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MANO MANO A São os primeiros companheiros da vida uns dos outros. Repartem alegrias e tristezas. São como unha com carne. Ou então odeiam-se, com a mesma força do sangue que os une. São... irmãos. TEXTOS DE KATYA DELIMBEUF FOTOGRAFIAS DE ANTÓNIO PEDRO FERREIRA IRMÃOS

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MANOMANOA

São os primeiros companheiros da vida uns dos outros. Repartemalegrias e tristezas. São como unha com carne. Ou então odeiam-se,com a mesma força do sangue que os une. São... irmãos.TEXTOS DE KATYA DELIMBEUF FOTOGRAFIAS DE ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

IRMÃOS

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CConhecem-se como as palmas das própriasmãos. Muitas vezes, não precisam de falarpara perceberem como está o outro. Ou-tras, não se suportam — só um amor tãoextremado pode degenerar em ódio... Sãoirmãos e irmãs. Crescem juntos. Acompa-nham-se. Rivalizam pelo amor dos pais.Guerreiam. Aprendem os primeiros papéissociais entre si. São o espelho um do outro— ou então, tão diferentes que nem se per-cebe como são fruto dos mesmos pais.Quão importante é ter irmãos? O que in-fluencia e se altera devido a isso? Foi o quetentámos perceber junto de várias famíliasem que as fratrias são fundamentais.

“Nos dias de hoje, cada vez mais, o queé perene na relação da família é a fratria”,considera Ana Vasconcelos, pedopsiquia-tra desde 1983. Mãe de três filhos, a clínicade pediatria acredita que, num tempo dedivórcios crescentes e numa sociedade ex-cessivamente individualizada, a relaçãodos irmãos é das mais estáveis e mais ricas.“Com as separações, os irmãos são cada vezmais influentes na vida uns dos outros. Porvezes, são eles próprios que sustentam o nú-cleo familiar.” Mas as fratrias não são im-portantes apenas nos momentos difíceis.“Os irmãos cumprem uma primeira fase desocialização, com uma afetividade melhora-da em relação a quem não os tem.” Háaprendizagens que se fazem “antes de tem-po” graças a eles. Através de um irmão commau feitio, pode-se gerir o ser mais toleran-te, por exemplo. O respeito pela diferença...“Um filho único não consegue esgrimir ar-gumentos tão facilmente...”

Há outras capacidades que um filho

único não desenvolve, garante Pedro Fra-zão, 35 anos, psicólogo e terapeuta familiarhá 12. Para ele, “os irmãos influenciam nacapacidade de se porem na pele do outro edesenvolvem noções de estratégia nego-cial. A gestão de conflitos, a cooperação e apartilha” são outras aprendizagens mais rá-pidas de quem tem irmãos.

Mas a ordem do nascimento tambémassume um papel no desenvolvimento dapersonalidade de cada um. “Os mais ve-lhos”, explica, “são aqueles em que recaemmais expectativas. Se tiverem um papel ne-gativo, podem tornar-se ‘perigosos’, porquedão um mau exemplo. Mas, no caso de ha-ver mau ambiente em casa, tornam-se osprotetores.” Ana Vasconcelos completa:“Há padrões de irmãos. O primeiro filho faztudo o que os pais mandam. Muitas vezessão calados e bem-comportados, mas nãocriam uma personalidade individual, comopiniões próprias. Geralmente, a seguir aum filho destes vem um hiperativo, com dé-fice de atenção. Este já não tem de ser bem--comportado — é desafiador.”

“Os filhos mais novos são mais diretosa dizer o que sentem”, acredita Pedro Fra-zão. Frequentemente, são protegidos e tra-tados de modo mais permissivo. Ambos osterapeutas concordam que o “filho domeio” (que pode ser o segundo de três ir-mãos ou todos os que estão entre o primei-ro e o último) é “aquele que mais precisa deprocurar o seu papel na família”. “O irmãodo meio não tem estatuto”, ressalva AnaVasconcelos, “é o da ambivalência. Mas po-de ter um trabalho mais rico na família.”

O FILHO PREFERIDOAlém das influências que exercem uns nosoutros, há também a questão do tempo emconjunto: está estudado que os irmãos são aspessoas com quem as crianças passam maistempo ao longo da vida. E as alianças entreirmãos fazem-se contra o filho preferido.“Há alianças de temperamento”, mais do quepor oposição, considera a pedopsiquiatraAna Vasconcelos. Pedro Frazão defende queas rivalidades estão mais relacionadas “como tratamento diferenciado por parte dospais” do que com a ordem do nascimento.

Eterna pedra no sapato, um estudo pu-blicado na revista “Time” afirma que, aocontrário do que se possa pensar, o favori-tismo dói essencialmente ao irmão que se

sabe alvo da preferência. Nesse artigo, deJeffrey Kluger, sobre a “ciência do favoritis-mo”, o autor declara que as crianças sabemsempre qual é o filho preferido — mas queisso não as afeta desde que não se sintamobjeto de menor atenção por parte dospais. Mas é preciso cuidado para a criançapreferida não ser demasiado protegida enão se transformar num pequeno tirano.No livro “The Favorite Child”, a psicólogaamericana Ellen Liby garante que, na guer-ra do filho favorito, até quem parece levar amelhor pode sair prejudicado. “Esse ‘meni-no de ouro’, que vê todos os seus desejosrealizados, pode tornar-se um mestre na ar-te da manipulação.”

Há questões ainda mais melindrosas,como a dos “filhos substitutos”, que che-gam tragicamente após a morte de um ir-mão e tendem a ser a sua “sombra”. Exis-tem exemplos entre personalidades ilus-tres. Salvador Dalí, o conhecido artista cata-lão, nasceu dois anos após a morte de umirmão — e até recebeu o mesmo nome... Asbiografias contam que desde muito novo ti-nha atitudes extremas, como atirar-se dasescadas abaixo, para se diferenciar do ir-mão. Também James Mathew Barrie, o ro-mancista escocês que ficou na História co-mo o criador de Peter Pan, viveu um dramasemelhante: aos 6 anos, o seu irmão maisvelho, David — o filho preferido da mãe —,morreu num acidente de patinagem. James(o nono de dez irmãos) ocupou a partir deentão o lugar desse favorito, usando as mes-mas roupas e assobiando do mesmo modo.Mas cresceu sempre num mundo de fanta-sia e nunca teve filhos. Uma coisa é certa:todos os entrevistados consideram umaenorme mais-valia ter irmãos.

E nem uma páginasobre os irmãos

Cavaco?!

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IRMÃOSMORAIS

SARMENTO

São seis irmãos e uma irmã. Os MoraisSarmento cresceram “ao murro e ao ponta-pé”, gosta de dizer o mais conhecido dossete, o ex-ministro da Presidência e dosAssuntos Parlamentares Nuno MoraisSarmento. Mas entre bulhas e “malhanços”dos mais velhos sobre os mais novos, “ou, acerta altura, dos ímpares contra os pares”,criaram uma forte identidade conjunta,partilham os mesmos valores de exigênciae de trabalho, de religião e de família. Hoje,já adultos, são todos casados e pais devários filhos — com exceção do maisvelho, Tójão (António João), que só tem um—, talvez por terem vivido no meio daalgazarra. “O facto de quatro de nós termosquatro filhos está muito ligado à vivênciacom os nossos irmãos”, confessa Gonçalo.Todas as semanas, religiosamente, almo-çam em casa da mãe, em Lisboa, e nuncase zangaram a ponto de se deixarem defalar. Por motivos familiares — o pai foisaneado no 25 de abril de 1974 e estevedesempregado vários meses e o tio teveum enfarte e morreu no dia seguinte a terperdido o emprego —, todos os irmãosdesenvolveram valores de direita. A mãe,já com seis filhos, viu-se obrigada a traba-lhar depois do 25 de abril. A revoluçãomarcou a família. Os últimos irmãos passa-ram para o ensino público. Nuno chegou air a Londres para vender os candelabros deprata da avó. Já o mais novo, Miguel, estava“excitadíssimo” com a perspetiva de andarde avião quando, a certa altura, se equacio-nou a questão de ir para o Brasil.“Não há comunistas nem Bloco de Esquer-da cá em casa”, gracejam. “Exigentes ecompetitivos”, valores incutidos pelo pai,“crentes e generosos”, graças à mãe, Antó-nio João, Gonçalo, Nuno, Miguel, Tiago eGuilherme (a irmã, Maria João, não seencontrava no país) conversaram com oExpresso numa casa de família épica, asGaeiras. O clã, meio resistente ao início,fruto da exposição pública de Nuno, aca-bou por relaxar e falar da vivência a sete.Contam que são dois os grupos naturais deirmãos, segundo a divisão dos quartos: osmais velhos (António João, de 54 anos,Gonçalo, de 52, Nuno, de 51) e os mais novos(Miguel, de 49, Tiago, de 48, e Guilherme, de

42). Durante anos, isso pautou a organizaçãointerna. A rapariga — Maria João, de 46anos — tinha um quarto só para ela, emborafosse one of the guys. Brincava com carri-nhos, não com bonecas. “E era a menina dopapá”, claro. Os mais velhos gozaram dealguns privilégios, conta Guilherme, o benja-mim: “Os três mais velhos tiveram moto, osmais novos não...” Mas, a identificar um“preferido”, todos apontam o primogénito...Em adultos, houve outro grupo que seconstituiu, argumentam Tójão, Miguel eGuilherme: “o dos engenheiros”, maisparecidos com o pai, também engenheiro.António João, Miguel e Guilherme dizemque a profissão lhes dá uma organizaçãomental própria, semelhante. Os restantes,Gonçalo, cirurgião ortopédico, Nuno,advogado, Tiago, gestor, e Maria João(trabalha numa IPSS, em ação social), “têmuma visão mais abrangente do mundo”(Nuno dixit). Risada geral. Miguel rematamais uma “divisão”: “Os ímpares erammais pai e os pares mais mãe.” Os ímparesmais independentes, os pares menos...

A CONTA DAS MEDALHASNuma coisa são unânimes: foram educadosnuma cultura de muita exigência. E decompetitividade, prerrogativa paterna.“Quando o nosso pai perguntava as notas àfrente de todos, era uma vergonha paraquem tinha pior. Não se podia ser maualuno cá em casa. Se um de nós tivesse um18, o pai era capaz de dizer que ele eraburro, porque quem tem um 18 tem um20”, lembra Gonçalo, o cirurgião. E recor-dam a história da “conta das medalhas deouro” do Colégio São João de Brito, ondeandaram os quatro mais velhos. O melhoraluno de cada disciplina tinha direito amedalha no fim do período, e o pai MoraisSarmento dizia, com orgulho mal disfarça-do: “Eu vou à falência com estes gajosquando os padres me apresentarem aconta”, tal eram as “centenas de medalhas”

que lá iam parar a casa. Da mãe herdarama “influência religiosa” (são “católicos prati-cantes”), a “generosidade” e a “capacidadede perdão” — todos praticam ação social.Em comum, têm “a paixão pelo mar”. Dossete, seis têm carta de marinheiro e carta demergulho, bichinho que ficou das fériaspassadas em Carcavelos anos a fio, “quatromeses de praia de manhã à noite”. O despor-to também os une — sempre o praticaram eainda o fazem. “Nunca fiz um jogo sem serpara ganhar”, dizia o pai Morais Sarmento,evidenciando a sua veia competitiva. Nata-ção, boxe, desportos motorizados, râguebi,ténis, voleibol, pingue-pongue, futebol ouesqui aquático são alguns dos desportos deeleição. Gonçalo é vice-presidente da Fede-ração de Motociclismo de Portugal, Nunoainda mergulha nas águas do Tofo, emMoçambique, onde tem um hotel.“Também somos todos muito críticos”,acrescenta Nuno. “Divertimo-nos a gozaruns com os outros, com muita descontra-ção.” E ai de quem se melindre, pois aí éque está tramado... Em comum, ainda, apaixão por banda desenhada, em francês.Todos leram os Astérix, os Tintim e osSpirou, que passaram pelas mãos dos setee se mantêm impecáveis... E o amor àsviagens, transmitido pela tia Gi, umamulher incomum, com duas licenciaturas— Geografia e Matemática —, que todos osanos fazia viagens incríveis à Índia ou àChina e “trazia os desdobráveis, os mapas,e contava as histórias ao jantar”...Apesar de se considerarem “muito indivi-dualistas”, são muito unidos. “Quando hápouca tolerância em relação a algumassunto que se percebe que não caiu bema um irmão, não se volta a abordar”, dizGuilherme. Detestam que Nuno tenhauma exposição pública e sentem o tempoem que este foi ministro como uma perdapara a família. Mas concordam: “Não émuito comum verem-se irmãos que sedão tão bem como nós.”

“OS ÍMPARES ERAM MAISPAI E OS PARES MAIS MÃE”

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PARES E ÍMPARESOS SEIS IRMÃOS MORAISSARMENTO, NA SALA DEJANTAR DA CASA DASGAEIRAS. DA ESQUERDAPARA A DIREITA: TIAGO,GUILHERME, NUNO,TÓJÃO (ANTÓNIO JOÃO),MIGUEL E GONÇALO. EMBAIXO, COM OS PAIS E AIRMÃ MARIA JOÃO (QUEESTAVA AUSENTE DOPAÍS NA ALTURA DA FOTODE CIMA)

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FAMÍLIA PARTIDAISABEL PINTO COELHO (67ANOS) E MARIA FILOME-NA MÓNICA (69), NA CASADA SOCIÓLOGA, EM LIS-BOA. OS IRMÃOS MAISNOVOS, ANTÓNIO (59ANOS) E TERESA (58),NÃO QUISERAM PARTICI-PAR NA ENTREVISTA. NAFOTO DE BAIXO, OS QUA-TRO IRMÃOS NO PRIMEI-RO CASAMENTO DEMARIA FILOMENA MÓNICA

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IRMÃSMÓNICA

Há famílias indivisíveis. E outras que separtem. Seja na altura das partilhas, sejadepois de um acontecimento traumático.Na família de Maria Filomena (Mena)Mónica, os outros três irmãos cortaramrelações com ela após a publicação da sua“Autobiografia”, livro considerado comouma “bomba” pelo teor intimista dasrevelações, o que é raro em Portugal.Nenhum dos irmãos da reputada sociólogacompareceu no lançamento da obra, hácinco anos. O irmão mais novo, António,não voltou a vê-la, e as irmãs Isabel eTeresa estiveram mais de um ano derelações cortadas com ela. Mas MenaMónica garante, anos volvidos, estar deconsciência tranquila e não ter escritonada que não fosse verdade. Para ela, averdadeira origem da zanga dos irmãos foia doença da mãe, que travou uma luta de11 anos contra o Alzheimer, e a formacomo todos lidaram com esta perda. “Foi oAlzheimer que partiu a família”, consideraa professora catedrática. Como convivemquatro irmãos com cisões entre si? Conver-sámos com as manas mais velhas.Maria Filomena é a mais velha, com 69anos. Isabel tem 18 meses a menos. “Numacasa com 13 assoalhadas, eu e a Isabelpartilhávamos um quarto”, conta MariaFilomena. “E isso dava-nos uma enormeintimidade.” Os quartos dos irmãos maisnovos eram muito longe, na outra pontada casa. Nunca perceberam exatamenteporquê. “Durante anos, parecia que eu sótinha uma irmã”, relata a socióloga. “O Tó[59 anos, advogado] tinha um quarto àparte, por ser rapaz, e a Teresa [58 anos,ex-técnica da Biblioteca Nacional] dormianum quarto com a governanta. Portanto, onosso quarteto começou por ser um dueto

— e depois o dueto estendeu-se a outrodueto, com as irmãs mais velhas a faze-rem quase de protetoras dos irmãos maisnovos”, diz Mena Mónica, sempre deconversa viva e polvilhada de humor.O tempo em que “as Mónicas” (comochamavam às duas irmãs quando a adoles-cência as tornou no alvo das atençõesmasculinas) cresceram era outro: o dosvestidos brancos com folhos, dos lacinhos,das “soquetes”. Era suposto as meninasserem dóceis, submissas e terem por únicoobjetivo casar e educar os filhos. OraMaria Filomena não podia estar mais nosantípodas disto. Ao chegar à adolescência,tornou-se na rebelde que afrontava a mãe.Descobriu o sexo e teve “centenas denamorados”. Foi expulsa de um colégiointerno de freiras, em Londres, “por organi-zar greves às missas”. Apaixonava-se porbad boys que a tratavam mal e por quemse sentia irremediavelmente atraída. Fezvárias tentativas de suicídio. Casou-seapenas porque engravidou (embora nin-guém soubesse). Mais tarde, deixou os doisfilhos com o pai, quando foi para Oxfordtirar o doutoramento, sofrendo a censurasocial — porque uma mãe nunca abando-na as suas crias. Divorciou-se aos 27 anos,num tempo em que não havia divórcios.Maria Filomena haveria de casar-se maisduas vezes: teve três maridos, facto raríssi-mo numa portuguesa da sua geração.

DUAS IRMÃS,DOIS TEMPERAMENTOSA irmã mais nova, Teresa, haveria de lheseguir as pisadas, tendo-se também divor-ciado e tornado a casar e a ter filhos. “Umanoite, já eu tinha os meus filhos, a Teresaapareceu em minha casa. Estava a chovermuito e ela vinha de soquetes”, recordaMena. “Tinha 16 anos e decidira fugir como namorado...” Foi nessa altura que houveuma maior aproximação entre as duas,enquanto Tó e Isabel, já adultos, tambémse tornaram mais cúmplices.A diferença de feitios entre as irmãs maisvelhas, Mena e Isabel, não se construiu,

segundo elas, na oposição. “É genético”,assegura Filomena. “Eu sou mais conflituo-sa. Adoro guerras, trocas de argumentos.Aliás, a minha mãe escreveu, no livro dobebé, que a minha primeira palavra foi‘não’.” Isabel também não recorda nenhu-ma rivalidade entre as duas. “Até éramosbastante amigas.” Mas “para não criarmais problemas na família”, e por ver asdiscussões que a conduta da irmã provoca-va, ela manteve-se sempre dócil e afetuo-sa. “Eu era tão maluca que percebo que aminha irmã tenha ficado um bocadotraumatizada”, conta Filomena. “Comopercebo que a minha mãe perdesse acabeça comigo.”Conciliadora, Isabel lembra-se de sentirpena da mãe e da irmã ao assistir aosdramas que se desenrolavam em casa. Elafez o percurso tradicional: casou-se cedo(aos 21 anos), teve um filho, acompanhousempre o marido, o pintor Luís PintoCoelho, que foi viver para Madrid, até navida mais mundana. Maria Filomenaacabaria por se casar com um irmãodeste. Isabel recusa, no entanto, o carim-bo de “fútil” que a “Autobiografia”da irmã lhe parece por vezes colar.“Eu acho que ela não tinha o direito decontar coisas que eram muito pessoais eque diziam respeito aos quatro irmãos”,desabafa. “A publicação da ‘Autobiografia’foi um momento familiar muito doloro-so.” Isabel zangou-se com Filomena porcausa da memória da mãe, mas passadosuns tempos não conseguiu ficar afastada.Disse-lhe tudo o que pensava e fizeram aspazes. “Desatámos a chorar, dissemos oque tínhamos a dizer e ficou o assuntoresolvido”, conta Filomena. Os maisnovos não tiveram a mesma facilidadeem perdoar à primogénita. António nun-ca digeriu a coisa e desde as partilhas damãe que não se veem. Mena nunca perce-beu exatamente o porquê da zanga. Tere-sa, com quem Mena tinha uma grandeproximidade, só regressou há tempos — econtinuam sem falar no assunto. Ficou aser um tabu.

“O NOSSO QUARTETOCOMEÇOU POR SER UM DUETO”

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IRMÃOSFERREIRA

DO AMARAL

São cinco irmãos, educados numa famíliatradicional e católica. Tratam-se por você,mas não se consideram distantes por isso.Não passa uma semana sem que se jun-tem todos. Partilham o humor cáustico egarantem que os seus encontros são umaescalada de ruído. O pai era do regimedeposto a 25 de abril de 1974, mas houvesempre liberdade para falar de política àmesa. E era de tal modo tolerante que háirmãos de várias cores políticas, do PS aoPPM. Tinham todos alcunhas. Nunca sezangaram nem cortaram relações. Aspartilhas não foram um problema — ficoutudo para o mais velho, Augusto, porqueos irmãos assim o entenderam. A conver-sa com os irmãos Ferreira do Amaral émarcada pela alegria.Maria Joaquina é a mais velha. Com 71anos, ex-secretária de administração,promove todas as semanas o encontro dafamília em sua casa, “às vezes com 20crianças”, onde o barulho é descrito como“infernal”. Caracterizada como “muitoteimosa” pelos irmãos e “visceralmenteantipolítica, por detestar hipocrisia”, deci-diu não participar na entrevista, por acharque, na idade deles, “já passaram de tem-po”. Segue-se Augusto, de 69 anos, omonárquico da família, fundador do PPM,secretário de Estado em 1962 e ex-minis-tro da Qualidade de Vida. Cordial e elegan-te, é advogado. Replicou a matemáticafamiliar: tem cinco filhos. O irmão do meioé Joaquim, de 66 anos, o bonacheirão.Engenheiro mecânico, foi ministro dasObras Públicas durante dez anos, nosgovernos de Cavaco Silva. Membro doconselho de administração da Lusoponte,é agora administrador não executivo daSemapa. Francisco é o irmão seguinte.Engenheiro químico, de 65 anos, alinhoucom a irmã. Finalmente, o benjamim, João.Aos 62 anos, é professor jubilado de Econo-mia no ISEG e foi assessor dos PresidentesMário Soares e Jorge Sampaio.

Na primeira casa onde moraram, os qua-tro rapazes dividiam o mesmo quarto.Maria Joaquina, a única rapariga, tevedireito a um quarto próprio. Na segunda,em Alvalade, já ficaram dois a dois, osmais velhos e os mais novos. “Aguenteiestoicamente o meu irmão Augusto atocar guitarra à noite durante anos”, grace-ja Joaquim. Os irmãos garantem que “cadaum fazia a sua vida”, muito ao género de“cada macaco no seu galho”, e que nãoeram muito dados a confidências oudemonstrações de afeto. “Tínhamos poucaintimidade entre nós, como tínhamospouca intimidade com os pais”, diz Augus-to. “Mas esse distanciamento é fundamen-tal, porque dá espaço a cada um.”Os Ferreira do Amaral partilham umasérie de coisas: “o sentido de humor”,cáustico e “trocista”, “a crítica”, os interes-ses — a História, a Genealogia, a Pintura...“Rimo-nos das mesmas coisas”, resumem.E partilham os valores, transmitidos pelopai: “A intransigência perante a verdade, oser visceralmente contra a aldrabice, oacreditar que o dinheiro se ganha pelotrabalho...” Em comum tinham também ofacto de serem “muito desarrumados”. Econtam a história do concurso promovidopela mãe para ver quem teria o objetomais estranho em cima da secretária.Ganhou Joaquim, com um olho de coelhoconservado em formol.Completam as frases uns dos outros,embora o ex-ministro das Obras Públicastenha um certo ascendente no uso dapalavra. Recordam uma infância feliz,apesar dos tempos de austeridade e de nãohaver carro de família (havia um únicoordenado, do pai, funcionário público). “Osnossos pais deram-nos o gosto pela vida”,consideram. “Havia muita alegria. Andáva-mos de elétrico, de autocarro, de comboio,à chuva, a roupa passava de uns para osoutros, os livros também, mas era tudo

normal.” Faziam-se contas todas as noites,as férias eram numa casa alugada emCascais, que a mãe procurava durante unstempos, mas acreditam que eram maisfelizes do que muitas famílias modernasnas quais abundam os bens materiais.Naquele tempo, os irmãos debruçavam-seà varanda da casa na Avenida de Berna,para contar o número de carros na estra-da, ao mesmo tempo que os rebanhos decarneiros atravessavam a rua. Nasceramtodos em casa. Andaram no Liceu Camões,como os irmãos Lobo Antunes. “Tínhamosde ir de gravata, senão apanhávamosfalta”, recordam.O pai deu alcunhas a todos os filhos, todascomeçadas por ‘s’: Augusto era o “sensato”,Joaquim o “sempre fixe”, Francisco o“sagaz”, João o “simpático” e Maria Joaqui-na a “sensível”. O “sensato” Augusto reve-lou-se o rebelde Augusto quando, aos 16anos, à 1h30 da manhã, foi preso porpintar “Viva o Rei” numa parede da Aveni-da Joaquim António de Aguiar. De pistolaapontada à cabeça, por ter tentado a fuganum táxi, recebeu a visita do pai comimenso medo e a sensação de que iriaficar de castigo para o resto da vida. Masdepois do raspanete enorme, o humor defamília veio ao de cima. Já o “sempre fixe”,Joaquim, lembra um episódio em queficou com a cabeça “emoldurada” numaporta, numa coroa de vidros partidos.Maria Joaquina foi influenciada com ocalão, facto a que a mãe não achava graça.Da vivência a cinco destacam “o sentidode responsabilidade”, “o espírito de comu-nidade”. “A garantia de nunca nos sentir-mos sós”, diz Joaquim, que alerta: “Umasociedade de filhos únicos é complicada.O meu pai era filho único e tinha muitaânsia em não os ter. Ter irmãos é umahistória em comum. Essa aprendizagemde viver numa microssociedade é muitoimportante.”

“OS ALMOÇOS DE FAMÍLIASÃO MAIS DIVERTIDOS

DO QUE IR AO FUTEBOL”

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BOA DISPOSIÇÃOO SENTIDO DE HUMOR ÉUM DOS PONTOS FORTESDOS FERREIRA DO AMA-RAL. EM CIMA, JOAQUIM(À ESQUERDA), AUGUSTO(O MAIS VELHO) E JOÃO,(O MAIS NOVO, À DIREI-TA). EM BAIXO, OS CINCOIRMÃOS (JOAQUIM, FRAN-CISCO, JOÃO, MARIAJOAQUINA E AUGUSTO)NA PRAIA

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LUSO-INGLESESDA ESQUERDA PARA ADIREITA: GEORGE, MAR-THA, ISABEL, LUCY, MARYANN E MARTIN STILWELL.OS DOIS IRMÃOS QUEFALTAM, PETER E BER-NARD, VIVEM NO ESTRAN-GEIRO (PETER EM MA-CAU, BERNARD EM INGLA-TERRA). EM BAIXO, OSOITO STILWELL

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IRMÃOSSTILWELL

São oito irmãos, quatro raparigas e quatrorapazes. Mary Ann, Peter, Martin, Lucy,Martha, Bernard, Isabel e George consti-tuem a escadinha dos Stilwell, dos 66 aos49 anos. Mas em casa não se ouve ne-nhum destes nomes. “Mianna”, “Lu”, “Bá-bá”, “Nernie”, “Bellie” e “Dodi” são os dimi-nutivos que vigoram no tratamento entreirmãos. Só Peter e Martin escaparam aospetits noms. Da educação entre duas nacio-nalidade e culturas nasceram tambémdois grupos: o dos mais velhos (quatro),mandados para colégios internos emInglaterra aos 13 anos; e o dos mais novos,que “escapou” a essa experiência, pormotivos económicos. Aos mais velhos, ospais falavam em inglês. Com os dois maisnovos entrou o português. Ainda hoje, osseis Stilwell mais velhos falam em portu-guês com Isabel e George e em inglês comos restantes. É o que sai...Mary Ann, de 66 anos, é enfermeira;Peter, de 65, é padre, atualmente a viverem Macau, onde é reitor da Universidadede São José; Martin, de 63, é engenheiroagrónomo especializado em genética;Lucy, de 61, foi assessora de administra-ção numa farmacêutica, antes de se refor-mar; Martha, de 60, é formada em Quími-ca e vive em Portalegre, num monte,onde é empresária agrícola; Bernard, de56, é arquiteto em Londres; Isabel, de 52,é jornalista e escritora; e, finalmente,George, de 49, é veterinário, professoruniversitário e autor de livros sobrecomportamento animal.Na divisão dos quartos, as três irmãs(Isabel, Martha e Lucy) dormiam no mes-mo, até a mais velha, “Mianna”, passar a

ter o dela, aos 8 anos. Martha ficava porcima no beliche e, à força de tanto estudarem voz alta as Invasões Bárbaras e aRevolução Francesa, Isabel aprendeuaquela matéria antes de tempo. Martin ePeter partilhavam outro quarto.O colégio interno marcou a dinâmica dafamília. Aos 13 anos, lá iam os meninospara Inglaterra, só regressando a Portugalno Natal. Isso alterou as relações entreirmãos. Isabel só se lembra de Peter quan-do ele regressou a casa depois do colégio eda universidade, em Londres. Nessa altura,Peter lia-lhe “O Senhor dos Anéis” eminglês. Martin e Lucy detestaram a expe-riência do colégio interno, Martha amuoupor já não ter ido — “queria muito”, conta.“Eu acho uma violência”, confessa Martin,que se tornou mais fechado e sério.Havia algum filho preferido? Risos genera-lizados. “Se tivéssemos que eleger alguém,seria o George, por unanimidade”, confes-sa Isabel. “O meu irmão teve um AVC ànascença, e portanto a mãe vivia sempreaflita e ficava muito feliz com cada metaque ele atingia. Mas George era até anor-malmente precoce, tendo começado aandar com 8 meses. E assim, de cada vezque um bebé começa a andar na família, amãe antecipava as façanhas de George...”Os livros são outro dos traços da “culturada família”. “A minha mãe lia para nós”,recorda Isabel, e isso transformou-se“numa certa forma que todos temos decontar histórias”. Este hábito teve forçasuficiente para pôr alguns deles a escre-ver: Isabel, Peter e George têm livrospublicados. Mas também se nota noutrohábito familiar: “Todos tomamos banhosde imersão e lemos um livro enquantoestamos ‘de molho’”, partilha Mary Ann. “Eainda hoje eu, o Dodi [George] e o Nernie[Bernard] adoramos estar na sombra, aler”, acrescenta Isabel.O sentido de humor é outro aspeto quepartilham — porventura o único em quese sentem mais ingleses do que portugue-ses, como quando são os únicos a rir nasala de cinema...

Filhos de uma “fervorosa católica” — factoraro numa família inglesa, mas historica-mente marcante entre os Stilwell, queviram uma antepassada ficar sem cabeçapor causa disso —, viveram muito osvalores e a fé da mãe. A missa era umaobrigação dominical dos filhos. Já a ma-triarca ia todos os dias, religiosamente, e“era quem cantava mais alto”, lembram,com um sorriso.“A mãe nunca elogiava o visado, fazia-osempre a um dos irmãos, e nós só desco-bríamos depois.” Também “nunca houvecastigos quando havia más notas nemprémios por haver boas notas”. “Mas elatinha tanta confiança em nós que emtodas as minhas ações estava o medo de adesapontar”, diz a mais velha, Mary Ann.Todos se casaram — com exceção dePeter, que se casou com Deus, aos 19 anos,dando uma enorme alegria à mãe. “OPeter dizia que queria ser padre desde os 3anos”, contam. “Até se mascarava depadre...” “Hoje, a relação que temos com osnossos filhos é a mesma que tivemos comos nossos pais”, explicam. A nenhum dosStilwell “passou pela cabeça ter apenas umfilho”. George tem cinco, Martin quatro,Isabel três, Mary Ann, Lucy e Bernard têmdois. E, claro, ter tido irmãos foi crucialpara essa decisão. “A maior herança querecebi dos meus pais foram os meusirmãos”, assume Isabel. “O que mais nosdefine é a sensação de pertença, sentiraquela cumplicidade de quem partilhou asmesmas histórias. E o sentido de ter pes-soas que, aconteça o que acontecer, estãolá...” Isabel vai até mais longe: “Os irmãossão os grandes educadores.” E Martinlembra a vantagem de eles ”ensinarem oprazer de dar”. Nem que seja... cicatrizes!Nesse momento, três irmãos Stilwell —Isabel, Martin e Martha — agarram-se aosbraços uns dos outros e riem-se: “Pois é...!”

“OS IRMÃOS SÃOOS GRANDES EDUCADORES”

Tenho inveja das mães defamílias numerosas: umadécada a passar à frente

dos outros na filado supermercado

(e sem gastarum tostão empreservativos)

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TODOS DIFERENTES,TODOS IGUAISCAMANÉ, 45 ANOS,PEDRO MOUTINHO, 35,E HÉLDER MOUTINHO,43 (À DIREITA)

“SE O CAMANÉNÃO CANTASSE FADO,

NÃO SERÍAMOS FADISTAS”

“Ai de quem diga mal do meu irmão...”Podia bem ser esta a frase que define aunião entre os três Moutinho, ligados naprofissão como na vida. Camané, o maisvelho, tem em Hélder, o irmão do meio, eem Pedro, o benjamim, os maiores fãs.Pela primeira vez, deram uma entrevista

conjunta — eles que tanto lutaram pordiferenciar as suas carreiras. Os três fadis-tas, parecidos como gotas de chuva, fala-ram das brincadeiras de criança, dosmurros que ensinaram o irmão mais novoa dar, das tardes passadas a ouvir músicaem silêncio, em torno do gira-discos, noquarto que sempre partilharam. Relembra-ram as noites em que Camané chegava demanhã, depois de andar pelas casas defado, e adormecia a cantar. E de como nãoseriam quem são hoje sem o ascendentedo primogénito.“Desde os 10 anos, quando começámos acomprar discos, que os ouvimos juntos”,conta Hélder. Camané já fazia a sua sele-ção particular, longe das opções “da mo-da”. A educação musical dos irmãos fez-seem conjunto. “Lembro-me de ter 10 anos,o Camané ter 20, e eu saber as letras todasdas músicas da Bethânia e do Chico Buar-

que, porque ele punha o disco a tocarantes de dormir. Eu acordava a ouviraquilo”, conta Pedro, o mais novo. “Ou dequando ele me ensinou a tocar o ‘Meninodo Rio’ na guitarra...” “Acho que os influen-ciei muito a ouvir música boa”, confessaCamané. “Dono” do gira-discos, enquantoirmão mais velho, ouvia as músicas de quegostava “até à exaustão”. “Ouvíamos muitamúsica em silêncio, sem abrir o bico...”As influências entre estes irmãos sãoevidentes — e assumidas. Hélder e Pedroadmitem: “A nossa principal referência é oCamané. Se ele não fosse o irmão maisvelho e não cantasse fado, nós tambémnão cantaríamos.” Sempre houve tradiçãode fado na família — o bisavô cantava,como os pais —, mas Camané foi aqueleque brilhou mais na profissão. “Dele nuncaouvi nada mal feito”, elogia Pedro.Neste caso, o irmão mais velho foi mais do

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IRMÃOSMOUTINHO

1 — Irmãos Ambani (Índia)Muckesh (55 anos) e Anil (53 anos) sãotalvez dos exemplos mais exacerbadosde zanga entre irmãos. Multimilionários,já moveram processos judiciais umcontra o outro desde que herdaram afortuna do pai. Donos da Reliance Indus-tries, a maior empresa do sector privadoda Índia, chegaram ao ponto de, tendoas suas empresas no mesmo edifício,usarem elevadores diferentes para nãose cruzarem. Em 2010, reconciliaram-se.

2 — Irmãos Gallagher (Reino Unido)Liam (39 anos) e Noel (44 anos) têm umahistória pública de confrontos. Membrosda mesma banda de música, os Oasis —o primeiro como vocalista, o segundocomo guitarrista —, chegaram a andar àpancada. Os Oasis estiveram no ativo de1991 a 2009, quando Liam saiu parafundar os Beady Eye. Curiosamente,apesar de só se ouvir falar nestes doisirmãos, os Gallagher são três. O maisvelho (e desconhecido) é Paul.

3 — Olivia e Joan De Havilland (EUA)Sabia que a Melanie de “E Tudo o VentoLevou” e a Rebeca de Alfred Hitchcocksão irmãs? Mas Olivia (95 anos) e Joan(94 anos) nunca se deram como tal, nãose falando desde o funeral da mãe, em1975. A origem da zanga reside no factode Olivia ser a favorita. “Para mim, écomo se Olivia não existisse. Odiámo--nos tanto quando éramos novas queesgotámos o ódio e agora limitamo-nosa ignorar-nos”, disse Joan recentemente.

4 — Irmãs Williams (EUA)O caso de Venus (31 anos) e Serena (30anos) não é tanto de rivalidade, mas simde competitividade instigada pelo pai,que assumiu que uma delas (Serena, amais nova) seria melhor do que a outrano circuito do ténis mundial. Vénuscomeçou a competir aos 14. Um anomais tarde, foi a vez de a irmã entrar nocircuito e se estrear com uma vitória noOpen dos EUA, em 1999.

que uma boa referência musical. Hélder ePedro cresceram a olhar para Camanécomo o exemplo a seguir. Hélder recordao primeiro dia de aulas, e os “sábios”ensinamentos do irmão, entre “deves fazerassim, faz assado, não te deixes ficar”... Nasescolas a que Hélder ia chegando, o Mouti-nho mais velho já era chefe de um bando,o “bando do Camané”... “Ele era mesmorufia.” Uma vez, quando souberam queHélder era seu irmão, quiseram vingar-se.Ele obedeceu aos ensinamentos de Cama-né — e não se ficou. “Eu ia sempre atrásdo que ele fazia. Ele para nós funcionavaum bocado como um ídolo. E era o melhorem tudo o que se metia”, conta.Desde que, aos 7 anos, uma doença oobrigou a ficar um mês em casa, Camanéouviu todos os discos que lá existiam. Àboa maneira de Pessoa, primeiro estra-nhou o fado, mas ele depois entranhou--se. Aos 10 anos, Camané sabia e cantavatodos os fados tradicionais. Chegou agravar, com essa idade, discos que hojenão gosta de ouvir — faz-lhe confusão avoz de criança. Depois veio a fase davergonha. O fado não estava na modacomo hoje, ainda era conotado com oantigo regime, e no recreio da escolaCamané era considerado “o esquisito”.Lembra-se de ir apanhar o comboio defato completo — porque ia cantar — e deser gozado na rua com expressões de “Ófadista...!” Para Camané, o fado foi tam-bém uma forma de expressão que eleencontrou para ultrapassar a timideznatural... Esta é, aliás, uma característicados três. “Sou mais tímido que o Pedro”,assegura Camané. “Ele é mais extroverti-do, mais solto com as raparigas...” “És,és...!”, graceja o mais novo. “Eu não soutímido”, protesta Hélder, por sua vez. Osirmãos mais novos cantaram no Coro deSanto Amaro de Oeiras — Camané não,era demasiado aéreo. “Vivia na lua...”Mais tarde, Pedro integrou Os Ministars,uma banda de jovens cantores, e teveoutra de covers na adolescência. Mascantava desde miúdo nas casas de fado

às quais os pais o levavam. Já crescido,decidiu trilhar o mesmo caminho doirmão mais velho... Hélder lembra-se deter tido uma atitude protetora, de o ten-tar dissuadir. Depois percebeu que eramesmo aquilo que ele queria e deixou-o.Não é evidente apostar numa profissãoartística em que um irmão tem umacarreira consolidada. O risco de ser catalo-gado como “o irmão de Camané” eragrande. E, fisicamente, Pedro era muitasvezes confundido na rua. “No início, eramais complicado. Mas temos diferenças acantar, e as pessoas perceberam.”

NÃO HÁ DOIS SEM TRÊSPara Hélder, a atração do fado não foiimediata. “Quando era miúdo, cantar eraimpensável. Só gostava de ouvir o meuirmão. Não estava mesmo numa de serfadista.” Só aos 15, 16 anos despertou parao fado, “pelas letras”. Lembra-se de Cama-né o incentivar a escrever. Hélder escre-veu duas letras para o primeiro disco doirmão Pedro, que ainda hoje lhe liga apedir opinião. “Mas quando entregava asletras aos fadistas e começava a cantá-las,as pessoas perguntavam sempre: ‘Porquenão cantas as tuas músicas?’”Fez-lhes a vontade e, três discos maistarde, provou que não era por ter doisirmãos no fado que não havia lugar paraum terceiro Moutinho. “Tento fazerdiferente, ser o mais original possível.Seguir outro caminho.” Camané inter-vém: “Hoje, eles são o que querem ser —são uma escolha.” Isso aconteceu porquetambém se sentiram escolhidos. Nãosuportam que alguém diga mal dos ir-mãos, mesmo que seja para os elogiar.“Respeitámo-nos sempre muito uns aosoutros.” Nunca meteram cunhas pelosirmãos nem se intrometeram nos percur-sos uns dos outros. “Pelo contrário, oCamané não passa paninhos quentes”, dizPedro. A maior dificuldade da mãe étentar ir ao máximo de concertos dostrês filhos — e esforça-se por ser o maisdemocrática possível. R

Irmãosdesavindos

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