is a be laroque lou re i rome strado
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A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL E A LEITURA NO SÉCULO XIX NO
ROMANCE LA REGENTA, DE LEOPOLDO ALAS “CLARÍN”
ISABELA ROQUE LOUREIRO
UFRJ/ 2007
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A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL E A LEITURA NO SÉCULO XIX NO
ROMANCE LA REGENTA, DE LEOPOLDO ALAS “CLARÍN”
por
ISABELA ROQUE LOUREIRO
Mestrado em Letras Neolatinas- Literaturas Hispânicas
Dissertação de Mestrado em
Literaturas Hispânicas, apresentada
à Coordenação dos Cursos de Pós-
Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
Orientadora: Professora Doutora
Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.
Faculdade de Letras da UFRJ
1º semestre de 2007
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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
LOUREIRO, Isabela Roque. A educação sentimental e a leitura no século
XIX no romance La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”. Dissertação de
Mestrado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos
Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro,
2007. 150 fls.
Banca Examinadora Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (UFRJ) Orientadora Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva (UFRJ) Professora Doutora Gladys Viviana Gelado (UFF) Professora Doutora Lívia Maria Freitas Reis (UFF) Professor Doutor Julio Aldinger Dalloz (UFRJ) Examinada a Dissertação
Conceito:
Em: / / 2007.
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Para a família Loureiro, que preenche de alegria minha vida com seu amor e carinho.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, por ter iluminado o meu caminho, especialmente nos momentos
difíceis.
À minha querida orientadora, professora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri, pela
inigualável dedicação, paciência, incentivo e amizade.
À amável professora Doutora Cláudia Luna, que, desde a graduação, pôde
acompanhar os meus primeiros passos no mundo das Literaturas
Hispânicas.
Ao professor Doutor Julio Dalloz, por sua generosidade, carinho e ajuda na
obtenção de referências bibliográficas para o desenvolvimento deste
trabalho.
Ao CNPQ, pela bolsa que me foi concedida e que muito contribuiu para a
realização deste projeto.
À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Faculdade de Letras da UFRJ, por todo apoio.
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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
Aos meus queridos pais, Léia e César Loureiro, por todo carinho,
companheirismo, compreensão e amor incondicional dedicados a mim ao
longo de minha trajetória. Obrigada por estarem presentes em todos os
momentos de minha vida. Amo vocês.
À minha amada irmã, Bruna Loureiro, pela infinita paciência, incentivo,
cumplicidade e amor. Tê-la ao meu lado é, indubitavelmente, um presente de
Deus.
Ao meu avô Jorge Cid Loureiro, que, mesmo distante, sempre esteve
presente em meu coração.
Aos meus queridos padrinhos, Fátima e Marcos Caselli, por todo carinho e
atenção.
Aos queridos amigos Antônio Freitas, Ana e Marina Zalona, Rafael Rios e
Mário Klaes, que muito contribuíram para a realização desta pesquisa.
Aos companheiros que, direta ou indiretamente, me ajudaram na elaboração
deste trabalho, aos quais certamente seria impossível agradecer
nominalmente.
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Arrebatar a lo real el principio de la realidad. Y arrebatar al cuadro el principio de la representación.
Jean Baudrillard
Pies para qué los quiero si tengo alas pa’ volar.
Frida Kahlo
Lire, c’est boire et manger. L’esprit que ne lit pás maigrit comme le corps qui mange pas.
Victor Hugo
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LOUREIRO, Isabela Roque. A educação sentimental e a leitura no século
XIX no romance La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”. Dissertação de
Mestrado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos
Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro,
2007. 150 fls.
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo estudar a educação
sentimental no século XIX e as figuras da leitura e do leitor no
romance naturalista La Regenta (1884-1885), do escritor
espanhol Leopoldo Alas “Clarín”, tomando como base a teoria
crítica de Roger Chartier, Nora Catelli, Gérard Genette e
Ricardo Piglia.
Verificaremos a influência do ato de ler nos protagonistas
leitores da obra com o propósito de constatar que a leitura
pode apresentar inúmeras conseqüências (efeitos) na vida
dos mesmos, principalmente se levarmos em consideração o
fato de que o imaginário alimentado pelos livros pode projetar-
se em atos e fatos. Ainda consideraremos o estudo dos
movimentos realista/ naturalista na Espanha oitocentista e o
estudo do narrador do romance, que descreverá a atmosfera
ficcional de La Regenta com imagens vinculadas à leitura.
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LOUREIRO, Isabela Roque. A educação sentimental e a leitura no século
XIX no romance La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”. Dissertação de
Mestrado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos
Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro,
2007. 150 fls.
RESUMEN
Esta investigación tiene como objetivo estudiar la educación
sentimental en el siglo XIX y las figuras de la lectura y del
lector en la novela naturalista La Regenta (1884-1885), del
escritor español Leopoldo Alas “Clarín”, considerando la
teoría crítica de Roger Chartier, Nora Catelli, Gérard Genette
y Ricardo Piglia.
Verificaremos la influencia del acto de leer en los
protagonistas lectores de la obra con el propósito de
comprobar que la lectura puede presentar innumerables
consecuencias (efectos) en la vida de los personajes,
principalmente si consideramos el hecho de que el imaginario
alimentado por los libros puede proyectarse en actos y
hechos. También consideraremos el estudio de los
movimientos realista/ naturalista en Espanha decimonónica y
el estudio del narrador de la novela, que describirá el mundo
de La Regenta con imágenes relacionadas a la lectura.
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LOUREIRO, Isabela Roque. A educação sentimental e a leitura no século
XIX no romance La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”. Dissertação de
Mestrado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos
Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro,
2007. 150 fls.
ABSTRACT
The aim of the present work is to study sentimental education in
the nineteenth century as well as look into both elements,
reading and the reader him/herself, in the naturalistic novel La
Regenta (1884-1885), written by the spanish novelist Leopoldo
Alas “Clarín” by taking Roger Chartier’s, Nora Catelli’s, Gérard
Genette’s and Ricardo Piglia’s critical theory not only as a
starting point, but also as a basis for our study.
It is our intention to verify the influence that the act of reading
inflicts upon the novel’s reading protagonists in order to prove
that reading may indeed present several consequences (effects)
in their lives, especially if we take into consideration the fact that
the imaginative aspect brought on by the books themselves may
project itself into acts and facts. Furthermore, we shall discuss
the realistic and naturalistic movements in nineteenth century
Spain, as well as study the novel’s narrator, who will describe
the fictional atmosphere within La Regenta with imagery related
to its reading.
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SINOPSE
As figuras da leitura e do leitor no romance naturalista La Regenta
(1884/1885), de Leopoldo Alas “Clarín”. Os espaços e os tempos da leitura
na sociedade burguesa da segunda metade do século XIX e a sua relação
com o realismo/ naturalismo espanhol.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................p.13
CAPÍTULO I
O REALISMO/ NATURALISMO COMO LEITURA DO MUNDO
1.1. Leopoldo Alas “Clarín”: o autor-leitor...............................................................p.23
1.2. O naturalismo em Leopoldo Alas “Clarín”........................................................p.42
1.2.1. Os caracteres singulares do naturalismo espanhol em La Regenta......p.48
1.3. La Regenta e a tradição do realismo espanhol...............................................p.69
CAPÍTULO II
LA REGENTA: O RETRATO DE UMA SOCIEDADE LEITORA
2.1. Do acesso restrito à democratização do texto impresso.................................p.85
2.2. As figuras da leitura e do leitor em La Regenta...............................................p.97
2.2.1. Os espaços de leitura na obra..............................................................p.107
2.2.2. As leituras de Ana Ozores e as quatro fases correspondentes à educação
da personagem...............................................................................................p.115
2.2.2.1. A educação feminina no século XIX..................................... p.115
2.2.2.2. O movimento krausista na Espanha......................................p.119
CONCLUSÃO.......................................................................................................p.139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................p.143
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INTRODUÇÃO
A realidade se entrega a fim de que seja possível sua representação.
Figuras, de Genette
Os temas de verdades morais de que trata o narrador, no universo
literário, devem ser figurados por metáforas e comparações extraídas da
realidade física, do mundo real, e, em razão disto, a figura torna-se o
principal ornamento do discurso, e sua existência “depende totalmente da
consciência que o leitor toma ou não da ambigüidade do discurso que lhe é
proposto” (GENETTE, 1972, p.207). Desta forma, para estudarmos as figuras
da leitura e do leitor no romance naturalista La Regenta (1884/1885), de
Leopoldo Alas “Clarín”, tivemos de resgatar o conceito de figura da Retórica
Clássica, que deve ser indiscutivelmente entendida como “um sistema de
figuras” (Ibidem, p.201).
Segundo Genette, a retórica das figuras possui a ambição de
estabelecer um código das conotações literárias ou dos Signos da Literatura,
como os chamou Barthes. Cada vez que o narrador emprega uma figura
reconhecida pelo código, este encarrega sua linguagem não somente de
exprimir seu pensamento, “mas também de comunicar uma qualidade épica,
lírica, didática, oratória, etc, de designar-se a si mesmo como linguagem
literária e de significar a literatura” (Ibidem, p.211), e é por isso que a
Retórica pouco se importa com a originalidade ou a novidade das figuras,
que são qualidades da produção individual. O que realmente lhe importa é a
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clareza e a universalidade dos signos poéticos, ou seja, é poder encontrar no
segundo nível do sistema (literatura) a transparência e o rigor que
caracterizam já o primeiro (a língua).
O tema da leitura possibilita várias perspectivas que podem ser
sintetizadas em duas orientações: a sociológica, que se ocupa do leitor real,
e a que se ocupa do modo como as figuras da leitura e do leitor se
constituem no próprio texto literário. Com base nestas orientações,
verificamos que a leitura não deve ser compreendida apenas como um ato
intelectual, ou seja, como um meio de se construir conhecimento, mas
também como um ato físico, e, muitas vezes, sensual, que permite uma
expressiva interação (diálogo) entre o livro e o leitor, e atualmente uma das
grandes polêmicas geradas em torno do futuro do livro, frente ao avanço
cada vez maior do meio digital, se relaciona a esta questão: a perda da
sensibilidade.
O corpo, distanciada a mente envolvida na leitura, inicia suas próprias relações com o suporte, com o elemento material. O argumento geral, o mais espontâneo, que se usa quando se debate a leitura frente à tela do computador, é que não se pode tocar! (Joaquín Mª Aguirre Romero, 2006. Tradução nossa)1
E será justamente este distanciamento que privará o indivíduo leitor,
habituado às sensações vinculadas à matéria (formato, cheiro, peso, textura,
número de páginas), dos inúmeros efeitos sensíveis produzidos pelo livro
(objeto). Muito mais que um suporte material de uma determinada
1 “el cuerpo, aislada la mente absorta en la lectura, entabla sus propias relaciones con el soporte, con el elemento material. El argumento general, el más espontáneo, que se esgrime cuando se debate la lectura ante la pantalla del ordenador es que ¡no puede tocarse!”.
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informação, o livro, <<depósito material de la palabra>>, deve ser
compreendido, segundo Escarpit, como “o instrumento mais simples que, a
partir de um dado ponto, é capaz de liberar uma multidão de sons, de
imagens, de sentimentos, de idéias, de elementos de informação, abrindo-
lhes as portas do tempo e do espaço”2 para seus leitores. A partir desta
definição, o autor, diferente de muitos que o reduzem meramente a uma
dimensão material, espacial e superficial sobre os quais se inscrevem os
signos representativos de determinados suportes intelectuais (Otlet, 1934)3,
não busca tanto a materialidade deste objeto tão essencial à nossa cultura,
mas sim a sua funcionalidade, referindo-se a sua incrível capacidade
metafórica de representar sons, sentimentos e imagens, fundamentais à
criação de novos mundos, de novas realidades por meio da escritura.
E é sobre esta funcionalidade que pretendemos dedicar-nos ao longo
do nosso trabalho. Múltiplo, único e insubstituível, o livro, muito mais que um
investimento, um objeto de decoração ou um status symbol, “um sinal de que
se pertence a uma determinada classe social” (ESCARPIT, 1976. p.18), é
fonte de conhecimento para a realização de novas experiências. Sua incrível
capacidade de difundir idéias, pensamentos, faz com que deixemos, para um
segundo plano, todos os aspectos relacionados a sua materialidade, para,
por fim, nos restringir e considerar todos aqueles essenciais à formação do
2 Definições agrupadas como Documento II, em Escarpit, Robert y otros, Hacia una sociología del hecho literario. Madrid: Edicusa (Ed. Cuadernos para el diálogo), 1974. pp.275-276. “el instrumento más sencillo que, a partir de un punto dado, es capaz de liberar una multitud de sonidos, de imágenes, de sentimientos, de ideas, de elementos de información, abriéndoles las puertas del tiempo y del espacio”. 3 Ibidem, pp.275-276.
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leitor, em especial os relativos à sensibilidade, à educação sentimental: uma
educação feita por meio dos livros.
A partir do século XVIII, as camadas sociais tiveram acesso à leitura, e
esses novos leitores (burgueses, nobres, operários, magistrados, mulheres e
outros), além de obras técnicas (manuais, dicionários, guias, livros didáticos
e gramáticas), necessitavam de livros de distração e de imaginação, escritos
em língua romance, fato que justifica a ascensão e o apogeu do romance na
sociedade européia do século XIX, a maior consumidora deste gênero
literário.
Depois de uma longa jornada de trabalho nas fábricas ou de um dia
estressante cuidando das atividades domiciliares e dos filhos, homens e
mulheres de diferentes classes sociais e faixas etárias, com o objetivo de
abrandar as frustrações e tensões decorrentes de suas obrigações diárias,
recorrem à literatura, ao texto literário. Sentados em uma aconchegante
poltrona de veludo, ou até mesmo deitados em uma confortável cama, estes
leitores, geralmente centrados em sua privacidade absoluta, dedicavam uma
expressiva parte do tempo à leitura, sobretudo, a de romances que
representavam, através de construções literárias, o cotidiano da classe
burguesa, dado que torna relevante a idéia de a figura do leitor estar
relacionada principalmente ao desenvolvimento da própria burguesia, tanto
pela modernização das técnicas de impressão e distribuição do livro, como
pelo direito legal de todo cidadão ao ensino, à educação.
O leitor identificava-se plenamente com o universo literário construído
pelo narrador, por meio do ato literário. Nesta esfera literária, os leitores da
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época deparavam-se com personagens leitores e escritores, ou seja,
encontravam as representações de seres também comprometidos com a
prática da leitura e da escritura e muitas outras imagens (figuras) resgatadas
pelos narradores diretamente do mundo real, e será esta atmosfera ficcional
que tentaremos analisar no romance La Regenta, obra repleta de ilustres
leitores que lêem para poder viver no real os efeitos da leitura.
Será, portanto, este o domínio que pretendemos explorar, para melhor
compreender uma das partes mais originais e criativas da vida dos livros de
ficção: a sua incrível e inigualável capacidade de representar, por meio de
figuras, uma determinada realidade.
Sendo assim, para analisar a forma como a leitura e o livro se tornam
objetos da própria literatura e como se configura a noção de leitura e leitor na
obra, nos pareceu pertinente seguir a segunda orientação, apoiando-nos nos
estudos de Genette (1972), que, em Figuras, desenvolve uma ampla
indagação sistemática e um exame múltiplo sobre a natureza e o uso da
literatura, e nos estudos de Piglia (2004), que considera a incorporação pelos
textos literários das figuras da leitura e do leitor.
No entanto, antes de adentrarmos no universo ficcional de La
Regenta (segundo capítulo), dedicaremos um tópico ao escritor Leopoldo
Alas, o autor-leitor, destacando, em especial, as leituras que o mesmo
realizou ao longo de sua trajetória como jornalista, crítico literário e
romancista. Almejamos corroborar o importante papel que o ato de ler
assume na vida do escritor asturiano que, quanto mais se dedicava à prática
da leitura, mais experiências e conhecimentos acabava construindo. É
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necessário comentar que, para a realização desta análise, nos apoiaremos
na teoria crítica de Antonio Vilanova, José María Martínez Cachero, John W.
Kronik, Mariano Baquero Goyanes e Ricardo Gullón.
Ao estudarmos os principais aspectos sócio-econômicos e políticos da
Europa do século XIX, observamos que inúmeras foram as transformações
que se implantaram, neste período, no cenário europeu, o que muito
contribuiu para o desenvolvimento das ciências exatas e humanas e para a
consolidação do racionalismo econômico que acompanha de forma contínua
o processo de industrialização progressiva. Dentro desta mais nova esfera
de empreendimentos e conquistas, ambos acarretados pela prosperidade da
classe burguesa e pelo fortalecimento do regime capitalista, principal difusor
das idéias de modernização e urbanização das grandes capitais, notamos a
manifestação de uma expressiva inquietação por parte de muitos artistas e
intelectuais que, em oposição ao idealismo romântico da antiga escola, o
Romantismo, passam a privilegiar uma arte compromissada com o real, com
a representação da realidade.
Da mesma maneira que o artista deveria arrebatar à pintura o princípio
da representação, o narrador do romance realista/ naturalista deveria retratar
o mais fielmente possível, no espaço ficcional, um mundo que ele se deteve
a observar e a documentar. Desta forma, ao invés de fantasias românticas e
espaços idealizados, geralmente inexistentes e imaginários, verificamos que
grande parte dos escritores do século XIX se propunha a pintar a realidade,
de modo a apresentar, por meio de construções literárias, um verdadeiro
painel social, político e cultural da época. E, para melhor determinar esta
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tendência, promoveremos uma breve análise sobre o movimento naturalista
no século XIX, a fim de apresentar a teoria difundida pelo escritor francês
Emile Zola e as principais doutrinas naturalistas resgatadas pelo escritor
Leopoldo Alas “Clarín”, encantado com a possibilidade de renovar a
produção literária na Espanha naquele período. Realizaremos também uma
análise sobre os caracteres singulares do naturalismo espanhol em La
Regenta, retomando, de fato, alguns dos principais conceitos difundidos
pelos movimentos realista/ naturalista no século XIX. Para tal, nos
apoiaremos nos estudos de Francisco Rico, Germán Gullón, Gonzalo
Sobejano, Walter Pattison e Yvan Lissorgues.
E, por fim, encerraremos o primeiro capítulo com um estudo sobre La
Regenta e a tradição do realismo espanhol, apresentando as importantes
contribuições de duas grandes obras da literatura espanhola, El Lazarillo de
Tormes e Don Quijote de la Mancha, para a constituição dos romances
realistas/ naturalistas na Espanha do séc. XIX. Pretendemos comprovar que
houve, sobretudo, por parte de Clarín, a intenção de resgatar destas obras o
primordial papel que a leitura passa a assumir na narrativa e, especialmente,
na construção dos personagens leitores. Para a elaboração deste, nos
apoiaremos nas teorias de Benito Pérez Galdós, Fernando Lázaro Carreter,
Ian Watt, Jeremy T. Medina, María Tereza Zubiaurre, Ricardo Senabre e
Yvan Lissorgues.
No segundo capítulo, analisaremos o crescimento do público leitor na
Europa, priorizando principalmente o ingresso do público feminino no mundo
das letras como leitoras e escritoras. Analisaremos também o surgimento de
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uma literatura voltada para atender aos novos anseios da classe burguesa,
dando valor ao expressivo consumo de romances, lidos principalmente pelas
mulheres que passavam grande parte de seu tempo em casa, cuidando da
educação dos filhos e das tarefas domésticas. Para a realização destas
análises, são fundamentais os estudos desenvolvidos por Roger Chartier,
Nora Catelli, Guglielmo Cavallo e Alberto Manguel, teóricos que consideram
a importância e os efeitos da leitura na formação das sociedades modernas.
Levando em consideração o fato de que a sensibilidade moderna se
educou em romances e contos que “devolviam aos leitores imagens� nítidas,
enfáticas� dos resultados da educação pelos livros” (CATELLI, 2001, p. 19.
Tradução nossa)4, o que evidencia a ocorrência da educação sentimental,
estudaremos a forma como os protagonistas de La Regenta, em especial a
jovem Ana Ozores, têm seus imaginários alimentados pelos livros. Porém,
antes de chegarmos propriamente ao sub-capítulo dedicado exclusivamente
às leituras feitas pela personagem principal, apresentaremos uma breve
análise sobre os espaços de leitura no romance.
Tendo em vista a difusão das campanhas de alfabetização e o
crescimento do público leitor, sobretudo do feminino, houve, a partir da
segunda metade do século XIX, um notável crescimento de espaços
destinados à leitura. A sociedade burguesa torna-se uma grande
consumidora da literatura produzida na época, principalmente dos romances,
o que proporcionou a fundação de muitas bibliotecas públicas, gabinetes de
4 “devolvían a los lectores imágenes- nítidas, enfáticas- de los resultados de la educación por
los libros”.
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leitura e bibliotecas particulares, e, em razão disto, avaliaremos como estes
espaços, externo e internos, se configuram na narrativa de Clarín. Para a
realização desta análise, tomaremos como referência a teoria crítica de
María Tereza Zubiaurre.
A partir das múltiplas leituras realizadas e do conhecimento construído
por meio das mesmas, Ana Ozores, a maior leitora de toda a obra, passa a
interpretar o mundo, a realidade em que vive, de uma maneira romântica e
idealizada, tal como aquela vivenciada pelas encantadoras heroínas das
narrativas românticas que tanto admirava. E, ao estudarmos os quatro
períodos correspondentes à educação da protagonista, pretendemos verificar
o incrível poder que o ato de ler exerce sobre a protagonista que vive no real
os efeitos das leituras.
O objetivo de fazer da vida uma grande aventura romântica entra em
conflito com as exigências da disciplina familiar que, por sua vez, também se
encontram ameaçadas pelas inúmeras transformações, sobretudo, as de
ordem social. Com base nisto, pretendemos evidenciar o fato de que Ana
Ozores viu provavelmente no adultério uma nova possibilidade de descobrir
o amor, sentimento que até então desconhecia, rompendo, assim, com os
pilares fundamentais do modelo de feminilidade difundido nos países
católicos.
Antes de iniciarmos nossas análises sobre as leituras realizadas pela
jovem, nos pareceu pertinente elaborar um breve comentário sobre a
educação feminina no século XIX e, posteriormente, sobre o movimento
krausista na Espanha, a fim de que se possa compreender nossa proposta
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de dividir o período correspondente à educação da mesma em quatro fases,
apresentando, detalhadamente, em cada uma delas, os tutores responsáveis
por sua educação, quais os textos lidos por ela e, por fim, quais os
conseqüentes efeitos acarretados pela prática da leitura.
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I. O REALISMO/ NATURALISMO COMO LEITURA DO MUNDO
1.1. Leopoldo Alas “Clarín”: o autor-leitor
A personalidade de Leopoldo Alas como escritor é a de um moralista em duplo sentido: observador penetrante da vida social e defensor de um ideal de justiça e verdade, cuja falta de efetividade no mundo o leva à irritação e à melancolia. (…) Espírito religioso, mente necessitada de nutrição filosófica, excelente educador, incansável leitor e espectador do desenvolvimento literário europeu desde seu retiro provinciano, Clarín cumpriu sua vocação de moralista na crítica, no conto e no romance. (SOBEJANO, 1981. p.25. Tradução nossa)5.
Em 1852, a cidade de Zamora fora contemplada com o nascimento de
um dos escritores mais célebres da literatura espanhola: Leopoldo Alas. Filho
do governador civil da cidade, depois de uma breve passagem em León,
Alas se muda com sua família, em 1859, para Oviedo (Astúrias), cidade
provinciana que, anos mais tarde, se tornará cenário de um dos maiores
romances naturalistas do século XIX: La Regenta.
Aos dezesseis anos de idade, Leopoldo Alas, sempre muito engajado
em atividades políticas, especialmente as que se relacionavam ao
republicanismo, funda, em 1868, o jornal manuscrito Juan Ruiz, podendo
este ser compreendido como o primeiro grande passo dado pelo escritor, que
será consagrado, logo em seguida, pelas diversas colaborações em vários
dos jornais ovetenses da época, sobretudo os que defendiam os ideais
5 “La personalidad de Leopoldo Alas como escritor es la de un moralista en doble sentido:
observador penetrante de la vida social y defensor de un ideal de justicia y verdad, cuya falta de efectividad en el mundo le lleva a la irritación y a la melancolía. (…) Espíritu religioso, mente necesitada de nutrición filosófica, excelente educador, infatigable lector y espectador del desenvolvimiento literario europeo desde su retiro provinciano, Clarín cumplió su vocación de moralista en la crítica, en el cuento y en la novela”.
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progressistas e republicanos que muito estiveram presentes em toda sua
vida. No ano seguinte, o jovem Alas ingressa na faculdade de Direito de
Oviedo, se licenciando quase três anos mais tarde.
Em 1871, com o objetivo de doutorar-se em Direito e estudar Letras,
dado o enorme gosto pelas atividades literárias e jornalísticas, Leopoldo
dirige-se à capital e ingressa na Universidade Central de Madrid, uma das
mais importantes instituições de ensino universitário do país. Lá, entra em
contato com os catedráticos González Serrano, Castelar, Salmerón, e
Francisco Giner de los Ríos, e esta aproximação permite, de fato, o
amadurecimento do jovem asturiano, deslumbrado, cada vez mais, com o
conhecimento e com os frutos que pôde colher destas sólidas amizades.
O estreitamento dos laços com os respectivos intelectuais e com outros
jovens, dentre os quais podemos destacar o escritor Palacio Valdés, que
detinha o mesmo ideal político que o seu, proporcionou-lhe uma experiência
imensurável, e uma notável prova disto foi a publicação do jornal de
conteúdo satírico Rabagás, em 1872, que, com altas doses de humor e
ironia, criticava os mais diversos setores conservadores da sociedade
espanhola. Neste mesmo período, as contribuições dadas por Alas aos
jornais madrilenhos da época foram crescentes, o que indiscutivelmente vem
a corroborar o êxito obtido pelo escritor, que passa a ter a sua assinatura
muito requisitada no meio da imprensa: “a assinatura de Leopoldo Alas ou de
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<<Clarín>>, prestigiosa e seguida sempre com interesse, era solicitada com
insistência e abundância” (CACHERO, 1993, p.210. Tradução nossa)6.
O jornal madrilenho El solfeo também contou com inúmeras
colaborações de Alas, que, no dia 11 de abril de 1875, estréia o pseudônimo
Clarín, tomado de La vida es sueño, de Calderón de la Barca, para assinar
os artigos que passara a publicar no periódico satírico. Neste mesmo ano,
publica seu primeiro Estilicón, que pode ser encontrado na seção intitulada
Azotacalles de Madrid. E, em razão destas e de muitas outras participações
nos jornais que se manifestavam em oposição ao governo totalitarista e
monárquico na Espanha da segunda metade do século XIX, se instaura sua
“mala fama ovetense”, sobretudo após a publicação do artigo “La verdad
suficiente”, na revista Ecos del Nalón, em 1878, que provocou um enorme
conflito na capital asturiana. É interessante comentar que um dos principais
objetivos do escritor era mostrar, por meio da crítica literária, a mesquinharia
humana, buscando, assim, resgatar e valorizar uma literatura de qualidade
que, a duras penas, podia ser encontrada na Espanha, país que, em pleno
final do século XIX, ainda se encontrava marcado pela decadência
econômica, social, política e literária. Neste mesmo ano, doutorou-se em
Direito na Universidade Central de Madrid, apresentando a memorável tese
“El derecho y la moralidad”, dedicada especialmente ao professor Giner de
los Rios. Nela, Clarín proporciona-nos uma ampla reflexão sobre a real
importância da moralidade, em outras palavras, dos valores humanos,
6 “La firma de Leopoldo Alas o de <<Clarín>>, prestigiosa y seguida siempre con interés, era solicitada con insistencia y abundancia” .
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defendendo a concepção de que “debemos ser morales en todo y para todo,
debemos ser justos en todo y para todo; nada hay justo que no sea moral, ni
nada moral que no sea justo” (ALAS, 2001), o que, certamente, reafirma a
defesa de uma das virtudes mais elementares ao homem: a integridade.
Defendia também a idéia de que o sujeito não deveria anular-se, mas
sim “recuperar su dignidad y cumplir su destino”, o que nos faz pensar na
justificação de uma maior autonomia do indivíduo, que deveria posicionar-se
em luta dos seus direitos, muitas vezes, falseados e ignorados pela política
imperante. Para Alas, “sólo es libre el ser que por sí piensa y obra”, e, em
razão disto, combater a violação daquilo que fora destinado legalmente a
todos os cidadãos tornou-se uma das principais propostas do escritor, que
acreditava que o mais indispensável ao ser humano era “hacer en la fuente
universal y primitiva de la conciencia racional luz para caminar”, justificando,
assim, o seu empenho em pôr todos os meios dependentes de sua liberdade
para a educação e o desenvolvimento intelectual.
No ano de 1880, Clarín ingressa na redação do jornal satírico Madrid
Cómico, e, um ano depois, reedita seus primeiros e mais famosos escritos,
dentre os quais podemos destacar o conto “El diablo en la Semana Santa”,
em Solos de Clarín, coleção de artigos de crítica literária, com prólogo de
Echegaray. É oportuno comentar que, na obra, o autor apresenta-nos um
expressivo panorama da época, que se desdobra desde o mordaz
desmascaramento dos falsos valores até o exame ponderado das obras de
Galdós, Valera, Campoamor, Echegaray e muitos outros consagrados
escritores da literatura espanhola.
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Em 1882, Leopoldo Alas é nomeado catedrático de Economia Política e
Estatística da Universidade de Zaragoza, e, neste mesmo ano, se casa com
Onofre García Argüelles. Escreveu também no jornal La Unión, no
bissemanal Gil Blas, na Revista de Astúrias e na Ilustración Gallega y
Asturiana, e, finalizando o período em Madrid, publica também, com a
colaboração de Armando Palacio Valdés, La Literatura em 1881, um notável
livro composto de artigos críticos sobre as produções dramáticas de 1881. A
deficiente realidade literária espanhola urgia por mudanças, e uma das
grandes propostas dos autores do livro era justamente resgatar, dentro da
ampla desordem estabelecida, a verdadeira arte literária, ou seja, o que era
digno de ser admirado e tido como exemplo. Desta forma, falar sobre a
decadência vigente com o objetivo de valorizar alguns nomes e produções
literárias de valores excepcionais, foi realmente mais que necessário, em
especial, pelo fato de ambos se mostrarem partidários do avanço e do
progresso cultural.
Clarín, assim como seu companheiro Palácio Valdés, defendeu, de fato,
uma renovação na produção literária espanhola contemporânea,
empenhando todos os seus esforços numa luta intensa e cansativa, que, não
obstante, teve como resultado a vitória dos adversários, tal como podemos
ver no seguinte fragmento: “é cansaço o que sente, acaso certa náusea pelo
espetáculo em torno, tão radicalmente negado à correção e, igualmente, ter
consciência de que muito do batalhado foi como sermão perdido”
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(CACHERO, 1993. p.220. Tradução nossa)7. La Literatura em 1881 trata-se,
portanto, de <<un resumen de la vida literaria>>, ou melhor, de <<una
espécie de crónicas de las letras>>. Um ano depois, em 1883, retorna a
Oviedo como catedrático de Direito Romano e Direito Natural, e, a partir
deste momento, o escritor nunca mais abandonou a capital de Astúrias. Dois
anos depois, em 1885, surgem os dois tomos de La Regenta, editados em
Barcelona por Daniel Cortezo, na Biblioteca Arte y Letras, com ilustrações de
Juan Llimona e gravuras de Gómez Pólo.
Publicada num período conflitante, marcado pelas disputas entre
progressistas e conservadores, La Regenta provocou uma verdadeira
revolução na provinciana cidade, alvo de inúmeras críticas e sátiras feitas
pelo escritor, que condenava, principalmente a hipocrisia dos habitantes e a
corrupção e a falsa religiosidade dos membros clericais.
Em 1886, funda a revista Folletos Literarios, composta de ensaios,
comentários, sátiras, discursos e outros tipos de texto, e, no mesmo ano,
publica o livro de contos Pipá. Por ser um homem de grandes inquietações
literárias e filosóficas, Alas é constantemente atacado pela oposição, em
especial por Luis Bonafoux, que, no folhetim “Yo y el plagiario Clarín”, o
acusava de plagiar as obras de Gustave Flaubert e Emile Zola, obrigando
Leoplodo Alas a pronunciar-se imediatamente em defesa de sua vasta
produção literária, tal com o fez em Mis Plagios, em 1888. No ano seguinte,
publica Mezclilla, um volume de crítica.
7 “es cansancio lo que siente, acaso cierta náusea por el espectáculo en torno, tan radicalmente negado a la corrección e, igualmente, el tener conciencia de que mucho de lo batallado fue como sermón perdido”.
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A intenção satírica constituiu uma parte fundamental tanto em suas
narrações mais extensas como breves, e esta será um dos motivos que irá,
em 1890, despertar a fúria de Angel Rodríguez, clérigo que empreenderá
uma severa perseguição aos escritos de Alas. Os ataques continuam
freqüentes e cada vez mais atrozes. Não obstante, Clarín não se intimida
com as críticas e censuras impostas pelos rivais, combatendo-as bravamente
em muitos dos jornais locais, o que, de fato, vem a comprovar a ilustre
vitalidade de uma personalidade indiscutivelmente comprometida com a
moralidade, justiça e sensatez.
Como crítico literário, trabalhou arduamente. Escreveu para muitos
jornais e revistas da época, pois sua condição de crítico, respeitado, temido e
até odiado, proporcionou-lhe muita fama, e esta acabou convertendo-o em
uma pessoa dedicada exclusivamente ao trabalho. Clarín vivia para escrever.
Muito mais que um ofício, a escritura impôs-se como uma tarefa purificadora,
essencial à vida do escritor.
Em 1891, publica o livro Su único hijo, podendo este ser compreendido
como a expressão estética de um Clarín mais experiente e maduro.
A evolução das obras literárias de Clarín mantém-se paralela às obras
críticas que o mesmo produzia, e uma grande prova disto é a publicação de
Doña Berta, Cuervo, Superchería, Adiós Cordera!, considerado por muito
críticos como um dos melhores contos da língua espanhola, publicado no
jornal El Liberal, e Ensayos y Revistas, em 1892. No ano de 1893, publica El
señor y lo demás son cuentos, e, em 1884, edita uma coleção de críticas
literárias, intitulada de Paliques.
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Para Leopoldo Alas, o exercício da escritura era muito mais que uma
atividade ocasional, era uma verdadeira vocação a qual se dedicou com
muito esforço, paixão e fervor, superando, assim, todas as reações e
manifestações de oposição à sua obra, hoje estudada por muitos
pesquisadores que visam, sobretudo, resgatar uma das vozes de maior
integridade ética e cultural da Espanha. E, em se tratando da vasta produção
literária de Clarín, vimos que esta não é composta apenas por contos,
romances, ensaios e críticas; conta também com a estréia de duas peças
teatrais.
Desde sua juventude, Alas já demonstrava uma predileção pelo teatro,
o que o levou a escrever mais de quarenta dramas, todos perdidos, segundo
nos aponta Cachero, no texto “Versos y Teatro” (CACHERO, 1993, p.214).
Jovem, chegou a acreditar que sua vocação era o teatro. Queria ser ator e
autor, e, devido a este sentimento, ou melhor, a este desejo, muito
entranhado na alma do escritor, Clarín estréia uma peça dramática de
assunto histórico, intitulada de El cerco de Zamora, em um ateneu estudantil
em Oviedo. Anos depois, esta paixão pelas artes cênicas reflorescerá. Em
1895, produz a peça Teresa, um ensaio dramático em prosa, estreando-a no
dia 20 de março, no teatro Español de Madrid.
Com a intenção de apresentar os conflitos atuais aos quais a
humanidade estava submetida, o mesmo que se fazia nos romances, tanto
Leopoldo Alas como outros escritores espanhóis, dentre os quais podemos
destacar o mestre Benito Pérez Galdós, acreditavam que deveria haver uma
“substancial renovação para a cena espanhola contemporânea” (Ibidem,
31
p.214), crença que muito desagradou não só o público, como também a
crítica. Esta promoveu um verdadeiro ataque ao drama de Clarín, em
especial pelo fato de este retratar situações violentas, presentes no cotidiano
de pessoas humildes que viviam num ambiente longe de ser requintado,
luxuoso, e, em razão destas críticas feitas a Teresa, Alas é mais uma vez
obrigado a defender-se publicamente contra toda a difamação germinada
após a estréia da peça.
Consagrado por seu estilo independente, irreverente e, acima de tudo,
original, Alas sempre se mostrou adepto de uma contínua peregrinação
cultural. Evidenciou-nos ser “incapaz de se afiliar por muito tempo em um
ismo mais ou menos deslumbrante e mais ou menos de moda, fosse este o
krausismo ou o naturalismo à maneira francesa” (GOYANES, 1956, p.13.
Tradução nossa)8, e esta visão pode ser magistralmente notada em Cuentos
Morales, obra publicada em 1895, em que o escritor afirma não seguir
inspiração alheia, muito menos tendências da moda, mas sim impulsos
naturais provenientes de experiências construídas ao longo da vida. Citamos:
“(...) no sigo inspiración ajena, ni pruritos de la moda, ni nada que se le
parezca: no sigo más que naturales impulsos que la edad imprime en quien
llega a la mía” (ALAS, 1973. p.8).
Em Cuentos Morales, notamos também a presença de um Clarín mais
maduro e extremamente convicto de seus ideais. Muito mais que descrever o
mundo exterior, narrando as vissitudes históricas, políticas e sociais,
8 “incapaz de afiliarse por mucho tiempo en un ismo más o menos deslumbrador y más o
menos de moda, ya fuera este el krausismo o el naturalismo a la manera francesa”.
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Leopoldo Alas interessa-se mesmo pelo homem interior, ou seja, por seus
mais íntimos pensamentos, aspirações e conflitos, o que o faz interessar-se
posteriormente pela utilização de alguns conceitos do espiritualismo em
muitas de suas obras literárias.
No ano de 1898, O escritor apóia a criação da Extensão Universitária
em Oviedo, transformando-se em um dos principais pioneiros das atividades
universitárias. Dois anos depois, em 1901, no mesmo ano em que se publica
a edição de La Regenta com o prólogo de Benito Pérez Galdós, Alas, no dia
13 de junho, morre vítima de uma tuberculose intestinal.
Ao participar de diversas correntes filosóficas e literárias, Leopoldo Alas
adquire, ao longo de sua vida, experiências de diversos níveis, sobretudo as
que se relacionam à leitura, fundamentais para a publicação de La Regenta,
obra que por si só conseguiu enquadrá-lo na galeria dos melhores
narradores da literatura espanhola de todos os tempos.
Clarín “escrevia concentrado, abstraído, pondo a alma inteira na pluma,
metido no papel, vendo seus personagens, movendo-os ou analisando-os
com a força poderosa de seu espírito penetrante e trazendo à tona toda a
reserva de sua cultura” (POSADA, 1909, p.172-173. Tradução nossa)9.
Apresentou-nos, assim, todo o seu conhecimento construído a partir da sua
própria experiência como leitor, ou melhor, como autor-leitor, e, no decorrer
desta produtiva trajetória, marcada por muita dedicação, esforço e superação
dos próprios limites, vimos que, apesar de o próprio autor se declarar
9 “escribía concentrado, abstraído, poniendo el alma entera en la pluma, metido por el papel, viendo sus personajes, moviéndolos o analizándolos con la fuerza poderosa de su espíritu penetrante y trayendo a juego toda la reserva de su cultura”.
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“partidario del arte por el arte, en el sentido de mantener como dogma seguro
el de su sustantividad independiente” (ALAS, 1973, p.7) e afirmar que “no
hay moda literaria, ni reacción que valgan para sacarme de esta idea”
(Ibidem, p.7), as influências do naturalismo espanhol em muitas de suas
obras são evidentes.
Leopoldo Alas, interessado desde sua juventude pela poesia, pelo
teatro e pelo jornalismo, passa a demonstrar-nos um visível interesse pelo
romance, definido por Ian Watt como “veículo literário lógico de uma cultura
que, nos últimos séculos, atribui valor sem precedentes à originalidade, à
novidade. Por isso, o romance foi denominado de “novel” (1984, p.19), e esta
predileção, a nosso ver, foi provavelmente despertada pela grande
admiração que o escritor sentia pelos principais representantes do
movimento realista/ naturalista na Europa oitocentista, tal como podemos
comprovar em Cartas a Galdós, publicadas na Revista de Occidente (1964,
p.214):
Los dos únicos novelistas vivos que me gustan en absoluto son usted y Zola. ¿Qué le falta a usted? Muchas cosas que tiene Zola. ¿Y a Zola? Muchas cosas que tiene usted. ¿Y a los dos? Algunas cosas que tenía Flaubert. ¿Y a los tres? Algunas que tenía Balzac. ¿Y a Balzac? Otras que tienen ustedes tres.
E, talvez, tenha sido esta a admiração que o motivou a buscar, nas
obras destes escritores, a base para fundamentar um dos seus principais
propósitos: retratar a realidade, maior fonte de inspiração para “seu assunto,
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seus personagens e a forma de suas obras no mundo tal qual é”
(PATTISON, 1969, p.43. Tradução nossa)10.
Outra possível justificativa para explicar a grande preferência de Alas
pelo romance seria pelo fato de ele próprio encontrar-se em condições
excepcionais para penetrar nas criações alheias, dado o seu ofício de crítico
literário, o que indiscutivelmente lhe permitiu um amplo conhecimento das
técnicas narrativas predominantes naquele período. A crítica literária foi, sem
dúvida alguma, quem lhe proporcionou um imensurável conhecimento de
todos os problemas do romance, e La Regenta, por apresentar uma estrutura
formal perfeita, é uma notável prova disto.
Perpassar, portanto, pela biografia de Leopoldo Alas “Clarín” foi
extremamente necessário para melhor compreendermos sua paixão pela
literatura. Desde jovem, o escritor asturiano demonstrou-nos um expressivo
interesse pelo mundo das letras, e foi, sem dúvida, essa paixão pela leitura,
pelos livros, que despertou um dos seus maiores talentos: a escrita.
Muito do êxito conquistado por Clarín deve-se principalmente a sua
experiência como crítico literário. Admirador dos principais representantes do
realismo/ naturalismo europeu, Zola, Flaubert e Balzac, escritores que
exerceram uma notável influencia na produção literária do autor de La
Regenta, a colaboração de Leopoldo Alas para com a difusão dos
movimentos na Espanha oitocentista tornou-se cada vez mais intensa.
Acompanhado por muitos críticos literários e escritores, dentre os
quais podemos destacar a ilustre figura de Benito Pérez Galdós, essa nova
10 “su asunto, sus personajes y la forma de sus obras en el mundo tal cual es”.
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geração de escritores da qual Leopoldo Alas participava, pretendia erradicar
o sedentarismo que contaminava a mente de muitos acadêmicos da época e
que corrompia o juízo de muitos críticos literários. Citamos:
Yo no estoy solo, algunos buenos amigos me ayudan en la tarea de llamar gato al gato; pero aún somos muy pocos en comparación de la falange de críticos y gacetillos que descubren todos los días un genio al volver de una esquina o de un Ateneo” (ALAS, 1971, p.20).
Inconformado com a falta de rigor e critério, Leopoldo Alas acreditava
que deveria haver uma verdadeira renovação na produção literária
espanhola do século XIX. Para isso, defendeu o regresso às origens dos
movimentos realista/ naturalista, resgatando as principais propostas
defendidas por seus precursores. Em seguida, adaptou-as à nova realidade
espanhola que, por sua vez, já possuía uma expressiva tradição proveniente
da picaresca e de Cervantes.
Na coletânea de críticas intitulada de Solos de Clarín, notamos
claramente esta preocupação por parte do escritor. Na obra, Leopoldo Alas
afirma que:
Se ha escrito mucho, y para estudiar concienzudamente el estado de nuestras letras en este último lustro, no bastará conocer los libros y las comedias que merecieron aplauso, sino también aquellos productos averiados de la medianía o de la nulidad que sin merecerlo lo obtuvieron, o que sin obtenerlo lo solicitaron” (ALAS, 1971, p.21).
Segundo Alas, tanto as produções dignas de aplauso como aquelas
dignas de repúdio deveriam ser analisadas e estudadas pela crítica literária,
pois só assim se chegaria a um consenso do que realmente deveria ser, por
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mérito, considerado de qualidade, de conteúdo próprio para ser lido. Para o
exercício de sua função, Alas teve de ser implacável em suas observações e
críticas, o que gerou, em muitos casos, a discórdia de muitos acadêmicos e a
simpatia daqueles que acreditavam na importância de um juízo coerente,
independente do prestígio literário que os escritores detinham. E, assim,
procedeu Clarín em sua árdua missão como crítico literário de inúmeras
obras, sobretudo, dos romances publicados no período correspondente à
ascensão do naturalismo na Espanha, como foi o caso de La familia de León
Roch, de Pérez Galdós.
No livro Solos de Clarín, Leopoldo Alas demonstra-nos possuir um
profundo conhecimento das técnicas narrativas empregadas pelo
contemporâneo, e as aplaude com louvor, em especial, por se tratar de uma
produção que difunde, além de questões sociais, grandes ensinamentos,
distanciando-se cada vez mais da novela meramente descritiva.
Las novelas contemporáneas del señor Pérez Galdós son tendenciosas, sí, pero no se plantea en ellas tal o cual problema social, como suele decir la gacetilla, sino que, como son copia artística de la realidad, es decir, copia hecha con reflexión no de pedazos inconexos, sino de relaciones que abarcan una finalidad, sin lo cual no serían bellas, encierran profunda enseñanza, ni más ni menos, como la realidad misma que también encierra, para el que sabe ver... (ALAS, 1971, p.203).
Não se trata, portanto, de uma cópia fragmentada e desconexa da
realidade, mas sim de uma produção que promove uma verdadeira reflexão,
por parte do narrador, sobre o mundo real, sobre a vida. Para Clarín, “el
novelista cumple con su comedido cuando de su obra se puede obtener- por
quien pueda- lecciones de que otros no tiene ni acaso necesidad”, e Galdós,
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indiscutivelmente, consegue atingir tal objetivo, já que muito pode ser
aprendido com a leitura do respectivo romance.
Ao longo do artigo, Leopoldo Alas chama-nos a atenção para a
seguinte questão:
Podríamos creer que el escaso movimiento que se nota en la primera parte era defecto capital de la novela, mientras no es más que una manera de exposición, que han usado otros notables novelistas: Víctor Hugo, por ejemplo, en los Trabajadores del mar, en el Hombre que ríe y tal vez en los Miserables.” (ALAS, 1971, p.204).
Neste comentário, o autor-leitor, além de explicar aos leitores que a
falta de movimento presente na primeira parte da obra trata-se de um
procedimento narrativo adotado por muitos escritores europeus, demonstra
também um expressivo conhecimento desta mesma técnica na produção do
escritor francês Victor Hugo. Tal fato nos permite destacar novamente o
papel essencial que a leitura passa a ter na vida de Leopoldo Alas, tornando-
se, assim, o principal sustento para o escritor.
Outra crítica merecedora de ser comentada refere-se à arte de
escrever, em outras palavras, ao dom da escrita:
El señor Pérez Galdós ha sabido tocar tan difícil materia con todo el arte que requería, y en cierto sentido son los capítulos que consagra a Luis Gonzaga lo más grande y admirable que hasta hoy ha salido de su pluma. Fácil es leer y admirar la propiedad de aquellas místicas lucubraciones; pero ¡cuán difícil escribirlas de tal suerte! Mucho más difícil porque el señor Galdós no es un místico y ha llegado a tan propiedad no por exaltación, como llegaron muchos místicos, sino a fuerza del ingenio. (Ibidem, p.207).
A sutileza utilizada por Pérez Galdós para abordar os temas mais
profundos e densos de toda a obra é o que indubitavelmente fez com que
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Clarín admirasse cada vez mais aquele que “ha elevado la novela española a
unas alturas que no eran de prever pocos años hace”. (ALAS, 1971, p.209).
Segundo a crítica feita por Leopoldo Alas, os episódios referentes ao
personagem Luis Gonzaga são os mais belos e louváveis que o autor já
produziu. Soube abordar, com total profundidade, as meditações e reflexões
místicas do protagonista de forma tão precisa que o próprio Clarín não teve
outra alternativa a não ser reconhecer o mérito e o engenho de Galdós ao
descrever uma atmosfera tão repleta de sensibilidade e misticismo religioso.
A todo instante, notamos a presença de críticas positivas que
corroboram a maestria da obra. Seja com relação aos procedimentos
narrativos adotados por Galdós ou com relação ao estilo, todas vêm ao
encontro do sucesso acarretado pela publicação de La familia de León Roch,
e para Clarín só restou dizer-lhe: “Por mi parte, estoy tan satisfecho... No
tengo consejos que dar ni repararos de consideración que poner” (ALAS,
1971, p.209), o que realmente evidencia a perfeição e a complexidade da
primeira parte da obra. E o leitor, diante de uma série de elogios, dificilmente
se sentirá desmotivado para lê-la.
Na crônica referente à segunda parte do romance La familia de León
Roch, notamos que o tema do adultério é novamente revisitado. Depois de
Madame Bovary, vários foram os escritores que recorreram à figura da
<<imperfecta casada>>, em outras palavras, da mulher pecadora que via no
adultério um caminho para encontrar a tão desejada felicidade. No entanto,
nem todos os autores conseguiram retratar tão intensamente, no universo
ficcional de suas obras, o respectivo tema tal como fizeram Leopoldo Alas,
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em La Regenta, Flaubert, em Madame Bovary, e Eça de Queirós, em O
primo Basílio.
Gran acierto ha mostrado el señor Pérez Galdós con no quebrantar el lazo del matrimonio de la manera precipitada y un tanto grosera de que suelen hacerlo multitud de autores traspirenaicos que queriendo probar arduas tesis jurídicas, sólo prueban la anemia moral que padecen. (ALAS, 1971, p.311).
Em La familia de León Roch, a questão da traição fora abordada de
uma forma díspar. No lugar da heroína adúltera, encontramos a personagem
María Egipcíaca, a esposa traída. Não obstante, apesar da seriedade do
tema, Pérez Galdós, segundo o implacável crítico asturiano, soube como
nenhum outro narrador retratá-lo sem que seus protagonistas principais
perdessem o brilho e a força presentes em suas almas. Por nenhum
momento perdem a originalidade, espontaneidade e beleza. O romancista
espanhol consegue o inalcançável:
Un hombre casado, y casado por amor, con una mujer que ni sueña con ser infiel a su esposo, ha de justificar su conducta al perder el apego a su hogar para llevar el corazón y encaminar sus pasos al hogar de otra mujer; esto ha de hacerse sin que ese hombre aparezca como un malvado, sin que la mujer que acoge al sin albergue se nos figure liviana; y más de esto, sin que la esposa que pierde al marido sea una adúltera, ni una harpía, ni siquiera una mujer vulgar en el fondo. ¿Consigue todo eso Pérez Galdós? Por lo que conocemos de su novela preciso es confesar que hasta ahora sí. (Ibidem, p.311).
O cuidado e o rigor com que o assunto da trama de La familia de León
Roch fora tratado foi o que, sem dúvida, contribuiu para o sucesso do
romance aplaudido pela crítica literária e pelo público leitor, diferentemente
de Doña Luz, de Juan Valera. Segundo Alas, Valera era capaz de
compreender “cuánto bueno se puede extraer del tesoro de las letras sabias,
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a qué puede llegar una erudición vasta, profunda y bien dirigida por el
raciocinio y el gusto” (ALAS, 1971, p.308), no entanto, falha ao produzir uma
obra desprendida de grandes dotes de originalidade. Diante da
grandiosidade de muitas produções literárias da época, a <<Luz>> do
romance valeriano inevitavelmente ofuscou-se. Citamos:
¿Y Doña Luz? Si Pepita Jiménez no anduviese por esos mundos, Doña Luz sería más encomiada; pero esta luz se eclipsa ante la perla de las novelas españolas contemporáneas. No es que sea igual argumento ni los recursos del arte idénticos; pero hay grandes analogías, y sobre que estas sutilezas psicológicas no son para muy traídas y llevadas, el desempeño es inferior con mucho en esta ocasión (Ibidem, p.308).
Conforme o juízo de Clarín, fundamentado a partir das diversas
leituras realizadas, nota-se que muitas são as semelhanças entre Doña
Perfecta (1879) e Pepita Jiménez (1874), seu primeiro e maior romance, e
estas, inevitavelmente, contribuíram para com a pouca autenticidade da obra
que “enseña a no mezclar lo divino con lo humano, como ya Cervantes
quería” (ALAS, 1971, p.309).
Mais uma vez a leitura passa a assumir um papel primordial na vida
de Leopoldo Alas “Clarín”. Para exercer a função de crítico literário, teve de
ler diversas obras que variavam desde as comédias até os romances
publicados na época, e foi a partir deste contato efetivo com os textos
literários que o autor-leitor pôde aprimorar e aperfeiçoar as técnicas
essenciais à escrita; logo não é gratuito o fato de La Regenta ser um dos
romances mais complexos e estruturados de todos os tempos.
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Desta forma, vimos que todas estas leituras realizadas por Clarín ao
longo de sua vida se converteram em importantes experiências para o
escritor, e estes conhecimentos, construídos pela constante prática da
leitura, foram, indubitavelmente, essenciais para que Leopoldo Alas pudesse
produzir uma das maiores obras naturalistas do século XIX: La Regenta.
42
1.2. O naturalismo em Leopoldo Alas “Clarín”
“Pelo que sabemos os limites entre <<realismo>> e <<naturalismo>>
são difíceis de serem definidos no mundo hispânico” (LISSORGUES, 1982.
p.404. Tradução nossa)11, e, em razão disto, alguns teóricos classificaram
Leopoldo Alas de realista e outros de naturalista, sobretudo pelo fato de
aceitar e inclusive apropriar-se de muitos postulados da ciência experimental
nos campos da Fisiologia, da Psicologia e da Sociologia e de alguns
aspectos temáticos e estéticos das teorias naturalistas e das obras literárias
de Emile Zola. A nosso ver, ambas as classificações estariam corretas, pois
o naturalismo espanhol é um movimento que se origina do realismo, ou seja,
constitui-se a partir de muitas diretrizes realistas, e, talvez, seja por isso que
haja uma grande dificuldade em definir os limites entre um Clarín realista e
um Clarín naturalista.
No caso de La Regenta, por ser um romance publicado no final do
século XIX, período em que as teorias naturalistas estavam em plena
vigência, e por várias destas se encontrarem presentes na obra, decidimos,
em nossos estudos, considerá-la naturalista, levando em conta o fato de que
o naturalismo é um desdobramento do movimento realista na Espanha.
A fervorosa revolução provocada por Zola, com a publicação de
L’Assomoir (1877), contagiou muitos escritores espanhóis que se motivaram
com as possibilidades de se criarem novas formas narrativas, inspiradas na
11 “Por lo que sabemos hasta la fecha <<realismo>> y <<naturalismo>> son difíciles de deslindar en el mundo hispánico”.
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tradição nacional e nas novas correntes naturalistas, em particular nas
francesas. Leopoldo Alas, assim como Galdós, Valera e Pardo Bazán, com o
propósito de revitalizar a produção literária espanhola da época, resgatou
alguns dos principais postulados deste movimento, e, para melhor
compreendê-los, nos pareceu interessante tecer alguns comentários, em
especial, sobre o movimento naturalista europeu, que teve como
representante máximo o escritor francês Emile Zola.
Segundo as teorias do movimento naturalista europeu, o romancista,
depois de uma minuciosa documentação de dados, deveria tratá-los com um
critério experimental, e Zola foi o primeiro romancista que tratou de aplicar o
método filosófico e científico do positivismo na narração literária. O escritor
francês é, como ele próprio declara, um determinista, uma vez que tem
consciência de que a forma de comportamento do homem depende das
circunstâncias materiais de sua vida. Reconhece, sem sombra de dúvidas, as
teorias positivistas de Taine e Auguste Comte e as incorpora em seus textos
literários, atribuindo às Ciências Sociais uma importante tarefa: a de
transformar e melhorar as condições externas da vida humana.
O escritor naturalista pretende “indicar os viveiros em que o germe
criminal se esconde, (...) mostrar o meio social em que se desenvolvem ou
eliminar as enfermidades do vício ou da dor eterna” (PATTISON, 1969, p.43.
Tradução nossa)12, com o objetivo de transmitir a impressão de fidelidade em
relação à experiência humana, e talvez tenha sido por isso que as produções
12 “indicar los viveros en que el germen criminal se esconde, (...) mostrar el medio social en que se desarrollan o extirpan las enfermedades del vicio o del dolor eterno” .
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literárias que incorporaram o método científico tiveram uma grande aceitação
de todo aquele emergente público leitor, deslumbrado pelos progressos
científicos, materiais e artísticos de seu tempo.
Aprimorando ainda mais os componentes básicos do discurso realista,
notamos que o naturalismo considerava relevante a adaptação do indivíduo
ao meio e sua luta pela existência, assim como os fatores sociais,
educacionais e ambientais que, por sua vez, podem explicar a conduta dos
personagens. Desta forma, não se torna gratuito o fato de Clarín ter dedicado
os capítulos IV e V de La Regenta aos períodos correspondentes à educação
de Ana Ozores, apresentando, através de uma minuciosa descrição dos
ambientes e das personagens envolvidas neste processo, um verdadeiro
estudo sobre como se formou o imaginário, ou melhor, a subjetividade da
protagonista, que, desde criança, demonstrara um imenso interesse pela
leitura, pelo ato de ler.
O naturalismo vai buscar quase todos os seus critérios de
probabilidade no empirismo das ciências naturais, difundindo a importância
da análise psicológica dos personagens, da valorização do desenvolvimento
do enredo, da descrição dos ambientes (espaços públicos e privados), da
idéia de que todo o fenômeno natural tem o seu lugar numa cadeia aberta
com condições e motivos, e do predomínio do método de observação
científica que, por sua vez, não desconsidera nenhum incidente por menor
que este seja.
Os naturalistas passam a priorizar uma vida dedicada à observação
do interior humano, e o surgimento da Psicologia no século XIX sintetizará
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cientificamente esta noção. Segundo Germán Gullón, “nos romances da
segunda época, também denominados contemporâneos, o fisionômico, as
descrições dos personagens pertencentes ao grupo dos bons ou dos maus,
desaparecem, e nascem no texto seres de enorme complexidade”13 (1993,
p.4), e esta poderá ser compreendida à medida que o leitor das narrativas
oitocentistas se depararem com temas relacionados a paixões incontroláveis,
sonhos, desejos, ganância, fervor religioso e “a tudo quanto cai na parcela do
humano concebido com a latitude do psicológico, que abriu portas a
sentimentos anteriores negados”14 (Ibidem, p.4), fato que corrobora o
processo de interiorização do romance espanhol.
De acordo com a crítica espanhola, Benito Pérez Galdós foi o
introdutor do naturalismo na Espanha como romance La desheredada
(1881), no entanto, só depois de alguns anos é que o escritor, acompanhado
por Leopoldo Alas, finalmente, declarou-se partidário do movimento
naturalista que se fundamentava na teoria de Emile Zola. Citamos:
Nem se quer quis reconhecer por aquelas datas qualquer vínculo com a arte zolesca. Só ao longo dos anos e desde a distância da recordação, terminou por confessar que ele, junto com Clarín, tinham feito parte em seu dia <<naquela procissão do naturalismo>>. (MIRALLES, 1989, p.15. Tradução nossa)15
13 “en las novelas de la segunda época, también denominadas contemporáneas, lo fisonómico, las descripciones de los personajes pertenecientes al grupo de los buenos o de los malos, desaparecen, y nacen en el texto seres de enorme complejidad”. 14
“a todo cuanto cae en la parcela de lo humano concebido con la latitud de lo psicológico, que abrió puertas a sentimientos anteriores negados”. 15 “Ni siquiera quiso reconocer por aquellas fechas cualquier vínculo con el arte zolesco. Sólo al cabo de los años y desde la distancia del recuerdo, terminó por confesar que él, junto con Clarín, habían formado parte en su día <<en aquella procesión del naturalismo>>”.
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Assim como Galdós, Clarín também incorporou, a sua maneira, as
doutrinas da escola moderna, e uma delas refere-se ao determinismo
hereditário que, segundo Miralles (1989, p.15), segue o seu curso inexorável,
ao fio temporal, marcado pelo duplo signo de uma degradação física e
espiritual. E, em razão desta deterioração, surge ainda a questão da pressão
do meio, presente tanto nos ambientes urbanos e rurais como no entorno
social. No entanto, ao mesmo tempo em que identificamos várias influências
do naturalismo de Zola nas produções dos escritores espanhóis, deparamo-
nos também com profundas diferenças que os separam, dentre elas, citamos
a própria questão do entorno social que assume mais protagonismo em Zola
que em Clarín e Galdós, por exemplo.
Outra notável questão relaciona-se à recriação do mundo físico no
universo literário, ou seja, a representação da realidade exterior feita por
meio de uma minuciosa e detalhada descrição, um importante recurso
lingüístico, que “supõe a existência de um mundo objetivo mais adiante do
fato escrito” (KRONIK,1988, p.2. Tradução nossa)16, e este mundo será
retratado, em especial por Leopoldo Alas “Clarín”, em La Regenta, com o
objetivo de convertê-lo em um instrumento de denúncia social, evidenciando,
assim, o deplorável estado das classes desfavorecidas, a ociosidade da nova
geração de jovens, a corrupção dos governantes, o culto à aparência, a
hipocrisia da burguesia, a frivolidade da aristocracia, as injustiças trabalhistas
e outros males, tal como o fez Zola em muitas de suas obras.
16 “supone la existencia de un mundo objetivo más allá del hecho escrito”.
47
A sociedade européia do século XIX torna-se a principal fonte de
conteúdo necessário para a produção de uma obra literária. Assim como o
fez Flaubert em Madame Bovary, em 1856, muitos foram os romancistas que
passaram a colher materiais diretamente do cotidiano, produzindo, a partir
dos processos de observação e documentação, um verdadeiro panorama
sócio-econômico, político e cultural da época.
Benito Pérez Galdós, no prefácio de Misericórdia (1897), confirma a
prática desse importante estudo empreendido pelos escritores europeus,
acentuando, sem sombra de dúvidas, a árdua missão de retratar, muitas
vezes, o ignorado e o excluído, em outras palavras, os espetáculos mais
tristes da degradação humana. Citamos:
Em Misericordia me propus descender às capas ínfimas da sociedade matritense, descrevendo e apresentando os tipos mais humildes, a suma pobreza, a mendicidade profissional, a desocupação viciosa, a miséria dolorosa quase sempre, em algunos casos picaresca ou criminosa e merecedora de correção. Para isto tive de dedicar-me a longos meses de observações e estudos diretos do natural, visitando as guardas de gente miserável ou meliante que se alberga nos populosos bairros do Sul de Madri. Acompanhado de policiais, vasculhei as <<Casas de dormir>> das ruas de Mediodía Grande e do Bastero, e para penetrar nas repugnantes casas (...) tive de disfarçar-me de médico da Higiene Municipal. (GALDÓS, 1990, p.207. Tradução nossa)17
Ao analisarmos este fragmento, vimos também que havia um
interesse muito explícito em retratar as classes menos privilegiadas, ou seja, 17
“En Misericordia me propuse descender a las capas ínfimas de la sociedad matritense, describiendo y presentando los tipos más humildes, la suma pobreza, la mendicidad profesional, la vagancia viciosa, la miseria dolorosa casi siempre, en algunos casos picaresca o criminal y merecedora de corrección. Para esto hube de emplear largos meses en observaciones y estudios directos del natural, visitando las guardias de gente mísera o maleante que se alberga en los populosos barrios del Sur de Madrid. Acompañado de policías, escudriñé las <<Casas de dormir>> de las calles de Mediodía Grande y del Bastero, y para penetrar en las repugnantes viviendas (...), tuve que disfrazarme de médico de la Higiene Municipal”.
48
<<las capas ínfimas de la sociedad matritense>>, e, para isso, o próprio
Galdós teve de disfarçar-se de médico. O escritor, por meio de uma profunda
investigação fundamentada na observação e documentação da realidade,
aprendeu a partir de sua própria experiência, e, este conhecimento,
construído gradativamente por meio de longos meses de análises e estudos,
tornar-se-á de extrema importância para a construção do respectivo romance
e de muitos outros de sua autoria.
Há, por parte dos escritores espanhóis, uma expressiva sede de
objetividade que, a propósito, vem ao encontro do distanciamento do fulcro
subjetivo presente nas narrativas românticas, compostas, muitas vezes, por
enredos inverossímeis. Coube ao narrador destes romances a ilustre tarefa
de desnudar as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima,
expondo, da forma mais nítida possível, os diferentes temperamentos e as
profundas inquietações da natureza humana, geralmente manifestadas pela
influência do meio, como é o caso de Oviedo, provinciana cidade retratada
por Leopoldo Alas em La Regenta (1884-1885).
1.2.1. Os caracteres singulares do naturalismo espanhol em La
Regenta
No sé si sabrá Vd. que yo también me he metido a escribir una novela, vendida ya (aunque no cobrada) a Cortezo de Barcelona. Si no fuera por el contracto, me volvería atrás y no la publicaba: se llama La Regenta y tiene dos tomos- por exigencias editoriales. Creo que empieza demasiada gente escribir novelas, y al pensar, de repente, que yo también voy a prevaricar me dan escalofríos. Hablando en secreto, creo firmemente que los únicos novelistas verdaderos son Vd. y Pereda, y de la parte contraria Alarcón y algo Valera, cuando
49
Dios quería [...] Ahora figúrese Vd. lo que me parecerá de mí mismo. No me reconozco más condiciones que un poco de juicio y alguna observación para cierta clase de fenómenos sociales y psicológicos, algún que otro rasgo pasable en lo cómico, un poco de escrúpulo en la gramática... y nada más. Me veo pesado, frío, desabrido..., y, en fin, ha sido una tontería meterme a escribir novelas. ¿Con qué cara voy a insultar en adelante a los demás?18
Em Cartas a Galdós, Clarín confessa ao escritor estar escrevendo o
romance La Regenta, fato até então mantido em sigilo absoluto. Por vários
momentos, o implacável crítico literário mostra-se receoso e preocupado com
a repercussão que a obra poderia assumir, em especial, no âmbito
acadêmico da época.
O medo e a insegurança, capazes de provocar <<escalofríos>>, se
apoderam do autor-leitor que, inicialmente, chega a arrepender-se de ter se
dedicado à produção de romances. No entanto, meses depois, o
arrependimento momentâneo de Leopoldo Alas “Clarín” é desfeito e, no lugar
de temores e preocupações, surge uma sensação de confiança que
corroborava a idéia de que o escritor estava definitivamente no caminho
correto. La Regenta foi considerada unanimemente pela crítica como o
melhor romance naturalista espanhol do século XIX.
A notícia de que Clarín publicara a obra difundiu-se rapidamente pelos
círculos literários da época, e, em seguida, pelo público leitor, graças à
distribuição de um prospecto de propaganda feito pela <<Biblioteca Arte y
Letras>>.
18 CLARÍN. Cartas a Galdós. Revista de Occidente, Madrid, 1964. p.220-221.
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Dividida em dois volumes, a primeira parte é formada pelos quinze
primeiros capítulos, e a segunda, pelos capítulos XVI a XXX. Concebida a
partir de uma ótica naturalista, notamos a essência do movimento espanhol
completamente entranhada em várias páginas do romance, especialmente,
nas que se destinam a descrever um dos personagens mais elementares à
trama: Fermín de Pas. Vejamos:
El Magistral, olvidado de los campaneros, paseaba lentamente sus miradas por la ciudad escudriñando sus rincones, levantando con la imaginación los techos, aplicando su espíritu a aquella inspección minuciosa, como el naturalista estudia con poderoso microscopio las pequeñeces de los cuerpos. No miraba a los campos, no contemplaba la lontananza de montes y nubes; sus miradas no salían de la ciudad. (ALAS, 1997, p.64).
Da mesma forma que os naturalistas analisavam minuciosamente os
seus objetos de estudo, o clérigo procedia igualmente, empreendendo longas
e profundas observações sobre a provinciana cidade, que acabou
transformando-se em uma de suas maiores presas.
Vetusta exercia-lhe fascínio. A sede incontida de dominá-la intensifica-
se, sobretudo pelo fato de Fermín possuir pleno poder sobre as
consciências, obtido por meio das confissões gerais feitas pelos <<fiéis>> da
cidade. No entanto, será este poder que o religioso crê deixá-lo isento,
imune, dos males que contaminavam Vetusta que o levará a apaixonar-se
pela bela Ana Ozores e a cometer o sacrilégio, corroborando, assim, a
fragilidade do ambicioso protagonista, em outras palavras, a fraqueza do
homem.
51
A vulnerabilidade feminina também é destacada pelo narrador de La
Regenta. Ana Ozores, a personagem mais bela de toda Vetusta, é a
representação do conflito existente entre a carne e o espírito, e esta relação
conflitante irá marcar toda a existência da protagonista duplamente
assediada por Fermín e Álvaro Mesía. Alma e corpo, segundo Vives (2000),
“lutam para conseguir o domínio absoluto: obedecer ao chamado da carne
significa abandonar as exigências do espírito e vice-versa”19, e esta
incompatibilidade fez com que a mesma se sentisse, por vários momentos,
dominada por forças opostas, tal como observamos no seguinte fragmento:
Dividía el tiempo entre el mundo y la iglesia: ni más ni menos que doña Petronila, Olvido Páez, Obdulia y en cierto modo la Marquesa. Se la vio en casa de Vegallana y en las Paulinas, en el Vivero y en el Catecismo, en el teatro y en el sermón. Casi todos los días tenían ocasión de hablar con ella, en sus respectivos círculos, el Magistral y don Álvaro, y a veces uno y otro en el mundo y uno y otro en el templo; lugares había en que Ana ignoraba si estaba allí en cuanto mujer devota o en cuanto mujer de sociedad. Pero ni De Pas ni Mesía estaban satisfechos. Los dos esperaban vencer, pero a ninguno se le acercaba la hora del triunfo. (ALAS, 1997, p.587).
Sufocada pela dualidade de seus sentimentos, Ana Ozores não resiste
à pressão e entrega-se a Álvaro Mesía, consumando, assim, o adultério.
Desta forma, consideramos que a maestria do autor-leitor não se encontra
propriamente na história da traição, da infidelidade feminina, mas sim na
dramática luta entre dois grandes pólos: o sagrado e o profano.
Como vimos, Ana Ozores vive cedendo oras aos latentes impulsos
carnais, oras às obrigações de esposa e aos deveres religiosos, e esta
19 “luchan por conseguir el dominio absoluto: obedecer a la llamada de la carne significa abandonar las exigencias del espíritu y viceversa”.
52
relação inconciliável fez com que muitos críticos da época acusassem
injustamente o escritor asturiano de plágio, dada as semelhanças existentes
entre as primeiras obras naturalistas publicadas no século XIX. Apesar de
ambas tratarem de questões relacionadas ao adultério, La Regenta é única.
Sua complexidade consiste, antes de tudo, em desconstruir a idéia do
tradicional triângulo amoroso, ou seja, a estrutura do marido traído, da
esposa infiel e do amante sedutor. Além destas três importantes figuras,
deparamo-nos na narrativa de Clarín com mais uma: a do clérigo apaixonado
que assumirá, através da inversão� método de elaboração textual�, o papel
de esposo enganado. Ao contrário do que se esperava, será Fermín de Pas
o principal responsável pela vingança de Ana Ozores, e não o seu legítimo
marido, don Victor Quintanar. Este é, portanto, um dos maiores engenhos do
narrador.
A originalidade de La Regenta também pode ser encontrada em
outros aspectos. Muitas foram as novidades empreendidas por Leopoldo
Alas, sobretudo, as que se relacionam às técnicas narrativas. No primeiro
volume, notamos que o narrador não se limita apenas a apresentar os
personagens; expor os ambientes e as primeiras fases da ação,
aprofundando os movimentos interiores dos protagonistas de maneira ativa,
pelo contrário, apresenta ação: os capítulos IV e V que narram a conturbada
infância e juventude de Ana Ozores, os que relatam o passado de Fermín de
Pas e de dona Paula, mãe do personagem, e muitos outros.
Leopoldo Alas estabelece, ao longo do romance, uma continuidade
narrativa entre os elos da estrutura, relacionando figuras e situando-as no
53
espaço e tempo. O mesmo ocorre com os personagens secundários de La
Regenta, “observados com igual cuidado que os protagonistas”20. Sua
existência textual, “não é menos sólida, pois idêntico princípio- o da
autenticidade- os rege” (Ibidem, p.13)21, o que por si só justifica a extrema
importância dos dois mais puros personagens secundários de toda a obra:
Tomás Crespo, Frígilis, companheiro de caça e melhor amigo de Quintanar,
e o bispo Caimorán, o único religioso dotado de uma espiritualidade sincera.
Ainda com relação à estrutura da obra, notamos que a correlação das
apresentações e das ações, a diversidade dos espaços públicos e privados,
o silencio momentâneo do narrador, de forma a deixar os leitores de frente
aos personagens para que estes possam vê-los, escutá-los e julgá-los, o
enfoque sucessivo dos mesmos em grupos sociais e familiares, a
fragmentação e a súbita mudança do discurso narrativo- o relato cortado pelo
diálogo, a narração pela descrição e outros- são recursos que
impreterivelmente tendem a estimular a receptividade e o interesse dos
leitores de La Regenta, que, dificilmente se sentirão desmotivados, diante da
peculiaridade e originalidade do enredo.
Conhecida pela profundidade e complexidade da trama, La Regenta,
de Leopoldo Alas “Clarín”, é um dos romances naturalistas mais articulados
da literatura espanhola do século XIX. Considerando a expressiva e
inigualável experiência do escritor como renomado crítico literário e jornalista
de importantes jornais da época, vimos que estas atividades foram
20 Ver o prólogo de La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”, escrito por Ricardo Gullón (1997, p.13). “observados con igual cuidado que los protagonistas”. 21 “no es menos sólida, pues idéntico principio- el de la autenticidad- los rige”.
54
fundamentais para a construção da obra que retrata, com muita maestria, a
provinciana cidade de Oviedo, intitulada de “Vetusta”.
Publicada entre os anos de 1884 e 1885, o romance naturalista
provocou uma grande polêmica em vários setores da cidade, em especial,
naqueles que se encontravam sob as rédeas de uma das instituições mais
poderosas daquele período: a Igreja Católica. Desta forma, não nos cabem
dúvidas de que há uma proposta, assim como em El Lazarillo, por parte do
narrador, de enfatizar a inexorável exploração da maldade humana, a fim de
evidenciar a assustadora ausência de caridade no seio de uma sociedade
orgulhosa por intitular-se <<cristã>>.
Contra o seu poderio abusivo e, em muitos casos, arbitrário, o
narrador Clarín, implacável em suas críticas, promove inúmeras denúncias,
evidenciando-nos, ao longo dos trinta capítulos da obra, a arrogância, a
ambição e a imoralidade de muitos membros religiosos que, em vários
episódios, mostravam-se avessos à própria doutrina católica, ensinada por
eles.
Com o auxílio do narrador, conseguimos desvendar o proibido, ou
seja, tudo aquilo que era escondido, omitido pelo silêncio. A verdade
submerge e, junto a ela, surgem inúmeras indagações sobre infinitas
questões, dentre elas a simonia praticada por alguns eclesiásticos que
visavam o lucro com as vendas de artigos religiosos, e foi a partir desta
denúncia que conseguimos penetrar, e, neste aspecto, destacamos
novamente a primordial contribuição do narrador, na atmosfera ficcional de
La Regenta.
55
Ambientada em um período correspondente à vida do escritor
asturiano, La Regenta, segundo Beser (1982, p.69), é “um estudo de uma
concepção romântica da vida, mas situada num marco realista, e é este o
marco que converte o livro em romance”22. Grande parte de seus
personagens, em especial a principal protagonista da obra, Ana Ozores,
preservava, no fundo de suas almas, idéias puramente românticas, que se
transformavam, muitas vezes, em aspirações massacradas por uma
realidade esmagadora que assiduamente condenava toda e qualquer
manifestação que entrasse em conflito com os valores pré-determinados por
ela. Citamos:
Nada más ridículo en Vetusta que el romanticismo. Y se llamaba romántico todo lo que fuese vulgar, pedestre, prosaico, callejero. Visita era el papa de aquel dogma antirromántico. Mirar a la luna medio minuto seguido era romanticismo puro; contemplar en silencio la puesta del sol... ídem; respirar con delicia el ambiente embalsamado del campo a la hora de la brisa... ídem; decir algo de las estrellas... ídem, encontrar expresión amorosa en las miradas, sin necesidad de ponerse al habla..., ídem; tener lástima de los niños pobres..., ídem; comer poco..., ¡oh!, esto era el colmo del romanticismo (ALAS, 1997, p.479).
Sendo assim, notamos que em Vetusta não havia lugar para o lirismo
e para o romantismo, mas sim para a repressão e contenção das verdadeiras
paixões e desejos. Ser sentimentalista era algo <<cursi>>, inapropriado para
aquela realidade tão irretorquível, e esta idéia fica-nos clara, sobretudo, em
uma cena em que a Marquesa de Vegallana e Saturnino Bermúdez
conversam justamente sobre esta questão. Vejamos:
22
“un estudio de una concepción romántica de la vida, pero situada en un marco realista, y es este marco el que convierte el libro en novela”.
56
-Yo no soy sentimental- decía ella a don Saturnino Bermúdez, que la oía con la cabeza torcida y la sonrisa estirada con clavijas de oreja a oreja-, yo no soy sentimental, es decir, no me gusta la sensiblería..., pero leyendo ciertas cosas, me siento bondadosa..., me enternezco..., lloro..., pero no hago alarde de ello (Ibidem, p.544).
Neste mundo, venciam, ou melhor, sobreviviam aqueles que
sabiamente separavam suas fantasias e sonhos da realidade, não permitindo
jamais se deixar influenciar pelo lado emotivo, sentimental, tal como vimos
nas palavras da Marquesa, dona Rufina de Robledo. A razão, em muitos
casos, direcionada para proveitos próprios, era a principal arma contra a
sensibilidade e o escapismo romântico que tomaram conta de inúmeros
protagonistas da obra, sobretudo, dos personagens leitores que tiveram seus
imaginários alimentados pelos livros.
Adentrando ainda mais na esfera literária de La Regenta, notamos
uma característica interessantíssima: a polifonia da obra. Cada personagem
se comunica, se expressa com a sua própria voz, ou seja, com o seu próprio
discurso, o que nos faz pensar imediatamente em Don Quijote, o primeiro
romance moderno a empreender esta grande transformação na narrativa. No
romance clariniano, temos um narrador externo onisciente que pode
apresentar aos leitores tudo que desejar. Este, por meio de vários
procedimentos narrativos, dentre eles a técnica do refletor23, permite que o
público leitor acompanhe passo a passo a evolução do enredo da obra.
Nenhum ínfimo detalhe lhe é omitido; tudo é posto em evidência, e, para 23 Coube ao narrador, por meio da técnica do refletor, a minuciosa tarefa de penetrar na alma, ou melhor, nas galerias mais íntimas por onde transita o pensamento dos protagonistas, de maneira a representar a voz particular de cada um deles (os seus discursos), expondo, assim, aos leitores de La Regenta, a forma com a qual cada um refletia. Assume, portanto, o papel de transmissor, de emissor do ato da linguagem.
57
melhor aclarar esta idéia, nos pareceu interessante citar um fragmento em
que o narrador, através deste procedimento, consegue apresentar-nos as
mais íntimas aflições do covarde Álvaro Mesía e a fulminante raiva de Fermín
de Pas, rivais que disputavam o amor de Ana Ozores. Citamos:
Don Álvaro tuvo un poco de miedo, de aprensión de miedo. <<Si este hombre- pensó-, enamorado de la Regenta, desairado por ella, se volviera loco de repente al verme, creyéndome su rival y se echara sobre mí a puñetazo limpio aquí, a solas...>> Mesía recordaba la escena del columpio en la huerta de Vegallana. El Magistral pensó por su parte al ver a don Álvaro: <<¡Si yo me arrojara sobre este hombre y como puedo, como estoy seguro de poder, le arrastrara por el suelo, y le pisara la cabeza y las entrañas...!>> Y tuvo miedo de sí mismo (Ibidem, p.752).
Antes mesmo de chegar ao capítulo que narra a consumação do
adultério, o leitor, plenamente consciente de todos os fatos e acontecimentos
sucedidos no decorrer do relato, já prevê, por conhecer o que cada
protagonista pensa, a tragédia que está por vir, imaginando a gravidade das
conseqüências que a traição de Ana Ozores poderá assumir no romance. E
não são somente os leitores que prevêem a desventura; alguns
protagonistas de La Regenta também são dotados de dom premonitório. No
capítulo XVI da obra, podemos ver claramente a manifestação da
premonição, ou seja, deste método de elaboração textual tão precioso à
narrativa de Clarín, na cena em que a protagonista Ana Ozores, ao assistir a
peça Don Juan Tenorio, de Zorrilla, promove uma analogia entre o drama
representado no coliseu de Vetusta e a sua própria vida:
Como se había empeñado la imaginación exaltada en comparar lo que pasaba en Vetusta con lo que sucedía en Sevilla, sintió supersticioso miedo al ver el mar en que paraban aquellas aventuras del libertino andaluz; el pistoletazo con que don Juan
58
saldaba sus cuentas con el comendador le hizo temblar; fue un presentimiento terrible. Ana vio de repente, como a la luz de un relámpago, a don Víctor vestido de terciopelo negro, con jubón y ferreruelo, bañado de sangre, boca arriba, y a don Álvaro con una pistola en la mano, enfrente al cadáver (Ibidem, p.509).
Outra importante característica da obra, resgatada, provavelmente, da
literatura picaresca, é o relato retrospectivo. Assim como o narrador de El
Lazarillo de Tormes, Clarín, para melhor definir e explicar as origens de dois
dos principais protagonistas da obra, Ana Ozores e Fermín de Pas, regressa
ao passado, apresentando-nos um verdadeiro histórico sobre a vida e a
trajetória dos mesmos. Através deste procedimento, torna-se possível a
compreensão dos motivos essenciais que levaram a jovem a buscar no amor
proibido a felicidade que tanto almejava encontrar e as razões pelas quais o
clérigo torna-se um dos protagonistas mais inescrupulosos de todo o
romance. Muito mais que uma identidade, um nome, ambos possuem uma
história, e, ao propor esta viagem ao tempo, ao período correspondente à
infância de Ana e de Fermín, presente nos capítulos IV, V, e XV,
conseguimos verificar a existência de muitos aspectos semelhantes em suas
vidas, o que possivelmente poderia justificar a afinidade e a simpatia que,
inicialmente, um teve pelo outro. De confessor, o personagem transforma-se
gradativamente em amigo, em fiel confidente da mente mais conflitante de
toda a cidade, dividida ora pelos impulsos carnais, ora pelos impulsos
religiosos. Fermín de Pas, atordoado pela possibilidade de tê-la física e
espiritualmente, se apaixona inevitavelmente pela bela Ozores, tornando-se
um ser desejante. Mais uma vez será a presença feminina que motivará a
59
manifestação do desejo masculino. Sendo assim, el Magistral de Vetusta
passará a viver para a sua paixão:
No quería más que hundir el alma en aquella pasión innominada que le hacía olvidar el mundo entero, su ambición de clérigo, las trampas sórdidas de su madre de que él era ejecutor, las calumnias, las cábalas de los enemigos, los recuerdos vergonzosos, todo, todo, menos aquel lazo de dos almas, aquella intimidad con Ana Ozores (Ibidem, p.635-636).
E esta intimidade ganhará proporções avassaladoras, ao longo dos
capítulos de La Regenta, à medida que o clérigo vai passando por um
processo de transformação, de metamorfose. O leitor da obra vai se
conscientizando de que por debaixo das vestes religiosas há um homem
como qualquer outro, que sente, que chora, que sorri, que mente, e que,
sobretudo, deseja: “El Magistral no era el hermano mayor del alma, era un
hombre que debajo de la sotana ocultaba pasiones, amor, celos, ira...”
(Ibidem, p.746), e foi justamente esta nova condição, a de ser desejante, que
o levou à perdição, à desgraça, uma vez que passou a contrariar uma série
de valores morais e religiosos defendidos pela soberana Igreja Católica e por
ele mesmo em seus pomposos sermões pronunciados na catedral da cidade.
Aquella felicidad que saboreaba De Pas como un gastrónomo los bocados, aquella libertad, aquella pereza normal que el verano hacía más voluptuosa para su cuerpo robusto, los sueños vagos de amor sin nombre, la deliciosa realidad de ver a la Regenta a todas horas y mirarse en sus ojos y oírla dulsísimas palabras de una amistad misteriosa, casi mística, hacían desear a don Fermín que el sol se detuviera otra vez, que el tiempo no pasara. Aquel agosto, tan triste para don Víctor, era para el Magistral el tiempo más dichoso de su vida (Ibidem, p.664-665).
60
Mais uma vez a idéia de desejo ressurge na narrativa de Clarín. O
protagonista, que teve sua infância e adolescência comprometidas com os
estudos, conteve, nestas fases, muitos dos seus sonhos e aspirações em
prol da formação eclesiástica, acompanhada passo a passo por dona Paula,
a mãe do personagem. Uma das mentes intelectuais mais brilhantes da
sociedade vetustense, rica de conhecimentos teóricos, porém pobre de
experiências de vida, diante do novo, do sentimento desconhecido, mostra-
se completamente perturbado, a ponto de comprometer a temível e
inabalável imagem que levara anos para ser construída.
A comparação feita pelo narrador, no capítulo XI da obra: “Se parecía
un poco a su querida torre de la catedral, también robusta, también
proporcionada, esbelta y bizarra, mística; pero de piedra” (Ibidem, p.326), se
desfaz durante o relato. O coração de Fermín de Pas, incipiente em
relacionamentos amorosos, abandona o seu estado original, o de
<<piedra>>, e passa a ganhar vida, manifestando sentimentos jamais
experimentados por ele, e, com o propósito de corroborar esta idéia, nos
pareceu interessante citar um fragmento em que o clérigo se revolta ao
descobrir a traição de Ana Ozores, evidenciando-nos, assim, a dor, a
emoção sentida pela perda. Vejamos:
Había paseado pisando con ira, con largos pasos, como si quisiera rasgar la sotana con rodillas; aquella sotana que se le enredaba entre las piernas, que era un sarcasmo de la suerte, un trapo de carnaval colgado al cuello. Él, él era el marido- pensaba- y, no aquel idiota, que aún no había matado a nadie (Ibidem, p.904-905).
61
O desejo converte-se em desgraça. Inconformado por ter fracassado,
por ter perdido Ana Ozores para um de seus maiores opositores, o sedutor
Álvaro Mesía, o clérigo, com o seu coração corroído pelos ciúmes e pela ira,
vai se colocar na posição de marido traído e, a partir daí, irá conspirar contra
a amada, empreendendo um monstruoso plano de vingança, que resultará
na morte do ex-regente de Audiência, don Victor Quintanar, e na
desmoralização da personagem feminina mais cobiçada de toda a obra.
Desiludido em sua dor, vemos nitidamente o protagonista se
recompor, regressando ao seu estado inicial. Desprovido de compaixão e de
piedade, o clérigo negará o perdão a Ana Ozores, castigando-a severamente
por meio da indiferença e do desprezo. Recobra sua verdadeira identidade,
aquela que nos fora apresentada no primeiro capítulo da obra: “Era
montañés (...). Cuanto más subía más ansiaba subir; en vez de fatiga sentía
fiebre que les daba vigor de acero a las piernas y aliento de fragua a los
pulmones. Llegar a lo más alto era un triunfo voluptuoso para De Pas”
(Ibidem, p.63), e será esta ambição desmedida pelo poder, seguida pela
presença de um orgulho ferido, que ressuscitará a real essência do único
personagem que conhecia <<la Vetusta subterránea>>, a cidade oculta das
consciências.
Narrativa construída sob a séria prerrogativa de fazer chocar através
do riso, de estabelecer uma denúncia pela ironia, de expor atrozmente a
decadência e corrupção do clero como um dos males que corrompia a
sociedade ovetense da época, aos olhos do escritor asturiano, vimos que o
62
humor e a ironia são dois importantes recursos estilísticos utilizados por
Clarín na crítica à sociedade espanhola oitocentista.
Por muitas vezes, o narrador opta por um tom mais humorado, dando
preferência ao patético, ao ridículo. Aposta, cada vez mais, não na
agressividade do relato, mas sim na ironia do discurso, tal como pudemos
observar no seguinte fragmento: “don Santos es un tonel en persona y tiene
más espíritu de vino en el cuerpo que sangre en las venas; es una mecha
empapada en alcohol..., prenda usted fuego y verá” (Ibidem, p.668-669). O
alcoolismo do protagonista Santos Barinaga, ou seja, o vício compulsivo pela
bebida, é tratado no romance com altas doses de humor e irreverência, e
este tom cômico está presente, inclusive, na própria essência, natureza do
personagem, amargado pela falência de seus negócios. Vejamos:
- Todo es inútil..., la Iglesia me ha arruinado..., no quiero nada con la Iglesia... Creo en Dios, creo en Jesucristo... que era... un gran hombre..., pero no quiero confesarme, señor Carraspique, y siento... darle a usted este disgusto. Por lo demás..., yo estoy seguro... de que esto que tengo... se curaría..., o por lo menos... se..., se..., con aguardiente... (Ibidem, p.687).
Através do discurso do narrador, verificamos que há, muito mais que
uma crítica social, uma exposição da condição humana: a de degradação.
Desta forma, a trágica condição de Santos Barinaga é o que
verdadeiramente o torna uma das figuras mais risíveis de toda a obra.
Em: “su marido era botánico, ornitólogo, floricultor, arboricultor,
cazador, crítico de comédias, cómico, jurisconsulto; todo menos un marido”
(Ibidem, p.296), notamos que Víctor Quintanar também não foge das
picantes doses de humor empregadas pelo narrador de La Regenta. Em
63
muitos episódios da obra, deparamo-nos com a figura de um ser paternalista
que mais podia ser compreendido como um pai, ao invés de marido: “Su Ana
era como su hija... Y él sentía su deshonra como la siente un padre” (Ibidem,
p.887). Tinha por Ana um querer bem diferente daquele que se espera entre
dois amantes apaixonados motivados pelos impulsos carnais. Na relação
entre ambos não havia erotismo, sensualidade e desejos. O cavaleiro a via
apenas como uma pobre mulher que necessitava de proteção, enquanto o
que Ana Ozores mais necessitava era amor, e foi justamente esta ausência
do elemento masculino, da figura do marido, na vida de Ana, que a motivou a
buscar nos braços de Álvaro Mesía o sentimento que tanto desejava sentir,
conhecer.
O riso sempre foi usado para castigar tudo aquilo que ferisse o valor
moral de um grupo social ou pôr em risco as várias formas de hierarquia, e
esta punição, aplicada em muitos protagonistas da obra, é geralmente fatal,
já que os indivíduos não conseguem adaptar-se, ou melhor, sobreviver à
cruel realidade representada pelo narrador em La Regenta. E, por trás de
todos os risos, não podemos nos esquecer de talvez o maior deles: o riso do
criador, detentor de uma das vozes mais conscientes de toda a narrativa,
dada a sua capacidade de penetrar nas galerias mais profundas e interiores
do pensamento de cada um dos personagens.
Explorando um pouco mais a genialidade do narrador de La Regenta,
notamos que este tende a estimular a receptividade dos leitores da obra.
Recursos como a fragmentação, a mudança súbita do discurso� relato
interrompido pelo diálogo, por exemplo� e o silêncio momentâneo do
64
narrador, deixando os personagens frente a frente com o leitor, permitem que
este penetre mais facilmente na atmosfera ficcional do romance.
Outro importante elemento que vem a facilitar o acesso do mesmo ao
mundo fictício é o espaço geográfico que se limita à capital provinciana
(Vetusta/ Oviedo). Por ser uma geografia conhecida, sobretudo pelo
narrador, que retrata os principais pontos da cidade: a catedral, as paisagens
naturais de Astúrias, os bairros da cidade, o cassino, as populosas ruas do
Boulevard, o teatro e outros, notamos que os leitores dificilmente terão
dificuldades de adentrar na atmosfera ficcional da obra; pelo contrário, muito
se identificarão com as paisagens descritas por Clarín.
Mundo e consciência, tempo histórico (período correspondente à
Restauração Borbônica na Espanha), tempo psicológico e tempo cronológico
se interagem harmonicamente, dando mobilidade e visibilidade à narrativa. O
tempo será o elemento que promoverá múltiplas mudanças no
comportamento, atitudes, e nos sentimentos dos protagonistas, tornando-se,
assim, primordial à ocorrência do relato retrospectivo e à série de
antecipações (premonições) e inversões que permeiam os dois volumes da
obra.
Por inúmeras vezes, o narrador de La Regenta faz alusão a
acontecimentos reais, como foi o caso da Revolução de Setembro e da
perda da última colônia espanhola, Cuba, tal como pudemos observar no
presente fragmento: “Bueno estaría que ahora que vamos a perder Cuba,
resto de nuestras grandezas, nos diéramos esos Aires de señores y
midiéramos el paso...” (ALAS, 1997, p.502), e possivelmente foi esta
65
familiarização, esta proximidade com o real, que fez com que o leitor da
época se motivasse cada vez mais com aquele universo, com aquela
construção ficcional tão semelhante a sua realidade, evitando, desta forma, a
desmotivação e o desinteresse por uma narrativa que pouco se preocupava
com a vulgaridade do incidente, mas sim com a forma como este lhe fora
apresentado ao longo dos capítulos da obra.
No entanto, a audaciosa proposta de retratar a realidade na esfera
literária provoca inúmeras críticas, principalmente por parte dos acadêmicos
mais tradicionais. Desde a segunda metade do século XIX, o realismo é tido
como objeto de controvérsias, e, no início do século XX, notamos que esta
situação persiste. Na crítica espanhola, o filósofo Ortega y Gasset
empreende em Meditaciones del Quijote uma implacável crítica contra as
manifestações realistas, alegando ser o termo <<realismo>> algo
verdadeiramente inquietante, dada a ambigüidade e nebulosidade da
<<incómoda palabra>>. No artigo “Arte artístico” (ORTEGA Y GASSET,
1932. p.892-896), considerado um importante manifesto das vanguardas por
tratar de temas relacionados à desumanização da arte, o escritor também
promove um notável ataque ao realismo e, especialmente, aos leitores que
buscavam esse tipo de obra, fato que vem a corroborar a existência de uma
expressiva oposição ao movimento realista na época.
A imprecisão do conceito de realismo também é uma questão
discutida pelo escritor espanhol Ramón Menéndez Pidal, ao afirmar que este
66
se trata de um “nome sumamente impreciso”24 (1949, p.641. Tradução
nossa). Não obstante, essa falta de rigor apontada pelos acadêmicos ao se
tentar retratar o mundo real na ficção será diluída se examinarmos o
movimento realista, assim como propõe Lázaro Carreter (1979), como
conceito crítico-literário, com independência de sua manifestação em uma
literatura concreta. Considerar-se-á, portanto, a existência de realidades
realistas, ou seja, “fenômenos que em sua versão literária são identificáveis
pelo leitor, métodos que permitem tal identificação e linguagens que a
promovam com independência de seus referentes”25 (Ibidem, p.135.
Tradução nossa).
A literatura, segundo as correntes realistas/ naturalistas, deve ser
verdadeira e garantir a fidedigna representação da realidade, obedecendo ao
princípio aristotélico (mímesis) de que o mero reconhecimento proporciona
prazer ao leitor. Desta forma, o realismo deve ser interpretado, desde a
perspectiva do século XIX, como “um último e ansioso esforço de
sistematização do mundo”26 (ZUBIAURRE, 2000, p.94. Tradução nossa),
tratando de apropriar-se, mediante um complicado processo de interiorização
e domesticação, da realidade exterior, com a intenção de torná-la, por fim,
compreensível.
No entanto, apesar da objetividade difundida pelo realismo e
posteriormente pelo naturalismo, o escritor espanhol continua sendo, em
24
“nombre sumamente impreciso”. 25 “fenómenos que en su versión literaria son identificables por el lector, métodos que permiten tal identificación y lenguajes que la suscitan con independencia de sus referentes”. 26 “un último y ansioso esfuerzo de sistematización del mundo”.
67
muitos aspectos, um romântico (MEDINA, 1979, p.64), fato que vem a
corroborar a importância da tradição cervantina para a formação dos
movimentos na Espanha oitocentista. Segundo cita Lázarro Carreter (1979,
p.122), o realismo para Giner (1876) “não é possível sem uma dose de
idealismo, em que consiste apresentar a realidade extirpando os acidentes
perturbadores que contém e a colocando de modo que o artista possa
introduzir nela sua vida espiritual própria”27, e é exatamente esta marca
deixada por esta nova geração de escritores que diferenciará a produção
literária espanhola das demais obras européias.
Diferentemente daqueles que identificavam o realismo com a
“carência de invenção e de amor à forma e de reflexos sentimentais”28
(ORTEGA, 1912, p.566. Tradução nossa), muitos escritores e críticos, dentre
os quais destacamos Dámaso Alonso, passaram a admitir o ingresso do
idealismo na narrativa realista, em outras palavras, da fantasia, da
espiritualidade, da transcendência, da imaginação ou da decidida desordem
do perceptível, tal como nos aponta Carreter (Ibidem, p.125), e Leopoldo
Alas “Clarín” foi, incontestavelmente, um deles. Daí explica-se a
complexidade e riqueza de La Regenta.
Direcionando nossas pesquisas à tradição do realismo espanhol, nos
pareceu de extremo valor regressar às origens da picaresca, que tem como
grande marco a publicação da obra El Lazarillo de Tormes, e do primeiro
27 “no es posible sin una dosis de idealismo, el cual consiste en presentar la realidad extirpando los accidentes perturbadores que contiene y disponiéndola de modo que el artista pueda introducir en ella su vida espiritual propia”. 28 “carencia de invención y de amor a la forma y de reverberaciones sentimentales”.
68
romance moderno, Don Quijote de la Mancha, no intuito de corroborar o
motivo pelo qual os romancistas espanhóis do séc. XIX atribuíram um mérito
especial ao gênero romanesco. Zubiaurre afirma que “os próprios escritores,
sobretudo Clarín e a Pardo Bazán, fizeram notar que o romance realista
peninsular deve mais ao ilustre e intenso realismo da picaresca e de
Cervantes que ao modo decimonônico “importado” da França” (ZUBIAURRE,
2000, p.81-82. Tradução nossa)29, e, com base nestas palavras, tentaremos
apresentar uma relação existente entre ambos, expondo suas respectivas
contribuições, em especial as relacionadas à leitura, para as produções
literárias do século XIX que retratam a importância das figuras da leitura e do
leitor, como é o caso do romance La Regenta.
29 “los propios escritores, sobre todo Clarín y la Pardo Bazán, hicieron notar que la novela realista peninsular debe más al ilustre e intenso realismo de la novela picaresca y de Cervantes que al modo decimonónico “importado” de Francia”.
69
1.3. La Regenta e a tradição do realismo espanhol
O romance, de fato, nasce na rua- basta lembrar-se do gênero picaresco (…)- e é em sua origem, vagabunda e viajante. (ZUBIAURRE, 2000, p.92)30
Em oposição aos elementos maravilhosos que compunham os
principais episódios das narrativas de cavalaria, aos ambientes bucólicos e
idealizados freqüentados pelos intelectuais pastores, que se dedicavam a
intermináveis discussões de cunho filosófico, e aos amores e desventuras
amorosas, presentes nas narrativas sentimentais, vimos que, a partir da
segunda metade do século XVI, surge, na Espanha, um novo gênero
literário, a picaresca, consagrado com a publicação da obra La vida de
Lazarillo de Tormes y sus fortunas y adversidades (1554), de autoria
anônima, o que muito contribuiu para a ruptura da literatura idealizante
predominante na época.
Desde o Renascimento, existia uma tendência cada vez mais forte para substituir a tradição coletiva pela experiência individual como arbítrio último da realidade, e essa transposição parece ter assumido importante papel no cenário geral do nascimento do romance. (WATT, 1984, p.21).
Dada a necessidade narrativa de criar uma produção literária que se
aproximasse cada vez mais do verossímil, de forma a substituir a tradição
coletiva pela experiência individual, notamos que El Lazarillo de Tormes vem
ao encontro dessa nova perspectiva, principalmente se levarmos em
consideração o fato de a picaresca atribuir um imensurável valor à
30 “La novela, de hecho, nace en la calle- basta acordarse del género picaresco (…)- y es en su origen, vagabunda y viajera”.
70
individualização dos personagens, sucedida a partir das experiências dos
mesmos, e à presença de referentes históricos bem marcados por dois
elementos essenciais à narração: o tempo e o espaço, mudanças inovadoras
na literatura.
Em Lazarillo de Tormes, o uso da primeira pessoa, no início do
prólogo, que compõe a estrutura externa da obra, nos remete, desde o
princípio, à idéia de um relato autobiográfico. A partir da leitura do prólogo,
evidencia-se a necessidade do narrador, Lázaro adulto, de retratar, com altas
doses de ironia, a vida <<exemplar>> de Lazarillo, personagem de baixo
nível social, apresentando, ao longo do relato, os quatro grandes motivos da
obra: entreter, si considerarmos a leitura uma atividade que promove a
diversão do leitor; ensinar, uma vez que o próprio narrador nos afirma que
sua vida pode servir de exemplo, que os leitores podem aprender com suas
experiências; informar, sobretudo, devido às circunstâncias de miséria e
pobreza, que as pessoas não têm valores, e, por fim, relatar a verdade,
razão relacionada à revelação do <<caso>>.
Lázaro, diferentemente dos personagens leitores dos romances
realistas/ naturalistas, não lê. Não há nenhum episódio na obra em que o
encontramos em contato com a leitura; no entanto, apesar de não atuar
como leitor, atua como escritor, autor de sua própria biografia. Escreve para
ser lido, para que os leitores da obra se conscientizem de sua história de
vida, e, para melhor aclarar esta idéia, citamos um fragmento do prólogo que
justifica essa intenção:
71
Suplico a Vossa Mercê que receba o pobre serviço da mão de quem o fizera mais rico, se seu poder e desejo se conformassem. E pois como Vossa Mercê escreve que se lhe escreva e relate o caso muito por extenso, pareceu-me não tomá-lo pelo meio, senão do princípio, porque se tenha inteira notícia de minha pessoa.31
Estruturada em forma de correspondência, constatamos a existência
de dois destinatários: Vuestra Merced, uma pessoa aparentemente de
estrato social superior ao do narrador, e o leitor. Nela, o narrador irá relatar o
seu <<caso>>; em outras palavras, irá descrever o adultério de sua esposa
com o arcipreste de San Salvador, o que lhe garantiu uma melhor qualidade
de vida com a aquisição de algumas vantagens materiais concedidas pelo
religioso.
Ao longo da narrativa de El Lazarillo de Tormes, o narrador, no intuito
de retratar a traição, empreende um verdadeiro relato retrospectivo de sua
vida, iniciado a partir do primeiro tratado, que parte do nascimento do
personagem Lazarillo às margens do rio Tormes. Citamos:
Pois saiba Vossa Mercê antes de qualquer coisa que a mim chamam Lázaro de Tormes, filho de Tomé González e de Antona Pérez, naturais de Tejares, aldeia de Salamanca. Meu nascimento foi dentro do rio Tormes, por causa do que tomei o sobrenome, e foi desta maneira: meu pai, que Deus o perdoe, tinha cargo de prover a moenda de uma azenha ribeirinha àquele rio, na qual foi moleiro há mais de quinze anos; e estando minha mãe uma noite na azenha, prenha de mim, veio-lhe o parto e pariu-me ali. De maneira que com verdade posso dizer-me nascido no rio. (Ibidem, p.39).
31
A vida de Lazarillo de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Edição, tradução, estudo e notas de Alex Cojorian. Prefácio de José Antonio Pérez. Ed. Bilingüe. Brasília: Círculo de estudos clássicos de Brasília, 2002, p.37.
72
Em uma análise mais aprofundada do fragmento citado, notamos que
o simples fato de o narrador especificar a razão pela qual o personagem
recebera o sobrenome do rio Tormes já nos dá uma ampla idéia de uma das
grandes mudanças promovidas pelo novo gênero, que passa a valorizar a
questão da identidade, da memória. Lázaro não só apresenta uma
explicação sobre as suas origens, como também uma nova perspectiva
literária, caracterizada pela predileção pelas experiências individuais em
oposição às coletivas.
A partir desta transposição, consolida-se na literatura a noção de
personagens, entidades que possuem, dentro da esfera literária, uma história
fundamentada em circunstâncias e espaços determinados, ao contrário do
que sucedia antigamente nos mitos e fábulas, por exemplo, quando <<tipos
gerais>> ou <<protótipos>> se recortavam num universo “predeterminado
por uma convenção literária apropriada” (WATT, 1984, p.23). E ainda é válido
comentar que essa noção de personagens vem ao encontro da proposta da
literatura produzida no século XIX, que visava romper com a tradição
clássica, abruptamente vinculada à preferência pelo geral e pelo universal.
Os escritores realistas/ naturalistas também passam a considerar a
especificidade dos personagens, constituída por meio das experiências
individuais. E, em razão deste notável interesse pela individualização dos
mesmos, nos pareceu compreensível a existência de muitos romances,
principalmente os publicados a partir da segunda metade do século XIX,
dentre os quais podemos destacar Madame Bovary (1856), Tristana (1892) e
La Regenta (1884/1885), que têm como título o nome de protagonistas
73
femininas, o que vem a corroborar a retomada de muitos aspectos, em
especial, os que se relacionam à construção da identidade dos
protagonistas, difundidos pela picaresca e, posteriormente, aprimorados pelo
genial estilo de Cervantes. Consideravam também o fato de os personagens
poderem ser construídos através das próprias experiências do narrador,
como é o caso do mouro Almudena, em Misericordia (1897), extraído
diretamente do mundo real por uma <<feliz coincidencia>>, segundo nos
relata Benito Pérez Galdós no prefácio do romance:
O mouro Almudena <<Mordejai>>, que papel principal tem na ação de Misericordia, foi arrancado do natural por uma feliz coincidência. Um amigo, que como eu acostumava perambular de rua em rua observando cenas e tipos, disse-me que no Oratório do Cavaleiro de Graça pedia esmola um cego esfarrapado, que por sua fachada e linguagem parecia de estirpe maometana. Acudi a vê-lo e fiquei maravilhado com a selvagem rudeza daquele infeliz, que em espanhol escrito com caracteres árabes interrompido a cada instante por juramentos terríficos, me prometeu contar-me sua romântica história em troca de um modesto socorro. Levei-o comigo pelas ruas centrais de Madri (…). Deste modo adquiri esse tipo interessantíssimo, que os leitores de Misericordia encontraram tão real. (GALDÓS, 1990, p.208. Tradução nossa)32
Imbuído pelo propósito de representar a realidade, Galdós recria,
através de suas experiências de leitura33, <<Mordejai>>, retratando os mais
32 “El moro Almudena <<Mordejai>>, que parte principal tiene en la acción de Misericordia, fue arrancado del natural por una feliz coincidencia. Un amigo, que como yo acostumbraba a flanear de calle en calle observando escenas y tipos, díjome que en el Oratorio del Caballero de Gracia pedía limosna un ciego andrajoso, que por su facha y lenguaje parecía de estirpe agarena. Acudí a verle y quedé maravillado de la salvaje rudeza de aquel infeliz, que en español aljamiado interrumpido a cada instante por juramentos terroríficos, me prometió contarme su romántica historia a cambio de un modesto socorro. Le llevé conmigo por las calles céntricas de Madrid (…). De este modo adquirí ese tipo interesantísimo, que los lectores de Misericordia han encontrado tan real”. 33 No próprio fragmento, o escritor comenta-nos a forma com a qual conseguira adquirir esse <<tipo interesantísimo>>. Galdós, por meio da leitura do discurso de Mordejai (sua romântica história de vida), obtém informações e dados, e estes foram fundamentais para que o autor pudesse construir o personagem Almudena, a <<representação>> do mouro Mordejai em Misericordia. E, como vemos, o resultado desta leitura não poderia ser outro: genial.
74
distintos aspectos de sua personalidade, dentre os quais podemos destacar
a linguagem, e, para melhor confirmar esta idéia, citamos um fragmento em
que o mouro Almudena dialoga com a personagem Benigna, evidenciando a
grande pluralidade lingüística existente na sociedade madrilena da época, da
mesma maneira como o fez Cervantes, em Don Quijote. Citamos:
Isto pensava, quando Almudena, voltando de uma meditação calculista, que devia ser muito triste pela cara que fazia, lhe disse: - Não ter tu coisa que peinhorar? - Não, filho: já penhorei tudo, até as cédulas. - Não ter pessoa que priestar ti? (GALDÓS, 1994. p.38. Tradução nossa)34
A prosa de Leopoldo Alas, segundo Ricardo Senabre (2001), também
conta com a ilustre e complexa mescla de modernidade e populismo. O
escritor reconhece que, dada a sua fervorosa inclinação às atividades
jornalísticas, foi praticamente impossível dedicar-se a um estilo
exclusivamente nobre, e que certas formas anti-acadêmicas acabavam
brotando de sua pluma, sem que o mesmo pudesse evitá-las ou contê-las.
Senabre também destaca que o uso do discurso indireto livre permitiu que
Clarín representasse, sem a necessidade de recorrer ao diálogo, tal como o
fez Galdós em Misericordia, o estilo e o vocabulário próprios de cada
personagem, uma inovação cervantina. Sendo assim, podemos afirmar que a
linguagem tornou-se, para estes escritores, um precioso tesouro para a
construção da narrativa moderna, pois permitiu uma maior riqueza de
34
“Esto pensaba, cuando Almudena, volviendo de una meditación calculista, que debía de ser muy triste por la cara que ponía, le dijo: - ¿No tenier tú cosa que peinar? - No, hijo: todo empeñado ya, hasta las papeletas. - ¿No haber persona que priestar ti?”
75
descrições e imagens, proporcionando uma verdadeira renovação estética
nos textos literários da época.
Desta forma, poderíamos explicar a sensação de o personagem ser
para os leitores uma figura tão real, tão próxima da realidade, e, partindo
destas constatações, não se torna gratuita a forma como o romancista do
século XIX “anuncia a sua intenção de representar um personagem como
indivíduo em especial, atribuindo-lhe um nome, exatamente como acontece a
uma pessoa real” (WATT, 1984, p.26). Neste sentido, conceder ao
personagem um nome próprio, em outras palavras, a mais pura expressão
verbal da identidade de cada indivíduo, seria possivelmente uma tentativa de
aproximação do mundo real, de forma a criar no espaço literário uma
sensação de reconhecimento, ou melhor, de identificação e não de
afastamento da realidade.
É evidente que, na literatura anterior ao século XVI, os <<tipos>>
possuíam um nome, uma identificação, porém o que pretendemos colocar
em questão é a não tentativa, por parte dos escritores de antigamente, de
individualizá-los. Não havia uma preocupação em especificar o que, hoje,
denominamos de personagens, e, devido à falta de determinação, a
picaresca assume um papel definitivo na história da literatura espanhola, pois
é com este gênero literário que surge a primeira tentativa do romance
moderno, dada a intenção de individualizar os protagonistas.
Outra grande mudança promovida relaciona-se à questão dos
espaços. Estes, diferentemente dos espaços das narrativas idealizantes, que
geralmente não estabeleciam vínculos de conexão com a realidade, são bem
76
definidos. Já no prólogo, ao relatar o nascimento e as origens, <<el linaje>>
de Lazarillo, vemos uma nítida preocupação por parte do narrador em situar
os leitores da obra em um espaço, assim com um tempo (período
correspondente à infância do personagem), altamente específico: o rio
Tormes, em Salamanca.
No primeiro tratado, também podemos notar esta determinação
espacial: “Saímos de Salamanca, e chegando à ponte, está a sua entrada
um animal de pedra, que quase tem forma de touro...” (Ibidem, p.45), que se
aprimora ao longo dos sete tratados. Desta forma, os leitores de El Lazarillo
de Tormes podem perfeitamente acompanhar a evolução espaço-temporal
do personagem que perpassou, em sua penosa trajetória como serviçal,
pelos mais distintos lugares que constituíam a geografia da Espanha naquele
período.
Em La Regenta também identificamos a importância que assume o
elemento espaço na narrativa de Leopoldo Alas “Clarín”. No primeiro capítulo
da obra, pudemos observar, por meio de uma descrição minuciosa que nos
dá noção de uma imagem quase cinematográfica do lugar, um retrato de
Oviedo no final do século XIX, cidade que serviu de cenário para uma das
mais complexas tramas literárias, devido à existência de distintos níveis
narrativos, ambientes sociais e intensos conflitos interpessoais. Citamos:
La heroica ciudad dormía la siesta. El viento sur, caliente y perezoso, empujaba las nubes blanquecinas que se rasgaban al correr hacia el norte. En las calles no había más ruido que el rumor estridente de los remolinos de polvo, trapos, pajas y papeles que iban de arroyo en arroyo, de acera en acera, de esquina en esquina revolando y persiguiéndose, como mariposas que se buscan y huyen y que el aire envuelve en sus
77
pliegues invisibles (…). Vetusta, la muy noble y leal ciudad, corte en lejano siglo, hacía la digestión del cocido y de la olla podrida, y descansaba oyendo entre sueños el monótono y familiar zumbido de la campana de coro, que retumbaba allá en lo alto de la esbelta torre en la Santa Basílica. (ALAS, 1997, p.55).
A todo o momento, Clarín insere os seus leitores em uma atmosfera
bem próxima àquela de que foi testemunho. Devido à proposta realista de
aproximar-se cada vez mais da realidade, verificamos que o espaço, um dos
elementos mais importantes para a edificação da ficção realista no século
XIX, apresenta-se de forma determinada, específica, o que nos faz
compreender o fato de o autor, assim como Emilia Pardo Bazán, ter atribuído
extremo valor à picaresca.
No decorrer da narrativa de La Regenta, o leitor tem o privilégio de
percorrer os mais distintos lugares que compõem a arquitetura de Vetusta,
desde os espaços internos, como os freqüentados salões do palácio dos
Vegallanas, onde ocorriam as maiores festas da sociedade vetustense, até
os espaços externos, como grande parte das estreitas e úmidas ruas do
bairro da Encimada e as populosas e tumultuadas ruas do Boullevard, além
dos espaços intermediários, como os corredores da imponente e histórica
catedral da cidade.
Em Tristana, vemos igualmente a posição de destaque que assume o
espaço na narrativa de Benito Pérez Galdós. Muito mais que situar
espacialmente o leitor da obra, percebemos que o espaço, interagindo com
outro recurso essencial à narrativa oitocentista, a descrição, também
proporciona uma nítida idéia da condição social daqueles seres que por ali
78
circulam. No capítulo VI do romance, ao empreender uma minuciosa
descrição da casa de Tristana e don Lope, o narrador revela-nos a crise
financeira vivenciada pelos protagonistas, que têm de vender seus bens para
continuar garantindo o mínimo de condições necessárias para a
sobrevivência. Citamos:
Os horizontes da vida fechavam e enegreciam cada dia mais adiante da senhorita de Reluz, e aquele lugar desagradável, frio de afetos, pobre, vazio em absoluto de ocupações gratas, sobrecarregava-lhe o espírito. Porque a casa, a qual brilhava restos de instalações que foram luxuosas, ia ficando mais feia e triste que se possa imaginar; tudo anunciava penúria e decadência; nada do quebrado ou deteriorado se substituía nem se reparava. (GALDÓS, 2004, p.67. Tradução nossa)35
Outra importante contribuição para o realismo/ naturalismo espanhol
foi o livro El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, de Miguel de
Cervantes. Dentre um amplo universo de propostas temáticas, decidimos
dedicar-nos à leitura, considerada o recurso mais precioso para a vida do
protagonista leitor Alonso Quijano. Muito mais que uma prática essencial à
instrução, o ato de ler é tido principalmente como algo imprescindível à
natureza humana dos protagonistas leitores, e muitos escritores realistas/
naturalistas do séc. XIX, dentre eles o autor de La Regenta, resgataram essa
importante questão, crucial para a composição de suas obras.
Conhecido como um libro hecho de libros, por apresentar, em seu
conjunto, uma ampla mostra de vários gêneros literários da época, vimos que 35
“Los horizontes de la vida cerraban y ennegrecían cada día más delante de la señorita de Reluz, y aquel hogar desapacible, frío de afectos, pobre, vacío en absoluto de ocupaciones gratas, le abrumaba el espíritu. Porque la casa, en la cual lucía restos de instalaciones que fueron lujosas, se iba poniendo de lo más feo y triste que es posible imaginar; todo anunciaba penuria y decaimiento; nada de lo roto o deteriorado se componía ni se reparaba”.
79
o ato de ler assume um duplo papel de destaque: o primeiro relacionado à
construção do romance em si, ou seja, de toda sua estrutura, e, neste ponto,
é oportuno comentar a experiência do próprio Cervantes como autor-leitor e
critico literário, e o segundo, relativo à composição de dom Quixote,
personagem que lê para viver.
Acreditamos que, a partir das leituras realizadas (narrativas de
cavalaria, pastoris, mouriscas, picarescas, sentimentais, exemplares e
outras) e do conhecimento construído por meio das mesmas, foi que o autor
pôde dar vida aos episódios mais famosos de toda a obra: “Molinos de
viento”, “La novela del Curioso Impertinente”, “El cuento de la pastora
Marcela”, “La grande aventura de la Cueva de Montesinos”, “La Conquista
del yelmo de Mambrino” e “Los extraños acontecimientos en la venta”, que,
na verdade, representam um resumo dos gêneros narrativos (ainda) vigentes
naquele período. E, considerando esta variedade literária presente nas
encantadoras páginas de Don Quijote, nos pareceu interessante contemplar
a idéia de que as leituras formam não só a base para a criação de sua obra,
como também a base de um dos maiores protagonistas da história universal.
Em nossos estudos, notamos que a leitura pode, muitas vezes,
transformar o personagem-leitor em um herói trágico, em um indivíduo
amargurado pelo fracasso e derrota de suas experiências pessoais. Alonso
Quijano é uma grande prova disto. Dada a leitura exaustiva de inúmeros
livros de cavalaria, transforma-se em Dom Quixote, o cavaleiro andante mais
conhecido de todos os tempos, e, para explicar melhor a transformação
sofrida pelo personagem, nos pareceu de extrema importância citar uma
80
cena, relacionada à leitura, em que o personagem de Cervantes, ao ler os
textos de forma desmedida e compulsiva, perde a razão, o juízo, e passa a
dar vida ao universo ficcional das narrativas de cavalaria, tornando-se o
protagonista principal de sua própria história. Citamos:
(...) passou as noites lendo de claro em claro, e os dias de turvo em turvo; e assim, o pouco dormir e o muito ler, se lhe secaram de tal maneira o cérebro, que acabou perdendo o juízo. Sua fantasia preencheu-se de tudo aquilo que lera nos livros, assim de encantamentos como de contendas, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas e disparates impossíveis; e se lhe assentaram de tal modo na imaginação que era verdade toda aquela trama das sonhadas invenções que lia, que para ele não havia outra história mais certa no mundo. (CERVANTES SAAVEDRA, 1961, p.5. Tradução nossa)36
E também:
(…) pareceu-lhe conveniente e necessário, assim, para o aumento de sua honra como para o serviço de sua república, transformar-se em cavaleiro andante, e sair pelo mundo com armas e cavalo em busca de aventuras e a exercitar-se em tudo aquilo que havia lido (...). O coitado se imaginava coroado pelo valor do seu braço, pelo menos no império de Trapisonda; e assim, com estes tão agradáveis pensamentos, impelido pelo estranho gosto que neles sentia, deu-se pressa em concretizar seu intento. (Ibidem, p.6. Tradução nossa)37
Neste episódio de Don Quijote, muito mais que uma prática, que um
exercício, a leitura está representada como uma forma de vida, como
36 “En resolución, él se enfrascó tanto en su lectura, que se le pasaban las noches leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho leer, se le secó el celebro, de manera que vino a perder el juicio. Llenósele la fantasía de todo aquello que leía en los libros, así de encantamentos como de pendencias, batallas, desafíos, heridas, requiebros, amores, tormentas y disparates imposibles; y asentósele de tal modo en la imaginación que era verdad toda aquella máquina de aquellas soñadas invenciones que leía, que para él no había otra historia más cierta en el mundo. 37 “(…) le pareció convenible y necesario, así para el aumento de su honra como para el servicio de su república, hacerse caballero andante, y irse por todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo aquello que él había leído (...). Imaginábase el pobre ya coronado por el valor de su brazo, por lo menos, del imperio de Trapisonda; y así, con estos tan agradables pensamientos, llevado del extraño gusto que en ellos sentía, se dio prisa a poner en efecto lo que deseaba”.
81
elemento indispensável à existência do personagem-leitor. Neste aspecto,
vimos que o ato de ler não só alimenta o imaginário do protagonista em
questão, mas também contribui para a construção de um universo, ou
melhor, de uma realidade imaginária que mais pode ser compreendida como
um refúgio contra a hostilidade do mundo. Alonso Quijano aloja-se nesta
esfera idealizada e, ao longo do processo de quijotização, permanece
convicto de seus deveres e obrigações para com a sociedade a qual se
empenhara em defender.
No romance La Regenta, Leopoldo Alas também apresenta como
tema central o fracasso e a desilusão da principal protagonista da obra: Ana
Ozores. Da mesma maneira que Alonso Quijano, a heroína de Clarín vê-se
constantemente frustrada e amargurada pelas atrozes imposições da
sociedade vetustense que arduamente condenava suas aspirações e “seus
fúteis esforços para alcançar uns ideais pouco realistas”38 (MEDINA, 1979,
p.30. Tradução nossa), demonstrando, assim, o resgate de um importante
tema inaugurado por Cervantes e retomado por escritores do século XIX
como Galdós, em Tristana, e Eça de Queirós, em O crime do padre Amaro.
Dom Quixote, durante sua trajetória como cavaleiro andante, quer
impor seu ideal sobre as convenções sociais e sobre as mazelas da vida
cotidiana, atuando como uma espécie de redentor humano de uma prosaica
realidade que todos os dias o massacra e o ultraja. O personagem se
converte, portanto, em campeão da honra, da bondade e da justiça,
encantando milhões de leitores pela forma idealista como via seu mundo.
38 “his futile attempts to realize his “unrealistic” ideals”.
82
Desta forma, para o generoso cavaleiro poder sobreviver às incuráveis
dores provocadas por sua maior inimiga, a esmagadora realidade, e a tudo
aquilo que o angustiava e o fazia sofrer, fora preciso ler, fora necessário
adentrar nas narrativas de cavalaria, sobretudo nas mirabolantes páginas de
Amadís de Gaula, para melhor viver, em seu universo imaginário, tudo aquilo
que o havia fascinado e encantado de forma arrebatadora. E, assim, Dom
Quixote, acompanhado de seu fiel escudeiro, Sancho Panza, sai em busca
de novas aventuras, de novas experiências, e são justamente estes
conhecimentos construídos por meio das leituras que motivaram os
protagonistas leitores do romance naturalista La Regenta a viverem no real
os efeitos acarretados pelo ato de ler, comprovando o quão fundamental foi o
primeiro romance moderno para a formação do realismo/ naturalismo
espanhol.
Miguel de Cervantes, por meio da burlesca figura de Dom Quixote
desconstrói, dentre outros gêneros, a narrativa cavaleiresca e todos os seus
elementos maravilhosos, dando-lhes um tom cômico, irônico e, muitas vezes,
grotesco, dada a violência e agressividade de muitas das cenas que
compõem o livro.
Tudo, o amor cortês, o código de valores do herói, as batalhas e as
origens, fora utilizado como objeto de paródia em Don Quijote com o objetivo
de criticar o gênero cavalheiresco e seu estilo falso e descomedido. É
oportuno comentar que o processo de loucura de Quixote, o recurso mais
crucial de todo o romance, nos pareceu ter sido um mecanismo
propositalmente utilizado por Cervantes com a intenção de exaltar a
83
compulsão do personagem pela leitura, revelando-nos, assim, os efeitos
ocasionados por ela. E, para melhor aclarar esta idéia, citaremos um
fragmento em que Alonso Quijano vende o pouco que possuía para comprar
novos livros e, desta forma, dedicar-se ao ato de ler:
É, pois, de saber que este sobredito fidalgo, nos minutos em que estava ocioso (que eram a maior parte do ano), dedicava-se à leitura de livros de cavalaria, com tanta paixão e gosto, que se esqueceu por completo do exercício da caça e até mesmo da administração de sua fazenda; e a tanto chegaram a sua curiosidade e desatino, que vendeu muitos alqueires de terra de plantio para comprar livros de cavalaria, levando para casa todos que pôde encontrar. (CERVANTES SAAVEDRA, 1961, p.4. Tradução nossa)39
Novamente, resgatamos a idéia de que a leitura assume uma notável
importância na obra, pois é a partir desta atividade tão essencial ao ser
humano que o personagem-leitor Alonso Quijano irá construir o
conhecimento para viver novas experiências, dando vida a tudo aquilo que
havia lido nas narrativas de cavalaria.
Por meio da leitura, vemos não só o nascimento de um dos maiores
protagonistas da literatura, Dom Quixote, mas também o surgimento de um
mundo imaginário, criado pelo mesmo, onde perpetuam a virtude, a
franqueza e o amor, e talvez seja por estas características e pela
imensurável paixão pelo ato de ler que Alonso Quijano se torna um dos
maiores ou senão o maior exemplo de figura do leitor. Daí, a extrema
39 “Es, pues, de saber que este sobredicho hidalgo, los ratos que estaba ocioso, que eran los más del año, se daba a leer libros de caballerías, con tanta afición y gusto, que olvidó casi de todo punto el ejercicio de la caza y aun la administración de su hacienda. Y llegó a tanto su curiosidad y desatino en esto, que vendió muchas hanegas de tierra de sembradura para comprar libros de caballerías en que leer, y así, llevó a su casa todos cuantos pudo haber dellos”.
84
importância de resgatá-lo para fundamentar nossos estudos sobre as
representações imaginárias do ato de ler na ficção e as figurações dos
leitores no romance naturalista de Leopoldo Alas.
Antes mesmo da publicação de La Regenta, as figuras da leitura e do
leitor já ocupavam um papel de grande destaque em duas importantes obras
da literatura espanhola, El Lazarillo de Tormes e Don Quijote de la Mancha,
e, com as diversas transformações políticas, econômicas, sociais e
educacionais ocorridas na Europa oitocentista, o que proporcionou uma
difusão maior do texto impresso e o crescimento do público leitor, estas
figuras reaparecem com maior intensidade e expressão nos romances
publicados a partir da segunda metade do século XIX.
A publicação de obras como Madame Bovary, O primo Basílio,
Tristana e La Regenta, coincidentemente, correspondem ao período em que
houve um considerável ingresso do público leitor, em especial do feminino,
no mundo das letras. Devido ao fomento de muitas campanhas educacionais
na Europa, o aumento das tiragens e a circulação de livros, as mulheres,
especialmente, passam a ter um maior acesso à literatura produzida na
época, e, em razão disto, não nos surpreende o fato de encontrarmos na
atmosfera literária de vários romances a figura de muitas mulheres leitoras.
Sendo assim, antes de iniciarmos nossas análises sobre as figuras da
leitura e do leitor no romance naturalista La Regenta, nos pareceu oportuno
considerar um dos acontecimentos mais importantes para a difusão destas
nas produções literárias do século XIX: a democratização do texto impresso.
85
II. LA REGENTA: O RETRATO DE UMA SOCIEDADE LEITORA
2.1. Do acesso restrito à democratização do texto impresso
No mundo ocidental, a leitura “constituía-se, da Antigüidade até a
Idade Média, em exercício para uma elite erudita” (LOBO, 1992, p.231), ou
seja, era uma atividade restrita e limitada, destinada somente a uma
pequena parcela da sociedade, composta por membros da alta nobreza e do
clero. No Renascimento, com o surgimento da nova técnica desenvolvida por
Johannes Gutenberg e com a difusão da alfabetização através das escolas,
essa situação se modifica, e esta mudança, sem dúvida, muito contribuiu
para a formação de um novo panorama social, político e cultural na Europa.
A partir destas transformações, a cópia manuscrita40 deixa de ser o
único recurso disponível para garantir a multiplicação e a circulação dos
textos no cenário europeu, e por reduzir bastante o custo da fabricação do
livro, o tempo necessário para a sua produção, que era longo ao tempo do
manuscrito, a invenção de Gutenberg possibilita, já na primeira metade do
século XV, a circulação dos textos em uma escala antes impossível e
inimaginável. Com isso, cada leitor pode ter acesso a um número maior de
livros, e cada livro pode atingir um número maior de leitores.
40
É oportuno comentar que a cópia manuscrita, geralmente realizada pelos monges, era uma prática artesanal, lenta e, muitas vezes, imprecisa, pois se cometiam muitos erros. Além disso, os livros eram tão caros que só os mais nobres e o clero tinham dinheiro suficiente para comprá-los e se instruir.
86
Nos séculos seguintes, XVI e XVII, notou-se que essa disposição
ainda se mantém muito presente na sociedade européia, que, por sua vez,
teve de reorganizar seus tradicionais sistemas políticos e sociais em
decorrência do surgimento de novas cidades, ao invés de feudos, e de
regiões cada vez mais voltadas às práticas comerciais. Neste caso, tanto a
escrita como a leitura tornam-se atividades essenciais ao homem,
principalmente para aqueles que se empenham em fortalecer o capitalismo.
Viva, Diderot!, gritaram e depois: <<Bravo Voltaire! Aos menos eles são contra a ignorância e o fetichismo do povo. Mostram-lhe os caminhos da liberdade! Emancipam-no! Em primeiro lugar, que todo o mundo saiba ler jornais! Não mais analfabetos! Que votem! Que leiam!>> (tradução nossa) 41.
No século XVIII, período marcado pelo predomínio das idéias
iluministas42, pelas fervorosas manifestações burguesas e pelo processo de
industrialização, o texto impresso passa a exercer um papel definitivo “nas
adesões à revolução, no interesse pela política, nas diversas expressões de
rebeldia, e até na invasão, por parte das mulheres ou dos burgueses e
trabalhadores, de ordens da vida social antes vedadas a eles” (CATELLI,
41 CÉLINE, L.-F. Viaje al fin de la noche [1932]. Trad. de Carlos Manzano. Barcelona: Edhasa, 1993. In: CATELLI, Nora. Testimonios tangibles- Pasión y extinción de la lectura en la narrativa moderna. Barcelona: Editorial Anagrama, 2001. p.17. “¡Viva, Diderot!, gritaron y después: <<¡Bravo Voltaire! ¡Al menos ésos son tipos que no dejan reventar en la ignorancia y el fetichismo al buen pueblo! ¡Le muestran los caminos de la libertad! ¡Lo enmancipan! En primer lugar, ¡que todo el mundo sepa leer los periódicos! ¡No más analfabetos! ¡Que voten! ¡Que lean!>>”. 42 É importante comentar que tanto Voltaire como Diderot acreditavam na idéia de que o povo poderia conquistar sua liberdade por meio da leitura, e, devido a isto, defendiam veemente as propostas de escolarização da nação, o que muito contribuiu para o fim da ignorância e da alienação do povo, manipulado pelo regime monárquico. A partir daí, o proletariado, principalmente, passou a ver a instrução como um caminho de emancipação, ou seja, passou a vê-la como instrumento de luta ideológica contra a política e o sistema vigentes.
87
2001. p. 28. Tradução nossa)43. Posteriormente à consolidação do
capitalismo e às diversas transformações ocasionadas pelo sistema, nasce
na Europa uma importante expressão popular, antes reprimida pela
arbitrariedade dos governos conservadores. Neste período, muitas vozes
ocultas, através de jornais, revistas e folhetins, começam a se manifestar,
todas a favor de uma sociedade mais livre, a qual os indivíduos pudessem
ter, de fato, todos os seus direitos reconhecidos e não oprimidos.
A literatura, que até então pouco se preocupava com as expressões
políticas e sociais, passa a ser, sobretudo a partir da segunda metade do
século XVIII, um importante veículo de transmissão e discussão de idéias,
uma vez que questões relacionadas à atualidade são incluídas nos textos
literários. Sendo assim, desde a Revolução Francesa, principal
acontecimento do século XVIII, o homem passa a conquistar, a partir do texto
impresso, uma forte presença no espaço político e social, ultrapassando os
limites de suas capacidades individuais, e é nesse contexto burguês que
vamos verificar um dos maiores acontecimentos do século XIX: o
crescimento do público leitor.
No século XIX, a rápida expansão da imprensa popular, acompanhada
da extraordinária proliferação de todos os gêneros, é “o fenômeno mais
importante do movimento editorial do século XIX” (CHARTIER, Anne-Marie &
HÉBRARD, Jean, 1995. p.30). Nesta época, jornais como Le Figaro, The
Times e La Gaceta se fortalecem na Europa e no mundo inteiro, estimulando
43 “En las adhesiones a la revolución, en el interés por la política, en las diversas expresiones de rebeldía, y hasta en la invasión, por parte de las mujeres o de los burgueses y trabajadores, de órdenes de la vida social antes vedados”.
88
o crescimento do público leitor cada vez mais interessado na aquisição da
informação e do conhecimento. Outro excelente exemplo, que marca a
importância dos meios de comunicação no processo de democratização do
texto e do surgimento de um novo público leitor, é o jornal cubano La Aurora,
publicado em 22 de outubro de 1865 por Saturnino Martínez. Charuteiro e
poeta, Martínez teve a idéia de publicar um jornal para os trabalhadores da
indústria de charuto El Fígaro, abordando questões relacionadas à política e
à cultura; publicava artigos sobre ciência e literatura (poemas e contos). No
jornal, foram publicados também trabalhos dos principais escritores e
intelectuais cubanos da época, além de traduções de autores europeus como
Chateaubriand, críticas de livros, peças teatrais e denúncias sobre as
péssimas condições de trabalho. Os trabalhadores das fábricas de charutos
pagavam um leitor, que se sentava junto às bancadas de trabalho e lia alto
enquanto eles manuseavam o fumo. O material dessas leituras, escolhido de
antemão pelos operários, variava, segundo Manguel, “(...) de histórias e
tratados políticos a romances e coleções de poesias clássica e moderna”
(MANGUEL, 2002, p.135), e o sucesso das leituras públicas, realizadas nos
próprios locais de trabalho, foi tão surpreendente que outras fábricas
começaram a seguir o exemplo da El Fígaro, fato que corroborou a grande
capacidade de organização e entrosamento das classes operárias no século
XIX, período determinado pelo crescimento das idéias socialistas e pela
expansão dos movimentos trabalhistas.
Marcado, portanto, pelo fortalecimento da imprensa, pela urbanização
das novas cidades, pela industrialização e pela organização da vida pelos
89
parâmetros da burguesia, o século XIX assume, indiscutivelmente, um
importante papel na história da leitura no mundo ocidental, contribuindo,
assim, com o notável ingresso de um novo público no mundo das letras,
dentre os quais podemos destacar o feminino.
Com a massiva expansão do texto impresso, um dos públicos mais
favorecidos no século XIX foi o feminino. Motivadas com a formação de um
novo panorama social, cultural e educacional, as mulheres passam a
ingressar, com muito prazer, no mundo da leitura, tornando-se,
indiscutivelmente, expressivas consumidoras da literatura popular, em
especial do romance44. Este, por sua vez, é constantemente lido, relido,
decorado, citado e recitado, e sua leitora se identifica plenamente com as
personagens, decifrando “sua própria vida através das ficções” (CAVALLO &
CHARTIER, 2002, p.29).
Por serem consideradas criaturas de capacidade intelectual limitada,
imaginativa, frívola e emotiva, os romances eram, em sua maioria,
produzidos para o público feminino, e estes, dado o tratamento da vida
íntima, faziam parte da esfera privada a qual estavam submetidas as
mulheres burguesas naquele período. Já as leituras práticas e instrutivas,
que se distanciavam desse universo mágico presente nos romances, eram
destinadas aos homens, principalmente por se referirem aos assuntos
públicos, que geralmente se relacionavam à política.
44 Segundo Watt, em Realismo e forma romanesca (1984, p.45-46), o romance pode ser definido como relatório completo e autêntico da experiência humana, uma vez que proporciona a seus leitores pormenores da história, tais como a individualidade dos personagens e as particularidades do tempo e dos espaços, ambos altamente determinados pelo narrador.
90
Imbuídas por um espírito leitor, muitas mulheres passam a dedicar o
seu tempo para ler, desejar e sonhar com os mundos imaginários ou
concretos que lhes chegavam por meio da leitura, compensando-as das
frustrações e das sensações de isolamento que sentiam devido ao grande
tempo de permanência nos espaços privados. Com isso, é válido comentar
que a expansão do número de leitores de romances no século XIX deve ser
atribuída não só à crescente escolarização das classes médias, mas
principalmente à necessidade de ocupar o tempo com lazer (entretenimento),
compensando, assim, o tempo vivido na privacidade doméstica.
Por outro lado, se analisarmos a história da leitura no século XIX,
veremos, segundo as idéias de Chartier e Cavallo (2002), que o ingresso do
público feminino no mundo das letras como leitoras e, principalmente, como
escritoras não foi um acontecimento pacífico. Embora o próprio Platão
tivesse defendido a idéia de que a educação seria um direito igual para
ambos os sexos na tão idealizada república, um de seus discípulos,
Teofrasto, argumentava que se deveria ensinar às mulheres apenas o
suficiente para administrar um lar, porque a educação avançada “transforma
a mulher numa comadre preguiçosa e briguenta”45. A partir desta visão,
partilhada por alguns autores, vimos que, para muitos homens, seria melhor
que uma mulher não compreendesse muito do que lesse nos livros, já que
nada seria mais insuportável do que a instrução feminina. E combater essa
lamentável visão foi, sem dúvida, uma das principais dificuldades
45 Ver Platão. “Laws”. ed. Rev. R.G. Bury (Cambrigde, Mass., Londres, 1994), VII, 804 c-e. In: MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.256
91
enfrentadas pelas mulheres oitocentistas, principalmente para aquelas que
se dedicavam a produzir uma literatura voltada para o universo feminino.
Ao longo do século XIX e até bem entrado o XX, a Igreja católica não deixa de estigmatizar o perigo de determinados gêneros literários como o romance e, mais particularmente o romance naturalista. A abundância de obras, folhetos e sermões, muitos deles publicados na tipografia católica, é reveladora das preocupações da Igreja frente ao que considera como uma conseqüência <<perversa>> do racionalismo e do determinismo. (HIBBS-LISSORGUES, 1989, p. 12. Tradução nossa)46.
Durante muitos séculos, a leitura feminina foi submetida a um severo
controle que justificava a mediação necessária do clero e de poderes
absolutos, por temor às interpretações selvagens e grotescas que podiam
levá-las ao caminho da perdição. Satirizando essa intervenção, Voltaire no
panfleto satírico “Sobre o terrível perigo da leitura” escreve ironicamente que
os livros “dissipam a ignorância, a custódia e a salva-guarda dos estados
bem policiados”47, com o intuito de evidenciar a existência da censura como
uma forma, ou melhor, como uma prática bastante utilizada pelas
autoridades para assegurar o poder público. E, com o objetivo de ilustrar um
pouco mais a censura ao conteúdo improper, citamos o fato de a junta militar
liderada pelo general Augusto Pinochet ter proibido, em 1981, a leitura de
Don Quijote de la Mancha no Chile, alegando que o livro continha “um apelo
pela liberdade individual e um ataque à autoridade instituída” (MANGUEL,
46 “A lo largo del siglo XIX y hasta bien entrado el XX, la Iglesia católica no deja de estigmatizar el peligro de determinados géneros literarios como la novela y, más particularmente la novela naturalista. La abundancia de obras, folletos y sermones, muchos de ellos publicados en la prensa católica, es reveladora de las preocupaciones de la Iglesia frente a lo que considera como una consecuencia <<perversa>> del racionalismo y del determinismo”. 47 Ver Voltaire, “De l’horrible danger de la lecture”, em Mémoires, suivis de mélanges divers et precédés de “Voltaire Démiurge” par Paul Souday (Paris, 1927).
92
2002, p. 320), ou seja, conteúdos ameaçadores para a manutenção do
regime ditatorial.
O controle ao conteúdo impróprio também está presente no universo
literário de várias obras. Emma Bovary, personagem do romance Madame
Bovary, desde sua adolescência, foi uma grande amante da leitura, e,
percebendo a frenética compulsão da nora pela atividade (a “fúria de ler”), a
sogra de Emma argumentava que os romances lidos por ela deveriam ser
proibidos, pois contaminavam sua alma. Consciente, então, do perigo que
estes poderiam lhe causar, a mãe tenta convencer o filho, Charles Bovary, a
cancelar a assinatura de livros e revistas que Emma mantinha junto a uma
biblioteca, fato que nos evidencia uma constante preocupação em controlar o
conteúdo lido pelas mulheres e o acesso público a eles� por empréstimos.
O conhecimento em demasia, para muitas autoridades religiosas,
poderia representar o desestruturamento do juízo, a contaminação da alma,
podendo levar não só mulheres como também muitos homens ao caminho
da perdição. Sendo assim, o conteúdo destinado ao público feminino deveria
ser cuidadosamente selecionado para que esse não pudesse ocasionar
danos à natureza feminina. E, dentro desse contexto de contenção e, muitas
vezes, de censura do texto impresso, nos pareceu interessante também
destacar um episódio do romance O crime do padre Amaro, de Eça de
Queirós, em que as fervorosas beatas, D. Josefa Dias, D. Maria de Assunção
e D. Joaquina Gansoso, decidem queimar, na casa da S. Joaneira, com total
autorização dos três padres, Natário, Amaro e o Cônego Dias, um volume da
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revista portuguesa Panorama, além de um lenço, uma luva e uma cigarreira,
pertencentes ao “ímpio”, o ex-noivo de Amélia.
João Eduardo, autor do polêmico artigo publicado no jornal Voz do
Distrito, que criticava a tirânica atuação do clero na sociedade portuguesa,
em especial em Leiria, fora excomungado pela Igreja Católica, após ter
agredido fisicamente o padre Amaro. Toda a cidade levantou-se contra o
jovem que, movido por um desgostoso sentimento de perda e por ciúmes
incontroláveis, teve sua vida marcada pela fanática perseguição de seus
inimigos. Rotulado como “o excomungado” por denegrir a moral e conduta
dos padres, a presença de João Eduardo passa a se tornar indesejável, e
igual a sua existência, todos os seus objetos passam a ser veemente
condenados, fato que explica a grande aversão de Natário e a exaltação das
beatas ao encontrarem, na casa de S. Joaneira, um exemplar da revista lida
por ele:
Todos se voltaram, na surpresa que dava aquela indignação, a olhar o largo volume encadernado que Natário indicava com a ponta do guarda-chuva, como um objeto abominável. D. Maria da Assunção aproximou-se logo de olho reluzente, imaginando que seria alguma dessas novelas, tão famosas, em que se passam coisas imorais. E Amélia chegando-se também, disse, admirada de tal reprovação: - Mas é o Panorama... É um volume do Panorama... - Que é o Panorama vejo eu, disse Natário com secura (...). Parece incrível que as senhoras não saibam que esse homem, desde que pôs as mãos num sacerdote, está ipso facto excomungado, e excomungado todos os objetos que lhe pertencem!. (QUEIRÓS, 2004, p.209).
Aqueles objetos, em especial o volume do Panorama, estavam em
plena desarmonia com a casa (espaço privado), lugar onde deveria haver
tranqüilidade e paz, e com os personagens (não-leitores da revista) que
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compunham esse espaço. Tais pertences não faziam parte daquele
ambiente, logo, deveriam ser todos efetivamente destruídos. Desta forma,
tomadas por um “furor santo”, as mulheres decidem, num auto-de-fé, dar fim
a todos os vestígios deixados pelo apaixonado João Eduardo:
D. Josefa Dias acudiu logo: - Mas nós é que não podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por cima das mesas coisas excomungadas. - É destruir! Exclamou D. Maria da Assunção. É queimar, é queimar! D. Joaquina Gansoso arrastara Amélia para o vão da janela, perguntando-lhe se tinha outros objetos pertencentes ao homem. Amélia, atarantada, confessou que tinhas algures, não sabia aonde, um lenço, uma luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha. - É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada. A sala vibrava com a gralhada das senhoras, arrebatadas num furor santo. D. Josefa Dias, D. Maria da Assunção falavam com gozo do fogo, enchendo a boca com a palavra, numa delícia inquisitorial de exterminação devota. (Ibidem, p. 210).
Na segunda metade do século XIX, notamos que essas intervenções e
censuras, geralmente feitas pela Igreja, pelo Estado e, muitas vezes, pela
própria família, ainda prevaleciam. Muitos romances lidos principalmente
pelas mulheres burguesas foram veemente criticados pelas autoridades e
ordens religiosas por distorcerem a imagem da mulher no século XIX, ao
pintá-la, por meio de uma linguagem erótica, como “a adúltera com as cores
mais atraentes” (CHARTIER & HÉBRARD, 1995, p.68) e também por
conduzi-las a buscar sua realização individual, ainda que para isso fosse
necessário seguir uma conduta contrária aos princípios cristãos, e, dentro
dessa atmosfera, iluminada pelas chamas das inúmeras fogueiras
inquisitoriais, muitas mulheres, tanto na Europa como na América Latina,
através do texto literário, passam a desempenhar um novo papel na
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sociedade, além daquele destinado à família e ao casamento: o de sujeito
criador. Estas passam a produzir literatura.
Neste processo de produção, notamos que certos tipos de textos, os
pessoais (as correspondências e os bilhetes) são extremamente pertinentes
para o estudo do desenvolvimento da escrita feminina, sendo considerados
uma das primeiras e mais importantes formas de auto-representação do “eu”
feminino.
Nesses textos, geralmente escritos por e para mulheres, as escritoras
nos revelam seus interesses individuais, familiares e políticos, ao mesmo
tempo em que dão testemunho das opiniões e dos costumes presentes na
sociedade. É válido ressaltar que é através desta modalidade de texto que as
mulheres do século XIX se sentem habilitadas a expressar diretamente a
visão que têm de si mesmas e de seu lugar na sociedade, transmitindo uma
idéia muito pessoal da época e do ambiente em que viveram.
A escrita consolidou uma das maiores preocupações femininas
daquela época: o direito de a mulher escrever e publicar seus textos
literários, e a partir deste princípio, grande parte das escritoras passa a
expressar sua visão crítica conforme os seus ideais, caracterizando, assim, a
presença de uma pluralidade de pontos de vistas, de opiniões.
Submetidas ao rigor vigilante de uma sociedade que, de forma bem
lenta e gradativa, se atreve ao questionamento próprio, as mulheres
recorrem à escritura pessoal para dar asas às imaginações proibidas,
posicionando-se, muitas vezes, contra o casamento sem amor e à autoridade
masculina, uma vez que esta feria o direito de a mulher se separar.
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Contrariando todo um código de valores morais estabelecido,
sobretudo, pela Igreja Católica, grande parte das escritoras do século XIX foi
submetida à censura por promover a distorção da imagem exemplar da
mulher e também por conduzi-la a buscar uma realização individual, ainda
que para isso fosse necessário seguir uma conduta contrária aos princípios
cristãos.
Sendo assim, vimos que a crítica e combate a esse tipo de produção
literária se devem, portanto, ao fato de muitas dessas obras estarem
vinculando a imagem da mulher a aspectos negativos, vulgares,
contrariando, assim, o predomínio do modelo de feminilidade, baseado no
recato, na disciplina e no pudor, e a concepção de que “o maior encanto da
mulher é a ignorância”48.
Expostos, portanto, os principais temas relacionados à leitura e à
formação do público leitor, em especial do feminino, adentraremos, no
próximo capítulo, no plano literário de La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”.
Com base nas teorias críticas de Genette e Piglia, seguiremos em direção a
uma de nossas grandes propostas: apresentar as mais ilustres figuras da
leitura e do leitor no romance clariniano, analisando, evidentemente, os
possíveis efeitos acarretados pelas leituras realizadas pelos personagens
leitores de uma das maiores obras da literatura espanhola.
48 Ver La Desheredada, em O.C, cit. t.IV, p.990. In: MAYORAL, Marina. “La mujer ideal de Galdós”. Revista Ínsula, n°. 561, Septiembre. Madrid: 1993, p.7. “el mayor encanto de la mujer es la ignorancia”.
97
2.2. As figuras da leitura e do leitor em La Regenta
Constituído por muitas leituras que realizou, Víctor Quintanar, o ex-
regente de Audiência, é mais um personagem a entrar para a galeria dos
grandes leitores de La Regenta. Apaixonado pelo teatro do século XVII, em
especial, pelos textos de Calderón de la Barca, a leitura também passa a
desempenhar um papel crucial na vida do protagonista, que tem seu
imaginário alimentado, moldado, pelas imortais comédias espanholas.
Ler, muito mais que entretenimento, é viver, e, considerando esta
idéia, pudemos observar que Quintanar torna-se protagonista de sua própria
história, dando vida, portanto, a tudo aquilo que o havia fascinado,
contagiado. Buscava nas leituras um modelo exemplar de vida, de conduta, e
era justamente nos personagens das comédias de Calderón e de Lope de
Vega que o ex-regente o encontrava. Estabelece-se, assim, uma profunda
relação de identificação entre o texto lido e o leitor, o que, mais uma vez,
vem a corroborar a fundamental importância da leitura na vida destes
protagonistas que se educam por meio de livros.
Profundo admirador da honra e da virtude, elementos essenciais à
natureza de um cavalheiro, Quintanar atua, em muitas ocasiões, conforme as
leituras que realizava, tornando-se “o porta-voz do mito calderoniano da
honra” (Oleza, 2003. Tradução nossa)49. Inspirava-se nos principais
personagens e tentava viver da mesma maneira que os mesmos, o que, de
uma certa forma, acentuava a inexistência de uma personalidade e de um
49 “el portavoz del mito calderoniano de la honra”.
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discurso próprios, já que muitas de suas ações foram decorrentes daquilo
que lera, do que encontrara no texto literário, e esta apropriação lhe dá,
muitas vezes, um aspecto caricaturesco, dada a semelhança existente entre
os protagonistas das comédias idolatrados por ele. Como exemplo desta
personalidade carente de caráter, citamos o seguinte fragmento:
Hasta en el estilo se notaba que Quintanar carecía de carácter. Hablaba como el periódico o el libro que acabara de leer, y algunos giros, inflexiones de voz y otras cualidades de su oratoria, que parecían señales de una manera original, no eran más que vestigios de aficiones y ocupaciones pasadas. (ALAS: 1997, p.540).
Fascinado, indiscutivelmente, pelo ato de ler, várias são as cenas de
La Regenta em que vemos os efeitos destas leituras na vida do ex-regente,
e, para melhor ilustrá-la, citamos um fragmento do capítulo III, em que essa
predileção e deleite pelos costumes daquele tempo em que se sabia o que
realmente significava a palavra honor, tornam-se visíveis:
Siempre había sido muy aficionado a representar comedias, y le deleitaba especialmente el teatro del siglo diecisiete. Deliraba por las costumbres de aquel tiempo en que se sabía lo que era honor y mantenerlo. Según él, nadie como Calderón entendía en achaques del puntillo de honor, ni daba nadie las estocadas que lavan reputaciones tan a tiempo, ni en el discreteo de lo que era amor y no lo era, le llegaba autor alguno a la suela de los zapatos. En lo de tomar justa y sabrosa venganza los maridos ultrajados, el divino don Pedro había discurrido como nadie y sin quitar a «El castigo sin venganza» y otros portentos de Lope el mérito que tenían, don Víctor nada encontraba como «El médico de su honra». (Ibidem, p.127).
No entanto, Joan Oleza (2003) chama-nos a atenção para um fato
particularmente excepcional. Ao ter a oportunidade de pôr em prática tudo
aquilo que havia aprendido por intermédio das leituras realizadas, dom Víctor
99
não conseguia efetivá-lo. Tudo que havia cultivado com tanto zelo e
admiração (referimo-nos às habilidades com o manejo da pistola e ao desejo
de vingança, caso descobrisse a traição de sua companheira), acaba
deixando para trás. Logo, “em lugar de fazer sangrar Ana até a morte, a
perdoa, colocando as culpas sobre si e sobre o sedutor, mas também não o
mata quando o surpreende deslizando desde a alcova de sua esposa ao
jardim (...) e também não o mata no duelo a pistola” (OLEZA, 2003. Tradução
nossa)50, fato que inviabiliza considerá-lo um personagem exclusivamente
comprometido com a leitura, como é o caso de Ana Ozores.
Outra leitura realizada por Quintanar, merecedora de grande
destaque, é a de La imitación de Jesucristo, de Kempis. Protagonista de
idéias puras, nobres, elevadas e, muitas vezes, poéticas, o ex-regente era
um homem bastante simples, mesmo apesar de sua linguagem estar sempre
imbuída de um toque declamador e altissonante, originário dos versos de
Lope e Calderón que sabia de memória, e este espírito bondoso é afetado
pelo pessimismo do livro que difunde uma visão extremamente negativa da
vida, a ponto de tirar-lhe o bom-humor. A leitura de Kempis o fez meditar
sobre fatos que nunca lhe haviam passado na mente. A concepção de que a
vida, de todas as maneiras, é bem triste, especialmente se considerarmos o
fato de que tudo é passageiro, contamina a alma do personagem: “poco a
poco Kempis fue tiznándole el alma de negro y don Víctor llegó a despreciar
las cosas por efímeras” (ALAS, 1997, p.652), e esta visão pessimista da vida
50 “en lugar de hacer sangrar a Ana hasta la muerte, la perdona, echando las culpas sobre sí y sobre el seductor, pero tampoco mata a este cuando lo sorprende deslizándose desde la alcoba de su esposa al jardín (...) y tampoco lo mata en el duelo a pistola”.
100
reaparecerá no capítulo XIX, na cena em que o ex-regente resolve
confidenciar a Frígilis, seu grande amigo, a traição de Ana Ozores. Neste
episódio, o personagem, tomado pelas dores da decepção amorosa, faz crer
que “todo el mundo era podredumbre; el ser humano lo más podrido de todo”
(Ibidem, p.896). Ao pensar em Kempis, reconhece que sempre haverá uma
cruz para se carregar: “(...) verás que siempre tienes algo que padecer de
grado o por fuerza; siempre hallarás la cruz...” (Ibidem, p.896), e a ocorrência
deste pensamento contradiz toda a filosofia aprendida com as leituras das
ilustres comédias do século XVII. O mundo não era o que as comédias
diziam, ou seja, não correspondia ao universo projetado pelo personagem-
leitor, e, diante desta incompatibilidade com o real, vimos que, além da vitória
do pessimismo, há também a derrota de um ser que a vida inteira mostrou-se
à margem da verdadeira realidade, não se adaptando, de forma alguma, a
ela.
Conhecido por ser uma crônica viva das antiguidades vetustenses,
Saturnino Bermúdez, doutor em teologia e em ambos direitos, civil e
canônico, licenciado em filosofia e letras, bacharel em ciências e autor de
várias obras: Vetusta Romana, Vetusta Goda, Vetusta Feudal, Vetusta
Cristiana e Vetusta Transformada, é mais um personagem-leitor que compõe
o universo literário de La Regenta.
Primeiro “antiquário humano” da província, Bermúdez acreditava ser ”-
y esto era verdad- el hombre más fino y cortés de España” (Ibidem, p.77).
Sempre muito amável e prestativo, o arqueólogo sabia tudo sobre as
antiguidades de Vetusta, e, quando chegava algum forasteiro de grande
101
importância na cidade, ele próprio se encarregava de acompanhá-lo para
apresentá-lo às diversas raridades vetustenses, e este lado afável,
atencioso, de Bermúdez tem a ver, sem sombra de dúvidas, com sua
natureza, ou seja, com seu espírito altamente romântico, aflorado, em
especial, pelas leituras que realizara. Leitor não só de crônicas, de textos
informativos (notícias, reportagens e outros) e de livros que abordavam
questões relacionadas à arqueologia, à ciência e à religião, o protagonista se
encantava mesmo com os romances mais requintados e psicológicos,
publicados, desde então, em Paris. No fundo de sua alma, Bermúdez
acreditava ter nascido para o amor, mesmo apesar de nunca ter provado as
“dulzuras groseras y materiales del amor carnal” (Ibidem, p.79). Tinha plena
consciência de que nele habitava um coração carente, não de conhecimento,
mas sim de experiência de vida, em especial as que estão relacionadas ao
campo afetivo, em outras palavras, ao amor e à paixão.
Seu imaginário, assim como o de Víctor Quintanar, também fora
alimentado pelos livros, ou melhor, pela ficção, e, a partir deste contato com
a leitura, o personagem passa a manifestar intensos desejos de viver seu
próprio romance, da mesma maneira que viviam os personagens das obras
lidas por ele.
Em matéria de amor, Bermúdez era incapaz de aproximar-se de uma
jovem e de demonstrar-lhe suas verdadeiras intenções. Acreditara ser mais
conveniente apaixonar-se por uma mulher casada, pois estas sim poderiam
compreendê-lo melhor, já que, como nos romances que desfrutava, quase
sempre as heroínas eram mulheres comprometidas, mas que, ao final,
102
encontravam-se redimidas pelo amor e pela fé. Particularmente, este
pensamento chamou-nos a atenção, pois o arqueólogo passou a manifestá-
lo a partir das leituras de romances que realizara. A primeira vez que pensou
nesta possibilidade, a de envolver-se com uma mulher casada, teve sérios
arrependimentos, porém, logo em seguida, a idéia foi parecendo-lhe
tentadora, e o resultado, como havia de se esperar, foi a paixão de
Bermúdez pela bela Ana Ozores, o que magistralmente nos evidencia os
efeitos ocasionados pela leitura. Vejamos:
En efecto, don Saturno se enamoró de una señora casada; pero le sucedió con ella lo mismo que con las solteras; no se atrevió a decírselo. Con los ojos sí se daba a entender, y hasta con ciertas parábolas y alegorías que tomaba de la Biblia y otros libros orientales; pero la señora de sus amores no hacía caso de los ojos de don Saturno ni entendía las alegorías ni las parábolas... (Ibidem, p.79).
No entanto, é importante comentar que, assim como o ex-regente de
Audiência, o protagonista manifestava, de fato, intensos desejos acarretados
pela leitura, porém não conseguia pô-los em prática, guardando-os apenas
para si mesmo, e por isso Ana Ozores se destaca dentro desta inigualável
galeria de personagens leitores de La Regenta, pois não só manifesta como
também vive intensamente todos os efeitos produzidos pelo ato de ler, o que
a torna a maior leitora de toda a obra.
Da mesma maneira que Saturnino Bermúdez, Paquito, o filho dos
marqueses de Vegallana, também tem seu imaginário alimentado pelos
livros. Contaminado pelas leituras de La historia de la prostitución, de Dufon,
La dama de las Camelias e outras obras do mesmo gênero literário, Paco
103
muito se identifica com os protagonistas destas narrativas carregadas de
erotismo, e esta identificação contribuiu, sem dúvida, para com a
consolidação de uma grande amizade entre o jovem, encantado pelos
incontáveis prazeres da vida, e o astuto e sedutor Álvaro Mesía, que “como
una dama rica y elegante deja vestidos casi nuevos a sus doncellas” (Ibidem,
p.222).
Amante do amor e do bom coração “de las que llamaba Bermúdez
meretrices” (Ibidem, p.221), o personagem, sem hesitações, aceitava de bom
grado os antigos amores de Álvaro- os seus vestidos usados-,
demonstrando, assim, ter uma notável cumplicidade e admiração pelo don
Juan de Vetusta, seu verdadeiro ídolo. Esta idolatria manifesta-se
principalmente pelo fato de Paco encontrar na figura de Álvaro a
representação de um modelo exemplar de requinte e sedução, ou seja, um
exemplo de conduta a ser seguido, e, em razão disto, o jovem procurará
imitá-lo em todos os seus gostos e gestos, o que fortalecerá cada vez mais a
amizade entre ambos.
Lê-se, portanto, para viver, para encontrar um sentido que complete o
vazio existente em suas vidas, e, no caso de Paco, vimos que este sentido,
além de ser construído pelas leituras realizadas, também é construído pelo
discurso de Álvaro Mesía, que sabiamente o manipulava, assim como se
manipulam certas mulheres que tinham educação e sentimentos
semelhantes aos do futuro marquês. Apesar da perversão, da luxúria e da
imoralidade de Paco, defensor da corrupção absoluta das classes
superiores, o jovem “esperaba todavía un amor puro, un amor grande, como
104
el de los libros y las comedias” (Ibidem, p.223). No seu interior, habitava um
espírito romântico que vagamente se conscientizava de que havia algo
melhor que o ordinário galanteio empreendido por ele. Aproveitando-se disto,
desta pequena dose de inocência, Mesía também moldava e alimentava o
imaginário do jovem aprendiz, com o objetivo de fazê-lo aliado em seu mais
novo investimento: conquistar o coração de Ana Ozores. Possuí-la
carnalmente era seu maior desejo, e, para isso, Paquito teria de acreditar
que o chefe do partido liberal dinástico deveria estar verdadeiramente
apaixonado pela dama. Desta forma, se se convencesse da pureza e da
paixão, Paco indubitavelmente o ajudaria, mas se conhecesse realmente as
verdadeiras pretensões de seu amigo, que sabia perfeitamente apresentar-
se como um “personaje de novela sentimental e idealista, cuando lo exigían
circunstancias” (Ibidem, p.228), ter-lhe-ia negado ajuda. A amizade entre os
Vegallana e a Regenta era bastante íntima, e a casa dos marqueses era o
locus ideal para que o sedutor pudesse iniciar seu maior e mais audacioso
empreendimento: seduzir a senhora mais bela de toda a cidade. Conquistar,
então, a admiração do jovem marquês foi algo extremamente fundamental.
Paco acreditava ser Álvaro um indivíduo capaz de redimir-se por
amor, e, em razão disto, lhe pareceu justo ajudá-lo a todo custo. No entanto,
se tivesse lido alguns dos principais romances da época, perceberia
nitidamente a ausência de autenticidade no discurso de dom Álvaro,
carregado de clichês românticos de péssimo gosto.
Álvaro Mesía, conhecido como “el demonio de la seducción” (Ibidem,
p.301), é a representação do modelo perfeito da vida social vetustense
105
durante o período da Restauração na Espanha oitocentista. Completamente
volúvel, ambicioso e materialista, Mesía é um sedutor que se move em uma
sociedade burguesa e produtiva de forma improdutiva. É uma figura criada
para o consumismo e não para a produção, para o trabalho. Eliminados
todos os vestígios de romantismo, notamos que o protagonista, com toda
habilidade e maestria nas artes da sedução, carece de originalidade, de
intensidade vital e de heroísmo, sendo incapaz de amar de verdade, de
entregar-se totalmente. Para Mesía, o amor não passa de uma prática
profissional, visão que muito diverge da clássica concepção de amor adotada
pelo dom Juan romântico. Segundo Oleza, “os realistas transformaram
radicalmente o mito de Dom Juan, privando-o da aura de transcendência
para instalá-lo em uma atmosfera anti-heróica e burguesa” (2003. Tradução
nossa)51, e esta transformação encontra-se bastante evidente em La
Regenta, o que corrobora, de fato, a desconstrução do donjuanismo
tradicional, verdadeiramente comprometido com o romantismo.
Com relação às leituras de Álvaro Mesía, constatamos que o
personagem, além das leituras eróticas, era leitor também de obras como
Fuerza y matéria, de Büchnor, alguns livros de Flammarion, Molescholt,
Virchov e Vogt, autores que abordam questões relacionadas ao
materialismo, e do poema de Lucrecio, De rerum natura, o que
indiscutivelmente nos evidencia a presença do caráter materialista e
prepotente do chefe do partido liberal dinástico.
51
“los realistas transformaron radicalmente el mito de Don Juan, privándole del aura de trascendencia para resituarlo en una atmósfera antiheroica y burguesa”.
106
Outro ponto merecedor de destaque refere-se à questão dos espaços
de leitura em La Regenta. Devido à intenção por parte do artista de “criar
uma obra com alto grau de aparência de realidade”52 (ZUBIAURRE, 2000,
p.87), constatamos que o espaço assume uma importante função no
romance clariniano: passa a potencializar, por um lado, a verossimilhança, já
que todo cenário representado pelo narrador Clarín é identificável,
acentuando, assim, a sensação de realidade; e, por outro lado, a
artificialidade, uma vez que enfatiza a criação literária, ou seja, a
transformação artística do mundo real.
O espaço narrativo do romance La Regenta se converte, então, em
espaço representado, isento “das responsabilidades do espaço ‘real’ e
submetido, em troca, às leis da escrita poética”53 (Ibidem, p.90), o que muito
contribui para com o reconhecimento e a identificação do espaço real nos
cronotopoi do relato decimonônico.
Martínez-Bonati (1992, p.183) afirma que, segundo a Poética de
Aristóteles, uma imitação correta apresenta uma sucessão de
acontecimentos fictícios que, “de acordo com a imediata sensibilidade e
compreensão dos espectadores e contemplados segundo sua natureza
genérica, são, pelo menos, sempre possíveis, e, preferivelmente, prováveis e
até necessários”54. Desta forma, a realidade retratada pelo escritor será uma
realidade possível para os leitores de La Regenta e nunca improvável ou 52
“crear una obra con alto grado de apariencia de realidad”. 53
“de las responsabilidades del espacio ‘real’ y sometido, en cambio, a las leyes de la escritura poética”. 54 “de acuerdo con la inmediata sensibilidad y comprensión de los espectadores y contemplados según su naturaleza genérica, son, por lo menos, siempre posibles, y, preferiblemente, probables y hasta necesarios”.
107
impossível como ocorriam com as narrativas de cavalaria, pastoris e
românticas, por exemplo. Ao invés do estranhamento, o leitor irá deparar-se
com descrições e paisagens familiares, o que lhe permitirá transpassar as
fronteiras do texto literário.
2.2.1. Os espaços de leitura na obra
Para retratar a realidade de Oviedo no século XIX, foi necessário que
o autor tivesse um profundo conhecimento de todos os fatos,
acontecimentos, que propôs narrar ao longo dos trinta capítulos de La
Regenta, e os espaços de leitura são, sem dúvida, um deles.
Retomando, portanto, o conceito de representação da realidade,
difundido pela Retórica, e resgatado, posteriormente, pelas primeiras
manifestações artísticas do movimento realista, na segunda metade do
século XIX, observamos que o autor consegue apresentar-nos em La
Regenta, através de construções literárias, um perfeito panorama do
ingresso do público leitor no mundo das letras, destacando a presença de
espaços determinados exclusivamente ao exercício da leitura.
Atividade muito comum no século XIX, o ato de ler, da coletividade, ou
seja, das tradicionais leituras em rodas, feitas geralmente pela matrona da
casa no âmbito familiar, se estende à individualidade. Fortifica-se, neste
período, uma preferência pela leitura individual, uma vez que esta
proporciona um contato mais íntimo, mais pessoal entre o leitor e a obra lida
por ele. Nesta relação, destacamos indiscutivelmente a importância dos
108
espaços internos, dentre eles o quarto (la habitación), locus que acentua
essa identificação do homem com o livro, ou melhor, com o universo literário
nele contido.
No capítulo III do romance, observamos que o quarto torna-se um dos
principias espaços de leitura no século XIX. Apaixonado pelo teatro do
século XVII, em especial pelas comédias de Calderón de la Barca, o ex-
regente de Audiência, dom Víctor Quintanar, um magistrado “aragonés muy
cabal, valiente, gran cazador...” (ALAS, 1997, p.177), realiza grande parte de
suas leituras em seu quarto, à noite, antes de dormir:
Volvió a encender luz. Cogió el único libro que tenía sobre la mesa de noche. Era un tomo de mucho bulto. «Calderón de la Barca» decían unas letras doradas en el lomo. Leyó. Siempre había sido muy aficionado a representar comedias, y le deleitaba especialmente el teatro del siglo diecisiete. (Ibidem, p.127).
No decorrer do capítulo V, encontramos Víctor novamente em posição
de leitura: “a la luz de una lámpara de viaje, calada hasta las orejas una
gorra de seda, leía tranquilamente, algo arrugado el entrecejo, El Mayor
Monstruo los celos o el Tetrarca de Jerusalén, del inmortal Calderón de la
Barca” (Ibidem, p.186), e, à medida que tomamos ciência das leituras feitas
pelo protagonista e dos espaços em que ele as realizava, notamos que
Clarín passa a valorizar um importante elemento dentro do quarto de
Quintanar (espaço interior): a cama.
Em posição de repouso, o personagem adentrava nas páginas das
imortais comédias espanholas, buscando no ato de ler não só o
entretenimento, a diversão, mas principalmente uma maneira de alimentar o
109
seu imaginário, uma vez que estas obras refletiam todos aqueles ideais
cavalheirescos admirados por ele.
Dom Víctor lia Calderón sem se cansar, e, em várias cenas de La
Regenta, encontramos as influências que o ato de ler apresentou na vida do
personagem leitor, que teve seu imaginário alimentado pelas leituras. Para
melhor explicar essa idéia, de que a leitura pode influenciar o comportamento
do indivíduo, apresentamos um fragmento da obra que pode perfeitamente
sintetizar esse pensamento. Vejamos:
Todas las noches antes de dormir se daba un atracón de honra a la antigua, como él decía; honra habladora, así con la espada como con la discreta lengua. Quintanar manejaba el florete, la espada española, la daga. Esta afición le había venido de su pasión por el teatro. (Ibidem, p.128).
No entanto, há algo mais do que satisfação e entretenimento no ato de
ler na cama: há privacidade. Ler na cama seria “um ato autocentrado, imóvel,
livre das convenções sociais comuns, invisível ao mundo” e, com base nesta
definição proposta por Manguel (2002, p.180), pudemos evidenciar uma
preferência pela individualização, o que vem a corroborar a prática de uma
das mais diversas modalidades da leitura: a leitura íntima. Ao tornar-se tão
privativa, tão íntima do leitor, a cama acaba conquistando um papel de
destaque na narrativa de Leopoldo Alas, passando a ser um <<novo
espaço>> dentro do universo literário de La Regenta.
Da mesma forma que Víctor Quintanar, Ana Ozores também é uma
personagem-leitora. No capítulo IV, Ana passa a manifestar um incrível
110
interesse pela leitura, e será nas estantes da biblioteca de dom Carlos, seu
pai, que também encontrará novos livros.
Orgulho legítimo de Carlos Ozores, a biblioteca torna-se um espaço
crucial no romance, pois será em suas vastas estantes que Anita, ao longo
de sua estadia em Loreto, irá buscar o conhecimento necessário para
ampliar sua limitada visão de mundo, de realidade.
A jovem se tornará, neste período, uma grande leitora, passando a ler
obras de distintos gêneros literários, sobretudo as que se relacionavam à
literatura religiosa, como El Cantar de los Cantares, na versão poética de
San Juan de la Cruz, e Las Confesiones de San Agustín, o que muito
contribuirá para o surgimento das primeiras aspirações literárias (o desejo de
tornar-se escritora e o projeto de escrever um livro dedicado a la Virgen) e
para a manifestação do langor místico, ambas estudadas no sub-capítulo
seguinte deste trabalho, dedicado especialmente às leituras realizadas pela
protagonista.
Ainda se tratando de espaços internos, a cozinha torna-se também um
locus destinado à leitura, principalmente se consideramos o fato de que a
maioria das mulheres burguesas do século XIX passava grande parte do
tempo em casa (espaço privado), cuidando dos afazeres domésticos e da
criação dos filhos. Em função isto, não nos causou estranhamento a intenção
do narrador em transformar a cozinha em um ambiente propício ao ato de ler,
e, no intuito de melhor aclarar esta idéia, citamos o fragmento em que o
narrador a apresenta como um possível espaço de leitura, sobretudo, dada a
111
presença da chaminé, que “al amor de cuya lumbre leyera en otros días
tantos folletines la señorita Anunciación Ozores” (Ibidem, p.290). Citamos:
Después doña Anuncia se encerró en el comedor con doña Águeda, y terminada la conferencia compareció Anita. Doña Anuncia se puso en pie al lado de la chimenea pseudofeudal: dejó caer sobre la alfombra La Etelvina, novela que había encantado su juventud, y exclamó: “Señorita... hija mía; ha llegado un momento que puede ser decisivo en tu existencia” <<Era el estilo de La Etelvina>> . (Ibidem, p.181).
Muito mais que a apresentação de um novo espaço de leitura, vemos
também as conseqüências da educação sentimental feita por intermédio do
livro, ou melhor, do romance em destaque. Neste fragmento, o narrador de
La Regenta, evidencia-nos os efeitos acarretados pelo ato de ler. O discurso
da personagem dona Anuncia, assim como o de dom Víctor Quintanar, foi
construído a partir das diversas leituras do romance que a mesma realizou
ao longo de sua vida. “La Etelvina, novela que había encantado su juventud”,
torna-se, portanto, o modelo, a referência de como agir, atuar em
determinadas situações, confirmando, assim, o poder que a leitura exerce
nos protagonistas leitores da obra.
Outro notável espaço presente na narrativa de Clarín é o gabinete de
leitura de Rufina de Robledo, mais conhecida como Marquesa de Vegallana.
Personagem-leitora, a dama, casada com o chefe do partido conservador de
Vetusta, tinha o costume de passar grande parte do tempo em seu gabinete,
local onde realizava as leituras de romances, revistas e jornais da época e
onde recebia seus amigos mais íntimos quando estes lhe tinham algo para
falar. Vejamos:
112
La excelentísima señora doña Rufina de Robledo, marquesa de Vegallana, se levantaba a las doce, almorzaba, y hasta la hora de comer leía novelas o hacía crochet, sentada o echada en algún mueble del gabinete. (…) se quedaba en su gabinete donde recibía a los amigos y amigas que quisieran hablar de sus cosas, mientras ella leía periódicos satíricos con caricaturas, revistas y novelas. (Ibidem, p.236).
Neste fragmento, além da disposição espacial, há também uma crítica
contra o comportamento improdutivo da aristocracia da época. Para melhor
ilustrá-la, o narrador Leopoldo Alas, ironicamente, utiliza o superlativo
<<excelentísima>> para condenar a enfadonha vida (cotidiano) da Marquesa
de Vegallana que se resumia praticamente em levantar-se tarde, fazer
crochê, ler jornais satíricos, revistas e romances e receber a <<elite>> de
Vetusta em seu imponente palácio para se divertir e conversar, amenizando,
assim, as árduas horas de permanência em casa.
Outro importante espaço a ganhar destaque na narrativa de Leopoldo
Alas, mais precisamente no capítulo VI de La Regenta, é o gabinete de
leitura do Cassino de Vetusta, também utilizado como biblioteca pelos
sócios. Através da minuciosa descrição empreendida pelo narrador,
observamos a presença de um ambiente estreito, sem muito requinte, se o
comparamos, por exemplo, com o luxuoso gabinete dos Vegallana. Vejamos
a descrição:
El gabinete de lectura, que también servía de biblioteca, era estrecho y no muy largo. En medio había una mesa oblonga cubierta de bayeta verde y rodeada de sillones de terciopelo de Utrecht. La biblioteca consistía en un estante de nogal no grande, empotrado en la pared. Allí estaban representando la sabiduría de la sociedad el Diccionario y la Gramática de la Academia. Estos libros se habían comprado con motivo de las repetidas disputas de algunos socios que no estaban conformes respecto del significado y aun de la ortografía de ciertas palabras. Había además una colección incompleta de la Revue
113
des deux mondes, y otras de varias ilustraciones. (Ibidem, p.191).
Freqüentado exclusivamente por um público masculino cada vez mais
interessado pela aquisição da informação, tal como evidencia o escritor:
“estos y otros lectores asiduos se pasan los periódicos de mano en mano, en
silencio, devorando noticias que leen repetidas en ocho o diez papeles”
(Ibidem, p.110-111), notamos o que o ato de ler, neste local público, torna-se
uma prática bastante usual, entre os mais variados personagens de La
Regenta, dentre os quais podemos destacar o bibliófilo Amadeo Bedoya,
responsável pelo desaparecimento de muitos livros da biblioteca.
Muito mais que um lugar destinado à prática da leitura, a biblioteca do
Cassino de Vetusta também era o local onde se encontravam, segundo o
narrador do romance, a sabedoria da sociedade vetustense: o Dicionário e a
Gramática da Academia. Através da ironia de Leopoldo Alas, constatamos
que os respectivos livros tornaram-se símbolos, ou melhor, representações
do conhecimento e do saber, contrapondo-se, assim, à ignorância e à
estupidez humana predominante na provinciana cidade, que longe estava de
ser tida como modelo.
Analisando La Regenta, notamos que Clarín estabelece uma divisão
entre o espaço público e o privado, e estes também se encontram divididos
não só por classes sociais- aristocratas, burgueses, comerciantes, operários
e jovens- mas também por sexo- homens e mulheres.
Geralmente, os espaços destinados à leitura feminina restringiam-se
ao ambiente familiar, doméstico, enquanto a leitura masculina possuía um
114
alcance maior, até pelo fato da sociedade burguesa da época ser
predominantemente dirigida por homens. Mesmo com todas as revoluções
ocorridas no século XIX que favoreceram, sobretudo, o ingresso do público
leitor feminino na cultura letrada, estabelece-se, na atmosfera ficcional de La
Regenta, uma oposição entre a situação de confinamento, vivida pelas
mulheres burguesas, e a mobilidade tida pelos homens, que, além dos
espaços privados, tinham acesso aos públicos, tais como os cassinos, clubs,
bares, cafés, pubs, bibliotecas públicas e outros.
Outro interessante aspecto apresentado pelo narrador de La Regenta
refere-se à formação de leitores no âmbito doméstico. A família enquanto
instituição era imprescindível ao novo modelo de Estado: o burguês. Era a
principal responsável pela construção de valores necessários a sua
manutenção, desde religiosos, éticos, morais até os de conduta social, e será
neste importante espaço privado de vivência que a prática da leitura irá se
desenvolver, principalmente se levarmos consideração o fato de que o gosto
pela leitura se constitui em uma atividade adequada a esse contexto de
privacidade doméstica.
Enquanto que em outros ambientes formais e rígidos a leitura é
utilizada como meio de acesso à informação e formação de uma nova visão
de mundo, ler em casa está relacionado, na maioria das vezes, ao lazer, uma
vez que o âmbito doméstico proporciona, dentre outros benefícios, o conforto
e o aconchego ao leitor.
Prática essencial à instrução, a leitura é tida como algo imprescindível
à sobrevivência, ou melhor, à vida dos protagonistas, e, considerando o
115
importante papel que o ato de ler assume no romance clariniano, decidimos
empreender uma análise sobre as leituras realizadas pela maior figura do
leitor de toda a obra: Ana Ozores. Para isso, nos pareceu pertinente elaborar
um breve comentário sobre a educação feminina no século XIX, a fim de que
se possa compreender a proposta de dividir o período correspondente à
educação da mesma em quatro fases, apresentando, detalhadamente, em
cada uma delas, quais os textos lidos por ela e quais os conseqüentes
efeitos acarretados pela prática da leitura.
2.2.2. As leituras de Ana Ozores e as quatro fases
correspondentes à educação da personagem
2.2.2.1. A educação feminina no século XIX
O indivíduo, segundo Manguel (2002), ao aprender a ler, ao entrar em
contato com o mundo da leitura, é incluído imediatamente na memória
comunal por meio de livros, familiarizando-se, desta forma, com um passado
geral que ele renova, em maior ou menor grau, a cada leitura realizada.
Para a sociedade cristã da Baixa Idade Média e para a sociedade do
começo da Renascença, aprender a ler e escrever era o privilégio mais
exclusivo da aristocracia e, após o século XIII, da alta burguesia. A maioria
dos meninos e algumas meninas dessas classes aprendiam as letras muito
cedo, e este primeiro contato com a leitura e com a escrita ocorria,
116
geralmente, através da mãe ou da governanta que, caso fosse letrada, se
encarregava das primeiras fases do processo de instrução das crianças.
Depois do aprendizado das primeiras letras, feito principalmente por
meio de cartilhas e abecedários, a família que dispusesse de boas condições
financeiras contratava professores como tutores particulares, para que estes
ficassem encarregados de aprofundar o conhecimento dos seus alunos,
introduzindo-os, de fato, em uma nova atmosfera educacional, marcada pela
instrução de novas disciplinas pedagógicas (História, Geografia, Matemática,
Ciências, o estudo da Língua Materna e Religião), fundamentais para a
formação do indivíduo.
Em decorrência das grandes transformações sócio-econômicas e
políticas, da industrialização, urbanização, fortalecimento da burguesia e o
aumento na produção de texto impresso que, conseqüentemente, propiciou o
aumento do público leitor, o século XIX é também marcado pelas campanhas
de alfabetização. O direito de ler e escrever, nessa época, passa a se
estender às mulheres, porém muitos questionaram os benefícios da
educação pública, uma das importantes conquistas da Revolução Francesa,
e da educação privada feminina, pois não era muito apropriado que as
meninas aprendessem a ler e a escrever numa sociedade em que o
conhecimento passa ser ameaçador para toda uma ordem edificada por
pilares conservadores e tradicionais.
Sendo assim, com o objetivo de conter o surgimento de certas
aspirações perigosas provenientes das más leituras realizadas pelo público
leitor feminino, vimos que o imperativo controle que a Igreja Católica exercia
117
sobre a educação ainda se mantinha fortemente em muitas das sociedades
européias do século XIX, dentre as quais podemos destacar a espanhola.
Educadas a fim de conhecer a verdadeira fé cristã, a educação recebida
pelas mulheres na Espanha do século XIX fundamentava-se, em grande
parte dos casos, na concepção de que as damas precisariam proteger-se
dos perigos que, constantemente, ameaçavam suas almas, e, ao
analisarmos os capítulos IV e V do romance naturalista La Regenta,
verificamos que a protagonista Ana Ozores é “moldada”, constantemente,
para se ajustar a esse modelo educacional tão bem difundido nos países
católicos no século XIX.
Ainda que se produzissem, neste período, várias tentativas de reforma
educativa, a aliança da Igreja com os setores mais conservadores da época
conteve grande parte das aspirações burguesa de se implantar um ensino
laico que servisse de base para levar ao Estado uma ideologia mais
progressista e democrática, e, ao trazermos essas questões à tona,
observamos que esses mesmos conflitos também se encontram presentes
na obra La Regenta, principalmente na parte destinada à educação da
protagonista Ana Ozores.
“¡Saber leer! Esta ambición fue su pasión primera. Los dolores que
Doña Camila le hizo padecer antes de conseguir que aprendiera las sílabas,
perdonóselos ella de todo corazón. Al final supo leer” (ALAS, 1997, p.137).
Aprender a ler foi, indubitavelmente, a grande ambição de Ana Ozores, e, ao
analisarmos o período correspondente à educação da personagem, exposto
nos capítulos IV e V da obra, identificamos que esta se desenvolve em
118
quatro períodos: o primeiro, a cargo de dona Camila, uma cruel e brutal
criada; o segundo, sob função de seu próprio pai, o liberal Carlos Ozores; o
terceiro, sob responsabilidade de suas tias religiosas, dona Anuncia e dona
Águeda, e o quarto e último, a cargo de Fermín de Pas, seu confessor.
Segundo Vives (2000), a educação que proporciona dona Camila à
jovem Ozores é uma educação contra todos os princípios relacionados à
natureza; era uma instrução baseada na repressão dos instintos e na
anulação de toda espontaneidade e autonomia da criança. Citamos:
De todas suertes, doña Camila se rodeó de precauciones pedagógicas y preparó a la infancia de Ana Ozores un verdadero gimnasio de moralidad inglesa. Cuando aquella planta tierna comenzó a asomar a flor de tierra se encontró ya con un rodrigón al lado para que creciese derecha. El aya aseguraba que Anita necesitaba aquel palo seco junto a sí y estar atada a él fuertemente. El palo seco era doña Camila. El encierro y el ayuno fueron sus disciplinas. (Ibidem, p.136).
A partir da leitura deste fragmento, vimos que a jovem fora educada
sem qualquer tipo de afeto, carinho, sendo submetida, a todo instante, ao
rigor e à disciplina de uma educação tradicional, fundamentada nos moldes
ingleses, e, em razão disto, chegamos à conclusão de que Ana viveu
contradizendo poderosos instintos de sua natureza, contendo,
constantemente, os seus impulsos de alegria. Neste período, declarou-se
vencida, seguindo, sem discutir, a conduta moral que arbitrariamente lhe
impuseram.
Durante toda a primeira fase, a personagem teve de conviver com a
falta do carinho materno, dado o falecimento da mãe, e com a ausência do
119
pai, o revolucionário Carlos Ozores, que percorria a Europa em busca de
novos horizontes, de novos caminhos, em especial daqueles que estivessem
relacionados à arte, à literatura e à política, sua grande paixão.
Ao voltar dom Carlos do exterior, este se dá conta do terrível dano que
causara a Anita ao conferir a dona Camila a preciosa missão de instruí-la.
Reconhecido o equívoco, o próprio Ozores, após dispensar a criada de seu
dever, se encarrega pessoalmente da instrução de Ana, expondo-a, nesta
segunda fase, a uma nova filosofia educacional: a krausista. Imbuído de um
espírito liberal, o librepensador, em oposição à viciosa educação que a jovem
havia recebido de dona Camila, estabelece uma educação mais liberal,
permitindo que Ana se desenvolvesse livremente por meio de uma educação
unilateral e harmônica, tal como prescreve o krausismo, e, para melhor
compreender como se estrutura o segundo período relativo à educação de
Ana Ozores, acreditamos ser necessário um sucinto comentário sobre este
importante movimento filosófico presente na sociedade espanhola da
segunda metade do século XIX.
2.2.2.2. O movimento krausista na Espanha
O introdutor do movimento Krausista na Espanha foi Julián Sanz del Río
que, em 1843, é nomeado professor interino de Filosofia da Universidad
Central de Madrid, sob a condição expressa de aperfeiçoar seus
conhecimentos pedagógicos na Alemanha. Em território alemão, Sanz del
Río entra em contato com o ambiente intelectual, demonstrando um grande
interesse, sobretudo, pela filosofia de Karl Christian Friedrich Krause (1781-
120
1832). Sánz encontrou em Krause o que nenhum dos outros filósofos
oferecia a um espírito tão inquieto e profundamente religioso como o seu: a
conciliação da religião com a ciência. O krausismo na Espanha passa a
adquirir vida própria, adaptando-se “às necessidades intelectuais de seus
protagonistas e, sobretudo, ao impulso religioso que o anima, assim como a
tentativa de conciliação do mesmo com o avanço científico” (VIVES, 1999.
Tradução nossa)55, o que nos evidencia a retomada de algumas das
principais diretrizes de Krause, reformuladas e redirecionadas às novas
propostas krausistas.
A partir desta identificação, podemos dizer que o racionalismo
harmônico e o panteísmo krausista apareceram para Sánz como uma
resposta para todas as suas dúvidas, contribuindo, assim, para a
implantação do movimento krausista na Espanha. Plantadas as sementes
krausistas no terreno da educação, os professores da Universidad Central de
Madrid, Francisco Giner de los Ríos, Canalejas e Salmerón, com o objetivo
de disseminar a filosofia krausista, fundam, em 1876, a Institución Libre de
Enseñanza, a maior conquista do movimento. É válido comentar que, pelo
Real Decreto de 25 de fevereiro de 1875, todos os professores deveriam
apresentar às autoridades competentes seus planos de estudo e livros
didáticos, o que, indubitavelmente, consistia numa grande violação do
princípio de liberdade do ensino, uma das principais propostas do movimento
krausista. No ano seguinte, amparados pela Constituição de 1876 que previa
55 “a las necesidades intelectuales de sus protagonistas y, sobre todo, al impulso religioso que lo anima, así como el intento de conciliación del mismo con el avance científico”.
121
o reconhecimento da liberdade do ensino, os respectivos professores
krausistas, com o objetivo de introduzir uma moderna pedagogia racionalista
e, assim, promover uma verdadeira renovação didática, fundam a instituição,
que inicia suas atividades em outubro deste mesmo ano, sob a coordenção
de Giner de los Ríos.
Baseada nos princípios krausistas a Institución Libre de Enseñanza se
opunha à educação clerical predominante. Propuseram uma educação liberal
e científica, permitindo o desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos
que, através de desafios, eram levados a pensar e a refletir sobre
determinados assuntos ou pontos de vista. Incentivaram um novo estilo na
relação entre professores e alunos, o que, conseqüentemente, acarretou a
formação de um espírito altamente crítico e reflexivo, fato que, sem dúvida
alguma, muito motivou e incentivou os aprendizes a construírem o
conhecimento, não através de métodos defasados e ineficazes, mas sim por
meio de uma lógica que priorizava, acima de tudo, o raciocínio e o senso
crítico.
Com relação a sua filosofia de vida, os krausistas acreditavam que
todas as religiões tinham algo de bom e de verdadeiro, e que o homem
deveria fazer uso de sua razão para escolher a melhor, apelando, em casos
de dúvida, para sua consciência como juízo final. Assim, não existiria dogma
nem rito que não devesse ser submetido ao espírito crítico, questionador. O
princípio do livre arbítrio era fundamental no sistema krausista, e,
naturalmente, provocou um antagonismo absoluto por parte dos
conservadores, que, a todo instante, procuravam conter as grandiosas
122
conquistas de um ensino laico e liberal. É importante afirmar que o livre
arbítrio na filosofia krausista não se limitou somente à religião; este pôde se
estender à filosofia, à política e a todas as manifestações da vida, fato que
muito preocupou os setores mais tradicionalistas da época, aliados à Igreja
Católica, que viam no movimento uma grande ameaça ao equilíbrio e à
hegemonia do sistema monárquico vigente na Espanha. No capítulo IV de La
Regenta, há uma cena em que podemos ver claramente a aparição desta
defesa do livre arbítrio, presente no discurso de dom Carlos, o que vem a
corroborar o quão o movimento krausista tornou-se fundamental à estrutura
narrativa da obra, em especial, à construção do respectivo personagem,
defensor dos ideais liberais. Citamos:
Sólo aquello que el rubor más elemental manda que se tape, era lo que ocultaba don Carlos a su hija. Todo lo demás podía y debía conocerlo. ¿Por qué no? Y con multitud de citas explicaba y recomendaba Ozores la educación omnilateral y armónica, como la entendía él. - Yo quiero- concluía- que mi hija sepa el bien y el mal para que libremente escoja el bien; porque si no ¿qué mérito tendrán sus obras?. (ALAS, 1997, p.142-143).
Por isso, nos pareceu de extrema pertinência realizar um breve
comentário sobre o movimento krausista na Espanha, resgatando a memória
de seus precursores que muito se empenharam, assim como os primeiros
historiadores nacionais da literatura espanhola, em “desenhar uma tradição
literária capaz de proporcionar fundamento à Espanha liberal, e com seu
núcleo central compartilhado pelo Quixote e pelo teatro <<nacional>>”
123
(tradução nossa)56, tal como apresenta Oleza (2003) em “Lecturas y lectores
de Clarín”.
Com base nos moldes da educação krausista, vimos que Anita, no
período em que esteve orientada pelo pai, entra em contato com diversos
tipos de leitura, ampliando seus horizontes e enriquecendo o seu
conhecimento. Carlos Ozores, um personagem instruído em várias matérias,
amava a literatura com ardor, e, ao longo de sua vida, pôde reunir uma
expressiva biblioteca, a qual continha, dentre muitas obras, livros
condenados pelo Índice. Dado ao fácil acesso à biblioteca, Ana, talvez pelo
fato de invejar os deuses de Homero, que viviam como ela havia sonhado
que se deveria viver, ao ar livre, com muita luz e muitas aventuras, lê várias
obras clássicas, adquirindo, assim, um grande interesse pela mitologia grega:
“(...) sabía mucha Mitología, con velos y sin ellos” (ALAS, 1997, p.142).
Despertado o desejo pela leitura, Ana Ozores começa buscar novos
livros, e nessa busca incessante pela leitura, a jovem, que limpava as
estantes da biblioteca de dom Carlos, se depara como um volume em
francês das Confesiones de San Agustín. No mesmo instante, sentiu-se
tomada por um impulso irresistível e decidiu, imediatamente, iniciar a leitura
do livro. Ana o lia com a alma agarrada às letras e quando concluía uma
página, seu espírito já estava lendo a outra, e, e devido a esta fascinação,
vimos que a leitura da obra provoca em Ana Ozores o surgimento do primeiro
impulso místico. Vejamos:
56 “diseñar una tradición literaria capaz de proporcionar fundamento a la España liberal, y con su núcleo central compartido por el Quijote y el teatro <<nacional>>”.
124
(...) seguía leyendo; aún estaba aturdida, casi espantada por aquella voz que oyera dentro de sí, cuando llegó al pasaje en donde el santo refiere que, paseándose él también por un jardín, oyó una voz que le decía "Tolle, lege", y corrió al texto sagrado y leyó un versículo de la Biblia... Ana gritó, sintió un temblor por toda la piel de su cuerpo y en la raíz de los cabellos como un soplo que los erizó y los dejó erizados muchos segundos. Tuvo miedo de lo sobrenatural; creyó que iba a aparecérsele algo... Pero aquel pánico pasó, y la pobre niña sin madre sintió dulce corriente que le suavizaba el pecho al subir a las fuentes de los ojos. Las lágrimas agolpándose en ellos le quitaban la vista. (Ibidem, p.147).
Ao entrar em contato com a literatura religiosa, a personagem muito se
emociona, pois as leituras de Confesiones de San Agustín fizeram-na
lembrar da falta que a presença materna fazia em sua vida. Muitas foram as
noites em que a pobre menina passara chorando e lamentando a ausência
das carícias e dos abraços aconchegantes da mãe que, por uma obstinação
do destino, não conhecera. Ao encontrar, então, nas santas palavras de
Agustín a paz e a luz que tanto buscava para suprir o vazio proveniente da
falta do amor materno, notamos que Ana muito se identifica com a literatura
mística, passando a ler, neste importante período de formação, obras como
as poesias religiosas de Fray Luis de León: “Si queres, como algum dia,/
adorar cabelos louros,/ adora os de Maria,/ mais dourados e mais belos,/ que
o sol claro ao meio-dia” (Ibidem, p.149) e o Cantar de los Cantares, na
versão poética de San Juan de la Cruz. É importante comentar que estas
obras foram fundamentais para a manifestação do langor místico que
envolverá a personagem ao longo de sua trajetória como leitora. Foram estes
acessos de religiosidade, que ela acreditara ter sido uma revelação
providencial de uma vocação verdadeira, que determinaram as violentas
125
crises de histeria e enfermidades que puseram, por inúmeras vezes, sua vida
em risco.
A partir da leitura desses livros, Ana Ozores consegue manifestar suas
tendências e aspirações pessoais, comprovando como essa atividade pode
interferir no comportamento e na formação do indivíduo leitor. Para enfatizar
este pensamento, citamos um fragmento no qual a personagem, após ter lido
o Cantar de los Cantares, de San Juan de la Cruz, sente-se inspirada e tenta
compor versos dedicados à Mãe Celestial, revelando-nos, assim, os efeitos
da leitura em sua vida:
(...) Abrió un libro de memorias, lo puso en sus rodillas, y escribió con lápiz en la primera página: << A la Virgen >>. Meditó, esperando la inspiración sagrada. Antes de escribir dejo hablar el pensamiento. Cuando el lápiz trazó el primer verso, ya estaba terminada, dentro del alma, la primera estancia. Siguió el lápiz corriendo sobre el papel, pero siempre el alma iba más de prisa; los versos engendraban los versos, como un beso provoca ciento; de cada concepto amoroso y rítmico brotan enjambres de ideas poéticas, que nacían vestidas con todos los colores y perfumes de aquel decir poético, sencillo, noble, apasionado. (Ibidem, p. 152).
Com a morte de dom Carlos, a jovem Ozores acaba ficando sob tutela
de suas duas tias solteironas e beatas, Águeda e Anuncia, regressando
novamente ao período de escuridão e repressão, e é nesta fase que a
personagem, segundo Vives (2000), volta a manifestar, mais intensamente,
sua vocação literária. O espírito de Ana almejava algo muito maior: ser ao
mesmo tempo criadora e fruidora da literatura religiosa que tanto a fascinava.
A jovem, que já não se contentava somente com as leituras, queria produzir,
transferir para o papel (um caderno de versos) a expressão dos seus mais
íntimos pensamentos e reflexões sobre a vida, porém, quando dona Anuncia
126
se depara com o caderno de versos de Ana Ozores, surge a primeira
surpresa: “Una Ozores Literata”:
Cuando doña Anuncia topó en la mesilla de noche de Ana con un cuaderno de versos, un tintero y una pluma, manifestó igual asombro que si hubiese visto un revólver, una baraja o una botella de aguardiente. Aquello era cosa hombruna, un vicio de hombres vulgares, plebeyos. Si hubiera fumado, no hubiera sido mayor la estupefacción de aquellas señoras. ¡Una Ozores literata!. (ALAS, 1997, p.172).
O desejo de se tornar escritora, de escrever um livro: “salió sola, con
el proyecto de empezar a escribir un libro, allá arriba, en la hondonada de los
pinos que ella conocía bien; era una obra que días antes había imaginado,
una colección de poesías << A la Virgen>>” (Ibidem, p.150), não condizia
com a mesquinha realidade provinciana que a rodeava: “Tan general y viva
fue la protesta del gran mundo de Vetusta contra los conatos literarios de
Ana, que ella mismo se creyó en ridículo y engañada por la vanidad” (Ibidem,
p.173). A partir deste fragmento, notamos que a atividade literária era tida
como algo completamente abominável, um vício de homens vulgares e
perdidos, não podendo se estender às mulheres burguesas que ainda eram
educadas em função de um dado modelo de feminilidade, e, ao fazermos
referências a este modelo, nos pareceu oportuno resgatar a figura do filósofo
Rousseau que, em Émile (publicado em 1762), descreve com muita clareza
os fundamentos do modelo de feminilidade que prevaleceu na Europa do
século XIX, principalmente nos países católicos.
Para Rousseau (1995), a mulher no seu “puro estado da natureza”
deveria ser domesticada para que seus desejos não prejudicassem, ou até
127
mesmo destruíssem a ordem social e a familiar. Valores como recato, pudor
e vergonha deveriam ser cuidadosamente cultivados com o objetivo de
conter todos aqueles desejos e componentes excessivos da natureza
feminina, ameaçadores para a sociedade, o que torna compreensível o
motivo pelo qual a Igreja Católica passa a predicar o modelo do filósofo
iluminista.
As mulheres, segundo Rousseau, teriam de ostentar virtudes próprias
da feminilidade como a docilidade e uma receptividade passiva em relação
aos desejos e necessidade dos homens. Era fundamental que elas fossem
educadas na timidez, em nome do equilíbrio das relações conjugais. Tornar-
se-iam, desta maneira, recatadas, submissas e modestas para melhor poder
governar a casa e a família, garantindo, assim, a tão almejada harmonia do
lar, do espaço privado.
Educadas em função desse modelo de feminilidade que, segundo
Stendhal57, inutilizava algumas das faculdades mais brilhantes capazes de
propiciar felicidade tanto a elas quanto a seus companheiros, notamos que
muitas das qualidades, idéias e ambições femininas permaneciam
esmagadas por uma educação que as condenava à ignorância e à
infantilidade, e, levando em consideração o fato de que “(...) las mujeres
deben ocuparse en más dulces tareas; las musas no escriben, inspiran”
(ALAS, 1997, p.173), vimos que Ana se vê obrigada a renunciar a essa
primeira vocação, a literária, a fim de evitar não só um grande escândalo,
57 Ver Stendhal (Henry Beyle). “De l’Education des Femmes”, em De L’Amor. Paris: Calmann- Lévy, 1998.
128
como também a completa desmoralização dos Ozores na conservadora
cidade. Citamos:
Tan general y viva fue la protesta del gran mundo de Vetusta contra los conatos literarios de Ana, que ella misma se creyó en ridículo y engañada por la vanidad. A solas en la alcoba algunas noches en que la tristeza la atormentaba, volvía a escribir versos, pero los rasgaba enseguida y arrojaba el papel por el balcón para que sus tías no tropezasen con el cuerpo del delito. (...) tuvo que renunciar en absoluto a la pluma; se juró a sí misma no ser la "literata" (Ibidem, p.173).
Fracassada a tentativa de se tornar uma escritora, não foi menor a
oposição que encontrou em suas manifestações místicas, influenciadas
pelas leituras religiosas. Nesta ocasião, a personagem, para se livrar de suas
tias e da enfadonha vida que vivia no casarão dos Ozores, pensa em ir para
um convento, tornar-se freira, mas foi o seu primeiro confessor, dom
Cayetano, quem se opôs severamente a essa idéia improvisada e sem
fundamento. Ana Ozores foi novamente obrigada a renunciar, desistindo da
possibilidade de se tornar esposa de Jesús. Como exemplo, citamos um
fragmento em que dom Cayetano a faz desistir do sacrifício, fazendo-a
acreditar que tudo aquilo (insônias, exaltações nervosas, visões místicas,
intuições poderosas da fé, enternecimentos repentinos e delírios) não
passava de “coisas da idade”:
(...) procuró convencer a su amiguita de que su piedad, si era suficiente para una mujer honrada en el mundo, no bastaba para los sacrificios del claustro. <<Todo aquello de haber llorado de amor leyendo a San Agustín y a San Juan de la Cruz no valía nada, había sido cosa de la edad crítica que atravesaba entonces. En cuanto a Chateaubriand, no había que hacer caso de él. Todo eso de hacerse monja sin vocación, estaba bien para el teatro, pero en el mundo no había Manriques ni Tenorios que escalasen conventos, a Dios gracias. La verdadera piedad consistía en
129
hacer feliz a tan cumplido y enamorado caballero como el señor Quintanar, su paisano y amigo.>> Ana renunció poco a poco a la idea de ser monja. (Ibidem, p.180).
Preocupado com os excessos místicos que, muitas vezes, levavam a
personagem a terríveis crises emocionais e a enfermidades gravíssimas, o
confessor aconselhou Anita, aos dezenove anos de idade, a se casar. O
pretendente era Víctor Quintanar, que, logo após ter se casado com Ana,
torna-se o respeitado Regente de Audiência. Ao se casar com dom Víctor, a
jovem, segundo Vives (2000), deixa de ser aquela pobre e desprotegida
menina, da qual ainda se lembra com ternura, e se transforma em La
Regenta, a mulher mais bela e cobiçada da cidade. Para isso, vimos que a
personagem teve de renunciar todas as suas aspirações e vocações
(literárias e religiosas), ajustando-se aos planos que suas tias e toda a
sociedade de Vetusta tinham estabelecido: nem escritora nem mística, mas
sim mulher do Regente, fato que também evidencia a presença do
determinismo na obra, já que a protagonista, produto do meio, da realidade
que a cerca, teve de seguir um caminho que não havia escolhido.
Muito mais que uma atividade voltada para o entretenimento, a leitura
era tida também, em especial, pela Igreja Católica, como uma prática
moralizante. O novo confessor de Ana Ozores, Fermín de Pas, el Magistral,
percebendo a incipiente atração da jovem por Álvaro Mesía, chefe do partido
liberal, seu maior adversário político, recomenda-lhe uma série de leituras
santas, livros edificantes, com o propósito de orientá-la e alertá-la sobre os
perigos da vida. El Magistral, leitor de revistas científicas, publicadas por
130
jesuítas, e autor de vários sermões e outros trabalhos literários, dentre eles a
obra Historia de la Diócesis de Vetusta, tenta convencer Ana de que a
melhor solução para evitar o surgimento de pensamentos impróprios, que
pudessem levá-la ao caminho da perdição, ou seja, a consumação do
adultério, seria a ocupação religiosa. Sua proposta era transformá-la beata,
pois, assim, dedicaria sua vida à religião e não ao amor proibido. Citamos:
Más habló el Magistral para exponer el plan de vida devota a que había de entregarse en cuerpo y alma su amiga desde el día siguiente, y terminó tratando con detenimiento especial la cuestión de las lecturas. Recomendó particularmente la vida de algunos santos y las obras de Santa Teresa y algunos místicos. - Basta con leer la vida de la Santa Doctora y la de María de Chantal, Santa Juana Francisca, por supuesto, sabiendo leer entre líneas, para perfeccionarse, no al principio, sino más adelante. (ALAS, 1997, p.532).
No entanto, as leituras religiosas recomendadas por Fermín, nesta
quarta fase relativa à educação da personagem, não produziram nenhum
efeito em Ana, pelo contrário, só contribuíram para o agravamento da
situação, pois cada vez que ela os lia, a personagem sentia-se muito mais
entediada. Estes livros piedosos “la hacían caer en somnolencia melancólica
o en una especie de marasmo intelectual que parecía estupidez” (Ibidem,
p.547), e essa nítida insatisfação pôde ser percebida em uma cena de La
Regenta em que o próprio Magistral presencia o desprezo de Ozores, que,
depois de ter lido quase cinco minutos do livro que ele lhe havia
presenteado, joga-o sobre um banco com desdém. Vejamos: “Había visto a
la Regenta en el parque pasear, leyendo un libro que debía ser la historia de
Santa Juana Francisca, que él mismo le había regalado. Pues bien, Ana,
131
después de leer cinco minutos, había arrojado el libro con desdén sobre un
banco” (Ibidem, p.555).
Cada vez mais persistente em sua grande missão, convertê-la beata,
o ambicioso clérigo continua direcioná-la à doutrina cristã, e é a partir da
leitura da autobiografia de Santa Teresa que o confessor conseguirá os
primeiros resultados, o que vem a corroborar não só os efeitos da leitura na
vida da personagem leitora, mas também a ocorrência de uma educação
moralizante feita por meio de livros santos.
Amar a Deus por intermédio da Santa, sua adorada heroína de tantas
façanhas de espírito, de tantas vitórias sobre a carne, foi seu maior objetivo.
Nesta nova fase, Ana Ozores, apesar da má assistência e de uma educação
conturbada, dava estranhas formas à piedade sincera, ou seja, a distorcia,
chegando a ponto de desejar encontrar semelhanças entre sua vida e a da
religiosa, o que nos faz pensar na existência de um espírito de imitação que
se apoderou da jovem, sem que a mesma desse conta do tamanho
atrevimento de tal pretensão.
Esculpida nos moldes do cristianismo, Ana, era, por fim, tudo que
Fermín de Pas havia sonhado, desde o primeiro dia em que ela lhe havia
procurado no confessionário da catedral. Imagem e semelhança da
personagem de La perfecta casada, de Fray Luis de León, que, por sua vez,
servira de modelo exemplar para Ana, o de mulher virtuosa, vimos que há
indiscutivelmente uma educação feita por meio da leitura, uma vez que a
protagonista passa a demonstrar em seu comportamento, em seus atos,
mais afetuosidade, disciplina e respeito para com seu marido, Víctor
132
Quintanar, e para com suas obrigações como cristã. Para melhor comprovar
a existência desta transformação, nos pareceu interessante citar o fragmento
em que ela mesma reconhece a validade do aprendizado:
(...) he mejorado mucho; porque fray Luis de León me enseñó en su Perfecta casada que en cada estado la obligación es diferente; en el mío mi esposo merecía más de lo que yo le daba, pero advertida por el sabio poeta y por usted, ya voy poniendo más esmero en cuidar a mi Quintanar y en quererle como usted sabe que puedo. (Ibidem, p.634).
Leitora assídua, assim como Dom Quixote e Emma Bovary, Ana
Ozores “escreve e desenha seus sintomas segundo suas leituras” (CATELLI,
2003, p.131. Tradução nossa)58, o que a torna indiscutivelmente a
personagem mais esplêndida de toda a obra. Desde jovem, Ana tem seu
imaginário alimentado pelas leituras, o que a estimulou a tornar-se a
protagonista principal de seu próprio romance, já que concretiza no real os
projetos de tudo aquilo que encontrara nos livros.
Na narrativa de Clarín, a leitura funciona como um modelo geral de
construção do sentido, e as experiências das personagens, em especial as
de Ana Ozores, estão indubitavelmente relacionadas aos tipos de leitura que
estes realizavam. Desta forma, notamos que, em muitos casos, o que se leu
torna-se uma resposta que permite dar sentido à experiência, de forma a
defini-la, concretizá-la, e, em razão disto, a leitura passa a ocupar um lugar
de destaque no romance.
Neste aspecto, aproximamo-nos novamente a Don Quijote, sobretudo
se considerarmos o fato de os protagonistas buscarem nas ficções que leram
58 “escribe y dibuja sus síntomas según sus lecturas”.
133
um modelo de vida que admiravam e que queriam viver. Para Piglia, “a vida
se completa com um sentido que se toma do que se leu em uma ficção”
(PIGLIA, 2005, p.104. Tradução nossa)59, e é justamente este sentido que
Ana irá buscar e encontrar nas narrativas românticas que leu.
A personagem decifra a sua própria vida através das leituras que
realiza, vendo-as, assim, como modelo privilegiado de experiências reais, e
estas experiências individuais relacionadas à leitura favorecem o
aparecimento do bovarismo, em outras palavras, a ilusão de realidade da
ficção. Como vimos, há algo que falta na vida de Ana Ozores, e é
exatamente isto que a jovem buscará na literatura, no livro (objeto de desejo,
de consumo).
Ao analisarmos a história da protagonista, verificamos que há uma
série de transformações, mudanças, mas, em meio de tantas metamorfoses,
vemos também uma série de continuidade, de persistência, e esta está
certamente relacionada à leitura, uma prática que a acompanha desde sua
infância, período em que manifesta uma vontade imensurável de aprender a
ler.
A partir da segunda metade do século XIX, surge uma produção
literária direcionada ao público feminino que tenta dar uma resposta
imaginária aos anseios reprimidos de uma grande parte das mulheres
burguesas. Segundo Kehl, “os projetos de mudar de vida, numa mulher
infantilizada pela sua posição na família, só poderiam realizar-se por duas
vias: a do amor (adultério, aventura, ‘fuga’ romântica para um lugar distante)
59 “la vida se completa con un sentido que se toma de lo que se ha leído en una ficción”.
134
ou a do devaneio literário” (KEHL, 1998, p.17), e, em La Regenta, estes
foram os dois caminhos percorridos por Ana Ozores que tenta, num primeiro
momento, por meio da literatura e, posteriormente, por meio do adultério,
encontrar o caminho para a tão almejada felicidade.
O objetivo de fazer da vida uma grande aventura, versão romantizada
dos devaneios de ascensão social e de independência que sustentam a
ordem burguesa, entra em conflito com as exigências da disciplina familiar
que, por sua vez, também se vêm ameaçadas pelas inúmeras
transformações, sobretudo, as de ordem social, decorrentes das revoluções
sucedidas na Europa a partir de século XVIII. Impossibilitada, portanto, de se
expressar poeticamente, Ana Ozores, assim como Emma Bovary, viu
provavelmente no adultério uma nova possibilidade de descobrir o amor,
sentimento que até então desconhecia.
Neste aspecto, a semelhança entre a personagem de Clarín com a de
Flaubert é notória, e, ao estabelecermos uma comparação entre ambas,
vimos que tanto Ana como Emma presumem ser o mundo semelhante às
narrativas idealizadas que passaram a ler desde a juventude. Sendo assim,
notamos que Ana, da mesma forma que Emma Bovary, lê tudo como se
fosse um romance sentimental, atribuindo, sob esta perspectiva, um novo
significado a um “(...) amplo número de livros sérios << de verdadeira arte
>>, fábulas gregas, poesia homérica e pastoril clássica, San Agustín,
Chateaubriand e San Juan de la Cruz, além de toda classe de antologias,
135
florilégios, parnasos e livros de edificação” (CATELLI, 2001, p.128-129.
Tradução nossa)60.
Essa visão romântica do mundo, entretanto, não será um fato gratuito
em La Regenta. Na narrativa de Clarín, pudemos notar a presença do poder
vivificador do sofrimento e do triunfo da dor, já que se trata de uma
sociedade marcada por todas as espécies de corrupção humana, tais como a
inveja, a perversidade e a hipocrisia. Em contraposição, Ana Ozores
representará a pureza e a beleza dessa realidade sufocante, e esta
incompatibilidade com o mundo provocará na personagem não só o
surgimento de uma sensação de isolamento, como também uma sensação
de incompreensão e tédio, fatores que muito contribuíram para o desgaste
do casamento e a consumação do adultério.
No texto “Lecturas y lectores de Clarín”, Oleza (2003) também chama-
nos a atenção para estas questões. A protagonista, em virtude de sua
personalidade conflitante, de frustrações anímicas e de fortes pressões do
meio, em outras palavras, da realidade, consegue reunir mais motivos que
qualquer outra heroína para a insatisfação pessoal, o que a faz buscar uma
nova vida, e, segundo o autor, nenhum outro romance europeu apresentou
tantos argumentos, tantas razões como o fez Clarín em La Regenta para a
traição.
Deslumbrada com a possibilidade de uma nova condição, libertando-
se daquela vida enfadonha e angustiante que levava ao lado de seu marido,
60 “(...) amplio continente de libros serios << de verdadero arte >>, fábulas griegas, poesía homérica y pastoril clásica, San Agustín, Chateaubriand y San Juan de la Cruz, además de toda clase de antologías, analectas, florilegios, parnasos y libros de edificación”.
136
Ana Ozores entrega-se ao amor proibido, violando, abruptamente, dois dos
principais pilares do modelo de feminilidade: a casa e o casamento. De <<La
perfecta casada>> passa a assumir uma outra posição, a de <<Mujer
insatisfecha>>, e esta representação (figura) tornar-se-á bastante comum em
muitos dos romances publicados a partir da segunda metade do século XIX
por escritores como Flaubert, Eça de Queirós, Galdós, George Eliot, León
Tolstoy e o próprio Leopoldo Alas.
Marcada pela condição de mulher adúltera, Ana Ozores foi tida como
a principal culpada pela trágica morte de dom Víctor Quintanar, assassinado
em um duelo por Álvaro Mesía, chefe do partido liberal. Caíram-lhe todas as
responsabilidades do crime. Desprotegida e, sobretudo, desmoralizada por
todos, inclusive pelos amigos mais íntimos e por seu confessor, Fermín de
Pas, a personagem é brutalmente castigada por ter tido a incapacidade de
preservar um dos elementos mais preciosos em uma relação proibida: o
silêncio. A verdade emerge e a cidade inteira, completamente
“escandalizada” com o caso, celebra a sua queda, o seu fim moral:
Vetusta la noble estaba escandalizada, horrorizada (...) ¡Era un escándalo! ¡Un adulterio descubierto! ¡Un duelo! ¡Un marido, un ex-regente de Audiencia muerto de un pistoletazo en la vejiga! (...). Aquel tiro de Mesía, del que tenía la culpa la Regenta, rompía la tradición pacífica del crimen silencioso, morigerado y precavido (...). Y se la castigó rompiendo con ella toda clase de relaciones. No fue a verla nadie. (ALAS, 1997, p.934-936).
A personagem não foi capaz de adaptar-se à realidade de Vetusta e
tampouco ao discurso que vinculou a nova condição social da mulher a suas
funções no matrimônio e dentro de sua própria casa. A partir do
137
Renascimento, as mulheres são reconhecidas como parte integrante da
sociedade, queremos dizer, como sujeito civil, porém este reconhecimento
estaria vinculado a algumas condições, dentre as quais podemos destacar a
subordinação da figura feminina à casa, aos filhos e ao marido. Moldadas,
desde o princípio, para as atividades e funções que deveriam desempenhar
no casamento, as mulheres tornam-se servas da casa, seres comprometidos
exclusivamente com as obrigações domiciliares, e, em nossos estudos,
notamos que esta condição muito contribui, na verdade, para o desgaste de
várias relações conjugais. Ao mesmo tempo em que cresce um sentimento
de frustração, nasce um forte desejo de libertação, de fuga, e o adultério será
um dos caminhos escolhidos por muitas mulheres que pretendiam buscar
uma nova vida. A doce domesticidade deixa, portanto, de ser o paraíso e
passa a transformar-se num verdadeiro martírio, e vários formam os
romances da época que representaram magistralmente a crise desta
conflitante inversão.
O mundo real torna-se o pior inimigo de Ana Ozores, da mesma
maneira que o foi para Alonso Quijano e Emma Bovary, personagens que
morrem, segundo Bloom (1966, p.01-04), assassinados pela realidade.
Vetusta representa uma sociedade de aparências, onde a verdade, por mais
deplorável que fosse, deveria ser mascarada a todo custo. Ana Ozores,
deixando-se levar ora por desejos espirituais, caindo no misticismo, ora pelos
desejos carnais, se entregando ao amor proibido, rompe esse tão importante
silêncio, provocando, assim, um grande escândalo público na heroica ciudad.
138
Na vida de Ana Ozores tudo se romantiza. Sua vida é concebida como
um grande romance: “se ocultaban los buenos vetustenses el íntimo placer
que les causaba aquel gran escándalo que era como una novela, algo que
interrumpía la monotonía eterna de la ciudad triste” (ALAS, 1997, p.934), e
foi esta imagem, a de uma vida assimilada à leitura, quem realmente nos
motivou a empreender um estudo sobre as representações imaginárias do
ato de ler e as figurações dos leitores em La Regenta, um dos maiores e
mais importantes romances naturalistas da literatura espanhola.
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CONCLUSÃO
A leitura constitui “uma atividade essencial a qualquer área de
conhecimento e mais essencial ainda à própria vida do Ser Humano” (SILVA,
1987, p.42), porque é a partir dela que o leitor consegue aprender a ler o
mundo, ou seja, a compreender o seu contexto, interpretando-o não através
de uma manipulação mecânica de palavras, mas sim de “uma relação
dinâmica que vincula linguagem e realidade” (FREIRE, 1983, p.8), e foi por
meio do importante ato de ler que o escritor Leopoldo Alas “Clarín”, como
jornalista, crítico literário e romancista, construiu novas experiências, novos
conhecimentos, podendo, a partir desta significativa construção, recriar na
atmosfera ficcional do romance naturalista La Regenta seres altamente
comprometidos com essa atividade tão fundamental à vida.
Com o propósito de estudar as figuras da leitura e do leitor em La
Regenta, foi necessário, antes de tudo, perpassar pelas origens do realismo/
naturalismo europeu na segunda metade do século XIX, a fim de apresentar
as principais doutrinas dos movimentos que impulsionaram muitos escritores
espanhóis a dedicar-se ao princípio da representação da realidade.
Além das influências de Zola, os movimentos realista/ naturalista na
Espanha contam também com inúmeras contribuições de duas importantes
obras: El Lazarillo de Tormes e Don Quijote de la Mancha. Muitas das
inovações propostas por ambas (a individualização do protagonista, a
determinação do tempo, a especificação dos espaços na narrativa, o
plurilingüismo social, a educação sentimental feita pelos livros e outras) vêm
140
ao encontro da afirmação dos escritores Clarín e Bazán, que atribuem à
picaresca e ao primeiro romance moderno uma primordial importância na
constituição do romance peninsular, e foram justamente estas inúmeras
contribuições, especialmente aquelas que se encontravam vinculadas aos
temas relacionados às figuras da leitura e do leitor, que procuramos
considerar e evidenciar em nossos estudos.
De acordo com a proposta realista/ naturalista de retratar o mundo real
na ficção, Leopoldo Alas recria em La Regenta, através de construções
literárias, um verdadeiro painel das inúmeras transformações sucedidas na
Espanha, a partir da segunda metade do século XIX, e a mais relevante para
nosso trabalho foi indubitavelmente o crescimento do público leitor, que
conseqüentemente proporcionou o aumento na produção de livros e a
ampliação de espaços, tanto públicos como privados, específicos para as
atividades vinculadas à leitura. E, paralelo à popularização do texto impresso
e ao ingresso massivo de novas camadas no mundo das letras, verificamos
que os temas relacionados à leitura ganham proporções cada vez maiores
no âmbito literário, especialmente depois da publicação de Madame Bovary;
logo, não é gratuito o fato de encontrarmos notáveis figuras de leitores nas
páginas dos romances da época.
O ato de ler é uma prática social que apresenta incontestavelmente
inúmeras conseqüências na vida dos personagens leitores de La Regenta,
em especial da jovem Ana Ozores, e, ao analisarmos as quatro fases
correspondentes à educação e aos tipos de leituras que a personagem
realizou durante sua trajetória como leitora, pudemos claramente observar os
141
efeitos provocados pela leitura e como estes se manifestavam na narrativa
de Clarín, contribuindo, assim, para com a extrema profundidade do enredo
de um dos mais complexos romances da literatura espanhola.
Ana Ozores é uma personagem-leitora. Desde criança, demonstrou
uma grande necessidade de saber ler, de entrar em contato com o mundo
das letras. Ana via na literatura uma espécie de caminho para fugir da cruel
realidade em que vivia, e, por meio da leitura, a personagem, tal como a Dom
Quixote e Madame Bovary, pôde idealizar e viver no real todas as suas
fantasias amorosas e proibidas.
A partir da leitura, verificamos que muitos foram os desejos
manifestados pelos personagens leitores de La Regenta, sobretudo por Ana
Ozores, porém muitos foram os sonhos censurados e vetados por uma
sociedade castradora, que, ao final da narrativa, comemorava a completa
desintegração física e moral daqueles que não conseguiam encarar, de
frente, a desumana realidade.
Poucos foram os momentos autênticos em que Ozores pôde se sentir
livre, desprendida daqueles sufocantes códigos de valores (moral) que
deveria seguir impreterivelmente, daí a necessidade de fazermos um sucinto
comentário sobre o modelo de feminilidade que baseava seus princípios na
valorização do recato, do silêncio e da contenção de toda e qualquer forma
de manifestação que pudesse desestruturar uma das mais importantes
unidades do século XIX: a família burguesa.
Todas essas imposições marcaram profundamente a trajetória de Ana
Ozores que, quanto mais lia, mais manifestava aspirações e desejos de viver
142
uma nova vida, rompendo com o valorizado modelo de mulher virtuosa, de
rainha do lar, determinado pela sociedade burguesa da época.
Sendo assim, concluímos esta dissertação com a certeza de que a
leitura assume uma função essencial na construção do romance La Regenta,
especialmente se considerarmos o fato de Leopoldo Alas “Clarín” promover,
ao longo da narrativa, imagens vinculadas à leitura de romances,
evidenciando, assim, a forma com a qual os personagens leitores da obra
construíam suas próprias experiências de vida a partir do que liam.
143
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