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ÍNDICE

A Grande Malvada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

O Sr. Saraiva descansa em paz? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

O maior dos mistérios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

A médium Celeste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

O verdadeiro espírito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

O “Coração de Porco” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

O “Monstro do Lago” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

A bela e o monstro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

O fado da amiga Olga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

Um desejo, dois desejos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

Porcos sem asas e sem cabeça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

Chafurdando como porcos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

O que os olhos não vêem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

No jardim dos horrores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

“O que me disseram os corvos” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

A manhã dos prodígios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

Seguindo o corvo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

A casa dos pássaros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

Histórias de amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

O “Senhor dos Pássaros” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

Segredos, segredos, segredos! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

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A GRANDE MALVADA

OSr. Ludovino Saraiva era o melhor vendedor de segurosde vida da cidade mas morreu. Estava numa bicha, à

hora do almoço, numa repartição de Finanças. Para pagar osimpostos, pensava ele. Quando chegou a sua vez, dobrou-setodo, como se fosse apanhar uma coisa do chão. A mulher queestava ao balcão esperou que ele se levantasse mas o Sr. Saraivajá rolara no chão e jazia agora ao lado do cesto dos papéisvelhos, sorrindo estranhamente. Estava morto.

Umas horas depois, o Joel, que estava em casa a fazer amochila, atendeu o telefone mas passou-o logo à tia Edite.

Foi acabar de encher a mochila para o acampamento do diaseguinte e reparou que a tia começara a ficar pálida e ameaçavadesfalecer. Primeiro, oscilou como um barco e depois largou otelefone e correu para o sofá da sala, onde se esticou ao com-prido a soluçar e a pedir a Deus que a levasse para o mesmo sítiopara onde tinha ido o Sr. Saraiva.

O Joel correu para ela.– O que foi? Quem era?A tia ergueu a cabeça e ele viu como as lágrimas lhe salta-

vam dos olhos.– Morreu o Saraiva! O meu Ludovino...Quem deu a terrível notícia à D. Edite fê-lo de modo tão

seco e brutal que a pobre senhora pensou que também ia morrer.

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Compreende-se: as paixões na idade avançada da D. Edite sãouma coisa séria. Além disso, o Sr. Saraiva não só a namoriscavacomo já lhe tinha falado em casamento, que era o grande sonhoadiado da senhora. Segundo ela, o Sr. Saraiva só ainda não setinha decidido porque havia outra mulher que o perseguia. Umatal Delfina, que era a telefonista da Companhia de Seguros ondeele trabalhava e que a tia Edite tratava apenas por “a outra”.

Com o Sr. Saraiva tinha morrido também o castelo desonhos da D. Edite, que se fechou no quarto e nesse dia nãohouve almoço nem lanche nem pão fresco nem fruta nem docesnem nada.

O Joel foi consolar a tia e prometeu que a acompanhava aofuneral do Sr. Saraiva, na manhã seguinte, mesmo que isso lhecustasse o adiamento da partida para o acampamento.

E assim seria. Na manhã seguinte, o Jorge e a Joana parti-ram para o acampamento enquanto ele ficou a amparar a tianaquela hora difícil. E que difícil se tornou também aquilo paraele, com um dia de velório ao falecido, seguido de uma novanoite em branco em casa com a tia, que não conseguia dormir eameaçava a todo o momento que também morria.

Seguiu-se o funeral, no outro dia, no Cemitério Municipal,debaixo de um Sol infernal que lhes torrava os miolos. Talvez oSr. Saraiva não fosse uma pessoa muito popular, pensou o Joel,porque os acompanhantes não eram muitos, só alguns colegas detrabalho e uma irmã e dois sobrinhos, que vieram da Régua depropósito e seguiam logo atrás do caixão. Um dos dois rapazespequenos era muito novo e olhava em volta espantado, a tentarperceber o que era aquilo.

O Joel fazia-lhe caretas sem ninguém ver, quando eleolhava para trás, e o miúdo até ia a gostar da brincadeira, mastropeçou tantas vezes nas pernas da mãe que esta deu-lhe umsafanão e passou a arrastá-lo por um braço.

O Joel sorriu, mas emendou o sorriso logo a seguir. Afinalestava num funeral, onde é mais normal que se chore.

– Ainda bem que ela não veio… – murmurou a tia Editedepois de ter olhado bem em volta.

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– Quem? – perguntou o Joel, enfadado.– A outra, a desavergonhada da telefonista que andava atrás

do meu Saraiva.– Deixe lá isso, tia. Agora o Sr. Saraiva já não pode casar

com nenhuma das duas.Eram onze horas da manhã quando chegaram ao jazigo de

pedra que o Sr. Saraiva tinha comprado há pouco tempo. Nãoera tão grande como outros daquela zona que pareciam igrejas,mas era um jazigo bonito, espaçoso, com duas águias de pedrade cada lado da porta.

O Sr. Saraiva nunca teve uma casa a que chamasse sua masgastara as suas economias e ainda pedira um empréstimo aobanco para comprar aquele jazigo com seis metros quadrados,no centro da Alameda dos Ciprestes, a mais movimentada docemitério. E porquê? Tinha horror aos bichos da terra e mesmomorto não queria ser devorado por vermes.

“Aqui está a minha casinha”, disse ele no domingo à tardeem que levou até lá a tia Edite e lhe mostrou o jazigo que tinhaacabado de comprar. “Aqui é que eu vou viver mais tempo. Eue a Grande Malvada!”

A senhora ficou aborrecida porque pensou na desavergo-nhada da telefonista, mas ele sossegou-a. A Grande Malvada eraa morte, essa grande desavergonhada que ataca quando lhe ape-tece e a quem nada nem ninguém escapa. Quando se espera, elavem. E quando não se espera, também vem. Nunca corre, nuncase apressa e no entanto nunca se atrasa nem falta ao encontrofatal. Um dia nós damos um mau passo e ela lá está, à nossaespera. Apaga-nos. Ou talvez nos arraste para outro lado. E tal-vez esse lado até seja melhor do que este, ou então não se diriaque quem morre vai desta para melhor.

Foi o que aconteceu ao Sr. Saraiva, que naquele momentotinha acabado de chegar à porta da sua nova casinha e ia agoradescansar eternamente, longe dos bichos da terra e das compli-cações terrenas.

Quando o homem da funerária abriu a tampa do caixão parauma última despedida, a tia Edite desfaleceu e o Joel amparou-a.

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– Coragem, tia. Olhe que está toda a gente a olhar… E eunão aguento. Tia! Tia!

O homem da funerária abriu o caixão para a despedida e ospresentes aproximaram-se mais e lançaram um último olhar aoSr. Saraiva, que assistiu a tudo sem pestanejar. O silêncio eratotal e talvez por isso ouviu-se claramente o toque de um tele-móvel.

– Que falta de respeito! – murmurou alguém. – Desligue já isso!O som continuou e não se sabia de onde vinha. Os homens

mexeram nos bolsos e as mulheres nas carteiras à procura dos seustelemóveis e quando todos pararam de procurar o som continuava.

As pessoas olhavam umas para as outras e ninguém sabia oque fazer.

– É o do morto! – disse então alguém.– O do morto? – perguntou o homem da funerária a levan-

tar outra vez a tampa do caixão. E então todos puderam perceber que o telemóvel estava lá

dentro, embora não se visse. Continuava a tocar e era precisoatendê-lo. Ou desligá-lo.

– Talvez a senhora que é da família… – disse o homem dafunerária para a irmã do Sr. Saraiva.

– Eu o quê? – respondeu a irmã do falecido a segurar osmiúdos, muito aflita.

– Veja se o telemóvel está na roupa do morto. A senhoranão é da família?

A tia Edite suspirou e ameaçou desmaiar quando a irmã dofalecido se aproximou a custo do caixão e se pôs a apalpar osbolsos do falecido.

– Está aqui! – disse ela. – No bolso do casaco.– Tire-o. Atenda-o. Não vai deixar aí o telefone a tocar,

pois não? – disse o homem da funerária.A mulher retirou o telemóvel e segurou-o só com a ponta

de dois dedos.– E agora? O que é que eu digo? Ai valha-me Deus! Como

é que isto funciona?

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A tia Edite não aguentou mais e avançou, arrancando otelemóvel das mãos da mulher, que agradeceu e foi tomar contados filhos. O mais pequeno já estava a desapertar os cordões dossapatos do morto…

– Estou! – disse a tia Edite com a voz a tremer.Depois, desligou o botão do telefone e ficou a abanar a

cabeça.– Então? – disse o homem da funerária. A D. Edite reparou então que todos os olhos estavam pos-

tos nela e que toda a gente esperava que ela se explicasse.– Desligaram quando ouviram a minha voz – explicou ela

num murmúrio, enquanto devolvia o telemóvel ao bolso do ca-saco do defunto.

– Talvez fosse engano – disse o homem da funerária. – Masnão é melhor tirar-lhe o telemóvel? Pode voltar a tocar e nin-guém o atende…

– Deixe-o estar – disse a D. Edite com firmeza. – Tenho acerteza que o falecido queria ser enterrado com ele.

– Esta é boa! – disse o homem da funerária a tapar outra vezo caixão.

Pouco depois tudo terminava e os acompanhantes deban-daram. O Joel e a tia foram os últimos e vieram pela Alamedados Ciprestes em silêncio, de olhos pregados no chão.

– Era ela! Era ela! – disse a certa altura a tia.– Quem?– A outra. Ela até é telefonista. Desavergonhada! Nem

esperou que o acabassem de enterrar.– Também podia ser algum cliente que ainda não sabia que

ele estava morto…– Foi ela! Cala-te que eu é que sei. Ou não tivesse sido eu

quem lhe pôs lá o telemóvel…O Joel parou de andar e levou uma mão à cabeça.– Foi a tia?– Ontem à noite, durante o velório. Mas não olhes para

mim assim porque foi ele que me pediu. Um telemóvel e umalanterna, que estava no outro bolso.

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– O morto pediu-lhe?– Sim, quando estava vivo. Ele não tinha só medo dos

bichos da terra, também tinha medo de ser enterrado vivo.Como eu.

– Não sabia.– Pois é, até nisso nós éramos parecidos. E por isso fizemos

um acordo. Quando um de nós morresse o outro garantia queele levava um telemóvel e uma lanterna dentro do caixão.

– Para quê?– Para o caso de não se estar mesmo morto e se acordar lá

dentro. Ai Santo Deus, que me arrepio toda… Assim ele podetelefonar e pedir socorro…

O Joel deu uma gargalhada.– Também podia ter posto umas revistas, um rádio para ele

ouvir os relatos do futebol…A tia irritou-se.– Fica sabendo que há muitos casos desses, de morte apa-

rente. As pessoas acordam lá dentro e gritam e debatem-se atémorrer. Ninguém os ouve, não podem comunicar. Só se sabe queé assim quando se abre o caixão e se percebe que eles acordaramdo sono da morte e se fartaram de gritar e sofrer até morreremde vez. É horrível!

– Está bem – disse o Joel. – Mas quando é que lhe meteu otelemóvel no bolso?

– Ontem à noite, durante o velório. O que eu não consigoperceber é como a outra desavergonhada descobriu o número.Mas ela é telefonista…

Nessa noite, em casa do Joel, houve jantar porque elecobrou da tia tanta atenção. Enquanto ela cozinhava, olhos rasosde água, o Joel voltou a fazer a mochila. Partia na manhã seguinte,na primeira camioneta para o acampamento, onde o esperavamo Jorge, a Joana e a perspectiva de alguma aventura. Mal sonhavaele a aventura que o esperava, ali mesmo, e que, aliás, já tinhacomeçado.

A tia veio da cozinha pedir-lhe um favor. E dos grandes.Queria que ele ligasse para o número do Saraiva.

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– E quem atende? – irritou-se o Joel. – O morto?– Já sei que tens razão, mas faz-me isso. Liga tu que eu não

tenho coragem. É um pressentimento que eu tenho! Dá cá otelefone que eu ligo! Não, liga tu, liga tu…

O Joel fazia qualquer coisa para poder jantar em condições.Ligou o número que a tia lhe ditou e depois desligou e voltou aligar e voltou a desligar. Estava espantado, de boca aberta.

– Então?– Está ocupado – respondeu ele.A tia Edite ficou paralisada, com um pano de cozinha numa

mão e uma faca na outra.– Está a falar? Quer dizer que ele…– Ó tia, só quer dizer que o número está ocupado. Talvez

me tenha enganado…– Eu ligo! – disse ela.As mãos da senhora tremiam e com elas tremia também o

corpo inteiro. Marcou o número e depois ficou à espera, emboranão esperasse resposta. E, no entanto, a resposta chegou depressa.

– Estou!Não lhe pareceu a voz do seu querido Saraiva, mas a ver-

dade era que só ele podia atender aquele telemóvel. E se tinha morrido e acordado para outra vida também era

natural que tivesse mudado de voz.O Joel, que tinha ido à cozinha, ouviu o estrondo da tia a

cair ao chão e veio a correr.– O que foi agora?A tia estrebuchou e fez um esforço para dizer qualquer

coisa, mas só lhe saíram uns gemidos incompreensíveis. Maistarde, lá acabou por falar, embora numa voz rouca, diferente:

– Ele atendeu, Joel! Ele está vivo! Está vivo!– Não pode ser! – Atenderam. E era ele! Quem é que podia ser? O caixão

foi chumbado… Ai, valha-me Deus!– Calma tia, calma. Deve ter-se enganado no número. Quer

ver?

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O Joel largou a tia no sofá e marcou o número com todo ocuidado para garantir que não se enganava. Depois, esperou.Ouvia o sinal de chamada mas ninguém atendia.

– Está a ver? A tia enganou-se…O Joel já ia desligar quando alguém, do outro lado da linha,

também atendeu aquela chamada.– Estou! Era a voz grossa de um homem. Uma voz cava e funda que

parecia chegar de muito longe.– Estou? – disse por fim o Joel, a medo.A tia ergueu-se do sofá e veio a correr, arrancou-lhe o tele-

fone da mão com um gesto brusco e colou-o ao ouvido.– Saraiva? – murmurou ela baixinho, já que não sabia para

onde estava a falar.Ninguém lhe respondeu. Mas ela ouviu a voz forte de outro

homem, mais longe, que gritava, irritado:– Não atendas isso, porra!– Foi sem querer. Mexi aqui e ele ligou… – disse outra voz,

a mesma que ela e o Joel ouviram.– Desliga já isso. Dá cá essa merda. Porra para o telefone!– Saraiva… – voltou a senhora. Mas a comunicação já tinha sido quebrada.– Desligaram – disse ela a olhar o infinito.– Ouviu-o? Era ele? – quis saber o Joel.– Não era a voz dele, não. Ou talvez fosse, sei lá, ele pode

ter mudado de voz. Ai meu Deus! Havia alguém ao lado que lheralhou por ele atender a chamada e o mandou desligar. Ele sódisse que foi sem querer que o ligou, quase pediu desculpa.

– Ele? Era ele? – insistiu o Joel.A tia começou a soluçar e as palavras enrolavam-se nas

lágrimas e no ranho e no suor.– Não sei, não sei. Não era bem a voz dele, mas era o tele-

móvel dele, o que ficou no bolso do casaco dele, dentro daquelecaixão. Tu viste, Joel, tu viste. Quem mais podia atender a cha-mada?

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O SR. SARAIVA DESCANSA EM PAZ?

Uma hora depois a D. Edite voltou a ligar para o telemó-vel do falecido, mas nunca mais ninguém atendeu.

– Lá não são permitidos telemóveis – disse ela depois davigésima tentativa.

– Lá, onde? – estranhou o Joel.– Lá onde ele está. – E onde está ele? A tia sabe?Isso é que ela não sabia ao certo. O Sr. Saraiva podia estar

em qualquer lado, ele ou a alma dele. Noutro mundo ou mesmoneste, noutra forma e de outra maneira. Certo é que tinha levadocom ele o seu telemóvel e que lá não eram permitidas essas coi-sas. E isso também não era grande novidade. Já se sabia que osmortos não podiam comunicar com os vivos pelo telefone oumuitos já o teriam feito. Havia de ser lindo! Não havia linhastelefónicas desocupadas. No fim do mês as contas tambémhaviam de ser lindas e mais lindo ainda havia de ser para cobrá--las, sobretudo aos falecidos.

– Eu ouvi um tipo a protestar por ele ter atendido a minhachamada – insistiu a D. Edite. – E depois arrancou-lhe o telefoneda mão, acho eu, porque disse “Dá cá essa merda”. Foi o que euouvi.

– Então não pode estar no Céu – garantiu o Joel. – Ou achaque lá se fala assim? Talvez ele ainda vá a caminho de qualquer

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lado, com o anjo da guarda ou coisa assim. Talvez ele esteja noPurgatório. Ou no Inferno. Por falar em Inferno, não te cheiraa queimado…

Uma nuvem de fumo saiu da cozinha.– Fogo! – gritou o Joel.– Ai o frango! – gemeu a D. Edite.O jantar ficou outra vez prejudicado, já que o frango foi

direitinho para o lixo depois de ter passado pelo inferno doforno.

– Ai, valha-me Deus! – gemeu a tia, desalentada. – Isto é umsinal.

– Um sinal de fumo? Deixe lá que eu mando vir uma pizzaoutra vez. Eles até já sabem o caminho cá para casa de olhosfechados…

A tia Edite reuniu forças e foi limpar a cozinha. Depois, fri-tou uns bifes e batatas aos palitos e fez uma salada de alface,tomate e cebola. Quando estavam à mesa e iam começar a comeré que ela voltou a falar do tal sinal.

– Há bocado o que eu queria dizer era que aconteceu omesmo no dia em que o Saraiva jantou aqui pela primeira vez.Estávamos os dois sentados a conversar, não dei pelo tempo apassar e o frango também se queimou…

– Qual sinal. Isso é uma coincidência. Não leve a mal, masaquele forno é um inferno para os animais que a tia lá mete.

– Depois eu fritei uns bifes, fiz uma salada, como agora,acendi as velas…

– Pôs a cassete dos violinos…– Cala-te e ouve. Íamos começar a comer, como agora, e…A tia calou-se porque as luzes todas da casa se apagaram de

repente.– A luz foi abaixo? – perguntou o Joel.– Foi… – disse a tia, completamente sufocada. – Foi exacta-

mente como agora! Faltou a luz. Isto é outro sinal, Joel. Ele estáaqui, eu sinto-o…

O Joel levantou-se da cadeira e foi à procura dos fósforosna cozinha.

– Está aqui, como?

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– Não sei, não sei, só sei que o sinto. Pode ser o espíritodele. Não te queria assustar, mas…

– Não me está a assustar – disse o Joel a caminhar resoluta-mente até ao quadro eléctrico.

Mas quando tocou ao de leve na cortina deu um salto paratrás e arrepiou-se todo. O toque de uma alma devia ser assim,suave e inesperado, pensou ele, ou então talvez elas nos atraves-sassem como correntes de ar gelado.

A luz voltou e a D. Edite estava na janela.– Joel, anda ver… Uma pomba no jardim!– O que é que tem a pomba? Também apareceu esta pomba

quando cá veio o Saraiva?– Não é isso, há quem diga que as almas se transformam em

pombas quando atingem a luz. E às vezes há algumas que arran-jam maneira de virem banhar-se à Terra e recordar paisagens,coisas e, claro, pessoas que cá deixaram.

O Joel veio à janela.– Ora essa! Lá está a tia a desatinar.A pomba branca fitou-os com os olhos mansos e brilhan-

tes, como se lhes quisesse falar. Depois, rodou a cabeça derepente e fitou o escuro por cima dela. Abriu as asas e desapare-ceu tão depressa no escuro como se tivesse sido escondida pelotruque de um ilusionista.

– Viste? Esfumou-se – disse a tia. – Como uma alma…– Talvez tenha visto um falcão. Os falcões não devem dis-

tinguir as que são almas das que não são.Voltaram a ligar o número do morto, um e outro, e numa

das vezes em que a D. Edite tentava a sorte, aquele númeroestava ocupado.

– Estás a ver? Ele está a falar. Ou estão a ligar para ele. Voltou a ligar e o número continuava ocupado e assim con-

tinuou durante largos minutos. A pobre senhora percebeu entãocomo a mente transforma a dor em fúria e às tantas já imaginavao seu Saraiva a falar com a outra desavergonhada antes de falarcom ela. O Joel, por sua vez, imaginava-o a simular a morte paraescapar aos credores e aos problemas. E a viver numa ilha desonho com outra mulher, desconhecida daquelas duas.

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– Muitos homens fizeram isso – explicou ele à tia. – Muda-ram de nome, de família, de país, de amigos, de profissão… É quasecomo se tivessem morrido mesmo e renascido para outra vida,com outro nome, noutra cidade, com outro emprego, outramulher, outros amigos…

A tia torceu o nariz.– O meu Saraiva, não. Que Deus o tenha em seu descanso.

Estava ali morto e gelado, com a pele colada aos ossos, coitadi-nho. Aquele corpo estava morto para sempre, nunca mais sepodia levantar.

– Pode ser um vampiro – variou o Joel. – Os vampiroslevantam-se de noite dos caixões e só voltam de manhã, quandoo Sol nasce. E nesse caso até pode andar por aqui, à procura datia. Ou pode ter ido a casa da outra, a telefonista. A tia não repa-rou se os dentes caninos dele tinham crescido, pois não?

– Cala-te com isso. O meu Saraiva vampiro! Nem que issohouvesse…

Ficaram ali os dois a imaginar histórias fantasiosas durantealgum tempo. O Joel olhava para a mochila e lembrava-se doacampamento e dos amigos e do desporto-aventura que estaria aperder. Enquanto os amigos atravessavam rios, subiam às árvoresmais altas da floresta e nadavam em lagos, ele discutia os mistériosda vida e da morte e velava pelo eterno descanso do Sr. Saraiva,que também era o descanso da tia e dele próprio. Estava fartodaquilo. Quando a tia chegou ao limite dos nervos e gritou muitoalto “Não aguento, não aguento!”, ele também já não aguentava.

A D. Edite quis falar para a Polícia, para o 112, mas falouprimeiro ao telefone com o médico dela, porque de tanto imagi-nar o Saraiva dentro do caixão com falta de ar também já malconseguia respirar. Por fim, voltou a ganhar fôlego e telefonoupara o cemitério, onde a atendeu um homem muito mal educadoque a mandou ver as horas. Aquilo estava fechado, ninguémpodia entrar ou sair e não se tratava de assuntos nenhuns. Só seesperava que o tempo passasse e fosse de manhã outra vez. Ela quetelefonasse durante o dia.

– É uma emergência – insistiu ela. – Por causa de um morto.Um morto que pode estar vivo…

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