar da revista lida

por ele:

Todos se voltaram, na surpresa que dava aquela indignação, a olhar o largo volume encadernado que Natário indicava com a ponta do guarda-chuva, como um objeto abominável. D. Maria da Assunção aproximou-se logo de olho reluzente, imaginando que seria alguma dessas novelas, tão famosas, em que se passam coisas imorais. E Amélia chegando-se também, disse, admirada de tal reprovação: - Mas é o Panorama... É um volume do Panorama... - Que é o Panorama vejo eu, disse Natário com secura (...). Parece incrível que as senhoras não saibam que esse homem, desde que pôs as mãos num sacerdote, está ipso facto excomungado, e excomungado todos os objetos que lhe pertencem!. (QUEIRÓS, 2004, p.209).

Aqueles objetos, em especial o volume do Panorama, estavam em

plena desarmonia com a casa (espaço privado), lugar onde deveria haver

tranqüilidade e paz, e com os personagens (não-leitores da revista) que

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compunham esse espaço. Tais pertences não faziam parte daquele

ambiente, logo, deveriam ser todos efetivamente destruídos. Desta forma,

tomadas por um “furor santo”, as mulheres decidem, num auto-de-fé, dar fim

a todos os vestígios deixados pelo apaixonado João Eduardo:

D. Josefa Dias acudiu logo: - Mas nós é que não podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por cima das mesas coisas excomungadas. - É destruir! Exclamou D. Maria da Assunção. É queimar, é queimar! D. Joaquina Gansoso arrastara Amélia para o vão da janela, perguntando-lhe se tinha outros objetos pertencentes ao homem. Amélia, atarantada, confessou que tinhas algures, não sabia aonde, um lenço, uma luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha. - É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada. A sala vibrava com a gralhada das senhoras, arrebatadas num furor santo. D. Josefa Dias, D. Maria da Assunção falavam com gozo do fogo, enchendo a boca com a palavra, numa delícia inquisitorial de exterminação devota. (Ibidem, p. 210).

Na segunda metade do século XIX, notamos que essas intervenções e

censuras, geralmente feitas pela Igreja, pelo Estado e, muitas vezes, pela

própria família, ainda prevaleciam. Muitos romances lidos principalmente

pelas mulheres burguesas foram veemente criticados pelas autoridades e

ordens religiosas por distorcerem a imagem da mulher no século XIX, ao

pintá-la, por meio de uma linguagem erótica, como “a adúltera com as cores

mais atraentes” (CHARTIER & HÉBRARD, 1995, p.68) e também por

conduzi-las a buscar sua realização individual, ainda que para isso fosse

necessário seguir uma conduta contrária aos princípios cristãos, e, dentro

dessa atmosfera, iluminada pelas chamas das inúmeras fogueiras

inquisitoriais, muitas mulheres, tanto na Europa como na América Latina,

através do texto literário, passam a desempenhar um novo papel na

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95

sociedade, além daquele destinado à família e ao casamento: o de sujeito

criador. Estas passam a produzir literatura.

Neste processo de produção, notamos que certos tipos de textos, os

pessoais (as correspondências e os bilhetes) são extremamente pertinentes

para o estudo do desenvolvimento da escrita feminina, sendo considerados

uma das primeiras e mais importantes formas de auto-representação do “eu”

feminino.

Nesses textos, geralmente escritos por e para mulheres, as escritoras

nos revelam seus interesses individuais, familiares e políticos, ao mesmo

tempo em que dão testemunho das opiniões e dos costumes presentes na

sociedade. É válido ressaltar que é através desta modalidade de texto que as

mulheres do século XIX se sentem habilitadas a expressar diretamente a

visão que têm de si mesmas e de seu lugar na sociedade, transmitindo uma

idéia muito pessoal da época e do ambiente em que viveram.

A escrita consolidou uma das maiores preocupações femininas

daquela época: o direito de a mulher escrever e publicar seus textos

literários, e a partir deste princípio, grande parte das escritoras passa a

expressar sua visão crítica conforme os seus ideais, caracterizando, assim, a

presença de uma pluralidade de pontos de vistas, de opiniões.

Submetidas ao rigor vigilante de uma sociedade que, de forma bem

lenta e gradativa, se atreve ao questionamento próprio, as mulheres

recorrem à escritura pessoal para dar asas às imaginações proibidas,

posicionando-se, muitas vezes, contra o casamento sem amor e à autoridade

masculina, uma vez que esta feria o direito de a mulher se separar.

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96

Contrariando todo um código de valores morais estabelecido,

sobretudo, pela Igreja Católica, grande parte das escritoras do século XIX foi

submetida à censura por promover a distorção da imagem exemplar da

mulher e também por conduzi-la a buscar uma realização individual, ainda

que para isso fosse necessário seguir uma conduta contrária aos princípios

cristãos.

Sendo assim, vimos que a crítica e combate a esse tipo de produção

literária se devem, portanto, ao fato de muitas dessas obras estarem

vinculando a imagem da mulher a aspectos negativos, vulgares,

contrariando, assim, o predomínio do modelo de feminilidade, baseado no

recato, na disciplina e no pudor, e a concepção de que “o maior encanto da

mulher é a ignorância”48.

Expostos, portanto, os principais temas relacionados à leitura e à

formação do público leitor, em especial do feminino, adentraremos, no

próximo capítulo, no plano literário de La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”.

Com base nas teorias críticas de Genette e Piglia, seguiremos em direção a

uma de nossas grandes propostas: apresentar as mais ilustres figuras da

leitura e do leitor no romance clariniano, analisando, evidentemente, os

possíveis efeitos acarretados pelas leituras realizadas pelos personagens

leitores de uma das maiores obras da literatura espanhola.

48 Ver La Desheredada, em O.C, cit. t.IV, p.990. In: MAYORAL, Marina. “La mujer ideal de Galdós”. Revista Ínsula, n°. 561, Septiembre. Madrid: 1993, p.7. “el mayor encanto de la mujer es la ignorancia”.

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97

2.2. As figuras da leitura e do leitor em La Regenta

Constituído por muitas leituras que realizou, Víctor Quintanar, o ex-

regente de Audiência, é mais um personagem a entrar para a galeria dos

grandes leitores de La Regenta. Apaixonado pelo teatro do século XVII, em

especial, pelos textos de Calderón de la Barca, a leitura também passa a

desempenhar um papel crucial na vida do protagonista, que tem seu

imaginário alimentado, moldado, pelas imortais comédias espanholas.

Ler, muito mais que entretenimento, é viver, e, considerando esta

idéia, pudemos observar que Quintanar torna-se protagonista de sua própria

história, dando vida, portanto, a tudo aquilo que o havia fascinado,

contagiado. Buscava nas leituras um modelo exemplar de vida, de conduta, e

era justamente nos personagens das comédias de Calderón e de Lope de

Vega que o ex-regente o encontrava. Estabelece-se, assim, uma profunda

relação de identificação entre o texto lido e o leitor, o que, mais uma vez,

vem a corroborar a fundamental importância da leitura na vida destes

protagonistas que se educam por meio de livros.

Profundo admirador da honra e da virtude, elementos essenciais à

natureza de um cavalheiro, Quintanar atua, em muitas ocasiões, conforme as

leituras que realizava, tornando-se “o porta-voz do mito calderoniano da

honra” (Oleza, 2003. Tradução nossa)49. Inspirava-se nos principais

personagens e tentava viver da mesma maneira que os mesmos, o que, de

uma certa forma, acentuava a inexistência de uma personalidade e de um

49 “el portavoz del mito calderoniano de la honra”.

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98

discurso próprios, já que muitas de suas ações foram decorrentes daquilo

que lera, do que encontrara no texto literário, e esta apropriação lhe dá,

muitas vezes, um aspecto caricaturesco, dada a semelhança existente entre

os protagonistas das comédias idolatrados por ele. Como exemplo desta

personalidade carente de caráter, citamos o seguinte fragmento:

Hasta en el estilo se notaba que Quintanar carecía de carácter. Hablaba como el periódico o el libro que acabara de leer, y algunos giros, inflexiones de voz y otras cualidades de su oratoria, que parecían señales de una manera original, no eran más que vestigios de aficiones y ocupaciones pasadas. (ALAS: 1997, p.540).

Fascinado, indiscutivelmente, pelo ato de ler, várias são as cenas de

La Regenta em que vemos os efeitos destas leituras na vida do ex-regente,

e, para melhor ilustrá-la, citamos um fragmento do capítulo III, em que essa

predileção e deleite pelos costumes daquele tempo em que se sabia o que

realmente significava a palavra honor, tornam-se visíveis:

Siempre había sido muy aficionado a representar comedias, y le deleitaba especialmente el teatro del siglo diecisiete. Deliraba por las costumbres de aquel tiempo en que se sabía lo que era honor y mantenerlo. Según él, nadie como Calderón entendía en achaques del puntillo de honor, ni daba nadie las estocadas que lavan reputaciones tan a tiempo, ni en el discreteo de lo que era amor y no lo era, le llegaba autor alguno a la suela de los zapatos. En lo de tomar justa y sabrosa venganza los maridos ultrajados, el divino don Pedro había discurrido como nadie y sin quitar a «El castigo sin venganza» y otros portentos de Lope el mérito que tenían, don Víctor nada encontraba como «El médico de su honra». (Ibidem, p.127).

No entanto, Joan Oleza (2003) chama-nos a atenção para um fato

particularmente excepcional. Ao ter a oportunidade de pôr em prática tudo

aquilo que havia aprendido por intermédio das leituras realizadas, dom Víctor

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99

não conseguia efetivá-lo. Tudo que havia cultivado com tanto zelo e

admiração (referimo-nos às habilidades com o manejo da pistola e ao desejo

de vingança, caso descobrisse a traição de sua companheira), acaba

deixando para trás. Logo, “em lugar de fazer sangrar Ana até a morte, a

perdoa, colocando as culpas sobre si e sobre o sedutor, mas também não o

mata quando o surpreende deslizando desde a alcova de sua esposa ao

jardim (...) e também não o mata no duelo a pistola” (OLEZA, 2003. Tradução

nossa)50, fato que inviabiliza considerá-lo um personagem exclusivamente

comprometido com a leitura, como é o caso de Ana Ozores.

Outra leitura realizada por Quintanar, merecedora de grande

destaque, é a de La imitación de Jesucristo, de Kempis. Protagonista de

idéias puras, nobres, elevadas e, muitas vezes, poéticas, o ex-regente era

um homem bastante simples, mesmo apesar de sua linguagem estar sempre

imbuída de um toque declamador e altissonante, originário dos versos de

Lope e Calderón que sabia de memória, e este espírito bondoso é afetado

pelo pessimismo do livro que difunde uma visão extremamente negativa da

vida, a ponto de tirar-lhe o bom-humor. A leitura de Kempis o fez meditar

sobre fatos que nunca lhe haviam passado na mente. A concepção de que a

vida, de todas as maneiras, é bem triste, especialmente se considerarmos o

fato de que tudo é passageiro, contamina a alma do personagem: “poco a

poco Kempis fue tiznándole el alma de negro y don Víctor llegó a despreciar

las cosas por efímeras” (ALAS, 1997, p.652), e esta visão pessimista da vida

50 “en lugar de hacer sangrar a Ana hasta la muerte, la perdona, echando las culpas sobre sí y sobre el seductor, pero tampoco mata a este cuando lo sorprende deslizándose desde la alcoba de su esposa al jardín (...) y tampoco lo mata en el duelo a pistola”.

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100

reaparecerá no capítulo XIX, na cena em que o ex-regente resolve

confidenciar a Frígilis, seu grande amigo, a traição de Ana Ozores. Neste

episódio, o personagem, tomado pelas dores da decepção amorosa, faz crer

que “todo el mundo era podredumbre; el ser humano lo más podrido de todo”

(Ibidem, p.896). Ao pensar em Kempis, reconhece que sempre haverá uma

cruz para se carregar: “(...) verás que siempre tienes algo que padecer de

grado o por fuerza; siempre hallarás la cruz...” (Ibidem, p.896), e a ocorrência

deste pensamento contradiz toda a filosofia aprendida com as leituras das

ilustres comédias do século XVII. O mundo não era o que as comédias

diziam, ou seja, não correspondia ao universo projetado pelo personagem-

leitor, e, diante desta incompatibilidade com o real, vimos que, além da vitória

do pessimismo, há também a derrota de um ser que a vida inteira mostrou-se

à margem da verdadeira realidade, não se adaptando, de forma alguma, a

ela.

Conhecido por ser uma crônica viva das antiguidades vetustenses,

Saturnino Bermúdez, doutor em teologia e em ambos direitos, civil e

canônico, licenciado em filosofia e letras, bacharel em ciências e autor de

várias obras: Vetusta Romana, Vetusta Goda, Vetusta Feudal, Vetusta

Cristiana e Vetusta Transformada, é mais um personagem-leitor que compõe

o universo literário de La Regenta.

Primeiro “antiquário humano” da província, Bermúdez acreditava ser ”-

y esto era verdad- el hombre más fino y cortés de España” (Ibidem, p.77).

Sempre muito amável e prestativo, o arqueólogo sabia tudo sobre as

antiguidades de Vetusta, e, quando chegava algum forasteiro de grande

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101

importância na cidade, ele próprio se encarregava de acompanhá-lo para

apresentá-lo às diversas raridades vetustenses, e este lado afável,

atencioso, de Bermúdez tem a ver, sem sombra de dúvidas, com sua

natureza, ou seja, com seu espírito altamente romântico, aflorado, em

especial, pelas leituras que realizara. Leitor não só de crônicas, de textos

informativos (notícias, reportagens e outros) e de livros que abordavam

questões relacionadas à arqueologia, à ciência e à religião, o protagonista se

encantava mesmo com os romances mais requintados e psicológicos,

publicados, desde então, em Paris. No fundo de sua alma, Bermúdez

acreditava ter nascido para o amor, mesmo apesar de nunca ter provado as

“dulzuras groseras y materiales del amor carnal” (Ibidem, p.79). Tinha plena

consciência de que nele habitava um coração carente, não de conhecimento,

mas sim de experiência de vida, em especial as que estão relacionadas ao

campo afetivo, em outras palavras, ao amor e à paixão.

Seu imaginário, assim como o de Víctor Quintanar, também fora

alimentado pelos livros, ou melhor, pela ficção, e, a partir deste contato com

a leitura, o personagem passa a manifestar intensos desejos de viver seu

próprio romance, da mesma maneira que viviam os personagens das obras

lidas por ele.

Em matéria de amor, Bermúdez era incapaz de aproximar-se de uma

jovem e de demonstrar-lhe suas verdadeiras intenções. Acreditara ser mais

conveniente apaixonar-se por uma mulher casada, pois estas sim poderiam

compreendê-lo melhor, já que, como nos romances que desfrutava, quase

sempre as heroínas eram mulheres comprometidas, mas que, ao final,

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102

encontravam-se redimidas pelo amor e pela fé. Particularmente, este

pensamento chamou-nos a atenção, pois o arqueólogo passou a manifestá-

lo a partir das leituras de romances que realizara. A primeira vez que pensou

nesta possibilidade, a de envolver-se com uma mulher casada, teve sérios

arrependimentos, porém, logo em seguida, a idéia foi parecendo-lhe

tentadora, e o resultado, como havia de se esperar, foi a paixão de

Bermúdez pela bela Ana Ozores, o que magistralmente nos evidencia os

efeitos ocasionados pela leitura. Vejamos:

En efecto, don Saturno se enamoró de una señora casada; pero le sucedió con ella lo mismo que con las solteras; no se atrevió a decírselo. Con los ojos sí se daba a entender, y hasta con ciertas parábolas y alegorías que tomaba de la Biblia y otros libros orientales; pero la señora de sus amores no hacía caso de los ojos de don Saturno ni entendía las alegorías ni las parábolas... (Ibidem, p.79).

No entanto, é importante comentar que, assim como o ex-regente de

Audiência, o protagonista manifestava, de fato, intensos desejos acarretados

pela leitura, porém não conseguia pô-los em prática, guardando-os apenas

para si mesmo, e por isso Ana Ozores se destaca dentro desta inigualável

galeria de personagens leitores de La Regenta, pois não só manifesta como

também vive intensamente todos os efeitos produzidos pelo ato de ler, o que

a torna a maior leitora de toda a obra.

Da mesma maneira que Saturnino Bermúdez, Paquito, o filho dos

marqueses de Vegallana, também tem seu imaginário alimentado pelos

livros. Contaminado pelas leituras de La historia de la prostitución, de Dufon,

La dama de las Camelias e outras obras do mesmo gênero literário, Paco

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103

muito se identifica com os protagonistas destas narrativas carregadas de

erotismo, e esta identificação contribuiu, sem dúvida, para com a

consolidação de uma grande amizade entre o jovem, encantado pelos

incontáveis prazeres da vida, e o astuto e sedutor Álvaro Mesía, que “como

una dama rica y elegante deja vestidos casi nuevos a sus doncellas” (Ibidem,

p.222).

Amante do amor e do bom coração “de las que llamaba Bermúdez

meretrices” (Ibidem, p.221), o personagem, sem hesitações, aceitava de bom

grado os antigos amores de Álvaro- os seus vestidos usados-,

demonstrando, assim, ter uma notável cumplicidade e admiração pelo don

Juan de Vetusta, seu verdadeiro ídolo. Esta idolatria manifesta-se

principalmente pelo fato de Paco encontrar na figura de Álvaro a

representação de um modelo exemplar de requinte e sedução, ou seja, um

exemplo de conduta a ser seguido, e, em razão disto, o jovem procurará

imitá-lo em todos os seus gostos e gestos, o que fortalecerá cada vez mais a

amizade entre ambos.

Lê-se, portanto, para viver, para encontrar um sentido que complete o

vazio existente em suas vidas, e, no caso de Paco, vimos que este sentido,

além de ser construído pelas leituras realizadas, também é construído pelo

discurso de Álvaro Mesía, que sabiamente o manipulava, assim como se

manipulam certas mulheres que tinham educação e sentimentos

semelhantes aos do futuro marquês. Apesar da perversão, da luxúria e da

imoralidade de Paco, defensor da corrupção absoluta das classes

superiores, o jovem “esperaba todavía un amor puro, un amor grande, como

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104

el de los libros y las comedias” (Ibidem, p.223). No seu interior, habitava um

espírito romântico que vagamente se conscientizava de que havia algo

melhor que o ordinário galanteio empreendido por ele. Aproveitando-se disto,

desta pequena dose de inocência, Mesía também moldava e alimentava o

imaginário do jovem aprendiz, com o objetivo de fazê-lo aliado em seu mais

novo investimento: conquistar o coração de Ana Ozores. Possuí-la

carnalmente era seu maior desejo, e, para isso, Paquito teria de acreditar

que o chefe do partido liberal dinástico deveria estar verdadeiramente

apaixonado pela dama. Desta forma, se se convencesse da pureza e da

paixão, Paco indubitavelmente o ajudaria, mas se conhecesse realmente as

verdadeiras pretensões de seu amigo, que sabia perfeitamente apresentar-

se como um “personaje de novela sentimental e idealista, cuando lo exigían

circunstancias” (Ibidem, p.228), ter-lhe-ia negado ajuda. A amizade entre os

Vegallana e a Regenta era bastante íntima, e a casa dos marqueses era o

locus ideal para que o sedutor pudesse iniciar seu maior e mais audacioso

empreendimento: seduzir a senhora mais bela de toda a cidade. Conquistar,

então, a admiração do jovem marquês foi algo extremamente fundamental.

Paco acreditava ser Álvaro um indivíduo capaz de redimir-se por

amor, e, em razão disto, lhe pareceu justo ajudá-lo a todo custo. No entanto,

se tivesse lido alguns dos principais romances da época, perceberia

nitidamente a ausência de autenticidade no discurso de dom Álvaro,

carregado de clichês românticos de péssimo gosto.

Álvaro Mesía, conhecido como “el demonio de la seducción” (Ibidem,

p.301), é a representação do modelo perfeito da vida social vetustense

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105

durante o período da Restauração na Espanha oitocentista. Completamente

volúvel, ambicioso e materialista, Mesía é um sedutor que se move em uma

sociedade burguesa e produtiva de forma improdutiva. É uma figura criada

para o consumismo e não para a produção, para o trabalho. Eliminados

todos os vestígios de romantismo, notamos que o protagonista, com toda

habilidade e maestria nas artes da sedução, carece de originalidade, de

intensidade vital e de heroísmo, sendo incapaz de amar de verdade, de

entregar-se totalmente. Para Mesía, o amor não passa de uma prática

profissional, visão que muito diverge da clássica concepção de amor adotada

pelo dom Juan romântico. Segundo Oleza, “os realistas transformaram

radicalmente o mito de Dom Juan, privando-o da aura de transcendência

para instalá-lo em uma atmosfera anti-heróica e burguesa” (2003. Tradução

nossa)51, e esta transformação encontra-se bastante evidente em La

Regenta, o que corrobora, de fato, a desconstrução do donjuanismo

tradicional, verdadeiramente comprometido com o romantismo.

Com relação às leituras de Álvaro Mesía, constatamos que o

personagem, além das leituras eróticas, era leitor também de obras como

Fuerza y matéria, de Büchnor, alguns livros de Flammarion, Molescholt,

Virchov e Vogt, autores que abordam questões relacionadas ao

materialismo, e do poema de Lucrecio, De rerum natura, o que

indiscutivelmente nos evidencia a presença do caráter materialista e

prepotente do chefe do partido liberal dinástico.

51

“los realistas transformaron radicalmente el mito de Don Juan, privándole del aura de trascendencia para resituarlo en una atmósfera antiheroica y burguesa”.

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106

Outro ponto merecedor de destaque refere-se à questão dos espaços

de leitura em La Regenta. Devido à intenção por parte do artista de “criar

uma obra com alto grau de aparência de realidade”52 (ZUBIAURRE, 2000,

p.87), constatamos que o espaço assume uma importante função no

romance clariniano: passa a potencializar, por um lado, a verossimilhança, já

que todo cenário representado pelo narrador Clarín é identificável,

acentuando, assim, a sensação de realidade; e, por outro lado, a

artificialidade, uma vez que enfatiza a criação literária, ou seja, a

transformação artística do mundo real.

O espaço narrativo do romance La Regenta se converte, então, em

espaço representado, isento “das responsabilidades do espaço ‘real’ e

submetido, em troca, às leis da escrita poética”53 (Ibidem, p.90), o que muito

contribui para com o reconhecimento e a identificação do espaço real nos

cronotopoi do relato decimonônico.

Martínez-Bonati (1992, p.183) afirma que, segundo a Poética de

Aristóteles, uma imitação correta apresenta uma sucessão de

acontecimentos fictícios que, “de acordo com a imediata sensibilidade e

compreensão dos espectadores e contemplados segundo sua natureza

genérica, são, pelo menos, sempre possíveis, e, preferivelmente, prováveis e

até necessários”54. Desta forma, a realidade retratada pelo escritor será uma

realidade possível para os leitores de La Regenta e nunca improvável ou 52

“crear una obra con alto grado de apariencia de realidad”. 53

“de las responsabilidades del espacio ‘real’ y sometido, en cambio, a las leyes de la escritura poética”. 54 “de acuerdo con la inmediata sensibilidad y comprensión de los espectadores y contemplados según su naturaleza genérica, son, por lo menos, siempre posibles, y, preferiblemente, probables y hasta necesarios”.

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impossível como ocorriam com as narrativas de cavalaria, pastoris e

românticas, por exemplo. Ao invés do estranhamento, o leitor irá deparar-se

com descrições e paisagens familiares, o que lhe permitirá transpassar as

fronteiras do texto literário.

2.2.1. Os espaços de leitura na obra

Para retratar a realidade de Oviedo no século XIX, foi necessário que

o autor tivesse um profundo conhecimento de todos os fatos,

acontecimentos, que propôs narrar ao longo dos trinta capítulos de La

Regenta, e os espaços de leitura são, sem dúvida, um deles.

Retomando, portanto, o conceito de representação da realidade,

difundido pela Retórica, e resgatado, posteriormente, pelas primeiras

manifestações artísticas do movimento realista, na segunda metade do

século XIX, observamos que o autor consegue apresentar-nos em La

Regenta, através de construções literárias, um perfeito panorama do

ingresso do público leitor no mundo das letras, destacando a presença de

espaços determinados exclusivamente ao exercício da leitura.

Atividade muito comum no século XIX, o ato de ler, da coletividade, ou

seja, das tradicionais leituras em rodas, feitas geralmente pela matrona da

casa no âmbito familiar, se estende à individualidade. Fortifica-se, neste

período, uma preferência pela leitura individual, uma vez que esta

proporciona um contato mais íntimo, mais pessoal entre o leitor e a obra lida

por ele. Nesta relação, destacamos indiscutivelmente a importância dos

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108

espaços internos, dentre eles o quarto (la habitación), locus que acentua

essa identificação do homem com o livro, ou melhor, com o universo literário

nele contido.

No capítulo III do romance, observamos que o quarto torna-se um dos

principias espaços de leitura no século XIX. Apaixonado pelo teatro do

século XVII, em especial pelas comédias de Calderón de la Barca, o ex-

regente de Audiência, dom Víctor Quintanar, um magistrado “aragonés muy

cabal, valiente, gran cazador...” (ALAS, 1997, p.177), realiza grande parte de

suas leituras em seu quarto, à noite, antes de dormir:

Volvió a encender luz. Cogió el único libro que tenía sobre la mesa de noche. Era un tomo de mucho bulto. «Calderón de la Barca» decían unas letras doradas en el lomo. Leyó. Siempre había sido muy aficionado a representar comedias, y le deleitaba especialmente el teatro del siglo diecisiete. (Ibidem, p.127).

No decorrer do capítulo V, encontramos Víctor novamente em posição

de leitura: “a la luz de una lámpara de viaje, calada hasta las orejas una

gorra de seda, leía tranquilamente, algo arrugado el entrecejo, El Mayor

Monstruo los celos o el Tetrarca de Jerusalén, del inmortal Calderón de la

Barca” (Ibidem, p.186), e, à medida que tomamos ciência das leituras feitas

pelo protagonista e dos espaços em que ele as realizava, notamos que

Clarín passa a valorizar um importante elemento dentro do quarto de

Quintanar (espaço interior): a cama.

Em posição de repouso, o personagem adentrava nas páginas das

imortais comédias espanholas, buscando no ato de ler não só o

entretenimento, a diversão, mas principalmente uma maneira de alimentar o

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109

seu imaginário, uma vez que estas obras refletiam todos aqueles ideais

cavalheirescos admirados por ele.

Dom Víctor lia Calderón sem se cansar, e, em várias cenas de La

Regenta, encontramos as influências que o ato de ler apresentou na vida do

personagem leitor, que teve seu imaginário alimentado pelas leituras. Para

melhor explicar essa idéia, de que a leitura pode influenciar o comportamento

do indivíduo, apresentamos um fragmento da obra que pode perfeitamente

sintetizar esse pensamento. Vejamos:

Todas las noches antes de dormir se daba un atracón de honra a la antigua, como él decía; honra habladora, así con la espada como con la discreta lengua. Quintanar manejaba el florete, la espada española, la daga. Esta afición le había venido de su pasión por el teatro. (Ibidem, p.128).

No entanto, há algo mais do que satisfação e entretenimento no ato de

ler na cama: há privacidade. Ler na cama seria “um ato autocentrado, imóvel,

livre das convenções sociais comuns, invisível ao mundo” e, com base nesta

definição proposta por Manguel (2002, p.180), pudemos evidenciar uma

preferência pela individualização, o que vem a corroborar a prática de uma

das mais diversas modalidades da leitura: a leitura íntima. Ao tornar-se tão

privativa, tão íntima do leitor, a cama acaba conquistando um papel de

destaque na narrativa de Leopoldo Alas, passando a ser um <<novo

espaço>> dentro do universo literário de La Regenta.

Da mesma forma que Víctor Quintanar, Ana Ozores também é uma

personagem-leitora. No capítulo IV, Ana passa a manifestar um incrível

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110

interesse pela leitura, e será nas estantes da biblioteca de dom Carlos, seu

pai, que também encontrará novos livros.

Orgulho legítimo de Carlos Ozores, a biblioteca torna-se um espaço

crucial no romance, pois será em suas vastas estantes que Anita, ao longo

de sua estadia em Loreto, irá buscar o conhecimento necessário para

ampliar sua limitada visão de mundo, de realidade.

A jovem se tornará, neste período, uma grande leitora, passando a ler

obras de distintos gêneros literários, sobretudo as que se relacionavam à

literatura religiosa, como El Cantar de los Cantares, na versão poética de

San Juan de la Cruz, e Las Confesiones de San Agustín, o que muito

contribuirá para o surgimento das primeiras aspirações literárias (o desejo de

tornar-se escritora e o projeto de escrever um livro dedicado a la Virgen) e

para a manifestação do langor místico, ambas estudadas no sub-capítulo

seguinte deste trabalho, dedicado especialmente às leituras realizadas pela

protagonista.

Ainda se tratando de espaços internos, a cozinha torna-se também um

locus destinado à leitura, principalmente se consideramos o fato de que a

maioria das mulheres burguesas do século XIX passava grande parte do

tempo em casa (espaço privado), cuidando dos afazeres domésticos e da

criação dos filhos. Em função isto, não nos causou estranhamento a intenção

do narrador em transformar a cozinha em um ambiente propício ao ato de ler,

e, no intuito de melhor aclarar esta idéia, citamos o fragmento em que o

narrador a apresenta como um possível espaço de leitura, sobretudo, dada a

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111

presença da chaminé, que “al amor de cuya lumbre leyera en otros días

tantos folletines la señorita Anunciación Ozores” (Ibidem, p.290). Citamos:

Después doña Anuncia se encerró en el comedor con doña Águeda, y terminada la conferencia compareció Anita. Doña Anuncia se puso en pie al lado de la chimenea pseudofeudal: dejó caer sobre la alfombra La Etelvina, novela que había encantado su juventud, y exclamó: “Señorita... hija mía; ha llegado un momento que puede ser decisivo en tu existencia” <<Era el estilo de La Etelvina>> . (Ibidem, p.181).

Muito mais que a apresentação de um novo espaço de leitura, vemos

também as conseqüências da educação sentimental feita por intermédio do

livro, ou melhor, do romance em destaque. Neste fragmento, o narrador de

La Regenta, evidencia-nos os efeitos acarretados pelo ato de ler. O discurso

da personagem dona Anuncia, assim como o de dom Víctor Quintanar, foi

construído a partir das diversas leituras do romance que a mesma realizou

ao longo de sua vida. “La Etelvina, novela que había encantado su juventud”,

torna-se, portanto, o modelo, a referência de como agir, atuar em

determinadas situações, confirmando, assim, o poder que a leitura exerce

nos protagonistas leitores da obra.

Outro notável espaço presente na narrativa de Clarín é o gabinete de

leitura de Rufina de Robledo, mais conhecida como Marquesa de Vegallana.

Personagem-leitora, a dama, casada com o chefe do partido conservador de

Vetusta, tinha o costume de passar grande parte do tempo em seu gabinete,

local onde realizava as leituras de romances, revistas e jornais da época e

onde recebia seus amigos mais íntimos quando estes lhe tinham algo para

falar. Vejamos:

Page 112: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

112

La excelentísima señora doña Rufina de Robledo, marquesa de Vegallana, se levantaba a las doce, almorzaba, y hasta la hora de comer leía novelas o hacía crochet, sentada o echada en algún mueble del gabinete. (…) se quedaba en su gabinete donde recibía a los amigos y amigas que quisieran hablar de sus cosas, mientras ella leía periódicos satíricos con caricaturas, revistas y novelas. (Ibidem, p.236).

Neste fragmento, além da disposição espacial, há também uma crítica

contra o comportamento improdutivo da aristocracia da época. Para melhor

ilustrá-la, o narrador Leopoldo Alas, ironicamente, utiliza o superlativo

<<excelentísima>> para condenar a enfadonha vida (cotidiano) da Marquesa

de Vegallana que se resumia praticamente em levantar-se tarde, fazer

crochê, ler jornais satíricos, revistas e romances e receber a <<elite>> de

Vetusta em seu imponente palácio para se divertir e conversar, amenizando,

assim, as árduas horas de permanência em casa.

Outro importante espaço a ganhar destaque na narrativa de Leopoldo

Alas, mais precisamente no capítulo VI de La Regenta, é o gabinete de

leitura do Cassino de Vetusta, também utilizado como biblioteca pelos

sócios. Através da minuciosa descrição empreendida pelo narrador,

observamos a presença de um ambiente estreito, sem muito requinte, se o

comparamos, por exemplo, com o luxuoso gabinete dos Vegallana. Vejamos

a descrição:

El gabinete de lectura, que también servía de biblioteca, era estrecho y no muy largo. En medio había una mesa oblonga cubierta de bayeta verde y rodeada de sillones de terciopelo de Utrecht. La biblioteca consistía en un estante de nogal no grande, empotrado en la pared. Allí estaban representando la sabiduría de la sociedad el Diccionario y la Gramática de la Academia. Estos libros se habían comprado con motivo de las repetidas disputas de algunos socios que no estaban conformes respecto del significado y aun de la ortografía de ciertas palabras. Había además una colección incompleta de la Revue

Page 113: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

113

des deux mondes, y otras de varias ilustraciones. (Ibidem, p.191).

Freqüentado exclusivamente por um público masculino cada vez mais

interessado pela aquisição da informação, tal como evidencia o escritor:

“estos y otros lectores asiduos se pasan los periódicos de mano en mano, en

silencio, devorando noticias que leen repetidas en ocho o diez papeles”

(Ibidem, p.110-111), notamos o que o ato de ler, neste local público, torna-se

uma prática bastante usual, entre os mais variados personagens de La

Regenta, dentre os quais podemos destacar o bibliófilo Amadeo Bedoya,

responsável pelo desaparecimento de muitos livros da biblioteca.

Muito mais que um lugar destinado à prática da leitura, a biblioteca do

Cassino de Vetusta também era o local onde se encontravam, segundo o

narrador do romance, a sabedoria da sociedade vetustense: o Dicionário e a

Gramática da Academia. Através da ironia de Leopoldo Alas, constatamos

que os respectivos livros tornaram-se símbolos, ou melhor, representações

do conhecimento e do saber, contrapondo-se, assim, à ignorância e à

estupidez humana predominante na provinciana cidade, que longe estava de

ser tida como modelo.

Analisando La Regenta, notamos que Clarín estabelece uma divisão

entre o espaço público e o privado, e estes também se encontram divididos

não só por classes sociais- aristocratas, burgueses, comerciantes, operários

e jovens- mas também por sexo- homens e mulheres.

Geralmente, os espaços destinados à leitura feminina restringiam-se

ao ambiente familiar, doméstico, enquanto a leitura masculina possuía um

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114

alcance maior, até pelo fato da sociedade burguesa da época ser

predominantemente dirigida por homens. Mesmo com todas as revoluções

ocorridas no século XIX que favoreceram, sobretudo, o ingresso do público

leitor feminino na cultura letrada, estabelece-se, na atmosfera ficcional de La

Regenta, uma oposição entre a situação de confinamento, vivida pelas

mulheres burguesas, e a mobilidade tida pelos homens, que, além dos

espaços privados, tinham acesso aos públicos, tais como os cassinos, clubs,

bares, cafés, pubs, bibliotecas públicas e outros.

Outro interessante aspecto apresentado pelo narrador de La Regenta

refere-se à formação de leitores no âmbito doméstico. A família enquanto

instituição era imprescindível ao novo modelo de Estado: o burguês. Era a

principal responsável pela construção de valores necessários a sua

manutenção, desde religiosos, éticos, morais até os de conduta social, e será

neste importante espaço privado de vivência que a prática da leitura irá se

desenvolver, principalmente se levarmos consideração o fato de que o gosto

pela leitura se constitui em uma atividade adequada a esse contexto de

privacidade doméstica.

Enquanto que em outros ambientes formais e rígidos a leitura é

utilizada como meio de acesso à informação e formação de uma nova visão

de mundo, ler em casa está relacionado, na maioria das vezes, ao lazer, uma

vez que o âmbito doméstico proporciona, dentre outros benefícios, o conforto

e o aconchego ao leitor.

Prática essencial à instrução, a leitura é tida como algo imprescindível

à sobrevivência, ou melhor, à vida dos protagonistas, e, considerando o

Page 115: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

115

importante papel que o ato de ler assume no romance clariniano, decidimos

empreender uma análise sobre as leituras realizadas pela maior figura do

leitor de toda a obra: Ana Ozores. Para isso, nos pareceu pertinente elaborar

um breve comentário sobre a educação feminina no século XIX, a fim de que

se possa compreender a proposta de dividir o período correspondente à

educação da mesma em quatro fases, apresentando, detalhadamente, em

cada uma delas, quais os textos lidos por ela e quais os conseqüentes

efeitos acarretados pela prática da leitura.

2.2.2. As leituras de Ana Ozores e as quatro fases

correspondentes à educação da personagem

2.2.2.1. A educação feminina no século XIX

O indivíduo, segundo Manguel (2002), ao aprender a ler, ao entrar em

contato com o mundo da leitura, é incluído imediatamente na memória

comunal por meio de livros, familiarizando-se, desta forma, com um passado

geral que ele renova, em maior ou menor grau, a cada leitura realizada.

Para a sociedade cristã da Baixa Idade Média e para a sociedade do

começo da Renascença, aprender a ler e escrever era o privilégio mais

exclusivo da aristocracia e, após o século XIII, da alta burguesia. A maioria

dos meninos e algumas meninas dessas classes aprendiam as letras muito

cedo, e este primeiro contato com a leitura e com a escrita ocorria,

Page 116: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

116

geralmente, através da mãe ou da governanta que, caso fosse letrada, se

encarregava das primeiras fases do processo de instrução das crianças.

Depois do aprendizado das primeiras letras, feito principalmente por

meio de cartilhas e abecedários, a família que dispusesse de boas condições

financeiras contratava professores como tutores particulares, para que estes

ficassem encarregados de aprofundar o conhecimento dos seus alunos,

introduzindo-os, de fato, em uma nova atmosfera educacional, marcada pela

instrução de novas disciplinas pedagógicas (História, Geografia, Matemática,

Ciências, o estudo da Língua Materna e Religião), fundamentais para a

formação do indivíduo.

Em decorrência das grandes transformações sócio-econômicas e

políticas, da industrialização, urbanização, fortalecimento da burguesia e o

aumento na produção de texto impresso que, conseqüentemente, propiciou o

aumento do público leitor, o século XIX é também marcado pelas campanhas

de alfabetização. O direito de ler e escrever, nessa época, passa a se

estender às mulheres, porém muitos questionaram os benefícios da

educação pública, uma das importantes conquistas da Revolução Francesa,

e da educação privada feminina, pois não era muito apropriado que as

meninas aprendessem a ler e a escrever numa sociedade em que o

conhecimento passa ser ameaçador para toda uma ordem edificada por

pilares conservadores e tradicionais.

Sendo assim, com o objetivo de conter o surgimento de certas

aspirações perigosas provenientes das más leituras realizadas pelo público

leitor feminino, vimos que o imperativo controle que a Igreja Católica exercia

Page 117: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

117

sobre a educação ainda se mantinha fortemente em muitas das sociedades

européias do século XIX, dentre as quais podemos destacar a espanhola.

Educadas a fim de conhecer a verdadeira fé cristã, a educação recebida

pelas mulheres na Espanha do século XIX fundamentava-se, em grande

parte dos casos, na concepção de que as damas precisariam proteger-se

dos perigos que, constantemente, ameaçavam suas almas, e, ao

analisarmos os capítulos IV e V do romance naturalista La Regenta,

verificamos que a protagonista Ana Ozores é “moldada”, constantemente,

para se ajustar a esse modelo educacional tão bem difundido nos países

católicos no século XIX.

Ainda que se produzissem, neste período, várias tentativas de reforma

educativa, a aliança da Igreja com os setores mais conservadores da época

conteve grande parte das aspirações burguesa de se implantar um ensino

laico que servisse de base para levar ao Estado uma ideologia mais

progressista e democrática, e, ao trazermos essas questões à tona,

observamos que esses mesmos conflitos também se encontram presentes

na obra La Regenta, principalmente na parte destinada à educação da

protagonista Ana Ozores.

“¡Saber leer! Esta ambición fue su pasión primera. Los dolores que

Doña Camila le hizo padecer antes de conseguir que aprendiera las sílabas,

perdonóselos ella de todo corazón. Al final supo leer” (ALAS, 1997, p.137).

Aprender a ler foi, indubitavelmente, a grande ambição de Ana Ozores, e, ao

analisarmos o período correspondente à educação da personagem, exposto

nos capítulos IV e V da obra, identificamos que esta se desenvolve em

Page 118: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

118

quatro períodos: o primeiro, a cargo de dona Camila, uma cruel e brutal

criada; o segundo, sob função de seu próprio pai, o liberal Carlos Ozores; o

terceiro, sob responsabilidade de suas tias religiosas, dona Anuncia e dona

Águeda, e o quarto e último, a cargo de Fermín de Pas, seu confessor.

Segundo Vives (2000), a educação que proporciona dona Camila à

jovem Ozores é uma educação contra todos os princípios relacionados à

natureza; era uma instrução baseada na repressão dos instintos e na

anulação de toda espontaneidade e autonomia da criança. Citamos:

De todas suertes, doña Camila se rodeó de precauciones pedagógicas y preparó a la infancia de Ana Ozores un verdadero gimnasio de moralidad inglesa. Cuando aquella planta tierna comenzó a asomar a flor de tierra se encontró ya con un rodrigón al lado para que creciese derecha. El aya aseguraba que Anita necesitaba aquel palo seco junto a sí y estar atada a él fuertemente. El palo seco era doña Camila. El encierro y el ayuno fueron sus disciplinas. (Ibidem, p.136).

A partir da leitura deste fragmento, vimos que a jovem fora educada

sem qualquer tipo de afeto, carinho, sendo submetida, a todo instante, ao

rigor e à disciplina de uma educação tradicional, fundamentada nos moldes

ingleses, e, em razão disto, chegamos à conclusão de que Ana viveu

contradizendo poderosos instintos de sua natureza, contendo,

constantemente, os seus impulsos de alegria. Neste período, declarou-se

vencida, seguindo, sem discutir, a conduta moral que arbitrariamente lhe

impuseram.

Durante toda a primeira fase, a personagem teve de conviver com a

falta do carinho materno, dado o falecimento da mãe, e com a ausência do

Page 119: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

119

pai, o revolucionário Carlos Ozores, que percorria a Europa em busca de

novos horizontes, de novos caminhos, em especial daqueles que estivessem

relacionados à arte, à literatura e à política, sua grande paixão.

Ao voltar dom Carlos do exterior, este se dá conta do terrível dano que

causara a Anita ao conferir a dona Camila a preciosa missão de instruí-la.

Reconhecido o equívoco, o próprio Ozores, após dispensar a criada de seu

dever, se encarrega pessoalmente da instrução de Ana, expondo-a, nesta

segunda fase, a uma nova filosofia educacional: a krausista. Imbuído de um

espírito liberal, o librepensador, em oposição à viciosa educação que a jovem

havia recebido de dona Camila, estabelece uma educação mais liberal,

permitindo que Ana se desenvolvesse livremente por meio de uma educação

unilateral e harmônica, tal como prescreve o krausismo, e, para melhor

compreender como se estrutura o segundo período relativo à educação de

Ana Ozores, acreditamos ser necessário um sucinto comentário sobre este

importante movimento filosófico presente na sociedade espanhola da

segunda metade do século XIX.

2.2.2.2. O movimento krausista na Espanha

O introdutor do movimento Krausista na Espanha foi Julián Sanz del Río

que, em 1843, é nomeado professor interino de Filosofia da Universidad

Central de Madrid, sob a condição expressa de aperfeiçoar seus

conhecimentos pedagógicos na Alemanha. Em território alemão, Sanz del

Río entra em contato com o ambiente intelectual, demonstrando um grande

interesse, sobretudo, pela filosofia de Karl Christian Friedrich Krause (1781-

Page 120: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

120

1832). Sánz encontrou em Krause o que nenhum dos outros filósofos

oferecia a um espírito tão inquieto e profundamente religioso como o seu: a

conciliação da religião com a ciência. O krausismo na Espanha passa a

adquirir vida própria, adaptando-se “às necessidades intelectuais de seus

protagonistas e, sobretudo, ao impulso religioso que o anima, assim como a

tentativa de conciliação do mesmo com o avanço científico” (VIVES, 1999.

Tradução nossa)55, o que nos evidencia a retomada de algumas das

principais diretrizes de Krause, reformuladas e redirecionadas às novas

propostas krausistas.

A partir desta identificação, podemos dizer que o racionalismo

harmônico e o panteísmo krausista apareceram para Sánz como uma

resposta para todas as suas dúvidas, contribuindo, assim, para a

implantação do movimento krausista na Espanha. Plantadas as sementes

krausistas no terreno da educação, os professores da Universidad Central de

Madrid, Francisco Giner de los Ríos, Canalejas e Salmerón, com o objetivo

de disseminar a filosofia krausista, fundam, em 1876, a Institución Libre de

Enseñanza, a maior conquista do movimento. É válido comentar que, pelo

Real Decreto de 25 de fevereiro de 1875, todos os professores deveriam

apresentar às autoridades competentes seus planos de estudo e livros

didáticos, o que, indubitavelmente, consistia numa grande violação do

princípio de liberdade do ensino, uma das principais propostas do movimento

krausista. No ano seguinte, amparados pela Constituição de 1876 que previa

55 “a las necesidades intelectuales de sus protagonistas y, sobre todo, al impulso religioso que lo anima, así como el intento de conciliación del mismo con el avance científico”.

Page 121: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

121

o reconhecimento da liberdade do ensino, os respectivos professores

krausistas, com o objetivo de introduzir uma moderna pedagogia racionalista

e, assim, promover uma verdadeira renovação didática, fundam a instituição,

que inicia suas atividades em outubro deste mesmo ano, sob a coordenção

de Giner de los Ríos.

Baseada nos princípios krausistas a Institución Libre de Enseñanza se

opunha à educação clerical predominante. Propuseram uma educação liberal

e científica, permitindo o desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos

que, através de desafios, eram levados a pensar e a refletir sobre

determinados assuntos ou pontos de vista. Incentivaram um novo estilo na

relação entre professores e alunos, o que, conseqüentemente, acarretou a

formação de um espírito altamente crítico e reflexivo, fato que, sem dúvida

alguma, muito motivou e incentivou os aprendizes a construírem o

conhecimento, não através de métodos defasados e ineficazes, mas sim por

meio de uma lógica que priorizava, acima de tudo, o raciocínio e o senso

crítico.

Com relação a sua filosofia de vida, os krausistas acreditavam que

todas as religiões tinham algo de bom e de verdadeiro, e que o homem

deveria fazer uso de sua razão para escolher a melhor, apelando, em casos

de dúvida, para sua consciência como juízo final. Assim, não existiria dogma

nem rito que não devesse ser submetido ao espírito crítico, questionador. O

princípio do livre arbítrio era fundamental no sistema krausista, e,

naturalmente, provocou um antagonismo absoluto por parte dos

conservadores, que, a todo instante, procuravam conter as grandiosas

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122

conquistas de um ensino laico e liberal. É importante afirmar que o livre

arbítrio na filosofia krausista não se limitou somente à religião; este pôde se

estender à filosofia, à política e a todas as manifestações da vida, fato que

muito preocupou os setores mais tradicionalistas da época, aliados à Igreja

Católica, que viam no movimento uma grande ameaça ao equilíbrio e à

hegemonia do sistema monárquico vigente na Espanha. No capítulo IV de La

Regenta, há uma cena em que podemos ver claramente a aparição desta

defesa do livre arbítrio, presente no discurso de dom Carlos, o que vem a

corroborar o quão o movimento krausista tornou-se fundamental à estrutura

narrativa da obra, em especial, à construção do respectivo personagem,

defensor dos ideais liberais. Citamos:

Sólo aquello que el rubor más elemental manda que se tape, era lo que ocultaba don Carlos a su hija. Todo lo demás podía y debía conocerlo. ¿Por qué no? Y con multitud de citas explicaba y recomendaba Ozores la educación omnilateral y armónica, como la entendía él. - Yo quiero- concluía- que mi hija sepa el bien y el mal para que libremente escoja el bien; porque si no ¿qué mérito tendrán sus obras?. (ALAS, 1997, p.142-143).

Por isso, nos pareceu de extrema pertinência realizar um breve

comentário sobre o movimento krausista na Espanha, resgatando a memória

de seus precursores que muito se empenharam, assim como os primeiros

historiadores nacionais da literatura espanhola, em “desenhar uma tradição

literária capaz de proporcionar fundamento à Espanha liberal, e com seu

núcleo central compartilhado pelo Quixote e pelo teatro <<nacional>>”

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123

(tradução nossa)56, tal como apresenta Oleza (2003) em “Lecturas y lectores

de Clarín”.

Com base nos moldes da educação krausista, vimos que Anita, no

período em que esteve orientada pelo pai, entra em contato com diversos

tipos de leitura, ampliando seus horizontes e enriquecendo o seu

conhecimento. Carlos Ozores, um personagem instruído em várias matérias,

amava a literatura com ardor, e, ao longo de sua vida, pôde reunir uma

expressiva biblioteca, a qual continha, dentre muitas obras, livros

condenados pelo Índice. Dado ao fácil acesso à biblioteca, Ana, talvez pelo

fato de invejar os deuses de Homero, que viviam como ela havia sonhado

que se deveria viver, ao ar livre, com muita luz e muitas aventuras, lê várias

obras clássicas, adquirindo, assim, um grande interesse pela mitologia grega:

“(...) sabía mucha Mitología, con velos y sin ellos” (ALAS, 1997, p.142).

Despertado o desejo pela leitura, Ana Ozores começa buscar novos

livros, e nessa busca incessante pela leitura, a jovem, que limpava as

estantes da biblioteca de dom Carlos, se depara como um volume em

francês das Confesiones de San Agustín. No mesmo instante, sentiu-se

tomada por um impulso irresistível e decidiu, imediatamente, iniciar a leitura

do livro. Ana o lia com a alma agarrada às letras e quando concluía uma

página, seu espírito já estava lendo a outra, e, e devido a esta fascinação,

vimos que a leitura da obra provoca em Ana Ozores o surgimento do primeiro

impulso místico. Vejamos:

56 “diseñar una tradición literaria capaz de proporcionar fundamento a la España liberal, y con su núcleo central compartido por el Quijote y el teatro <<nacional>>”.

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124

(...) seguía leyendo; aún estaba aturdida, casi espantada por aquella voz que oyera dentro de sí, cuando llegó al pasaje en donde el santo refiere que, paseándose él también por un jardín, oyó una voz que le decía "Tolle, lege", y corrió al texto sagrado y leyó un versículo de la Biblia... Ana gritó, sintió un temblor por toda la piel de su cuerpo y en la raíz de los cabellos como un soplo que los erizó y los dejó erizados muchos segundos. Tuvo miedo de lo sobrenatural; creyó que iba a aparecérsele algo... Pero aquel pánico pasó, y la pobre niña sin madre sintió dulce corriente que le suavizaba el pecho al subir a las fuentes de los ojos. Las lágrimas agolpándose en ellos le quitaban la vista. (Ibidem, p.147).

Ao entrar em contato com a literatura religiosa, a personagem muito se

emociona, pois as leituras de Confesiones de San Agustín fizeram-na

lembrar da falta que a presença materna fazia em sua vida. Muitas foram as

noites em que a pobre menina passara chorando e lamentando a ausência

das carícias e dos abraços aconchegantes da mãe que, por uma obstinação

do destino, não conhecera. Ao encontrar, então, nas santas palavras de

Agustín a paz e a luz que tanto buscava para suprir o vazio proveniente da

falta do amor materno, notamos que Ana muito se identifica com a literatura

mística, passando a ler, neste importante período de formação, obras como

as poesias religiosas de Fray Luis de León: “Si queres, como algum dia,/

adorar cabelos louros,/ adora os de Maria,/ mais dourados e mais belos,/ que

o sol claro ao meio-dia” (Ibidem, p.149) e o Cantar de los Cantares, na

versão poética de San Juan de la Cruz. É importante comentar que estas

obras foram fundamentais para a manifestação do langor místico que

envolverá a personagem ao longo de sua trajetória como leitora. Foram estes

acessos de religiosidade, que ela acreditara ter sido uma revelação

providencial de uma vocação verdadeira, que determinaram as violentas

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125

crises de histeria e enfermidades que puseram, por inúmeras vezes, sua vida

em risco.

A partir da leitura desses livros, Ana Ozores consegue manifestar suas

tendências e aspirações pessoais, comprovando como essa atividade pode

interferir no comportamento e na formação do indivíduo leitor. Para enfatizar

este pensamento, citamos um fragmento no qual a personagem, após ter lido

o Cantar de los Cantares, de San Juan de la Cruz, sente-se inspirada e tenta

compor versos dedicados à Mãe Celestial, revelando-nos, assim, os efeitos

da leitura em sua vida:

(...) Abrió un libro de memorias, lo puso en sus rodillas, y escribió con lápiz en la primera página: << A la Virgen >>. Meditó, esperando la inspiración sagrada. Antes de escribir dejo hablar el pensamiento. Cuando el lápiz trazó el primer verso, ya estaba terminada, dentro del alma, la primera estancia. Siguió el lápiz corriendo sobre el papel, pero siempre el alma iba más de prisa; los versos engendraban los versos, como un beso provoca ciento; de cada concepto amoroso y rítmico brotan enjambres de ideas poéticas, que nacían vestidas con todos los colores y perfumes de aquel decir poético, sencillo, noble, apasionado. (Ibidem, p. 152).

Com a morte de dom Carlos, a jovem Ozores acaba ficando sob tutela

de suas duas tias solteironas e beatas, Águeda e Anuncia, regressando

novamente ao período de escuridão e repressão, e é nesta fase que a

personagem, segundo Vives (2000), volta a manifestar, mais intensamente,

sua vocação literária. O espírito de Ana almejava algo muito maior: ser ao

mesmo tempo criadora e fruidora da literatura religiosa que tanto a fascinava.

A jovem, que já não se contentava somente com as leituras, queria produzir,

transferir para o papel (um caderno de versos) a expressão dos seus mais

íntimos pensamentos e reflexões sobre a vida, porém, quando dona Anuncia

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126

se depara com o caderno de versos de Ana Ozores, surge a primeira

surpresa: “Una Ozores Literata”:

Cuando doña Anuncia topó en la mesilla de noche de Ana con un cuaderno de versos, un tintero y una pluma, manifestó igual asombro que si hubiese visto un revólver, una baraja o una botella de aguardiente. Aquello era cosa hombruna, un vicio de hombres vulgares, plebeyos. Si hubiera fumado, no hubiera sido mayor la estupefacción de aquellas señoras. ¡Una Ozores literata!. (ALAS, 1997, p.172).

O desejo de se tornar escritora, de escrever um livro: “salió sola, con

el proyecto de empezar a escribir un libro, allá arriba, en la hondonada de los

pinos que ella conocía bien; era una obra que días antes había imaginado,

una colección de poesías << A la Virgen>>” (Ibidem, p.150), não condizia

com a mesquinha realidade provinciana que a rodeava: “Tan general y viva

fue la protesta del gran mundo de Vetusta contra los conatos literarios de

Ana, que ella mismo se creyó en ridículo y engañada por la vanidad” (Ibidem,

p.173). A partir deste fragmento, notamos que a atividade literária era tida

como algo completamente abominável, um vício de homens vulgares e

perdidos, não podendo se estender às mulheres burguesas que ainda eram

educadas em função de um dado modelo de feminilidade, e, ao fazermos

referências a este modelo, nos pareceu oportuno resgatar a figura do filósofo

Rousseau que, em Émile (publicado em 1762), descreve com muita clareza

os fundamentos do modelo de feminilidade que prevaleceu na Europa do

século XIX, principalmente nos países católicos.

Para Rousseau (1995), a mulher no seu “puro estado da natureza”

deveria ser domesticada para que seus desejos não prejudicassem, ou até

Page 127: Is a Be Laroque Lou Re i Rome Strado

127

mesmo destruíssem a ordem social e a familiar. Valores como recato, pudor

e vergonha deveriam ser cuidadosamente cultivados com o objetivo de

conter todos aqueles desejos e componentes excessivos da natureza

feminina, ameaçadores para a sociedade, o que torna compreensível o

motivo pelo qual a Igreja Católica passa a predicar o modelo do filósofo

iluminista.

As mulheres, segundo Rousseau, teriam de ostentar virtudes próprias

da feminilidade como a docilidade e uma receptividade passiva em relação

aos desejos e necessidade dos homens. Era fundamental que elas fossem

educadas na timidez, em nome do equilíbrio das relações conjugais. Tornar-

se-iam, desta maneira, recatadas, submissas e modestas para melhor poder

governar a casa e a família, garantindo, assim, a tão almejada harmonia do

lar, do espaço privado.

Educadas em função desse modelo de feminilidade que, segundo

Stendhal57, inutilizava algumas das faculdades mais brilhantes capazes de

propiciar felicidade tanto a elas quanto a seus companheiros, notamos que

muitas das qualidades, idéias e ambições femininas permaneciam

esmagadas por uma educação que as condenava à ignorância e à

infantilidade, e, levando em consideração o fato de que “(...) las mujeres

deben ocuparse en más dulces tareas; las musas no escriben, inspiran”

(ALAS, 1997, p.173), vimos que Ana se vê obrigada a renunciar a essa

primeira vocação, a literária, a fim de evitar não só um grande escândalo,

57 Ver Stendhal (Henry Beyle). “De l’Education des Femmes”, em De L’Amor. Paris: Calmann- Lévy, 1998.

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128

como também a completa desmoralização dos Ozores na conservadora

cidade. Citamos:

Tan general y viva fue la protesta del gran mundo de Vetusta contra los conatos literarios de Ana, que ella misma se creyó en ridículo y engañada por la vanidad. A solas en la alcoba algunas noches en que la tristeza la atormentaba, volvía a escribir versos, pero los rasgaba enseguida y arrojaba el papel por el balcón para que sus tías no tropezasen con el cuerpo del delito. (...) tuvo que renunciar en absoluto a la pluma; se juró a sí misma no ser la "literata" (Ibidem, p.173).

Fracassada a tentativa de se tornar uma escritora, não foi menor a

oposição que encontrou em suas manifestações místicas, influenciadas

pelas leituras religiosas. Nesta ocasião, a personagem, para se livrar de suas

tias e da enfadonha vida que vivia no casarão dos Ozores, pensa em ir para

um convento, tornar-se freira, mas foi o seu primeiro confessor, dom

Cayetano, quem se opôs severamente a essa idéia improvisada e sem

fundamento. Ana Ozores foi novamente obrigada a renunciar, desistindo da

possibilidade de se tornar esposa de Jesús. Como exemplo, citamos um

fragmento em que dom Cayetano a faz desistir do sacrifício, fazendo-a

acreditar que tudo aquilo (insônias, exaltações nervosas, visões místicas,

intuições poderosas da fé, enternecimentos repentinos e delírios) não

passava de “coisas da idade”:

(...) procuró convencer a su amiguita de que su piedad, si era suficiente para una mujer honrada en el mundo, no bastaba para los sacrificios del claustro. <<Todo aquello de haber llorado de amor leyendo a San Agustín y a San Juan de la Cruz no valía nada, había sido cosa de la edad crítica que atravesaba entonces. En cuanto a Chateaubriand, no había que hacer caso de él. Todo eso de hacerse monja sin vocación, estaba bien para el teatro, pero en el mundo no había Manriques ni Tenorios que escalasen conventos, a Dios gracias. La verdadera piedad consistía en

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129

hacer feliz a tan cumplido y enamorado caballero como el señor Quintanar, su paisano y amigo.>> Ana renunció poco a poco a la idea de ser monja. (Ibidem, p.180).

Preocupado com os excessos místicos que, muitas vezes, levavam a

personagem a terríveis crises emocionais e a enfermidades gravíssimas, o

confessor aconselhou Anita, aos dezenove anos de idade, a se casar. O

pretendente era Víctor Quintanar, que, logo após ter se casado com Ana,

torna-se o respeitado Regente de Audiência. Ao se casar com dom Víctor, a

jovem, segundo Vives (2000), deixa de ser aquela pobre e desprotegida

menina, da qual ainda se lembra com ternura, e se transforma em La

Regenta, a mulher mais bela e cobiçada da cidade. Para isso, vimos que a

personagem teve de renunciar todas as suas aspirações e vocações

(literárias e religiosas), ajustando-se aos planos que suas tias e toda a

sociedade de Vetusta tinham estabelecido: nem escritora nem mística, mas

sim mulher do Regente, fato que também evidencia a presença do

determinismo na obra, já que a protagonista, produto do meio, da realidade

que a cerca, teve de seguir um caminho que não havia escolhido.

Muito mais que uma atividade voltada para o entretenimento, a leitura

era tida também, em especial, pela Igreja Católica, como uma prática

moralizante. O novo confessor de Ana Ozores, Fermín de Pas, el Magistral,

percebendo a incipiente atração da jovem por Álvaro Mesía, chefe do partido

liberal, seu maior adversário político, recomenda-lhe uma série de leituras

santas, livros edificantes, com o propósito de orientá-la e alertá-la sobre os

perigos da vida. El Magistral, leitor de revistas científicas, publicadas por

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130

jesuítas, e autor de vários sermões e outros trabalhos literários, dentre eles a

obra Historia de la Diócesis de Vetusta, tenta convencer Ana de que a

melhor solução para evitar o surgimento de pensamentos impróprios, que

pudessem levá-la ao caminho da perdição, ou seja, a consumação do

adultério, seria a ocupação religiosa. Sua proposta era transformá-la beata,

pois, assim, dedicaria sua vida à religião e não ao amor proibido. Citamos:

Más habló el Magistral para exponer el plan de vida devota a que había de entregarse en cuerpo y alma su amiga desde el día siguiente, y terminó tratando con detenimiento especial la cuestión de las lecturas. Recomendó particularmente la vida de algunos santos y las obras de Santa Teresa y algunos místicos. - Basta con leer la vida de la Santa Doctora y la de María de Chantal, Santa Juana Francisca, por supuesto, sabiendo leer entre líneas, para perfeccionarse, no al principio, sino más adelante. (ALAS, 1997, p.532).

No entanto, as leituras religiosas recomendadas por Fermín, nesta

quarta fase relativa à educação da personagem, não produziram nenhum

efeito em Ana, pelo contrário, só contribuíram para o agravamento da

situação, pois cada vez que ela os lia, a personagem sentia-se muito mais

entediada. Estes livros piedosos “la hacían caer en somnolencia melancólica

o en una especie de marasmo intelectual que parecía estupidez” (Ibidem,

p.547), e essa nítida insatisfação pôde ser percebida em uma cena de La

Regenta em que o próprio Magistral presencia o desprezo de Ozores, que,

depois de ter lido quase cinco minutos do livro que ele lhe havia

presenteado, joga-o sobre um banco com desdém. Vejamos: “Había visto a

la Regenta en el parque pasear, leyendo un libro que debía ser la historia de

Santa Juana Francisca, que él mismo le había regalado. Pues bien, Ana,

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después de leer cinco minutos, había arrojado el libro con desdén sobre un

banco” (Ibidem, p.555).

Cada vez mais persistente em sua grande missão, convertê-la beata,

o ambicioso clérigo continua direcioná-la à doutrina cristã, e é a partir da

leitura da autobiografia de Santa Teresa que o confessor conseguirá os

primeiros resultados, o que vem a corroborar não só os efeitos da leitura na

vida da personagem leitora, mas também a ocorrência de uma educação

moralizante feita por meio de livros santos.

Amar a Deus por intermédio da Santa, sua adorada heroína de tantas

façanhas de espírito, de tantas vitórias sobre a carne, foi seu maior objetivo.

Nesta nova fase, Ana Ozores, apesar da má assistência e de uma educação

conturbada, dava estranhas formas à piedade sincera, ou seja, a distorcia,

chegando a ponto de desejar encontrar semelhanças entre sua vida e a da

religiosa, o que nos faz pensar na existência de um espírito de imitação que

se apoderou da jovem, sem que a mesma desse conta do tamanho

atrevimento de tal pretensão.

Esculpida nos moldes do cristianismo, Ana, era, por fim, tudo que

Fermín de Pas havia sonhado, desde o primeiro dia em que ela lhe havia

procurado no confessionário da catedral. Imagem e semelhança da

personagem de La perfecta casada, de Fray Luis de León, que, por sua vez,

servira de modelo exemplar para Ana, o de mulher virtuosa, vimos que há

indiscutivelmente uma educação feita por meio da leitura, uma vez que a

protagonista passa a demonstrar em seu comportamento, em seus atos,

mais afetuosidade, disciplina e respeito para com seu marido, Víctor

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Quintanar, e para com suas obrigações como cristã. Para melhor comprovar

a existência desta transformação, nos pareceu interessante citar o fragmento

em que ela mesma reconhece a validade do aprendizado:

(...) he mejorado mucho; porque fray Luis de León me enseñó en su Perfecta casada que en cada estado la obligación es diferente; en el mío mi esposo merecía más de lo que yo le daba, pero advertida por el sabio poeta y por usted, ya voy poniendo más esmero en cuidar a mi Quintanar y en quererle como usted sabe que puedo. (Ibidem, p.634).

Leitora assídua, assim como Dom Quixote e Emma Bovary, Ana

Ozores “escreve e desenha seus sintomas segundo suas leituras” (CATELLI,

2003, p.131. Tradução nossa)58, o que a torna indiscutivelmente a

personagem mais esplêndida de toda a obra. Desde jovem, Ana tem seu

imaginário alimentado pelas leituras, o que a estimulou a tornar-se a

protagonista principal de seu próprio romance, já que concretiza no real os

projetos de tudo aquilo que encontrara nos livros.

Na narrativa de Clarín, a leitura funciona como um modelo geral de

construção do sentido, e as experiências das personagens, em especial as

de Ana Ozores, estão indubitavelmente relacionadas aos tipos de leitura que

estes realizavam. Desta forma, notamos que, em muitos casos, o que se leu

torna-se uma resposta que permite dar sentido à experiência, de forma a

defini-la, concretizá-la, e, em razão disto, a leitura passa a ocupar um lugar

de destaque no romance.

Neste aspecto, aproximamo-nos novamente a Don Quijote, sobretudo

se considerarmos o fato de os protagonistas buscarem nas ficções que leram

58 “escribe y dibuja sus síntomas según sus lecturas”.

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um modelo de vida que admiravam e que queriam viver. Para Piglia, “a vida

se completa com um sentido que se toma do que se leu em uma ficção”

(PIGLIA, 2005, p.104. Tradução nossa)59, e é justamente este sentido que

Ana irá buscar e encontrar nas narrativas românticas que leu.

A personagem decifra a sua própria vida através das leituras que

realiza, vendo-as, assim, como modelo privilegiado de experiências reais, e

estas experiências individuais relacionadas à leitura favorecem o

aparecimento do bovarismo, em outras palavras, a ilusão de realidade da

ficção. Como vimos, há algo que falta na vida de Ana Ozores, e é

exatamente isto que a jovem buscará na literatura, no livro (objeto de desejo,

de consumo).

Ao analisarmos a história da protagonista, verificamos que há uma

série de transformações, mudanças, mas, em meio de tantas metamorfoses,

vemos também uma série de continuidade, de persistência, e esta está

certamente relacionada à leitura, uma prática que a acompanha desde sua

infância, período em que manifesta uma vontade imensurável de aprender a

ler.

A partir da segunda metade do século XIX, surge uma produção

literária direcionada ao público feminino que tenta dar uma resposta

imaginária aos anseios reprimidos de uma grande parte das mulheres

burguesas. Segundo Kehl, “os projetos de mudar de vida, numa mulher

infantilizada pela sua posição na família, só poderiam realizar-se por duas

vias: a do amor (adultério, aventura, ‘fuga’ romântica para um lugar distante)

59 “la vida se completa con un sentido que se toma de lo que se ha leído en una ficción”.

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ou a do devaneio literário” (KEHL, 1998, p.17), e, em La Regenta, estes

foram os dois caminhos percorridos por Ana Ozores que tenta, num primeiro

momento, por meio da literatura e, posteriormente, por meio do adultério,

encontrar o caminho para a tão almejada felicidade.

O objetivo de fazer da vida uma grande aventura, versão romantizada

dos devaneios de ascensão social e de independência que sustentam a

ordem burguesa, entra em conflito com as exigências da disciplina familiar

que, por sua vez, também se vêm ameaçadas pelas inúmeras

transformações, sobretudo, as de ordem social, decorrentes das revoluções

sucedidas na Europa a partir de século XVIII. Impossibilitada, portanto, de se

expressar poeticamente, Ana Ozores, assim como Emma Bovary, viu

provavelmente no adultério uma nova possibilidade de descobrir o amor,

sentimento que até então desconhecia.

Neste aspecto, a semelhança entre a personagem de Clarín com a de

Flaubert é notória, e, ao estabelecermos uma comparação entre ambas,

vimos que tanto Ana como Emma presumem ser o mundo semelhante às

narrativas idealizadas que passaram a ler desde a juventude. Sendo assim,

notamos que Ana, da mesma forma que Emma Bovary, lê tudo como se

fosse um romance sentimental, atribuindo, sob esta perspectiva, um novo

significado a um “(...) amplo número de livros sérios << de verdadeira arte

>>, fábulas gregas, poesia homérica e pastoril clássica, San Agustín,

Chateaubriand e San Juan de la Cruz, além de toda classe de antologias,

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florilégios, parnasos e livros de edificação” (CATELLI, 2001, p.128-129.

Tradução nossa)60.

Essa visão romântica do mundo, entretanto, não será um fato gratuito

em La Regenta. Na narrativa de Clarín, pudemos notar a presença do poder

vivificador do sofrimento e do triunfo da dor, já que se trata de uma

sociedade marcada por todas as espécies de corrupção humana, tais como a

inveja, a perversidade e a hipocrisia. Em contraposição, Ana Ozores

representará a pureza e a beleza dessa realidade sufocante, e esta

incompatibilidade com o mundo provocará na personagem não só o

surgimento de uma sensação de isolamento, como também uma sensação

de incompreensão e tédio, fatores que muito contribuíram para o desgaste

do casamento e a consumação do adultério.

No texto “Lecturas y lectores de Clarín”, Oleza (2003) também chama-

nos a atenção para estas questões. A protagonista, em virtude de sua

personalidade conflitante, de frustrações anímicas e de fortes pressões do

meio, em outras palavras, da realidade, consegue reunir mais motivos que

qualquer outra heroína para a insatisfação pessoal, o que a faz buscar uma

nova vida, e, segundo o autor, nenhum outro romance europeu apresentou

tantos argumentos, tantas razões como o fez Clarín em La Regenta para a

traição.

Deslumbrada com a possibilidade de uma nova condição, libertando-

se daquela vida enfadonha e angustiante que levava ao lado de seu marido,

60 “(...) amplio continente de libros serios << de verdadero arte >>, fábulas griegas, poesía homérica y pastoril clásica, San Agustín, Chateaubriand y San Juan de la Cruz, además de toda clase de antologías, analectas, florilegios, parnasos y libros de edificación”.

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Ana Ozores entrega-se ao amor proibido, violando, abruptamente, dois dos

principais pilares do modelo de feminilidade: a casa e o casamento. De <<La

perfecta casada>> passa a assumir uma outra posição, a de <<Mujer

insatisfecha>>, e esta representação (figura) tornar-se-á bastante comum em

muitos dos romances publicados a partir da segunda metade do século XIX

por escritores como Flaubert, Eça de Queirós, Galdós, George Eliot, León

Tolstoy e o próprio Leopoldo Alas.

Marcada pela condição de mulher adúltera, Ana Ozores foi tida como

a principal culpada pela trágica morte de dom Víctor Quintanar, assassinado

em um duelo por Álvaro Mesía, chefe do partido liberal. Caíram-lhe todas as

responsabilidades do crime. Desprotegida e, sobretudo, desmoralizada por

todos, inclusive pelos amigos mais íntimos e por seu confessor, Fermín de

Pas, a personagem é brutalmente castigada por ter tido a incapacidade de

preservar um dos elementos mais preciosos em uma relação proibida: o

silêncio. A verdade emerge e a cidade inteira, completamente

“escandalizada” com o caso, celebra a sua queda, o seu fim moral:

Vetusta la noble estaba escandalizada, horrorizada (...) ¡Era un escándalo! ¡Un adulterio descubierto! ¡Un duelo! ¡Un marido, un ex-regente de Audiencia muerto de un pistoletazo en la vejiga! (...). Aquel tiro de Mesía, del que tenía la culpa la Regenta, rompía la tradición pacífica del crimen silencioso, morigerado y precavido (...). Y se la castigó rompiendo con ella toda clase de relaciones. No fue a verla nadie. (ALAS, 1997, p.934-936).

A personagem não foi capaz de adaptar-se à realidade de Vetusta e

tampouco ao discurso que vinculou a nova condição social da mulher a suas

funções no matrimônio e dentro de sua própria casa. A partir do

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Renascimento, as mulheres são reconhecidas como parte integrante da

sociedade, queremos dizer, como sujeito civil, porém este reconhecimento

estaria vinculado a algumas condições, dentre as quais podemos destacar a

subordinação da figura feminina à casa, aos filhos e ao marido. Moldadas,

desde o princípio, para as atividades e funções que deveriam desempenhar

no casamento, as mulheres tornam-se servas da casa, seres comprometidos

exclusivamente com as obrigações domiciliares, e, em nossos estudos,

notamos que esta condição muito contribui, na verdade, para o desgaste de

várias relações conjugais. Ao mesmo tempo em que cresce um sentimento

de frustração, nasce um forte desejo de libertação, de fuga, e o adultério será

um dos caminhos escolhidos por muitas mulheres que pretendiam buscar

uma nova vida. A doce domesticidade deixa, portanto, de ser o paraíso e

passa a transformar-se num verdadeiro martírio, e vários formam os

romances da época que representaram magistralmente a crise desta

conflitante inversão.

O mundo real torna-se o pior inimigo de Ana Ozores, da mesma

maneira que o foi para Alonso Quijano e Emma Bovary, personagens que

morrem, segundo Bloom (1966, p.01-04), assassinados pela realidade.

Vetusta representa uma sociedade de aparências, onde a verdade, por mais

deplorável que fosse, deveria ser mascarada a todo custo. Ana Ozores,

deixando-se levar ora por desejos espirituais, caindo no misticismo, ora pelos

desejos carnais, se entregando ao amor proibido, rompe esse tão importante

silêncio, provocando, assim, um grande escândalo público na heroica ciudad.

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Na vida de Ana Ozores tudo se romantiza. Sua vida é concebida como

um grande romance: “se ocultaban los buenos vetustenses el íntimo placer

que les causaba aquel gran escándalo que era como una novela, algo que

interrumpía la monotonía eterna de la ciudad triste” (ALAS, 1997, p.934), e

foi esta imagem, a de uma vida assimilada à leitura, quem realmente nos

motivou a empreender um estudo sobre as representações imaginárias do

ato de ler e as figurações dos leitores em La Regenta, um dos maiores e

mais importantes romances naturalistas da literatura espanhola.

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CONCLUSÃO

A leitura constitui “uma atividade essencial a qualquer área de

conhecimento e mais essencial ainda à própria vida do Ser Humano” (SILVA,

1987, p.42), porque é a partir dela que o leitor consegue aprender a ler o

mundo, ou seja, a compreender o seu contexto, interpretando-o não através

de uma manipulação mecânica de palavras, mas sim de “uma relação

dinâmica que vincula linguagem e realidade” (FREIRE, 1983, p.8), e foi por

meio do importante ato de ler que o escritor Leopoldo Alas “Clarín”, como

jornalista, crítico literário e romancista, construiu novas experiências, novos

conhecimentos, podendo, a partir desta significativa construção, recriar na

atmosfera ficcional do romance naturalista La Regenta seres altamente

comprometidos com essa atividade tão fundamental à vida.

Com o propósito de estudar as figuras da leitura e do leitor em La

Regenta, foi necessário, antes de tudo, perpassar pelas origens do realismo/

naturalismo europeu na segunda metade do século XIX, a fim de apresentar

as principais doutrinas dos movimentos que impulsionaram muitos escritores

espanhóis a dedicar-se ao princípio da representação da realidade.

Além das influências de Zola, os movimentos realista/ naturalista na

Espanha contam também com inúmeras contribuições de duas importantes

obras: El Lazarillo de Tormes e Don Quijote de la Mancha. Muitas das

inovações propostas por ambas (a individualização do protagonista, a

determinação do tempo, a especificação dos espaços na narrativa, o

plurilingüismo social, a educação sentimental feita pelos livros e outras) vêm

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ao encontro da afirmação dos escritores Clarín e Bazán, que atribuem à

picaresca e ao primeiro romance moderno uma primordial importância na

constituição do romance peninsular, e foram justamente estas inúmeras

contribuições, especialmente aquelas que se encontravam vinculadas aos

temas relacionados às figuras da leitura e do leitor, que procuramos

considerar e evidenciar em nossos estudos.

De acordo com a proposta realista/ naturalista de retratar o mundo real

na ficção, Leopoldo Alas recria em La Regenta, através de construções

literárias, um verdadeiro painel das inúmeras transformações sucedidas na

Espanha, a partir da segunda metade do século XIX, e a mais relevante para

nosso trabalho foi indubitavelmente o crescimento do público leitor, que

conseqüentemente proporcionou o aumento na produção de livros e a

ampliação de espaços, tanto públicos como privados, específicos para as

atividades vinculadas à leitura. E, paralelo à popularização do texto impresso

e ao ingresso massivo de novas camadas no mundo das letras, verificamos

que os temas relacionados à leitura ganham proporções cada vez maiores

no âmbito literário, especialmente depois da publicação de Madame Bovary;

logo, não é gratuito o fato de encontrarmos notáveis figuras de leitores nas

páginas dos romances da época.

O ato de ler é uma prática social que apresenta incontestavelmente

inúmeras conseqüências na vida dos personagens leitores de La Regenta,

em especial da jovem Ana Ozores, e, ao analisarmos as quatro fases

correspondentes à educação e aos tipos de leituras que a personagem

realizou durante sua trajetória como leitora, pudemos claramente observar os

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efeitos provocados pela leitura e como estes se manifestavam na narrativa

de Clarín, contribuindo, assim, para com a extrema profundidade do enredo

de um dos mais complexos romances da literatura espanhola.

Ana Ozores é uma personagem-leitora. Desde criança, demonstrou

uma grande necessidade de saber ler, de entrar em contato com o mundo

das letras. Ana via na literatura uma espécie de caminho para fugir da cruel

realidade em que vivia, e, por meio da leitura, a personagem, tal como a Dom

Quixote e Madame Bovary, pôde idealizar e viver no real todas as suas

fantasias amorosas e proibidas.

A partir da leitura, verificamos que muitos foram os desejos

manifestados pelos personagens leitores de La Regenta, sobretudo por Ana

Ozores, porém muitos foram os sonhos censurados e vetados por uma

sociedade castradora, que, ao final da narrativa, comemorava a completa

desintegração física e moral daqueles que não conseguiam encarar, de

frente, a desumana realidade.

Poucos foram os momentos autênticos em que Ozores pôde se sentir

livre, desprendida daqueles sufocantes códigos de valores (moral) que

deveria seguir impreterivelmente, daí a necessidade de fazermos um sucinto

comentário sobre o modelo de feminilidade que baseava seus princípios na

valorização do recato, do silêncio e da contenção de toda e qualquer forma

de manifestação que pudesse desestruturar uma das mais importantes

unidades do século XIX: a família burguesa.

Todas essas imposições marcaram profundamente a trajetória de Ana

Ozores que, quanto mais lia, mais manifestava aspirações e desejos de viver

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uma nova vida, rompendo com o valorizado modelo de mulher virtuosa, de

rainha do lar, determinado pela sociedade burguesa da época.

Sendo assim, concluímos esta dissertação com a certeza de que a

leitura assume uma função essencial na construção do romance La Regenta,

especialmente se considerarmos o fato de Leopoldo Alas “Clarín” promover,

ao longo da narrativa, imagens vinculadas à leitura de romances,

evidenciando, assim, a forma com a qual os personagens leitores da obra

construíam suas próprias experiências de vida a partir do que liam.

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