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Os romeiros da mãe de Deus Diário de Pernambuco, agosto de 1976 Ricardo Noblat 1ª estação (Onde começa a caminhada dos romeiros da Mãe de Deus em direção ao Juazeiro do Padre Cícero. Comovente depoimento de uma mulher que já fez 14 romarias. A chegada à cidade. As três voltas em torno da matriz. O assédio dos exploradores da fé.) A mulher esticou o braço magro, esquálido na direção da estrada de terra e disse, sobre uma mancha difusa que se formava no horizonte poeirento: "Péra aí que lá vem o carro dos romeiro dos sítios". A mancha cresceu e despejou uma caminhonete trazendo 15 pessoas, oito mulheres e sete homens, as mulheres de preto e um chapéu de palha contra o sol forte, os homens com roupas de cores diferentes, mas iguais no chapéu, na fisionomia dura, nos olhos sem brilho, nas mãos cheias de calos e na velhice acentuada. Subiram todos e mais a mulher do braço magro, esquálido, num caminhão onde estava 74 pessoas mais ou menos acomodadas em estreitas folhas de madeira atravessadas de um lado para o outro da carroceria. Acomodaram-se todos novamente, o motorista acelerou multo, chamando a atenção dos que passavam pelo centro de Nova Lima, lugarejo de Alagoas. Por entre acenos dos que ficaram e deixando atrás de si uma nuvem de poeira sufocante, o caminhão pois-se a caminho do Juazeiro do Norte, Ceara, terra do venerado padre Cícero Romão e santuário de Nossa Senhora das Dores. Do fundo da garganta de Maria Chaves, uma voz rouca, pouco harmoniosa, quase de agonia, arrastou-se, escapou, pelos lábios e contagiou o ajuntamento de homens e mulheres de olhos fixos na estrada. E num coro lamuriento de carpideiras, cantou-se o bendito "da Ladeira de 70": "O que padrinho disse no tempo passado já se viu, tá se vendo e vai se ver já chegou os sinais do fim da era e tá no tempo do povo se arrepender. Chegou a fome e chegou a caristia chegou a guerra, os desastres e os horrores, chegou a seca, só clamores e sofrimentos, o padecimento e o principio das dores. Vamos pedir ao padrinho Cícero Romão prá defender dos laços da Besta, Fera, prá ajudar nós subir esta ladeira com os horrores que virão no fim da era". Braços magros, esquálidos, rosto chupado, boca de poucos dentes e dentes podre podres, corpo franzino, dedos de unhas

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Page 1: A mulher esticou o braço magro, esquálido na direção da estrada

Os romeiros da mãe de Deus

Diário de Pernambuco, agosto de 1976Ricardo Noblat

1ª estação(Onde começa a caminhada dos romeiros da Mãe de Deus em direção ao Juazeiro do Padre Cícero. Comovente depoimento de uma mulher que já fez 14 romarias. A chegada à cidade. As três voltas em torno da matriz. O assédio dos exploradores da fé.)

A mulher esticou o braço magro, esquálido na direção da estrada de terra e disse, sobre uma mancha difusa que se formava no horizonte poeirento: "Péra aí que lá vem o carro dos romeiro dos sítios". A mancha cresceu e despejou uma caminhonete trazendo 15 pessoas, oito mulheres e sete homens, as mulheres de preto e um chapéu de palha contra o sol forte, os homens com roupas de cores diferentes, mas iguais no chapéu, na fisionomia dura, nos olhos sem brilho, nas mãos cheias de calos e na velhice acentuada. Subiram todos e mais a mulher do braço magro, esquálido, num caminhão onde estava 74 pessoas mais ou menos acomodadas em estreitas folhas de madeira atravessadas de um lado para o outro da carroceria. Acomodaram-se todos novamente, o motorista acelerou multo, chamando a atenção dos que passavam pelo centro de Nova Lima, lugarejo de Alagoas. Por entre acenos dos que ficaram e deixando atrás de si uma nuvem de poeira sufocante, o caminhão pois-se a caminho do Juazeiro do Norte, Ceara, terra do venerado padre Cícero Romão e santuário de Nossa Senhora das Dores.

Do fundo da garganta de Maria Chaves, uma voz rouca, pouco harmoniosa, quase de agonia, arrastou-se, escapou, pelos lábios e contagiou o ajuntamento de homens e mulheres de olhos fixos na estrada. E num coro lamuriento de carpideiras, cantou-se o bendito "da Ladeira de 70":

"O que padrinho disse no tempo passado já se viu, tá se vendo e vai se ver já chegou os sinais do fim da era e tá no tempo do povo se arrepender. Chegou a fome e chegou a caristia chegou a guerra, os desastres e os horrores, chegou a seca, só clamores e sofrimentos, o padecimento e o principio das dores. Vamos pedir ao padrinho Cícero Romão prá defender dos laços da Besta, Fera, prá ajudar nós subir esta ladeira com os horrores que virão no fim da era".

Braços magros, esquálidos, rosto chupado, boca de poucos dentes e dentes podre podres, corpo franzino, dedos de unhas cortadas, rentes e mãos de veias azuis, como a saltarem. Olhos negros, como o vestido que usa, e ágeis, que não fixam, em parte alguma. Pés metidos em alpercatas de couro e arrombados, perto dos dedos, por calos do chão quente. Maria Chaves tem a dizer que faz 52 anos "que nasci, num tenho bem certeza, mas posso ver no registro. Sou de Nova Lima, em Alagoas, sinhô. Venho de preto ou de azul pruquê gosto. Pruquê padim Ciço separou-se e a gente só pode vir de preto ou azul, que é romaria. Com essa, faço 14 romarias ao Juazeiro. A primeira foi em 48" (ela olha para o alto, espicha os beiços numa careta e se apóia a cabeça nos dedos da mão direita) e "num vim pagando promessa, foi pruquê me deu vontade. Mas já era devota do padre e sempre gostava de rezar meus terço. Da primeira vez, uma cumadre que vinha me chamou, mas eu não quis vir. Quando chegou perto do dia, ela me chamou de novo e eu disse: eu vou. Meu marido tava assim moendo umas canas e a cumadre mandou eu pedir a ele. Ele disse: Oxente, muié, tá ficando doida? Tu nunca inventasse de ir pro Juazeiro? Eu disse: Mermo que você deixe ou não deixe eu vou. Depois eu comecei a ir pra pagar promessa e pruquê sou freteira. Alugo caminhão prá trazer romeiro pro Juazeiro, faço com gosto, meus romeiro se vestem assim, que num gosto de escândalo,

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se é prá dar uma esmola eu dou, se é prá trazer um menino eu trago. Faz quatro ano que eu sou freteira. Começou por causo de 35 passageiro que arranjei, deis uma esmola e o fretante reclamou. Ele reclamou pruquê eu dei uma passage de esmola que me pediram. Ai eu pedi ao meu padre Ciço, com fé em Virgem Maria, que só arranjava romeiro prá mim que fizesse como eu mandasse.

O caminhão manobra com cuidado, deixa o leito principal da estrada e pára as margens de uma lagoa. Os romeiros descem, uns vão beber água fazendo concha com as mãos, outros se precipitam em tirar latas e panelas penduradas na traseira do caminhão, pelo lado de fora, arrumam um fogo e cozinham pedaços de carne que comem misturados com farinha e um pedaço de rapadura. A demora é pouca que pela frente há dez horas de estrada e oito já ficaram para trás. Não se vê um sorriso no rosto dessa gente, não se registra, um momento de descontração. Somente o silêncio e a impassibilidade dos rostos, quebrados, de vez em quando, por um bendito que se canta nas maiores alturas ou por uma reza que se puxa.

De Maria Chaves: "Num venho todo mês. Só tenho vontade de fazer sacrifício de ano em ano. Só venho na romaria de setembro pruquê gosto da procissão dos romeiro e da Santíssima Virgem. Já fretei caminhão quatro vez e foram quatro donos. Em 1974, foi por Cr$ 1.300,00. Agora em 1975, foi por Cr$ 3.500,00. Tô levando 80 romeiro, cada um paga Cr$ 50,00 de passagem. Tem dez que tão de esmola, num paga. O lucruzinho que tenho de Cr$ 500,00 desapareço antes de’ ou voltar prá casa. Trezentos já foram embora na caminhonete que aluguei prá buscar os romeiro dos sítios mais longe. O resto, vou deixar em Juazeiro. Vinte vou botar na cama do pade Ciço, mais vinte de esmola na matriz. Vou deixar dez no horto e mais dez no túmulo dele. O resto num sei ainda não. O milagre mala simpres que pade Ciço fez prá mim foi fazer eu falar quando fiquei muda seis hora inteirinha, por causa de um ovo quente. O mais difícil, foi esse de eu fazer romaria todo ano e tou fazendo, pruquê sou muito pobre, meu marido é agricultor, bota roça e eu custuro umas roupinhas. O dinheiro que ganho, guardo prá levar pro Juazeiro. Esse ano, num deu prá guardar nada" (depois de uma curva fechada, de uma reta e de uma curva suave, aponta, bem no alto de um morro, dominando todo o vale que se estende de um lado ao outro do horizonte, a estátua do padre Cícero Romão Batista, fundador do Juazeiro. Um velho puxa um bendito e a voz de Maria Chaves quase não se faz ouvir).

"O povo já passou de se acabar pruquê o escândalo tá grande. Tem multa religião, mas só no nome, que saiba fazer, não. Pruquê nessa viagem, tem muito que tão fazendo como faz em casa, não respeitam a romaria, não sabem como fazer. No meu carro náo, mas nos outro, que encontrei pelas estrada, sei não. Tão fazendo viagem a Juazeiro por buniteza. Hoje, em todo canto, tem.pouco romeiro. Quase tudo não tão conhecendo prá onde vão. Tem muita depravação nesse mundo, pruquê mulher que é mulher não mostra as carne dela, com vida. Também tem multo home que não se arreconhece que é home pruquê, como a mulher, tem multo home andando disconforme. Isso tudo é sinal de fim do mundo, pruquê a gente não pode dar as carnes a Satanás. No lugar onde moro, tem gente que fala do meu padim pade Ciço, que ele é homem todo igual. Aí, como num gosto de discussão, a me asseparo. Ele é santo, eu sei, tá no céu, é uma das três pessoas da.Santíssima Trindade e tá na terra, também na pele do meu padim Frei Damiáo. Agora , se eu tiver errada, o senhor, me desculpe"

Vencidas algumas ruas estreitas e a rua principal, atravancada de caminhões e carros de todos os tipos, o caminhâo tem dificuldades de dar as três voltas em torno da matriz, como é de costume e crença dos romeiros, porque há barracas armadas quase na passagem e vendedores apregoando suas mercadorias. "Não, tem que dá, oxente, tem que dá, se não a gente num desce", grita, com energia e autoridade, uma velha de pano na cabeça. O caminhão consegue dar as três voltas e canta-se "Bendito do nascimento

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do padre Cícero e os louvores de mãe Oquinôu". Às imprecações fervorosas do mais exautados quando o caminhão passa em frente da matriz, misturam-se os pregões dos vendedores, a buzina de outros carros que chegam, o estouro de baterias de fogos.

2ª estação(Onde os romeiros da Mãe de Deus encontram alojamento. Lamentáveis cenas da promiscuidade. O excesso de lotação dos quartos. O galpão imenso, repartido por redes. O fogão de lenha, comum. Quatrocentas pessoas, de lugares diferentes, unidas pelo destino e pela fé)

Denuncia-se o rancho pelo incessante movimento de pessoas que entram e saem por uma porta estreita, espremida entre as portas de duas amplas lojas que vendem imagens do padre Cícero, já que inscrição não há. Dentro, primeiro é um corredor de dois metros e meio de largura onde, quem dorme nas redes, dorme quase sentado. Há oito delas atravessadas sobre bancos de madeira onde se deitam pessoas. No châo, úmido e pegajoso diretamente sobre ele ou sobre pedaços de papelão e do plástico, distribuem-se umas 15 pessoas que não se queixam, que não dizem nada, que até dão graças a Deus, à Mãe das Dores e ao padre Cícero por terem conseguido alojamento, que alojamento não há mais pela cidade, romaria de 200 mil pessoas, seu moço, calcula uma velha paralítica, romaria como nunca se viu em Juazeiro, de rancho enjeitar gente de não mais poder, de cada casa de família abrigar seis, sete, de se acabar estoque de imagens de lojas pequenas, de se vender copo d’água, por dez centavos e todo mundo ganhar dinheiro, menos romeiro, que veio foi deixar, ver; a Matriz levantada há 100 anos e que tombou em parte em 1974, vê-la restaurada com seu dinheiro e com dinheiro dos devotos da Mãe Santíssima e do padre Cícero, do Juazeiro e das redondezas.

— Tá mió aqui, num tá?— É, tá cheinho, mas tá bom.— Tá mió que no otro, num tá?— Tá.Calaram-se Pedro Sebastião, romeiro de Santana do Ipanema, Alagoas, e

Juventinho Rodrigues, romeiro de Serânia, Pernambuco, nos fundos das suas redes, meia cabeça aparecendo, enxergando o mundo lá fora pela metade, mundo retangular, do tamanho da estreita porta de saída, de onde vêm mil ruídos que se misturam numa zuada total, inacabada que arrefece tarde da noite, mas que não se extingue por completo, se transforma, já não são mais pipoucos de fogos, pregoes de vendedores de um tudo, benditos e rezas puxados por toda parte, avisos do alto-falante da Matriz, toques da bandinha de pífano de Mestre Mano, rabecas dos penitentes do São Francisco, violão das menininhas louras e sujas que tiram esmola, violão de um acorde só, agora são gritos de bingo, de roleta girando, de "quem dá mais por um galeto, o cidadão daquela mesa acaba de oferecer Cr$ 200,00", de barracas que servem bebidas e onde berram Waldick Soriano, Claudia Barroso, Odair José, "não há considerações gerais, a fazer, está tudo aí para quem quiser ver".

De um lado e do outro do corredor de entrada, há amplos quartos. O número de pessoas que eles abrigam dependem da procedência delas, explica Maria Ferreira de Almeida, dona da loja vizinha e, filha da proprietária do rancho, Dona Lia: "se os romeiros são de qualquer estado do país, menos de Alagoas, cabem tantos quanto forem os armadores de rede", de cama não se dorme, que ninguém traz, nem o rancho oferece, "se são alagoanos, pode até duplicar a capacidade dum quarto que cabe todo mundo, é gente nas redes, gente pelo châo, gente até por cima dos outros. É um pessoal mais sujo, não sabe?" indaga, fazendo uma careta com asco.

Num dos quartos há 32 pesoas, metade em redes, metade em cima de folhas de jornais. Um homem de meia idade chupa um picolé, pinga pelo chão, mas ninguém

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reclama. Ninguém nem olha. Um menino, de seus oito anos, barriga grande de tanto verme, cor amarelada, come um prato de feijão, fazendo pequenas bolas de comida com as mãos, derrama um pouco perto da porta, mas ninguém reclama. Um grupo observa mas não diz nada. Uma velha, de tosse convulsa, escarra num canto de parede, torna a tossir, dessa vez escarra perto dali mesmo, perto das pessoas, mas ninguém reclama. Ninguém de uma mulher que se acocora, sem nenhuma cerimônia, e urina num vaso, porque a fila do banheiro, lá nos fundos do rancho, está grande e ela não pode esperar.

Uma família inteira está amontoada num canto. O pai, nem dormindo nem acordado, com o chapéu em cima do rosto, de vez em quando abanando as moscas que parecem uma praga. A mãe, catando piolhos na cabeça de uma menina morena, de cabelos mal tratados. Com a perna direita, ela afasta duas panelas para junto da parede, as panelas emborcam e derramam restos de comida.

No quarto de junto há duas pessoas a mais. A disposição de todas e os incidentes que se registram, diferem muito pouco dos acontecimentos do quarto anterior. Um casal de velhos come com as mãos no mesmo prato. Uma moça muito míope vestida de preto, se esforça por ler o folheto, "As Aventuras do Amarelo Papa Onça". De vez em quando dá uma risadinha gaiata. Um experiente e precavido romeiro está deitado num colchão de palha que comprou no comércio, "home de mais dinheiro, mais abastado, mas também de muita fé", segundo as considerações de um de seus companheiros de viagem feitas em voz alta, para admiração geral.

Sobre todos os quartos cai um ar pesado, compacto, quase irrespirável, que se propaga por toda parte, mas que se dilui quando atinge o pavilhão. Ali, numa área de 10 metros por 30 de comprimento, onde se aloja uma boa parte dos 400 romeiros que superlotam o rancho, transpassam-se dezenas de redes de tal forma que é impossível circular entre elas. Ninguém dorme pelo chão porque a frieza é grande e não há portas para detê-la. Mas, a promiscuidade é quase a mesma se o ar não denso como nos quartos é fétido, entra pelas narinas, se entranha na pele. Maregeando o galpão, de ambos os lados, há mais quartos. Entre estes e as vigas que sustentam as redes, se alongam os corredores por onde se dá todo o movimento de gente.

Desaba uma mulher com o peso dos seus 90 quilos.— Acode, cumade, acode que cumade Elvira tá passando mal.— É fraqueza, muié, derna que chegou de viagem que nunca come pruquê o

dinheiro roubaram. — Levanta com cuidado, óia a perna dela drobada.— Passa dinheiro na venta dela. — O quê, home?— Passa dinheiro de papé na venta dela. Outro dia, eu ai num caminhão pro

Crato, tive um troço desse e motorista passou dinheiro de papé na minha venta. Fiquei boinha.

Um homem tira uma nota de um cruzeiro, já muito gasta, faz uma bola e esfrega no nariz da mulher que tinha desmaiado, mas que tornava por ela mesma, sobre o cuidado de três amigos e rodeada pela curiosidade de mais de vinte pessoas.

Do lado esquerdo de quem entra, há dois imensos fogões de lenha onde os romeiros cozinham a comida que trazem de casa ou compram quando chegam. Faz um intenso calor perto deles que avermelha os rostos das mulheres. Algumas delas estão do outro lado, em torno da pedra de quatro lavanderias, lavando roupa ou limpando carne para cozinhar. Em determinados intantes as duas tarefas se misturam e pedaços de carnes repousam sobre camisas, calças ou peças íntimas.

3ª estação

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(Onde os romeiros da Mãe de Deus quedam-se admirados diante da imponência da Matriz de Juazeiro. O sermão do Padre Cícero. A bandinha do Mestre Mano. Os penitentes do São Francisco. Quando a fé se traduz, também, em milhões de cruzeiros arrecadados.)

Do folheto "Inauguração, Sermão e Centenário da Matriz de Juazeiro", escrito pelo poeta e astrólogo popular Manoel Caboclo e Silva; 2ª parte, o sermão do padre Cícero:

"Dizendo: — Oh! Mãe das Dores este presente eu te fizaqui tem a tua igreja,esta será a matrizquem visitar esta igrejana vida será felizEu peço mãe queridarainha do mundo inteiroprotejei minha cidade prá todo povo romeirovisitar a mãe das Doresno meu santo Juazeiro.Aquela serra do Hortoquem for vivo ainda vai verpedras viradas em pãoprá todo mundo comere lá no cimo da serrauma fonte aparecer

Dia 14 de setembro, 13 horas, Matriz de Nossa Senhora das Dores. "Nunca tinha visto isso aqui não. Mas, peço a Deus e ao padre Cícero que d'agora por diante eu não perca mais uma romaria. Deus me defenda, de perder", diz uma mulher alva, cabelos negros a descer-lho até a cintura, a um homem sentado num dos bancos da igreja, do lado direito, que diz "é verdade, a senhora tem razão, a boniteza daqui é multo grande, vejo só como Nossa Senhora é bonita, bonita" e a mulher replica que "vejo o sinhô, paguei Cr$ 40,00 prá vir de caminhão, mas chega dá gosto, as missão lá na minha terra num chega nem aos pés da daqui" e vira-se em direção onde esta uma menina aleijada, de seus 12 anos, numa cadeira de rodas, bem no meio da nave central da igreja; ao lado, numa mesinha posta por sua mãe atenta a tudo, uma latinha onde vão caindo as moedas de esmolas, a menina nem está aí, chupando displicentemente um pirulito, os romeiros passando e julgando-se na obrigação de deixar uma esmola, tão pobres como a menina, "mas é pruquê ela precisa mais de que nós e o padre Cícero ensinou a gente ajudar os necessitados", justifica-se uma mulher madura, de seios fartos a balouçarem dentro do vestido negro, olhos azuis, pele vermelha do sol, pés descalços em sinal de penitência e uma pedra na cabeça, "por uma graça alcançada".

Adentra pela igreja, em pleno toque dos seus instrumentos, a bandinha de pífanos de Mestre Mano, estabelecido numa casinha pobre de Juazeiro, onde conserta a fábrica instrumentos musicais que caem pendurados do teto do seu quarto, Mestre Mano no tarol, cada resposta a uma pergunta é seguida de um rufar do seu instrumento, cada resposta um rufar, Cardosinho no pífano que faz solo, Honórío no que responde, Antônio no bombo, Jesuino, emprestado de outra banda, no prato, "o terno de maior responsabilidade no Ceará, capaz de tocar a 400 léguas de distância é que num é folclarizado, porque num toca engravatado prun mangote de gente besta, toca só nas festa de igreja e pros romeiros da Mãe de Deus", segundo as bem postas explicações do seu Comandante de metro e meio de altura, bigodinbo ralo, chapéu de contínuo do serviço público na cabeça,

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fala partida, gaga. Sai a bandinha, anuncia-se agora, ao som de pandeiros e rabecas os penitentes baianos de São Gonçalo, trinta homens e mulheres vestidos de branco, pés descalços, que dançam e cantam benditos muito tristes. Uma mulher puxa nas glórias de Deus amem, nós já vamos começar" e o coro responde "nós já vamos começar" e ela segue "é a primeira cantiga", "é a primeira cantiga", responde o coro, completa a mulher "é a primeira cantiga que nós canta nessa igreja". O grupo faz evoluções, vai e volta ao altar e seu líder, um negro velho de boina na cabeça, lembra a cerimônia da auto-flagelação, quando, entre a Quarta-Feira de Cinzas e a Sexta-Feira da Paixão, os homens mais fortes da seita tiram sangue das costas, se chicoteando com estiles amoladíssimos. Tudo isso para purgar os pecados da humanidade e alcançar o céu e as graças de Deus.

Os bancos foram encostados na parede, de modo que há bastante espaço para exibição dos grupos que homenageiam Nossa Senhora das Dores. Homens e mulheres, velhos e moços, alguns por precisão, outros nem tanto, porque conhecem a generosidade dos romeiros se escoram nas colunas da igreja e tiram esmolas. Um homem bem vestido escora-se numa das colunas somente para descansar, mas, por via das dúvidas uma romeira passa e joga-lhe uma moeda. Outra faz o mesmo. Um velho imita-lhe o gesto. Em dez minutos, o homem apurou Cr$ 15,00. Em dez minutos o cofre do altar recebeu Cr$ 187,00. Em 1974,no mês de setembro, os romeiros deixaram no cofre Cr$ 21.559,45 e entre 2 e 14 do mesmo mês a Matriz arrecadou Cr$ 69.417,83 nas noites dedicadas às diversas classes sociais da cidade. A classe que mais contribuiu foi a dos agricultores, como aconteceu nos anos anteriores, como certamente sempre acontecerá. Em cinco anos, de 1970 a 1974, entre esmolas dos romeiros e contribuição do povo de Juazeiro e de cidades vizinhas, só nos meses de setembro a Matriz de Nossa Senhora das Dores arrecadou um total de Cr$ 211.538,44. Em quatro anos, de 1971 a 1974, as doações dos agricultores somaram Cr$ 79.302,77 mais que o dobro das doações em igual período, dos industriais e comerciantes juntos que foram, apenas, de Cr$ 36.073,00.

Queixa-se a beata Raquel do filme sobre a vida do padre Cícero, Assunção Gonçalves na vida real, 59 anos, uma das responsáveis pela festa de Nossa Senhora das Dores, ex-arrecadadora das contribuições dos industriais e comerciantes: "Desisti de concorrer com o padre Silvino que coordenava a noite dos agricultores. Ele era fogo. Chegava nos sítios, arrancava bode, galinha, até de quem não tinha, nem podia", diz, com a "maior naturalidade, ajeita os cabelos cacheados, grita "como vão esses arranjos", "as flores amarelas estão uma beleza", responde, da cozinha, uma das suas ajudantes e a casa toda é um imenso jardim com rosas, orquídeas e margaridas que enfeitarão o altar da igreja no dia da procissão. A duas casas dalí, na garagem do automóvel do padre Murilo Sá Barreto, vigário da Matriz há 18 anos, um homem bate à máquina, numa folha de papel almaço, o número 4.356, põe o nome de Cecília Maria da Conceição, da rua da Paz 233 e registra sua doação de Cr$ 10,00. Tâo fina como o cajado que leva para se sustentar, tão velha, cheia de vincos e cortes como ele, Cecília revela, com voz baixa, que "moro com meu velho, ele bota roça que mal dá prá gente viver mas a gente vive com a ajuda do meu tio, bem de vida, que manda a fera toda semana, já mandou a dessa e esse dinheiro que dei, foi dinheiro que ajuntei o ano todo, se faz falta num tem nada não, eu. quero é minha saúde de volta, quero que Nossa Senhora das Dores me dê minha saúde de volta, que ela é bem pouquinha e tá se sumindo, se sumindo" e some a voz de Cecília que dá meia volta e vai embora.

Quem não dá dinheiro a Nossa Senhora como Cecília deu, dá qualquer coisa, desde que seja sua lavra, conseguido com seu suor, amalgamado com seu sofrimento. Assim, Joaquina Maria de Souza deu uma trança de cebola, Joana Maria da Conceição deu um capão bem gordo, Manoel Antônio da Silva, uma cuia de fava, Expedito Dorico da Silva, uma cotia que caçou, "uma devota de São Gonçalo" deu 15 ovos, Cícero de Souza, uma mala de rapadura. Maria de Jesus Nazaré não deu nada porque não, tinha, mas fez

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questão de registrar que daria duas garrafas de farinha no próximo ano. Como é de costume, tudo isso será vendido e os dividendos contabilizados para a Matriz. Por ter desabado parte dela logo depois da romaria de 1974, foi lançada uma campanha para sua reconstrução e pedida uma cota extra de sacrifícios aos devotos da Senhora das Dores. Ao fim de onze meses, o sacrifício traduziu-se em Cr$ 207.974,07. "Eu num podia dá", confessa Isidoro Apolinário, residente num sítio em Barbalha, "mas quem vai negar um pedido de Nossa Senhora e do meu padim Ciço?"

Dia 14 de setembro, 13h30, igreja-Matriz. Do lado esquerdo, no último banco uma mulher de meia altura, cabelos presos na nuca, voz estridente, gasguita, diz "tô bestinha com tanta formosura, só meu padim Ciço podia fazer uma coisa dessas, não é mermo, cumpade?" e o compadre, homem moço, de chapéu na mão em sinal de respeito diz "é, cumade, a sinhora tem razão" e, tomando direito da porta, um menino corre e anuncia um reisado, brincadeiras de homens pintados, vestido em roupas coloridas, chapéus cheios de espelhos a refletirem tudo ao mesmo tempo, a refletirem, em imagens fragmentadas, a pintura de teto, a comadre apalermada, a menina aleijada que já não chupa o pirulito, as menininhas louras e sujas que tiram esmolas entre os bancos e que tiram do violão um só acorde.

4ª estação(Onde os romeiros da Mãe de Deus depositam seus objetos para benzer em cima da cama onde padre Cícero morreu. O êxtase diante de um disco. O oferecimento de aves e de alimentos. A crença da catedral. O inflamado discurso de Manuel Fulô.)

Eletrizados, ao redor de uma rural com oito bocas de alto-falantes onde roda o disco "A Vida e os Milagres do Padre Cícero", os romeiros ouvem o ator Dionísio Azevedo ler o testamento do sacerdote, como se fôra ele a voz suave terna e muito clara. A rima permite uma memorização mais rápida. Os homens seguram o chapéu e olham para baixo. Algumas mulheres não suportam a emoção e choram. Cessou, por momentos, nas redondezas, o ativo comércio de bugigangas. Defronte da rural, no Museu do padre Cícero administrado pelos Salesianos, portas e janelas estão cheia de gente, ouvido alertas, atentos.

— Quando cruzeiro cair, estarão próximo a se ver os grandes acontecimentos que irão aparecer, cruz caída quer dizer religião naufraga. A terra é castigada, mortandade da Igreja, é guerra principiada.

— A hora está chegada de se ver gemidos e as mulheres contra os maridos, os filhos contra os pais, o povo viver sujeito nos laços de Satanás.

— Adeus terra dos meus ais, adeus meu bom Juazeiro, adeus terra da Iracema, adeus meu povo romeiro, no momento derradeiro.

Acordes violentos, trágicos, insinuam o passamento do padre Cícero. A voz de um outro ator, ainda mais branda que a primeira em tom resignado, anuncia tristemente:

— Às cinco da madrugada partiu dentro de nós réus, levado por muitos anjos coberto por finos véus com prazer e alegria, juntinho da Virgem Maria, sob o império do céu.

(Som de sino distante. Excelço coro)A narrativa é interrompida bruscamente e um locutor avisa que "se os romeiros da

Mãe de deus quiserem adquirir peça relíquia sobre a vida de meu padim pade Ciço pagarão, apenas, Cr$ 40,00". Ninguém adquire nenhuma, que romeiro não costuma ter radiola em casa. Adquirem-na sim, alguns turistas que passavam ao largo. O comércio retoma seu ritmo normal, as pessoas voltam a circular e cresce o movimento dentro do museu. Entra-se nele por uma porta estreita, vencidos alguns degraus. A primeira sala é de animais empalhados. A segunda, tem retrato do padre Cícero nas paredes e uma imagem dele, de um metro e m meio de altura, em cima de um pedestal. As pessoas se

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ajoelham diante dela, oram baixinho, levantam-se tocam-se e beijam os dedos. As expressões são de fervor. Uma romeira põe a mão direita no queixo e fica por longos minutos fixos na estátua. Uma outra pede em voz alta: "Me proteja, meu padim, me proteja", faz um sinal da cruz e sai assoando o nariz. Uma mãe e um filho de seus cinco anos se ajoelham, puxa dois rosários e rezam. Todos os mistérios. Um rapaz tenta pôr seu chapéu na cabeça da imagem, mas não consegue e é advertido por uma mulher:

— Oxente, num é aqui não. Nós bota o chapéu no anjo que fica lá no horto. Aqui só reza olha a cama e a catedral.

A voz profana de Gertrudes da Conceição, 48 anos, vendedora de remédios, que gosa do privilégio de comercializar seus produtos dentro do Museu porque deixa parte dos lucros para os Salesianos, grita, no mesmo tom, como um monocórdio, "bálsamo da vida, pomada prá quem sofre de reumatismo. É fabricada pelo farmacêutico do meu padrinho, José Geraldo das Dores, que ganhou dele a fórmula. Abaixo de Deus e do meu padrinho, a pomada é um santo remédio para cólica de estômago e intestino, inflamação do baço e incômodo da senhora. Vai levar uma?"

Da terceira sala chegam retalhos de conversar. Ali, cercada por dezenas de corpos que se espremem e se ferem contra ela, está a cama de ferro onde morreu o padre Cícero, objeto santo e precioso para os romeiros.

— Quer tirar um retrato junto dela? Vamos, chefe – convida um vendedor de monóculos.

— Olha o vestiário dele – queda-se uma mulher abismada diante da vitrine onde estão alguns paramentos que pertenceram ao padre Cícero.

— A senhora arrecebe uma galinha pro pade Ciço – pergunta uma velha, miúda, oferencendo uma galinha à zeladora da cama que se posta comodamente, por detrás dela, com as costa contra a parede e um ventilador em cima do rosto.

— Chegue lá fora, procure Dona Moça e dê a ela, viu? – ensina a zeladora com um ar de desprezo, solteirona, empedernida, óculos de muitos graus, perna cruzadas, abaixo dos joelhos e uma preocupação constante com que a sai não suba numa distração qualquer. Olha os romeiros aborrecida, assume, muitas vezes, uma expressão de tédio, de pessoa enfastiada.

— Olhe, chegue na cama, bata com a mão três vez e beije mão três vez – aconselha um caboclo da pele clara a um menino de sues cinco anos vestido como um frade, o cordão de São Francisco na cintura, uma ponta comprida, arrastando pelo chão. Sua mão fica benta – assegura, com todo convencimento.

Na cama, que não deve ter mais ce um metro e sessenta, há um retrato oval de padre Cícero recostado na cabeceira e emoldurado com flores. O colchão é coberto por um lençol azul que é coberto por um outro de zem força para levantar um pouplástico, devidamente protegido contra "os exageros dos romeiros", como explica a zeladora. Em cima dele, as pessoas depositam os objetos que querem ter bentos, retirando-os segundos depois – velas, quadros, estampas, rosário, tudo.

— Moça, vou deixar um maço de vela em cima da cama, vou descansar um pouquinho enquanto benzo e volto já, tá bem?

A zeladora diz que não está, que depois vem outra pessoa e leva. Uma mulher deposita uma carteira profissional aberta na página onde está o retrato do seu marido. Uma outra, uma caneta, dessa que tem um bonequinho flutuante. O bonequinho padre Cícero. As esmolas são deixadas nos pés da cama. Em dez minutos Cr$ 135,00. Os Salesianos não divulgam quanto apuram em cada romaria nem o que fazem do dinheiro. Sempre que se acumula uma boa soma, a zeladora a recolhe à gaveta de uma mesinha que tem ao seu lado e deixa sobre o colchão o suficiente para passar troco. Ela vende , também, como relíquias aos próprios romeiros, pedaços de fitas que eles mesmos

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deixaram amarradas no quadro oval de padre Cícero. Tem o escrúpulo, somente, de esperar o fim do dia para retirar as fitas cortá-las em pedacinhos e vendê-las no outro dia.

— Tava tudo em cima da cama. Tava o chapéu, as roupas, tudo – lembra uma romeira experiente, do tempo, não muito remoto, em que os paramentos do padre Cícero eram expostos em cima da cama. Nessa época, os romeiros pagavam promessas deitados debaixo dela contornando-a várias vezes de joelho se até se deitando numa beirinha. Se ainda fazem promessas desse tipo, já não podem mais cumpri-las, porque, em nome da preservação do bom estado da cama, a administração do museu cercou-a de grades e colocou arames embaixo para impedir a passagem.

— Tome aí esse pacote de feijão pro padre. — Óia aqui esses litros de farinha pro pade Ciço.— Entregue lá atrás – repete a zeladora, com ar de enfado.— Moça, tão quase virando a catedral – avisa uma mocinha. A zeladora levanta-se

sai correndo e, nos fundos do museu, surpreende uma longa fila de romeiros diante da gigantesca maquete de uma catedral que o padre Cícero sonhou construir mais não pode. As pessoas faquinho a maquete. As que conseguem, fazem três cruzes na testa e saem satisfeitas. As que não, ficam muito tristes. A zeladora dissolve a fila, distribui gritos enérgicos e ouve a súplica de uma velhinha, a cabeça coberta por um véu negro, puído, as mão postas, como quem vai rezar, a boca chupada, sem dentes:

— Dona, deixe. Se nós consegue levantar um pouquinho é sinal que nós tem as graças de Deus.

A zelador não deixa, "oram veja só, que safadeza desse pessoal, tá todo mundo avisado que não pode, que a maquete pode cair de cima de cima dos cavaletes e se quebrar, tá tão velhinha". Alguns homens a reequilibrar a maquete sobre os cavaletes,os romeiros se afastam, a zeladora lança um olhar duro e volta às suas funções junto da cama. A fila não se refaz, mas alguns romeiros desabusados retomam sua tentativa de levantar a maquete, nem que seja um poquinho.

Calça de brim azul, camisa branca de linho, 73 anos, cabeça redonda quase sem cabelos, estatura mediana, Manuel Fulô. "Fulô por causa da minha vó Fulorença", romeiro alagoano de Rio Largo, postado diante da maquete, aconselha uma mulher metida em luto fechado:

— Pegue não, pegue não na igreja. Pegando nessa igreja a mão da senhora num fica santa não.

— Cumé que pode ficar se a gente tem tanto do pecado, não é cumpade? – pergunta outra mulher. E Manuel Fulô, se vendo, de repente, ouvido por uma roda de bem dez pessoas, todas mais novas do que ele leva a mão direita à cabeça e discursa, as vezes calmo, às vezes mais exaltado:

— Pois bom. Deus é bom. Tem fé em Deus e pronto. Já vim a muita romaria. Umas vez pagando promessa minha, outras, de minha fia e minha muié. Dessa vez, vim com uma neta que deixou um vistido na igreja do socorro, no retrato do meu padim Ciço. Mais do que Deus ninguém, só meu padim Ciço e meu padim Damião. Antigamente, eu vivia bebendo cachaça. Fiz uma promessa, deixei, cachaça só põe a pessoa no caminho ruim. Vim de longe. Paguei Cr$ 40,00 de ônibus, mas Cr$ 10,00 de rancho, trouxe Cr$ 300,00 e só tenho aqui o que dá prá volta prá trás. Vou dizer uma coisa: meu padim Ciço num morreu. Ele avive no meio de nós. É aqui, na mata mais braba, em qualquer parte meu padim está. Agora, nosso pecado é grande, meu padim desapareceu da nossa vista por causa do nosso pecado.

5ª estação

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(Onde os romeiros da Mãe de Deus jogam dinheiro em cima do túmulo do padre Cícero. A briga pela posse do cofre. O zelo dos coroinhas e o admirável silêncio da multidão. A cólera santa de uma romeira.)

O sacristão varreu o dinheiro jogado em cima do túmulo do padre Cícero, dentro da igreja de Nossa Senhora do Socorro, admirou a multidão que, em silêncio respeitoso, ocupava todos os bancos, fez sinal aos coroinhas que acenderam as velas e alisaram com carinho a toalha do altar para que não ficasse nenhuma dobra, o padre magro e de óculos entrou, fez uma genoflexão, segurou o pequeno microfone coma mão direita, pôs a esquerda sobre o peito, pregou sobre o dever do cristão de suportar o sofrimento com estoicismo, pois o sofrimento nos purifica dos nossos pecados, abençoou a todos e retirou-se para o confessionário onde examinou faltas e culpas, detectou pecados e classificou-os,distribuindo penitências até a hora do jantar.

A fila para confissão estendia-se até o átrio da igreja, perto de um cruzeiro e de uma entronizada imagem do padre Cícero com um respectivo cofre. Por causa desse cofre, até pouco tempo, brigaram o padre Silvino Moreira Dias, pároco da igreja do Socorro e Walter Barbosa,presidente da Associação de Amparo ao Mendigo de Juazeiro. Walter tinha até pessoas contratadas que orientavam os romeiros a depositarem suas esmolas no cofre da imagem. Padre Silvino bradava, pelo alto-falante, que o legítimo, autêntico e definitivo cofre do padre Cícero era o que estava em cima do seu túmulo, dentro da igreja. Pesou mais a autoridade do padre Silvino.

Os que se confessam, os que já fizeram isso noutras igrejas ou estão em paz com sua consciência, ajoelham-se perto do túmulo do padre Cícero e rezam no mais absoluto silêncio. Deixam esmolas, como obrigatoriamente já deixaram no museu e na matriz e como ainda deixarão no horto, onde está a estátua do padre Cícero em cimento. Em dez minutos, Cr$ 152,00, padre Silvino tem o controle do apurado mas não divulga.

— Trouxe Cr$ 40,00 só prá deixar de esmola, fora o que paguei de passagem, de rancho, de comida, de uma cosinha aqui, outra ali, dinheiro junto com sacrifício, prá deixar em Juazeiro pro meu pade Ciço e prá Senhora das Dores – Jerônimo Francisco, romeiro do Piauí, não esconde sua alegria ao revelar isso. Intromete-se Chico Zé, "o meu nome é Francisco José, mas todo mundo me chama de Chico Zé, e com essa acompleto 20 romaria ao Juazeiro, sem perder nem um ano. Este ano, vendi um boi que ganhei numa partilha e trouxe muito dinheiro. Me roubaram lá no horto, arranjei com o pade só a passagem de volta, mas num tem nada não, quem robô tinha mais precisão do que eu".

Baixinho, mas o suficiente para ser escutado por quem rezava ao seu lado, um romeiro de meia idade lamentou-se, olhando para o túmulo do padre Cícero: "Ele num tinha nada de morrer e adeixar nós no mundo". Encolerizada, levanta-se Elisia Maria de Jesus, 83 anos, que só não foi beata do padre Cícero "pruquê era preciso sê moça e eu já era casada quando conheci ele", e reage em voz alta, para quem quiser ouvir e todos a escutam:

— Padre Ciço num morreu. Ele era vivo e é. Morto sou eu e você. Tamos aqui só emprestado pro mode cair, pô, pô, pô. Hoje mermo, na missa, uma mulher deu a alma a Deus. Meu padim é prá sempre. A primeira tabuinha de Noé foi ele que butou. Meu padim é vivo e é novinho, hoje tá pegando duma forma, amanhã dôtra e pronto. É isso mermo.

Elísia se recompõe e abandona a igreja. Tirando esmolas na pracinha defronte, conta que é de Palmares, Pernambuco, "faz muito tempo que moro em Juazeiro. Mas, tem nada não. Sou uma pobre que mora hoje aqui, amanhã acolá. Eu vou inté me qualificar ainda, tá faltando uns papé prá me aposentar. Fui casada, graças a Deus, tive oito fios, cinco morreu, só tem três. Um mora entre Jurema e Queimada, os outros num sei", ela afasta os cabelos brancos que teimam em cair-lhe sobre os olhos, acaricia um sinal que tem na face esquerda, leva a mão à cabeça e desenterra lembranças.

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"Sou devota do padre Ciço, graças a Deus. Minha felicidade é ele e Nossa Senhora das Dores. Ando com meu rusaro no pescoço. Ele disse que se o rumero passasse pelo outro que não tivesse o um rusaro, não fizesse abenifício nenhum. Foi o que ele disse. Conheci ele muito. Se não conhecesse do ano dois mil. Num sei. Só sei que tá falado umas trevas pruquê o povo do mundo num quer largar os maus custume. Você sabe que de vez em quando tá virando gente, de vez em quando tá virando gente, tome, tome, tome. Ele mesmo disse: Quando um dia chegarem numa casa que falarem de mim que vocês num gostarem, não vão morrer, pruquê Deus não mata ninguém de tiro, nem de facada. Arritirem-se quem gosta de mim. Pruquê se o homem casou-se, dê-se ao respeito e a muié também."

"Uma vez, faz muitos ano, do Rio de Janeiro veio uma moça se tratar com pade Ciço de um incômodo que num tinha dotô que desse jeito. Ficou boa bem nos pés dele. Com muitos ano, dize que se apresentou no Rio de Janeiro um pade descendo das nuvem do céu. Num tinha quem conhecesse: quem é, quem é, quem é o padre, que padre é aquele promode tirar o retrato, quem é, quem é, correu a noticia em todo país, aí apareceu a moça e disse: Oxente, é meu padim Ciço do Juazeiro. E ninguém caçoe e nem diga que é mentira. Olha lá Herodes, olha lá quem é Deus. Feliz daquele que crê em pade Ciço, é mesmo o pai verdadeiro. Quero tá no Juazeiro e num quero tá com o comê do mundo todo. Eu rezando meu rusaro, ele me dá o pão. Tem medado. Sópeço a Deus que melivre do espírito maligno".

6ª estação(Onde os romeiros da Mãe de Deus sobem seis quilômetros de chão quente para rezar aos pés da gigantesca estátua do padre Cícero. A romeira que veio morrer na terra santa. A mulher de cruz às costas. O sanfoneiro agradecido. Esmolas para a Beata Santa que morreu.)

Seis quilômetros de terra e pedra que serpenteam subindo o morro, ora a estátua do padre Cícero aponta lá em cima, ora desaparece, conforme os caprichos da estrada. Às suas margens, as pessoas exibem o que tem, umas vendem imagens do padre, outras oferecem comida barata, outras que nada tem a oferecer, expõem aleijões à caridade pública. A boca do povo conta que, ainda outro dia, no pé do morro, uma romeira pegou a encostar-se numa pedra arriou devagarinho e quando se viu, tinha morrido, mulher de muita fé, vinda de longe para morrer na terra santa do Juazeiro, no caminho santo que conduz à estátua do meu padrinho, de oito metros de altura no pedestal, mas 17 dos pés à cabeça, 500 toneladas para suportar nas costas os pecados do seu povo, estátua só menos, no Brasil, que a do Cristo Redentor, entretanto, mais venerada, rodeada de gente que lhe raspa um pouco de cimento para fazer chá milagroso, que deixa o nome escrito a lápis ou riscado a canivete, gente crente de fé cega, capaz de esgotar o aparentemente inesgotável estoque de dezenas de vendedores de monóculos que se espalham, por toda parte, como uma praga, de beber toda a bebida do bar dos Salesianos, de consumir toda a comida da churrascaria que os Salesianos exploram, deixando, ainda, dinheiro no cofre de uma capelinha e esmolas para a Beata Santa que morreu antes da romaria, mulher tida como sábia, seguidora do padre Cícero por muito tempo, a quem se suplicava receitas para todos os males, conselhos para todas as situações, sem se obter uma resposta, porque recolhida ao fundo de sua rede, perdida no poço de suas memórias de quase cem anos, ela só saía do seu mutismo para pedir "Maria, fecha a porta, fecha a porta Maria".

Pegada à capela, há uma sala ampla e ventilada com uma imagem do padre Cícero de um metro de altura. Nos seus pés, há um cofre onde, em dez minutos, os romeiros deixam Cr$ 80,00. No altar da capela está entronizado um Sagrado Coração de Jesus tendo, à sua direita, uma Virgem Maria e à sua esquerda, um padre Cícero de 50

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centímetros. Junto dele, um anjo cuja cabeça as pessoas põe seus chapéus para santificá-los em alguns segundos, como acreditam. O ambiente é de silencio e contrição, é como se fosse uma peça deslocada de um imenso quebra-cabeça: lá fora, é o burrinho de mercado, os pregões dos vendedores, as ofertas, os regateamentos, a reza, o espocar de fogos, o barulho de automóveis e ônibus despejando turistas pruquê romeiro que se preza vem de pés, se cortando pedras, se queimando nelas, estancando para descansar à sombra, retomando o caminho, predominando o azul e o preto dos vestidos da mulheres, multiplicando-se a promessa de carregar pedra na cabeça, povo de tudo quanto é origem, de tudo quanto é de lugar, abismado pela imponência da estátua que já conhecia, relatando as graças que obteve, se inteirando de novos milagres do seu padrinho, padre Cícero, reforçando os alicerces da sua fé, e cumprindo, obstinadamente, sua predestinação.

— Eu disse a Joel: cuidado com a voz. Não é como na feira que a gente muda o tom de voz. Bendito é um tom só e ainda se tem a poeira e a falta d'água – lamenta-se J. Borges, poeta, gravurista e vendedor de benditos nas romarias.

— Óia, Joel, já ia desligar. Óia o monte de gente chegando.— Eu já miei de garganta. Num posso mais – confessa Joel, folheteiro magro e

alto, com ar de besta.A estátua domina o horto e a cidade lá embaixo. Sobe-se da sua base até as

dobras da batina por duas escadarias que existem de um lado e do outro. Os romeiros sobem pela escadaria da direita e descem pela da esquerda. Os que não conhecem esse costume são orientados, advertidos e até mesmo forçados a obedecê-los. Justamente porque necessitavam de calma e de pouca gente ao redor para cumprir sua promessa, as duas moças escolheram o dia mais fraco da romaria no horto, o dia da procissão de Nossa Senhora das Dores, que concentra os romeiros na cidade. Faz meia hora que elas lutam contra o vento para amarrar a estátua com uma só peça de oito metros de fita vermelha. Conseguem, finalmente. E vão embora sem nem olharem um homem que esfrega as costas na base da estátua, acreditando na cura definitiva da dor que sente nelas pelo contato desesperado com um monumento que julga santo.

Vestida como uma imagem do Senhor dos Passos, carregando às costas uma cruz pesada, uma mulher arrasta-se pela escada com dificuldade. Recusa, aos gritos, a ajuda de um homem. Cai nos degraus uma, duas, três vezes, nem tanto pelo peso da cruz, mas por ter pisado a própria roupa que veste e que lhe cobre os pés. Deposita a cruz com um extremo cuidado e delicadeza junto ao cajado onde pousa a gigantesca mão do padre Cícero. Reza um terço, afasta bruscamente uma velha que tenta cortar-lhe um pedacinho da roupa para levar como relíquia e vai embora, sem dizer o nome, sem revelar a graça que alcançou. Dá lugar a um sanfoneiro que toca xotes e baiões bem meia hora: "Toco nos pés dele (e aponta a estátua do padre com os beiços) faz bem cinco ano, derna que fiquei bom de uma doença muito feia nas mãos".

Aos poucos, o horto vai ficando deserto. O vendedor de benditos desliga seu fanhoso alto-falante, o sanfoneiro desce a escadaria pelo lado esquerdo que é o mais certo, raream os pagadores de promessas, o bar fecha suas portas, a churrascaria contabiliza seus ganhos. Maria, da Beata Santa que morreu, conta as esmolas que deixaram em memória dela e o movimento transfere-se para a cidade, na iminência da procissão de Nossa Senhora das Dores.

7ª estação(Onde os romeiros da Mãe de Deus se despedem dentro da Igreja e acompanham a procissão. A cantoria do cego. O propagandista da identidade católica do Juazeiro. A poderosa indústria da fé. O discurso do governador. O vendedor de banha de capivara.)

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Um cego, a viola, a cuia de aparar moeda, a sombra de uma árvore, uma roda de gente.

— A velha ficou tremendoTão branca como um murimNão se assustando em péSentou-se dizendo assimNão pode haver outra mãedesgraça igual a mim.(Comentáro ao fim do verso: "Eita, véia prevessa").— O verso tá terminandoeu cantei do princípio ao fimpara os apreciadorese se alguém achou ruimme queixo de quem não pagae ninguém se queixa de mim.(Barulho de moedas caindo na cuia)— Minha gente, vocês agora vão escutar "Paixão de Amor sem Fim", de autoria de

Sebastião Pereira da Silva, esse pobre cego, residente no pé da serra de Cariri Açu, município do Crato...

Um propagandista, um alto-falante a pilha, uma roda de gente.— E senhores romeiros, todo aquele que for devoto do meu padim pade Ciço e do

meu padim Frei Damião, a Santa Virgem Maria manda pedir que arreceba duas identidades católicas do Juazeiro e apregue na porta da sua casa, viaje com ela dentro do bolso que te livra de tudo quanto é ruim, livra do catimbozeiro, do maconheiro, do mau ladrão. O ladrão pode entrar na tua casa. Mas tás prevenido com essa identidade católica do Juazeiro, o ladrão entra na tua casa, pega teu dinheiro e não leva e nem te faz mal. E quando amanhecer o dia ele tá dentro da tua casa porque desaprendeu a sair. Porque os puder do meu padim Ciço e do meu padim Frei Damião é grande.

Eu vou rezar mais um bendito e encerrar porque meu padim Frei Damião disse que onde eu chegar e o romeiro não pegar na identidade católica do Juaizeiro, você vai cantar, deixe prá entregar noutra região. Eu vou entregar a identidade a seis ou oito romeiro e vou embora porque não tem mais. Já entreguei mais de 800 milhão hoje de manhã no horto e se vocês virem um sinal no céu, é o letrero de Nossa Senhora Aparecida dizendo "te arrepende povo". E a corrupção tá de um jeito que ninguém pode fazer mais nada. As moça andam de minissaia, é um tal tô de olho na butique dela, na butique dela, porque, antigamente, uma moça fazia, falo de moça de vergonha e de respeito, ela fazia um vestido com três metro de pano e 90 de largura. E hoje, tão fazendo com 50 centímetros de pano e 30 de largura. Essas moças não acreditam mais no meu padim Ciço e em Frei damião. Uma delas disse a Frei Damião que só acreditava nos seu poderes se ele fizesse dela um bixo bem feio. E olha aqui, senhores, como ela ficou depois (e mostra uma página do "Diário de Pernambuco" de 13 de janeiro de 1974 que reproduz um cartaz do novo filme Fellini, "Roma", onde engatinha uma mulher com três peitos). Isso é filho que não respeita mãe, que não respeita pai, que se atravessa no meio de conversa de gente grande e diz, não papai, não é assim, é assim, assim, assim....

Padre Murilo Sá Barreto, vigário da Matriz, em cima de uma camionete, com um microfone na mão, mais de vinte mil pessoas a ouvi-lo depois da procissão de 2.300 carros, ônibus e caminhões de romeiros.

— Quero todo mundo amanhã na igreja, durante a despedia dos romeiros e na procissão de Nossa Senhora das Dores, todo mundo com uma bandeirinha dessas na mão (e mostra uma bandeirinha de papel com dizeres alusivos a romaria. O dinheiro de

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sua venda reverteria para a Matriz). Romeiro da Mãe de Deus, viva Nossa Senhora das Dores.

— Viva.(Há gente que chega a pular de tanta alegria)Emetério Pinto Pimentel, 72 anos, alagoano, dono de três caminhões, homem rico,

de posses reconhecidas.— Faço uma base de três viage por ano trazendo rumeiro pro Juazeiro. A bem

dizer não sou eu, eu sou alugo os caminhão. Desta vez agora, tá dando prá ganhar, numa viage, dois milhão livre de despesas. Há 12 ano que alugo caminhão pro Juazeiro. Quando compro um caminhão novo, trago primeiro aqui pro pade Ciço e Nossa Senhora das Dores Abençoar.

José Argemiro Martins, 63 anos, alagoano, fretante de caminhão para romaria em Juazeiro ha 26 anos.

— Desta vez truxe 110 romeiro. Oitenta e oito de passagem paga, o resto de esmola. Paguei Cr$ 3.500,00 de alugué do caminhão e cobrei Cr$ 40,00 de cada romeiro. Apurei Cr$ 3.520,00. Mas tive de gastar mais Cr$ 240,00 pra trazê o pessoá do sítio, mais Cr$ 50,00 no posto rodoviária de Caruaru pruquê caminhão não pode transportar gente, mais Cr$ 75,00 de excesso de passageiro. Em Arcoverde dei mais Cr$ 30,00 a um guarda pelo mesmo motivo, deis mais Cr$ 20,00 a outro guarda no posto de Serra Talhada e mais Cr$ 20,00 em Brejo Santo. Pelas minha conta tive um prejuízo de Cr$ 435,00. Mas, num é todo ano que tenho prejuízo. Só perdi esse ano, que me alembre.

(Fretante de romaria como José Argemiro Martins, calcula o padre Murilo que exista cerca de 500 em todo o Nordeste com os olhos postos no Juazeiro).

Oficina de Helena Vieira dos Santos, 32 anos, uma das 80 oficinas de Juazeiro que fabricam imagens do padre Cícero e de todos os santos, e de Helena, certamente, a maior delas.

— Não preciso esconder: estou muito bem de vida vendendo imagens do padre Cícero, de quem também sou crente e devota. A cada romaria, procuro sempre oferecer um produto novo, diferente, original, que agrade os romeiros. Justamente por causa desse meu esforço é que já me roubaram, pelo menos duas vezes, matrizes de novos lançamentos que eu ia fazer. É a tal da espionagem industrial que eu já tinha ouvido falar e que começa a chegar por aqui. Na minha oficina tem pare Cícero de todos os tamanhos, em todas as posições e para todos os gostos. Tem o sentado, o de pé, o tipo mini-monumento, o com base, o sem base, o de lixo, o de parede, o de medalha, o medalhão, o tipo modulho, o tipo moldura, em todas as cores, em gesso, para todos os preços. Na romaria de setembro de 1974, vendi uns 2 mil padre Cícero. na romaria de novembro, devo ter vendido 2.500 imagens. Para a romaria de setembro de 1975, pus à venda 3 mil imagens. Mas, a situação não está ficando boa não. Como tem muita oficina por ia, elas estão usando material ruim na fabricação das imagens, forçando uma baixa no preço do produto. Como só uso do melhor material e não posso baixar o preço, estou tendo dificuldades. E mais, que a Cerâmica Nordeste, na Bahia, que não fazia padre Cícero em gesso, agora está fazendo e vendendo às lojas de Juazeiro. Vou ter de deminuir minha produção e vou partir para me dedicar mais às imagens de dois metros de altura, feitas em cimento, que vendo Cr$ 8 mil, até Cr$ 10 mil e que estão sendo colocadas em praças de diversas cidades daqui da região.

Informações prestadas por Salomé, irmão e sócia de Maria que estar muito ocupada no balcão da Loja Santa Teresinha:

— O estoque de imagens do padre Cícero é uns 700 mais ou menos. Tem desde de Cr$ 1,00 a Cr$ 110,00. Aquela de um metro e cinqüenta não está à venda, embora um romeiro de Alagoas tenha oferecido até um terreno por ela. Mas, o que é que a gente vai fazer com um terreno num lugar muito longe daqui? As 700 imagens do estoque se

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vendem até a romaria de novembro. De Rosário, tem 100 dúzias, cada um por Cr$ 3,50. Até fevereiro de 1977, está tudo vendido. Depois do padre Cícero, o que mais vende é a imagem de Nossa Senhora das Dores. O preço varia de Cr$ 5,00 a Cr$ 38,00. Depois de Nossa Senhora, o Sagrado Coração de Jesus vende muito bem. Só de quadro dele, tem uns 400 e os preços vão de Cr$ 2,50 a Cr$ 35,00. Até o fim deste ano, não tem um de resto. A gente não sabe o movimento comercial quando representa por mês, nem mesmo por dia, não há esse negócio de contabilidade. É chegando dinheiro e saindo, chegando e saindo. Os comerciantes do Juazeiro ficaram muito decepcionados porque o Bispo do Crato proibiu frei Damião de encerrar a romaria de 1975. Se ele tivesse vindo, o dinheiro ia correr ainda mais frouxo e essa cidade ia ficar uma loucura.

Igreja-Matriz, cerimônia da despedia dos romeiros antes da procissão de Nossa Senhora das Dores. Padre Murilo benze os objetos que os romeiros compraram na cidade, puxa benditos, o Governador do Ceará, Adauto Bezerra, espera no altar o momento de pronunciar seu discurso rodeado de seus assessores.

— Nossa vida é uma passagemna cidade ou no sertãonossa volta e uma viagemem busca da salvação.O Governador prepara a voz. Padre Murilo pede silêncio. — Meus irmãos. Agora vamos ouvir a mensagem do Governador filho da terra e

logo depois cantaremos para ele o "Adeus Adeus Maria". — Meus prezados romeiros. Não poderia ser eu o ausente nesse dia em que o

Nordeste inteiro vem aqui reverenciar Nossa Senhora das Dores. Aqui chego como neto de romeiros que vieram das Alagoas e de Pernambuco, assim como vocês vieram procurar a fé e o amor. E o neto e filho de romeiros fez fixar em seu coração, toda fé, todo amor e carinho que buscamos e encontramos na terra de padre Cícero. Aqui, nos encontramos para abraçar os romeiros de ontem e os romeiros de hoje e para invocar-mos as bênçãos do nosso patriarca e de Nossa Senhora das Doras. Aqui, em Juazeiro, vocês encontram um seguidor do padre Cícero na figura do padre Murilo, esse extraordinário guia espiritual do Nordeste (o padre sorri envergonhado). É por esta razão que o Juazeiro continuará a ser sempre a grande catedral onde reza o Nordeste do Brasil (aplausos dos romeiros). Voltem às suas casas e transmitam aos que aqui não puderam vir, a fé, o amor, a alimento, porque só assim o homem poderá viver sobre a terra. Não nos agrada muito ter muito sabendo que do outro lado, existe uma grande quantidade dos que não tem muito, dos que não tem nada. Precisamos aprender a dar àquele que nada tem, o pouco que temos. Assim, estaremos praticando o caminho da caridade, o único que nos poderá levar à presença de Deus.

(Palmas. Muito bem. O orador é vivamente cumprimentado).Padre Murilo toma do microfone para comandar novas ovações.— Essas foram as palavras de nosso Governador. Vamos agora explodir em

alegria. O Nordeste quando quer explodir em alegria é sempre pela garganta. É assim, quando o vaqueiro solta seu aboio vitorioso. Por isso, viva a Santa Igreja Católica.

— Viva.— .... e na igreja, a esse povo a quem Juazeiro deve o seu desenvolvimento, o seu

progresso, a sua riqueza. Viva o romeiro da Mãe de Deus.— Viva. (Uma pesquisa da Prefeitura do Juazeiro feita em 1971, concluiu que cada romeiro

deixa na cidade em média, Cr$ 10,00. Padre Murilo calcula, hoje, que esse número quintuplicou, pelo menos. Em 1971, as cinco agências bancárias existentes no Juazeiro forneceram o volume de dinheiro depositado por pessoas e entidades que lucraram com a

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romaria de novembro daquele ano, nos três dias seguintes ao retorno dos romeiros: Cr$ 7.315.438,25.)

— Agora, romeiro, aquele que na vida levou uma mensagem de amor a todos os homens, aquele que conseguiu reunir em torno da sua batina, a liderança religiosa do Nordeste; ele vai receber também nossa consagração. Olhem, olhem padre Cícero é santo, porque está canonizado no coração do povo. Não é a igreja brasileira que o torna importante e sim a igreja de Jesus Cristo que é o povo que caminha. Por isso, viva o padre Cícero do Juazeiro.

— Viva.(Aplausos prolongados.)— Às cinco horas, a procissão de encerramento. Quero todos com uma

bandeirinha na mão. Custa só Cr$ 1,00. Quem tiver de chupar um picolé, não chupe e compre a bandeirinha.

Um vendedor de banha de capivara, uma roda de gente, enquanto a procissão se organiza; na frente, as irmandades e associações religiosas; na frente do andor, autoridades municipais e estaduais; atrás, a banda de música e o povo:

— Prá cansaço, prá puxado, prá asma, prá tosse braba, digo eu vou levar um remedinho. O reumatismo hereditário, o agudo, o sifilítico ou ponta de osso. Do que dói, do que incha, do que o osso apula fora. Esquente a banha de capivara e passe em cima. E quem comprar, leve e mande um prático examinar. Se ele disser que não é pura, que traga adevolvo o dinheiro. Não estou desdobrando ninguém com conversa. Agora, não é remédio. É receita velha, das coisas antiga. Se o prático disser que não é pura, volte só. Vá na sede policial e dê parte a meu superiô. Traga um policial e me prenda como ladrão que ladrão deve tá, na cadeia, que é o lugar dele e a hora de prender ladrão e quando ele tá com o roubo na mão. É banha prá sabido, prá besta, feio, branco, preto, rico e pro pobre, agora não é remédio, é mesinha. Cura fraqueza da muié. É banha de capivara da verdadeira. Óia o caititu ali, olha a jibóia, a cabeça do jacaré. O quê? A procissão vem aí? Então tá parado. Acabou-se. Cada um vai acompanhar a procissão que num vou mais vender.

A procissão arrasta-se lentamente pelas principais ruas do Juazeiro, Nossa Senhora em seu andor iluminado, entre as flores de Dona Assunção, os penitentes de São Gonçalo formando entre as irmandades, Mestre Mano e seus músicos com instrumentos silenciosos. Manuel Fulô metido em roupa de domingo, chapéu na mão por uma questão de respeito, Maria Chaves à frente dos seus romeiros que não se vestem com escândalo, a exaltada Elisia Maria de Jesus brandamente postada numa esquina de rua, passando entre os dedos as pontas do seu rosário. Há bênçãos defronte da Matriz, levantar de mãos dos romeiros, o anunciado, mas cheios de defeitos, espetáculo pirotécnico, o largo se esvazia,os caminhões esquentam seus motores, canta-se benditos de despedida e encerra-se a romaria a Mãe de Deus, a 41ª depois da morte do padre Cícero.