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HISTÓRIA RELIGIOSA de PORTUGAL

CENTRO uníA i ILiGlCSA

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HISTÓRIA RELIGIOSA DE PORTUGAL CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA RELIGIOSA

DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA DIRECÇÃO DE

CARLOS MOREIRA AZEVEDO

VOLUME 1

FORMAÇÃO E LIMITES DA CRISTANDADE

C O O R D E N A Ç Ã O D E :

Ana Maria C. M. Jorge Ana Maria S. A. Rodrigues

A U T O R E S :

Ana Maria C. M . Jorge Ana Maria S. A. Rodrigues Hermínia Vasconcelos Vilar

Joaquim Chorão Lavajo Maria de Lurdes Rosa

Maria José Ferro Tavares Saul António Gomes

CírculoLeitores

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C A P A E DESIGN GRÁFICO: Fernando R o c h i n h a D i o g o

REVISÃO TIPOGRÁFICA: Fotocompográf ica , Lda.

CARTOGRAFIA: Fernando Pardal

C O M P O S I Ç Ã O : Fotocompográf ica , Lda.

F O T O M E C Â N I C A : Fotocompográf ica , Lda.

® Círculo de Leitores SA e Autores Primeira edição para a língua portuguesa

Impresso e encadernado em Maio de 2000 por Printer Portuguesa, Ind. Gráfica, Lda.

Casais de M e m Mart ins , Rio de M o u r o Edição n.° 0 0 4 6 6 1 2

Depósi to legal n.° 150 6 0 8 / 0 0 ISBN 972-42-2277-2

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APRESENTAÇAO

INTRODUÇÃO 1

A DINÂMICA DA CRISTIANIZAÇÃO E O DEBATE ORTODO-XIA/HETERODOXIA 13 O S I N C R E T I S M O R E L I G I O S O H I S P Â N I C O E A P E N E T R A Ç Ã O D O C R I S T I A N I S M O 13 — D O C O M B A T E C O N T R A O P A G A N I S M O A O C O N T R O L O D A S « S U P E R S T I Ç Õ E S » 20 — O E C L O D I R D A D I S S I D Ê N C I A : A Q U E R E L A A R I A N I S T A 25 — O R E P T O D O P R I S -C I L I A N I S M O E A E M E R G Ê N C I A D E « N O V A S » C O R R E N T E S H E -T E R O D O X A S 29 — O S U R G I M E N T O D A S C O R R E N T E S M I L E N A -R I S T A S E D A Q U E S T Ã O D A P O B R E Z A V O L U N T Á R I A 3 5 — A P E R M A N Ê N C I A D A S « S U P E R S T I Ç Õ E S » E A D I A B O L I Z A Ç Ã O D A F E I T I Ç A R I A 43 — N O T A S 46

O DIFÍCIL DIÁLOGO ENTRE JUDAÍSMO E CRISTIANISMO 53 O S J U D E U S N O P O R T U G A L M E D I E V A L 53 — O A P E L O À C O N -V E R S Ã O E A A P O L O G É T I C A 69 — O A N T I C R I S T I A N I S M O 86 — N O T A S 88

A PROCURA DO DEUS ÚNICO Convivências religiosas: um desafio multissecular íí

ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERANCIA E A GUER-RA SANTA 91 O S M O Ç Á R A B E S P O R T U G U E S E S 92 — A conquis ta m u ç u l m a n a da Península Ibérica e o estatuto social dos cristãos 92 — Estatuto e c o n ó m i c o 95 — Liberdade religiosa 96 — A vida cultural 100 — M O U R O S 102 — A Reconquis ta cristã da Península Ibérica e o estatuto social dos mouros 102 — Organ ização jur íd ica e administrativa dos mouros : as c o m u n a s 108 — Segre-gação étnico-rel igiosa 109 — Mourar ias 110 — Vestuário e sinais distintivos 111 — Estatuto económico-prof i s s iona l dos m o u r o s por tugueses 112 — Agricul tura e ofícios mecânicos 112 — C o m é r c i o e finanças 113 — Out ra s actividades 114 — Impostos e heranças 114 — Aposentadoria 115 — Participa-ção na guerra e na manutenção da o rdem 115 — Liberdade religiosa 116 — I N T E R C Â M B I O C U L T U R A L I S L A M O - C R I S T Ã O : U M B A L A N Ç O P O S I T I V O 117 — E n c o n t r o de dois povos e duas culturas 117 — A língua 121 — Arte e ciência 122 — A poesia lírica e a narrativa 126 — A filosofia 127 — U M E P Í L O G O T R Á G I C O : A E X P U L S Ã O D E 1496 127 — N O -T A S 129

ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA D O ESPAÇO 137 D O I M P É R I O R O M A N O A O R E I N O A S T U R I A N O - L E O N Ê S 137 — E S P A Ç O E C L E S I Á S T I C O E M T E R R I T Ó R I O P O R T U G U Ê S (1096-1415) 142 — A geografia eclesiástica portuguesa na época medieval: estudos, fontes 144 — A geografia eclesiástica portuguesa na época medieval: territórios dioce-sanos 146 — T u i (parte portuguesa) 146 — Orense 148 — Braga 148 — Fre -guesias medievais — M i n h o 150 — Freguesias medievais — T r á s - o s - M o n t e s 156 — P o r t o 161 — C o i m b r a 166 — Viseu 170 — Lamego 172 — C i d a d e R o d r i g o (parte por tuguesa) 175 — Guarda 176 — Badajoz (parte p o r t u g u e -sa) 179 — Lisboa 179 — Évora 185 — Algarve (Silves) 192 — A geografia eclesiástica por tuguesa na época medieval : conclusões 193 — N O T A S 195

A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA Agentes e estmturas de enquadramento eclesiásticos Í35

V

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S U M Á R I O

AS INSTITUIÇÕES E O ELEMENTO HUMANO 203 AS I N S T I T U I Ç Õ E S M O N Á S T I C A S E A F U G A D O M U N D O 2 0 3 — A vida monást ica na Hispânia duran te a Ant igu idade Tardia 203 — A p r o c u -ra da perfe ição longe do m u n d o : da r e fo rma benedi t ina à influência c lunia-cense 206 — A m e n s a g e m de Cister: o êxi to de u m a o r d e m 212 — A p r o -cura social de u m a vivência alheia ao m u n d o 214 — A vida eremít ica 220 — A V I V Ê N C I A D E U M A R E G R A E N T R E O M O S T E I R O E O S É C U -L O 222 — O s C ó n e g o s Reg ran t e s 222 — O s frades mendican tes 228 — O s freires militares e hospitalários 2 3 3 — A P E R M A N Ê N C I A N O S É C U L O 237 — O episcopado 237 — A) Das origens à Alta Idade Média 237 — B) Da restauração diocesana ao século x v 241 — O clero catedralício 244 — O clero paroquial 248 — N O T A S 253

PATRIMÓNIOS, DIREITOS E RENDIMENTOS ECLESIÁSTICOS 261 A V I V Ê N C I A C R I S T Ã D A E C O N O M I A , E N T R E P O B R E Z A E V A N -G É L I C A E R I Q U E Z A I N S T I T U C I O N A L 261 — A P R O G R E S S I V A AFIRJVIAÇÃO D O S D I R E I T O S E R E N D I M E N T O S D E N A T U R E Z A R E L I G I O S A 261 — Ofer tas e dádivas espontâneas 2 6 2 — Taxas obrigatórias pesando sobre os fiéis 263 — R e n d i m e n t o s provenien tes do cu l to funerá r io 265 — O S P A T R I M Ó N I O S E C L E S I Á S T I C O S , F A C E M A I S VISÍVEL D A R I Q U E Z A D A I G R E J A 267 — Formação e evo lução dos pa t r imónios eclesiásticos 267 — C o m p o s i ç ã o e distr ibuição espacial dos pa t r imónios ec le-siásticos 271 — A exploração directa e indirecta dos bens fundiár ios 279 — As rendas e serviços de o r igem senhorial e domin ica l 281 — R E P A R T I -Ç Ã O D O S B E N S E R E N D I M E N T O S 284 — A au tonomização p a t r i m o -nial das igrejas rurais e dos cenóbios 284 — N o v o s r end imen tos e novas pa r -tilhas n o quadro diocesano 285 — A partilha dos r end imen tos n o seio do clero regular 291 — N O T A S 294

MONARQUIA E IGREJA: CONVERGÊNCIAS E OPOSIÇÕES 303 D A « I G R E J A C O N S T A N T I N I A N A » A O R E I N O A S T U R I A N O - L E O -N È S 303 — D E A F O N S O H E N R I Q U E S A S A N C H O II: U M A D I F Í C I L D E L I M I T A Ç Ã O D E P O D E R E S (1128-1245) 307 — D o s poderes e m p re -sença 304 — Re i s e bispos 314 — O R E I E A I G R E J A - O E S T A B E L E -C I M E N T O D A S C O N C Ó R D I A S (1245-1383) 318 — O C I S M A D O O C I -D E N T E E A I G R E J A P O R T U G U E S A N O D E A L B A R D O S É C U L O X V 328 — N O T A S 334

VIVENDO A PALAVRA

DE DEUS Doutrina, espiritualidade

e cultura cristãs 337

A RELIGIÃO DOS CLÉRIGOS: VIVÊNCIAS ESPIRITUAIS, ELABORAÇÃO DOUTRINAL E TRANSMISSÃO CULTURAL 339 D O U T R I N A E C U L T U R A C R I S T Ã S 339 — A un idade da Igreja 342 — O s santos padres h ispânicos 3 4 3 — Liturgia v i s i g ó t i c o - m o ç á r a b e . O caso de Gu imarãe s 345 — A escatologia 3 4 8 — D o s m o d e l o s monás t i cos f r u -tuos ianos ao C o n c í l i o de C o y a n z a de 1055 351 — O c o s t u m e bracarense 3 5 4 — O espír i to b e n e d i t i n o e C l u n y 3 5 6 — O e r e m i t i s m o 3 6 0 — O s C ó n e g o s R e g r a n t e s de San to A g o s t i n h o 3 6 2 — O s Cis terc ienses 3 6 7 — O s M e n d i c a n t e s e a Imitado Christi 370 — Santa Mar i a 3 7 8 — P e c a d o e consc iênc ia pessoal 3 8 0 — M Ú N U S E P I S C O A L E Q U A D R O S N O R -M A T I V O S 387 — A c idade episcopal po r tuguesa : os esp lendores r o m â n i -cos e gó t icos 3 8 8 — A r e c o m p o s i ç ã o dos p o d e r e s eclesiásticos seculares 391 — Audiênc ias . Chance la r ias . C o n t a b i l i d a d e e a r q u i v o 3 9 3 — A n o r -mat iva conci l ia r j u n t o d o c le ro p o r t u g u ê s 3 9 7 — O s s ínodos , es ta tutos d iocesanos e visi tações 399 — C O N H E C I M E N T O E A P R E N D I Z A G E M 400 — O ensino do clero 400 — Escolas conventua is 402 — Escolas episco-pais 406 — Univers idades e colégios 410 — Scriptoria e bibliotecas 413 — N O T A S 418

vi

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S U M Á R I O

A RELIGIÃO N O SÉCULO: VIVÊNCIAS E DEVOÇÕES DOS LEI-GOS 423 C O N D E S , M O Ç Á R A B E S E I N F A N Ç Õ E S E M C O N S T R U Ç Ã O D E I D E N T I D A D E R E L I G I O S A 423 — Dos dons dos santos ao esplendor sa-grado: a religiosidade da condessa M u m a d o n a 423 — A força dos ritos na identif icação comuni tár ia : os moçárabes de C o i m b r a e a in t rodução da l i tur-gia romana (1064-1116) 433 — Rel ig ião e const rução do poder : os pa t ronos de Santo Tirso e de Paço de Sousa no século xi 440 — D O S C A V A L E I -R O S D E C O I M B R A AS P R I M E I R A S R E A C Ç Õ E S A O S M E N D I C A N -TES: A V I T A L I D A D E D A S R E S P O S T A S L O C A I S 445 — O «guerreiro dos Crúzios» e o «guerreiro dos guerreiros»: a cons t rução do leigo pelos t ex-tos crúzios e a sua recepção 445 — Q u a t r o infantes entre a «tradição» e a «modernidade»: os «príncipes de Cister» — Teresa, Sancha, Mafalda e Ped ro — encon t r am os Mendican tes 452 — U M A É P O C A D E D I N A M I S M O R E -L I G I O S O 460 — Dinhe i ro , p o d e r e caridade: elites urbanas e estabeleci-men tos de assistência (1274-1345) 460 — Mendican tes e redes de piedade fe-minina (1278-1336): três donas e m busca de religiosidade própria e uma o r d e m que «descobre» a sua santa 470 — V I V Ê N C I A S E D E B A T E S E M T E M P O D E A U T O N O M I Z A Ç Ã O D O S L E I G O S 480 — Salvação individual e o culto dos antepassados: a fundação de capelas de morgad io nos séculos x iv e x v 480 — En t re a cor te e o e rmo: r e fo rmismo e radicalismo religiosos (fins do século x iv-século xv) 492 — N O T A S 506

BIBLIOGRAFIA 511

V I I

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Introdução geral Carlos A. Moreira Azevedo

CHEGOU O MOMENTO DE PROPORCIONAR a o p ú b l i c o i n t e r e s s a d o d o a m -biente cultural por tuguês u m a História Religiosa de Portugal . C o m o se tra-çou a história económica , social, política, cultural, poderá complementa r - se o quadro c o m o estudo da d imensão religiosa.

Desde que existe o nível s imbólico na pessoa humana , o facto religioso existiu, nas etapas da história, de variadíssimas formas, mas c o m permanências de impressionante peso e graus de parentesco, capazes de permit i r signifi-cativas comparações.

C o m e c e m o s p o r esclarecer o que en t endemos pelo adject ivo «religiosa», dado à história. Digamos claramente qual é a nossa perspectiva sobre a p r e -sença do e l emento religião na vida pessoal e na evolução da sociedade1 .

A clareza da experiência actual — onde a vivência do religioso se desdo-bra e m múltiplas faces, susceptíveis de diversas leituras — interroga e liberta o olhar para, no passado, descobrir os detalhes do aco lh imento da religião, desde uma adesão plena e global até uma ligação t énue e distante. O s níveis de per tença vão desde u m a fé explícita e c o m coerência vital até u m vago plano de «busca de sentido», nas questões fundamenta is , e resposta livre e subjectiva aos problemas da vida, através de c o m p o r t a m e n t o s concretos .

N e m toda a p rocura de sentido global da vida apela para símbolos especí-ficos das tradições que n o r m a l m e n t e chamamos religiosas. Há alternativas não religiosas para ser au ten t icamente h u m a n o : a alternativa estética, ética, f i losó-fica... As construções culturais nas quais se expressa a procura de sentido g lo-bal p o d e m , p o r isso, ser ou não de índole religiosa. Estas fo ram as cons t ru -ções mais destacadas, a atestar que há, an t ropologicamente , algo mais f u n d o do que a manifestação institucionalizada, «eclesial», da religião.

]Mão desejamos, por tan to , ficar l imitados na «religião eclesiasticamente orientada», c o m o lhe c h a m o u o sociólogo T h o m a s L u c k m a n n na sua obra Religião invisível (The invisible Religion. N e w York : Macmil lan, 1967). A situa-ção religiosa do terr i tório que virá a ser Portugal , desde a sua independência , passou pela identificação entre Igreja e religião, mas p o r respeito à cientifici-dade deste estudo não obedeceremos a u m m o d e l o oficial de religião, n e m nos deixaremos arrastar p o r concepções redutoras. Analisamos a base an t ro -pológica e social, além do aspecto insti tucional da religião.

A transformação dos modelos teóricos determina e espelha uma diferente estratégia de const rução do objec to de análise. N o cent ro da investigação está o p rob lema de definir religião, debate inesgotável e insuperado. A clarificação estabelecida pela sociologia religiosa entre religião funcional (o que a religião desenvolve na sociedade) e religião substancial (o que defende no c o n t e ú d o das crenças) não a esquecemos e desejamos dar- lhe equil ibrado espaço. Por ou t ro lado há q u e m tenha u m a visão extensiva dos f e n ó m e n o s da crença, in -c luindo diversas combinações ideológicas ou eng lobando acontec imentos so-ciais c o m função de oferecer dispositivos de sentido, capazes de responder às questões últimas da vida.

Aqu i o ob jec to de análise não se reduz à religiosidade institucional, mas à d imensão antropológica do sistema de sentido, que t ranscende os indivíduos. Assim, a religião baseia-se na capacidade da pessoa h u m a n a transcender a p r ó -pria natureza biológica, através da const rução de u m c o n j u n t o articulado de significados object ivos e mora lmen te vinculativos. São processos sociais e i n -dividualizados que c o n d u z e m à const rução do Eu. N ã o se ident i f icando reli-gião c o m autotranscendência , qual base antropológica, impor ta valorizar os relativos universos simbólicos, conscientes da incapacidade de controlar a ex -pansão ilimitada dos f e n ó m e n o s a compreender .

<] Anta da C u n h a Baixa (Mangualde).

FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

I X

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I N T R O D U Ç Ã O G E R A L

O t e r m o religioso é assim assumido n u m sent ido genér ico e global. P r e -t e n d e m o s caminhar para u m a clara d i ferenciação dos c o n d i c i o n a m e n t o s d o -minantes da religião até ao presente . A o po l i cen t r i smo cultural está a suceder o po l icen t r i smo religioso, eclesial e t eo lóg ico . Esta actual aber tura de h o r i -zontes cria espaço para u m a leitura dos múl t ip los paradoxos , incongruênc ias e cont rad ições do f e n ó m e n o religioso e m Por tuga l e c o n c e d e l iberdade crítica e consciência h u m i l d e a q u e m se ap rox ima do c o n h e c i m e n t o his tór ico de u m a realidade complexa : o m u n d o religioso.

N o cen t ro do q u e se chama «o sagrado» está u m en te super ior e an te r io r à pessoa h u m a n a , presente n ã o só n o coração da criatura, mas t a m b é m n o cen t ro da realidade. P o d e m o s usar a categoria de «mistério» para cen t ro d o m u n d o religioso: algo abso lu tamente t ranscendente , c o m o qual se entra e m relação, i n d o além de si m e s m o , p o r q u e está presente na vida e con fe re u m a missão aos h u m a n o s .

A pessoa h u m a n a , h o m e m e m u l h e r , r e sponde à presença d o mis tér io , seja pela ind i fe rença religiosa, seja pela re je ição da inc rença , seja pela ace i ta -ção. A resposta d o ser h u m a n o à t r anscendênc ia i m a n e n t e d o mis tér io dá o r i g e m às manifes tações do sagrado q u e são sempre «hierofanias» cu l tu ra l -m e n t e marcadas e s igni f ica t ivamente simbólicas. C o m o o su je i to da t rans -cendênc ia é c o n d i c i o n a d o pela ex te r io r idade , aí r e c o n h e c e o mis té r io . A l é m do t e m p o está preso ao espaço. Assim, s u r g e m as med iações object ivas: l uga -res evocat ivos , t emplos , ritos, l inguagens fixas e m d o u t r i n a e dogmas , sen t i -men tos .

N o u t r a s épocas valorizava-se o inst i tucional e as práticas externas, nos ú l -t imos t e m p o s ganha t e r reno o es tudo dos aspectos in ternos: a exper iência r e -ligiosa, a d imensão pessoal da religião. Mas aqui c o n v é m igua lmen te def inir o conce i to -base de exper iência religiosa nos seus diversos níveis.

A relação do ind iv íduo c o m o t ranscenden te t e m base cons t i tu in te ou or ig inante que não d e p e n d e dele, r e sponde a u m a realidade o u presença a n -terior . A pessoa h u m a n a não demons t ra , n e m p rocu ra o mistér io , ele m a n i -festa-se. A at i tude religiosa é u m a exper iência de sent ido, e m c u j o cen t ro está o sagrado, o n u m i n o s o e santo, c o m o p o n t o ú l t imo de referência e garantia da realização plena da pessoa. N ã o é exper iência do imedia to , mas a p r o f u n -d a m e n t o dele. E t a m b é m u m e n c o n t r o pessoal c o m D e u s q u e at inge o n ú -cleo da pessoa, apesar da distância q u e a separa do Abso lu to . R e c o n h e c e r a T ranscendênc ia c o m o ser pessoal é descobri- la c o m o raiz e sent ido da vida, sem exercer d o m í n i o in te lec t ivo sobre o ob jec to , r e c o n h e c e n d o - a c o m o ser q u e ultrapassa a sua f in i tude , c en t ro e razão da sua vida.

A marca judeo-c r i s t ã e g r e c o - r o m a n a da cul tura oc identa l foi o p o n t o de partida para a e laboração de teologias.

A teologia racionalista encon t r a dif iculdades e m sair da lógica da d e m o n s -tração científ ica. Pô r - s e a c a m i n h o de u m a descober ta e r e sponde r às i n t e r r o -gações inter iores até chegar à raiz do nosso conhece r , s em consegui r esgotar a imens idade do h o r i z o n t e do ser, pôr - se a c a m i n h o na finitude e desvendar q u e m somos à luz d o inf in i to são ati tudes iniciais e fundan tes da verdadei ra exper iência religiosa.

O segundo nível situa-se n o r e c o n h e c i m e n t o dessa presença. E o in íc io do sujei to religioso o u a a t i tude religiosa f u n d a m e n t a l . O ser h u m a n o p e r c e -be-se a si e r e conhece - se p o r ser c h a m a d o ao inf in i to , apesar da sua finitude. E este o essencial ac to de fé, m u i t o mais d o q u e aceitar verdades o u c o n v e r -ter a fé e m crenças. P o r q u e , de facto, a fé acredita n u m a verdade n ã o e v i d e n -te e aceita o t e s t e m u n h o de out ros . A a t i tude religiosa opera a u m nível p r o -f u n d o e total da pessoa, r e q u e r u m a opção f u n d a m e n t a l e escapa à habi tual relação en t re sujei to e ob jec to .

O s h o m e n s e mu lhe res au t en t i camen te religiosos ace i tam q u e o cen t ro de si m e s m o s seja o mis tér io e i n v e r t e m rad ica lmente as in tencional idades , s endo o O u t r o o cen t ro da relação. P o d e neste p o n t o ques t ionar-se se u m a tal re la-ção religiosa não aniquilará a pessoa. E o per igo ine ren te à ex-periéncia, a q u e m sai de si (ex) para dar a volta (peri), s egundo a e t imolog ia da palavra. Mas os crentes cons ide ram q u e a a t i tude religiosa p e r m i t e ao ser h u m a n o

xviII

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realizar as e n o r m e s potencia l idades de inf in i to situadas d e n t r o de si, c o n f i a n -do-se ao inf in i to , a q u e m se ab rem.

E m te rce i ro lugar este r e c o n h e c i m e n t o assume-se nas distintas expres -sões e acções. A exper i ênc ia mani fes ta -se através de sinais q u e se expressam e m l inguagens e se pa r t i l ham e m c o m u n i c a ç ã o . O ser h u m a n o apropr ia - se das possibil idades da exper i ênc ia d o g r u p o e m q u e se insere. Esta c o m u n i c a -ção exper ienc ia l a c o n t e c e e m planos de espaço e t e m p o . N e s t e e s tudo subl i -nha - se a d i m e n s ã o d iacrón ica dessa exper iênc ia . É u m processo de r e c o r d a -ção e cr ia t iv idade, v incu l an t e para gerações sucessivas de u m g r u p o e ex tens ivo a vár ios povos . A t e n d ê n c i a da cul tura é fixar-se e absolut izar m o -delos de acesso à real idade, mas t a m b é m lhe é específica a busca p e r m a n e n t e de n o v i d a d e p o r q u e o h u m a n o n u n c a se d e t é m : p ro j ec t a c a m i n h o s , t en ta possibil idades. A d i m e n s ã o da exper iênc ia religiosa está a t ingida p o r esta his-to r ic idade . H á u m legado dos antepassados, u m a l i nguagem, u m m o d o de v iver e vibrar . Mas ao m e s m o t e m p o há s e m p r e aber tura para u m a real iza-ção mais c o m p l e t a , u m a m e t a final de esperança n ã o conseguida . A pessoa de fé adapta a sua v ida à exper iênc ia p r o f u n d a d o mis té r io . T o d a s as facetas da sua pe rsona l idade se o r i e n t a m s e g u n d o d e t e r m i n a d a mora l , de a c o r d o c o m cada psicologia , cu l tura , a m b i e n t e . N e s t e sen t ido , o rel igioso assume necessa r i amente u m a d i m e n s ã o social. As impl icações sociais d o f e n ó m e n o rel igioso são de três o rdens : o c o n c e i t o de rel igião d e p e n d e da ideia de so -c iedade; o c o n c e i t o de rel igioso t e m u m a p lura l idade de f u n ç õ e s na c o m u -n idade social; a va r i edade de f u n ç õ e s re lac iona-se c o m os m o m e n t o s h i s tó -ricos e os c o n t e x t o s sociais.

Esclarecido o conce i to de religião adop tado , c o n f r o n t e m o - l o , b r e v e m e n -te, c o m a p ó s - m o d e r n i d a d e para pe rcebe r o c o n t e x t o deste escrito.

D e facto, a religião é h o j e u m t ema re levante , c o m o factor cultural e m evidência . A previsão anunc iada p o r Dan ie l Bell (O fim das ideologias), nos anos 6o, n ã o t r o u x e u m m u n d o uni f icado , mas u m apelo à ciência e à t écn i -ca, n o qual as grandes religiões serão inst i tuições geradoras de fins ú l t imos. Aliás, toda a cul tura apon ta para u m a raiz cultual ou de cul to religioso.

A tradição ilustrada c o n c e b e u a religião c o m o sobrevivência de algo ab -soluto, q u e pau la t inamen te se conseguirá levar à ex t inção . A tendênc ia para considerar a religião c o m o u m a at i tude irracional p o d e en tende r - se pelas sus-peitas psíquicas e soc ioeconómicas . Para F reud é u m a ilusão necessária para sobreviver às calamidades da vida e para M a r x é expressão alienada do sofr i -m e n t o dos opr imidos . Se estas explicações f o r a m valiosas, não c o n s e g u e m abarcar a r iqueza do f e n ó m e n o religioso na sua total idade.

N o p e r m a n e n t e renascer do religioso subjaz a crise da fé e m Deus . A cri-se dos ateísmos e o auge da indi ferença agnóstica é a ou t ra face da crise de D e u s n o crist ianismo. A ques tão de D e u s de ixou de ter seriedade, de ser p e r -t inen te .

A débil incrença de h o j e não t e m agilidade para falar de Deus , « c o m o q u e m n ã o q u e r a coisa», mas t o m a - o demasiado a sério, s em se referir a Ele ve rdade i r amen te , à mane i ra de u m a metá fo ra de recurso na conversação i n -t ranscenden te ou n o discurso estético, o u c o m o chave codif icadora da legit i-m i d a d e de u m g r u p o j u r í d i c o e civil. A religião recupera significância social c o m o s ímbolo do s o n h o h u m a n o de felicidade, de r e e n c a n t a m e n t o mí t ico , do r e fúg io q u e salva da i n t e m p é r i e existencial ou c o n f i r m a a inocênc ia dese-j ada e p rocurada . A religião aparece c o m o u m m e c a n i s m o capaz de nos p e r -mi t i r v iver equ i l ib radamen te a con t ingênc ia q u e não p o d e m o s el iminar .

Afinal , o sagrado não se des t ruiu na m o d e r n i d a d e , ocu l tou - se e inibiu-se , subsistiu n o subconsc ien te cultural his tór ico, mas c o m o é in ib ido p o d e r e t o r -nar pela perversão o u pela neu rose camuflada . O s imbol i smo pe lo qual o sa-grado se manifes ta está subconsc ien te na cul tura m o d e r n a . H á q u e con juga r e articular a razão e o s imbol i smo, o u seja, o «espírito», c o m o h o r i z o n t e final escatológico a q u e tender ia a figura h u m a n a .

A Ilustração foi m o v i m e n t o filosófico e ideo lóg ico q u e c o m b a t e u con t ra u m a sombra chamada superst ição, c o m todas as sequelas de intolerância e fa-na t i smo. H o j e é possível pensar a religião apesar do risco da religião nos p e n -

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sar a part i r dos seus d i tames ou tentações integristas. P o r r igor f i losófico e f e -n o m e n o l ó g i c o impor t a salvar o factor religioso na sociedade.

A filosofia da religião c o m e ç a po r u m esforço de c o m p r e e n s ã o da f e n o -meno log ia e s u b m e t e à crítica o religioso, c o m o fac tor h u m a n o q u e é. H á , p o r isso, u m a plural idade de filosofias da religião, c o n f o r m e os pressupostos adoptados . Para os crentes, essa ciência é f o n t e de pur i f icação da sua religiosi-dade e f o r m a de encon t ra r u m a inf ra-es t ru tura q u e lhe dê solidez h u m a n a .

Após o cosmocen t r i smo grego e o teocent r i smo medieval , v e m o a n t r o p o -centr ismo m o d e r n o e c o n t e m p o r â n e o , lançado pela reflexão humanis ta de N i -colau de Cusa e P ico de la Mirandola , alargado po r Descartes, iniciador de u m pensamen to n o qual a razão h u m a n a é a chave, não só da pessoa mas de toda a realidade. Espinosa elevará a razão h u m a n a a categoria divina e Kant p resc in-dirá da crença religiosa p o n d o toda a conf iança na razão crítica. C a m i n h a - s e para a c o n c e p ç ã o absolutista do ser h u m a n o , p rópr ia da Ilustração e do idea -l ismo (Fichte, Hege l , Schelling). O h o m e m c o m o realidade espiritual foi s u b m e t i d o a u m processo de racionalização universal, apagando a sua s ingu-laridade e as marcas de u m a realidade t r anscenden te a u t ó n o m a . As verdades religiosas v ê e m - s e reduzidas a expressões de na tureza simbólica e mora l da pessoa. A reacção existencialista a esta an t ropo log ia exal tou a cond ição exis-tencial da pessoa, valor izou a in tersubjec t iv idade e a historicidade, fundadas na l iberdade. Para alguns, mais radicais, a realização da l iberdade h u m a n a t e m lugar n o in t ra-his tór ico, sem dar lugar à t ranscendência (Sartre, M e r l e a u -- P o n t y ) , para ou t ros a aber tura ao t r anscenden te p e r m a n e c e (G. Maree i , K. Jaspers).

Nes ta perspectiva, a pessoa não r e c o n h e c e n e n h u m o u t r o valor a não ser ela própr ia , n o realizar das suas possibilidades. O esforço actual da filosofia da religião situa-se na análise das estruturas essenciais do ser h u m a n o , na ident i f i -cação de a lgum e l e m e n t o ou d imensão const i tut iva q u e d e m o n s t r e a sua i n -suficiência on to lóg ica e d isponha para o a c o l h i m e n t o d o d o m gratui to de instâncias superiores. H á u m a p e r m a n e n t e af i rmação d o f u n d o t r anscenden te do h u m a n o . I m p o r t a descobrir o seu verdade i ro sent ido e p rocu ra r a c o e r e n -te meta . N ã o há opos ição en t re D e u s e pessoa h u m a n a , q u a n d o D e u s é e n -t end ido c o m o s u p r e m o valor e se a p r o f u n d a o carácter an t ropo lóg ico da rel i -gião2 .

A perspect iva de m o d e r n i d a d e sobre a religião sofre de p reconce i tos h e r -dados d o passado recen te , c o m o acon tece desde a posição de Voltaire , r e d u -tora do religioso a u m a fo rma de superst ição.

A sociologia pr ivi legiou esta temát ica nos clássicos c o m o W e b e r , na sua célebre Ética protestante e o espírito do capitalismo (1904) e D u r k h e i m (1858-1917), p o r e x e m p l o , n o es tudo As formas elementares da vida religiosa (1912), b e m c o -m o nos vários analistas marxistas. Mas a religião não se identif ica c o m a i r ra-cional idade, carisma e n u m i n o s o , e m b o r a c o m p o n e n t e s essenciais da re l ig io-sidade. P o d e ser ob j ec to de es tudo racional, à luz de pr incípios claros e r igorosos, o que n ã o é fácil.

A perspect iva religiosa da sociedade situa-se n o g rande deba te sobre a se-cularização que desde o século x i x se levanta e causa poeira . C o n d u z - n o s a pensar q u e o avanço da secularização e da ciência cor responder ia ao decl ín io do m u n d o religioso, dest inado a ignorantes .

U m a ap rox imação filosófica e f e n o m e n o l ó g i c a é necessária para pensar a religião n o final do século xx. C o m o «ser d o limite»3 , o ser h u m a n o está c i r -cunscr i to n o l imite pela orla d o mistér io q u e o envo lve e o enlaça. A e x p e -riência religiosa é a religação d o h u m a n o c o m o t ranscendente . A revelação manifesta a natureza escondida desse cerco de sagrado, o desvendar parcial d o mistér io n o aparecer s imból ico .

A análise sociológica da religião ou da rel igiosidade não se p o d e f u n d a -m e n t a r e m inquér i tos m e r a m e n t e quanti ta t ivos, mas na análise qualitativa, sob risco de p e r m a n e c e r na e p i d e r m e dos f e n ó m e n o s .

E n t r e as diferentes ciências da religião, c o m o a filosofia e f e n o m n o l o g i a da religião, a sociologia e psicologia religiosas, se situa o es tudo da história, que r na ve r t en te da história das religiões, q u e r na de história religiosa. A his-

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tória das religiões estuda a génese, de senvo lv imen to e realização do f e n ó m e -n o religioso n o t e m p o e n o espaço. A o investigar sobre o passado religioso da h u m a n i d a d e , con t r ibu i para a c o m p r e e n s ã o da exper iência religiosa, supe ran -d o o posi t iv ismo e a p r o f u n d a n d o os factos religiosos de d e t e r m i n a d o t e m p o e lugar ou da história geral, investiga a c o o r d e n a ç ã o in te rna destes factos, a sua marca n o c o n t e x t o cultual e finalmente a o r i g e m e o processo evolu t ivo . Apl icam-se os cri térios da ciência histórica à a b o r d a g e m de u m e v e n t o h i s tó -r ico part icular , o religioso.

Há , agora, serenidade intelectual suf iciente para n ã o t e m e r abordar o t e -m a da evo lução histórica do fac tor cultural c h a m a d o religião n o ter r i tór io po r tuguês e n o â m b i t o académico . A an imos idade anticlerical e a cul tura ateia agressiva c o r r e s p o n d e m a ciclos encerrados , j u s t a m e n t e c o m o t e r m o de u m a a t i tude clericalista e o emerg i r do diálogo inter- re l ig ioso.

Es tamos conscientes d o m o m e n t o his tór ico e m q u e nos c o n t e x t u a m o s neste escrito. Vive-se a passagem de u m a religião total para u m a a u t o - i d e n t i -ficação religiosa, c o m desvio das Igrejas. Esta f r agmen tação n o subject ivo c o m p õ e o ros to da sociedade de c o n s u m o , const i tu i e l e m e n t o da «descons-trução» d o religioso e m a n t é m práticas q u e r i tual izam e m a r c a m s imból ica-m e n t e os even tos familiares e individuais, n o recor te do quo t id i ano .

Se h o j e o p r o b l e m a essencial d o his tor iador é de in te rpre tação , p o r q u e os factos o u acon t ec imen tos estão p lenos de segredos a desvendar , en t re a n u -merosa e diversa quan t idade de factores a decifrar está o e l e m e n t o religioso d o ser h u m a n o q u e c o m p õ e o q u a d r o his tór ico. Se a pessoa h u m a n a é o o b -j e c t o de es tudo essencial, n o c o n h e c i m e n t o da história, impor t a indagar o sent ido da vida h u m a n a , na t rama dos acon tec imen tos , descritos c o m prec i -são n o seu plural valor.

E tarefa delicada perscrutar na consciência h u m a n a a presença do T r a n s -c e n d e n t e q u e marca de surpresas e l iberdade, p r ende , equil ibra ou desenvolve energia, in ter fere e m o v i m e n t a não só a p rópr ia vida, mas t a m b é m a socieda-de. Par te-se necessar iamente do conc re to , da vida de h o m e n s e mu lhe re s q u e n o seu q u o t i d i a n o m o l d a m o espaço e o t e m p o . É na vida quot id iana q u e os an t ropó logos e n c o n t r a m as úl t imas me ta vivências. E m e r g e a relevância t an to dos santuários domés t icos familiares, o n d e se guarda a in t imidade e as r e c o r -dações, c o m o da riqueza s imbólica dos cent ros à volta de igrejas e capelas. A d q u i r e peso q u e r a real idade das confrarias organizadas de m o d o social e s imból ico , q u e r a força v incu lan te da c o m u n i d a d e paroquia l . A tende - se ao

Estátua de Sileno proveniente do teatro romano de Lisboa (mármore, século 1 d. C.) . Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia.

F O T O : DIVISÃO DE D O CU MEN TA ÇÃ O FOTOGRÁFICA/INSTITUTO PORTUGUÊS DE M U S E U S / J O S É PESSOA.

<3 Ara votiva dedicada a Marte (mármore, século 1 d. C.). Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia.

F O T O : DIVISÃO DE D O CU MEN TA ÇÃ O FOTOGRÁFICA/INSTITUTO PORTUGUÊS DE M U S E U S / J O S É PESSOA.

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colorido e permanênc ia das festas e ritos, b e m c o m o à capacidade cont ro la -dora das experiências pelas normas morais difundidas pela pregação.

O f e n ó m e n o religioso, c o m o pe rmanen te sistema de sentido, criou fac-tos, f o r m o u personagens, de ixou instituições, marcou as letras, f o m e n t o u as artes, agitou transformações, c o m o travou avanços. A p o n t o u valores, no r t eou causas, ap rox imou-se dos dramas humanos .

Se a l iberdade da pessoa h u m a n a de te rmina o r i t m o do processo da his-tória, essa l iberdade é condic ionada pelo factor religioso. Às vezes, e m b e n e -ficio da evolução do b e m , da verdade e da beleza, outras vezes e m pre ju ízo desse devir posit ivo. Avaliar o coef ic ien te de t ranscendência na vida pessoal e na acção humana , c o m o agente da história, é t rabalho de in terpre tação d i -ficil.

Sendo a história p roduto duplamente h u m a n o quer pelos agentes dos factos, quer pelos actores da historiografia, convém esclarecer sobre os condic ionamen-tos, as opções e decisões de u m cent ro de estudos da Univers idade Católica que se socorreu da colaboração de especialistas de outras instituições e sensi-bilidades. P rocurámos atenuar a subjectividade ao comunica r o c o n h e c i m e n -to, sem fugir à interpretação, di ferente de fantasia ou distorsão, sem evitar a avaliação valorativa, diferente de ju í zo emot ivo .

Indagar do coeficiente ideológico e psicológico da leitura da história é es-paço do historiógrafo. O lha r à distância os estudos do passado c o n d u z a nossa consciência a concluir que na visão nova aqui proposta t a m b é m se veicula u m a antropologia e u m a mundiv idênc ia e se revela a personalidade de gente concreta c o m a sua sensibilidade específica, a sua particular inteligência, o seu percurso format ivo e con tex to h u m a n o .

Falar de historiografia religiosa e m relação ao passado é generosidade de

. t i

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Festa dos Tabuleiros em Tomar.

F O T O : JOÃO PAULO DIAS.

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conce i to p o r q u e a perspect iva eclesiástica invadiu, quase in te i ramente , a p r o -d u ç ã o de sínteses existentes. N e m é para admirar , u m a vez q u e o sistema de sent ido q u e m a r c o u Por tuga l e m t e rmos de longa duração foi o f e n ó m e n o religioso de matr iz cristã. A temática da religiosidade popu la r traria à ribalta o interesse pe lo es tudo d o f u n d o religioso pr imi t ivo do ter r i tór io equiva len te a Por tugal . P o r o u t r o lado, a nova a t i tude da Igreja Catól ica , e m relação à global idade do f e n ó m e n o religioso, in t roduzi r ia na in te rpre tação dos factos u m a largueza de olhar . A af i rmação da l iberdade religiosa, c o m o dire i to h u -m a n o fundamen ta l , e o apreço pela verdade exis tente nas plurais relações c o m o t ranscenden te signif icam m u d a n ç a de perspect iva.

N ã o há, p o r isso, an teceden tes sínteses de historiografia religiosa de P o r -tugal. H á obras de referência eclesiástica, marcadas na tu ra lmen te pe lo c o n t e x -to e m q u e surgiram.

B a n h a de A n d r a d e j á a p o n t o u na i n t r o d u ç ã o ao Dicionário de História da Igreja em Portugal (1980) u m a panorâmica da respectiva p r o d u ç ã o his tor iográf i -ca, seja global, seja parcelar (no t e m p o , n o espaço geográf ico o u e m parte d o c o n j u n t o das insti tuições)4 .

Agora só nos d e t e r e m o s nas tentativas globais. Apenas n o século x v m , c o m a criação da Academia R e a l de Histór ia Por tuguesa , se i n t e n t o u escrever u m a «História Eclesiástica destes Reynos» , c o m o t í tu lo de Lusitania Sacra, se-g u n d o propos ta de D . M a n u e l C a e t a n o de Sousa. A sugestão do t í tulo seria acolhida p o r A n t ó n i o Pereira de F igue i redo 5 para u m a obra conservada e m manusc r i to na Academia das Ciências de Lisboa. A p r o d u ç ã o da ilustre agre-miação histórica in ic iou o t rabalho pela colecção das memór i a s diocesanas ou pelos catálogos de bispos, e m con t inu idade da época seiscentista, ainda q u e l iber tando-se das lendas e fantasias das velhas crónicas. N o v o passo seria dado pela inst i tuição da Academia Litúrgica Pont i f íc ia , e fec tuada n o Mos t e i ro de Santa C r u z de C o i m b r a e m 1747. A história eclesiástica integrava o c o n j u n t o disciplinar e era atr ibuída à responsabi l idade d o ba iano D . T o m á s da E n c a r -nação (1723-1784). T i n h a v i n d o n o v o para Por tuga l e fei to os es tudos de A r -tes e D i re i to Civil . Descobr iu a vocação religiosa e faz-se c ó n e g o regrante de Santa C r u z e m 1747. Torna r - se - i a u m activista académico . O c u p o u o cargo de prefe i to de Es tudos n o C o l é g i o de H u m a n i d a d e s de Maf ra até ser eleito b ispo de P e r n a m b u c o , e m 1773, lugar q u e governar ia p o r dez anos. C o n s e -guiu , n o seu m ú n u s educat ivo , c o m p o r a obra Historia Ecclesiae Lusitaniae per singula saecula ab Evangelio promulgata (Col imbr iae , 1759-1763, 4 vol.) . T o m á s da Enca rnação era, n o dizer de Fo r tuna to de Almeida , n o prefácio à sua His-tória, «um espíri to p o n d e r a d o e organizador ; mas lu tou c o m a escassez de m a -teriais e c o m a m á qual idade de alguns q u e aprovei tou» (vol. 1, p. 7). Era m u i t o d e v e d o r ao q u a d r o narra t ivo pau tado pelos pont í f ices . V e r n e y navega -va j á n u m a c o n c e p ç ã o mais aberta.

N a Faculdade de Teolog ia , en t re as matérias a leccionar , os estatutos pomba l inos (1772) sub l inham o lugar da Histór ia Eclesiástica, mas n e n h u m manua l c h e g o u a ser publ icado . O s vários mestres q u e o c u p a r a m a cadeira não d e r a m à es tampa c o m p ê n d i o p rópr io , e m b o r a fizessem par te do p r o g r a -m a os sucessos principais da dou t r ina e história da Igreja por tuguesa 6 .

C o m o manua l uti l izaram, de início, o c o m p ê n d i o d o italiano, e remi ta de Santo Agos t inho , G i o v a n n i Lo renzo Bert i (1696-1766). O p r ime i ro lente da cadeira, de 1780 a 1793, foi J o a q u i m Guada lupe (1728-1809), c ó n e g o regrante de Santo Agos t inho e m e m b r o da Academia Litúrgica, para a qual escreveu u m a disser tação sobre Idác io e I tácio. O seu sucessor, M a n u e l P a c h e c o R e -sende (1750-1837) o c u p o u o lugar de 1794 a 1813 e foi e sco lh ido n o v o c o m -p ê n d i o d o jansenis ta Math ias D a n n e m a y r , ed i t ado e m C o i m b r a . O s suces-sores na r egênc ia da ma té r i a n ã o d e r a m passos s ignif icat ivos. Já n o final d o século e da inst i tuição da faculdade dec ide-se alterar o c o m p ê n d i o , o q u e dá azo a u m Relatorio m u i t o c i rcunstanciado e m i n u c i o s o na análise das possibili-dades existentes, acabando p o r adoptar o de F. Ze ibe r t , Compendium Historiae eclesiasticae (Brunae, 1884). O s professores A n t ó n i o R i b e i r o de Vasconcelos , Francisco Mar t ins e J o a q u i m M e n d e s dos R e m é d i o s , autores do relatór io, r e -ve lam total d o m í n i o da p r o d u ç ã o bibliográfica europe ia en tão disponível .

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Q u a n t o à parte da história da Igreja e m Por tuga l deve ser comple tada pelo professor p o r q u e , considera a comissão, «se n ã o tudo , quase t u d o está p o r fa-zer en t re nós e urge q u e a lguma coisa se faça» (Relatorío acerca de um Competi-dio proposto pelo lente de História ecclesiastica [...]. C o i m b r a , 1897, p. 24).

Anal isando o percurso do r eduz ido c o n t r i b u t o da univers idade, vo l t emos a o u t r o â m b i t o académico . A f u n d a ç ã o da Academia R e a l das Ciências e m 1779 sustentaria n o v o espírito crít ico, do qual é expressão a obra d o pa leógra-fo J o ã o P e d r o R i b e i r o 7 . A indagação das fon tes é seguida da crítica selectiva das notícias. As suas Dissertações Chronologicas e críticas sobre a Historia e Jurispru-dência ecclesiastica e civil de Portugal (Lisboa, 1810-1836, 5 vol.) são ve rdade i ro m o n u m e n t o c o m base documen ta l . T o m o u c o n h e c i m e n t o deste acervo n o percurso fei to pelo país, a visitar os arquivos. A sua pena produzi r ia t a m b é m u m a História da Igreja Portugueza, desde o seu princípio athe os nossos tempos, p o r longos anos manuscr i ta ( B G U C Ms. 213) até ser recolhida nas páginas da r e -vista co imbrã Instituições Christãs, de 1884 a 1888. O t rabalho de J o ã o P e d r o R i b e i r o , n o seu c o n j u n t o , é o mais no táve l c o n t r i b u t o cient í f ico dos séculos xvii i e x ix . Desmarca-se da usual visão fabulosa dos a c o n t e c i m e n t o s e apon ta caminhos de r igor na análise e crítica d o c u m e n t a l e da apresentação re tór ica dos dados. C o m o n ã o avança além do século vi l n ã o nos d a m o s conta da grandiosa tentativa. T a m b é m incomple ta mas a b u n d a n t e seria a p r o d u ç ã o d o cardeal Saraiva (Frei Francisco de São Luís). O b e n e d i t i n o reco lhe i n f o r m a -ções preciosas sobre inst i tuições e personagens eclesiásticas, c o m a tenção ao p r o b l e m a das relações entre a Igreja e o Estado, t ema específico de u m , l i b e -ral, mas não enceta u m a síntese. N a obra Reflexões históricas (Co imbra : I m -prensa da Univers idade , 1835, v ° l P• 2 י1 - 3 s s ) J ° ã o P e d r o R i b e i r o traçava u m a lista temát ica a abordar n u m a Histór ia Eclesiástica de Por tugal .

Mas não foi seguida a or ientação. D e facto, a História da Egreja Catholica em Portugal, no Brasil e nas possesões portuguesas, da autor ia do padre José de Sousa A m a d o (1812-?)8, publ icada en t re 1870 e 1879, e m n o v e v o l u m e s e dez tomos , n ã o revela o rigor crí t ico q u e já seria de exigir. E obra de u m espíri to comba t ivo , legitimista c o m o pol í t ico e apo logé t ico c o m o católico. A p e n a fácil do jornalista — direc tor d o semanár io Domingo (1855-1857), redac tor d o Bem Público (1857-1877) e co laborador de O Católico (1951-1853) — , b e m c o m o a t endênc ia do polemis ta implacável de qua lquer j a c o b i n i s m o c o n t e m p o r â -neo , n ã o estava armada de critérios his tóricos e de me todo log ias apropriadas para o p ro j ec to q u e in t en tou . Foi mais levado po r a rdor apostól ico e fácil apologét ica do q u e c o n d u z i d o p o r r igor cient í f ico. O p r ime i ro v o l u m e apa-rece e m Lisboa e m 1870 e trata do Brasil e das «possessões portuguesas», d e -calcando T o m á s da E n c a r n a ç ã o , l imi te q u e confessa. O s e g u n d o v o l u m e abarca o p e r í o d o suevo até ao C o n d a d o Por tuca l ense ; o t e r ce i ro vai até D . S a n c h o I. D a t a m de 1871. E m 1872 pub l i ca o q u a r t o , d e d i c a d o à época de D . Afonso II até D . Dinis . O qu in to v o l u m e es tende-se de D . Afonso IV até ao final do re inado de D . J o ã o I e o sexto de 1431 a 1503. A p a r e c e m e m 1873. O sé t imo divide-se e m duas partes, s endo a pr imeira de 1875 e a s e g u n -da de 1876. Trata da presença po r tuguesa e m África, Amér ica , Ásia e Aus t rá -lia de 1503 a 1605. O oi tavo e o n o n o , saídos e m 1877 e 1879, o c u p a m - s e d o pad roado da C o r o a n o O r i e n t e e Japão . Nes ta obra pr iv i legiam-se as c o n t r o -vérsias h i s tór ico-dout r ina is exclusivistas e as lutas polí t ico-rel igiosas in to le ran -tes, e m e s m o estes aspectos são tratados sem objec t iv idade histórica, ao m o d o u l t r a m o n t a n o mi s tu rando fé e pa t r io t i smo. Era o c o n t r a p o n t o a u m a l i te ra tu-ra anticlerical de H e r c u l a n o , R e b e l o da Silva, A n t ó n i o Eanes, Ol ive i ra M a r -tins e Teó f i l o Braga.

A posição apologét ica não era exclusiva do catol icismo. Tra ta -se de d e -mons t ra r q u e a inst i tuição e m análise agiu c o m o conv inha , u t i l izando o r e -curso à ciência histórica para o fe recer os d o c u m e n t o s , e m b o r a e m p rove i to de u m a concepção teológica sempre apologét ica . A in te rpre tação teológica é c ien t i f icamente legít ima, p o r q u e coe ren t e na epis temologia específica e s em int romissão e m áreas fora do seu âmbi to . A at i tude apologét ica não , u m a vez q u e mistura dois níveis, análise científica e in te rpre tação teológica, ca indo e m descrédi to po r p reconce i to .

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U m a perspect iva global de religião c o m base n o vasto leque de ciências sociais e h u m a n a s é del ineada p o r José Leite de Vasconcelos nas suas Religiões da Lusitânia (1897-1913, 3 vol.) . Estuda a diversidade e complex idade das c r e n -ças n o O c i d e n t e peninsular n o d i n a m i s m o do f e n ó m e n o religioso.

F o r t u n a t o de Almeida (1869-1933)9 edita e m o i to vo lumes a História da Igreja em Portugal (Co imbra , 1910-1922). D u r a n t e m e i o século nada de m e l h o r se adivinhava n o hor i zon te . Já e m 1930 o p róp r io F o r t u n a t o de Almeida t e n -tava u m a segunda edição, mas n ã o foi a lém do p r ime i ro v o l u m e . O in t en to seria levado a cabo pe lo Prof . D a m i ã o Peres ao apresentar u m a nova impres -são anotada (Por to , 1967-1971, 4 vol.).

Este mes t re e re i tor d o Liceu Cent ra l de C o i m b r a redigiu, desde e s tudan-te, obras reveladoras do seu ta lento e caracterizadas pe lo rigor. Seria o seu mest re José J o a q u i m Lopes Praça (1844-1920) a suger i r - lhe e a aconselhá- lo a p ô r de pé a pr imeira Histór ia Eclesiástica de Por tugal . A l é m desta obra pub l i -cou , a partir de 1922, u m a História de Portugal (1922-1929) e m seis vo lumes , b e m demons t r ado ra do a r ro jo das empresas q u e intentava. D e i x o u quase u m a cen tena de escritos, en t re livros e opúsculos . Po l i t i camente era r egene rador e co locou- se ao lado de J o ã o Franco . Após a R e p ú b l i c a a b a n d o n o u a acção partidária e en t regou-se , c o m argúcia de espírito, à ciência histórica, n o m e i o dos cuidados de u m a família numerosa . T i n h a f o r m a ç ã o teológica, adquir ida n o Seminár io de Viseu, ju r íd ica , recebida na Unive r s idade de C o i m b r a , e p e -dagógica, aprendida na exper iência liceal. Cons iderava seus mestres na arte da história H e r c u l a n o (1810-1877) e G a m a Barros (1833-1925), q u e na sua História da administração pública em Portugal (vol. 1, 1885) t inha reco lh ido e l emen tos su -gestivos para o c o n h e c i m e n t o d o clero medieva l por tuguês .

F o r t u n a t o de Almeida t rabalhou dez anos na preparação e organização da sua obra , co l ig indo materiais c o m erudição , mas sem a possibil idade de u m a consulta exaustiva aos arquivos. At inge , c o n t u d o , na sua História da Igreja, u m apreciado nível de pe rcepção crítica e serenidade de j u í z o das pessoas e inst i-tuições, apesar da prisão apologét ica , e u m a apontada l iberdade diante da his-toriografia eclesiástica, presa, ainda, às in fo rmações das tradicionais crónicas da vida religiosa e às crenças desprovidas de objec t iv idade . E u m in t rép ido p ione i ro da história eclesiástica. Já alarga os hor izon tes às ver tentes e c o n ó m i -co-sociais e da cul tura . Prefere compi la r manuscr i tos escondidos e sob re tudo , dado ser empresa de u m só h o m e m , revisitar c o m mais rigor d o c u m e n t o s j á publ icados ( c o m o as crónicas monást icas, histórias das dioceses, biografias de bispos) para lhes acrescentar a p rocura bibliográfica, usada c o m serenidade, li-vre de compromissos sectários ou po l i t i camente regalistas ou laicizantes. F o r -t una to de Almeida presta contas do seu a tu rado es tudo n u m a expressão de luminosa clareza e sapiente conca tenação das ideias expostas.

O m a n u s e a m e n t o de t an to material r eun ido , organizado, j o e i r a d o e c o n -textual izado p e r m a n e c e para qua lque r es tudioso u m a base de a r ranque f u n d a -menta l , c o m o se verificará ainda nesta investigação, e m b o r a a historiografia tenha recursos e pistas desconhecidas ao nosso c a b o u q u e i r o e a d o c u m e n t a -ção se tenha mul t ip l icado e t o r n a d o mais acessível pe lo avanço n o t r a t amen to dos arquivos e pela exploração dos meios informát icos .

U m conce i to m o d e r n o de história c o m e ç a a ganhar c o r p o na obra de Gonça lves Cere je i ra (1888-1977), A Igreja e o pensamento contemporâneo (1924, 1930, 1944), que suscitaria o debate c o m Sílvio de Lima, nas suas Notas críticas, e envolveria Costa P i m p ã o e M a n u e l Tr indade de Salgueiro (1898-1965) ( O caso clínico dum teólogo, 1931). Nesta discussão evidencia-se o erguer de u m n o v o concei to de ciência histórica que seria aplicado na obra de Migue l de Oliveira (1897-1968).

O padre M i g u e l de Ol ivei ra apresentou u m exce len te c o m p ê n d i o de His-tória eclesiástica de Portugal (Lisboa: U n i ã o Gráfica, 1940, 1948, 1958, 1968; E u -ropa -Amér ica , 1994), v e n c e d o r do P r é m i o Alexandre H e r c u l a n o . A crítica e logiou o apa rec imen to de síntese tão equil ibrada e rigorosa, c o m m e t o d o l o -gia adequada à f inalidade didáctica e c o m carácter cient íf ico, despido de o p i -niões lendárias e erros repet idos . Ressen te - se da u n i f o r m i d a d e polít ica e reli-giosa da nação. J u n t a a segurança da in fo rmação à acessibilidade da exposição,

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o que se requer a u m compênd io . O s limites próprios de u m manual são re -conhecidos pelo autor que, n o entanto , a tende na 2.a edição (1948) a algumas críticas consideradas justas.

N o v o e m p e n h o da investigação foi an imado pelo C e n t r o de Estudos de História Eclesiástica, vivo nos dez volumes da primeira série da sua revista Lusitania Sacra (1956-1978). O c o n j u n t o de personagens eclesiásticas que dão corpo a esta fase da historiografia religiosa são A n t ó n i o Brásio, A. da Silva R e g o , Avel ino de Jesus da Costa, Már io Martins, Migue l de Oliveira e Isaías da Rosa Pereira, que entre outros vários leigos se envo lvem nestes trabalhos. O s cont r ibutos diversificados que p r o m o v e m lançam o caminho para u m a au tonomia da investigação de leituras doutrinais. O C e n t r o renova-se pelo enquad ramen to na Faculdade de Teologia da Univers idade Católica P o r t u -guesa realizado e m 1984 e pela escolha de nova direcção operada e m 1988, c o m alteração de n o m e , indicativa de mudança de perspectiva: C e n t r o de Es-tudos de História Religiosa. Desde 1989 deu cont inu idade à revista Lusitania Sacra, já c o m 11 volumes.

O c o n j u n t o de monografias , muitas nascidas no âmbi to académico, e a quant idade de artigos dispersos por revistas exigia u m a nova síntese aco lhedo-ra dos novos dados de recente descoberta e análise. Nas últimas décadas sur-giram estudos renovadores , f ru to de manuseamen to de novas fontes, do uso de nova técnica, aplicação de modelos de interpretação recente: novos p r o -blemas, novos temas e novas aproximações.

A «nova história» de ixou ressonâncias na história religiosa. Focou a a ten-ção na piedade, nas devoções, nas peregrinações e superstições, e m campos que se desenvolveram e m psicoistória e sociologia histórica. U m n ú m e r o considerável de domín ios novos abriram-se para o historiador das menta l ida-des, af inando métodos na esfera do religioso, m u i t o rico de interligação de factos políticos, sociais, jur ídicos, pastorais, económicos , literários, iconográf i -cos. A novidade de leituras é surpreendente na investigação ampla da variada documentação . T u d o pode ser p o n t o de partida, mais ou m e n o s utilizável. Impor ta cer tamente combinar este alerta inovador v indo da história das m e n -talidades, sensível ao quot id iano e ao povo , c o m a história das ideias, atenta aos chefes e às elites. A divisão entre história das mentalidades e história da ideias é repensada n o encon t ro c o m a realidade.

Praticar, hoje , história religiosa implica conhecer os novos mé todos sem ser escravo deles. São ins t rumentos que alargam a visão e en r iquecem o co -nhec imen to . C o m p e t e à sagacidade do historiador conjugar história das ideias e da cultura c o m a banalidade quotidiana, object ividade dos acontec imentos c o m a sua hermenêut ica , grandes figuras c o m a massa popular , o texto c o m o contex to .

O primeiro passo na concretização do projecto de uma História Religiosa de Portugal foi dado pelo Cen t ro de Estudos de História Religiosa, que consti-tuiu u m primeiro grupo de trabalho que reuniu a 21 de J u n h o de 1994 na sede do Cent ro . A elaboração de u m Dicionário de História Religiosa era uma in ten-ção primária, e mais próxima de realização. U m esboço de projecto de dicio-nário temático, e m quatro volumes, é traçado e m N o v e m b r o de 1994. Impor -tava procurar editor e estudar a viabilidade económica. Estiveram presentes: Ana Maria Rodr igues , An tón io Camões Gouveia, Antón io Matos Ferreira e Carlos A. Moreira Azevedo. O s objectivos que nor teavam a equipa de traba-lho, que se alargou para o projecto de uma História, eram os seguintes: contr i -buir para a percepção de c o m o a problemática religiosa cristã se articula c o m a história de Portugal; assumir u m papel pedagógico e comunicat ivo e m termos de memória , acessível e destinada ao meio cultural português; recolher o de-senvolvimento de áreas novas de investigação; procurar respeitar a formulação específica e técnica da l inguagem religiosa; conjugar capítulos de síntese para transmitir o p o n t o de situação da historiografia actual c o m a elaboração de ca-pítulos relativos ao estado aberto dos estudos para assuntos menos trabalhados.

Cada u m dos três volumes previstos para a História Religiosa de Portugal respeitaria u m quadro geral estabelecido que a tende a quatro níveis de ques-

<] Interior da Capela de Nossa Senhora de La Salette (Oliveira de Azeméis, 1923-1940).

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tões: ar t iculação sociorreligiosa; p rob lemát ica dout r ina l ; v e r t e n t e es t rutura l -- ins t i tuc ional e vivência quot id iana d o religioso.

Sem p re t ende r revolver os arquivos e fazer t rabalho def in i t ivo , s e m p r e impossível nas lides históricas, foi consc ien te o nosso l imite de dar a c o n h e c e r o estado da ques tão e m cada capí tu lo da nova Histór ia Rel ig iosa e para isso esco lhemos especialistas das várias áreas, c o m d o m í n i o do p a n o r a m a da invés-t igação e das linhas historiológicas ainda e m aber to .

Q u a n d o este p r o j e c t o ia avançando surge o dese jo d o C í r c u l o de Leitores publ icar u m a Histór ia da Igreja e m Por tugal . C o m o o Prof . José Ma t to so es-tava ao c o r r e n t e da nossa in t enção estabeleceu a p o n t e c o m o C í r cu lo . In i -c iaram-se os con tac tos sobre a possibil idade e os detalhes de u m a co labo ra -ção. A pr imeira r eun ião de t rabalho acon tece a 14 de M a r ç o de 1995, na sede d o C í rcu lo , r epresen tado p o r G u i l h e r m i n a G o m e s e J o ã o Alv im, c o m Pau lo Fontes e Carlos A. M o r e i r a Azevedo , p o r par te d o C e n t r o . M a n t é m - s e o d e -senho essencial do p r imi t ivo p r o j e c t o para o qual t í n h a m o s p r o m o v i d o três encon t ro s de especialistas, p o r épocas de es tudo . Agora , acer tam-se e co r r i -gem-se p o r m e n o r e s , t e n d o e m conta o p r o m o t o r editorial da obra . A d i r ec -ção do C e n t r o escolhe os c o o r d e n a d o r e s para cada v o l u m e e estes c o m e ç a m a del inear o e squema da sua par te , a escolher os c inco ou seis co laboradores q u e t í nhamos d e t e r m i n a d o c o m o m á x i m o para cada t o m o e a f ixar o n ú m e r o a p r o x i m a d o de páginas p o r capí tulo . Após este p r i m e i r o esboço clarifica-se o con t ra to c o m o C í rcu lo , c o m d o c u m e n t o s assinados a 25 de J u n h o de 1996. Após reun iões parcelares p o r v o l u m e estabelece-se a estrutura e or ien ta-se o t ipo de a b o r d a g e m dos temas. N o s dias 6 e 7 de J u l h o de 1996, na Faculdade de Letras da Unive r s idade d o Por to , os co laboradores d o s e g u n d o v o l u m e desta obra realizaram u m seminár io de Histór ia Rel ig iosa M o d e r n a para d e -bater a his toriografia , discernir ideias e p rob lemas e f o r n e c e r e l emen tos para u m vocabulá r io de história religiosa m o d e r n a . O l o n g o t rabalho de redacção dos vários vo lumes vai-se p r o l o n g a n d o e os prazos r e c o n h e c e m - s e cur tos p a -ra a amb ição inovadora da obra . O s mais c u m p r i d o r e s s e n t e m o atraso dos ou t ros e o caudal d o rio vai-se l e n t a m e n t e c o m p l e t a n d o até chegar à foz.

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O p t á m o s p o r u m a Histór ia Rel ig iosa , p o r ser u m a a b o r d a g e m mais ab rangen te d o q u e u m a Histór ia da Igreja o u até u m a História d o Cris t ianis-m o . Esta úl t ima, a do Cr is t ianismo, p r e t e n d e a t ende r à evo lução das várias confissões, Igrejas o u c o m u n i d a d e s cristãs. Aí es tuda-se a Igreja enquadrada n o crist ianismo, e n q u a n t o f e n ó m e n o sociocul tural visível. S e g u n d o a pers -pect iva a n t e r i o r m e n t e exposta p re fe r imos u m a Histór ia Rel ig iosa . O C í r c u l o de Leitores acei tou esta nossa perspect iva. P r o c u r o u - s e cons iderar a c o m -preensão d o f e n ó m e n o re l ig ioso na soc i edade p o r t u g u e s a , v a l o r i z a n d o a ma t r i z cr is tã-catól ica , mas n ã o d e s c u r a n d o as diversas sensibi l idades r e l i g io -sas e as suas p e r m a n ê n c i a s , r e a l çando mais aspectos da v ivênc ia espir i tual d o q u e as d imensões j á habituais, de o r d e m inst i tucional e organizat iva. É i n t e n -ção desta obra , t e n d o e m conta as potencia l idades e os limites da invest igação p roduz ida , subl inhar a relação ent re os diversos estratos sociais e a v ivência religiosa nas suas variadas expressões, des tacando os processos de socialização e fo rmas de sociabil idade daí decor ren tes . Assim, n ã o r eduz i r emos o o lhar apenas ao evolui r h is tór ico dos g rupos eclesiásticos, o u ao papel da hierarquia e acção dos protagonistas .

N a i n t r o d u ç ã o de cada v o l u m e jus t i f icar-se-á e expl icar־se-á o â m b i t o cient í f ico, a lógica in terna dos temas acolh idos n o t ex to , a base his tor iográfica da síntese obt ida , i nc lu indo assuntos mais «específicos». Consc i en te s de esta const i tu i r a p r imei ra tentat iva global de u m es tudo d e história por tuguesa sob a ênfase do religioso, p rocura r - se -á apon ta r pistas de invest igação e m aber to , p rob lemas e hipóteses a levantar . O s c o o r d e n a d o r e s t iveram l iberdade para a t ende r à especif icidade d o t r a t a m e n t o q u e espelhe a d i fe ren te pos ição e v i ta -l idade d o factor rel igioso nas três épocas estabelecidas.

D e s d e o século x v n q u e a per iod ização se pe rcebe c o m o p r o b l e m a a g u d o

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do historiador p o r q u e revela a avaliação das charneiras, das evoluções f u n d a -mentais , das transições. Dividir e m diferentes per íodos é revelar u m perfil de pensamento , u m ângulo de visão dos factos. É mais u m e l emen to subject ivo, uma perspectiva proposta para o leitor. Evi támos u m tipo de per iodização teológica ou m e s m o confessional. O discurso sobre a visão que está p o r de -trás da divisão une-se à escolha e à sistematização da matéria.

A o escolher para t í tulo do pr imei ro v o l u m e Formação e limites da Cristan-dade p re tende-se abarcar o desafio multissecular das várias consciências reli-giosas c o m a Cris tandade e m ascenção, n o espaço cor responden te ao terr i tó-rio por tuguês , desde o f u n d o religioso a u t ó c t o n e e roman izado até ao c o n f r o n t o c o m o Islão e ao diálogo difícil c o m o juda í smo .

C e r t a m e n t e que o Portugal religioso t em uma história presente ho r i zon -ta lmente n o cristianismo eu ropeu , mas t a m b é m possui u m a singularíssima história religiosa, na qual se j u n t a m m u n d o s culturais e m agitada relação na Península Ibérica.

P o r razões polít icas e militares, a invasão m u ç u l m a n a da Península e a reconquis ta do te r r i tór io c o n v e r t e m Por tuga l e m bel icoso e n f r e n t a m e n t o . A convivência pacífica en t re três etnias, três fés e três culturas, muçu lmanos , j u d e u s e cristãos, que c o n f o r m a m u m tipo de sociedade plural, expressa-se e m arte, vida, pensar, l inguagem e crenças que se en t rec ruzam e p r o d u z e m u m maravi lhoso mosaico. Esta coexistência traz debates e controvérsias t eo ló -gicas, operados entre a elite desses povos , prescrevendo normas de condu ta para salvaguardar a própria ident idade religiosa. A questão da ident idade reli-giosa põe-se c o m o prob lema existencial, antes de ser polí t ico. Só surgirá c o -m o prob lema de dimensões sociais e políticas n o século xv.

O apagamento da diversidade religiosa, de que é e x e m p l o a «conversão forçada» dos j u d e u s e expulsão dos muçu lmanos , marca o início de n o v o pe~ r íodo na história religiosa de Por tugal e ocupará lugar no segundo vo lume . Este terá c o m o tema Humatiismos e reformas, perspectiva prolongada até à re -

Cruz processional (frente), século xv . Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga.

F O T O : DIVISÃO DE DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÃFICA/INSTITUTO PORTUGUÊS DE MUSEUS/JOSÉ PESSOA.

<] Lápide funerária de M o h a m e d Ibn Mahdi Ibn H u d (meados do século XII). Beja, Museu Rainha D. Leonor.

FOTO: PRODUÇÕES T O T A I S / /ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

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[> Menino Jesus Salvador do Mundo. M a r f i m pol icromado, arte indo-portuguesa (século XVII). Alcobaça, Santa Casa da Misericórdia.

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

Custódia e m prata dourada proveniente da igreja da Pena (Lisboa, 1530-1540). Lisboa, M u s e u Nacional de Arte Antiga.

F O T O : DIVISÃO DE DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÃFICA/INSTITUTO PORTUGUÊS DE MUSEUS/JOSÉ PESSOA.

vo lução liberal de 1820. É o t e m p o do catol ic ismo t r iunfante , n o c o n f r o n t o c o m a r enovação evangélica das ordens religiosas, a crítica dos humanis tas , a presença de minor ias protestantes , a r e fo rma t r ident ina , os h u m a n i s m o s i lu -minados ou «racionais». Esta época signif icou para a história do cristianismo u m a v i ragem dramática e m mui tos sentidos. O m u n d o cristão ocidental p e r -manecia un ido n o pr incípio da época. N o final aparece dividido.

As reformas do século xvi p r o d u z i r a m ressent imentos de largo âmbi to . Conso l i dou - se o processo de confessionalização, cu jo significado decisivo p a -ra o nasc imen to na consciência m o d e r n a de u m a n o v a f o r m a de vida e de af i rmação do Estado é ho j e realçado. São f e n ó m e n o s q u e a fec tam s o b r e t u d o o in ter ior da Igreja, mas t a m b é m o desenvo lv imen to geral da vida cultural e polít ica.

For ta leceu-se a vida e a dou t r ina d e n t r o das confissões da Cr i s tandade d i -vidida, mas não se p ô d e imped i r o avanço espiritual para a Ilustração e para os c o m e ç o s de u m a secularização do p e n s a m e n t o e dos c o m p o r t a m e n t o s .

F o r m o u - s e u m n o v o sent ido da vida — sobre tudo e m sectores elitistas — e desencadearam-se crises violentas n o final do século x v m . E x p o r a c o n t i -nu idade , as crises e as rupturas na evo lução , q u e vai desde a si tuação prévia à R e f o r m a até ao t e m p o imed ia t amen te an ter ior à R e v o l u ç ã o Francesa, é o b -j ec t ivo a alcançar.

A apar ição do m u n d o b u r g u ê s nos finais de Seiscentos e d u r a n t e S e t e -cen tos significará a m o r t e do cr is t ianismo, ou , pe lo con t rá r io , só faz en t r a r e m crise u m a d e t e r m i n a d a expressão do cr is t ianismo? As d i fe ren tes poss ib i -

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lidades de existência cristã ex igem u m es tudo da p iedade nos séculos x v n e XVIII .

A esta problemática correspondeu uma estrutura, uma pastoral, u m senti-mento , uma expressão literária e artística, por entre reacções, repressões, dissi-dências, caminhos de alteridade. N o v a mental idade se perfilava no horizonte.

O terceiro v o l u m e assume esta novidade n o título: Religião e secularização. A religiosidade dos século x ix e xx é, po r isso, abordada segundo esquema diferente das épocas anteriores. U m capítulo lança a problemática relação e n -tre Igreja e sociedade, e m autonomias difíceis, para depois serem analisadas as emergentes respostas do catolicismo às sucessivas crises, revoluções e convu l -sões. Acabou o Ant igo R e g i m e e o n o v o é f ru to de progressos imparáveis. Duas temáticas específicas atravessam estes séculos n o universo por tuguês: a actividade missionária e a pluralidade religiosa, que cons t i tuem dois temas i n -dependentes .

É n o século xix, rico de mudanças e matizes, que o conce i to de seculari-zação assume peso conota t ivo de luta cultural ou en f r en t amen to entre os p o -deres eclesiais e os m u n d a n o s ou seculares, marcadamente politizados. H á uma ilusão e esforço para através do uso exclusivo da razão en tende r a in te -gridade da existência humana . Dian te quer da emancipação da sociedade b u r -guesa, quer da cultura proletária aparece a tradição cristã a travar as mudanças socioculturais. O conce i to de secularização nos críticos da religião da segunda metade do século x ix ganha pert inência. É u m t e r m o que expressa uma série de experiências vividas entre a sociedade e a religião j á na época m o d e r n a e

Visitação (Igreja Matriz de Alvorninha, madeira policromada, século xvni). FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

X X I I I

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Jazigo dos condes do Ameal (Cemitério da Conchada, Coimbra, 1893). F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

representa u m m o m e n t o sociocul tural de i n d e p e n d ê n c i a das diversas esferas sociais re la t ivamente à religião. A ciência, a e c o n o m i a , a polít ica, o dire i to , assim c o m o a arte e, mais p r ó x i m o dos nossos dias, a ética e a família, ga -n h a m a u t o n o m i a . A religião p e r d e o papel de leg i t imador social t radicional . O e c o n ó m i c o ocupa o lugar central e a religião p re t ende - se privatizada, i n t e -riorista.

O século x x singulariza-se pela mundia l ização dos confli tos, ex tensão dos êxitos e fracassos, rapidez das notícias, caduc idade das pe rmanênc ias morais , religiosas e políticas. Instalou-se a ideia de q u e só a m u d a n ç a m e l h o r a as c o i -sas. D e u s e a religião t o r n a m - s e quase supérf luos p o r q u e a pessoa m o d e r n a ganha compe tênc i a sobre o inexplicável . A ideia de D e u s l imita-se a ser res-posta às perguntas sobre o sent ido p r ime i ro e ú l t imo do m u n d o e da vida, dos valores e ideais, das decisões e ati tudes. Abre-se u m mi lén io n o v o c o m respeito m ú t u o en t re ciência e fé.

E m c o n t r a p o n t o ao m o v i m e n t o de laicização da sociedade desenvolve-se u m p ro t agon i smo dos leigos, c rescem experiências de apostolado laical de v a -riado cariz e f o m e n t a m - s e fo rmas novas de espiri tualidade.

R e n o v a - s e a presença da Igreja Catól ica na sociedade c o m o resposta lai-cal à laicização liberal e à secularização c o n t e m p o r â n e a . Salta-se do q u a d r o paroquia l e da religiosidade quot id iana e popu la r e p r o m o v e m - s e acções de difusão d o catol icismo, c o m a pr incipal in t e rvenção dos leigos, o q u e se a p e -l idou de « m o v i m e n t o católico». En t r e nós emerge , nos meados d o século x ix , e avança c o m lufadas de entus iasmo, alternadas c o m presença apagada, até eclodir na Acção Catól ica, organização f u n d a m e n t a l na evo lução do catolicis-m o social. Gera iniciativas, defensoras de u m a relevância da presença católica

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nos segmentos da sociedade e, assim, r e sponde à rup tura da f u n ç ã o social da religião.

P e r m i t i m o - n o s d e m o r a r u m p o u c o a caracter izar a s i tuação, j á q u e esta His tó r ia Re l ig iosa é filha de u m a m e n t a l i d a d e nascida n o e n t e n d i m e n t o n o v o deste t ema . H á u m a m u d a n ç a de es t ruturas menta i s . A rel igião j á n ã o leg i t ima as práticas sociais polí t icas e e c o n ó m i c a s , j á n ã o dir ige a m u n d i v i -dênc ia , pe lo m e n o s c o m o m o n o p ó l i o an te r io r . C o m a ideia da l ibe rdade religiosa passou-se de u m a cosmov i são uni tár ia de carác ter re l ig ioso para u m a p lura l idade de visões. A c e n t u a - s e h o j e a f r a g m e n t a ç ã o cosmovi s iona l q u e r e n u n c i a às visões d o m u n d o uni tár ias , o n d e se p e r d e a na tu ra l idade para descobr i r os sinais d o sagrado n o cosmos e se chega a er radicar os t r a -ços d o re l ig ioso na cu l tura .

A religião (católica) c h e g o u , n o en tan to , a exercer funções legi t imadoras de u m reg ime pol í t ico, e até a p r o m o v e r u m a ident i f icação religioso-civil de no rmas sociais (ma t r imónio , festividades, trabalho). O processo de seculariza-ção desliga a religião de u m a série de tarefas sociais e culturais, q u e t radic io-na lmen te lhe estavam atribuídas.

Pela pr imeira vez na história, as inst i tuições consti tut ivas da sociedade e os c o m p o r t a m e n t o s pessoais quot id ianos a f i rmam não necessitar de legi t ima-ção religiosa. Esta m u d a n ç a at inge as consciências.

C o m a perda de significância social da religião ganha t e r r eno o pluralis-m o . O relat ivismo das diversas explicações ou cosmovisões salta à vista. Se não se afastou o p r e d o m í n i o de u m a religião (católica), c o n h e c e u - s e a perda da coerção social para a sua aceitação.

A própr ia religião altera-se na plural idade de visões do m u n d o , n u m a es-pécie de m e r c a d o q u e obriga a racionalizar as estruturas sociorreligiosas. Já não são suficientes as legi t imações teológicas da realidade. H á q u e evidenciar a eficácia social. Desenvo lve - se a burocrac ia p o r causa desta racionalização organizativa. A tendênc ia para o e c u m e n i s m o é vista c o m o m o v i m e n t o de defesa m ú t u a p o r af inidade en t re as diversas Igrejas. C o m o reacção aparece o a taque às tendências desagregadoras, acusando-as de «descristianização» o u p a -ganização. O c o n t e ú d o dout r ina l sofre re fo rmulações para ser e n t e n d i d o e aceite, c o m o per igo o u tentação de adaptar-se ao m o m e n t o a custo da a u -tent ic idade dout r ina l e c o m o m o e d a de t roca da relevância social.

A oposição eclesial à secularização, a lém de resistência q u e desmascara as funções ideológicas sustentadoras do processo, c o n d u z a u m a at i tude de f o r -ta lec imento inst i tucional e p r o p o r c i o n a u m crist ianismo de t endênc ia ec le-siástica. Alguns, nesta l inha, l ê em a restauração católica pós-conci l ia r c o m o retrocesso de e n d u r e c i m e n t o das normat ivas eclesiais insti tucionais.

É de r econhece r , n o en tan to , q u e foi a t radição bíblica a semear a secula-rização, de a lguma manei ra f ru to das virtualidades da matr iz judeo-c r i s t ã . N ã o se p o d e , p o r isso, chamar «descristianização» ao q u e é resul tado de u m avanço do p r ó p r i o crist ianismo.

H á u m processo de m u d a n ç a das formas de presença social da religião, na persistência de f e n ó m e n o cons t i tu t ivo da sociedade. T e m grande peso, a tra-vés do t o m valorat ivo lançado sobre o sistema e da capacidade reguladora so-bre o c o m p r o m i s s o mot ivac iona l do ind iv íduo . H á dif iculdade e m m a n t e r u m a visão essencialmente religiosa da vida, q u e não interfira na universal ida-de do social.

As religiões (institucionalizadas) não sabem c o m o colocar-se nesta socie-dade m o d e r n a , democrá t ica , funcional is ta , superdiferenciada. H á reacções de desprivatização e u m a menta l idade q u e carece de or ientações valorativas p o r -q u e necessita de guia e barreiras. O u t r o s q u e r e m readquir i r relevância social a t o d o o custo.

A p ó s - m o d e r n i d a d e privilegia a d imensão emoc iona l , estét ico-expressiva, s imbólica. A c e n t u a as insuficiências da razão func iona l para aceder ao sent ido da vida. D e f e n d e at i tudes de escuta, a tenção e gosto pela plural idade e rique-za da vida. T a n t o acon tece a p r o m o ç ã o de u m a espiri tualidade renovadora , c o m o há m o v i m e n t o s de carácter o r t o d o x o e conservador . A p a r e c e m reac-ções con t ramodernas , anti-ilustradas, q u e p r o c u r a m evidenciar a religião e

Custódia em prata branca e dourada pertencente à igreja da Vestiaria (ourives portuense, 1853-1861).

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d e f e n d e m o seu in f luxo e presença social. São sensíveis à temát ica de ética c i -vil, ou me lho r , a no rmas éticas de vida da cidadania e m geral. As in tenções desta pos ição são variadas.

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Estamos conscientes de q u e escrever u m a Histór ia é opera r u m a in te r -venção social e cultural . Se ja-nos p e r m i t i d o aponta r o nosso ho r i zon t e p ros -pec t ivo para os leitores c o n h e c e r e m o rasgo do nosso olhar na obscur idade do f u t u r o .

S i tua-se este p r o j e c t o n o t e m p o p ó s - m o d e r n o e m q u e n ã o só as i d e o l o -gias p e r d e r a m a força de coesão social. T a m b é m u m a c o m u m i d e n t i d a d e cul tural se esvai. Fala-se até n o f im d o p lura l i smo e na e m e r g ê n c i a de p l u -ral idades n ã o c o n v e r g e n t e s , p o r q u e paralelas. O p lura l i smo p r e s s u p u n h a u m cen t ro , de a l g u m m o d o , un i f i can te . P lura l idade é o r e b e n t a r de novas real i -dades q u e n e n h u m a au tor idade consegue disciplinar e ha rmoniza r , é a perda de u m cen t ro . O plural ismo t e n d e a governa r as diversas posições, a plural i -dade verifica a mul t ip l ic idade.

O f i m da Cr is tandade é u m aspecto desta perda de central idade. T a m b é m a Igreja Catól ica, c o m o o Estado, quais antagonistas q u e p ro tagon izavam os acon tec imen tos , ver i f icam a perda de c a m p o na sociedade civil. Após o II Conc í l i o d o Vat icano a Igreja Catól ica, de mãos dadas c o m as outras Ig re -jas cristãs, não t em a p resunção de or ientar a sociedade, mas põe - se ao servi-ço da pessoa h u m a n a , c o m o consciência crítica de qua lque r p ro j ec to e c o m o apelo à absoluta pr ior idade da salvação. Alerta para valores d e n t r o do pluralis-m o religioso e da au tor idade da cidade terrena. N a encruzi lhada deste r e c o -n h e c i m e n t o teór ico , c o m c o m p o r t a m e n t o s ainda eivados de menta l idade a n -terior, passa-se para o assumir a periferia nas estruturas do sistema social. Esta perda de central idade não t raduz insignificância histórica da fé, n e m desapa-r e c i m e n t o do religioso, mas dedicação aos p rob lemas fundamen ta i s da pessoa. A nova fo rma de presença difusa torna c o m p l e x a a relação en t re valores rel i -giosos e estrutura social. D e facto, os valores religiosos p o d e m p e r m a n e c e r n o cen t ro da pessoa h u m a n a . Será essa a m u d a n ç a para u m n o v o m o d o de ser das Igrejas.

N ã o d e f e n d e m o s q u e o ev iden te f im da Cr is tandade signif ique o início de uma fase pós-religiosa da humanidade . H á u m a transferência de valores e de procura de valores d o plano exterior para o plano das consciências, o que p o d e aparecer c o m o risco de indiferença na sociedade pluralista e policêntrica.

Já não se trata de impor qualquer perspectiva. Tal m é t o d o , na aparente efi-cácia, d iminuiu a força da mensagem e distanciou-se da fon te original. Agora t a m b é m é impossível p ropor u m único quadro de valores e cria-se u m a o r i en -tação para baixar o nível da «ética mínima», avaliada po r cada u m , a igualar as posições n u m a indiferença céptica diante de qualquer proposta de sentido. Esta cul tura da indiferença torna-se clima geral n o a n o n i m a t o do processo p r o d u -t ivo, da perda da qual idade da vida interpessoal, na perda de significado das relações intrafamiliares, na massificação d o uso do t e m p o livre.

P o r q u e a c i ê n c i a / c o n h e c i m e n t o his tór ico r e m e t e para u m a m e m ó r i a c o -m o pedagogia , c o m esta História Rel ig iosa q u e r e m o s fo rnece r u m c o n t r i b u t o para u m a pedagogia da diferença to lerante , ampl i f i cando as in ter rogações so -bre o sent ido, p r o m o v e n d o o a p r o f u n d a m e n t o das raízes nos debates de cada pessoa c o m u m passado c o m p l e x o e ab r indo u m a leitura p e r m a n e n t e da m e -mór ia , amalgamada c o m a busca de n o v o compromis so , na presença do mis -tér io.

O C e n t r o de Estudos de História Rel ig iosa da Unive r s idade Catól ica Por tuguesa agradece ao C í r c u l o de Leitores ter aco lh ido o nosso p ro j ec to e dar - lhe a vasta di fusão editorial q u e se c o n h e c e . C o m todos os c o o r d e n a d o r e s e colaboradores dos vários vo lumes , o r i undos de di ferentes or igens a c a d é m i -cas, part i lha a alegria deste par to , r e c o n h e c e n d o o esforço e a in tera juda p r ó -prios e necessários a u m a obra c o m u m . O risco foi pe rcor r ido . A aventura prossegue na leitura, passo para n o v o saber.

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NOTAS 1 Sobre o tema é abundante a bibliografia. Aqui se referem só alguns títulos recentes: GÓMEZ

CAFFARENA, ed. - Religión. Madrid: Trotta, 1993; DERRIDA, J.; VATTIMO, G., ed. - La religión. Madrid: PPC, 1996; LUCAS HERNANDEZ, Juan de Sahagún - Fenomenologia y Filosofia de la religión. Madrid: B A C , 1999; PIKAZA, Xabier - El fenómeno religioso: Curso fundamental de religión. Madrid: Ed. Trotta, 1999.

2 Para mais desenvolvimento cf. LUCAS HERNANDEZ, Juan de Sahagún - Fenomenologia y Filo-sofia de la religión. Madrid: B A C , 1999, com bibliografia actualizada.

3 Expressão de TRIAS, E. - La edad dei espiritu. Barcelona: Destino, 1994; IDEM - Pensar la reli-gión. Barcelona: Destino, 1997.

4 DICIONÁRIO de História da Igreja em Portugal. Dir. de A. A. Banha de Andrade. Lisboa: Ed. R e -sistência [1980], vol. 1, 15*-27*. Cf também SERRÃO, J . Veríssimo - A historiografia portuguesa. Lisboa, 1972. 3 vol.; MATOS, Sérgio Campos - Historiografia contemporânea. In DICIONÁRIO de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, vol. 2 (no prelo).

3 Deixou publicada, além de fecunda investigação, uma obra de orientação para a história: Princípios da história ecclesiastica escritos em forma de diálogo. Lisboa: Miguel Rodrigues, 1765. Subli-nha a necessidade que a Igreja e o dogma têm da história.

6 Cf. AZEVEDO, C. A. Moreira - Teologia. In HISTÓRIA da Universidade, vol. 2 (no prelo). 7 Ver PINTO, A. Ferreira - Cabido da Sé do Porto: João Pedro Ribeiro cónego doutoral. Lu-

men. 2 (1938) 28-37. 8 NEVES, F. Moreira das - José de Sousa Amado. In DICIONÁRIO de História da Igreja em Por-

tugal. Lisboa, 1980, vol. 1, p. 188-191. 9 [SANTOS, Domingos Maurício Gomes dos] - Horizontes da historiografia eclesiástica em

Portugal (No centenário de Fortunato de Almeida). Brotéria. 88 (1969) 626-631; PERES, Damião -O Professor Fortunato de Almeida académico e escritor. Memórias da Academia das Ciências de Lisboa: Classe de Letras. 12 (1969) 7-14.

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Introdução

C o m e ç a r uma História Religiosa de Portugal p o r u m a época e m que Portugal ainda não existia p o d e parecer, à primeira vista, u m contra-senso. C o n t u d o , as mais recentes Histórias do nosso país — a Nova História de Portu-gal dirigida por Joel Serrão e A. H . de Oliveira Marques , e as duas Histórias de Portugal dirigidas, respect ivamente, p o r José Mat toso e J o ã o Med ina — pr incipiam todas, igualmente , na pré-história. N ã o p o r q u e t o m e m por adqui -rido que a nação por tuguesa já se encontrava prefigurada e m alguma das fo r -mações territoriais e políticas locais anteriores à fundada p o r D . Afonso H e n -riques, mas p o r q u e se tornaria ininteligível u m relato iniciado apenas c o m o r e c o n h e c i m e n t o da independênc ia da monarqu ia por tuguesa, e m 1143, ou m e s m o mais tarde, c o m a crise de 1383-1385, q u a n d o no calor da guerra c o n -tra Castela se começa a notar a expressão de uma incipiente consciência na -cional.

O c o n h e c i m e n t o das formas c o m o os h o m e n s interagiram c o m o espaço e se organizaram do p o n t o de vista polít ico, e c o n ó m i c o e social n o terr i tór io que fu turamente virá a ser português, antes m e s m o da constituição da entidade política a u t ó n o m a a que chamamos Portugal , é indispensável à compreensão da história nacional. Tal c o m o é fundamenta l , para a compreensão da história religiosa por tuguesa , o c o n h e c i m e n t o das crenças e práticas desses mesmos homens , desde os t empos mais recuados. Porque , se foi a matriz cristã que marcou inde leve lmente a d imensão religiosa da sociedade por tuguesa duran te toda a Idade Média , esta não se c o m p r e e n d e sem os cont r ibutos de religiões mais antigas que o cristianismo se esforçou por desalojar dos templos e das consciências, n e m sempre c o m absoluto sucesso, e de outras religiões coevas que ele comba teu c o m igual energia através da palavra e das armas, embora tivesse aceite c o m elas coexistir durante alguns séculos.

Este p r imei ro v o l u m e tem, pois, c o m o cenário o terr i tór io e m que, mais tarde, virá a surgir o Portugal cont inenta l que ho je conhecemos , sem nunca perder de vista a sua inserção n u m con tex to peninsular e eu ropeu mais alar-gado — o da cristandade latina ocidental — , mas p rocu rando evitar as g e n e -ralizações por vezes abusivas que t êm sido feitas a partir de casos próximos . T e m , ainda, c o m o balizas cronológicas a i n t rodução do crist ianismo nesse espaço n o Baixo Impér io R o m a n o e o seu c o n f r o n t o c o m o f u n d o religioso a u t ó c t o n e e r o m a n o , n u m a das ex t remidades temporais , e na out ra a s i tua-ção de crise moral , social e e c o n ó m i c a a q u e a Igreja cristã — tanto na sua acepção de c o m u n i d a d e de fiéis c o m o na de inst i tuição — c h e g o u e m m e a -dos do século xv, e q u e irá desencadear e m Q u i n h e n t o s u m m o v i m e n t o de re forma interna e ex terna de grande alcance e efeitos duradouros . O q u e não q u e r dizer q u e os r i tmos própr ios a cada estrutura não t e n h a m levado, ep i sod icamente , à adopção de marcos tempora is mais restritos e m alguns ca-pítulos.

Ao int i tularmos este v o l u m e Formação e limites da Cristandade, p rocurámos sublinhar u m m o d e l o civilizacional assente na ideia de un idade religiosa, e m const rução ao longo de toda a época medieval . Mas esta obra não poderia alhear-se da renovação historiográfica que , e m termos teóricos, t em con t r i -b u í d o para que a religião e a religiosidade medieval t e n h a m sido, nas últimas décadas e e m países c o m o a França, a Itália, a Inglaterra e os E U A , cada vez mais trabalhadas a partir da antropologia histórica. Sob as novas perspectivas assim abertas, a noção de Cris tandade m u d o u de conteúdos . D e u m conce i to que, tal c o m o até há p o u c o os historiadores incautamente o utilizavam, era na

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Ana Maria S. A. Rodiigues Ana Mana C. M. Jorge

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realidade apologét ico e defensivo, cons t ru ído afinal n u m a época tão tardia c o m o o século xix, a partir «de dentro», pelos historiadores eclesiásticos de u m a Igreja que via desfazer-se t odo u m sistema do m u n d o e projectava n o passado uma visão idealizada d o m e s m o , passa-se agora, na esteira de autores c o m o Miche l de Cer t eau , à ideia de u m sistema de crenças e práticas p r o f u n -d a m e n t e diverso d o c o n t e m p o r â n e o , dador de sent ido a partir da inscrição d o sagrado e m todas as esferas da vida social. M u i t o mais que u m a época his tór i -ca de u m processo de «cristianização»/«descristianização» — visão à boa m a -neira evolucionista, refere c o m pert inência irónica A n d r é Vauchez — , trata--se de u m «outro con t inen te cultural» ( c o m o refere J . F. Schaub a propós i to de Bar to lomé Clavero) , que organiza a realidade h u m a n a a partir do sobrena-tural, co locando u m m e s m o hor izon te passado e fu tu ro , m u n d o e Além, Deus e os homens , e subord inando assim o presente a lógicas sacrais e m o -rais, não de uma forma instrumentalista, mas constitutiva, essencial.

E, se «o passado é u m país estrangeiro», o h i s tor iador a n t r o p ó l o g o n e -cessita de a p r e e n d e r a f u n d o a cul tura deste, sob pena de n u n c a o ver senão c o m os olhos do presen te . Es tamos consc ientes , q u e este é o salto mais d i f í -cil, só r ea lmen te concre t izáve l após u m a m u i t o m a i o r pene t r ação , n o nosso m e i o c ient í f ico , dos novos m o d e l o s teór icos sobre a rel igiosidade medieva l . T e n t á m o s , p o r é m , dar u m p e q u e n o passo neste sent ido , ainda q u e p o r v e -zes de fo rma pre l iminar , mais ou m e n o s explíci ta c o n f o r m e os textos, e tentada s o b r e t u d o ao nível m e n o s percept íve l dos e n q u a d r a m e n t o s formais , dos planos de obra , dos an imados debates que pres id i ram à e laboração d o p r o j e c t o .

M u i t o do que irá ser di to nas próximas páginas é, pois, f ru to de investiga-ções recentes ou m e s m o ainda e m curso, cujos resultados t êm sido divulgados e m teses de mest rado e de d o u t o r a m e n t o de circulação restrita e e m reuniões científicas de acesso difícil, p o d e n d o encontrar-se , ainda, inéditos. N ã o i g n o -rámos, todavia, o con t r ibu to de For tuna to de Almeida, Miguel de Oliveira e todos os outros autores «clássicos» da história eclesiástica por tuguesa . N o s d o -mínios e m que eles nos legaram u m a sólida base de factos estabelecidos e fontes levantadas, tal c o m o naqueles e m que o trabalho de pesquisa recen te foi levado mais longe, foi possível p rocede r a sínteses. Algumas abordagens, po rém, revelaram-se de tal m o d o inéditas den t ro da historiografia religiosa por tuguesa que apenas pod íamos apresentar estudos de caso e esboçar pistas para investigações futuras. D e qualquer forma, não p rocurámos ser exaustivos na transmissão de informação , mas sim p r o p o r u m a leitura inovadora , c o e -rente e fundamen tada do f e n ó m e n o religioso e m terr i tór io por tuguês das o r i -gens da cristianização ao século xv.

t> Ara com inscrições gregas (mármore, século 1 d. C.) . Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia.

F O T O : DIVISÃO DE DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA/INSTITUTO PORTUGUÊS DE M U S E U S / J O S É PESSOA.

|> Sarcófago da vindima (mármore, século 111 d. C.) . Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia.

F O T O : DIVISÃO DE DOCUM ENTAÇÃO FOTOGRÁFICA/INSTITUTO PORTUGUÊS DE M U S E U S / J O S É PESSOA.

A primeira parte deste vo lume , intitulada «A procura do Deus único», parte da situação de pluralidade de crenças e cultos vigente n o Impér io R o -mano , para percor rer o pe r íodo medieval , de coexistência en t re as três g ran-des religiões monoteís tas mas duran te o qual o cristianismo c o m b a t e du ra -m e n t e o paganismo, as «superstições» e as heresias, até chegar ao limiar de uma época m o d e r n a e m que os seguidores de outras fés são expulsos e a I n -quisição é lançada n o encalço de todos os suspeitos de desvios à or todoxia — marranos, mouriscos, bruxas, luteranos.

D e facto, os cerca de qu inze séculos que cobre este p r ime i ro v o l u m e c o -nhece ram a interacção de diversas crenças n o O c i d e n t e peninsular , embora o cristianismo se fosse i m p o n d o , progressivamente, c o m o religião dominan te , até ocupar t odo o espaço religioso. Às numerosas divindades indígenas, os romanos chegados à Fíispânia vieram adicionar, não só o seu p rópr io pan teão e o cul to imperial mas t a m b é m os deuses orientais, que os hispanos talvez já conhecessem através de contactos anteriores c o m fenícios, gregos e cartagi-nenses. Foi sobre este f u n d o de pluralismo e s incret ismo religioso que , pelos finais d o século 11, veio instalar-se a fé cristã.

Trazida por mercadores , mar inhei ros e soldados, ela pene t rou pelos p o r -

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tos e pelas estradas, implantando-se sobre tudo nos meios urbanos. O s cam-pos, esses f icaram durante m u i t o mais t e m p o entregues às antigas formas de culto, praticadas e m plena natureza, j u n t o dos rios e das fontes ou e m eleva-ções do terreno, formas essas denunciadas por obras doutrinais c o m o o De Correctione Rusticorum de São Mar t i nho de D u m e e por sucessivos concílios das épocas t a rdo- romana e visigótica, mas que seriam de n o v o perseguidas, séculos mais tarde, j u n t a m e n t e c o m as artes mágicas, a adivinhação e outros «erros» persistentes.

N ã o foram, po rém, apenas o paganismo e as «superstições» que o cristia-nismo teve de combate r p o u c o após a sua in t rodução na Península. As gran-des questões que agitaram a Igreja a partir do século iv t a m b é m t iveram os seus reflexos n o O c i d e n t e peninsular, o n d e Potâmio , bispo de Lisboa, se conver teu ao arianismo após ter perfi lhado, durante a lgum t empo , o credo de Niceia, ao qual regressou n o v a m e n t e n o final da sua vida. Mas foi c o m a chegada dos povos germânicos à Hispânia no século v que o arianismo se to rnou a religião do g rupo de ten tor do pode r polít ico, levando à coexistência de bispos per tencentes aos dois credos e m muitas dioceses. Só a conversão de R e c a r e d o ao catolicismo veio estabelecer a unidade religiosa entre os Hispa-n o - r o m a n o s e os Visigodos.

Entre tanto , outra heresia t inha-se declarado na Lusitânia: o priscilianismo, divulgado pelo bispo de Avila, que consistia n u m ascetismo rigoroso e e m d o u -trinas apodadas de maniqueístas e gnósticas. Após a condenação e execução de Presciliano e m Trèves, e m 387, as práticas priscilianistas de vida religiosa in -tensa para os leigos n o âmbi to de oratórios privados divulgaram-se t a m b é m c o m grande intensidade na Galécia. A sua influência deve ter sido duradoura , pois o concíl io de Braga ainda as condena e m 561.

O comba te à he terodoxia n o pe r íodo suevo-visigótico atingiu ainda o manique ísmo, o or igenismo e o pelagianismo, de que não são conhecidas, con tudo , manifestações n o terr i tório que fu tu ramen te se tornará por tuguês . O m e s m o acontece c o m as correntes heterodoxas que se desenvolveram após o século VIII sob o d o m í n i o m u ç u l m a n o , p rocu rando aproximações ao isla-mi smo e ao juda ísmo.

Se o dual ismo cont inua a estar po r trás de u m dos grandes m o v i m e n t o s heréticos que vo l tam a assolar a Península a partir do século XII — o cataris-m o — , os restantes baseiam-se menos e m questões doutrinais do que e m problemas de disciplina. A recusa da submissão à liturgia romana já tinha sus-citado an te r io rmente a desconfiança e a violência e m relação aos moçárabes, n o m e a d a m e n t e os de Co imbra ; a pregação sem licença é, agora, m o t i v o para a condenação dos valdenses de Leão e Castela. Sobre os hereges portugueses dessa época, con tudo , quase nada sabemos, a não ser que estava previsto o seu j u lgamen to pelos tribunais episcopais e o confisco dos seus bens para a Coroa .

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Só a partir da centúria de Trezentos se t o rnam mais nítidos os con to rnos do pensamento h e t e r o d o x o que circulava e m Portugal , e m resultado do i n -f luxo cultural p rovocado pela criação da universidade e das controvérsias reli-giosas sustentadas c o m judeus e mouros . Encon t ram-se , assim, tan to e m obras doutrinais c o m o e m crónicas e nos próprios preâmbulos das leis que as c o n -denavam, reflexos das doutr inas de Averróis, J o a q u i m de Fiore e, mais tarde, WyclifF e Huss. A repressão da heresia acentua-se, então, c o m a nomeação de inquisidores e o reforço da legislação punit iva, ao m e s m o t e m p o que a luta contra as «superstições» conhece t a m b é m u m recrudesc imento e se acentua a segregação de m o u r o s e judeus , an tecedendo a sua expulsão.

A presença dos j u d e u s é assinalada na Península desde o pe r íodo imperial romano , embora os seus pr imeiros vestígios no O c i d e n t e da tem apenas dos finais do século v. Sob o d o m í n i o visigodo, a sua situação era de tal m o d o precária que eles são suspeitos de t e rem acolhido de braços abertos os invaso-res muçulmanos , considerados mais tolerantes. A Reconqu i s t a veio encon t rá --los b e m implantados nos principais centros urbanos, talvez já agrupados nos locais o n d e virão a surgir, mais tarde, as judiarias, embora alguns morassem misturados c o m os cristãos.

Apesar de a legislação civil transpor, desde cedo, as directivas canónicas que i m p u n h a m a segregação dos j udeus e p re tendiam impedir qualquer p o -der deles sobre os cristãos, eles gozavam de uma efectiva pro tecção régia e de grande au tonomia , manifestada na l iberdade do culto e no foro própr io , e m troca do pagamento de tr ibutos e da prestação de serviços ao monarca . O seu re lac ionamento c o m a Igreja parece, t ambém, ter sido pacífico, se excluirmos alguns episódios gerados por pregadores mais exaltados.

A mesma ati tude tolerante caracterizou, durante séculos, a população e m geral, embora a crise de finais de Trezentos tenha acentuado a rivalidade e c o -nómica entre os comerciantes e artesãos j udeus e cristãos, suscitando u m cli-ma de tensão que levou os monarcas a legislar no sentido da separação física entre as duas comunidades . O ódio crescente ao j u d e u usurário e cobrador de impostos, personificação do mal, chegou a degenerar e m violência aberta, c o m o n o caso dos assaltos, frustrados ou conseguidos, a diversas judiarias do país. E m finais da centúria de Qua t rocen tos , a chegada de numerosos c o n -versos e j udeus castelhanos, fugidos da Inquisição instalada no seu país, ve io exacerbar ainda mais essas tensões, reforçadas pela pressão política dos Re i s Catól icos sobre D . Manue l . Isto l evou-o a assinar o édi to de expulsão de 1496, a que só escapariam os que se convertessem ao cristianismo.

N ã o era esta, po rém, a primeira tentativa de conversão dos seguidores do culto moisaico e m Portugal . Desde D . Afonso II que existia u m a legislação de apelo à conversão voluntária e individual — compensada c o m inúmeros privilégios e benefícios económicos — , sucessivamente conf i rmada e reforça-da pelos sucessores desse monarca . Existiam há mui to , t ambém, u m a tradição de disputa religiosa e u m a li teratura de apologét ica cristã de que algumas b i -bliotecas monást icas gua rdam vestígios, e m b o r a sejam poucas as obras de autores nacionais, c o m o quase inexis tente foi , t a m b é m , a p r o d u ç ã o literária anticristã dos j u d e u s portugueses. N ã o parece ter havido, pois, e m resultado dessas controvérsias, conversões e m massa ou de rabis ilustres, n o nosso país, c o m o aconteceu e m Castela e Aragão.

Q u a n t o aos muçulmanos , a sua presença na Península, ao que se sabe, não antecedeu a chegada das tropas de Tar ique , e m 711. C o n t u d o , à conquis -ta de grande parte do terr i tório por árabes e berberes islamizados seguiu-se a conversão de numerosos h i spano- romanos e visigodos, atraídos pela rápida integração na comun idade dos crentes, c o m direitos e prerrogativas iguais aos dos restantes fiéis, que o islamismo assegurava. Assim surgiram e se mult ipl i -caram os muladi-s, que chegaram a ocupar lugares de relevo na sociedade muçu lmana .

O s cristãos que não quiseram converter-se , ou foram submet idos pela força, mor tos ou escravizados, ou obt iveram algumas garantias através da n e -gociação de pactos c o m as novas autoridades. Nes te caso, median te o paga-m e n t o de diversos tributos previstos na lei alcorânica, p u d e r a m cont inuar a

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ter os seus chefes, reger-se pelas suas leis e praticar a sua religião. Tratava-se dos mucahidún, conhecidos nas fontes cristãs po r moçárabes.

Embora a vivência religiosa destes no terri tório que fu tu ramen te virá a ser por tuguês seja mal conhecida, sabe-se que mant iveram a devoção a már t i -res locais, assim c o m o a diversos santos. Há , t ambém, notícias ocasionais da existência de bispos e m algumas dioceses, po r vezes deslocados e m cidades já recuperadas pelos cristãos, e do f u n c i o n a m e n t o de mosteiros c o m as respecti-vas escolas, c o m o n o caso de Lorvão e Vacariça.

Estes cristãos que mant iveram as tradições litúrgicas e monásticas visigóti-cas e m terri tório islâmico não t iveram, con tudo , a vida fácil quando , e m p u r -rados por sucessivas vagas de intolerância religiosa islâmica, fugi ram para o Nor t e , ou se viram incluídos no terri tório cristão quando a Reconqu i s t a foi a t ingindo o C e n t r o e o Sul da Península. O s seus correligionários o lhavam c o m desconfiança as suas práticas cultuais e a sua particular vivência do c e n o -bit ismo n u m m o m e n t o e m que, devido à reforma dita gregoriana, t r iunfavam e m todo o O c i d e n t e a liturgia romana e os costumes benedi t inos c luniacen-ses. A eles t iveram os moçárabes de submeter-se, sob pena de serem conside-rados heréticos.

Já então viviam os muçulmanos , e m terri tório cristão, u m a experiência semelhante à que os cristãos haviam vivido e m terri tório islâmico: se resis-t iam à conquista, e ram mor tos ou reduzidos à escravatura; se negociavam a rendição, pod iam gozar da protecção régia e de u m estatuto que lhes garantia a l iberdade de cul to e a au tonomia administrativa e judicial, mediante o pa -gamento de pesados impostos. Assim se const i tuíram as chamadas comunas de m o u r o s forros e m diversas cidades do Sul do país, sediadas e m a r ruamen-tos ou bairros fechados e m zonas periféricas, c o m as suas mesquitas, as suas escolas alcorânicas, os seus banhos, onde os mouros praticavam o artesanato e o comérc io ou se dedicavam à policultura de abastecimento urbano .

T a m b é m eles fo ram postos perante a escolha entre a conversão ou a ex-pulsão, po r D . Manue l , e m 1496. Todavia , ao invés do que aconteceu c o m os judeus , n e m foram baptizados à força n e m os seus filhos lhes fo ram retira-dos. O seu fraco peso demográf ico e e c o n ó m i c o tornava-os menos indispen-sáveis à monarquia , que não co locou grandes obstáculos à sua saída do reino. E assim partiram, de ixando atrás de si uma herança linguística, cultural e téc-nica a que só agora se começa a dar o devido relevo.

A segunda parte deste livro procura mostrar c o m o se deu «A construção de uma Igreja» n u m a óptica institucional, analisando a formação, o desenvol-v imen to e a mobil ização de recursos das estruturas de enquadramen to ecle-siástico e evidenciando as motivações e estratégias dos respectivos agentes, quer a nível in te rno quer n o seu re lac ionamento c o m instituições de idênt ico relevo, c o m o a monarquia .

O pr imei ro capítulo debruça-se sobre a organização eclesiástica do espa-ço, c o m e ç a n d o pela reestruturação provincial de Diocleciano, e m 284-288, que serviu de base a essa organização durante t odo o pe r íodo t a rdo - romano . As mais antigas sés episcopais da Hispânia foram estabelecidas e m centros u r -banos importantes e agrupadas e m províncias, t endo-se estas tornado, n o sé-culo iv, o quadro preferencial de discussão e resolução das questões internas das Igrejas locais. Mas outras comunidades cristãs iam sendo fundadas nos campos, quer po r bispos que para lá enviavam clérigos c o m capacidade de baptizar, quer p o r leigos que pre tendiam atrair os poderes benéficos da d iv in-dade aos seus domínios , ao m e s m o t e m p o que basílicas e oratórios e ram construídos para albergar relíquias de santos.

O Parochial Suevorum, de 572-582, most ra-nos que, na província da Galé-cia, existia j á nessa época uma constelação de «paróquias» c o m distintas or i -gens, cujos territórios não t inham ainda con tornos precisos, embora tenha si-do possível estabelecer a correspondência entre algumas delas e outros tantos arcediagados medievais, lançando uma p o n t e sobre o per íodo de ocupação muçu lmana , que assistiu a uma progressiva desagregação da administração eclesiástica diocesana.

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Duran t e a Reconquis ta , o programa repovoador da monarqu ia astur iano-- leonesa e, pos ter iormente , o da portuguesa levou à restauração de antigas dioceses suevo-visigóticas, se b e m que e m contex to novo , b e m c o m o à e rec-ção de outras inéditas. As fronteiras entre essas circunscrições foram-se clarifi-cando através de processos judiciais po r vezes mu i to longos, que não obsta-vam, po rém, à realização de arbitragens e ao estabelecimento de concórdias. Todavia, o espaço eclesiástico e o espaço político não se tornaram coincidentes: até finais do século xiv, houve territórios portugueses que estiveram integrados e m bispados galegos ou castelhanos, assim c o m o algumas dioceses lusitanas foram sufragâneas de Santiago de Composte la ; inversamente, Braga estendeu os seus direitos metropoli tas a Astorga, Tu i , Orense e M o n d o n h e d o , além do Por to , Viseu e Co imbra .

T a m b é m os limites das paróquias fo ram sendo demarcados c o m minúcia entre o século x n e o início do século xiv, c o m o objec t ivo de assegurar u m melhor contro le dos fiéis e a percepção dos direitos eclesiásticos. É, pois, pos -sível p roceder à enumeração das freguesias medievais portuguesas, diocese após diocese, c o m u m elevado grau de precisão, e de terminar a q u e m elas per tenciam. O contraste mostra-se vivo entre u m N o r t e e C e n t r o retalhados e m pequeníssimas paróquias pertencentes , sobretudo, a senhores laicos que, a dada altura, as entregaram aos mosteiros de seu patrocínio, e u m Sul de vastas freguesias tuteladas pelo rei ou pelas ordens militares.

Q u a n t o à localização no espaço dos mosteiros, ela revela u m a oposição t a m b é m marcada entre o Sul, d o m í n i o dos freires cavaleiros, e o Cen t ro , l o -cal de implantação preferencial dos Cistercienses e dos Cónegos Regran tes de Santo Agost inho, que se espalharam igualmente pelo N o r t e , terra de eleição

Fachada da igreja românica de R i o Mau.

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dos Benedi t inos. Já os Mendicantes most raram uma preferência pelos centros urbanos meridionais, t endo deparado c o m grandes dificuldades para entrar nas sedes de bispado nortenhas .

Mas q u e m eram os h o m e n s e mulheres que se dedicavam à con templa -ção, à oração e ao serviço do p o v o de Deus? O estudo do e lemento h u m a n o das instituições eclesiásticas é relat ivamente recente e revela ainda muitas zo -nas de sombra. E m b o r a existissem eremitas e ascetas no O c i d e n t e da Hispânia desde os t empos mais recuados, p o u c o se sabe sobre a sua vivência indivi-dual. E apenas quando eles c o m e ç a m a ser submetidos a regras e a organizar--se e m congregações, n o século xiv, que surgem registos, ainda que parcos, da sua presença, n o m e a d a m e n t e no Alentejo .

Já sobre os partidários da vida cenobítica, as notícias são mais abundantes . Desde o século vi, são atestados mosteiros e m diversos locais da Península, servindo de focos de cristianização dos campos através da acção dos seus monges-bispos e monges-sacerdotes . Há , t ambém, cenóbios dúplices e outros r eun indo grupos familiares ou comunidades camponesas no seu con jun to , c o m o forma de pro tecção m ú t u a e de obtenção de benefícios espirituais e económicos . As origens sociais destes monges parecem, pois, ser tão variadas quan to as regras a que obedeciam; apenas se lhes exigia que não fossem ser-vos n e m libertos, e que ingressassem na vida religiosa de livre vontade .

A mult ipl icidade das regras e a prevalência dos mosteiros de t ipo familiar perdura, no N o r t e do país, m e s m o após a invasão dos muçu lmanos e a pos te-rior retirada destes, nos séculos v m e ix. Todavia , anseios de reforma a n u n -ciam-se c o m São R o s e n d o e expr imem-se aber tamente no Concí l io de Coyanza , e m 1055, levando à conversão de antigos cenóbios e à criação de outros novos de observância benedi t ina, seguindo quer os costumes clunia-censes quer os cistercienses.

E m b o r a tal tenha sido feito c o m apoio régio e sob a influência da n o b r e -za palatina e das l inhagens de infanções e m ascenção, estes mosteiros revelam u m rec ru tamento mais alargado do que os do pe r íodo anterior, não se l imi-tando a m e m b r o s e protegidos das famílias patronais mas incluindo professos de origens modestas e até estrangeiros. O s abades, esses sim, eram recrutados nas mais altas esferas sociais, de sempenhando papéis políticos e religiosos de relevo, c o m o testamenteiros, capelães e esmoleres dos monarcas, ou ainda juizes e auditores dos papas. O m e s m o acontecia c o m os priores dos moste i -ros de cónegos regulares que se mult ipl icaram na mesma época, escolhidos para chefiar dioceses ou actuar c o m o confessores e conselheiros régios.

N o s séculos xrv e xv, superadas as dificuldades de implantação iniciais, são os frades mendicantes que irão ocupar as funções de directores espirituais dos monarcas e príncipes, e de professores da universidade, devido à p ro tec -ção régia e papal de que gozavam e à sua formação de nível superior. Já os m e m b r o s das ordens militares, devido à sua vocação guerreira, recrutavam-se entre os filhos segundos da nobreza e m e s m o da casa real, embora t a m b é m pudessem provir de famílias mais obscuras, con ten tando-se neste caso c o m tarefas auxiliares ou c o m uma vida conventua l mais contemplat iva.

O s mosteiros femininos de todas estas ordens serviram igualmente de lugar de abrigo para mulheres de famílias nobres, viúvas ou solteiras sem esperança de casar, que m e s m o n o claustro con t inuaram a dispor de bens e servidoras dedicadas, e a pro teger os seus familiares e dependentes . Algumas viúvas e f i -lhas de cidadãos abastados conhece ram u m destino semelhante , mas sobre as professas de origens mais humildes nada se sabe.

Q u a n t o aos clérigos seculares, embora proviessem dos meios sociais mais diversos, as suas origens de terminavam, e m larga medida, os cargos a que p o -diam aspirar: a per tença a uma família nobre e a p rox imidade do monarca ou do sumo pont í f ice facilitavam-lhes a ob tenção de uma prelazia, uma dignida-de capitular ou u m a conezia; o parentesco c o m outros clérigos b e m coloca-dos ou o alto nível dos estudos realizados, abr indo caminho para o serviço régio e papal, pod iam surtir o m e s m o efeito. Já a proveniência das elites u r -banas ou da criação de u m prelado assegurava, apenas, u m a porção ou ração n u m cabido de catedral ou colegiada. O s laços de dependência e m relação a

Cálice em prata dourada (2.A metade do século XII). Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga.

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uma família patronal garantiam ainda u m benef íc io curado n u m a igreja pa ro -quial ou o serviço de uma capela funerária r icamente dotada. Fora deste siste-ma de solidariedades e alianças, sobravam apenas alguns lugares de auxiliares e substitutos para aqueles que não t inham a protecção de n i n g u é m ou se e n -cont ravam no início da carreira.

As mesmas diferenças notavam-se ao nível dos recursos económicos de que cada m e m b r o do clero podia dispor. Desde os pr imeiros t empos do cris-tianismo, estipulara-se que os ministros do culto deviam viver das ofertas fei-tas espontaneamente pelos fiéis. Todavia , o carácter voluntár io dessas dádivas foi-se pe rdendo , e os crentes viram-se compel idos ao pagamento de dízimas, primícias, votos de Santiago e outros tr ibutos que n e m sempre rever t iam para os verdadeiros celebrantes do culto, pois sobre esses rend imentos pesavam a fiscalidade episcopal e pontifícia e os direitos dos pat ronos e titulares da cura.

Os proventos do clero não residiam, con tudo , apenas nos direitos de ca-rácter religioso que este fazia pesar sobre o povo de Deus. A o longo dos tempos, sés, colegiadas e conventos haviam acumulado grandes quantidades de bens móveis e, sobre tudo, imobiliários, provenientes de doações, legados, compras e escambos, que exploravam di rec tamente ou por in te rmédio de f o -reiros a q u e m conced iam contratos de duração variável e que, e m troca, lhes pagavam rendas e m géneros ou e m dinheiro . Algumas dessas terras hav iam--lhes, mesmo, sido concedidas pelos reis c o m a respectiva jurisdição, p o d e n -do nelas exercer a justiça, tutelar as actividades económicas, administrar o t e r -ritório do p o n t o de vista civil e militar e cobrar as multas, taxas e serviços correspondentes .

E ram os bispos, priores e abades ou abadessas que mais lucravam c o m t o -dos estes ingressos, pois coubera- lhes a parte de leão — dois terços — nas partilhas efectuadas entre eles e os cabidos ou conventos a que presidiam; c ó -negos, monges e freiras deviam contentar-se , apenas, c o m o restante terço e alguns recursos pessoais, se os tivessem. C o n t u d o , a crise demográfica e e c o -nómica que, a partir de meados do século xiv, veio causar u m a t r emenda erosão nos proventos extraídos da terra a todos afectou gravemente . A d imi -nuição dos recursos levou mui tos clérigos a acumular benefícios, to rnando-se absentistas, enquan to outros passaram a sobreviver difici lmente, substi tuindo esses nas suas funções por metade ou menos das respectivas prebendas.

Se o pode r e conómico da Igreja portuguesa foi fo r t emen te abalado nos finais da Idade Média , a sua influência política não sofreu u m embate m e n o r , devido às crescentes intervenções régias na esfera eclesiástica. N a verdade, as relações entre o p o d e r tempora l e o pode r espiritual n e m sempre foram pací-ficas. U m a primeira aproximação entre ambos esboçara-se no Baixo Impér io R o m a n o ; as realezas sueva e, sobre tudo, visigótica estreitaram as relações e n -tre os reis e os bispos, o que gerou alguns m o m e n t o s de tensão mas outros de colaboração e en t end imen to entre eles. Esse b o m re lac ionamento deve ter-se perd ido durante a ocupação muçu lmana , mas foi recuperado pela monarqu ia asturiano-leonesa e pela emergen te realeza portuguesa, que se apoiaram nas sés e nas ordens religiosas para p r o m o v e r o p o v o a m e n t o e organização dos territórios tomados aos mouros , ou m e s m o para a conquista desses territórios, no caso das ordens militares.

M u i t o rapidamente , po rém, alguns prelados começaram a acusar sucessi-vos monarcas da primeira dinastia de prat icarem atentados contra as l iberda-des e privilégios eclesiásticos e de tolerarem que os nobres cometessem abu -sos e violências e m relação à Igreja e aos seus bens. Out ros , e m contrapart ida, p róx imos dos soberanos, apoiavam-nos, quando não inspiravam m e s m o cer -tas medidas e atitudes condenadas. Desta forma, apesar de censurados e, n o caso de D . Afonso III, até excomungados , os reis portugueses persistiram na sua política de centralização à custa dos poderes e riquezas da nobreza e, so-bre tudo , do clero. Cer tos que uma parte deste, cortesã e envolvida na cons-trução do Estado m o d e r n o , lhes estava sempre adquirida e, quan to aos res-tantes, sabendo joga r c o m as divisões existentes no própr io seio do co rpo eclesiástico, exacerbadas na passagem de Trezentos para Qua t rocen tos dev ido ao Cisma do Oc iden te .

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I N T R O D U Ç Ã O

N a terceira e úl t ima par te deste v o l u m e vamos encon t ra r os fiéis «Vi-v e n d o a palavra de Deus». O s clérigos, e laborando e t ransmi t indo a dou t r i -na e a cul tura cristãs. O s leigos, r e c e b e n d o e ree laborando esses e n s i n a m e n -tos à luz das suas t radições culturais. U n s e out ros , p r o c u r a n d o dar resposta aos seus anseios espirituais através de devoções , ritos e práticas e m cons tante evolução .

Sobre a religiosidade dos clérigos, as fontes abundam, já que foram eles que preservaram a escrita nesses t empos de p r edomín io da oralidade. O terri-tór io por tuguês conheceu formas de vida religiosa originais, c o m o o m o n a -quismo frutuosiano, e liturgias específicas, c o m o a moçárabe , particularidades essas que foram erradicadas pela unificação monástica efectuada ao abrigo da regra benedi t ina n o seguimento do Concí l io de Coyanza e pela in t rodução da liturgia romana . Todavia , o rito bracarense, sem contrariar esta últ ima, irá conservar ao longo de toda a Idade Média e até aos nossos dias uma relativa originalidade.

A part ir do século xi, as fundações monásticas por tuguesas a d o p t a m re -gras ou cos tumes v indos de a lém-Pi r inéus , c o r r e s p o n d e n d o a inquie tações espirituais e vivências religiosas diferentes . Cluniacenses e cistercienses p r o -curam, tal c o m o os eremitas , o afas tamento do m u n d o , e m b o r a os p r i m e i -ros p r a t i q u e m n o esplendor da liturgia e os segundos n o t rabalho intelectual ou manua l o serviço de D e u s a que os terceiros se d e v o t a m na ascese e na medi tação . Já os C ó n e g o s Reg ran t e s de Santo Agos t inho e os Mend ican te s valor izam a pe rmanênc ia n o século, e x e r c e n d o o seu minis tér io j u n t o dos crentes e d i s t inguindo-se do clero d iocesano pelos votos evangél icos de cas-t idade, obediênc ia e pobreza que os obr igavam a u m a vida mais frugal e re -catada.

N ã o admira, pois, que encon t remos irmãos menores e pregadores, tal c o -m o agostinhos, dedicados à instrução religiosa dos fiéis através da pregação, embora esta e a catequese compet issem, or iginar iamente, ao clero secular. T o d o s eles t ransmit iam as práticas rituais, a moral e a doutr ina elaboradas nos claustros e proclamadas nos concílios e nos sínodos, cuja correcta assimilação pelos leigos as visitas pastorais efectuadas pelos bispos ou pelos seus vigários procuravam, depois, fiscalizar.

Mas o papel de educadores dos clérigos seculares e regulares não se esgota-va na instrução dos crentes. Prat icamente todo o sistema de ensino, em Por tu -gal, estava nas mãos da Igreja, desde as humildes escolas paroquiais onde se en -sinavam os rudimentos da leitura, da escrita, das contas e da Sagrada Escritura, passando pelas escolas conventuais e episcopais onde se formavam os futuros monges e sacerdotes, até à universidade onde , mais do que teologia, se estuda-vam leis e cânones, que abriam caminho a frutuosas carreiras na burocracia ré-gia e eclesiástica. Professores, bibliotecários, copistas, notários, os clérigos m o -nopolizavam as profissões ligadas à escrita e ao trabalho intelectual.

Sobre a religiosidade dos leigos, são poucos e recentes os nossos c o n h e c i -mentos . Daí que, e m vez de uma síntese, se apresente a análise aprofundada de u m cer to n ú m e r o de casos, individuais ou colectivos, a partir da qual se procura avaliar e m que medida eles são representativos da vivência de grupos sociais mais vastos. Depa ramo-nos , assim, c o m condessas e infanções que e n -cont ram, na fundação de cenóbios de diferentes obediências, u m a forma de expressão da sua religiosidade mas igualmente de manifestação do seu pode r e de conservação de parte do pa t r imónio familiar na órbita da l inhagem. M o -çárabes que cerram fileiras e m to rno da sua Igreja e da respectiva liturgia para preservarem a sua especificidade cultural contra a uni formização de que são vítimas e que acabará por triunfar. Cavaleiros que cons t roem uma imagem do chefe guerrei ro cristão dissonante da propagada pelos clérigos, mas coe -rente c o m os seus próprios valores. Infantes que p r o t e g e m não só mosteiros de antigas e tradicionais observâncias mas t a m b é m os novíssimos e mais radi-cais mendicantes .

E ainda ricas cidadãs, nobres damas e rainhas que se despojam dos seus bens para v iverem c o m e c o m o as Clarissas. M e m b r o s das elites urbanas que p r e t e n d e m man te r viva a sua m e m ó r i a através dos tempos, cr iando estabele-

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I N T R O D U Ç Ã O

cimentos de assistência, e nobres que, na prossecução do m e s m o object ivo, f u n d a m capelas de morgadio . Fidalgos, princesas e condes que assumem e x -periências religiosas «radicais», eremíticas ou de clausura, e m ruptura c o m os seus meios de or igem.

Crucifixo gótico em cristal de rocha, prata e cobre (séculos xiv-xv). Lisboa, Palácio Nacional da Ajuda. F O T O : J O S É M A N U E L OLIVEIRA/ /ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

Cons t ru i r u m a obra colectiva é u m trabalho fascinante, pelo que implica de reflexão e debates teóricos, de divergências de opinião e de compromissos assumidos na sequência de longos e p ro f ícuos diálogos, mas t a m b é m de o p -ções feitas q u a n d o o acordo n ã o é a t ing ido e de decisões práticas tomadas peran te a urgência dos prazos e a di tadura dos acon tec imen tos da vida q u o -tidiana.

Este livro acolhe, pois, u m c o n j u n t o diversificado de perspectivas, corres-p o n d e n d o à visão que cada u m dos autores tinha do t ema que lhe foi a t r ibuí-do, e q u e pôde expr imir l ivremente . Desde logo nas problemáticas adoptadas, nas formas de abordagem escolhidas e na definição das sequências internas a cada capítulo. A nós, c o m o coordenadoras do vo lume , coube -nos a escolha dos colaboradores, o desenho d o plano geral da obra e a articulação final e n -tre as suas diferentes partes, evi tando sobreposições, clarificando zonas de sombra e p r e e n c h e n d o as lacunas mais gritantes.

Pelo m o d o c o m o , desde o p r imei ro instante, connosco colaboraram c o m os seus textos, as suas sugestões, os seus encora jamentos , e aceitaram as p r o -postas de ap ro fundamen to ou de alteração que formulámos , que remos deixar aqui registado o nosso agradecimento aos autores, a q u e m , para a lém do res-pei to e admiração científicos que j á inicialmente sentíamos, nos une agora uma sincera amizade.

Aos colegas do C E H R , e m particular ao Dr . Paulo Fontes, o nosso m u i -to obr igado pelo seu apoio sempre disponibilizado. A o Dr . Jac in to Guer re i -ro, que secretariou a coordenação e nos secundou incansavelmente na revisão de textos e imagens, de tec tando trocas, apon tando gralhas, revelando incoe -rências, o nosso b e m haja.

T a m b é m à Dra. Gui lhermina G o m e s e ao Sr. Leonel de Oliveira deseja-mos expressar o nosso r econhec imen to pela compreensão e paciência c o m que acolheram os nossos atrasos, e pela competênc ia c o m que conduz i ram a p rodução material desta obra. Finalmente , ao Cí rcu lo de Leitores, o nosso mui to obr igado pela confiança e m nós depositada.

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A PROCURA DO DEUS ÚNICO

Convivências religiosas: um desafio multissecular

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A dinâmica da cristianização e o debate ortodoxia/heterodoxia

O SINCRETISMO RELIGIOSO HISPÂNICO E A PENETRAÇÃO DO CRISTIANISMO*

O CRISTIANISMO, q u a n d o pene t rou na Península Ibérica, através dos ca-nais do Impér io R o m a n o , foi encontrar u m «fundo religioso» multissecular const i tuído por uma mult ipl icidade de deuses e cultos.

E m b o r a a história das origens religiosas da Galécia e da Lusitânia desde épocas pré- romanas esteja ainda por escrever, não nos p o d e m o s contentar c o m imagens simplistas. Só a inventariação sistemática dos tes temunhos r o -manos ou dos t es temunhos legados por estes e revelando influências mais an-tigas constitui o caminho para traçar a panorâmica do que foi o f u n d o reli-gioso hispânico antigo. É preciso, pois, começar por olhá- lo «de mais perto» para vislumbrar os seus dinamismos fundamenta is e c o m p r e e n d e r c o m mais p ro fund idade o b i n ó m i o paganismo/cr is t ianismo.

N o s p r imei ros séculos, a inexis tência de t emplos e de f igurações divinas terá levado os R o m a n o s a pensar q u e os povos au tóc tones peninsulares não pres tavam cul to a divindades 1 . C o m o refere J o r g e Alarcão, esta inex i s tên-cia de t emplos terá c o n f u n d i d o não só Est rabão c o m o os autores que lhe serviram de fon te 2 . Esta ideia desvaneceu-se , todavia , q u a n d o os R o m a n o s se d e r a m con ta de que n o te r r i tór io p o r eles o c u p a d o t a m b é m existia u m pol i te í smo, quiçá semelhan te ao seu p o r q u e enra izado n o m e s m o f u n d o mi to lóg i co i n d o - e u r o p e u 3 , e q u e a inexistência de cons t ruções específicas para o cu l to não implicava a ausência de deuses ou de u m g r u p o de sacer-dotes 4 .

As descobertas mais recentes vão n o sentido de que os autóctones teriam privilegiado certos lugares campestres para aí se dirigirem às suas divindades, inclusive através da oferenda de sacrifícios. O s deuses indígenas veneraram-se, pois, e m rios e / o u fontes, sem templos e sem imagens, consumando uma sa-cralização do espaço tribal.

E n t r e os deuses de o r igem p r é - r o m a n a ou indígena , t e r iam sido v e n e -rados na Hispânia os q u e p o d e m o s chamar tutelares: Banda , Iuna , Cosus , Arent ius , Mun i s , R e v a e Naba i , a c o m p a n h a d o s de epí te tos que var iavam de região para região 5 . N o s ú l t imos anos t ê m - s e descobe r to vários n o m e s de deuses indígenas e m diversas partes do país6.

N o Oc iden t e hispânico as divindades indígenas t êm sido classificadas, ge -ner icamente , e m divindades aquáticas, salutíferas e infernais, graças às inseri-ções epigráficas lavradas sob o d o m í n i o r o m a n o e manifestando formas de culto romanizadas7 .

N ã o se sabe se corresponder iam a deidades específicas de grupos étnicos concretos, visto os f enómenos migratórios den t ro das províncias romanas se-r em frequentes 8 . C o n t u d o , alguns deuses seriam manifes tamente específicos de u m populus, c o m o é o caso de Igaedus, deus dos Igaeditani ou de Calaicia, deusa dos Calaici.

O u t r o g rupo de divindades indígenas seria pro tec tor dos loci, castella ou vici e adorado só nesses locais9. Desconhece-se , e m geral, o sentido religioso exacto de muitas das divindades indígenas, sobre tudo quando não estavam as-sociadas a u m deus clássico.

A o nível dos primeiros séculos, verifica-se efect ivamente no O c i d e n t e peninsular uma grande variedade de teónimos, sobre tudo a nor te de Évora, enquan to para o Sul do actual terr i tório de Portugal apenas uma divindade *Ana Maria C. M. Jorge

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A P R O C U R A DO D E U S Ú N I C O

parece concentrar todas as atenções — Endovél ico , do qual nos chegam i n ú -meros tes temunhos de devoção 1 0 . Este cul to teria servido de catalizador, so -b repondo-se a out ros existentes e ilustrando, desta forma, o sincretismo reli-gioso da região. São inúmeros os tes temunhos de Endové l ico procedentes , por exemplo , de São Miguel da Mota (Alandroal)11 .

N o s séculos 11 e m ter-se-ão tornado mais comuns os templos e as aras, se b e m que n e m sempre se c o n h e ç a m as circunstâncias d o achado ou a natureza do local o n d e as inscrições se encont raram. O s únicos santuários p r é - romanos identificados arqueologicamente são os de Miróbriga e Garvão, ambos n o Alentejo.

A construção de templos aparece, pois, c o m o u m dos efeitos mais signifi-cativos do processo de romanização. C o m ela alteraram-se substancialmente os aspectos concretos das práticas religiosas ao nível do processo de acul tura-ção entre romanos e indígenas1 2 . A medida que a romanização se processou, verificaram-se diversas manifestações de sincretismo entre as divindades exis-tentes.

C o m efeito, o Impér io R o m a n o , que tinha c o m o «pano de fundo» a reli-giosidade p ro to - romana , c o m e ç o u a partir do século 11 a instalar j u n t o dos deuses romanos os novos deuses recebidos do estrangeiro1 3 . O desapareci-m e n t o dos cultos indígenas na Península poderá ter começado j á na época p ré - romana por influência dos contactos c o m os Fenícios, Gregos e Car tagi-nenses, que teriam in t roduz ido os seus sucedâneos. A o lado das divindades indígenas, u m ou t ro grupo era fo rmado pelas divindades clássicas e orientais, às quais p o d e m o s depois associar o culto imperial, c o m ampla penetração e difusão n o meio hispânico.

E provável que algumas divindades do pan teão clássico r o m a n o e alguns deuses orientais adorados em plena época romana t e n h a m sido in t roduz idos na Península na época das colonizações fenícia e grega. E graças a esta a d e -são que ho j e p o d e m o s estudar o clima religioso p r é - r o m a n o . C o m efei to , os cultos r o m a n o s persistiram e as suas manifestações r eve lam-nos que foi à maneira romana q u e as divindades p r é - romanas passaram a ser veneradas, med ian te u m verdade i ro f e n ó m e n o de s incret ismo. Este manifestava-se, aliás, na necessidade de a c o m p a n h a r o n o m e dos deuses do equiva len te r o -m a n o , para desta fornia expressar m e l h o r o seu carácter1 4 . T a m b é m são f r e -quentes os casos e m que u m deus r o m a n o leva u m epí te to indígena , p o -d e n d o ser in te rpre tados c o m o o t e s t e m u n h o de u m a ident i f icação da d iv indade antiga a u m deus r o m a n o . Pode - se estar a inda pe ran te uma a p r o -priação local de u m a div indade romana 1 5 .

A adopção de u m a divindade romana sem abandono do culto de u m a d i -vindade indígena anter ior ou a substituição de uma divindade p ré - romana por uma divindade clássica, assimiladas ou identificadas uma à outra po r inter-

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pretatio, não é, segundo José Alarcão, fácil de estabelecer16 . N ã o esqueçamos, po r exemplo , que a l íngua usada nos ex-votos era o latim e que os altares d e -viam obedecer aos cânones estéticos romanos .

Apesar de tudo , o sincretismo religioso levou a soluções diversificadas c o -m o , po r exemplo , a que se concre t izou e m Vilar de Perdizes (Montalegre) , o n d e o cul to de Larouco se fund iu c o m o de Júpi ter , cer tamente por se tratar de divindades c o m funções semelhantes, ou a do recinto cultural de Panóias (Vila Rea l , Braga), o n d e se conservam inscrições i nvocando divindades orientais, romanas e indígenas. Aqui , o cul to de Serápis uniu-se ao de outros deuses e deusas. Nes te santuário p o d e m o s distinguir, c o m efeito, vários níveis de culto17 . M e r e c e m ainda uma menção os santuários de Lamas de M o l e d o , de cabeço de Fráguas (Sabugal), de Marecos, de Valpaços e de Mogue i ra (Resende) 1 8 .

O processo de romanização mostra-nos, de uma forma geral, que R o m a não p r o c u r o u i m p o r u m a forma de vida religiosa. As formas escolhidas pelo cul to imperial são u m a ilustração desta prudência , facilitando mesmo, nalguns casos, o desenvolv imento das religiões locais.

A o nível dos cultos clássicos, a reconsti tuição dos que estavam instalados nas cidades é indispensável para se compreende r o f e n ó m e n o da difusão dos mesmos n o m u n d o rural, mas a epigrafia é manifes tamente insuficiente para esta reconsti tuição. Está p rovado que o cul to a Júpi te r foi, de todos estes cul-tos, o mais d i fund ido na Península Ibérica. Este deus era geralmente adorado c o m o Iuppiter Optimus Maximus. Há , con tudo , inscrições consagradas a j ú p i -ter sem epíteto ou c o m outros nomes: conservator, depulvor, maximus™.

N ã o é de estranhar que os cultos das divindades clássicas, entre outros, t i -vessem florescido, de m o d o particular, nas cidades20 . Du ran t e vários séculos, a Galécia e a Lusitânia estiveram abertas à penetração religiosa, f ru to de c o n -tactos vários entre civilizações, t endo por intermediários, fundamen ta lmen te , os soldados e os mercadores.

N a época imperial f loresceram na Hispânia, c o m o e m todo o m u n d o r o -m a n o , as religiões mistéricas que se caracterizavam pela procura da salvação individual. Este foi o caso da religião de Mitra , que teve devotos e m toda a Hispânia e se t o rnou a principal cor ren te religiosa n o Impér io ao lado do cristianismo, propagando-se sobre tudo entre os soldados. E m meados do sé-

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Santuário de Panóias (Vila Real). F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

t> Igreja e piscina baptismal, edificadas sobre sepulturas paleocristãs, século vi (Milreu, Estói).

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

culo 11 temos, em Mérida , u m santuário dedicado a Mitra , venerando-se este deus t a m b é m nout ros lugares da Lusitânia e da Galécia.

N o terr i tório ac tualmente por tuguês , Pax Julia parece ter sido a cidade o n d e mais faci lmente penet raram os cultos orientais: encon t ramos aqui, entre outros tes temunhos , uma placa colocada sob a invocação de Mitra2 1 . Infeliz-men te , não se pode precisar c o m segurança o local de mui tos destes achados.

E m o r d e m de importância , a Mitra seguia-se Cibeles, deusa frigia da Ásia M e n o r , da qual se c o n h e c e m várias inscrições originárias de diversas regiões da Lusitânia22. Estes vestígios p o d e m explicar-se pela abundância de escravos orientais na Lusitânia meridional e pelo comérc io desenvolvido p o r Lisboa e Mérida c o m o Or i en t e .

O cul to de Serápis t a m b é m ent rou cedo na Hispânia graças aos contactos comerciais. Este cul to coexistiu, po r exemplo , c o m o de Mitra e m Mérida e c o m o dos deuses indígenas e m Panóias.

O cul to à divindade egípcia Isis t a m b é m era uma realidade. D e v e ter sido trazido para a Hispânia na época republicana, po r mercadores q u e a c o m p a -nhavam os exércitos. Dele se conservam várias inscrições, estátuas e outros m o n u m e n t o s . A Hispânia adorou igualmente a grande deusa africana Dea Caelestis, cujos devotos e ram essencialmente escravos e libertos23 .

A penetração das religiões orientais vindas da Ásia M e n o r , Egipto, Síria, Pérsia, não é, c o n t u d o , própria do m u n d o romano ; o m u n d o grego t a m b é m já a tinha conhec ido . Para Jacquel ine C h a m p e a u x , o seu sucesso n o Impér io R o m a n o esteve relacionado c o m a natureza mística destes cultos face à «secu-ra» dos deuses imperiais24 .

A memória destes deuses chega-nos através da decoração de muitas das villae romanas. E o caso de Milreu, de São Cucufate e da Quin ta do Mar im (Olhão). O principal problema reside na datação das diferentes fases de tais villae2י׳.

O cul to imperial, nascido ao redor dos altares dedicados ao imperador no t e m p o de Augusto (cerca de 25 a. C.) , foi-se progressivamente organizando nas províncias do Impér io c o m o o indica o t emplo de Mérida , na Lusitânia, e

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serviu fundamen ta lmen te para unificar os povos da Hispânia. O s vestígios deste culto revelam-nos uma autêntica hierarquia entre as cidades. N o caso da Lusitânia, à volta de Mer ida , capital provincial, desenvolveram-se cidades c o m o Lisboa, Faro e Évora2 6 .

O culto do imperador conheceu c o m os Anton inos u m grande floresci-m e n t o na Península Ibérica, dada a vinculação desta dinastia c o m a região. O f lorescimento do culto não ultrapassou, n o entanto, o re inado de M a r c o Aurélio, não se encon t r ando dedicatórias posteriores a 17o27. E m conjugação c o m as inscrições honoríf icas ao imperador , a importância e a difusão deste culto p o d e m t a m b é m ser atestadas através das dedicatórias imperiais feitas a uma divindade pelo imperador . Paralelamente, assistiu-se ao desenvolv imento de uma teologia do culto imperial, associada à difusão das virtudes imperiais: aeternitas, pietas e saluse providentia2*.

A o longo do Baixo Impér io , R o m a , que adoptou os deuses clássicos e os deuses do Or ien te , alargando, deste m o d o , o seu panteão ancestral a novas divindades, foi-se, progressivamente, conver t endo ao cristianismo. Depa ra -mos aqui c o m uma ruptura fundamenta l relat ivamente a u m passado de p lu -ralismo religioso e de escolhas espirituais diversificadas. O cristianismo, c o m o religião oriental de iniciados que era, seguiu as mesmas vias que as demais re -ligiões no con tex to do Império2 9 . E difícil, con tudo , datar a época e m que o cristianismo, depois da conversão de Cons tan t ino , t r iunfou efect ivamente na Hispânia sobre os deuses de R o m a .

As notícias mais antigas sobre a penetração do cristianismo na Península Ibérica são as de I reneu de Lião, do fim do século 11, e de Ter tul iano, do in í -cio do século III. A m b o s falam da existência de cristandades florescentes na Hispânia.

I reneu, no seu tratado Adversas haereses, escrito entre 182 e 188, explica que a fé se transmitiu a t odo o universo apesar da diversidade de povos e l ín-guas existente. O autor faz alusão às Igrejas da Ibéria («Hae [ecclesiae] quae in Hiberiis sunt»30), subl inhando o seu vigor n o comba te contra a heresia. P o -demos, nesta base, supor que existiam já no final do século 11 comunidades cristãs organizadas e não apenas fiéis dispersos.

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A P R O C U R A DO D E U S Ú N I C O

Ter tu l iano , 2o anos mais tarde, afirma no seu Adversus Iudaeus31 que o cristianismo se tinha espalhado p o r t odo o m u n d o , m e s m o nos «Hispaniarum omnes te rmini [...] Chr is to ue ro súbdita», p o r oposição ao j uda í smo circuns-cri to a Jerusalém. Este t e s t emunho , de carácter geral c o m o o de Ireneu, dá, apesar de tudo , mais detalhes ao afirmar que os cristãos t inham chegado a t o -das as fronteiras da Hispânia. Podemos , assim, supor que aí existiam c o m u n i -dades não só nas cidades próximas do litoral mas t a m b é m n o interior . As i n -tensas relações comerciais e culturais entre a Hispânia e o resto d o Impér io ter iam cont r ibuído , sem dúvida, para uma implantação precoce d o cristianis-m o na Lusitânia.

C o m o nas out ras regiões d o Impér io , o cr is t ianismo teria p e n e t r a d o na Lusitânia r o m a n a através de duas vias pr incipais , já referidas a p ropós i t o dos cul tos anter iores : a dos mercadores e dos mar inhe i ros , pelos por tos , e a dos mercadores e dos soldados, pelas estradas3 2 . E f ec t i vamen te , as relações comerc ia i s c o m C a r t a g o e o N o r t e de Afr ica , b e m c o m o c o m o O r i e n t e b izan t ino , t êm v i n d o a ser conf i rmadas pelas escavações arqueológicas 3 3 . O exérc i to deve ter cons t i tu ído , p o r sua vez , u m i m p o r t a n t e canal de p e -ne t ração do cr is t ianismo. N ã o e squeçamos q u e os legionár ios , deslocados e m ter r i tór ios afastados dos seus, dev iam part i lhar conv icções religiosas universalistas e c o m u m for te sen t ido de sol idar iedade, a fim de se m a n t e -r e m coesos3 4 . Nes t e sent ido, t an to a rel igião de Mi t ra , a que j á f i zemos a lu-são a n t e r i o r m e n t e , c o m o o cr is t ianismo te r iam t ido u m a ampla d ivulgação en t re e les 3 ' .

O u t r a prova da penet ração do cristianismo foi a perseguição de Dioc le -ciano que , desde 303, fez mártires e m diversas cidades da Lusitânia: Mér ida , Lisboa, Ávila e Évora 3 6 são exemplos disso mesmo, adqui r indo desta fo rma uma primazia de honra n o seio da c o m u n i d a d e cristã37.

A este propósi to , é interessante notar que aqueles que passaram à história c o m o mártires v inham do me io urbano: é o caso de Eulália, e m Mérida; dos três irmãos Júlia, Máxima e Veríssimo, e m Lisboa; de Vicente , Sabino e Cris-teta, e m Ávila; e de Mânc io , e m Évora. Estamos, p rovave lmente , perante o indício de uma cristianização mais enraizada nas cidades do que n o campo, o que não nos surpreende , visto o m u n d o r o m a n o ser, antes de mais, u m m u n d o urbano . Foram, efect ivamente , as cidades q u e atraíram os pr imeiros esforços de cristianização e n q u a n t o centros de vida administrativa e eixos pr i -vilegiados das vias de comunicação .

A ausência de informações concretas sobre as^origens da penet ração do cristianismo deu lugar a toda u m a série de tradições. A primeira t em o seu f u n d a m e n t o na Carta aos Romanos, escrita entre o ano 57 e o 58, na qual São Paulo revela aos cristãos de R o m a o objec t ivo d o seu apostolado: partir para a Hispânia3 8 . Esta referência vai depois ser utilizada por J e rón imo 3 9 , A ta -násio40, Cir i lo de Jerusalém4 1 e J o ã o Cr isós tomo 4 2 , c o m o objec t ivo de ligar a Igreja da Hispânia aos t empos apostólicos. A actividade de São Paulo «até aos confins d o Ocidente», expressão consagrada para designar a Hispânia, e n c o n -trará eco, pos te r iormente , e m textos tardios de carácter lendário, sobre tudo a partir do século x4 3 .

O u t r a tradição relata a vinda de São T iago à Hispânia. A crítica histórica demonst ra que é impossível estabelecer a ligação entre este apóstolo e as Igrejas ibéricas44, visto que não dispomos de n e n h u m a referência anter ior ao século vil4 3 . O s relatos sobre a evangelização da Península por São Tiago , mani fes tamente tardios, desenvolveram-se sobre tudo duran te a ocupação m u -çulmana da Península Ibérica, a partir do século v iu . A o longo deste per íodo , a tradição sobre a pregação de São Tiago aparece relacionada c o m a desço-berta do t ú m u l o deste apóstolo e m Composte la 4 6 .

Q u e pensar t a m b é m da pregação dos sete «personagens apostólicos»? Consagrados e m R o m a pelo apóstolo Pedro , os sete enviados ter iam sido e n -carregados pelos apóstolos, duran te a perseguição de N e r o , de fundar novas Igrejas. A tradição repor ta -nos q u e eles ter iam dir igido as sete sés episcopais mais antigas da Hispânia: Torqua tus , a de Acci; Ctes i fonte , a de Vergi; Se-cundus, a de Ávila; Indalecius, a de Urci ; Cecil ius, a de Elvira; Hesiquius, a

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O Sé de Lisboa, capitéis do portal principal, S . Miguel e o dragão e os Santos olisiponenses, segunda metade do século x n .

FOTO: JORGE RODRIGUES.

de Carcesa, e Eufrasius, a de Iliturgi. A sua pregação apostólica teria or igina-do comunidades de t ipo paul ino. O d o c u m e n t o mais ant igo que menc iona estes «personagens apostólicos» é a Vita Torquati et comitum, de meados do sé-culo v iu 4 7 . O s calendários moçárabes dos séculos VIII/X fazem-lhes t a m b é m alusão e festejam os sete enviados apostólicos n o dia pr imei ro de Maio 4 8 . O m e s m o acontece c o m o Pasionario hispânico49.

A di f icu ldade de relatar as or igens da cris t ianização hispânica é u m a real idade i n c o n t o r n á v e l . As t radições de o r i g e m lendár ia não f azem mais do q u e co lmata r os si lêncios das fon tes históricas e a rqueológicas 5 0 . O s n o -mes dos «primeiros» bispos r e f l ec tem, antes de mais, a v o n t a d e de a f i rmar que a cr is t ianização da Hispânia r e m o n t a à época apostól ica . A p rópr ia f o r -m a ç ã o das lendas merece r i a ser es tudada e m si m e s m a e n q u a n t o fac to his-tór ico 5 1 .

As lendas episcopais são autênt icos mitos fundadores que servem para p reenche r as lacunas da história e legitimar a ant iguidade das Igrejas52. Elas nascem, sobre tudo , nos séculos VIII/IX, da necessidade de afirmação e legiti-mação das Igrejas peninsulares no con tex to da invasão muçu lmana , durante a qual se revelou necessário sublinhar a ant iguidade das Igrejas face aos r e c é m --chegados .

A reconst i tu ição dos porquês relativos à escolha e à qual idade dos pe r so -nagens m e n c i o n a d o s c o m o bispos para cada u m a das sés episcopais exigiria u m a invest igação ap ro fundada n o c a m p o da hagiografia e da história local, ainda p o r fazer. C o n t u d o , a crítica histórica já se p r o n u n c i o u sobre alguns dos n o m e s dos bispos relativos às origens. É este o caso de M â n c i o , que ha -b i tua lmen te era apresentado c o m o o p r ime i ro bispo de Lisboa. Efec t iva-m e n t e , trata-se de u m leigo que , chegado ao terr i tór io de Évora , teria sido forçado a práticas judias e depois mar t i r izado pelos j u d e u s naquela mesma cidade5 3 . Este leigo, h i s tor icamente atestado n o século v i / v n , foi depois i n -t r a d u z i d o na liturgia ibérica. Só a partir de 1530/1540 é que c o m e ç o u o p r o -cesso de af i rmação de M â n c i o c o m o márt i r das perseguições romanas e bis-po de Lisboa.

Foi igua lmente u m personagem histórico que, c o m o n o caso de Mânc io , deu lugar à lenda do terceiro bispo de Lisboa: Gens, u m notár io mart i r izado e m Aries, n o início do século iv54. Parece ev idente que, nalguns casos, a his-tória dos «primeiros» bispos se mistura c o m a dos pr imeiros mártires5 5 .

Este breve p o n t o da situação dá-nos conta das poucas informações c o n -cretas sobre as origens cristãs e sobre a formação, ao nível da civitas, de u m a Igreja episcopal na Hispânia. N ã o p o d e m o s conhece r a maneira c o m o os con temporâneos v iveram estes acontec imentos . Da mesma forma, é -nos difí-

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cil imaginar a difusão e a organização das comunidades cristãs entre o século pr imeiro e o terceiro, sendo, ev iden temente , precipi tado afirmar que a or i -gem dos bispados peninsulares coincide c o m a era apostólica. His tor icamente é impossível atestá-lo.

DO COMBATE CONTRA O PAGANISMO AO CONTROLO DAS «SUPERSTIÇÕES»56*

O BAIXO IMPÉRIO é uma época de mudanças significativas d o p o n t o de vistas da cristianização. Nes te con tex to , os cristãos, e m geral, e o episcopado, e m particular, foram colocados perante o desafio de aprofundar a sua ident i -dade: pr imei ro face às medidas de u m impér io pagão que lhes era hostil e, de seguida, face aos «pagãos» na altura e m que o Impér io se torna cristão.

N a perspectiva da penet ração do cristianismo, data de 254 o pr imei ro tes-t e m u n h o fiável sobre as origens de comunidades cristãs peninsulares: trata-se de u m escrito sinodal de Cipr iano de Car tago, c o n t e m p o r â n e o da persegui-ção de Décio , durante a qual alguns bispos renegaram a fé cristã. O d o -c u m e n t o remete -nos , antes de mais, para a problemática do diálogo cristia-n i smo/pagan ismo, s i tuando-nos n o âmago das tensões entre a Igreja e o pode r civil.

N ã o deixa de ser curioso, c o m o mui to b e m alertou José Mat toso , que a primeira notícia concreta de comunidades cristãs da Hispânia se refira exacta-m e n t e a u m a área marginal (a Galécia) e m relação àquela e m que o cristianis-m o pene t rou decer to mais cedo e c o m mais rapidez57 , o Sul do terr i tór io pe -ninsular (ao nível da Lusitânia).

D u r a n t e a perseguição desencadeada pe lo i m p e r a d o r D é c i o con t ra os cristãos, o b ispo de Mér ida , Marcial , e o b ispo de Leão-Astorga , Basilides, r enega ram o cr is t ianismo a fim de escapar à pena capital. Marc ia l t inha si-do acusado de celebrar b a n q u e t e s c o m os amigos e de se en t regar a práticas pagãs e m honra dos de fun tos . A a t i tude destes bispos, q u e supõe , e v i d e n t e -m e n t e , u m a vigilância t é n u e das Igrejas vizinhas sobre os responsáveis da c o m u n i d a d e , não f icou , c o n t u d o , sem resposta. O s seus colegas n o ep i sco-pado o b r i g a r a m - n o s a r enunc i a r às suas cátedras e p r o c e d e r a m à eleição dos seus subst i tutos, Félix e Sabinus5 8 . Apesar da apostasia, os acusados p r e t e n d e r a m m a n t e r a d i recção das suas sés59, o que colocava graves p r o -blemas.

Nes te sentido, as comunidades de Mér ida e de Leão-Astorga pedi ram conselho por escrito ao bispo Cipr iano de Cartago6 0 , através de u m a carta que os dois bispos recém-elei tos fo ram entregar pessoalmente. A Car tago chegaram t a m b é m outras cartas: a de u m padre de Lião, a de u m diácono de Mérida e a de u m certo Félix de Saragoça, aliás desconhecido , todas elas m a -nifestamente contrárias aos bispos apóstatas, Basilides e Marcial.

R o m a foi t a m b é m contactada sobre a questão. C o n t u d o , é a posição de Cipr iano, p revendo a deposição dos apóstatas, que t e m maior impacte na Hispânia.

Para a lém da já referida carta de C ip r i ano , as actas do C o n c í l i o de Elvira t a m b é m atestam a convivência dos bispos e de ou t ros clérigos c o m os pa -gãos, c o n d e n a n d o várias práticas resultantes de semelhan te convivência . E l -vira const i tui , pois, u m m o m e n t o capital para o c o n h e c i m e n t o d o episcopa-do no q u e diz respei to ao c o m b a t e a u m paganismo ainda florescente. Era, e fec t ivamente , a luta cont ra os cultos politeístas, para além da prob lemát ica relativa aos j udeus , que prendia as a tenções dos bispos r eun idos naque le concí l io 6 1 .

O concí l io começa por excluir da c o m u n h ã o os que , depois do bapt is-m o , c o m e t i a m idolatria (cânon 1), os Jlamines que depois do bap t i smo o fe r e -ciam sacrifícios ou oferendas aos deuses (cânones 11 e in) , os Jlamines ca t ecú-m e n o s q u e faziam sacrifícios pagãos (cânon iv), as cristãs que se casavam c o m pagãos (cânon xv -xvu) , os gent ios que dese javam fazer par te da c o m u -nidade cristã (cânon xxxix), os rendeiros pagãos de amos cristãos (cânon XL),

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*Ana Mana C. M. Jorge

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os escravos pagãos (cânon XLI), as prost i tutas pagãs que se conve r t i am (câ-n o n XLIV). A lista segue, f a z e n d o - n o s constatar que , a par do h o m i c í d i o e da forn icação, o pagan i smo aparecia c o m o u m dos pecados mais graves na Igreja de Elvira.

Através dos cânones relativos ao paganismo, ape rcebemo-nos de que a sua propagação era considerada pela hierarquia não c o m o u m prob lema pas-toral mas, antes de tudo , c o m o u m prob lema polí t ico que ameaçava directa-m e n t e a res publica Christiana. Desta fo rma se c o m p r e e n d e que o ministér io dos bispos na Ant iguidade Tardia não se distinguisse da sua acção pública, era o c o n j u n t o das suas prerrogativas sociais que comandava a sua acção contra as «superstições». O Conc í l io de Elvira deixa-nos ainda perceber que o bispo era, antes de mais, u m «colonizador espiritual». Era c o m o chefe da militia christi que ele t inha a missão de combate r a idolatria e as forças do mal. Nes te âmbi to , o concíl io faz t a m b é m referência aos hereges mas não alude a que heresias é que conc re t amen te se refere.

N o Conc í l io de Elvira os representantes da Igreja hispânica insurgiram-se ainda contra as sobrevivências do culto imperial. N ã o era de admirar que as elites locais dos séculos III/IV, m e s m o as mais cristianizadas, se vissem tentadas a participar n o cul to imperial, que se t inha to rnado u m autênt ico ritual de p r o m o ç ã o polít ico-social ao serviço da coesão do Impér io .

A partir do século iv, a Igreja hispânica, e m p leno desenvolv imento , co -m o n o - l o atesta a realização do Conc í l io de Elvira, do tou - se de limites b e m precisos: limites externos que o p u n h a m os cristãos aos pagãos, aos j u d e u s e aos muçu lmanos ; limites internos que dist inguiam os bons dos maus cristãos, os o r todoxos dos herét icos e dos cismáticos, entre os quais fo ram colocados os «supersticiosos» que praticavam formas pervertidas de religião62 .

N a sequência do Edi to de Milão, de 313, que estabelecia a l iberdade de culto, da legislação de Cons tânc io , de 341, que proibia os sacrifícios pagãos, e da oficialização do cristianismo c o m Teodós io , e m 394, impôs-se, progressi-vãmente , a adaptação dos antigos templos à nova religião. C o m o avanço do processo de cristianização, passou a ser m u i t o significativa a presença de u m santuário cristão no local o n d e existia an te r io rmente u m santuário dedicado a outros deuses.

E t a m b é m a partir dos finais do século iv que várias villae r ecebem uma construção basilical cristã, c o m o é o caso das de T o r r e de Palma (Monfor te) , São Cucufa te (Vidigueira) ou Vila Verde de Ficalho. N o N o r t e do país, ape-sar do grau de romanização ser menor , t a m b é m temos vestígios de villae tar-do- romanas cristianizadas. C o m segurança, p o d e m o s menc iona r o sítio do Prado ( te rmo de São Mar t i nho do Peso, M o g a d o u r o ) , p o r exemplo . Desta forma, dava-se às anteriores práticas religiosas u m sentido novo .

A partir de 409/411 a situação política na Península Ibérica al terou-se ra-dicalmente , c o m a penetração dos povos germânicos e, sobre tudo, c o m a fi-xação dos Suevos e dos Visigodos na Galécia e na Lusitânia, respec t ivamen-te63 . C o n t u d o , os t es temunhos con t i nuam a amalgamar crenças e rituais «supersticiosos», denunc i ando cultos idolátricos antigos64 .

P o r esta época, Paulo Orós io , inspirado p o r Santo Agost inho, c o m o indi -ca no pró logo , compôs uma obra intitulada Historiarum adversus paganos65. Pa -ralelamente à Cidade de Deus, este escrito p õ e Cris to n o cent ro da história; Ele é a salvação da história humana , que deverá el iminar do seu seio os resí-duos pagãos66 . A obra t inha, efect ivamente , c o m o object ivo a apologia do cristianismo peran te a desagregação do Impér io R o m a n o devido às invasões germânicas6 7 .

Se, c o m a propagação do cristianismo, os nomes dos diversos deuses f o -ram desaparecendo, os santos, a Vi rgem Maria e o p rópr io Cristo foram p o u -co a p o u c o desempenhando , ao nível da acção da Igreja, algumas das funções que os Ant igos atr ibuíam aos seus deuses68 . O s santos começaram, ao longo da Ant iguidade Tardia, a ser apresentados, efect ivamente , c o m o os enviados de Deus capazes de pro teger os h o m e n s das forças maléficas69 . A par disso de -senvolvem-se os rituais de bênçãos de coisas e pessoas que terão depois u m grande desenvolv imento na época mode rna .

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Apesar de tudo, a adoração dos deuses pagãos permanec ia vivaz entre os camponeses, que con t inuavam a invocá-los nos montes , nos bosques, nas fontes ou nos rios70. As fontes miraculosas, f r e q u e n t e m e n t e cristianizadas, são colocadas sob o vocábulo de u m santo, p e r m a n e c e n d o c o m o «pano de f u n -do» as divindades antigas. As práticas ancestrais persistiam sob a aparência de cultos cristãos, n o pe r íodo suevo e visigodo, c o m o n o - l o revelam os textos eclesiásticos, sendo possível de detectar nas gentes da Galécia e da Lusitânia, convert idas à nova religião, a pe rmanênc ia de e lementos o r iundos das reli-giões ditas pagãs.

N ã o p o d e m o s esquecer q u e a designação paganus — o habi tan te do pa-gus, un idade terri torial rural r o m a n a — foi utilizada desde C o n s t a n t i n o (306-337 d. C.) c o m o equiva len te do seguidor do pol i te í smo, p o r opos ição ao habi tan te da cidade. Esta palavra reveste-se, depois , de u m c o n t e ú d o a n -ticristão, resultante da fo rma c o m o foi utilizada na oratória e na prédica cristãs.

A tenta t iva de er radicação dos cul tos pagãos, mágicos e «supersticiosos» nos te r r i tór ios a crist ianizar fez c o m q u e a Igreja, ao l o n g o da A n t i g u i d a d e Tard ia , tivesse c o n d e n a d o u m g rande n ú m e r o de práticas e crenças « m e -nos claras», r e f o r ç a n d o , s i m u l t a n e a m e n t e , a sua i m a g e m de de f in ido ra da o r t o d o x i a religiosa. Já a n t e r i o r m e n t e San to A g o s t i n h o , n o seu se rmão aos rúst icos7 1 , t inha ap resen tado u m a m p l o i nven tá r io das «superstições» q u e o cristão devia evi tar .

C e r c a de 572, c o m São M a r t i n h o de Braga e D u m e , esta p rob l emá t i ca reaviva-se . O tex to do De correctione rusticorum env iado ao b ispo P o l é m i o de Astorga, e m resposta a u m p e d i d o deste7 2 , o f e r e c e - n o s u m dos mais b e -los exemplos de ca tequese p o p u l a r e m o s t r a - n o s o c o n h e c i m e n t o que o bispo bracarense t inha dos H i s p a n o - R o m a n o s . Tra ta - se de u m ve rdade i ro p rog rama de erros c o n d e n a d o s e a corr igi r . O t ex to d o De correctione é, p o r si m e s m o , r eve lador de u m a g rande i n q u i e t u d e missionária, n e m s e m p r e percep t íve l nas Igrejas hispânicas7 3 . A le i tura a tenta d o d o c u m e n t o reve la -- n o s q u e a sucessão dos assuntos não t e m o r d e m aparen te ou escala de v a -lores.

N o seu Sermão aos rústicos, o bispo de Braga refere uma grande he t e roge -

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neidade de costumes vigentes na Galécia: é o caso da adoração de certas f o r -ças da natureza (astros, pedras e águas), da prognost icação do fu tu ro a partir do m o v i m e n t o dos astros ou do v o o de certas aves, da utilização de ramos de loureiro ã porta das casas para afugentar os maus espíritos, da vocalização de certas fórmulas c o m a finalidade de aplacar a ira dos seres sobrenaturais, entre outros aspectos. Estamos, e m suma, perante variadas modalidades de «superstição» cu jo comba te e alteração de sentido por parte da Igreja parece não ter sido fácil.

O sermão de São M a r t i n h o faz-nos, ainda, pe rceber que o t e r m o «su-perstição» se revestia de u m a cono tação negativa p o r par te da elite cristã, caracter izando gestos e crenças «incorrectos», isto é, não o r todoxos . E pois impor t an t e subl inhar que , duran te a Ant igu idade Tardia , o es tabe lec imento e a difusão do crist ianismo passou m u i t o pela fo rma c o m o os clérigos dis-ce rn i ram as «superstições» e lu taram contra elas. O tex to de M a r t i n h o t ende t a m b é m a identif icar a «superstição» c o m a religiosidade dos rústicos, na qual se manifes tavam e lementos ligados a antigos cultos pré-cristãos7 4 . O pa -ganismo sobrevivia, assim, n o in ter ior do p róp r io cristianismo, p o r isso M a r t i n h o p rocura u m a b a n d o n o das sequelas do paganismo e u m n o v o e n -q u a d r a m e n t o dos fiéis cristãos75 . C o m efei to, este bispo parece ter c o n c e b i -do a conversão dos rústicos c o m o u m processo que exigia u m ultrapassar cons tante das «superstições» e de outras crenças indignas de cristãos. Mas o c a m p o das «superstições» é, e fec t ivamente , u m sector ainda p o u c o exp lora -do e que carece de estudos aprofundados , não só e m Por tugal c o m o noutras regiões da Europa .

Segundo José Mat toso , este processo de cristianização baseou-se f u n d a -men ta lmen te n u m a política que articulava três vertentes fundamentais 7 6 : a) a restrição da noção de sagrado; b) a atribuição de poderes benéficos sagrados aos santos; c) a atribuição de poderes maléficos sobrenaturais ao Diabo . Nes te sentido, a acção de São Mar t i nho revela-nos uma dimensão fundamenta l da dinâmica pastoral da Igreja de então: a luta do dia-a-dia contra as «supersti-ções», que, tal c o m o na vizinha Gália77, era tarefa levada a cabo por u m santo bispo7 8 . E neste con tex to que se desenvolve, t ambém, o culto a São M a r t i -n h o de T o u r s n o ter r i tór io da Galécia, sob a acção de M a r t i n h o de D u m e e seus sucessores. Lembremos , a este p ropós i to , o papel dos santos bispos de Mér ida protegidos por Santa Eulália, cu jo santuário era conhec ido , inclusive, na vizinha Galécia, c o m o n o - l o revela a Vida de São Fructuoso, bispo de Braga e D u m e , que chegou m e s m o a visitar o t ú m u l o da santa emeri tense7 9 .

C o m o observa Mesl in , p o d e m o s in te r rogar -nos e m que med ida o Ser-mão aos rústicos, t e s t e m u n h o ú n i c o na Hispânia , não ref lecte u m c o n h e c i -m e n t o mais l i terário do q u e conc re to das práticas pagãs que denunc ia 8 0 . Su -b l i nhe - se , n o e n t a n t o , q u e o t e x t o p o d e ser c o n f i r m a d o p o r o u t r o s d o c u m e n t o s , c o m o os cânones dos concílios8 1 e as medidas legislativas t o -madas pelos soberanos visigodos, que m e n c i o n a r e m o s de seguida, e que m o s t r a m que a acção de M a r t i n h o era actual, p e r m a n e c e n d o m e s m o até ao início do século VIII82.

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Por t o d o o Oc iden te , durante esta época, os concílios anatematizaram a divinação e condena ram as práticas pagãs e m geral: foi o caso dos concílios de Laodiceia (366), Agda (505), Orleães (511), Braga (561), Auxerre (570), N a r -bona (589), entre outros. N o caso do I Conc í l io de Braga (561), os padres conciliares condenaram, especif icamente, a astrologia c o m o prática perigosa n o cânon x83 . Todavia , entre os H i s p a n o - R o m a n o s , a luta contra a «ciência antiga» ultrapassou o limiar dos concílios para se consti tuir m e s m o e m acusa-ção diante do tribunal civil — esta foi a realidade presente na condenação de Prisciliano, c o m o veremos mais à frente .

E interessante sublinhar que, das várias espécies de magias definidas no sé-culo vil po r Isidoro de Sevilha, u m grande n ú m e r o dizia respeito à previsão do fu tu ro , o que mostra tratar-se de uma tendência séria ainda naquela é p o -ca84.

Nes ta linha vão t a m b é m os artigos da legislação do rei Ervíg io ou o p e -nitencial de Vigila, que m o s t r a m que o paganismo permanec ia , no final d o século vi l , início d o século v m , u m a real idade com que se conf ron tava a acção da Igreja8 5 .

Nes te m e s m o sentido vem ainda o II Conc í l io de Braga (572), que i m p õ e a visita dos bispos às igrejas de suas dioceses a fim de pregarem aos rústicos e comba te r em os erros e as práticas de idolatria86 . Este concíl io revela-nos, t ambém, a persistência no comba te aos «resíduos pagãos» por parte de São Mar t inho , que assumiu a sua presidência. A colecção de cânones que se lhe seguiu, organizada pelo m e s m o bispo e dirigida ao bispo Nitigisio de Lugo (Capitula Martini), cont inua e comple ta o seu comba te ímpar8 7 .

Foi t a m b é m a pensar n u m a cristianização efectiva da sociedade suévica que Mar t i nho compôs os seus escritos de carácter moral : Pro repellanda iactan-tia, De superbia, Exhortatio humilitatis, De ira, dedicado ao bispo Vi t imiro de Orense , e a Formulae vitae honestae, dedicada ao rei Miro 8 8 . Mar t inho publica ainda u m p e q u e n o tratado, De trina mersione, dirigido a u m bispo desconhec i -do, o n d e responde às críticas dos que a t r ibuem às Igrejas suévicas desvios nas cerimónias do baptismo8 9 .

D e p r e e n d e - s e da acção do nosso b ispo e da ac t iv idade conci l iar c o n -t e m p o r â n e a que a pene t r ação d o cr is t ianismo p re s supunha u m a verdade i ra técnica de o c u p a ç ã o do t e r r eno . Tra tava-se de subst i tu i r in situ o santuár io pagão pela capela cristã, s endo o acen to , ao nível da missão episcopal d u -

Igreja construída sobre o aproveitamento de um templo romano (Santana do Campo, Arraiolos).

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

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A D I N Â M I C A DA C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O D E B A T E O R T O D O X I A / H E T E R O D O X I A

ran te a A n t i g u i d a d e Tard ia , s e m p r e pos to na c o n c e p ç ã o mi l i t an te d o ke-rygma\ co lon iza r e sp i r i t ua lmen te os campos , nos quais re inava ainda o pa -gan i smo, e lutar c o m o miles christi con t ra o e r ro e o mal sob todas as formas .

O ECLODIR DA DISSIDÊNCIA: A QUERELA ARIANISTA*

S U R G I D O N O I M P É R I O R O M A N O D O O R I E N T E , O a r i a n i s m o c o n s t i t u i u m

dos m o v i m e n t o s dissidentes mais antigos d i fundidos no Oc iden te , no quadro dos debates teológicos acerca da natureza de Cristo, entre o século iv e m e a -dos do século vi. O arianismo hispânico teve a sua o r igem no Conc í l io de Constant inopla , de 360, o n d e o h o m e í s m o ant in iceno triunfara. Adverso ao credo n iceno, este m o v i m e n t o dissidente teria sido no século iv part i lhado pelo pr imei ro bispo de Lisboa, Potâmio 9 0 , p e r m a n e c e n d o todavia desconhe -eido o impacte desta corrente entre os cristãos daquela diocese. N o s sécu-los v /vi o m o v i m e n t o reapareceu e m terri tório hispânico, divulgado pelos germanos que contactaram c o m esta corrente doutr inal através do bispo Ul f i -las. Para Idácio, r econhec ido cronista daquela época, o arianismo significava a ruína da vida cristã e u m perigo ainda maior que o das próprias invasões91.

A figura de Po tâmio t em sido m u i t o abordada do p o n t o de vista da o r to -doxia9 2 . D e acordo c o m as informações fornecidas pelo De confessione uerae

fidei, escrito por dois padres de R o m a , Faustino e Marcel ino, seguidores de Lúcifer, e m 383-384, pensa-se que Po tâmio tenha professado a dout r ina de Niceia no início do seu episcopado, t endo passado, po r volta de 355, ao arianismo9 3 .

O laconismo das fontes i m p e d e - n o s de saber se, du ran te esta fase n i ce -na, ele par t ic ipou ou não no Conc í l i o de Aries de 353 — o p r ime i ro c o n c í -lio imperia l c o n v o c a d o pela au tor idade civil à qual os bispos do O c i d e n t e obedec i am — , ou ainda n o Conc í l i o de Mi lão de 355. W i l m a r t pensa que o bispo de Lisboa t o m o u parte n o Conc í l i o de Aries, mas nada pe rmi t e p r o -vá- lo .

O texto do De confessione cont inua c o m a referência da apostasia de Po tâ -mio . C o n t u d o , c o m o refere M o n t e s Morei ra , é preciso ter prudência na in -terpretação do relato, sobre tudo no que diz respeito aos detalhes fornecidos, dado o carácter panfletário e a proveniência luciferina do De confessione uerae

fideP4. E m todo o caso, no m o m e n t o da sua apostasia, Po tâmio parece ter assinado u m d o c u m e n t o de carácter herét ico, p rovave lmente a fórmula de S i rmium, de 357. E n q u a n t o a maioria do episcopado ocidental era fiel ao n i -ceísmo, Po tâmio , a companhado de Saturnino de Aries e de Pa te rno de Pér i -gueux, abandonava-o 9 5 .

U m c o n t e m p o r â n e o de Po tâmio originário da Gália, Febádio de Agen, ao comen ta r certos aspectos cristológicos da fórmula de 357 no seu Contra arianos, fala t a m b é m de Potâmio 9 6 , acusando-o de ter part icipado na assem-bleia de Si rmium 9 7 . Todavia , M o n t e s Moreira sublinha que «Se as i n fo rma-ções de Febádio permi tem afirmar que e m 357 Potâmio desempenhava u m pa-pel de relevo n o seio do part ido ariano, n o m e a d a m e n t e através das suas p roduções literárias, é n o entanto difícil fornecer outros dados concre tos so-bre a sua actividade e m favor da heresia.»98

Hilário de Poitiers vai b e m mais longe que Febádio, a t r ibuindo várias ve -zes a Po tâmio a redacção da fórmula de S i rmium no seu Liber de synodis, 3 " . Subl inhemos, especialmente, no n.° 11 a maneira c o m ele transcreve a f ó r m u -la, in t i tu lando-a «Exempla blasphemiae apud Si rmium per O s i u m et Po ta -m i u m conscriptae»100 .

Ainda segundo M o n t e s More i ra , as afirmações de Hilário são exageradas e a crítica histórica não nos permi te ir tão longe1 0 1 . Este ú l t imo t e s t emunho não acrescenta, po rém, nada de n o v o à nossa problemática. C o m efeito, no estado actual da documen tação é impossível definir o papel desempenhado exactamente por Po tâmio e m Si rmium. O s historiadores estão divididos n o

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*Ana Mana C . M . Jorge

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que a isso respeita. N o entanto , a participação de Po tâmio naquela assembleia conciliar põe e m evidência as relações en t re a cidade de Lisboa e o O r i e n t e no relativo à questão ariana, graças ao Medi te r râneo , que servia de canal de comunicação entre os «dois mundos». P o d e m o s admitir , igualmente , que o manifesto de 357 tenha circulado c o m o n o m e do bispo de Lisboa102 e que este tenha part icipado na difusão do documen to 1 0 3 .

A intervenção de Po tâmio na questão do papa Libério, no início de 357, atesta q u e ele estava j á c o m p r o m e t i d o n o m o v i m e n t o ariano, antes m e s m o do Conc í l i o de S i rmium 1 0 4 . S e g u n d o M o n t e s More i r a , as reacções a t r ibu í -das p o r Hilár io ao bispo da diocese de Lisboa a p ropós i to do c o n t e ú d o d o Studens paci105, n o qual Libér io c o m u n i c a aos bispos orientais, e m pr incíp ios de 357, q u e abandonava a c o m u n h ã o c o m Atanásio, mos t r am b e m que P o -tâmio estava descon ten te c o m a a t i tude talvez demasiado tardia do papa: «sed po tamius et Epi te tus , d u m d a m n a r e urbis R o m a e ep i scopum g a u -dent»1 0 6 . Isto indica que o a b a n d o n o do n ice ísmo p o r P o t â m i o não cons t i -tui p rob lema .

E m resumo, as af irmações/acusações do De confessione p e r m i t e m afirmar que o nosso bispo se manteve n iceno pelo menos até ao Conc í l io de Mi lão de 355. C o m efeito, a apostasia de Po tâmio teria t ido lugar p o u c o antes do exílio de Ósio de Córdova , que o t inha denunc iado ao episcopado ibérico, l evando-o a apresentar queixa ao imperador 1 0 7 .

Du ran t e a sua fase ariana, sempre de acordo c o m as informações fo rnec i -das pelo De confessione uerae fidei escrito pelos padres luciferinos de R o m a , Po tâmio teria m e s m o recebido uma uilla das mãos do imperador c o m o «recompensa» pelo facto de se ter colocado ao lado dos arianos108 .

È lastimável não p o d e r m o s conf i rmar todas estas informações através de outras fontes. Todavia , parece-nos evidente que a condu ta do bispo de Lis-boa e m matéria de fé tenha levantado suspeitas. Senão, c o m o refere M o n t e s Morei ra , não se percebe p o r q u e é que os luciferinos se teriam interessado e m denegrir a imagem de P o t â m i o se ele se tivesse man t ido sempre fiel ao n i -ceismo 109

Mais tarde, po r volta de 359, p rovave lmen te depois do Conc í l i o de R i -mini , P o t â m i o vo l tou ce r t amen te à o r todox ia de Nice ia , c o m o o mostra a carta p o r ele dirigida a Atanásio. A oposição ent re os escritos de P o t â m i o de t ipo ar iano e o n ice ísmo da sua Epistula ad Athanasium dá lugar a in te rp re ta -ções contradi tórias: os apologistas da o r todox ia do bispo de Lisboa negam o valor das notícias que p õ e m a tónica n o seu ar ianismo; p o r o u t r o lado, os que d e f e n d e m o ar ianismo do bispo de Lisboa a f i rmam que a Epistula deve ser an ter ior a 357110. D e qua lquer forma, t emos consciência de q u e o r e t o r -no à o r todox ia não teria estado isento de impl icações canónicas. Sabemos que o Conc í l i o de Alexandria , de 362, b e m c o m o os ou t ros concí l ios da restauração nicena, decidi ram man te r à cabeça das suas sés todos os q u e se t i nham retractado, à excepção dos que d e s e m p e n h a v a m cargos relevantes, n o m e a d a m e n t e de di recção, n o par t ido ar iano 1 1 1 . Este parece ter sido o ca -so de P o t â m i o . Mas, po r paradoxal que pareça, o nosso bispo man t inha o p leno exerc íc io das suas funções episcopais n o m o m e n t o da redacção da Epistula ad Athanasium e do De substantia, b e m c o m o na fase pos ter ior aos acon tec imen tos de 357. Todav ia , a incerteza n o q u e diz respei to à data exacta d o seu r e t o r n o à o r todox ia deixa e m aber to a questão canónica da sua eventua l deposição 1 1 2 .

Se o De substantia e a Epistula ad Athanasium sus tentam f o r m a l m e n t e o n ice ísmo de P o t â m i o , não p o d e m o s dizer o m e s m o d o De Lazaro ou do De Isaia. Nestas homilias, nada nos r e m e t e para a defesa de posições arianas ou próximas do ar ianismo. C o n t u d o , elas t a m b é m não ref lectem, ao nível d o seu c o n t e ú d o , qua lquer t o m a d a de posição clara n o p lano da teologia t r in i -tária. Apesar de t udo , as designações Filius, Deus, Salvator et Dominus a t r i -buídas a Jesus n o De Lazaro seriam, e m rigor, susceptíveis de in te rpre tação ariana. C o m efei to, «os arianos a t r ibuíam estes a t r ibutos t a m b é m a Cr i s to sem, c o n t u d o , os i n t e rp re t a rem e m sent ido estrito e, p o r consequênc ia , sem admi t i r em rea lmen te a sua divindade»1 1 3 . Para M . Mesl in , o exce r to do De

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Lazaro sobre as lágrimas de Cr is to — «Flebat Deus m o r t a l i u m lacrimis exc i -tatus»114 — aprox ima-se das teses he te rodoxas relativas à psicologia h u m a n a de Cris to , sem que P o t â m i o tivesse visto nisso u m a marca da infer ior idade onto lógica do Filho1 1 5 . S imone t t i e M o n t e s More i ra 1 1 6 são m e n o s a f i rma-tivos.

Para além dos escritos já referidos, Po tâmio redigiu outros não só quando defendia o niceísmo, mas t a m b é m na época e m que militava no part ido aria-no . Destes escritos, infel izmente perdidos, só u m p o d e ser identif icado c o m segurança: a Epistula citada por Febádio d 'Agen no qu in to capítulo do seu Contra Arianos117.

D e uma maneira geral, p o d e m o s dizer que o apostolado literário de Po tâ -m i o esteve ao serviço de u m a das maiores controvérsias religiosas do Baixo Império: a querela arianista que reben tou entre o Conc í l io de Niceia (325) e o de R i m i n i (359). C o m Potâmio , Lisboa inscreveu-se efect ivamente na grande controvérsia doutr inal entre arianos e nicenos, os primeiros negando a verdadeira divindade de Cristo, os segundos af i rmando-a de acordo c o m os cânones do Conc í l io de Niceia . N o entanto , é preciso reconhecer que o es-pecíf ico do arianismo não era a negação da Tr indade , mas o r econhec imen to estrito da divindade do Pai118 , recusando-se a aceitar que o filho t a m b é m era Deus.

Para concluir , a acção episcopal de Po tâmio inscreveu-se, efect ivamente , no âmbi to do debate e m t o r n o do arianismo, precedido e con t inuado por duas fases nicenas, c o m o referimos an te r iormente . Nestas fases, e n o segui-m e n t o dos escritores o r todoxos seus con temporâneos , Po tâmio p rocu rou , an -tes de mais, dar u m a solução ao problema que residia na consubstancialidade entre o Filho e o Pai, negada por Ario. A sua profissão de fé na Tr indade foi, aliás, clara nas suas fases nicenas: «Ergo Patris et Filii et Spiritus sancti una substantia est»119, e a sua a rgumentação não podia ser mais evidente , insistin-do sempre na ques tão-chave que era a da consubstancialidade — «Méri to una Patris et Filli substantia est.»120

Neste con tex to , d a m o - n o s conta de que evangelizar significava acima de tudo concretizar a doutr ina e que o arianismo a c o m p a n h o u , c o m o b e m o su-b l inhou E. Leach121, a t ransformação do cristianismo e m religião de Estado. Nes te sentido, a obra literária de Po tâmio manifesta não apenas o núc leo das preocupações pastorais da época mas t a m b é m u m tipo de evangelização e m que as formulações doutrinais b ro t am da gesta episcopal.

O debate e m to rno do arianismo no f im do século iv, e m plena época romano-cr is tã , vai ser t ransportado e / o u recuperado logo nos séculos v /vi pelos povos germânicos, Suevos e Visigodos, aquando da sua chegada e insta-lação na Galécia e na Lusitânia. Efect ivamente , foi c o m os Suevos e Visigo-dos, que , entre 466 e 589, o arianismo se t o r n o u a religião do g rupo de ten to r do pode r polí t ico na Hispânia.

A o nível do re ino visigodo, na segunda metade do século vi, Leovigildo chega m e s m o a fundar o seu programa no arianismo, p rocurando , desta fo r -ma, fundamen ta r a unidade política na unidade religiosa. A conquista do rei -n o suevo por Leovigildo levaria à abjuração do catolicismo por parte de al-guns bispos do N o r t e , c o m o é o caso do bispo do Por to e do de Viseu. N o t e m p o de R e c a r e d o , o arianismo resistia ainda na Lusitânia, apesar de os bis-pos arianos o t e rem abjurado n o III Concí l io de To ledo , e m 589.

C o m efei to , a instalação dos Suevos e dos Vis igodos na Hispânia pôs e m con t ac to não só duas c o m u n i d a d e s (a r o m a n a e a germânica) mas t a m -b é m duas profissões de fé distintas (o ca tol ic ismo de Nice i a e o ar ianismo); estas apresen tavam-se , r e spec t ivamente , c o m o a fides romana e c o m o a fides gótica. O es tudo destes contac tos , f r e q u e n t e m e n t e dolorosos , q u e não p o -"demos tratar aqui e m de ta lhe mas para os quais c o n v é m chamar a a tenção , to rna-se difícil p o r causa d o desapa rec imen to dos escritos arianos — t e o l ó -gicos, l i túrgicos e disciplinares — de o r i g e m visigótica. Para p r e e n c h e r este vazio é necessário r eco r re r aos textos p r o v e n i e n t e s de c o m u n i d a d e s arianas do O c i d e n t e la t ino da época i m e d i a t a m e n t e an te r ior às invasões g e r m â n i -

122 cas .

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Após o século v , e de acordo c o m as informações de Paulo Orós io e de Idácio, verifica-se, n u m pr imei ro m o m e n t o , uma certa «convivialidade reli-giosa» ent re H i s p a n o - R o m a n o s e Germanos , graças aos contactos p e r m a n e n -tes, inclusivamente aos casamentos mistos, entre as duas gentes1 2 3 .

C o n t u d o , a part ir de meados do século vi, as relações en t re os arianos e o clero catól ico c o m e ç a r a m a deter iorar-se . Apesar da popu lação h i spano-־ r o m a n a ser essencialmente católica, surgiram, que r na Galécia q u e r na L u -sitânia, vários focos de tensão religiosa e social e várias disputas en t re ca tól i -cos e arianos. U m a delas foi encabeçada p o r J o ã o de Biclara, natural de Scallabis, outra p o r Massona de Mér ida , t e n d o valido a ambos o desterro n o t e m p o de Leovigildo. Este ú l t i m o conf l i to teve lugar duran te os derradeiros anos do re inado de Leovigildo, p o r volta de 570, e teve c o m o cenár io a Igreja de Mér ida . S e g u n d o as Vitae sanctorum patrum emeritensium, trata-se de u m conf l i to en t re o rei e o b ispo e, p o r m e i o destes, en t re os arianos e os católicos1 2 4 .

Leovigildo p rocu rou construir a unidade política do seu reino, c o m o já o referimos atrás, sobre a unidade religiosa. N o entanto , os seus planos para conver te r o reino ao arianismo viram-se contrariados pelo metropol i ta de Mérida, Massona, que representava os cristãos fiéis ao credo de Niceia. E m reacção à oposição daquele bispo, Leovigildo n o m e o u para a Sé de Mér ida Sunna, que se t o r n o u u m dos prelados mais combat ivos do g rupo ariano. O s documen tos conhec idos até ho j e não nos pe rmi t em saber se Sunna foi ou não o pr imei ro bispo ariano da cidade; não p o d e m o s t a m b é m afirmar se a sé ariana estava vacante há m u i t o ou p o u c o t e m p o e, c o m o sugere Alonso Campos , que a eleição de Sunna tivesse significado uma restauração desta diocese1 2 5 .

E m t o d o o caso, n o m e a n d o Sunna, o rei t oma de u m a fo rma decisiva par t ido contra os católicos e chama à sua causa o sector ar iano da cidade. E assim que o v e m o s forçar a Igreja Catól ica a ceder ao clero ar iano várias igrejas c o m os seus respectivos pat r imónios 1 2 6 . Lembremos que , an te r io r -m e n t e a este confl i to , de aco rdo c o m as in formações das Vitae sanctorum pa-trum emeritengium, os arianos, dirigidos pe lo bispo Sunna , t inham já o c u p a d o algumas igrejas de Mér ida para aí instalar o seu clero. N a sequência desta política, Sunna procura ocupar a Basílica de Santa Eulália, que t inha até e n -tão escapado ao con t ro lo dos arianos1 2 7 . Esta escolha foi p o u c o neutral , c o m o b e m sublinha Collins1 2 8 , f azendo eclodir a oposição violenta do a rce-bispo o r t o d o x o de Mér ida , Massona. Este ú l t imo consegue levar o rei a sus-citar u m c o n f r o n t o públ ico en t re os dois bispos n o atrium da Igreja de Santa Eulália. D e acordo c o m o vered ic to dos ju ízes designados pe lo monarca , a Basílica de Santa Eulália devia ser en t r egue ao vencedor . Este j u l g a m e n t o públ ico , decor r ido na presença do povo , t e s t emunha a r ivalidade ent re os dois poderes concor ren tes na cidade: o do clero ariano, apo iado pelo rei, e o do bispo católico1 2 9 .

Silhar em mármore, no qual estão representados dois cervídeos e uma ave-do-paraíso enquadrados por um conjunto de arcos em ferradura, século x(?) (Lisboa, colecção do cabido da sé).

[> Lucerna paleocristã de Tróia de Setúbal, com a cena bíblica dos Exploradores de Canaã. Desenho existente na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora (seg. reprodução feita por Leite de Vasconcelos).

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Massona foi o grande vencedor1 3 0 . A derrota do arianismo reforçou, ao mesmo tempo, o poder do bispo católico que, protegido por Santa Eulália, j u n t o a q u e m a vitória tinha decorrido, readquire o seu ascendente sobre os hispano-romanos da cidade. Isto não impediu o rei de prosseguir os seus objec-tivos de implantação do arianismo, condenando ao exílio o bispo católico131.

Alguns anos mais tarde, depois de Massona ter regressado do exílio, M é -rida tornou-se mais uma vez o cenário de conflitos entre católicos e arianos que envolveram vários nobres da Lusitânia. E o caso do dux Lusitaniae C lau-dius, que t o m o u a defesa do bispo132.

Na perspectiva da história religiosa, todos estes conflitos devem ser en -tendidos c o m o expressão de uma efectiva luta religiosa na qual o credo cató-lico e o credo ariano eram utilizados c o m o armas políticas. N u m a perspectiva mais alargada, podemos considerar estes conflitos o reflexo de u m encont ro problemático entre duas culturas, a dos H i spano -Romanos e a dos Godos1 3 3 . E m suma, podemos concluir que as divergências da interpretação da fé fo -ram, desde o século iv, progressivamente substituindo o conf ron to entre os deuses, e que a heresia passou a ser uma questão, essencialmente, de clérigos e de intelectuais, c o m o veremos na alínea seguinte sobre o priscilianismo134.

O REPTO DO PRISCILIANISMO E A EMERGÊNCIA DE «NOVAS» CORRENTES HETERODOXAS*

CONTEMPORÂNEO DA HETERODOXIA ARIANA, e m f inais d o s é c u l o iv , o p r i s -cilianismo foi divulgado na Lusitânia por Prisciliano, bispo de Ávila. E Sulpí-cio Severo q u e m nos fornece as informações mais completas sobre o prota-gonista deste movimento 1 3 5 .

A crónica de Sulpício Severo diz-nos, com efeito, que Prisciliano era de or igem nobre , o que não o impediu de praticar u m ascetismo rigoroso. N o que respeita às suas origens geográficas, o silêncio do cronista, como, aliás, o de outras fontes contemporâneas, é absoluto. Podemos apenas supor que Prisciliano era originário da Lusitânia do Sul, talvez de uma região próxima da fronteira c o m a Bética (o que pode explicar que uma das primeiras reac-ções face a esta corrente tivesse vindo de Higinius, bispo de Córdova, na B é -tica). A questão permanece em aberto. Alguns autores mais tardios avançaram a hipótese de Prisciliano ter nascido na Galécia, em data desconhecida, dei-xando mais tarde esta província para passar à Lusitânia. Esta suposição poderá encontrar a sua justificação no facto de o priscilianismo se ter desenvolvido consideravelmente na Galécia.

A doutrina pregada por Prisciliano aos seus adeptos compreendia essen-cialmente o j e j u m dominical durante todo o ano, u m retiro durante o A d -vento e a Quaresma, o desprezo dos bens deste m u n d o e o conhec imento aprofundado da Sagrada Escritura. Segundo o tes temunho de Je rón imo, estes ensinamentos faziam-se nos oratórios das casas privadas. Este corpus doutrinal integrava t ambém a exigência da continência para a hierarquia, de acordo c o m o prescrito pelo Concíl io de Elvira.

Ainda segundo o já citado tes temunho de Je rón imo, Prisciliano teria aprendido a magia através de leituras136. Esta informação é corroborada tam-b é m por Sulpício Severo137 , que acrescenta que ele teria tido c o m o mestres naquelas artes u m certo Ágape e u m certo Helpidius, os dois discípulos de Marco de Mênfis1 3 8 , que habitava na cidade do mesmo nome, reputada co-m o centro de artes da magia. Isidoro de Sevilha re toma estas informações no seu De uiris illustribus, quando menciona o opúsculo de u m bispo denomina -do Itácio, o C/aro139. A obra citada refere t ambém que Prisciliano aprendeu a magia c o m Marco de Mênfis, discípulo directo de Mani . E provável que Prisciliano tenha aprendido estes ensinamentos no Egipto, região c o m a qual a Península Ibérica tinha relações, mas podemos pensar t ambém que tudo is-to não passava de suposições dos autores. Re tenhamos , fundamenta lmente , *Ana Mana C. M Jorge

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que Prisciliano recebeu c o m mui ta probabil idade u m a cultura leiga durante a sua j u v e n t u d e . Nesta fase da vida ele deve t a m b é m ter lido os apócrifos que circulavam na Hispânia1 4 0 .

Para além das referências feitas, os t es temunhos disponíveis não nos adiantam nada mais sobre o m o d o de vida de Prisciliano, e os raros escritos que lhe são atribuídos não acrescentam t a m b é m nada mais de concre to . N e s -te sentido, os silêncios da história p o d e m explicar parcia lmente muitas das construções da historiografia eclesiástica, que até ao nosso século considerou Prisciliano c o m o u m herét ico. C o m efeito, a questão da or todoxia e da h e t e -rodoxia t em sido até ho je o pivot de toda a reflexão e m to rno deste autor1 4 1 .

N o s escritos sobre Prisciliano aparecem c o m o u m a constante as acusações de maniqueísmo 1 4 2 e de gnosticismo1 4 3 . Tratar-se-ão, efect ivamente , de duas bases essenciais do priscilianismo? E difícil responder a esta questão. A invés-tigação que põe a tónica nestes temas baseia-se, e m geral, nos escritos prisci-lianistas; é o caso dos tratados compilados n o Corpus de PVurzburg144, na sua maioria posteriores à mor t e de Prisciliano145 . C o n t u d o , é fundamenta l t e rmos presente que, se as teses contidas nestes escritos se enraízam nas ideias desen-volvidas pelo própr io Prisciliano, estes escritos repor tam-se a práticas obser -vadas pelos priscilianistas, sobre tudo na Galéria1 4 6 . É , pois, fundamenta l dis-t inguir na análise do dossier priscilianista u m a primeira fase, limitada à vida de Prisciliano, e uma segunda fase posterior à m o r t e do nosso bispo, isto é: o per íodo de desenvolv imento das suas ideias na província eclesiástica vizinha. Assinalemos, s implesmente, que foi durante esta etapa histórica do priscilia-nismo na Galéria que se desenharam as relações entre esta província do N o r -te da Península e a Aquitânia, c o m o b e m o subl inhou J. Fontaine1 4 7 . N ã o esqueçamos que, após a m o r t e de Prisciliano, as acusações de man ique í smo e gnosticismo se d i fund i ram amplamente fora do quadro peninsular, c o m o o revelam as obras de Agost inho e Próspero de Aquitânia1 4 8 .

C o m o nota José Mattoso, as acusações de gnosticismo e de man ique í smo formuladas por Santo Agost inho e outros autores, b e m c o m o as de magia, de doutr inas perversas e de práticas obscenas que foram pre texto para a c o n d e -nação de Prisciliano149 , representam, antes de mais, as reacções a uma in te r -pretação religiosa adaptada às gentes dos campos1 5 0 .

E u m a realidade que o principal resultado da acção de Prisciliano consis-tiu na criação de u m a nova concepção de vida cristã na Lusitânia, reforçada, depois, pela acção dos bispos priscilianistas na Galéria. A infiltração destas ideias nas zonas rurais faz pensar na existência aí de «um cristianismo» m e n o s cont ro lado pelo episcopado local.

A própria fo rma vaga c o m o a doutr ina de Prisciliano foi mais tarde in te r -pretada resultou do facto de se tratar de u m f e n ó m e n o p r e d o m i n a n t e m e n t e rural e de os inter locutores do confl i to serem h o m e n s de cultura citadina, c o m uma mental idade inspirada nas ideias estóicas que dif ici lmente podia admitir as crenças às quais Prisciliano dava rosto.

U m a das acusações feitas a Prisciliano foi ter levado os cristãos das cidades a deslocarem-se para as villae retiradas n o campo. Supõe-se que Prisciliano tenha sido m e s m o proprietár io de algumas villae ou que estas estivessem si-tuadas nos domín ios de amigos seus. Mas quantas villae priscilianistas ter iam existido? O n d e se situavam? E preciso reconhecer que não existe, a este p r o -pósito, qualquer documen tação esclarecedora1 5 1 . T a m b é m não c o n h e c e m o s n e n h u m a villa cujos vestígios arqueológicos façam pensar que ali t ivessem tido lugar práticas priscilianistas.

Finalmente, ao nível do processo de incul turação do cristianismo p o r Prisciliano e seus seguidores, p o d e m o s constatar u m pe rmanen te c o n f r o n t o c i d a d e / c a m p o que cer tamente est imulou, po r u m lado, a cristianização e, p o r outro , gerou divisões internas. C o m efeito, as práticas priscilianistas ter iam cont r ibu ído para a expansão do cristianismo nas regiões rurais q u e escapavam na maioria dos casos à esfera de influência das cidades.

Conc re t amen te , a questão priscilianista surgiu p o r volta de 378/379 q u a n -do Higinius, bispo de Córdova , se dirigiu a Idácio, bispo de Mér ida e m e t r o -polita da Lusitânia, para lhe sugerir que tomasse posição face a u m m o v i m e n -

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to desencadeado por u m g rupo de leigos naquela região152 . Segundo ele, aqueles leigos ensinavam doutrinas de t ipo gnóst ico e maniqueísta e viviam u m ascetismo rigoroso. Idácio de Mér ida t o m o u a sério este repto, desenca-deando o comba te a Prisciliano c o n j u n t a m e n t e c o m Itácio de Faro.

Por volta de 380, o m o v i m e n t o priscilianista foi repr imido no Conc í l io de Saragoça. Faltam ao tex to do concíl io as assinaturas, que ter iam sido o m i -tidas e m data desconhecida1 5 3 . Apesar da designação das sés não ser referida, p o d e m o s reconhecer os participantes da Lusitânia graças ao pró logo do texto conciliar: Itácio de Faro e Idácio de Mérida 1 5 4 , metropol i ta da Lusitânia. U m e ou t ro desempenharam u m papel impor tan te n o Conc í l io de Saragoça, dado a fo rma comprome t ida c o m que part iciparam n o debate priscilianista.

A presença dos bispos da Aquitânia (Delphinus, bispo de Bordéus e Febá-dio d 'Agen) naquele concíl io mostra que esta questão interessava t a m b é m àquela região, e atesta que a pregação de Prisciliano se t inha estendido não apenas ao N o r t e da Hispânia mas t a m b é m ao Sul da Gália. Saragoça, devido à sua situação geográfica na Bética, foi escolhida c o m o local privilegiado para a realização de u m a assembleia episcopal dos bispos galo-hispanos, que teve c o m o principal object ivo resolver a questão priscilianista155. N ã o teria a Bé t i -ca estado sempre ao cor rente do desafio priscilianista? T u d o indica que sim.

A participação dos bispos n o concíl io revelou uma verdadeira communio episcopal1 5 6 e manifes tou u m esforço notável de dar cont inuidade a acções conjuntas a fim de garantir a or todoxia . Desta forma, t o m a m o s consciência de que para aqueles bispos a diocese não era u m terri tório isolado e a part ici-pação nos concílios era u m a autêntica fon te de inspiração para o seu labor pastoral. E nesta perspectiva que deve ser en tend ido o cânon 5 do Conc í l io de Saragoça157 .

N a realidade, n e m a proximidade geográfica, n e m a organização da hierar-quia eclesiástica explicam a reunião de Saragoça. Nela podemos ver, c o m o o b -

Frescos da basílica paleocristã de Tróia, séculos rv-v (Setúbal). F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

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jectivo comum, o desejo de confundir os priscilianistas e de pôr fim às pertur-bações que aqueles causavam nas comunidades cristãs da Galécia e da Aquitânia. Não é certamente u m acaso que o nome de Prisciliano e dos seus discípulos não apareça uma única vez nos cânones do concílio. T a m b é m não é mencionado o n o m e de n e n h u m outro movimento dissidente. Neste sentido, como refere Griffe, «[...] é certo que os termos por vezes sibilinos mas sempre moderados, dos cânones proclamados pelos bispos reunidos em Saragoça não deixavam prever os acontecimentos dramáticos ocorridos em Tréves [...]»158.

C o m efeito, o que domina no Concí l io de Saragoça é uma clara t endên-cia antiascética e antipriscilianista. O cânon 1 deste concílio faz mesmo alusão, na nossa opinião, à prática ascética priscilianista que envolvia uma participa-ção feminina significativa159. Os cânones 2 e 4 pro íbem as reuniões litúrgicas nas villae e exortam os fiéis a manterem-se unidos à Igreja episcopal"'".

Por seu lado, o cânon 7 menciona, provavelmente para combater o ensi-no por parte dos leigos no mov imen to priscilianista, que a investidura de u m doctor devia ser canónica161 . C o m o sabemos, era normal no século iv que o doctor fosse u m bispo e não u m clérigo, ou mesmo u m leigo, c o m o era o caso de Prisciliano antes de ter recebido a ordenação episcopal162. O que está e m causa é, efectivamente, o controlo eclesiástico. Por isso, o concílio insiste na condenação de todo o ensino ministrado fora do quadro das instituições de ensino e catequese eclesiásticos. As reacções conciliares visavam ainda o «ma-gistério privado» que o bispo de Ávila desempenhava ao nível dos seus trata-dos, condenando toda e qualquer possibilidade de interpretação da Escritura fora do quadro oficial da Igreja.

E evidente, t ambém, que o j e j u m condenado pelos participantes do c o n -cílio visava a prática priscilianista atestada nesta mesma época, aliás, t ambém por Agostinho1 6 3 . E m suma, podemos ver aqui a intensa preocupação de u m episcopado compromet ido de forma directa no desenvolvimento da vida cris-tã na Hispânia.

Finalmente, se o Concíl io de Saragoça condenou as práticas cristãs desen-volvidas à margem das Igrejas locais, em assembleias no contexto das villae, será que pronunc iou condenações pessoais? De acordo com o texto conciliar parece que não. E m contrapartida, Sulpício Severo refere o concílio c o m o indiciam sacerdotale para acentuar o combate levado a cabo pelo episcopado contra os «heréticos»164.

Na sequência do Concíl io de Saragoça, em 381, Idácio de Mérida e Itácio de Faro, interessados em impedir o progresso da «seita», denunciaram a Gra-ciano o mov imen to priscilianista. Visando Prisciliano e os seus seguidores, o imperador publicou imediatamente u m édito ordenando a expulsão dos «he-réticos» daquelas Igrejas165.

Acusados em Tréves do crime de malefiáum e de práticas religiosas obsce-nas, Prisciliano e quatro dos seus discípulos são aí condenados à mor te e exe-cutados. Para além disso, alguns dos seus acompanhantes são condenados ao exílio166.

De acordo c o m o tes temunho de Idácio, o bispo de Ávila foi executado em Tréves em 387, vindo, no seguimento da sua condenação, a Galécia a ser invadida pelas ideias priscilianistas. Estes acontecimentos são para este autor, no seu estilo combativo, reveladores da «heresia»167.

Para além da referência à difusão da doutrina priscilianista, o tes temunho de Sulpício Severo diz concretamente que, no seguimento dos acon tec imen-tos de Tréves, o culto de Prisciliano se expandiu na Hispânia168. Esta notícia poderá reflectir a necessidade, sentida no Nor te da Península Ibérica, de «in-ventar» os seus mártires e «alimentar» assim, espiritualmente, as comunidades, tendo, simultaneamente, relíquias disponíveis para a consagração dos edifícios de culto169 .

Segundo esta tradição, os restos mortais de Prisciliano teriam sido deposi-tados em Astorga, por volta de 396. O metropoli ta da Galécia, Sinfósio, to r -nar-se-ia, aliás, o principal herdeiro espiritual de Prisciliano, e a cidade de Astorga um pólo de atracção de inúmeros peregrinos que v inham rezar aos túmulos dos «mártires» priscilianistas.

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O Concí l io de T o l e d o realizado e m 400, depois da execução de Priscilia-n o e m Trèves, situa-se na mesma perspectiva do combate à heresia travado desde o século iv. A sua presidência foi assumida por Patruino, bispo de M é -rida e metropol i ta da Lusitânia170.

U m a parte significativa do concíl io foi consagrada ao priscilianismo, cu jo principal representante n o século v parecia ser Sinfósio de Astorga, apoiado por seu filho Dictinius1 7 1 . O Concí l io de T o l e d o de 400 é, po r si só, revela-dor dos problemas das Igrejas hispânicas naquele virar de século.

N ã o se deve, de forma alguma, confund i r situações e problemas anter io-res e posteriores às execuções de Trèves. C o m efeito, o Conc í l io de T o l e d o de 400 refere-se, acima de tudo , ao desenvolvimento do priscilianismo na Galécia. N o entanto , é preciso lembrar que este ú l t imo concíl io p rocu rou garantir a or todoxia na Hispânia admi t indo o c redo e a disciplina do C o n c í -lio de Niceia . Foi o caso das Regulae fidei catholicae contra omnes haereses et quam maxime contra Priscillianosm, da responsabilidade de vários bispos hispâ-nicos ali presentes e enviadas a Balcónio, metropol i ta da Galécia, para este as comun ica r a toda a província . O que estava ve rdade i ramen te e m causa era o m o d e l o h ie rárquico da Igreja privi legiado e m Niceia e que se o p u n h a a t o -da e qualquer outra concepção da vida cristã, n o m e a d a m e n t e à organização da Igreja pela comunidade 1 7 3 .

Apesar de tudo, as decisões do Concí l io de T o l e d o não conseguiram pôr fim ao m o v i m e n t o priscilianista: este con t inuou a expandir-se no seio das p o -pulações do Noroeste 1 7 4 . Po r volta de 530, duas cartas de M o n t a n o de T o l e -do dizem que, e m diversas igrejas de Palência, não m u i t o longe de Astorga, existia o cos tume de celebrar Prisciliano entre os santos. C o n t u d o , o bispo de T o l e d o censurava os cristãos que faziam memór ia de u m herét ico. A atestar o desenvolvimento do priscilianismo no N o r t e temos ainda o Concí l io de Bra-ga de 561, n o âmbi to do qual esta «heresia» voltava «à cena hispânica».

O s «erros» espalhados na me t rópo le da Galécia pela heresia priscilianista são mencionados , t ambém, n u m a carta enviada pelo papa Vigílio a P ro fu tu ro de Braga175. Nela o papa louva o zelo do prelado bracarense, que lhe t inha solicitado directivas sobre a at i tude a tomar c o m os priscilianistas que se absti-n h a m do uso de carne. A carta faz t a m b é m alusão à controvérsia ariana, ao aludir à fórmula do rito da celebração do bapt ismo e à at i tude a ter c o m os apóstatas que, depois de rebaptizados pelos arianos, vol tavam ao seio das Igre-jas reconstruídas. A resposta cont inha as fórmulas usadas e m R o m a na missa da Páscoa e o ritual r o m a n o do baptismo. Estas informações fazem deste d o -c u m e n t o uma fonte indispensável para a história religiosa e, especialmente, para a história da liturgia do século vi. Só a acção evangelizadora e un i fo rmi -zadora da doutr ina cristã desenvolvida n o te r reno por São Mar t i nho de D u -m e acabaria po r erradicar esta heresia de entre a população1 7 6 .

D o dossier priscilianista p o d e m o s depreender que o con f ron to dogmát ico entre as duas comunidades cristãs rivais — priscilianismo e catolicismo de Niceia — revelou, desde o século iv, uma faceta impor tan te do discurso cris-tão na sua relação c o m o poder civil e, s imul taneamente , atestou a capacidade do episcopado de definir a or todoxia . A acentuação é, efect ivamente, posta n u m a concepção mili tante do kerygma most rando, ao m e s m o t empo , os laços que un iam o cristianismo, o episcopado e o m u n d o urbano. T u d o parece in -dicar que, sob a aparência da doutr ina e do dogma, os grandes problemas se si tuavam, f u n d a m e n t a l m e n t e , n o âmbi to da disciplina eclesiástica. Só assim se p o d e m c o m p r e e n d e r as reacções cont ra Prisciliano1 7 7 .

Para além do priscilianismo, fo ram t ambém conhecidos n o O c i d e n t e pe -ninsular durante o per íodo suevo-visigótico o manique ísmo, o or igenismo e o pelagianismo. Idácio e Orós io a tes tam-no nas suas obras.

Apesar de, n o século v, c o m o j á re fer imos , o p r o b l e m a mais p r e o c u p a n -te para o clero galego ser o prisci l ianismo, m e n c i o n a d o aliás na decreta i de Leão I dirigida ao bispo T o r i b i o de Astorga1 7 8 , ver i f icamos para le lamente outras dif iculdades devidas ao m a n i q u e í s m o , c u j o foco foi descobe r to e m Astorga, en t re 445-448'7 9 . N e s t e c o m b a t e c o n j u g a r a m esforços o bispo l o -cal T o r i b i o e o me t ropo l i t a da Lusitânia, A n t o n i n o . T o r i b i o c h e g o u m e s -

[ > E m cima: Lucerna paleocristã com representação de um cisne em gaiola aberta, símbolo da alma que se liberta do corpo, proveniente de Balsa, Torre de Ares, Tavira (Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia).

D E S E N H O : H E L E N A FIGUEIREDO.

[> A o meio: Lucerna paleocristã com representação de uma raposa ateadora de fogo, ao mesmo tempo reportando-se a histórias romanas e bíblicas, proveniente de Balsa, Torre de Ares, Tavira (Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia).

D E S E N H O : H E L E N A FIGUEIREDO.

D> E m baixo: Lucerna paleocristã com representação de um crísmon, proveniente de Tróia de Setúbal(?) (Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia).

D E S E N H O : HELENA FIGUEIREDO.

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m o a escrever ao papa Leão I, que r e s p o n d e u e e x a m i n o u as heresias d ivu l -gadas na Galécia, o r d e n a n d o a ce lebração de u m conc í l io geral de todos os bispos da Península ou pe lo m e n o s de u m s ínodo regional 1 8 0 . Idácio teria t a m b é m estado presen te nes te processo, c o m o n o - l o dá a p e r c e b e r a sua Crónica.

N o seu Commonitorum a Santo Agost inho1 8 1 , Paulo Orós io expõe não só os «erros» dos priscilianistas mas faz t a m b é m referência aos origenistas (discí-pulos de Orígenes, escritor eclesiástico de Alexandria m u i t o apreciado pelas suas obras de tendência gnóstica, que grassavam na Galécia)182. Desta breve narrativa concluiu-se que o or igenismo chegou até à Galécia trazido por u m peregr ino da Terra Santa chamado Avito1 8 3 . O interesse de Orós io pela e v o -lução desta heresia supõe que ele a conheceu quando estava ainda e m Braga e que o or igenismo tinha at ingido aí os cristãos, no início do século v1 8 4 .

Paulo Orós io part icipou t a m b é m no debate o r todox ia /he t e rodox ia ext ra-fronteiras da Hispânia. Depois de ter passado por África, o n d e ouviu Santo Agost inho, Orós io foi completar a sua formação exegética na Palestina, o n d e ficou algum t e m p o c o m São J e r ó n i m o . Foi ali que seguiu a grande polémica sobre o pelagianismo, t o m a n d o part ido contra Pelágio, a favor de Santo Agost inho e São J e r ó n i m o , c o m o no- lo indica a sua obra Contra Pelagium, de arbitrii libertate]s5. N ã o conhecemos , con tudo , a expansão concreta desta co r -rente n o Oc iden te peninsular.

Para além das heresias de tendência filosófico-mística (gnose, or igenismo, priscilianismo, etc.), e m con tex to de ocupação muçu lmana nos séculos VIII--ix, bro taram outras tendências c o m o resultado dos múltiplos contactos c o m o Or i en t e e do con f ron to c o m os muçu lmanos e m terr i tór io peninsular. A formação doutr inal cristã e a solidez das crenças do p o v o h i spano-godo d e -veriam ser mu i to superficiais, daí t e rem surgido novas correntes he terodoxas no seio das comunidades moçárabes1 8 6 . Nas fontes disponíveis, não t emos e lementos que nos permi tam afirmar a presença e o desenvolv imento destes mov imen tos nos territórios da Galécia e da Lusitânia, p rovave lmente pe lo facto de serem territórios marginais e m relação ao pode r carolíngio e m plena expansão nos séculos e m causa.

O l h e m o s então de relance para este fervilhar he te rodoxo . Por meados do século VIII, produziu-se u m caso de sabelianismo e m T o -

ledo, t e n d o o bispo desta diocese p rocurado controlar de imedia to os h e r e -ges. Tratava-se de u m tipo de m o n o t e í s m o antitrinitário — desenvolvido p o r influência muçu lmana e judaica — que conciliava a crença alcorânica c o m o dogma católico.

Ainda no século viii vemos aparecer o u t r o t ipo de síntese teológica c o m c o n t e ú d o doutr ina l sui generis, apresentado por Migéc io , p rovave lmen te o r iundo da Bética. Para este autor , a Tr indade estava integrada por três pes-soas corpóreas, reais e históricas: o Pai, David; o Filho, Jesus de Nazaré e o Espírito Santo, o apóstolo São Paulo. Esta doutr ina foi condenada por u m a assembleia de bispos reunida e m Sevilha187 .

Paralelamente, surge t a m b é m o adopcionismo, que gerou ampla c o n t r o -vérsia na Igreja hispânica. Estamos perante uma nova tentativa de aprox ima-ção interconfessional no âmbi to da doutr ina cristológica. El ipando, m e t r o p o -lita de To ledo , foi o principal m e n t o r desta corrente1 8 8 , de fendendo que Jesus Cristo, pela sua natureza h u m a n a e servil, não seria filho de Deus mas filho de Maria, to rnado servo de Deus.

A aparição do bispo de Urgel , Félix, de f endendo a teoria he te rodoxa de El ipando, fez com que a polémica ultrapassasse a marca hispânica e atingisse o terr i tório sob d o m í n i o de Carlos Magno , c o m o refere Rivera Rec io 1 8 9 . Este monarca chegou mesmo, apoiado pelos seus teólogos, a solicitar o parecer de R o m a sobre o m o v i m e n t o e m causa. Face aos reptos desta corrente , o papa Adriano I reagiu, dir igindo u m a carta aos bispos hispânicos c h a m a n d o a a ten-ção para o erro de confessar Jesus Cristo filho adopt ivo de Deus1 9 0 . Po r seu lado e na linha de R o m a , os prelados da Germânia , Gália e Aquitânia t a m -b é m fixaram os seus pontos de vista n u m a longa carta intitulada Epistola epis-coporum Franciaem.

D> A quinta trombeta do Apocalipse, tapeçaria do século xiv (Museu de Angers, França).

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O SURGIMENTO DAS CORRENTES MILENARISTAS E DA QUESTÃO DA POBREZA

VOLUNTÁRIA* A P A R T I R D A I D A D E M J É D I A C E N T R A L , e a o c o n t r á r i o d o q u e a c o n t e c e n a

restante Hispânia1 9 2 , não vol tamos a encontrar sinais de grandes surtos heré t i -cos no terr i tório por tuguês . Pe rmanecem, con tudo , alguns tes temunhos , a in-da que ténues e fragmentários, sobre divergências doutrinárias e de c o m p o r -t amen to mora l e social, que t ê m suscitado análises po r vezes de sinal opos to entre os nossos historiadores. Assim, a referência a hereges na legislação ecle-siástica e secular, po r exemplo , se para uns é sinal inequ ívoco da sua existên-cia entre nós, para outros é m e r o reflexo de realidades estranhas que se p r o -curava acautelar, quiçá a simples transcrição de disposições conciliares a que a Igreja lusitana, c o m o as demais, se encontrava obrigada.

N a falta de referências directas e significativas a eventuais heresias e seus respectivos aspectos doutrinais, mais do que recapitular as discussões havidas e m to rno dos parcos e lementos de informação disponíveis, parece-nos i m -por tante analisar se, e m Portugal , se verificaram as mesmas condições espiri-tuais, sociais e económicas que, nout ros locais da Europa cristã, fo ram terre-no fértil para a eclosão e o desenvolv imento de correntes heréticas. Po rque , se actualmente já n i n g u é m ousa afirmar que estas não são mais do que a fo r -ma de expressão possível, n u m a sociedade dominada pela Igreja, de m o v i - *Ana Mana S. A. Rodngues

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mentos colectivos de contestação da o r d e m vigente, r econhecendo-se a sua au tonomia enquan to f e n ó m e n o s religiosos, o seu carácter social não t em dei -xado, p o r isso, de cont inuar a ser realçado1 9 3 .

Debruçando- se sobre o surto h e t e r o d o x o que surgiu por alturas do virar do pr imei ro milénio, Georges D u b y pôs e m relevo a emergência de uma n o -va o r d e m social — a feudalidade -— n u m m o m e n t o de intensa expectativa apocalíptica, que teria gerado u m a reacção de t ipo religioso p r e t endendo res-ponde r não só à inquietação espiritual causada pela iminência do fim dos tempos c o m o às consequências materiais das novas clivagens sociais. Daí que estas heresias tivessem e m c o m u m a reivindicação da igualdade entre todos os crentes, a recusa do m o n o p ó l i o de manipulação do sagrado det ido pelo clero e a exigência de penitência e purif icação para o estabelecimento do re ino de Deus entre os homens . A reforma então empreend ida pela Igreja, tanto r egu -lar c o m o secular, permi t iu , e m grande parte, responder a estas críticas, ao m e s m o t e m p o que o desenvolv imento económico , gerando maior r iqueza para todos, levou a u m abrandar da contestação herética nos finais do sé-c u l o XI1 9 4 .

Se é p o n t o assente que parte do terr i tório que fu tu ramen te virá a ser p o r -tuguês — aquela que se libertara da dominação islâmica — t a m b é m assistiu à imposição, por meios violentos, da nova o rdem feudal e v ivenciou a mesma expectativa milenarista195 , o cer to é que não se c o n h e c e m , nela, manifesta-ções heréticas neste per íodo. A dureza da luta contra u m in imigo de fé d iver -sa terá porventura con t r ibu ído para preveni r divergências religiosas, embora a relativa f rouxidão do enquad ramen to eclesiástico da zona e a escassez de f o n -tes t a m b é m possam ser explicações válidas para a ausência de notícias a esse respeito. Já a mudança da liturgia moçárabe para a romana, que const i tuiu u m dos aspectos centrais da «reforma gregoriana» na Península, suscitou, c o -m o se sabe, violentas reacções por parte dos que seguiam o rito hispânico, e m relação aos quais passou a pairar a suspeita de heresia196.

O n o v o surto he t e rodoxo que varreu a cristandade ocidental a partir de finais do século x n foi resultado da crise espiritual gerada pela rápida passa-gem de uma sociedade e m i n e n t e m e n t e rural, cuja economia se baseava na p i -lhagem e na troca de «ofertas» espontâneas ou obrigatórias, para uma socieda-de urbana assente na procura do lucro1 9 7 . Gi rando e m t o r n o da crítica à excessiva riqueza do clero n u m t e m p o e m que o total desamparo de mui tos se acentuava, mas t a m b é m da reivindicação do direito à proclamação da pala-vra de Deus por parte dos fiéis que seguiam o exemplo de vida dos apóstolos, essas diferentes heresias t iveram destinos igualmente diversos, consoante a gravidade da ameaça que const i tuíam para a Igreja.

U m a s — caso dos valdenses e «humilhados», p o r exemplo , cu jo maior pecado consistia na desobediência à interdição de pregar que era feita aos lei-gos e aos religiosos não autorizados para o efeito — , acabaram por ser pa r -cialmente recuperadas, através da t ransformação dos seus grupos menos radi-cais e m ordens religiosas c o m formas de vida própria, inclusive no século1 9 8 . Outras — n o m e a d a m e n t e os cátaros e out ros cultos de t ipo dualista — , p o r apresentarem divergências doutrinais irreconciliáveis, foram fe rozmen te pe r -seguidas, através d o estabelecimento da inquisição episcopal e até do lança-m e n t o de cruzadas199 . E, mais uma vez, do própr io interior da instituição abalada surgiu u m m o v i m e n t o de reforma que, t endo a pobreza voluntária c o m o principal estandarte, consti tuiu u m a resposta à fe rmentação herética2 0 0 .

Este novo surto de contestação social e religiosa de ixou alguns vestígios e m Portugal . Data, c o m efeito, do re inado de D . Afonso II (1211) a pr imeira medida legislativa secular que preconiza o confisco dos bens para os «ereges que fo r em uençudos per j u i z o dos bispos»201, ou seja, condenados pelo t r ibu-nal episcopal202 , assimilando-os aos culpados do cr ime de lesa-majestade. O u -tra ordenação do m e s m o monarca , cuja data crítica foi fixada entre 1218 e 122o, t e m sido relacionada c o m esta questão. Nela , o m o n a r c a insurge-se cont ra uns «decretos laicales» que o pr io r dos D o m i n i c a n o s , Frei Soe i ro G o m e s , havia p r o m u l g a d o para p u n i ç ã o de de l inquentes , o r d e n a n d o q u e não fossem aplicados pois i am contra o di re i to exclusivo da realeza de criar

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novas leis. Diversos autores t ê m in te rpre tado tais decretos , c u j o clausulado se desconhece , c o m o repressores da heresia, dev ido ao teor do m ú n u s pas-toral exerc ido pe lo refer ido i rmão pregador , mas o cer to é que tal t e r m o nunca é expl ic i tamente referido na documentação 2 0 3 . Mais recen temente , eles fo ram relacionados c o m a possível persistência de tradições moçarábicas e m Santarém2 0 4 .

C o n t u d o , outros indícios há reveladores de uma ambiência social p rop i -ciadora de eventuais desvios doutrinais e de c o m p o r t a m e n t o . D e facto, data do m e s m o reinado a primeira lei conhecida repr imindo a vadiagem2 0 5 , que por toda a parte se havia to rnado u m problema, pois o desenraizamento e a mobi l idade dos h o m e n s propic iavam uma divulgação mais rápida e mais alar-gada das ideias perigosas, ao m e s m o t e m p o que o crescente afastar entre ricos e pobres as suscitava. E a condenação da heresia parece ter t ido mesmo, neste per íodo, honras de representação iconográfica para edificação dos fiéis, se c o m ela «identificarmos a figura amordaçada do pór t ico da Sé de Évora, e m cuja mordaça se lê "hero"» , c o m o sugere uma historiadora e m obra r ecen-te206. N ã o dispomos, po rém, de quaisquer e lementos que nos pe rmi tam en -trever e m que correntes espirituais se filiariam os possíveis hereges p o r t u g u e -ses de então.

O caso m u d a de figura a partir de meados de Trezentos: não só os teste-m u n h o s sobre a existência de correntes heterodoxas e m Portugal se mult ipl i -cam c o m o estas se t o rnam identificáveis e o comba te contra elas se intensifi-ca, quer através do reforço da legislação civil e canónica, quer da redacção de tratados de apologética, quer ainda da nomeação de inquisidores. Busquemos os mot ivos de uma tal mudança .

U m deles poderá residir na fundação do Es tudo Geral e m Lisboa, e m 1290. C o m efeito, sabe-se que u m dos meios e m que mais se desenvolveu o pensamento h e t e r o d o x o «culto»207 foi a universidade. A criação da universi-dade portuguesa veio abrir novos locais ao debate doutr inal e atraiu a Lisboa e depois a C o i m b r a mestres e, talvez, escolares estrangeiros, por tadores das ideias desviantes que então corr iam nos centros de saber mais antigos e pres-tigiados, con t r ibu indo para as divulgar entre nós.

Encon t ramos reflexos disto no pr imeiro tratado escrito e m Portugal sobre a questão da heterodoxia , que suscita opiniões desencontradas nos nossos his-toriadores. Para Morais Barbosa, Álvaro Pais, n o Collyrium fidei adversus haere-ses, que compôs após terminar o Speculum regum e m 1344208, l imitou-se a «contrapor, a cada precei to do direito canónico uma heresia que dele se afas-tasse»209; daí que ele considere a obra imprestável c o m o forma de aprox ima-ção à realidade social do século x iv por tuguês . O u t r o s autores, po rém, atri-b u e m algum crédito às palavras do bispo de Silves, e m particular no que toca às controvérsias que ele afirma ter t ido, e m C o i m b r a e Lisboa, c o m alguns religiosos e até m e s m o u m j u d e u , reveladoras do «clima de l iberdade de p e n -samento e de expressão» então vigente e m Portugal , pois era «possível a u m oposi tor defender n u m templo ou uma universidade, proposições que são, para a Igreja, manifes tamente heréticas»210.

Q u e proposições eram essas? T o m á s Escoto, personagem sobre o qual se de tém mais longamente o prelado e que devia ser originário das Ilhas Bri tâni-cas, perfilhava u m aristotelismo de coloração averroísta211: afirmava que a fé se provava me lhor pela filosofia do que pela Bíblia e pelo direito canónico. Proclamava ainda que Moisés tinha enganado os judeus , tal c o m o Cristo os cristãos e M a o m é os muçulmanos , e que o Anticristo, quando viesse, engana-ria todos os homens , inc luindo os próprios servidores de Deus; acreditava que a graça de curar passava de pais para filhos212; negava a imortal idade da alma, a divindade de Jesus, a virgindade de Nossa Senhora e a castidade de São Bernardo e Santo Antón io . Por estes e outros erros doutrinais, este m e n -dicante renegado acabou por ser condenado pelo tr ibunal eclesiástico e en -cerrado n u m a prisão213 .

Mas Álvaro Pais vitupera igualmente , no Collyrium, a nova heresia de uns «pseudo-religiosos» que ele encontrara nas escolas lisboetas, p roc lamando que os decretos dos concílios e as consti tuições papais não t inham a mesma au to -

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ridade que o Ve lho e N o v o Testamentos 2 1 4 . E no De statu refere-se a m e n d i -cantes que p u n h a m e m causa o pode r pontif ício, n u m con tex to que p o d e le-var a crer tratar-se de u m a situação vivida e m Portugal2 1 5 . E , pois, provável que, aqui c o m o na restante Europa , a prática da pobreza evangélica e a c o n -denação do excessivo en r iquec imen to do clero tivessem levado alguns leigos e frades franciscanos mais radicais a atravessar a estreita fronteira instituída p e -la Igreja entre o seu ideal de vida ascético e a heresia216 .

P o r fim, o bispo de Silves t a m b é m dá conta, nos seus escritos, de u m a controvérsia c o m u m seguidor do culto moisaico. Judeus e m o u r o s não eram considerados hereges, e o cul to de ambas as religiões era respeitado, c o m o veremos, desde que exercido den t ro dos limites impostos pela lei. C o n t u d o , parece ter havido, ã época, a lgum esforço de conversão, dado datarem de e n -tão várias obras de apologética e m por tuguês , c o m o u m tratado teológico anón imo , o Speculum disputationis contra hebraeos de Frei J o ã o de Alcobaça, o Livro da corte enperial e o p rópr io Collyrium217.

O pensamento h e t e r o d o x o não era, p o r é m , u m exclusivo dos meios u n i -versitários. Nesta segunda metade da centúria de Trezentos , a Cristandade, submetida ao triplo flagelo da fome , da peste e da guerra, estava a ser varrida por m o v i m e n t o s de revolta anti-senhorial e anticlerical, muitas vezes suscita-dos por pregadores it inerantes que proc lamavam a igualdade de todos os h o -mens perante Deus e fust igavam a excessiva riqueza e a vida dissoluta da h ie -rarquia eclesiástica, encon t r ando u m públ ico a tento e mot ivado para a luta, quer entre os camponeses esmagados pelas exacções senhoriais, quer entre o proletariado u rbano sujei to ao desemprego e a condições de vida miserá-veis218.

Portugal não se man teve alheio a esta con jun tura . Logo após a grande peste, e m 1349, surge u m a ordenação que procura compel i r ao trabalho m a -nual não só aqueles que haviam recebido heranças e já não quer iam exercer os mesmos ofícios que antes, mas igualmente os h o m e n s e mulheres válidos que viviam ped indo , m a n d a n d o que estes fossem açoitados e expulsos das p o -voações se não quisessem trabalhar. C o n t u d o , os desocupados e errantes não deixaram de se multiplicar, acor rendo às cidades e m vez de p e r m a n e c e r e m nos campos, o n d e os seus braços tanta falta faziam. A Lei das Sesmarias, p r o -mulgada vinte e seis anos mais tarde, é ainda mais precisa, ao referir que m u i -tos desses pedintes andavam c o m hábitos de religiosos «nom en t rando n e m seendo professos e m nenhúas das hordeens relegiosas stabeleçudas e aprouadas pella santa egreia, n o m fazendo n e m husando de fazer alguma obra p roue i t o -sa ao b e m comúu», e arrastavam consigo outros h o m e n s que se perd iam para a agricultura e os mesteres, consti tuindo ademais possíveis focos subversivos219.

D e facto, diversas revoltas rurais e urbanas acabaram por verificar-se t am-b é m n o nosso país, quer aquando do casamento de D. Fernando c o m D . Leo-nor Teles quer após a mor te do rei, perante a ameaça da invasão castelhana. Para além das evidentes motivações políticas e socioeconómicas, é possível que elas t enham tido, igualmente, uma inspiração religiosa de cunho heterodoxo, pois por essa altura multiplicam-se os sinais da existência de u m ambiente aco-lhedor às teses milenaristas e às doutrinas sobre a pobreza evangélica.

Assim, sabe-se que entre 1350 e 1380 u m g rupo de portugueses, espanhóis e italianos, chef iado por u m tal Vasco de Portugal, ve io de Itália para a P e -nínsula Ibérica esperar a descida do Espírito Santo predita pe lo seu mestre, Tomasucc io da Fol igno — u m eremita leigo p r ó x i m o dos círculos francisca-nos radicais — , e participar na fundação de u m a nova o r d e m religiosa que reformaria o m u n d o antes do fim dos tempos 2 2 0 .

Po r ou t ro lado, Fernão Lopes, na Crónica de D.João I, mos t rou à sacieda-de que os partidários do mestre de Avis o consideravam o seu salvador, o Messias, usando m e s m o as moedas c o m a sua efígie ao pescoço, c o m o m e d a -lhas; e a iconografia vem, u m a vez mais, reforçar estes indícios, se analisarmos as pinturas da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, e m Guimarães — o n d e João das Regras foi prior, e m 1388 — , que associam a lenda do Graal à luta pela independênc ia de Portugal contra os cismáticos castelhanos, à luz do pensamento escatológico he te rodoxo 2 2 1 .

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<] Glorificação de São Tomás de Aquino, c. 1345 (Itália, Pisa, Igreja de Santa Catarina).

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Se não p o d e m o s ignorar o carácter propagandíst ico da obra do cronis-ta222, é, p o r é m , verosímil que o «edifício mitológico» cons t ru ído p o r Fernão Lopes e m redor de D . J o ã o I não se limite a ser uma invenção poster ior des-tinada a enaltecer o fundador da nova dinastia, mas recolha tradições da época do monarca que revelam o «ambiente de exaltação messiânica e milenarista» existente e m to rno dele2 2 3 . C o m efeito, o papel desempenhado pelos Francis-canos — quer verdadeiros frades quer simples m e m b r o s da o r d e m terceira vi-v e n d o uma vida ascética exemplar 2 2 4 — na criação das condições propícias à união do p o v o e m t o r n o do monarca e na condução de alguns dos eventos revolucionários deste pe r íodo foi já evidenciado por diversos autores2 2 5 , que t a m b é m detec taram, na própr ia fo rma de Lopes es t ruturar a sua narrat iva, décadas mais tarde, ecos do p e n s a m e n t o h i s tó r i co - t eo lóe ico de Joaquim de Fiore2 2 6 .

O cer to é que, c o m o multiplicar dos h o m e n s e mulheres sensíveis às se-duções das doutr inas heréticas ou s implesmente desviantes, acen tuou-se t am-b é m a repressão contra eles. A legislação civil a este respeito to rnou-se mais abundan te e precisa: n o início de Trezentos , D . Dinis estatui e m relação àquele que descrer de Deus e da Vi rgem «e os doestar que lhi t i rem a l jngua pelo pescoço e o queymem» 2 2 7 — pena preconizada desde 1224 pela Igreja para os hereges2 2 8 e já incluída n o Fuero R e a l de Afonso X 2 2 9 . D . Afonso V, e m contrapar t ida , separa as situações de blasfémia e de heresia, m a n t e n d o para a segunda as penas de m o r t e e de confisco de bens j á decretadas p o r D . Afonso II e D . J o ã o I, e es t ipulando para a pr imeira castigos m e n o s pesa-dos mas ainda r igorosos: pecuniár ios , n o caso de os prevar icadores se rem f i-dalgos, e corporais — açoites c o m u m a agulha de albardeiro espetada na l íngua ou deambulações e m to rno da igreja c o m uma silva ao pescoço — se per tencentes ao povo 2 3 0 .

E que «Podia suceder que a blasfémia não significasse ruptura c o m a crença religiosa, antes ser f ru to da ira m o m e n t â n e a desencadeada por razões ocasionais»231, c o m o alguma disputa pessoal ou o j o g o . Assim acontecia na maioria dos casos, havendo , po r isso, u m relativo laxismo na aplicação da lei po r parte dos juízes, que contrastava c o m a severidade da punição 2 3 2 .

Segundo o tex to da j á citada lei de Afonso V contra os hereges, era aos juízes eclesiásticos que, desde sempre, cabia o j u l g a m e n t o destes casos, e m b o -ra fosse o braço secular a aplicar as respectivas penas, po r serem de sangue. N o entanto , e cur iosamente , as actas dos sínodos que chegaram até nós prat i -camente não re ferem o cr ime de heresia, a não ser entre os casos reservados aos bispos233, de tendo-se c o m m u i t o mais p o r m e n o r nos de superstição, ba r -regania e feitiçaria; de igual m o d o nos faltam os textos das correspondentes sentenças dos tribunais episcopais e as cartas de perdão relativas aos c r imino-sos condenados .

O m e s m o acontece c o m eventuais sentenças de u m possível t r ibunal in -quisitorial. Sabemos, c o m efeito, que foram nomeados inquisidores para P o r -tugal desde finais de Trezentos , escolhidos, c o m o nos out ros locais e m que f u n c i o n o u tal instituição medieval , entre os Mendicantes 2 3 4 : u m tal M a r t i n h o Vasques, franciscano, p o r 1376; ou t ro franciscano, Frei R o d r i g o de Sintra, e m 1394; Frei Vicen te de Lisboa, domin icano , po r 1399; ou t ro frade m e n o r , Frei Afonso de Alprão, e m 1413235, a que p o d e m o s acrescentar ainda Frei Gonça lo Mendes , provincial dos Pregadores, já e m 1438236. C o m o dissemos, não res-tam vestígios da sua actuação concreta contra os heréticos, mas parece-nos significativo que as referências à sua existência co inc idam c o m o pe r íodo de mais intensa agitação social e espiritual n o país.

N ã o se deduza daqui , todavia, que, passado esse m o m e n t o , o restante sé-culo x v foi isento de contestação doutr inal e m Portugal . Cada vez mais aber-to às influências vindas de além-Pir inéus, devido às alianças matr imoniais e diplomáticas estabelecidas pela nova dinastia e à circulação mais alargada de h o m e n s e mercadorias, o país não podia manter -se à m a r g e m das propostas reformistas que então se disseminavam pela Europa , e m particular as de W y -clif e Huss2 3 7 .

Encon t r amos reflexos das doutr inas de ambos tanto e m obras de p e n d o r

<3 Igreja da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, Guimarães.

F O T O : ALMEIDA D ' E Ç A / / A R Q U I V O C I R C U L O DE LEITORES.

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moralista c o m o nos d o c u m e n t o s da prática. N o Leal conselheiro, p o r exemplo , D . Duar t e mostra ter plena consciência dos perigos que acarretava a in te rpre -tação pessoal da Bíblia recomendada , nomeadamen te , po r Wycl i f , aconse-lhando uma leitura das Escrituras e dos livros piedosos exclusivamente o r i en -tada pela Igreja e p o r h o m e n s sábios e virtuosos2 3 8 . O monarca insurge-se ainda contra os hereges que não acreditavam na vida eterna2 3 9 e os erros dos discípulos de R a m o n Lull240, sinal de que tais desvios doutrinais deviam cor -rer e m Portugal no seu tempo 2 4 1 .

D . Afonso V é ainda mais específico ao referir-se, n u m seu alvará de 18 de Agosto de 1451242, aos que se agrupavam para ler e comen ta r Frei Gáudio , João Cris tóvão — heresiarcas portugueses de que n e n h u m ou t ro t e s t emunho pe rdu rou — , e ainda Wycl i f e Huss, cujas obras estavam proibidas mas, pelos vistos, circulavam n o país; os livros daqueles dever iam ser que imados e eles, levados perante o tribunal, perder iam todos os seus bens.

As Ordenações Afonsinas, no seguimento de normas anteriores, penaliza-vam t a m b é m c o m a m o r t e os j udeus e os mouros que, conver t idos ao cristia-nismo, regressassem depois à sua fé original; e m compensação, conf i rmavam a lei c o m que D . J o ã o I protegera os conversos castelhanos fugidos às perse-guições no seu país, i m p e d i n d o que fossem igualmente molestados e m P o r t u -gal sob pre tex to de abjuração2 4 3 . N o t e m p o de D . J o ã o II, todavia, face à e n -trada de uma nova e numerosa vaga de j u d e u s e cristãos-novos castelhanos no reino, que suscitou u m recrudescer do sen t imento and juda ico e an t i con-verso, a situação alterou-se: foi criado u m corpo de inquisidores contra os marranos estrangeiros e fo ram efectuados os pr imeiros au tos-de- fé de que há m e m ó r i a e m Portugal , antec ipando e m me io século cenas que depois se t o r -narão correntes2 4 4 .

A PERMANENCLA DAS «SUPERSTIÇÕES» E A DIABOLIZAÇÂO DA FEITIÇARIA

SE O CONCEITO DE HERESIA, d e i n í c i o , a b a r c a v a e s s e n c i a l m e n t e q u e s t õ e s dogmáticas ou disciplinares, ele foi-se alargando c o m o passar dos séculos, v indo a incluir, po r equiparação, desvios morais e de c o m p o r t a m e n t o c o m o o adultério, a sodomia , o incesto, e ainda crenças e práticas «supersticiosas», mágicas e divinatórias, inc lu indo a feitiçaria, os sortilégios, a astrologia, a n i -gromancia , etc.245 .

N o que toca a estas últimas, que são as que nos interessa considerar aqui, essa evolução não foi, po rém, pacífica. D e facto, durante m u i t o t empo , o re -curso às artes mágicas foi considerado u m pecado e não u m cr ime de fé. Só quando a obsessão pelo diabo, nascida nos mosteiros p o r alturas do século XII, se estendeu a toda a sociedade através dos ens inamentos dos pregadores e dos teólogos, é que os feiticeiros — e, e m particular, as bruxas — começa ram a ser acusados de obter os seus poderes através da invocação dos demón ios e do estabelecimento de pactos c o m o maligno. Isso permit iu aos inquisidores es-tender as suas competências a esses delitos246 .

E m b o r a já e m 1270 a Summa de Officio Inquisitoris apontasse o c a m i n h o da fogueira às feiticeiras247, foi a bula Super illius specula, de 1320, que deu poder à Inquisição para intervir sobre a bruxaria2 4 8 . O século x iv conheceu , e m consequência , u m grande n ú m e r o de processos por feitiçaria, a t ingindo mes -m o as mais altas esferas da sociedade, o mais célebre dos quais talvez tenha sido o dos Templários 2 4 9 . Mas foi só a partir de uma outra bula de I n o c ê n -cio VIII, datada de 1484, que se desencadeou de forma generalizada, n o C e n -tro da Europa , u m a «caça às bruxas» que virá a ter a sua plena expressão na época moderna 2 5 0 .

E m Portugal , a repressão da magia t a m b é m foi u m a realidade durante a Idade Média , mas não parece ter alcançado o m e s m o grau de violência que noutras paragens p o r q u e a coexistência de comunidades étnico-religiosas dis-tintas n o terr i tório nacional «deu lugar a u m intenso trabalho de pregação e de debate teológico c o m a religião islâmica e a religião judaica», e m cu jo

<] Bíblia hebraica, fólio de abertura (Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra) .

FOTO: VARELA PÉCURTO/ /ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

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con tex to «as práticas religiosas marginais [...] e desviadas [...] não assumem suficiente importância para serem objec to de u m a campanha sistemática de erradicação»251. Esta at i tude m u d o u u m p o u c o na centúria de Q u i n h e n t o s , sob influência dos modelos cen t ro -europeus , mas sem consequências radicais na perseguição do delito de feitiçaria252. Examinemos , pois, a situação e m d e -talhe.

N o t e m p o de São Mar t i nho de D u m e , c o m o vimos, as «superstições» eram consideradas uma persistência dos antigos cultos, que se procurava ex -tirpar através da pregação, da destruição dos templos e ídolos pagãos, ou da sua substituição por igrejas e santos cristãos. Q u a n d o assistimos ao seu ressur-g imento , a partir do século xn i , nos textos normat ivos da Igreja e das a u t o -ridades seculares portuguesas, mau grado o silêncio das fontes nas centúrias intermédias, é grande a tentação de ver nelas u m a permanênc ia de gestos e atitudes não resultante do acaso, mas antes da reiterada adesão aos mesmos «erros» de clérigos e leigos253.

D e facto, algumas dessas «superstições» tardo-medievais r e m e t e m para formas de culto cujas origens se p e r d e m n o t empo , c o m o é o caso das procis-sões e missas realizadas e m plena natureza — nos montes , campos e out ros «lugares desonestos»254 — , típicas de sociedades agrárias tradicionais e cuja longevidade se nos afigura extraordinária, pois ainda ho j e encon t r am expres-são na piedade popular2 5 5 . Out ras pa recem estar mais d i rec tamente ligadas ao passado romano , c o m o o uso de prantear os mor tos , as festas das Janeiras e das Maias e as práticas divinatórias256 , embora possam ter ganho diferente sig-nificado n u m con tex to cristão e feudal2 5 7 .

Mas outras, ainda, só t êm razão de ser n u m a sociedade já p l enamen te cristianizada, que acredita na eficácia simbólica dos objectos sagrados: as r e c o -mendações , multiplicadas nos sínodos, para que a eucaristia e os santos óleos fiquem b e m fechados e para que a pia baptismal seja dev idamente guardada2 5 8

revelam o receio de que o seu uso fosse desviado para outros fins considera-dos sacrílegos259. Daí que n e m todas as crenças e práticas definidas pelos ecle-siásticos c o m o «superstições» devam ser vistas c o m o simples permanências pagãs, p o d e n d o resultar, pelo contrário, de interpretações desviantes do mara -vilhoso cristão.

D e facto, a Igreja aceitava certas formas de adivinhação, c o m o os sonhos, as visões e as profecias, encarando-as m e s m o c o m o manifes tações da graça divina; da mesma fo rma , e r am considerados milagres, e, c o m o tal, sinais de santidade, algumas curas inesperadas e f e n ó m e n o s inexplicáveis2 6 0 . Ou t ro s , po rém, e ram classificados c o m o ilusões, prestígios ou , até, inspirações d e m o -níacas261. A fronteira que separava a religião da magia era, pois, tão estreita quanto a que separava a or todoxia da heresia, d e p e n d e n d o de subtis dist in-ções teológicas que ultrapassavam largamente o e n t e n d i m e n t o do c o m u m dos fiéis.

Por vezes, elas ultrapassavam, mesmo, o de alguns eclesiásticos. O s ínodo de Braga de 1281, p o r exemplo , condenava os que, clérigos ou leigos, cônsul -tassem agoureiros e feiticeiros, es tendendo-se a condenação , dois séculos mais tarde, aos abades e capelães de igrejas que não expulsassem delas os prevarica-dores; a punição espiritual prevista para os que prat icavam tais artes e os q u e as solicitavam era a excomunhão 2 6 2 . E m 1489, o Tratado de confissom referia-se ainda ao lançamento de sortes po r clérigos263 .

P o d e parecer estranho que os próprios sacerdotes cristãos fossem acusados de recorrer a oficiantes de artes mágicas, mas, ignorantes das letras mui tos d e -les, v ivendo u m a vida simples e m c o m u n h ã o c o m as populações rurais que serviam, é natural que partilhassem c o m elas — e propagassem, c o m o seu exemplo e os seus ens inamentos — algumas das suas crenças «erróneas»264. Po r ou t ro lado, quan to à acusação de prat icarem eles mesmos essas artes, é fá-cil imaginar que, habi tuados a conhece r e manipular as forças sagradas, o p u -dessem fazer tanto para o b e m c o m o para o mal265 . N o entanto, não nos c h e -garam notícias de quaisquer condenações de clérigos p o r feitiçaria.

E m contrapart ida, elas existem para leigos, pe rmi t indo-nos , assim, c o n h e -cer u m p o u c o mais de per to a realidade da magia e dos mágicos medievais

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A D I N Â M I C A D A C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O D E B A T E O R T O D O X I A / H E T E R O D O X I A

portugueses2 6 6 , especialmente os do sexo femin ino . Porque , se é cer to que deparamos c o m alguns h o m e n s a praticar curas milagrosas e feitiços, as m u -lheres ultrapassavam-nos de longe e m n ú m e r o , c o m o t em sido no tado por todos os autores que se debruçaram sobre esta questão2 6 7 .

N o caso das mulheres , era m u i t o c o m u m a acusação de feitiçaria vir asso-ciada às de prost i tuição e alcovitaria, mais ra ramente às de violência e roubo . D e facto, elas praticavam, sobre tudo, uma magia destinada a favorecer as uniões amorosas2 6 8 , suas ou das clientes, legítimas ou ilegítimas. Para isso, ela-boravam filtros e al imentos que davam a ingerir às vítimas, ou faziam repre-sentações destas e m cera, barro e metal, que depois submet iam a manipula -ções diversas269. T a m b é m acontecia, embora c o m menos frequência , fazerem ligamentos, curas mágicas, e lançarem sortes para descobrir objectos roubados ou adivinharem o fu tu ro .

O s feiticeiros masculinos ocupavam-se , de preferência, da restauração da saúde dos h o m e n s e dos animais, através de bênçãos e orações, o que não ex-cluía, ocasionalmente, o uso de ervas e outras matérias naturais. Faziam, a in-da, «çircos» nas estradas e nas encruzilhadas, talvez destinados a afastar dos campos circundantes os caprichos meteorológicos , ou a assegurar a pro tecção dos viandantes2 7 0 .

Para além destas práticas mágicas, atestadas pelas cartas de perdão do sé-culo xv, e que nós sabemos serem punidas c o m penas de prisão, embora re -míveis a d inheiro , outras fontes reve lam-nos a existência de crenças «erró-neas» condenadas a purgar castigos espirituais. O Livro das confissões de M a r t i m Perez, datado de inícios de Trezentos e copiado para por tuguês nos finais dessa centúria2 7 1 , refere u m extenso rol de «superstições» que inc luem a c r en -ça e m estrelas e signos, fadas, esconjuros, malefícios, etc., apl icando-lhes u m n ú m e r o variável de anos de penitência2 7 2 . E nele que, pela primeira vez na Península2 7 3 , se faz referência à crença e m mulheres que «sááem de noyte e andam por os ááres e p o r as terras e que en t ram por os buracos e c o m e n e çugam as creaturas»274, espécie de bruxas cruzadas c o m vampiros, c o m o j á fez notar u m historiador português 2 7 5 .

Verdadei ro catálogo dos «pecados de Dollatria e costumes danados dos gentios» se mostra o estatuto aprovado na câmara de Lisboa e m 1385 — c u m -prindo uma promessa feita para propiciar a vitória na Batalha de Aljubarrota — , v i tuperando práticas c o m o feitiços, l igamentos, encantamentos , olhados, adi-vinhações, c h a m a m e n t o de diabos e ainda, c o m o já dissemos, os prantos pe -los mor tos , as Janeiras e as Maias276 . Tais condenações fo ram reafirmadas pe lo s ínodo de Lisboa de 1403, que r e t o m o u as prescrições do prelado anterior2 7 7 , e repetidas pela lei que D . J o ã o I p r o m u l g o u nesse ano e D . Afonso V conf i r -m o u e comple tou , décadas mais tarde. A pena civil para os que se dedicassem a tais práticas e ram os açoutes públicos, sendo a m o r t e reservada aos que e m -pregassem a feitiçaria para causar o fa lecimento, a desonra ou a lgum dano à pessoa, estado e fazenda de alguém2 7 8 .

A lei por tuguesa fazia, pois, a distinção entre u m a feitiçaria malévola, dia-bólica, sujeita à pena capital279, e «superstições» reprováveis e uma magia ile-gítima mas que não tendia para o mal, condenando-as a castigos mais ligeiros. Daí que, embora os mode los da feiticeira voadora e dos invocadores dos de -món ios estivessem inscritos no imaginário popular desde a centúria de T r e -zentos, pelo menos , eles não recobrissem todos os praticantes de sortilégios, l igamentos e adivinhações, p o u p a n d o a grande maioria deles à violenta perse-guição que conhece ram noutras paragens.

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

NOTAS

1 ESTRABÃO - Geographia, 3, 3, 6 , e 4 , 16. 2 ALARCÃO - O domínio romano, p . 153 ss. 3 ENCARNAÇÃO - A r e l i g i ã o , p . 4 4 2 ss. 4 FABIÃO - O p a s s a d o p r o t o - h i s t ó r i c o , p . 198. 5 O i n v e n t á r i o d o s d e u s e s i n d í g e n a s d a G a l é c i a r e a l i z a d o p o r A l a i n T r a n o y e m 1981 r e g i s t a

p e l o m e n o s 35 d i v i n d a d e s n a p a r t e p o r t u g u e s a d o conventus d e B r a g a . C f . TRANOY - La Galice ro-maine, p . 266-286 e ENCARNAÇÃO - A r e l i g i ã o , p . 4 4 2 - 4 6 1 .

6 C f . o s e s t u d o s d e J . d ' E n c a r n a ç ã o e d e C a r d i m R i b e i r o . S o b r e as d i v i n d a d e s i n d í g e n a s e s u a c r o n o l o g i a , c f . TRANOY - La Galice romaine, p . 2 6 6 - 3 0 7 . O a u t o r f o r n e c e u m a a m p l a b i b l i o -g r a f i a s o b r e a p r o b l e m á t i c a e m c a u s a . C o n s u l t a r t a m b é m a r e c o l h a d e i n s c r i ç õ e s e n c o n t r a d a s e m P o r t u g a l p o r GARCIA - Religiões antigas de Portugal, s o b r e t u d o p . 2 7 7 - 4 5 2 e p . 651-681. E s t a s ú l t i -m a s p á g i n a s i n t e g r a m u m a v a s t a b i b l i o g r a f i a r e c o l h i d a a t é a o s a n o s 9 0 .

7 D e p o i s d a o b r a d e VASCONCELOS — Religiões da Lusitânia, d o i n í c i o d o s é c u l o x x , t a m b é m BLÁZQUEZ MARTINEZ v i r i a a d e b r u ç a r - s e s o b r e o a s s u n t o n a o b r a Religiones primitivas de Hispania, e s c r i t a n a d é c a d a d e 6 0 . S u c e d e r a m - s e n o s ú l t i m o s a n o s v á r i o s t r a b a l h o s d a a u t o r i a d e JOSÉ ALARCÃO e d e J . C . BERNEJO BARREIRA.

8 FABIÃO - O p a s s a d o p r o t o - h i s t ó r i c o , p . 198. 1 'ALARCÃO - O domínio romano, p . 158.

1 0 C f . MACIEL e MACIEL - F r a g m e n t o d e a ra a E n d o v é l i c o , P . 6 4 . 11 P o d e c o n s u l t a r - s e a r e f l e x ã o f e i t a p o r MACIEL e MACIEL - A p r o p ó s i t o d e u m a n o v a a r a ,

p . 9-11. 1 2 C f . BLAZQUEZ - Religiones en la Espana, p . 126 . 1 3 C f . FÉVRIER - R e l i g i o s i t é t r a d i t i o n n e l l e , p . 58 ss. 14 TOVAR e BLAZQUEZ - Historia de la Hispania, p . 171. 1 'ALARCÃO — O domínio romano, p . 170 . 16 Ibidem, p . 168. 17 S o b r e e s t e s a n t u á r i o p a r t i c u l a r m e n t e e s t u d a d o cf . a b i b l i o g r a f i a c i t a d a p o r TRANOY - La

Galice romaine, n o t a 21, p . 336. 1 8 C f . ENCARNAÇÃO - A r e l i g i ã o , p . 4 4 9 . 1 9 ALARCÃO - O domínio romano, p . 167. 2 0 T R A N O Y - La Galice romaine, p . 334 -349 . 21 ENCARNAÇÃO - A r e l i g i ã o , p . 4 5 9 . A p r o p ó s i t o d o s t e s t e m u n h o s r e l a t i v o s a Is is , M i t r a e S e -

r á p i s , c f . TRANOY - La Galice romaine, p . 335 ss. S o b r e o c u l t o i m p e r i a l , c o n t i n u a a c t u a l o e x c e -l e n t e t r a b a l h o d e ÉTIENNE - Le culte imperial, 1974 . O s d o c u m e n t o s e p i g r á f i c o s d e s d e e n t ã o d e s -c o b e r t o s n ã o a l t e r a r a m s i g n i f i c a t i v a m e n t e as c o n c l u s õ e s d e s t e e s t u d o .

2 2 TOVAR e BLÁZQUEZ - Historia de la Hispania, p . 173. 23 Ibidem, p . 177. 2 4 CHAMPEAUX — La religión romaine. 2 5 FABIÃO - O p a s s a d o p r o t o - h i s t ó r i c o , p . 2 8 6 . 2 6 ÉTIENNE - Le c u l t e i m p é r i a l , 1 9 9 0 , p . 215-231. 2 7 TOVAR e BLÁZQUEZ - Historia de la Hispania, p . 183 ss. 2 8 ENCARNAÇÃO - A r e l i g i ã o , p . 4 5 7 . 2 9 C f . JAEGER — Cristianismo primitivo, p . 7 9 . 3 0 IRENEU DE LIÃO - Aduersus haereses, 1.10, c o l . 552-553. 3 1 TERTULIANO - Aduersus Iudaeos, 7 . 4 , p . 1354. 3 2 C f . SOTOMAYOR Y M U R O - La Ig l e s i a e n la E s p a n a , v o l . 1, p . 14. 3 3 V á r i o s m o n u m e n t o s f u n e r á r i o s p a r e c e m c o r r e s p o n d e r a p r o t ó t i p o s a f r i c a n o s . C o n v é m l e m -

b r a r a q u i as i n t e n s a s r e l a ç õ e s c o m e r c i a i s e n t r e a Á f r i c a e a H i s p â n i a . C f . JOVER ZAMORA, d i r . - His-toria de Espana, 2, p . 4 2 0 .

3 4 C f . GARCÍA M O R E N O - Ig les ia y c r i s t i a n i z a c i ó n , p . 2 2 9 - 2 3 0 . 3 5 C f . JOVER ZAMORA, d i r . - Historia de Espana, v o l . 2 , p . 419 e GARCÍA Y BELLIDO - E l c u l t o

a M i t h r a , p . 283 ss. 3 6 E l b o r a f o i , d e a c o r d o c o m a t o p o g r a f i a d a Passio d e S a n t a L e o c á d i a , i d e n t i f i c a d a c o m a a c -

t u a l c i d a d e d e T a l a v e r a d e la R e i n a , s i t u a d a e n t r e T o l e d o e M é r i d a . C f . FÁBREGA GRAU, e d . -Pasionario hispânico, 2 , p . 6 6 - 6 7 . H o j e o s a u t o r e s s ã o p r a t i c a m e n t e u n â n i m e s e m i d e n t i f i c a r E l b o r a c o m a c i d a d e d e É v o r a , n o A l e n t e j o . C f . JOVER ZAMORA, d i r . - Historia de Espana, 2 , p . 4 2 0 .

3 7 C f . LEPELLEY - Les cites de 1'Afrique, p . 4 0 2 . 38 CARTA aos Romanos, 15, 24 . 3 9 J E R Ó N I M O - Commentariorum in Isaiam, 2 , 12 .4 , c o l . 54. 4 0 ATANÁSIO - Epistula ad Dracontium, 4, c o l . 528. 4 1 C IRILO DE ALEXANDRIA - Catecheses, 1 7 . 2 6 ; c o l . 9 9 7 . 4 2 J O Ã O CRISÓSTOMO - Epistula ad hebraeos, pref., c o l . 11. 4 3 O s h i s t o r i a d o r e s c o n t e m p o r â n e o s n ã o e s t ã o d e a c o r d o s o b r e a r e a l i z a ç ã o d e s t a v i a g e m . P a -

r a u n s e l a t e v e c e r t a m e n t e l u g a r , p a r a o u t r o s e la t e r i a s i d o u m m e r o p r o j e c t o . C f . a e s t e p r o p ó s i -t o MOREIRA - A c r i s t i a n i z a ç ã o , p . 35 ss.

4 4 C f . BLÁZQUEZ MARTÍNEZ - Ciclos y temas, p . 2 8 8 e VEGA - L a v e n i d a d e S a n P a b l o , p . 7 - 7 8 . S o b r e e s t a p r o b l e m á t i c a v e r D Í A Z Y D Í A Z - E n t o r n o d e los o r í g e n e s d e i c r i s t i a n i s m o , p . 4 2 7 , s a -l i e n t a q u e : «La n a r r a c i ó n d e e s t e a p o s t o l a d o d e S a n t i a g o c i r c u l o c o m o p u r o d a t o d e e r u d i c i ó n h a s t a q u e s e a b r e c a m i n o p o p u l a r a fines d e i s i g lo VIII d e la E s p a n a d e i N o r t e , y q u i e r o s u b r a y a r l o d e E s p a n a d e i N o r t e p o r q u e e n t r e l o s m o z á r a b e s ( . . . ) e l c u l t o a S a n t i a g o , q u e a l c a n z a u n r e l i e -v e n o t a b l e , n o a p a r e c e n u n c a i n t e r f e r i d o p o r la n o t i c i a d e su p r e d i c a c i ó n h i s p â n i c a . »

4 5 C f . a n o t í c i a d e Aldhelmus ( a b a d e d e M a l m e s b u r y ) - Poema de Aris Beatae Mariae, c o l . 2 9 3 . E s t a n o t í c i a é r e t i r a d a d o Breviarium apostolorum, c o m p o s t o p o r v o l t a d e 6 0 0 . E s t a o b r a e s t á n a

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o r i g e m d e t o d a s as i n f o r m a ç õ e s p o s t e r i o r e s r e l a t i v a s à c h e g a d a d e S ã o T i a g o à H i s p â n i a . C f . t a m -b é m GAIFFIER, e d . - Le Breviarium apostolorum, p . 89-116.

4 6 P a r a u m e s t a d o d a q u e s t ã o , v e r SOTOMAYOR Y M U R O - La Iglesia en la Espana, v o l . 1, p . 150-156.

4 7 C f . VIVES, e d . - L a v i t a T o r q u a t i e t c o m i t u m , p . 2 2 7 - 2 3 0 . A o r i g e m d a t r a d i ç ã o d o s « p e r -s o n a g e n s a p o s t ó l i c o s » e s t á , p r o v a v e l m e n t e , r e l a c i o n a d a c o m a r e o r g a n i z a ç ã o d o t e r r i t ó r i o e c l e -s i á s t i c o a p ó s as i n v a s õ e s m u ç u l m a n a s . S o b r e e s t a p r o b l e m á t i c a , c f . GARCÍA RODRIGUÉZ - El culto de los santos, p . 351 e VIVES - Las A c t a s d e l o s V a r o n e s , p . 33-43.

4 8 C f . LE LÍBER Ordinum, p . 319. 4 9 C f . PASIONARIO hispânico, v o l . 1, p . 125-130. 5 0 O m e s m o a c o n t e c i a n a G á l i a , c o m o m o s t r a ROBLIN - F o n t a i n e s s a c r é e s , p . 235. 5 1 C f . DELPECH - L a l é g e n d e : r é f l e x i o n s , p . 3 0 0 e BOUREAU - P o u r u n d i s c o u r s d e la m é -

t h o d e r e l i g i e u s e , p . 4 6 . 5 2 C f . o e s t u d o s o b r e as l e n d a s a p o s t ó l i c a s d e OLIVEIRA - Lenda e história, p . 79 -110 . 5 3 C f . FERNÁNDEZ CATÓN - San Maneio, p . 237 . 5 4 C f . MARTYROLOGIUM romanum [25 a o u t ] , p . 4 4 7 . S o b r e o p e r s o n a g e m G e n s , c f . DAVID -

Etudes historiques, p . 2 0 5 - 2 0 9 e MOREIRA - Potamius de Lisbonne, p . 51-52. 5 5 C o m o a c o n t e c i a , a l iás , n o O r i e n t e . C f . FÉVRIER - M a r t y r e e t s a i n t e t é , p . 6 4 ss. 5 6 O t e r m o s e r á s e m p r e u t i l i z a d o e n t r e a spas ( tal c o m o f e z SCHMITT - Les « s u p e r s t i t i o n s » ) , p a -

ra m a r c a r q u e se t r a t a d e u m a p a l a v r a d a é p o c a e n ã o d e u m c o n c e i t o a c t u a l d o h i s t o r i a d o r . 5 7 MATTOSO - A d i f u s ã o d o c r i s t i a n i s m o , p . 285. 5 8 C f . CIPRIANO DE CARTAGO - Epistula 6 7 , p . 4 4 6 - 4 6 2 . S o b r e e s t a c a r t a d e C i p r i a n o , v e r

t a m b é m VELADO G R A S A - L a c a r t a s i n o d a l , p . 293 . 5 9 O s c a s o s d e a p o s t a s i a d e b i s p o s d u r a n t e a p e r s e g u i ç ã o d e D é c i o f o r a m n u m e r o s o s . C f . , p o r

e x e m p l o , EUSÉBIO DE CESAREIA, Historia - 8.3, 1, p . 8. 6 0 S o b r e C i p r i a n o d e C a r t a g o , v e r SAUMAGNE - Saint Cyprien, 1975. 6 1 C f . a p r o p ó s i t o d a i d o l a t r i a , p o r e x e m p l o , o c â n o n 41 ( « A d m o n e r i p l a c u i t fideles, u t i n

q u a n t u m p o s s u n t p r o h i b e a n t n e i d o l a v i n d o m i b u s su i s h a b e a n t . S i v e r o v i m m e t u u n t s e r v o r u m v e l se i p s o s p u r o s c o n s e r v e n t ; si n o n f e c e r i n t , a l i e n i a b e c c l e s i a h a b e a n t u r » ) e s o b r e o s j u d e u s e as s u a s r e l a ç õ e s c o m o s c r i s t ã o s , o s c â n o n e s 16, 4 9 e 50, VIVES - Concílios, p . 4 , 9 e 10.

6 2 SCHMITT, Les « s u p e r s t i t i o n s » , p . 425 . 6 3 S o b r e e s t e p e r í o d o h i s t ó r i c o cf . MATTOSO - A é p o c a s u e v a e v i s i g ó t i c a , p . 302 -359 . 6 4 LEGUAY - O « P o r t u g a l » g e r m â n i c o , p . 91. 6 5 C f . e d . d a U n i v e r s i d a d e d o M i n h o , 1986 . 6 6 C f . SILVA - I n t r o d u ç ã o , História contra os pagãos, p . 7 . 67 Ibidem, p . 11. 6 8 C f . VASCONCELOS - Religiões da Lusitânia, v o l . 3, p . 594. 6 9 BROWN - Le culte des saints. 7 0 LEGUAY - O « P o r t u g a l » g e r m â n i c o , p . 9 2 . 7 1 SCHMITT - Les « s u p e r s t i t i o n s » , p . 4 2 9 ss. 7 2 M A R T I N H O DE. BRAGA, Instrução pastoral sobre superstições. C f . , a e s t e p r o p ó s i t o , o c a p í t u l o i n -

t r o d u t ó r i o d e NASCIMENTO, A i r e s d o - O D e c o r r e c t i o n e r u s t i c o r u m : f o r m a , c o n t e ú d o s , i n t e n -c i o n a l i d a d e , n a e d i ç ã o c i t a d a , p . 37 ss.

7 3 D ÍAZ Y D Í A Z - Las o r i g e n e s c r i s t i a n a s , p . 2 7 7 - 2 8 4 . 7 4 C f . e n t r e o u t r o s , MACIEL - O D e c o r r e c t i o n e r u s t i c o r u m , p . 483-561 e MATTOSO - A c u l t u -

r a ç ã o r e l i g i o s a , p . 83 ss. 7 5 C f . MACIEL - T e x t o s o b r e as c r e n d i c e s , p . 3 0 9 - 3 2 0 e FÉVRIER - R e l i g i o s i t é t r a d i t i o n n e l l e ,

p . 7 6 . S o b r e a a c ç ã o d e M a r t i n h o d e D u m e c f . t a m b é m BRANCO - S t . M a r t i n o f B r a g a . 7 6 MATTOSO - A c u l t u r a ç ã o r e l i g i o s a , p . 85 -89 . C f . t a m b é m a e s t e p r o p ó s i t o IDEM - R a í z e s d a

m i s s i o n a ç ã o , p . 7 8 7 7 C f . FÉVRIER - R e l i g i o s i t é t r a d i t i o n n e l l e , p . 75-83 . 7 8 SCHMITT - Les « s u p e r s t i t i o n s » , p . 4 4 2 . 7 9 C f . VITA Sancti Fructuosi, v o l . 2 , p . 9 8 . 8 0 MESLIN — P e r s i s t a n c e s p a i e n n e s , p . 512-524. 8 1 C f . SILVA - N o r m a e d e s v i o , p . 144 -146 . 8 2 C f . BENNASSAR e BONNASSIE - Histoire des Espagnols, v o l . 1, p . 33-35. 8 3 VIVES - Concílios, p . 6 8 . 8 4 C f . ISIDORO DE SEVILHA - Etimologias, 8 . 9 , p . 713-717. 8 5 LEGUAY - O « P o r t u g a l » g e r m â n i c o , p . 9 0 . 8 6 VIVES - Concílios, c a n . 1.°, p . 81. 87 Ibidem, p . 8 5 - 1 0 6 . C f . t a m b é m CHAVES - C o s t u m e s e t r a d i ç õ e s , p . 2 4 3 - 2 7 8 . 8 8 C f . BARLOW - Martini episcopi, p . 65 , 6 9 , 7 4 , 150, 2 0 4 . 89 Ibidem, p . 2 5 6 ss. 9 0 MOREIRA - Potamius de Lisbonne. 9 1 IDÁCIO - Chronicon, 232 , p . 173. 9 2 C f . s o b r e t u d o o a r t i g o d e D O M Í N G U E Z DEL VAL - P o t â m i o d e L i s b o a , p . 237-258 . 9 3 FAUSTINO e MARCELINO - De confissione uerae fidei, 32, p . 368 . 9 4 C f . MOREIRA - Potamius de Lisbonne, p . 91. 95 Ibidem, p . 9 6 . 9 6 FEBÁDIO DE AGEN - Liber contra arianos, 5, c o l . 16. 9 7 S o b r e e s t a q u e s t ã o v e r e s p e c i a l m e n t e MOREIRA - Potamius de Lisbonne, p . 114. 98 Ibidem, p . 151. 9 9 HILÁRIO DE POITIERS - Liber de synodis, 3, c o l . 4 8 2 - 4 8 3 . 100 Ibidem, 11, c o l . 4 8 7 . 1 0 1 C f . MOREIRA - Potamius de Lisbonne, p . 158.

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

102 Ibidem, p . 146 e 151. 103 Ibidem, p . 122-123; IDEM - Le r e t o u r d e P o t a m i u s , p . 314. 1 0 4 C f . s o b r e o c o n j u n t o d a p r o b l e m á t i c a MOREIRA - Potamius de Lisbotme, p . 9 6 - 1 0 6 . 1 0 5 C f . HILÁRIO DE POITIERS - Collectanea antiariana, 3.1, p . 155. 1 0 6 C f . Ibidem, 3.2, p . 155. 1 0 7 FAUSTINO e MARCELINO - De confessione uerae fidei, 32, p . 3 6 8 . 108 Ibidem, 41, p . 3 7 0 . 1 0 9 C f . MOREIRA - Potamius de Lisbonne, p . 6 8 . 110 Ibidem, p . 190 . 111 C f . ATANÁSIO - Epistula ad Epictetum, 1, c o l . 1051-1052. 1 1 2 C f . MOREIRA - Le r e t o u r d e P o t a m i u s , p . 342. 1 1 3 C f . IDEM - Potamius de Lisbonne, p . 257. 1 1 4 POTÂMIO - De Lazaro, p . 3 0 2 . 1 1 5 C f . MESLIN - Les Ariens d'Occident, p . 32. 1 1 6 C f . SIMONETTI - L a c r i s i a r i a n a , p . 131 e MOREIRA - Le r e t o u r d e P o t a m i u s , p . 328. 1 1 7 FEBÁDIO DE AGEN - Liber contra arianos, 5, p . 16. 1 1 8 C f . s o b r e t u d o BOULARAND - L'hérésie d'Árius, 1972 . " 9 P O T Â M I O , Epistula de substantia, 18, c o l . 2 0 8 . 120 Ibidem, 10, c o l . 2 0 6 . 121 L'UNITÉ de 1'homme, p . 257. 1 2 2 U m g r u p o s i g n i f i c a t i v o d e s t e s t e x t o s é d e o r i g e m a f r i c a n a . C f . , p o r e x e m p l o : Sermo arría-

norum, c o l . 6 7 7 , 6 8 7 ; Ad Trasimundo regem vandalorum, 3, c o l . 2 2 3 - 3 0 4 e Sermo fastidiosi, e d . J . - P . M i g n e , c o l . 375-377 . C o n s u l t a r t a m b é m ORLANDIS - E l a r r i a n i s m o v i s i g o d o , p . 8; SIMONETTI -A r i a n e s i m o l a t i n o , p . 6 8 9 e GODOY e VILLELA - De la fides gothica, p . 117-144.

1 2 3 A p r o p ó s i t o d a c o e x i s t ê n c i a e n t r e R o m a n o s e G e r m a n o s n a H i s p â n i a , c f . as i n f o r m a ç õ e s f o r n e c i d a s p o r PAULO O R Ó S I O — Historiarum adversus paganos, e IDÁCIO — Chronicon. C f . t a m b é m ORLANDIS — Historia de Espana, p . 4 6 - 5 0 .

1 2 4 C f . Ibidem, p . 9 9 ss. 1 2 5 C f . ALONSO CAMPOS - S u n n a , M a s o n a y N e p o p i s , p . 152. 1 2 6 C f . VITAE sanctorum patrum emeritensium, 5.5, p . 57. 127 Ibidem, p . 58. 1 2 8 COLLINS - D ó n d e e s t a b a n les a r r i a n o s , p . 215. 129 yITAE sanctorum patrum emeritensium, 5.5, p . 58-59. S o b r e o c o n f r o n t o , e m M é r i d a , e n t r e o

b i s p o M a s o n a e o b i s p o a r i a n o S u n n a , c f . a i n d a SCHAEFERDIEK - Die Kirche in den Reichen der Westgoten, p . 165-179 e GARCÍA M O R E N O - Prosopograjia dei Reino, n . ° 435, p . 1 6 6 - 1 6 9 .

130 y1TAE sanctorum patrum emeritensium, 5.5, p . 6 2 . 131 Ibidem, 5.6, p . 7 0 - 7 1 . 132 Ibidem, 5.10, p . 8 2 - 8 5 E JOÃO DE BICLARA - Chronicon, anno vtt, Mauricii, 1, p . 9 7 . V e r t a m -

b é m GARCÍA M O R E N O - Prosopografia dei Reino, n . ° 3 5 , p . 4 0 - 4 3 . 1 3 3 C f . ALONSO CAMPOS - S u n n a , M a s o n a y N e p o p i s , p . 154. 1 3 4 BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 7 8 . 1 3 5 SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2, 4 6 . 3 , p . 9 9 . 1 3 6 C f . JERÓNIMO - Epistula 75 , 3 .4 , p . 32-33. 1 3 7 SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2, 4 6 . 5 , p . 9 9 . 138 Ibidem, 2, 4 6 . 2 , p . 9 9 . 1 3 9 C f . ISIDORO DE SEVILHA - De uiris ilustribus, p . 135. 1 4 0 P e n s e m o s n o e x c e r t o j á c i t a d o d a h o m i l i a d e P o t â m i o s o b r e o s u p l í c i o d e I sa ías q u e a t e s t a

b e m a l e i t u r a n o O e s t e p e n i n s u l a r d e a p ó c r i f o s j u d a i c o - c r i s t ã o s . 1 4 1 I s t o m e s m o é s u b l i n h a d o p o r M E N É N D E Z PELAYO - História de los heterodoxos espaiioles, 1,

p . 131-247. E s t e a u t o r c o n s i d e r a P r i s c i l i a n o c o m o h e r é t i c o e i n i c i a d o r d e u m a s e i t a g n ó s t i c a d e r a i z m a n i q u e i a .

1 4 2 E s t a d o u t r i n a o p u n h a r a d i c a l m e n t e o b e m a o m a l e o e s p í r i t o à m a t é r i a . P o r i s so , c o n d e -n a v a a h i e r a r q u i a r e l i g i o s a e c iv i l , a s e x u a l i d a d e e a p o s s e d e b e n s m a t e r i a i s .

1 4 3 E s t a m o s p e r a n t e u m a d o u t r i n a q u e p r o c l a m a v a a p r e v a l ê n c i a d o c o n h e c i m e n t o e s p i r i t u a l o u m í s t i c o s o b r e t o d a a e s p é c i e d e p r á t i c a s c u l t u a i s , a p r e v a l ê n c i a d a v i v ê n c i a s o b r e a d o u t r i n a , e a das p r á t i c a s i n i c i á t i c a s d e s t i n a d a s a a l g u n s s o b r e a l i t u r g i a p ú b l i c a d e s t i n a d a a t o d o s .

144 ££ TRACTATUS CSEL, 18, p . 1 - 1 0 6 . S o b r e a a u t o r i a d e s t e s t r a t a d o s v e r ESCRIBANO PANO -Iglesia y Estado, p . 57-113.

1 4 5 C f . M A D O Z - A r r i a n i s m o y p r i s c i l i a n i s m o , p . 7 2 . P a r a e s t e a u t o r , o s Tratados de Wiirzburg c o n t r i b u í r a m p a r a a g r a v a r o d e b a t e s o b r e o m a n i q u e í s m o e o g n o s t i c i s m o , a c u s a ç õ e s q u e a t r a d i -ç ã o faz c a i r s o b r e P r i s c i l i a n o .

1 4 6 S o b r e o d e s e n v o l v i m e n t o d o p r i s c i l i a n i s m o n a G a l é c i a a p a r t i r d o s é c u l o v , c f . ESCRIBANO PANO - Iglesia y Estado, p . 4 6 - 5 2 .

1 4 7 S o b r e t u d o a r t i g o P a n o r a m a e s p i r i t u a l , 1981. 1 4 8 A G O S T I N H O DE H I P O N A - Epistula 36, p . 57 e PRÓSPERO DE AQUITÂNIA - Chronica, 1171,

p . 4 6 0 . 1 4 9 S o b r e as f o n t e s a n t i p r i s c i l i a n i s t a s c f . a l is ta d e ESCRIBANO PANO - Iglesia y Estado, p . 4 2 ss. 1 5 0 C f . MATTOSO - R a í z e s d a m i s s i o n a ç ã o , p . 73. 1 5 1 C f . RODRÍGUEZ CASIMIRO - La Galicia, p . 2 9 3 - 2 9 4 . 1 5 2 C f . SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2, 4 6 . 8 e 4 7 . 3 - 4 , p . 100 -105 . 1 5 3 C f . RODRÍGUEZ - C o n c i l i o I d e Z a r a g o z a , p . 12. 154 V [ v E S _ Concílios, p . 16. 1 5 6 C f . FATAS - C a e s a r a u g u s t a C h r i s t i a n a , p . 155. 1 5 6 C f . RAMOS-LISSON - E s t ú d i o s o b r e e l c â n o n v , p . 2 0 7 - 2 2 4 . 1 5 7 C f . VIVES - Concílios, p . 17.

4 8

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A D I N Â M I C A D A C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O D E B A T E O R T O D O X I A / H E T E R O D O X I A

1 5 8 GRIFFE — É t u d e s u r l e c â n o n n , p . 162. 1 5 9 VIVES - Concílios, p . 16. 160 Ibidem, p . 16-17. 161 Ibidem, p . 17-18. 1 6 2 S o b r e e s t a p r o b l e m á t i c a c f . GONZÁLEZ BLANCO - E l c â n o n 7 d e i c o n c i l i o , p . 252, o n d e

n o t a q u e «El c â n o n , p u e s , n o d e b e e n t e n d e r s e e n e l s e n t i d o d e q u e l o s l a i c o s n o p u e d a n e n s i n a r , s i n o q u e s u p u e s t o u n c o n t e x t o s o c i a l e n e l q u e e l m a g i s t é r i o n o e s t á c e n t r a l i z a d o y lo s o b i s p o s r e u n i d o s v e n l o s p r o b l e m a s q u e a c a r r e a la i n i c i a t i v a p r i v a d a e n la v i d a Cr i s t i ana d e las c o m u n i d a -d e s , e l c â n o n p r e t e n d e e s t a b e l e c e r u n o r d e n y u n c o n t r o l , l o m i s m o q u e s o l í a n h a c e r l o s c o n c i -l i o s e n las m a t é r i a s d i s c i p l i n a r e s o d o g m á t i c a s . »

1 6 3 C f . AGOSTINHO DE H I P O N A - Epistula 36, 28 .1-2 , p . 57, n a q u a l c r i t i c a o s p r i s c i l i a n i s t a s q u e , c o m o o s m a n i q u e u s , t i n h a m o h á b i t o d e j e j u a r a o d o m i n g o .

1 6 4 SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2 , 47 .1-3 . p . 1 0 0 . V e r t a m b é m ESCRIBANO PANO - S o b r e la p r e t e n d i d a c o n d e n a n o m i n a l , p . 123-133.

165 Ibidem, 2, 4 7 . 5 - 7 , p . 100-101 . V e r t a m b é m BABUT - Priscillien, p . 149-151. 1 6 6 C f . SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2 , 50 .8 e 51.2-3, p . 103-104 . 1 6 7 IDÁCIO - Chronicon, 16, p . 109 . 1 6 8 SULPÍCIO SEVERO - Chronica, 2, ,51.7-8, p . 104-105 . 1 6 9 C f . CHADWICK - Prisciliano de Avila, p . 2 0 6 . 1 7 0 VIVES - Concílios, p . 19. 171 Ibidem, p . 28 ss. C o n s u l t a r , a e s t e p r o p ó s i t o , BABUT - Priscillien, p . 187 e 2 8 6 . 1 7 2 C f . VIVES - Concílios, p . 25-28 . 1 7 3 C f . ESCRIBANO PANO - C r i s t i a n i z a c i ó n y l i d e r a n z o , p . 271. 1 7 4 C f . TRANOY - La Galice romaine, p . 4 2 8 ss. 1 7 5 VIGILO - Epistula, p . 49 -53 . 1 7 6 MATTOSO - A d i f u s ã o d o c r i s t i a n i s m o , p . 2 8 3 - 2 8 7 . 1 7 7 IDEM - B r e v e i n t e r p r e t a ç ã o , p . 291. 1 7 8 LEÃO I — Ad Turibium, c o l . 6 9 3 - 6 9 5 . 1 7 9 IDXCIO - Chronicon, 130, 133, 138, p . 140-142 . S o b r e a I g r e j a e o s S u e v o s c f . SOTOMAYOR -

Iglesia, p . 3 9 0 - 3 9 2 . 1 8 0 C f . , a e s t e p r o p ó s i t o , TRANOY - La Galice romaine, p . 4 4 3 . 181 C0MM0NIT0RWM In. PL 31, c o l . 1211-1216. 1 8 2 MARTINS - Correntes da filosofia, p . 7 4 . 183 Ibidem, p . 150. 1 8 4 S o b r e e s t e s m o v i m e n t o s cf . a i n d a Ibidem, p . 143-165. 185 Liber apologeticus, PL 31, c o l . 1173-1212. C f . t a m b é m SILVA - I n t r o d u ç ã o , História contra os

pagãos, p . 9 . S o b r e a l u t a a n t i p e l a g i a n a v e r MARTINS - Correntes de filosofia, p . 179. , 8 ' C י f . s o b r e t u d o RIVERA RECIO - L a Ig les ia m o z a r a b e , p . 2 1 - 6 0 . 187 Ibidem, p . 35-36. 1 8 8 S o b r e a p r o b l e m á t i c a d o a d o p c i o n i s m o n o s s é c u l o s VIII e i x c f . GAVADINI - T h e last c h r i s -

t o l o g y o f t h e W e s t e RIVIERA RECIO - El adopcionismo en Espana. LS" RIVERA RECIO - L a Ig l e s i a m o z a r a b e , p . 41. 1 9 0 C f . PL 104 , c o l . 441 . 1 9 1 M G H c o n c , v o l . 2, 123. 1 9 2 V e j a - s e , n o m e a d a m e n t e , a i m p o r t â n c i a d o c a t a r i s m o e d o v a l d i s m o n a C a t a l u n h a e , e m

m e n o r m e d i d a , e m L e ã o e C a s t e l a : OLIVER - L a h e r e j í a , p . 82-111. 1 9 3 GEREMEK - H é r é s i e s m é d i é v a l e s , p . 55-56. 1 9 4 DUBY - O ano mil. IDEM - As três ordens. 1 9 5 MATTOSO - P o r t u g a l n o r e i n o a s t u r i a n o - l e o n ê s , p . 491-525. 1 9 6 S o b r e e s t a q u e s t ã o , v e r 1.* P a r t e , c a p . 3. A l g o d e s e m e l h a n t e a c o n t e c e u e m T o l e d o -

cf . PASTOR DE T O G N E R I - Del Islam al Cristianismo, p . 114-118. 1 9 7 LITTLE — Pobreza voluntária. 1 9 8 BOLTON - A reforma, p . 6 3 - 7 6 . 1 9 9 A b i b l i o g r a f i a s o b r e o c a t a r i s m o é i n f i n d á v e l . V e j a - s e , e n t r e o u t r o s , DUVERNOY - La reli-

gion des cathares. IDEM - L'Histoire des cathares. NELLI - Q s cátaros. S o b r e a p e r s i s t ê n c i a d e s t a h e r e -sia a t é a o s é c u l o x r v , c f . LE ROY LADURIE - Montaillou.

200 \ 4 I T R E E GRANDA - Las grandes herejías, p . 173-177. 201 LIVRO das Leis e Posturas (LLP), p . 10-11. ORDENAÇÕES del-rei D. Duarte (ODD), p . 4 4 - 4 5 . 2 0 2 D e f a c t o , o C o n c í l i o d e V e r o n a , d e 1184, n o q u a l se h a v i a a n a t e m a t i z a d o d i v e r s o s t i p o s d e

h e r é t i c o s , h a v i a c o n f i a d o a b u s c a e p e r s e g u i ç ã o d e s t e s a o o r d i n á r i o l o c a l (OLIVER - L a i n q u i s i -c i ó n m e d i e v a l , p . 112.)

2 0 3 S o b r e e s t a q u e s t ã o , cf . HERCULANO - História de Portugal, v o l . 2 , p . 3 0 5 - 3 0 9 , 3 3 9 - 3 4 0 , 5 9 7 -- 6 0 1 e 652 . AZEVEDO - História de Portugal, v o l . 5, p . 180-186 . ROSÁRIO - P r i m ó r d i o s d o m i n i c a n o s , p . 2 0 5 - 2 4 9 . CAEIRO - S o b r e h e r e s i a s .

2 0 4 CUSTÓDIO - R e l i g i o s i d a d e m e d i e v a l , p . 7 6 - 7 7 . 205 LLP, p . 1 9 - 2 0 , ODD, p . 53. 2 0 6 TAVARES - H e r e s i a , n o p r e l o . 2 0 7 P o r o p o s i ç ã o a o p o p u l a r (c f . LEEF - H é r é s i e s a v a n t e , p . 219) . 2 0 8 COSTA - Estudos sobre Alvaro Pais, p . 6 6 . 2 0 9 BARBOSA - O «De Statu», p . 107 . 2 1 0 CAEIRO - H e r e s i a s e p r e g a ç ã o , n o t a 6 , p . 3 0 2 . 2 1 1 T a l f o r m a d e p e n s a m e n t o h a v i a f l o r e s c i d o n a U n i v e r s i d a d e d e Pa r i s n o s é c u l o a n t e r i o r , t e n d o

s i d o c o n d e n a d a p o r i n i c i a t iva d o b i s p o loca l e m 1277 (cf. LE GOFF - Os intelectuais, p . 113-119). 2 1 2 C r e n ç a q u e p a r t i l h a v a c o m o u t r o h e r é t i c o , A f o n s o G e r a l d e s d e M o n t e m o r , i g u a l m e n t e

f u s t i g a d o p o r A l v a r o P a i s . C f . MARTINS - F r e i A l v a r o P a i s , p . 7 4 .

4 9

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

213 Ibidem; IDEM - A s a c u s a ç õ e s , p . 2 8 5 - 3 0 6 . 2 1 4 COSTA - Estudos sobre Alvaro Pais, p . 6 7 . 2 1 5 BARBOSA - O «De Statu», p . 7 6 e 85. 2 1 6 S o b r e e s t a q u e s t ã o cf . MANTEUFFEL - Naissance d'une hérésie. 2 1 7 CAEIRO - H e r e s i a s e p r e g a ç ã o , p . 301. MARTINS - A p o l é m i c a r e l i g i o s a e F r e i J o ã o ,

p . 3 0 7 - 3 2 6 . S o b r e a a p o l o g é t i c a a n t i j u d a i c a , l e i a - s e o c a p í t u l o s e g u i n t e d e s t e v o l u m e . 2 1 8 S o b r e e s t e s m o v i m e n t o s cf . MOLLAT e W O L F F - Ongles bleus. FOURQUIN - Les soulèvements

populaires. H Í L T O N - Bond men made Jree. 2 1 9 S o b r e o c o n t e x t o s o c i a l d e s t e p e r í o d o e a m u l t i p l i c a ç ã o d e p e d i n t e s e p r e g a d o r e s i t i n e r a n -

tes c f . RAU - Sesmarias medievais, p . 7 6 - 9 3 ( c i t a ç ã o d a l e i p . 2 6 9 ) e CAEIRO - H e r e s i a s e p r e g a ç ã o , p . 3 0 3 - 3 0 4 .

2 2 0 CARVALHO - C o n q u i s t a r e p r o f e t i z a r , p . 7 2 - 7 5 . S o b r e a f i g u r a d e s t e e r e m i t a p o r t u g u ê s c f . IDEM - N a s o r i g e n s .

2 2 1 TAVARES - C o n f l i t o s s o c i a i s , p . 3 0 9 . S o b r e es tas f o r m a s d e p e n s a m e n t o c f . , c o m f o r t e e s p í -rito c r í t i c o , BRUNETI - A lenda do Graal.

2 2 2 J á p o s t o e m e v i d ê n c i a p o r TAVARES - C o n f l i t o s s o c i a i s , p . 318-319. M O N T E I R O - Fernão Lo-pes, p . 114-119. AMADO - Fernão Lopes, p . 31-32.

2 2 3 VENTURA - O Messias, p . 1-2 . IDEM - O A l g a r v e , p . 7 4 . 2 2 4 C o m o e r a o c a s o d e F r e i J o ã o d a B a r r o c a , s e g u n d o MARTINS - U m c a p í t u l o d e m í s t i c a ,

p . 4 7 0 . 2 2 5 TAVARES - C o n f l i t o s soc i a i s , p . 318-319. REBELO - A concepção do poder, p . 80 -81 . VENTURA -

O Messias, p . 2 7 - 4 2 . 2 2 6 REBELO - A concepção do poder, p . 68 -71 . VENTURA - O Messias, p . 51. S o b r e e s t e p e n s a d o r

m e d i e v a l , c f . REEVES - Joachim of Fiore. 227 LLP, p . 82. ODD, p . 2 9 8 . 2 2 8 TAVARES - Judaísmo, p . 1 0 7 . 2 2 9 FERREIRA - Afonso X , p . 2 6 2 . 230 ORDENAÇÕES 'de D. Afonso V ( C M ) , L . v , T i t . 1, p . 2-5 e T i t . LXXXXVIII, p . 353-355. 2 3 1 M O R E N O - I n j ú r i a s e b l a s f é m i a s , p . 8 6 . 2 3 2 DUARTE - Justiça e criminalidade, p . 368 . E s t e a u t o r a p e n a s e n c o n t r o u 18 c a s o s d e a c u s a ç õ e s

d e b l a s f é m i a e n t r e as c a r t a s d e p e r d ã o q u e e s t u d o u , r e p r e s e n t a n d o 1,4 % d o t o t a l - Ibidem, p . 2 6 6 e 2 6 9 .

233 SYNODICON, v o l . 11, p . 119, 321, 3 7 6 . 2 3 4 C r i a d a a p a r t i r d o I V C o n c í l i o d e L a t r ã o , d e 1215, e s t a i n q u i s i ç ã o f o i m e s m o , p o r ta l m o t i -

v o , i n t i t u l a d a d e m o n á s t i c a - OLIVER - L a i n q u i s i c i ó n m e d i e v a l , p . 113. 2 3 5 PEREIRA - U m p r o c e s s o , p . 1 9 6 - 1 9 7 . 2 3 6 G O M E S - É t i c a e p o d e r , d o e . 23 A , p . 134. 2 3 7 S o b r e e s t e s h e r e s i a r c a s cf . W O R K M A N - John Wyclif e V O O G H T - Vhérésie de Jean Huss. 2 3 8 DUARTE, D o m - Leal conselheiro, p . 3 4 0 , 343, 3 4 8 e ss. 239 Ibidem, p . 3 0 2 . 240 Ibidem, p . 141. A o b r a d e s t e a u t o r , a c u s a d o d e m a g i a m a s b e a t i f i c a d o a p ó s o s e u m a r t í r i o às

m ã o s d o s m u ç u l m a n o s , f o i d e c l a r a d a h e r é t i c a p o r G r e g ó r i o X I e m 1376, e r e a b i l i t a d a e m 1419 (cf . BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 6 8 - 7 0 ) .

2 4 1 C o m o j á f o i s u g e r i d o p o r CARVALHO - Desenvolvimento da filosofia, p . 349 e VENTURA — H e r e s i a s e d i s s i d ê n c i a s , p . 314-315.

242 CABIDO da Sé, p . 131 e 301-301. 243 LLP, p . 121-122. OA, L 11, T i t . LXXVII, LXXXXV e c x x i , p . 4 5 7 - 4 6 1 , 520-521 e 563-564 . 2 4 4 TAVARES - Os Judeus, p . 4 4 4 - 4 4 7 . S o b r e a I n q u i s i ç ã o m o d e r n a , v e r o 2 . ° v o l u m e d e s t a c o -

l e c ç ã o . 2 4 5 CAEIRO - H e r e s i a s e p r e g a ç ã o , p . 3 0 0 . VENTURA - H e r e s i a s e d i s s i d ê n c i a s , p . 3 0 4 - 3 0 5 . 2 4 6 C f . BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 2 8 2 - 2 9 2 . 2 4 7 BURCKHARDT - A civilização da Renascença p . 4 2 0 . 2 4 8 G O G L I N - Les misérables, p . 2 0 6 . 2 4 9 BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 2 6 3 - 2 6 4 . 2 5 0 MUCHEMBLED - La sorcière au village, p . 73. 2 5 1 BETHENCOURT - O imaginário da magia, p . 258-259 . 252 Ibidem, p . 2 5 9 - 2 6 0 . 2 5 3 É essa a h i p ó t e s e d e SILVA - N o r m a e d e s v i o , p . 121-122. 2 5 4 S í n o d o d e B r a g a d e 1477 , c o n s t i t . 4 4 - SYNODICON, v o l . 2 , p . 117. 255 V e j a - s e SANCHIS - Arraial. 2 5 6 S í n o d o d e L i s b o a d e 1403, c o n s t i t . 23 - SYNODICON, v o l . 2 , p . 335. 2 5 7 S o b r e as c o n t i n u i d a d e s e as d i f e r e n ç a s p a t e n t e s , p o r e x e m p l o , n o s rituais d a m o r t e

c f . MATTOSO - O p r a n t o f ú n e b r e , p . 205 -214 . 2 5 8 S í n o d o s d e B r a g a d e 1281, c o n s t i t . 4 0 e d e 1 4 7 7 , c o n s t i t . 11 - SYNODICON, v o l . 2, p . 2 2 - 2 3

e 88. 2 5 9 P r o t e g e r a n i m a i s d a d o e n ç a é o e x e m p l o d a d o p o r SCHMITT - Les « s u p e r s t i t i o n s » ,

p . 510-511. 2 6 0 C f . BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 185-201. 2 6 1 A s s i m , u m a u t o r p r o f u n d a m e n t e c r i s t ã o c o m o D . D u a r t e a l e r t a o s s e u s l e i t o r e s c o n t r a

a c r e n ç a e m p r o f e c i a s , s o n h o s , v i s õ e s e c i ê n c i a s o c u l t a s (Leal conselheiro, p . 146) . 2 6 2 S í n o d o s d e B r a g a d e 1281, c o n s t i t . 35, d e 1477 , c o n s t i t . 4 6 e d e 1505, c o n s t i t . 22; s í n o d o d a

G u a r d a d e 1500 , c o n s t i t . 6 4 ; s í n o d o d e L i s b o a d e c . 1240 , c o n s t i t . 9 ; s í n o d o d o P o r t o d e 1 4 9 6 , c o n s t i t . 25; SYNODICON, v o l . 2, p . 21, 119, 156, 257 , 2 9 0 e 373.

263 TRATADO de Confissom, p . 196 . 2 6 4 SILVA - N o r m a e d e s v i o , p . 128-130.

5 0

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A D I N Â M I C A D A C R I S T I A N I Z A Ç Ã O E O D E B A T E O R T O D O X I A / H E T E R O D O X I A

2 6 5 S o b r e o s p a p a s e c l é r i g o s a c u s a d o s d e f e i t i ç a r i a c f . BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 6 2 - 6 7 .

2 6 6 D i v e r s o s a u t o r e s c o m p i l a r a m c a r t a s d e p e r d ã o r e l a t i v a s a c r i m e s d e f e i t i ç a r i a : AZEVEDO -B e n z e d o r e s e f e i t i c e i r o s , p . 3 3 0 - 3 4 7 . IDEM - S u p e r s t i ç õ e s p o r t u g u e s a s , p . 2 0 0 - 2 1 5 . M O R E N O -A f e i t i ç a r i a , p . 35-41. F o i n e l a s q u e c o l h e m o s o s d a d o s q u e a s e g u i r a n a l i s a m o s .

2 6 7 M O R E N O - A fe i t i ça r ia , p . 33. FERREIRA - B r e v e s n o t a s s o b r e fe i t ice i ras , p . 12. BETHENCOURT -O imaginário da magia, p . 176 -177 . BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 4 7 .

2 8 ' C ׳ o m o j á n o t a r a m M O R E N O - A f e i t i ç a r i a , p . 2 7 e BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 4 7 . 2 6 9 E s t e s p r o c e d i m e n t o s s ã o o s r e l a t a d o s n a s c a r t a s d e p e r d ã o p o r t u g u e s a s ; o u t r o s s ã o - n o s d e s -

c r i t o s p o r BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 235-237. 2 7 0 A m a g i a l i g a d a à a g r i c u l t u r a e à p r o t e c ç ã o p e s s o a l e r a t ã o c o m u m q u a n t o a m a g i a a m o r o -

sas (cf . BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 237 -243 ) . 2 7 1 GARCÍA Y GARCÍA - O « L i b r o d e las C o n f e s i o n e s » , p . 148. MARTINS - O « L i v r o d a s C o n -

fissões», p . 82 . IDEM - O P e n i t e n c i a l d e M a r t i n i P e r e z , p . 6 2 - 6 3 . 2 7 2 MARTINS - O « L i v r o d a s C o n f i s s õ e s » , p . 9 0 - 9 2 . IDEM - O P e n i t e n c i a l d e M a r t i m P e r e z ,

p . 9 9 - 1 0 0 . 2 7 3 E m b o r a o m i t o d a s m u l h e r e s v o a d o r a s se p o s s a d e t e c t a r d e s d e o s é c u l o x n o u t r o s l u g a r e s

d a E u r o p a (c f . BOLOGNE - Da chama à fogueira, p . 51-53). 2 7 4 MARTINS - O « L i v r o d a s C o n f i s s õ e s » , p . 91. 2 7 5 MARQUES - A Sociedade, p . 1 7 0 . 276 ELEMENTOS para a história do município de Lisboa, v o l . 1, p . 2 6 4 - 2 8 0 . 277 SYNODICON, v o l . 2 , p . 334-335. 278 OA, L . v , T i t . x x x x i i , p . 152-154. 2 7 9 T a l c o n t i n u a v a a s u c e d e r , e m p l e n a c e n t ú r i a d e Q u i n h e n t o s , n a s O r d e n a ç õ e s M a n u e l i n a s

(cf . BETHENCOURT - O imaginário da magia, p . 230-231) .

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O difícil diálogo entre judaísmo e cristianismo Mana José Feno Tavares

OS JUDEUS NO PORTUGAL MEDIEVAL JUDEUS E CRISTÃOS CONVIVERAM n a P e n í n s u l a I b é r i c a , a Sefarad, d e s d e o

Impér io R o m a n o , segundo os estudos mais recentes1 . Yosef H a C o h e n , c ro -nista j u d e u do século xvi, afirmava que, na Hispânia, se encon t ravam os fug i -tivos de Jerusalém desde o t e m p o de Adriano, que destruiu a resistência j u -daica encabeçada p o r Ben Koseba2 .

A arqueologia tem assinalado a presença hebraica na Península, desde os séculos 1 e 11 d. C . Se a menorah, o candelabro de sete braços, p o d e querer identificá-la, t a m b é m a encon t ramos e m finais do século v, e m Mértola , o n -de foi encontrada uma lápide funerária t runcada c o m a menorah gravada.

Seguem-se- lhe as duas pedras sepulcrais c o m inscrições hebraicas, p rove -nientes de Espiche, per to de Lagos, identificadas por Schwarz, que as datou dos séculos VI-VII. Nelas se re fe rem dois m e m b r o s da família C o h e n 3 .

Os j u d e u s d e v e m ter pe rmanec ido nas cidades mais a oc idente do Al--Andaluz , embora p o u c o se saiba sobre a sua presença n o terr i tório que viria a ser Portugal . D e facto, a referência documenta l mais antiga à minor ia pe r -tence às cartas de foral, c o m o as de Lisboa e de Évora, que, para além de e n -tregarem aos alvazis os pleitos e m que entrassem indivíduos de credo moisai-co, menc ionavam a existência de mercadores 4 .

T a m b é m antiga era a comun idade judaica de Co imbra , pois data do sé-culo xi uma cópia do Concí l io de Coiança de 1050, o n d e se i m p u n h a a sepa-ração entre j u d e u s e cristãos. U m m o n g e do moste i ro de Vacariça t rouxera-a e u m copista in tegrou-a n o Livro preto da Sé de Co imbra . Nela se lia: «ne-n h u m cristão ou cristã seja tão ousado que habite e m casa c o m judeus ou t o -m e al imentos c o m eles»5.

As relações entre a maioria e a minor ia foram, desde cedo, previstas. Aliás os nossos monarcas pod iam apresentar-se c o m o soberanos de súbditos pe r t en -centes às três religiões, sendo a convivência entre elas baseada na tolerância. Viviam n o reino, t endo c o m o seu senhor o rei a q u e m per tenc iam e que os designava pelo possessivo meus judeus.

Assim, cabia ao soberano permit i r , ou não, a sua presença no terr i tório por tuguês . Escassos n o início do reino, devendo habitar os concelhos mais populosos, c o m o Lisboa, Santarém, Co imbra , Évora, os j udeus residiam nos seus bairros que, e m alguns casos, deviam remontar , na localização, ao passa-do islâmico, c o m o e m Lisboa, onde a chamada Judiaria Velha se situava no arrabalde da cidade muçu lmana . N o entanto , a existência de uma judiaria, c o m o e m Lisboa, não significava que eles não se encontrassem t a m b é m dis-persos por entre a população cristã. A efectiva separação espacial seria tardia e só se generalizou ao re ino durante o século xv.

D e s c o n h e c e m o s se a c o m u n a , en t idade paralela ao c o n c e l h o , para os j u d e u s , c o m magis t rados p rópr ios eleitos en t r e os ind iv íduos da minor i a , ou n o m e a d o s pe lo rei, nou t ro s casos, en t re estes, r emon ta r i a aos alvores da nac iona l idade ou se seria u m privi légio pos ter ior . O m e s m o se passa c o m o cargo de r a b i - m o r , o c u p a d o p o r u m j u d e u cor tesão da conf iança do m o -narca, e q u e t inha c o m o f u n ç ã o supe r in t ende r na jus t iça destes súbdi tos , e m n o m e do rei. Apesar de a f u n ç ã o deste j u d e u cor tesão se e n c o n t r a r d o -c u m e n t a d a desde o re inado de D . A f o n s o III, só viria a ser def in ida e m f i -nais do século xiv , c o m o o c o r r e g e d o r na cor te para os j u d e u s , não t e n d o paralelo na minor i a m u ç u l m a n a q u e estava d e p e n d e n t e , na cor te , do c o r r e -g e d o r cristão.

<] Fuste de coluna visigótica, c o m representação de u m vaso sagrado e de duas perdizes ladeando uma serpente (Beja, Museu R a i n h a D . Leonor).

FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/ /ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

Confirmação dos privilégios da judiaria de Leiria, por D . J o ã o I, 1386 (Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo) .

F O T O : JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.

D> Interior da sinagoga de Tomar.

F O T O : JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/ /ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

Pertença do rei, este tratava os j udeus c o m o u m corpo social, religioso, judicial e tr ibutário a u t ó n o m o da maioria. Assim, regiam-se pela Tora e pe lo T a l m u d e in te rnamente , embora estivessem submetidos às ordenações gerais do re ino e tivessem c o m o ju iz supremo o monarca .

Possuíam chancelarias próprias: das comunas , dos arrabiados das comarcas e do ar rabiado-mor , as quais infe l izmente se perderam. P u d e r a m man te r o hebraico nos documen tos oficiais até ao re inado de D . J o ã o I, altura e m q u e este foi substi tuído pelo por tuguês . Permanecer ia , n o entanto, c o m o língua religiosa e de comunicação interna, sendo a sua escrita usada para transliterar o por tuguês e m correspondência particular.

A u t ó n o m o s do conce lho , embora ocupassem u m espaço deste, os j u d e u s eram, n o entanto, compel idos a pagar-lhe certos impostos para a defesa, a p o -sentadoria e outras necessidades municipais. Até ao re inado de D . Duar te , os j udeus fo ram definidos c o m o vizinhos dos concelhos, pagando o soldo de vi -zinhança e usuf ru indo dos mesmos privilégios que os cristãos, c o m o a isenção do pagamento da por tagem. Posto e m causa este direito, já n o t e m p o de D. Fernando, seria D . Duar te , ainda e m t e m p o de seu pai, que o revogaria, pois tal direito não se devia aplicar aos «infiéis».

O re lac ionamento da minor ia judaica c o m o soberano foi, até à expulsão, perfei to, t endo este mant ido os privilégios e a pro tecção pessoal para c o m os «seus» j u d e u s q u a n d o a agressividade dos cristãos e dos municípios , contra a au tonomia das comunas , se c o m e ç o u a manifestar e a crescer. E óbvio que esta pro tecção não era gratuita. Ela tinha a contrapart ida dos inúmeros i m -postos que os j u d e u s do re ino entregavam à Coroa . Súbditos do rei, eles pa r -t icipavam, tal c o m o os cristãos, nas entradas reais e nos demais festejos e m honra d o soberano ou da família real6.

É neste re lac ionamento c o m o monarca que devemos en tender a existên-cia de vassalos j u d e u s que serviam o rei c o m cavalo e armas, c o m cavaleiros e peões seus correligionários. Usu f ru í am do privilégio de vassalos do rei, que t inha apenas u m carácter vitalício, mas que podia ser t ransmit ido à viúva, e n -quan to esta permanecesse na sua «honra». R e l e m b r e m o s aqui mestre Abraão Negro , ú l t imo rab i -mor de Portugal , físico de D . Afonso V, que viria a m o r -rer na conquista de Arzila, lu tando contra os mouros ao lado do rei de P o r -tugal7.

Pacífica parece ter sido t a m b é m a relação c o m a Igreja por tuguesa, a q u e m pagavam o díz imo, apesar de tal pagamento ser contestado pelas c o m u -nas. E m b o r a pugnassem alguns bispos pe lo c u m p r i m e n t o das normas conc i -liares contra os judeus , tal defesa manifes tou-se mais na luta entre a Igreja e o

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O D I F Í C I L D I Á L O G O E N T R E J U D A Í S M O E C R I S T I A N I S M O

poder real do que c o m o forma de incentivar, entre os cristãos, o desenvolvi-m e n t o de u m ant i judaísmo.

Estável, mas c o m alguns sobressaltos, foi o re lac ionamento da minor ia c o m a maioria. E m b o r a estes não tivessem suscitado o aspecto del iberada-m e n t e agressivo dos levantamentos populares contra os j udeus sentido no res-to da Península e Europa , a verdade é que não p o d e m o s ignorar a rejeição da supremacia de u m p o v o eleito sobre o ou t ro p o v o eleito por Deus . A discus-são da primazia de u m sobre o ou t ro , de uma religião sobre a outra, iria mar -car o pos ic ionamento social da maioria sobre a minor ia e da constante tenta-tiva de afirmação desta sobre aquela.

N ã o p o d e n d o deter efect ivamente o poder , a minor ia judaica, através da riqueza, da cultura e do saber, acabava por privar de per to c o m o poder e po r exercê- lo , directa ou indi rec tamente , apesar das directivas e m contrár io da legislação canónica, transpostas para as ordenações gerais do reino. Assim, vários rabis-mores conf i rmaram documen tos régios, c o m o Juda e Guedelha , rabis-mores de D . Dinis, ou Juda Aben Meni r , r ab i -mor e tesoureiro de D . Fernando.

Assim, o e n t e n d i m e n t o entre a maioria cristã e a minor ia judaica deve ser c o m p r e e n d i d o n u m a interacção onde , po r vezes, o individual e o colect ivo local se sob repunham às ordenações gerais civis e canónicas; noutras vezes eram estas, c o m o seu carácter diferenciador, que vingavam sobre o relacio-

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

n a m e n t o entre os indivíduos de credo diferente. Podemos , no entanto , supor que o per íodo de maior p rodução de legislação antijudaica, nos fmais do sé-culo xiv e inícios do xv, admita uma dupla leitura: o crescimento do an t i ju -daísmo e m Portugal , po r u m lado, e, po r out ro , a necessidade de proteger a minoria , através de restrições na sua mobi l idade pelo reino c o m consequên -cias nas suas actividades económicas, da imposição dos sinais e da ocupação de u m espaço, fechado c o m portas.

Sendo o re lac ionamento da minoria c o m a maioria cristã que nos interes-sa, é necessário descobri- lo no quot id iano da vida do reino.

Assim, se u m cristão provocasse fer imentos n u m seguidor da Lei de M o i -sés, este devia ir queixar-se ao alcaide e aos alvazis. D e facto, sempre que o cristão fosse réu, devia responder perante os juízes cristãos. Tal não sucedia se fosse o j u d e u réu. Nes te caso, o j u d e u respondia perante os rabis e a lei m o i -saica.

C u m p r i n d o as prescrições canónicas do IV Conc í l io de Latrão, D . A f o n -so II proibia aos indivíduos da minor ia o exercício de cargos que implicassem c o m a n d o sobre os cristãos. O m e s m o sucedia quan to a tê-los e m suas casas c o m o servidores. Nes te caso o transgressor perderia os bens, confiscados para a Coroa .

A este m o n a r c a p e r t e n c e a mais ant iga o rdenação de t eo r proseli t ista. O apelo à conversão é c o r r o b o r a d o pela posse imedia ta dos bens : u m t e r -ço, se h o u v e r mais i rmãos, e m e t a d e se fo r f i lho ú n i c o . S e m e l h a n t e r e p a r -t ição de bens acontec ia se o conve r so fosse u m dos côn juges . O n e ó f i t o era i m e d i a t a m e n t e afastado da conv ivênc ia da sua família de sangue, s endo e n -t regue , n o caso de ser m e n o r , a u m a família cristã para ser e d u c a d o na n o -va fé.

Sancho II cedo esqueceu as ordenações de seu pai, mas o clero iria r ecor -dar-lhas à força. D e facto, o bispo de Lisboa queixava-se ao papa do i n c u m -p r imen to das determinações do IV Conc í l io de Latrão, por parte do m o n a r -ca, pelo que Gregór io I X enviaria a Portugal os bispos de Astorga e de Lugo c o m a bula Ex Speciali, onde advertia o rei de que não era pe rmi t ido c o n c e -der a j u d e u s cargos c o m autor idade sobre os cristãos.

O crescimento da circulação monetár ia e das feiras vai exigir a resposta de D. Afonso III a novas realidades económicas . Assim, proibia o emprés t imo a j u r o imoderado . O facto de não especificar o g rupo credor faz-nos conclui r que a legislação se dirigia a todos os corpos sociais, o maiori tário e os m i n o r i -tários, pelo que não a p o d e m o s en tender c o m o u m dispositivo legal de carga antijudaica. Já nos foros de Santarém o devedor devia saldar a sua dívida a u m j u d e u perante j u d e u s e cristãos, e se o credor não estivesse n o concelho, quando ele quisesse fazer entrega do dinheiro , deveria entregá- lo a u m h o -m e m - b o m .

T a m b é m nos mesmos foros, o soberano prescrevia a igualdade das três r e -ligiões, cristã, judaica e islâmica, no t e s t emunho de u m a luta en t re indivíduos da maioria e das minorias8 .

Os foros de Beja, datados do reinado de D . Afonso III, ret i ram ao m o r -d o m o p o d e r sobre os judeus , sempre que haja homic íd io sobre u m ou t ro j u -deu ou u m m o u r o . E m contenda entre judeus , valia o t e s t emunho de cris-tãos, j udeus ou muçu lmanos e m igualdade. Se a demanda fosse c o m cristão e este saísse ferido, a prova devia ser feita c o m tes temunhos cristãos ou p o r j u -deus e cristãos, se o j u d e u fosse residente n o conce lho . Caso este fosse u m estranho, devia ser condenado à m o r t e e a execução seria feita pelas justiças régias.

N o título das provas, os foros de Beja de te rminavam que o j u d e u provas-se contra u m cristão apenas c o m tes temunhas cristãs. Sendo os t es temunhos dados sob j u r a m e n t o , previa-se o j u r a m e n t o do j u d e u sobre a Tora , na sina-goga, presentes a parte, o rabi e o por te i ro do conce lho , que confirmaria p e -rante o ju iz o j u r a m e n t o feito9 .

O s foros da Guarda , ou to rgados p o r Sancho I e conf i rmados p o r seu f i -lho, p ro ib i am aos j u d e u s t rabalharem ao d o m i n g o , sob pena de dois m a r a -vedis para o alcaide. T e r m i n a v a m estes foros c o m duas o rdenações sobre

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Documento da dívida de Domingos Eanes de Folgosinho a Isaque Guedelha, judeu de Gouveia, 1334 (Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo). F O T O : JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

emprés t imos feitos p o r j u d e u s a cristãos, emanadas da cor te de D . A f o n -so III, n o ano de 1266, o n d e p o d e m o s observar a referência à «malícia dos judeus» 1 0 .

Deste soberano ou de seu pai era a ordenação, conf i rmada p o r D . Dinis , de que os judeus não pudessem, tal c o m o os muçu lmanos , ser procuradores ou advogados e m causas de cristãos11.

T a m b é m desta centúria de Duzen tos era a legislação que minorizava o t e s t emunho do j u d e u perante o cristão, jus t i f icando tal «por ssas maldades». A excepção aberta neste caso respeitava aos pleitos en t re j udeus e cristãos e m que ambos os tes temunhos dev iam ser tomados c o m o dignos de fé12 .

Encont ravam-se excluídos da pro tecção da Igreja, segundo o direito civil, e m caso de dívida a cristão ou e m caso de homicíd io 1 3 .

O F o r o Rea l , t r aduz ido e m finais do século x m e a d o p t a d o na legisla-ção por tuguesa , p ro ib ia o prose l i t i smo j u d a i c o , i n t e rd i t ando , sob pena de m o r t e , a c i rcuncisão de u m cristão1 4 . A lei de D . A f o n s o II apenas previa a ab juração de u m converso , a qual era castigada c o m a m o r t e p o r dego lação se o a d m o e s t a d o n ã o se ar rependesse 1 5 , o q u e nos p o d e fazer conc lu i r q u e u m a má ca tequese o u o apelo dos familiares e ex -cor re l ig ioná r ios pod ia l e -var u m n e ó f i t o a descrer da n o v a religião e a abraçar a antiga. A o r d e n a ç ã o po r tuguesa não nos p e r m i t e conc lu i r q u e o prose l i t i smo j u d a i c o , tal c o m o é c o n t e m p l a d o n o F u e r o R e a l de D . A f o n s o X , não incidisse nos cristãos de nasc imen to , e m b o r a a d o c u m e n t a ç ã o seja omissa sobre tais casos de apostasia, que , o b v i a m e n t e , d e v i a m cair sob a alçada do t r ibuna l eclesiás-t ico.

P rocurando refrear contactos ínt imos e a criação de laços afectivos entre indivíduos de credos diferentes, o legislador proibia, sob pena de multa n o valor de 50 maravedis para o rei, que u m cristão desse os seus filhos a criar a uma família judia e vice-versa1 ׳ 6 .

É na centúria de Duzen tos que as preocupações dos legisladores pen insu -lares c o m e ç a m a incidir na questão da usura, reflexo do a u m e n t o da circula-ção monetár ia e do inves t imento de capital, tal c o m o j á refer imos a propós i to dos foros de Santarém e da Guarda, c o m as medidas tomadas p o r D . A f o n -so III. Igual p reocupação c o m o emprés t imo a j u r o imoderado se observa n o códice legal de Afonso X , o Sábio, que proibia que o j u r o ultrapassasse os três maravedis po r cada quatro, ao ano, assim c o m o determinava que o c redor não pudesse desfazer-se do p e n h o r deixado pelo devedor 1 7 .

Medida de semelhante teor seria tomada por D. Afonso III, e m 1266, ao legislar n o sentido de que o j u r o não ultrapasse os 100 % do emprés t imo, i n -d e p e n d e n t e m e n t e do t e m p o que tivesse decor r ido entre o pr imei ro emprés t i -m o e a solvência da dívida. E acrescentava a esta u m a outra ordenação de idênt ico con teúdo , justificada pela malícia dos judeus contra os cristãos.

N o século seguinte, esta lei seria conf i rmada nos mesmos termos, embora fosse alargada aos emprést imos a j u r o entre cristãos18.

O prob lema da usura acen tuou-se n o século xiv, devido às crises agrícolas e monetárias que geraram o e m p o b r e c i m e n t o de mui tos estratos da popu la -ção. A queda e m pobreza dos grupos sociais de gente honrada , nobre ou não, conduz iu ao end iv idamento p o r hipoteca dos bens móveis ou imóveis j u n t o de credores que, nos protestos dos procuradores dos concelhos nas Cortes , eram identificados c o m os judeus . Daí as queixas nas Cor tes de 1331 e de 1352, que t iveram resposta legislativa e m 1340, 1349 e noutras leis cuja data precisa nos é desconhecida 1 9 .

Resp igámos alguns prólogos significativos de u m a mental idade que via no p o d e r e c o n ó m i c o dos j udeus o in imigo a abater, devido à sua associação c o m o mal. Assim, vejamos:

— «Porque nos fora dicto e querelado j a t e m p o ha que os Judeus do nos -so senhor io onzenavam contra a ley divina e humanai»;

— «Nos disseram que ha nossa terra era astragada per os Judeus que v i -viam nos nossos senhorios por que faziam seus cont rautos c o m os christãos e m tal fo rma que levam deles m o y t o mayores onzenas que nunca f o r o m le-vadas»;

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O D I F Í C I L D I Á L O G O E N T R E J U D A Í S M O E C R I S T I A N I S M O

— «E pid iam nos p o r mercee os dictos procuradores e m n o m e das dietas Cidades [...] que mandásemos e posesemos por ley que n e h u u m J u d e u n e m Judia n o m podese fezer taes contrautos per que o christão lhe fosse obr igado aa dar ou a ffazer alguma cousa ata cer to tempo»;

— «E per outra maneira n o m podíamos refrear as malícias dos dictos J u -deus»;

— «E que moytos christãos e christãas e ram astragados e deytados per portas.»20

Estes preâmbulos e ram a resposta aos protestos dos povos de que eram es-tragados pelos judeus , af irmação corroborada por concelhos c o m o Lisboa, Bragança ou Sintra21 . Se os pr imeiros t inham u m a concent ração de popu la -ção judaica significativa, acentuada n o re inado de D . Dinis, que podia expli-car tal reacção, o m e s m o j á não se en tende n u m ou t ro conce lho do t e rmo de Lisboa c o m o Sintra, o n d e a comun idade judaica não era expressiva.

O s textos legislativos de D . Afonso IV eram o exemplo do cresc imento de u m a ati tude económica antijudaica p o r parte de certos sectores da popu la -ção cristã, ao m e s m o t e m p o que se foijava o estereót ipo de que o j u d e u era rico, s endo-o à custa dos cristãos. Se os excessos usurários, comet idos por j u -deus, eram conf i rmados por outros correligionários «dignos de fé», a verdade é que o soberano passava a r econhecer e m textos legais que a usura era prat i -cada por cristãos, j u d e u s e muçu lmanos .

Nas Cor tes de 1352, os procuradores dos concelhos requer iam ao rei a proibição de os j u d e u s p o d e r e m realizar contratos, que r c o m cristãos quer c o m mouros . Procurava-se, pela pr imeira vez, l imitar-lhes a l iberdade de contratar n o reino, c i rcunscrevendo esta apenas ao inter ior das judiarias. T e r -minavam p r o p o n d o que os m e m b r o s da minor ia se tornassem agricultores: «que as terras sseeriam b e m lavradas e aproffeytadas sse mandassemos que os j udeus lavrassem viinhas e herdades e criassem gaados o que pode r i am m u i b e m ffazer p o r q u e t eem m u i t o movil»22 .

Esta posição era con t rad i tó r ia c o m a assumida nas C o r t e s de Lisboa de 1331. Nestas , os p rocu rado re s con tes ta ram a aquisição de herdades pelos m e m b r o s da minor i a , ou seja, c o n d e n a v a m q u e estes, à semelhança da b u r -guesia cristã end inhe i rada , invest issem na posse da terra2 3 . Era con t ra esta ident i f icação q u e os h o m e n s - b o n s e cidadãos de Lisboa pro tes tavam, t an to mais q u e os j u d e u s ricos se t r ans fo rmavam, t a m b é m , e m propr ie tá r ios ab -sentistas.

Aliás, datava dos princípios da centúria e dos finais da anter ior a utilização das famílias judaicas n o p o v o a m e n t o de certas regiões do reino, c o m o Bra -

Aspectos da judiaria de Castelo de Vide.

FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/ /ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

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gança, através da sua fixação à terra e ao solo urbano . Assim, D . Dinis p e r m i -tiu que os j udeus deste conce lho comprassem propriedades n o valor de 3500 maravedis, distribuídos p o r vinhas, herdades e casas, p ro ib indo- lhes a venda ou o escambo2 4 .

Impor tan te igualmente seria a herdade, n o t e rmo de Torres Vedras, que Moisés e Aviziboa v e n d e r a m p o r 1000 libras à infanta D. Sancha, filha de D . Afonso III, e m 127725, ou as propr iedades que o Moste i ro de Santa C r u z t rocou c o m u m grupo de j u d e u s de Coimbra 2 6 . Judas Navar ro e Re ina , sua mulher , vend iam a D . Dinis u m a propr iedade e m Água dos Peixes, t e rmo de Alvito, composta p o r casas, azenha, p o m a r e vinha, enquan to Guedelha , ra-b i - m o r deste monarca , recebia e m prés tamo uma quinta e m Frielas e m paga-m e n t o do «muyto serviço que m i el fez e faz b e m e lealmente c o m sseu cor -po e c o m sseu aver»27.

O exemplo mais característico de proprie tár io absentista no per íodo de Trezentos foi o j u d e u cortesão Moisés Navarro , r ab i -mor de D . Ped ro I, que instituiu dois morgadios e m n o m e de cada u m dos seus filhos: u m a quinta c o m casas, lagar, torre, vinhas e outros bens na Póvoa do M o n t i j o , outra quinta c o m casais, herdades, vinhas e pomares e m Carnaxide, outra quinta c o m paço, torres, vinhas e herdades e m Caspol ima (Porto Salvo — Oeiras) e outra quinta c o m adegas, lagar, casas, torres e vinhas e m Palma, t e rmo de Lisboa, c o m o as demais2 8 .

Estes eram os sinais que faziam recear os procuradores dos concelhos, pois aprox imavam as elites da minor ia às da maioria, o u seja, aquelas def iniam t a m b é m o seu estatuto social pe lo inves t imento e m bens imóveis tal c o m o sucedia c o m os cristãos, uma vez que a posse de propriedades rurais e urbanas nunca lhes estivera interdita.

Nas Cor tes de 1352 era notór ia a ascensão da burguesia cristã endinheirada que desejava investir no crédito e que pretendia arredar deste os seus per igo-sos rivais de credo juda ico . Por isso, na falta de braços para a lavoura e na di -minuição do r e n d i m e n t o agrícola, queria ver os j u d e u s tornarem-se agricul-tores e, assim, apelava ao rei para que estes investissem na terra.

Por ou t ro lado, t o d o este acervo de contestação aos contratos feitos p o r judeus , sob a alegada prática usurária, mos t ra -nos que eles eram os credores mais procurados pela população cristã, dos camponeses ao rei, o que p r e o c u -pava u m g rupo ascendente de mercadores-f inanceiros cristãos que se sent iam secundarizados profissional e socialmente.

A alegação do e m p o b r e c i m e n t o da gente honrada cristã po r insolvência ou por perda da hipoteca de bens fundiários nas mãos do credor j u d e u c o n -duziu à afirmação dos procuradores às Cor tes de Elvas de 1361 de que D. Afonso IV proibira o emprés t imo a j u r o , ou seja, o credor apenas devia receber a quantia emprestada o u o b e m h ipo tecado n o seu valor, sem qual-quer espécie de ju ro 2 9 .

D . Ped ro I requereu- lhes que lhe apresentassem tal d o c u m e n t o de seu pai. C o n t r a a queixa de que eram estragados pelos judeus , pelo que solicita-vam ao soberano a prorrogação do prazo das dívidas, este ordenava que as pagassem30 .

A luta contra a usura fora a primeira fo rma de rivalidade económica ex-pressa pela maioria contra a minoria . Ela trazia o peso de uma sociedade agrí-cola que empobrec ia c o m os mov imen tos de capital e que ainda, e m grande parte, não sabia aproveitá-los, ao contrár io dos m e m b r o s da minor ia judaica que, desde tempos remotos , viviam do inves t imento da riqueza móvel . Se-guir-se-ia, e m finais de Trezentos , a concorrência nos lanços das rendas reais, municipais e da Igreja.

Estas estiveram nos séculos x m e x iv nas mãos de j u d e u s ricos que subar-rendavam a correligionários seus parcelas do a r rendamento geral do re ino ou de uma ou várias comarcas e almoxarifados. Tal sucedeu c o m D . Josepe e os seus j u d e u s rendeiros, satirizado n u m a cantiga de Estêvão da Guarda, para o re inado de D . Dinis3 1 , ou David N e g r o e D . J u d a A b e n Meni r , que , no rei-nado de D . Fernando, rivalizavam u m c o m o ou t ro na ob tenção dos lanços das rendas gerais do re ino. Estes eram os grandes investidores que surgiam ao

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lado de uma maioria de médios e pequenos investidores regionais, seus cor re -ligionários32 .

E m b o r a alguns cristãos ensaiassem o i n v e s t i m e n t o nos lanços, c o m o a condessa D . G u i o m a r , m u l h e r do c o n d e J o ã o Afonso T e l o , t io de Leonor Teles , estes es tavam, ma io r i t a r i amen te , nas mãos das gentes da minor i a . Tal facto revelava-se c o m o u m a a t i tude de d o m í n i o desta sobre a maior ia cristã, o que ia con t r a as de t e rminações da Igreja, para a lém de se t raduzi r n u m a opressão sobre os cristãos, f o m e n t a d o r a do an t agon i smo social g e -rado pelo ó d i o ao co lec to r de impos tos , iden t i f i cado , neste caso, c o m o j u -deu 3 3 .

O d o m í n i o das gentes de credo moisaico nos a r rendamentos foi quebrado c o m os acontec imentos de 1383-1385. A subida ao t rono do candidato do p o -vo de Lisboa viria per turbar este p r edomín io e c o n ó m i c o e m favor da b u r -guesia dos concelhos . D e facto, t emporar iamente afastados dos a r rendamentos e obrigados a associarem-se aos cristãos, os j udeus perder iam o ímpe to dos grandes lanços. A tal t a m b é m não seria estranho o facto de David N e g r o e Juda Aben Meni r , os dois grandes rendeiros do reinado fe rnandino , t e r em se-guido o part ido de Leonor Teles e de Castela.

Assim, D . J o ã o I e seu filho, D . Duar te , submeter -se - iam à pressão cristã, p ro ib indo aos j u d e u s o exercício de funções que se traduzissem e m opressão sobre a maioria religiosa. N o entanto , a consti tuição de sociedades mistas de cristãos e j u d e u s permi t iu a estes iludir as ordenações do re ino e as de te rmi -nações canónicas. O conce lho de Lisboa requeria ao regente D . Ped ro que não aceitasse os j u d e u s c o m o recebedores das rendas eclesiásticas e reais, n e m c o m o fiadores de rendeiros cristãos, e rematava ped indo ao infante que desse as rendas aos cristãos, embora por m e n o r valor do que a j udeus por maior preço 3 4 .

N o entanto , ainda n o re inado de D . Duar te , os lanços feitos po r j u d e u s

Aspecto da judiaria de Tomar .

FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/ /ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

O Selo de D . Dinis (Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo) . F O T O : JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.

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A P R O C U R A DO D E U S Ú N I C O

Carta de privilégio de D. Afonso V ao judeu José Prateiro, antigo ourives de D. Leonor (Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/ /Torre do Tombo).

F O T O : JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.

ou por sociedades de judeus cresciam para se reaf i rmarem no reinado de D. Afonso V. D e novo , grandes mercadores-banquei ros investiam nas rendas reais, c o m o os N e g r o , os Abravanel, os Latam, os Palaçano e outros, apesar de os seus interesses principais residirem n o grande comérc io e n o crédi to à C o r o a e à família real.

O s cont ra tos q u e D . J o ã o II estabeleceria c o m os seus j u d e u s rende i ros exigiam destes g rande capacidade de m o v i m e n t a ç ã o de capital. Isaac B e n a -dife ar rematava as rendas de Lisboa e P o r t o e as dos por tos mar í t imos c o m alfândegas, p r o m e t e n d o ao rei o c resc imen to de mais de u m mi lhão de reais e m cada ano , du ran t e seis anos. Isaac T o l e d a n o , p o r sua vez, a u m e n -tou o r e n d i m e n t o da sisa dos panos delgados do r e ino e m seis mi lhões de reais.

Se pensarmos que os a r rendamentos dos direitos reais ou out ros e ram uma forma de invest imento de capital c o m o objec t ivo de lucro, p o d e m o s concluir que, para o rendei ro ob te r o a lmejado ganho, acabaria p o r opr imir os colectados. Daí que mui tos desses grandes rendeiros se fizessem a c o m p a -nhar po r grupos de homens armados. Por isso, t a m b é m os protestos dos p o -vos to rnavam a subir às Cor tes contra os rendeiros judeus .

Ainda n o t e m p o de D . A f o n s o V, d u r a n t e a regência d o p r í n c i p e D . J o ã o , este pro ib i r - lhes- ia o a r r e n d a m e n t o das rendas eclesiásticas. Já rei , ao ser - lhe solicitada nas C o r t e s a p ro ib ição de os j u d e u s l ança rem nas r e n -das reais, D . J o ã o II re i terava- lhes os lugares de rende i ros do rei e da n o -breza e m d e t r i m e n t o dos rende i ros cristãos, j u s t i f i cando a sua a t i tude c o m a acusação de q u e estes e ram mais opressores do p o v o co lec tado q u e a q u e -les35.

O u t r o s investiam no trato das moradias da Casa Rea l , que revestia t a m -b é m a forma de cont ra to de a r rendamento . D e facto, desde 1446, o paga-m e n t o das tenças aos moradores da Casa R e a l era fei to por sociedades mistas de mercadores-banquei ros j u d e u s e cristãos, o n d e se dist inguiam os Abrava-

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nel, os Lomellini e João Dias Beleágua. Para além do pagamento das tenças à nobreza, a Coroa arrendava t ambém os casamentos desta, assim c o m o as compras da Casa Real . Estes arrendamentos permit iam ao soberano beneficiar de u m crédito que pagava, posteriormente, em dinheiro ou em benefícios de vária ordem, onde o favor real e o prestígio social que dele advinha não seria o menor 3 6 .

C o m o investimentos que eram, os lanços apresentavam o aspecto de cré-dito a ju ro , por vezes demasiado elevado, a crermos nos versos do Cancioneiro geral de Garcia de Resende, onde se cantava que os grandes mercadores-ban-queiros judeus entendiam c o m o perda o lucro de 30 %37.

Se, para a centúr ia de Trezen tos , desconhecemos o papel do grande capitalista j u d e u , c o m excepção dos a r rendamentos dos direitos da C o r o a , tal j á não sucede para o século seguinte, o n d e o vemos a f inanciar as e m -presas régias ou os casamentos da família real. D e facto, se no século x iv encon t r amos os N e g r o ou Judas Aben Men i r , o século x v c o n h e c e out ros mercadores -banque i ros e c o n o m i c a m e n t e mais poderosos que aqueles, c o -m o os Abravanel , Guede lha Palaçano, Moisés Latam, Judas T o l e d a n o e outros .

A família Abravanel , de o r igem sevilhana, c o m e ç o u a sua act ividade de banquei ra da família real ao serviço do infante D . Fernando , que viria a mor r e r e m Fez. Este devia- lhes 52 0 0 0 reais. P o u c o depois passavam a c re -dores de D . Afonso V, a q u e m concede ram, por diversas vezes, emprés t i -mos avultados, quer para o casamento de D . Leonor, imperatr iz da A l e m a -nha, quer para a guerra cont ra Castela, e m defesa dos direitos de D . J o a n a , a Beltraneja. F o r a m - n o , t a m b é m , da infanta D . Beatriz, cunhada do rei, a q u e m ar rendaram as rendas da O r d e m de Cris to , assim c o m o o vir iam a ser dos duques de Bragança e de Viseu, a q u e m f inanciaram na conspi ra-ção contra D . J o ã o II, pelo que vir iam a ser condenados c o m o traidores. Part ic iparam no c o m é r c i o de África e no trato do açúcar, v indo a ser i n -demnizados das perdas sofridas po r D . M a n u e l n u m seu descendente cris-tão3 8 .

N o campo dos empréstimos à Coroa , os Abravanel não tiveram concor -rentes à altura entre os mercadores nacionais cristãos. Os seus mais perigosos rivais eram os italianos e os flamengos; por isso, inicialmente, nas Cortes de meados do século xv, os protestos dos povos incidiam sobre as casas mercan-tis estrangeiras, ignorando ainda as judaicas que se afirmariam c o m o poder económico na segunda metade da centúria.

Este to rnava - se sobremane i ra visível n o e m p r é s t i m o c o n c e d i d o a D. Afonso V para a guerra contra Castela, em 1478. Enquan to Guedelha Pa-laçano e Isaac Abravanel emprestavam quantias na o rdem dos quase dois m i -lhões de reais, o mercador cristão que deles mais se aproximava era Fernão Gomes da Mina, c o m 900 0 0 0 reais. Os demais credores cristãos nãç atin-giam a centena de milhar, c o m excepção do príncipe D . J o ã o e de D. Álvaro, que emprestaram, respectivamente, 1 257 090 e 630 345 reais. N o entanto, mesmo os pequenos credores cristãos sofriam uma forte concorrência dos membros da minoria, que os ultrapassavam em número 3 9 .

O poder económico de uma minoria de judeus cortesãos e residentes em Lisboa transformava estes e m verdadeiros poderosos, colocando-os numa p o -sição de domín io sobre os cristãos, contra o agrado destes e das ordenações canónicas e do reino. Estes rejeitavam essa supremacia e faziam-no sentir nas Cortes, englobando nos seus protestos toda a comunidade judaica.

As Cortes iriam ser, ao longo da segunda metade do século xv, o local privilegiado do extravasar de uma rivalidade económica, por parte dos p ro -curadores dos concelhos, que sub-repticiamente atiçava a animosidade reli-giosa contra o j udeu . Esta crescia no inconsciente colectivo da maioria cristã, ultrapassando o indivíduo para se identificar c o m a ascensão das principais ci-dades do reino e das suas burguesias.

Significativo deste sentir era o conselho que u m anón imo frade de São Marcos dava a D . Afonso V: «Agora, senhor, c o m a cobiça de obter maior rendimento acha-se a cristandade submetida à jurisdição judaica, e os estra-

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nhos ao país levam a substância das mercadorias do vosso reino, ao passo que os mercadores nacionais pe recem de miséria.»40

E óbvio que desta nacionalidade eram excluídos os judeus , apesar de na -turais do reino, pois, desde D. Duar te , t inham-se visto afastados do direito de vizinhança, que não se aplicava a «infiéis». Por o u t r o lado, a maioria destes judeus cortesãos banqueiros da Coroa , c o m o os Abravanel, e ram de o r igem castelhana. A fobia ao estrangeiro associava-se à animadversão ao crente j u -daico, apesar de não conseguirem irradiar este da concorrência .

Era e m Lisboa que residia a maioria dos grandes mercadores j udeus que obt iveram permissão, entre 1466 e 1491, para exportar e importar mercadorias po r via marí t ima e m n o m e de cristãos, uti l izando as marcas destes ou as suas próprias, além de p o d e r e m cambiar d inhe i ro no estrangeiro. As grandes f amí -lias de mercadores-banquei ros cortesãos encont ravam-se entre estes m e r c a d o -res expor tadores- importadores .

N ã o seriam, cer tamente , os únicos a participar neste tráfego externo, pe lo que o seu n ú m e r o inquietava os cristãos. O soberano preocupava-se c o m os prejuízos que os ataques de corso causassem nos bens, l iberdade e vida dos judeus portugueses4 1 .

E m 1481, D . J o ã o II requeria aos Reis Católicos a protecção para c o m es-tes e as suas mercadorias, quer viajassem p o r terra que r po r mar, o que o b t e -ria a anuência dos soberanos castelhanos42 . Comerc i avam c o m o N o r t e de Africa islâmico, as cidades italianas, o Levante peninsular ou as cidades d o N o r t e da Europa. Açúcar, especiarias, tecidos, livros eram algumas das m e r -cadorias transaccionadas por estes mercadores de grande trato.

O u t r o s desenvolv iam u m m é d i o e p e q u e n o c o m é r c i o terrestre en t re os diversos reinos peninsulares, apo iado e m relações familiares. Panos de Cas -tela, sedas, gado, moedas e metais e ram negociados por estes a lmocreves

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que calcorreavam as estradas, mui tas vezes desenvo lvendo u m c o m é r c i o clandest ino.

N o entanto , no re inado de D . J o ã o II alteraram-se as condições de p re -d o m í n i o económico . N o t o u - s e u m recuo na concessão de cartas aos grandes mercadores j u d e u s e na permissão de estes p o d e r e m fazer lanços nas rendas eclesiásticas. Por ou t ro lado, nas Cortes , os procuradores dos concelhos p r o -testavam contra o luxo excessivo usado no vestuário pelos j u d e u s mais ricos e acrescentavam ao seu protes to a contestação ao indivíduo da minor ia mestei -ral, que pre tendiam ver conf inado à judiaria.

Era a afirmação, na política e na economia municipal , dos artesãos cris-tãos que procuravam irradiar da concorrência os mesteirais j udeus p o r t u g u e -ses, aos quais se v i n h a m somando os mesteirais j udeus castelhanos que imi -gravam para Portugal . Aliás, o n ú m e r o de artesãos per tencentes à minor ia era significativo e m todos os concelhos do reino, p o d e n d o afirmar-se que a vita-lidade económica da maioria dos municípios portugueses radicava, e m parte, na significativa p rodução artesanal dos j udeus que neles habitavam.

A rivalidade económica que t o m o u , ao longo dos séculos x iv e xv, c a m -biantes diversos, da usura às rendas, destas ao grande comérc io de sociedades mistas e deste ao artesanato, foi acompanhada pela interiorização menta l do arquét ipo do j u d e u c o m o símbolo da riqueza, do infiel e do mal.

Apontado c o m o rico, mas possuidor de uma riqueza entendida c o m o inde-vida porque obtida à custa do fiel cristão, que ele oprimia e explorava c o m o usurário e colector de impostos, o j u d e u via associar-se-lhe a ideia do mal, ain-da no século xrv. A ideia de riqueza iria despoletar a tentativa abortada de assai-to à Judiaria Grande de Lisboa, e m D e z e m b r o de 1383, após o assassinato do conde de Andeiro pelo mestre de Avis. Só a pronta intervenção deste dissuadiu o povo miúdo , que inverteu a marcha e m direcção ao bairro judaico4 3 .

Igreja da Misericórdia de Leiria, construída sobre a antiga sinagoga. F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

<3 Carta de privilégio de D. Afonso V ao ourives judeu Salomão Almerdam, 1469 (Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo). F O T O : JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.

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R e f l e x o do crescimento da interiorização do j u d e u c o m o o outro na so-ciedade portuguesa foi o assalto à Judiaria Grande de Lisboa, e m D e z e m b r o de 1449, onde os gritos de «matar» e «roubar» as gentes da minoria , n o m e a d a -m e n t e as mais ricas, se associaram no pr imei ro e ún ico levantamento an t i ju -daico que se saldou por de r r amamen to de sangue e perda de vidas por parte da minoria , até à sua expulsão4 4 .

A lembrança do deicídio deve ter despoletado o levantamento contra os j udeus de Leiria, na Semana Santa de 1378, que se traduziu no apedre jamento das casas da judiaria4 5 .

O carisma do mal que o j u d e u infiel podia p rovocar no crente cristão, n o m e a d a m e n t e na mulher , iria justificar a legislação segregacionista, p r o m u l -gada por D . Pedro I, na sequência das Cor tes de Elvas de 1361. A obr igator ie-dade de, nos concelhos mais populosos, c o m o Lisboa, os j udeus residirem e m bairros apartados, q u e se encerravam ao toque das Ave-Marias e se abriam ao nascer do Sol, vinha na sequência de legislação canónica que i m p u n h a a se-gregação espacial para evitar os contactos mais ín t imos entre indivíduos de religião e sexo d i fe ren tes e, sob re tudo , o prose l i t i smo j u d a i c o j u n t o dos cristãos4 6 .

Os finais do século xiv ver iam a segregação espacial ser re tomada e e n d u -recida por D . João I, e m 1390, talvez c o m o reflexo do clima de instabilidade que se vivia e m Castela e que terminaria n o pogrom de 1391, e m Sevilha e o u -tras localidades. E m 1395, a ped ido do conce lho de Lisboa, conf i rmava a p ro i -bição de os j udeus habi tarem n o exter ior da judiaria e, e m 1400, ordenava que as judiarias se estendessem para out ros espaços quando reduzidas para acolherem toda a população judaica do concelho . Nesta últ ima ordenação penalizava gravemente o j u d e u que fosse apanhado fora do bairro juda ico , depois do anoitecer.

Mais tarde, em 1412, a ped ido das comunidades judaicas do re ino, a t enua-va a dureza da lei, que era atentatória da sobrevivência económica da m i n o -

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ria, excep tuando alguns profissionais e os j udeus e m trânsito que entrassem na localidade depois do toque do sino da oração. Comple tar ia esta medida uma outra de D . Duar t e que se aplicava aos que tivessem de abandonar a j u -diaria antes do Sol nascer.

A segregação espacial deve ter-se aplicado exclusivamente, durante a cen -túria de Trezentos , e m Lisboa, e seria estendida a outros concelhos c o m forte densidade de população judaica n o final do re inado de D . J o ã o I, po r uma lei do infante D . Duar te , então associado na governação ao seu pai. Assim, a in -comunicabi l idade a partir de determinadas horas seria extensiva a Santarém, Évora, Por to , Co imbra , Beja, Elvas e Est remoz.

A circulação de pessoas passava a estar legalmente restringida. Assim, era pro ib ido às mulheres cristãs deslocarem-se à judiaria sem i rem acompanhadas de cristãos adultos e aos j udeus ent rarem e m casas de cristãs, sem que nelas estivessem cristãos adultos.

D . J o ã o I e D . Duar te r e tomavam o espírito da lei de D . Pedro I, o que nos permi te concluir que, apesar das limitações da convivência entre a ma io -ria e a minoria , esta cont inuava a fazer-se. A conf i rmar esta realidade, e n c o n -travam-se o s ínodo de Lisboa, feito n o t e m p o de D . J o ã o Afonso de A z a m -buja, e as posturas municipais de meados do século xv, que condenavam a promíscua vizinhança, entre cristãos e judeus , que levava uns e outros a esta-r e m presentes e m festividades e casamentos.

Assim, o c o n c e l h o de Lisboa proibia aos j u d e u s es tarem presentes e m bodas, festas, vigílias, Pentecos tes e outras fest ividades «que os christãos f e -z e r e m asy na ç idade c o m o nos m o n t e s a damçar n e m a t o m g e r n e m a bai l -lar n e m fazer ou t ros jogos», sob pena de mul tas pecuniár ias que iam das 500 libras às 1000 libras e prisão, consoan t e a re inc idência . T a m b é m os monarcas D . J o ã o I e D . Afonso V se p r e o c u p a r a m c o m esta conv ivênc ia e os seus perigos, p ro ib indo - lhe s o p o r t e de armas q u a n d o fossem c o n v i d a -dos para casamentos , j o g o s e outras festas dos cristãos dos locais o n d e v i -

Solicitação do concelho leiriense para que o físico e cirurgião mestre Belhamim pudesse viver fora da judiaria, 1455 (Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo) .

F O T O : JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.

<] Lápide sepulcral judaica, encontrada junto à torre de menagem do Castelo de Beja, 1378 (Tomar, Museu Luso--hebraico Abraham Zacut).

FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/ /ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

vessem 47

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

Igua lmen te se exc lu íam outras relações p róx imas , c o m o a f r equênc ia das tabernas pelas gentes dos dois credos ou o t rabalho c o n j u n t o . Nes t e ca -so, p rocurava-se evitar que o cristão obedecesse ao j u d e u , t r aba lhando nas suas p ropr iedades ou e m sua casa. Era o regresso à legislação canónica d o IV C o n c í l i o de Latrão de 1213, p r o m u l g a d a nas o rdenações régias, desde D . A f o n s o II.

C o m estas medidas, o legislador procurava defender a salvação do cristão mais fraco mas, sobre tudo, preservar as mulheres cristãs dos contactos ín t imos com os homens da minoria . A o legislador não interessava o desvio da m u l h e r judia , que , por estranho que pareça, ficava t a m b é m mais defendida do h o -m e m cristão c o m o encer ramento e a vigilância da judiaria.

A par da l imitação dos mov imen tos das gentes da minoria , o século xiv, na senda das prescrições canónicas do século xi, re tomadas e m Latrão, c o n h e -cia t a m b é m a segregação física, c o m a imposição do uso do sinal diferencia-dor ao j u d e u . Assim, D. Afonso IV determinava, talvez pela instabilidade psí-quica e social criada pela Peste Negra , que os j u d e u s usassem uma estrela amarela de seis pontas, que seria mudada por D . J o ã o I para vermelha e do t amanho do selo real. O sinal devia ser usado no exter ior do vestuário, e m local b e m visível, sobre o estômago4 8 .

Desconhecemos se, à semelhança do que acontecia e m Castela c o m Afonso XI e t a m b é m e m Aragão, o traje dos j udeus era escuro, pois a legisla-ção portuguesa é omissa sobre a cor do vestuário. Apenas sabemos que eles deviam vestir-se c o m o o povo , ou seja, sem adornos de luxo e vestes caras. N o entanto , t emos de concluir que tal não era prat icado pelos j u d e u s mais r i-cos, a crermos nos protestos dos procuradores dos concelhos, apresentados nas Cortes . O m e s m o se passava c o m o p rópr io distintivo, que os j udeus es-tavam dispensados de usar e m viagem, para evitar os assaltos contra as suas pessoas e fazendas.

A c o m p a n h a n d o a exteriorização da diferença, a maioria interiorizava t a m b é m o j u d e u c o m o o outro, não admi t indo a equidade da justiça régia q u a n d o a vít ima era o infiel. Tal aconteceu quando as justiças actuaram sobre os assaltantes da judiaria de Lisboa, e m D e z e m b r o de 1449, q u e mataram al-guns judeus . O p o v o m i ú d o levantou-se contra a autor idade judicial e contra o p rópr io rei, que teve de abandonar t empora r i amente a cidade.

Solicitação do concelho leiriense para que o físico e cirurgião mestre Abraão Abeatra pudesse usar uma porta da sua casa directamente para o exterior, 1471 (Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo) .

F O T O : JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.

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O D I F Í C I L DIÁLOGO E N T R E J U D A Í S M O E C R I S T I A N I S M O

A diferença levava a identif icar o outro c o m o ser i m p u r o que conspurca -va t u d o aquilo e m que tocava. O s j u d e u s sujavam os adros das igrejas, cons-purcavam os a l imentos e m q u e tocavam. P o r isso, os cristãos p r e t end i am que o m e r c a d o fosse f r e q u e n t a d o p r ime i ro pelos ind iv íduos da maior ia e só d e -pois pelos j udeus , para q u e estes não danassem os géneros al imentícios, ao tocá-los .

C o m idênt ico significado se lhes atribuía a maldade ou a ruindade, c o m o diria o infante D . J o ã o , que os definia c o m o «a mais ru im gente do mundo» .

Ser inferior e m relação ao cristão, o j u d e u era, no século xv, humi lhado por este e m algumas festas populares, c o m o a de Santo Estêvão. E m Setúbal, caçava-se neste dia o porco pisco, o javali. O s cristãos cos tumavam entrar à fo r -ça na judiaria e maltratar c o m paus afiados os j udeus que apanhavam, os quais, para se ve rem livres deles, lhes davam tudo quan to quer iam, no rma l -m e n t e d inhei ro . Igual festa se fazia e m Castelo de Vide. O Bispo Estêvão, u m cristão escolhido para tal efeito, entrava na judiaria e exigia-lhes d inhe i ro que depois era gasto n o seu jantar e no da sua comitiva4 9 .

Era a exteriorização de sent imentos xenófobos da maioria que se manifes-tavam e m determinados per íodos do calendário religioso, c o m o a Semana Santa. Duran t e as cer imónias desta, alguns cristãos mais inflamados pelas p re -gações e cerimónias religiosas da Paixão de Cristo faziam extravasar a sua re-volta no ód io ao j u d e u deicida. Tal se verif icou e m Leiria, nos finais do sé-culo xiv, e n o Cra to , nos fins da centúria seguinte.

T a m b é m na festa do C o r p o de Deus alguns concelhos exigiam a cont r i -buição da minor ia para a procissão. E m geral, esta cedia-lhes o vestuário c o m os sinais diferenciadores que eram usados pelos figurantes. Fácil seria forjar u m clima emot ivo n o p o v o m i ú d o que rapidamente extrapolava os úl t imos dias da vida de Cristo para os vizinhos j u d e u s que, assim, se to rnavam presa fácil de insultos e humilhações .

O APELO À CONVERSÃO E A APOLOGÉTICA O NOVO POVO DE DEUS afirmava-se deste m o d o sobre o p o v o eleito do

Ant igo Tes tamento , sub jugando-o e re je i tando-o menta lmente . Ele era o in-fiel, o cego e surdo à voz de Deus, o seguidor de Satanás, o que recusava aceitar o Messias p r o m e t i d o p o r Deus aos profetas. Por isso, D . J o ã o II, e m 1492, na sequência da entrada e m massa de j u d e u s castelhanos, expulsos de Castela p e -los Re i s Católicos, escreveria, n o p reâmbulo da ordenação de apelo à c o n -versão livre da minoria , que aos príncipes era lícito usar qualquer processo que levasse à conversão dos infiéis. Daí os amplos privilégios sociais e fiscais que concedia aos que abjurassem o juda í smo. Esta ordenação viria a ser c o n -templada por D . Manue l , no seu apelo à apostasia voluntária dos judeus , após a p romulgação do édi to de expulsão e m D e z e m b r o de 149650.

Aliás, estas medidas mais não eram que o corolário de toda uma legislação de apelo à conversão, promulgada p o r D . Afonso II e ampliada por D . J o ã o I e D . Afonso V. E m todas elas estava subjacente o t010׳ individual e não a i m -posição do p o d e r real ou do pode r religioso, pelo que a conversão forçada estava proibida pela legislação geral do reino5 1 .

E neste sentido de apelo à conversão voluntária, e fec tuado pela Igreja e pelos monarcas, que temos de en tender a literatura de apologética, produzida por grandes nomes da Igreja. Destinava-se, sobre tudo, a instruir os p regado-res e o clero secular. N o entanto, ela formava ideologicamente , po r via da palavra, a mental idade da sociedade cristã, desde a cor te ao h o m e m humi lde , embora c o m interpretações diversas, consoante a cultura e a força do senti-m e n t o religioso de cada u m .

Federico Pérez Castro, A n t o n i o Pacios Lopes, Már io Martins, J o a q u i m Lavajo e outros historiadores peninsulares apresentaram-nos u m a síntese da polémica judeo-cr is tã , desde o início da Igreja, c h a m a n d o - n o s a a tenção para os grandes temas desta controvérsia, tal c o m o eles fo ram estabelecidos pelos primeiros Padres da Igreja52.

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

Sabemos p o u c o sobre a sua p rodução e m Portugal , tal c o m o desconhece -mos o m o d o c o m o ela influiu na parenética do pe r íodo medieval até aos al-vores da modern idade .

José Maria So to Rábanos , n u m seu t rabalho, insistia na ignorância do p o v o cristão c o m u m a que pode r í amos acrescentar mui tos curas de aldeia, a c re rmos nas referências à ignorância destes nos s ínodos medievais p o r t u g u e -ses. Aque le autor encon t r a na ignorância religiosa u m obstáculo ao diá logo inter- re l ig ioso e acrescenta: «En realidad, la Iglesia se debate en t re un deseo y un t e m o r . El deseo de que , a través da la convivência , la par te t eór ica -m e n t e débil , representada por j u d i o s y musu lmanes , ceda ante la parte f u e r -te, los cristianos, y de esta mane i ra se l legue a f o r m a r una un idad de fe ve rdade ramen te católica, universal; y el t e m o r de que , a la hora de la c o n -vivência, dei roce, dei contraste , la fe de los cristianos sufra más d e t r i m e n t o que p r o v e c h o .

Al deseo cor responden la permisividad, hasta cierto pun to , de la conv i -vencia, así c o m o la progresiva intensificación de la política proselitista de la Iglesia y de los poderes civiles. Al t emor , en cambio, responden las medidas de protección, que afectan m a y o r m e n t e al pueblo Cristiano llano.»53

E den t ro desta dialéctica de diálogo inter-rel igioso, de vec tor proselitista do lado da Cris tandade para c o m a minor ia religiosa, p o r u m lado, e de ca te-quese e pro tecção d o povo cristão, por ou t ro , que devemos en tender a l i tera-tura apologética e as disputas religiosas que se desenvolveram na França e na Península Ibérica, inc lu indo Portugal .

Pelos fundos de Alcobaça e de Santa C r u z de C o i m b r a t emos c o n h e c i -m e n t o de que as bibliotecas destes mosteiros possuíam obras de apologética talvez c o m a finalidade de inst ruírem os respectivos monges . Assim, e m Al -cobaça encon t ramos as seguintes:

— Adversus Hebraeos de Santo Isidoro; — Dialogus contra judaeos de Pedro Afonso; — Disputado Cristiani et judei de Gi lber to Crispino; — Speculum disputationis contra Hebraeos de Frei João , m o n g e de Alcobaça; — Contra inftdeles e De regimine judaeorum de São Tomás de Aquino ;

para além, cer tamente , de out ros que desapareceram na voragem dos t empos e dos homens . Integrados neste c o n j u n t o das obras de apologética, havia a in-da no moste i ro dois textos de autores anónimos , intitulados Dialogo entre huum philosofo gentil e huum grande maestre em teologia e o Livro da corte impe-rial54. O pr imeiro devia ser cópia da obra de R a m o n Lull e o segundo era de u m autor a n ó n i m o do século xiv. Sobre o ú l t imo viremos a debruçar -nos à frente .

M á r i o Mart ins foi o p r ime i ro his tor iador a chamar a a tenção para esta l i teratura apologét ica alcobacense a que acrescentou ou t ros códices exis ten-tes n o P o r t o e e m C o i m b r a . N a Bibl ioteca Mun ic ipa l do P o r t o e n c o n t r a m --se as obras de P e d r o Afonso e de Santo Isidoro j á referenciadas e m A l c o -baça, e n q u a n t o na Bibl ioteca da Univers idade de C o i m b r a se encont ra a obra de R a i m u n d o Mart i , Secunda et tertia partes pugionis jugulantis petfidiam judaeorum.

Já o único estudo feito sobre a biblioteca de Santa Cruz é omisso sobre a apologética, talvez p o r q u e não fosse esse o interesse do seu autor5 5 , embora C r u z Pontes tivesse encon t rado na biblioteca de Santa C r u z o Livro da corte imperial.

Destes livros dois eram da autoria de j udeus conversos dos séculos xi e xii, respect ivamente, Pedro Hispano e Gi lber to Crispino. Da p rodução n a -cional, apenas conhecemos o manuscr i to d o alcobacense Frei João , já que o manuscr i to da Corte imperial poderá , segundo Adel Sidarus, ter u m a p r o v e -niência catalã c o m tradução portuguesa 5 6 .

D e proveniência nacional seria o manuscr i to apologét ico Ajuda da fé, es-crito a ped ido de D . J o ã o II, p o r mestre An tón io , seu físico e afilhado, e x --rabi natural de Tavira5 7 . Este texto insere-se na política proselitista deste soberano, na tentativa de conver te r a comun idade judaica através da c o m p r o -vação de que Cristo era o Messias anunciado pelos profetas.

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O Bíblia de Cervera, frontispício (Lisboa, Biblioteca Nacional). F O T O : LAURA GUERREIRO.

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A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

N ã o podemos falar de uma literatura apologética nacional, embora as re -ferências a disputas existam. N o entanto, a escassa p rodução nacional, se nos basearmos no que a voragem do t e m p o e dos h o m e n s permit iu que sobrevi-vesse, leva-nos a integrá-la na corrente de apologética peninsular que r e m o n -ta ao per íodo visigótico, a qual, po r sua vez, se integra na literatura contra os j udeus dos Padres da Igreja.

As atitudes proselitistas de algumas cortes ibéricas dos séculos XII a x v iriam beneficiar do espírito de apelo ã abjuração do juda í smo p o r parte de al-guns neófi tos de o r igem judaica. Seriam estes e os Mendicantes que ir iam marcar o pensamento apologét ico das cortes peninsulares, n o m e a d a m e n t e a aragonesa e a castelhana. Tais compor t amen tos parecem não ter sucedido e m Portugal , que o saibamos, ou , se existiram, fo ram m e n o s agressivos do que nos outros reinos ibéricos o n d e as conversões forçadas, provocadas por d ispu-tas religiosas, pregações e levantamentos populares, fo ram frequentes , na se-gunda metade de Trezentos e primeira metade de Qua t rocen tos .

Aliás, a apologética cristã peninsular soube socorrer-se do c o n h e c i m e n t o do T a l m u d e que alguns conversos possuíam. Era o caso de Ped ro Afonso , ex-Moisés ha-Sefardí, natural de Huesca, que, no início do século XII, se conver teu ao cristianismo, t endo por padr inho Afonso I de Aragão. O seu texto é u m diálogo entre o seu passado e o seu presente, ou seja, entre o j u -deu Moisés e o cristão Pedro. N e l e procurava afirmar a verdade do cristianis-m o , c o n d e n a n d o o juda í smo mas sem utilizar «o a rgumen to de que a litera-tura talmúdica difama Cristo e o cristianismo». Pela primeira vez, o m u n d o cristão conhecia a refutação do juda í smo c o m critérios talmúdicos, agora t ra-duzidos para latim. Esta obra conheceu u m a grande divulgação, durante a Idade Média , t endo sido uma pedra basilar e m toda a literatura cristã de apo -logética58 . Talvez, p o r isso, se perceba a sua existência, quer e m Alcobaça, quer e m Santa C r u z de C o i m b r a , pe lo menos , e m b o r a pensemos que b i -bliotecas de out ros mosteiros, n o m e a d a m e n t e os mendican tes , as possuíssem t a m b é m .

As disputas religiosas nos reinos peninsulares e e m França eram usuais e muitas delas fo ram patrocinadas pelos próprios soberanos e pela Igreja. N o entanto, não seriam apenas o paço e os mosteiros os espaços privilegiados dessas disputas entre teólogos das diferentes religiões. T a m b é m a praça públ i -ca era cenário desta controvérsia e m que os intervenientes cristãos seriam lei-gos, c o m o parece querer reflectir a disputa de Maiorca, entre u m mercador genovês e três judeus , dos quais u m era rabi.

Mas o diálogo judeo-cr i s tão que marcou o século XIII aragonês e até p e -ninsular foi a disputa de Barcelona, patrocinada por Ja ime I c o m o apoio dos Mendicantes , e m 1263. O s seus intervenientes fo ram Paulo Crist iano, u m d o -min icano de or igem judia , e o rabi Moisés N a h m a n de Gerona . Mais u m a vez se discutia a verdadeira religião, mas desta vez Paulo Cris t iano utilizava os a rgumentos do T a l m u d e para provar a verdade do cristianismo. A N a h m a -nides fora- lhe garantida a pro tecção régia para atacar a fé cristã e m defesa do juda ísmo.

Nela se discutiram os passos de Shilon do Génesis, as profecias de Danie l e o texto de Isaías sobre o Messias. Ambas as partes a rgumen tavam c o m base nos textos talmúdicos, midráshicos e agádicos, para a lém de passagens da exe -gese bíblica. Procurava-se, e m Barcelona, conver ter através do c o n h e c i m e n t o do outro religioso e cont ra-argumentava-se que os erros não estavam n o Ta l -m u d e mas n o p o v o j u d e u , que não o interpretava cor rec tamente . Era a esco-la de R a i m u n d o de Penafor te .

Por seu lado Nahman ides contestava o dogma da Tr indade , a identif ica-ção do Messias de Isaías c o m Cristo, a interpretação da era messiânica, a d o u -trina do pecado original. A sua argumentação que passaria a escrito viria a ser a base da argumentação usada pelos rabis e m disputas futuras5 9 .

N a centúria de Duzentos , surgia e m Aragão, na escola dos Domin icanos , a obra de apologética de R a i m u n d o Mart i , o Pugio Fidei adversus Maurus et Iudeos, a obra mais impor tante e original deste per íodo . R . Barkai e Ora Li-m o r af i rmam que «se o Pugio Fidei é a maior criação polémica antijudia d o

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século, cont r ibu iu t ambém, na forma dialéctica, para u m maior c o n h e c i m e n -to do juda í smo e da literatura religiosa entre os cristãos»60. C o n t e m p o r â n e o da disputa de Barcelona, Mar t i escrevia para os seguidores das outras religiões que não a cristã e, n o m e a d a m e n t e , para os j udeus e m Capistmm judeorum e Pugio Fidei, obras terminadas e m 1267 e 1278, respect ivamente. Esta úl t ima se-ria redigida e m lat im e e m hebraico.

E. C o l o m e r escreve a propósi to do c o n h e c i m e n t o das fontes judaicas por este autor cristão: «Marti utiliza o Talmud e os seus comentadores , o Targum de Jona than ben Uzziel , os Midrashim, inclusive u m que depois se perdeu , es-crito no século XII p o r Moisés Haddarscham de Na rbona , o Zohar, e entre os mestres do pensamen to juda ico , Salomão ben Isaac, Abraão ben Ezra, David Kimhi , Moisés Ma imón ides e o seu c o n t e m p o r â n e o Moisés Nahman.» 6 1

N o Pugio Fidei, Mart i fazia-se reflexo de uma ideia que começava a ser interiorizada na cristandade cruzadística: o j u d e u era o in imigo que residia no inter ior da Cris tandade e, p o r isso, o mais perigoso. Daí que, na sua dialécti-ca, usasse expressões pejorativas para c o m as minorias: stultitia, caecitas, perfi-dia, deliramentum, fatuitas, imprudentia, pertinatia. Declara-os e m cativeiro por causa da m o r t e de Cristo. Igualmente os atacava pela sua incredul idade e m não aceitarem que Cris to era o Messias predi to pelos profetas. Po lemizou , e m Barcelona, c o m Salomão ben Adret , e m 128462.

N a sua controvérsia util izou os textos de Daniel , n o m e a d a m e n t e as se ten-ta semanas, o sonho de N a b u c o d o n o s o r , o a rgumen to do Génesis sobre o Shiloh e as profecias de Isaías, Malaquias, Ageu e Habacuc . T a m b é m soube usar as fontes rabínicas e as suas objecções c o m base e m Jeremias , Isaías, Danie l , Zacarias e o D e u t e r o n ó m i o , para a lém da tradição juda ica dos dois Messias.

R a m o n Lull é o u t r o apologeta , mas p e r t e n c e n t e à O r d e m de São F r a n -cisco; tal c o m o o d o m i n i c a n o , estava igua lmen te m a r c a d o pela escolástica. E n t r e as suas obras de carácter proselitista e n c o n t r a m o s o Libre dei gentil e los tres savis, obra o n d e a po lémica se desenrolava n u m t o m cor tês e n u m a m b i e n t e bucó l i co , escrita e m 1272 e m árabe e depois e m catalão. Ne la Lull dissertava sobre D e u s e a ressurreição, p o n d o depois , e m paralelo, u m j u d e u , u m cristão e u m m u ç u l m a n o a d e f e n d e r a respectiva religião6 3 . N o seu Liber de Trinitate et Incarnatione adversus judeos et sarracenos ou Liber ad probandum qualiter judei sunt in errore ou De erroribus judeorum, escri to e m 1305, e n o De adventu Messiae, o o b j e c t o da sua po lémica era a recusa dos j u d e u s e m ace i ta rem o d o g m a da T r i n d a d e , a Enca rnação e Cr is to , c o m o o Messias64 .

N o Liber de Trinitate, Lull a rgumentava c o m base e m textos bíblicos, G é -nesis, Isaías e o Saltério, sobre as três pessoas da Tr indade e a sua unidade i n -finita e eterna, assim c o m o sobre as qualidades divinas, ao longo de 52 ser-mões . In t roduz estes, expl icando a sua necessidade: « Q u o n i a m iudei c redun t esse in veritate per legem Moysi , allegando auctor i ta tem illius legis, et c u m intellectus naturaliter sit iudex rationi, et iudei extant ad d e c e m precepta, in -tendimus procedere tribus modis in libro isto, scilicet, c u m auctori tat ibus ve -teris Legis, et c u m problemaut ibus et c u m preceptis, p robando q u o d iudei sunt in errore.»65

T o d o s os sermões te rminavam af i rmando a verdadeira fé dos cristãos c o n -tra a er rónea de judeus e muçu lmanos .

A primeira me tade do século x iv per tence a obra do valenciano Frei Be r -nardo Oliver , Tractatus contra coecitatem iudeorum. Este m o n g e agost inho, que viria a ser bispo e m Tortosa , começava o seu tratado pelo pecado, especial-m e n t e pela malícia daqueles que «singulari m o d o D o m i n o peccaverunt , l h e -sum Chr i s tum De i f i l ium iniuste mort is supplicio in te r imendo; p rop te r q u o d speciali m o d o facti sunt ceci inter omnes gentes»66.

Re fe r indo - se à «cegueira» e à «surdez», citava Isaías e declarava o f im da Lei de Moisés, anunciada pelo Ant igo Tes tamento , que afirmava que depois da Lei de Moisés uma nova Lei viria mais perfeita que a anterior. Isaías era o profeta da Lei N o v a , mas ao seu lado seleccionava extractos de Malaquias, do Êxodo , do Eclesiastes e dos apóstolos67 . O Messias foi ou t ro dos temas abo r -

Josephi Historiaram Judaicae Antiquitatis, impresso em Lisboa em 1237 (Lisboa, Biblioteca Nacional).

F O T O : LAURA GUERREIRO.

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Cristo crucificado. Pormenor da cruz processional proveniente da igreja de Alcabideche, século x v (Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga).

FOTO: DIVISÃO DE DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA/ / INSTITUTO PORTUGUÊS DE MUSEUS/JOSÉ PESSOA.

dados, n o capí tulo sobre a crença dos j u d e u s de que a Lei antiga era p e r p é -tua. N e s t e abordava a crença na vinda d o Messias e a recusa e m ace i ta rem Cris to c o m o o Messias p r o m e t i d o , pois este devia reedif icar Je rusa lém e tal não sucedera. E te rminava este capí tulo: «pro pérf ida obs t ina t ione i u d e o -rum» 68

As questões da circuncisão e da Tr indade fo ram igualmente analisadas e contestadas as posições dos judeus . Pelos seus pecados e, nomeadamen te , pe lo pecado ma io r contra Cristo, este p o v o estava e m cativeiro havia 1247 anos: «Ergo quia per pecca tum commissum contra Ch r i s t um iudei incur re run t m a i o r e m p e n a m in ista ult ima captivitate que iam duravit MCCXLVH annis quam fuer i t aliqua pena eis n u n q u a m immissa p rop te r pecca tum idolatrie.»69

C o m base n o c ô m p u t o das setenta semanas de Daniel , acabava p rovando que a Lei Velha já desaparecera e fora sucedida pela Lei N o v a e só a i gno rân -cia dos j u d e u s impedia estes de a conhecerem 7 0 .

C o n t e m p o r â n e o s de Berna rdo Ol iver fo ram os conversos Afonso de Val -ladolid, ex -Abne r de Burgos, au tor de Mo ré Sedeq, e J e r ó n i m o de Santa Fé, ex-Joshua ha-Lorqui , que in tegrou a disputa de Tor tosa . Já n o século xv, u m

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ou t ro converso, Paulo de Burgos ou Paulo de Santa Maria, escrevia u m dos mais famosos textos de apologética peninsular, o Scrutinium Scripturarum. A maioria destes autores t inha e m c o m u m o passado j u d e u e u m p r o f u n d o c o n h e c i m e n t o do pensamen to rabínico, n o qual se apoiavam para contestar as posições anticristãs dos seus ex-correl igionários.

N a disputa de Tor tosa , a a rgumentação católica baseou-se e m Pedro Afonso e, sobre tudo, e m R a i m u n d o Mart i e n o Pugio Fidei, embora se verif i-que que os temas eram c o m u n s aos outros autores7 1 . J e r ó n i m o de Santa Fé sabia usar, na oposição feita às asserções dos seus ex-correl igionários, os textos antigos da literatura rabínica: os Targumim babilónicos e palestinenses, a Mi-shná e os Midrashim anteta lmúdicos e talmúdicos, para além dos textos bíbl i-cos72.

Algumas das autoridades judaicas aduzidas para a disputa t inham já sido usadas p o r R a i m u n d o Mart i , pelo que mui ta da a rgumentação de J e r ó n i m o de Santa Fé radicava nos textos do frade domin icano .

Por o r d e m do papa B e n t o XIII , o pr imei ro assunto a ser tratado foi o da vinda do Messias anunc iado pelos profetas, e de que este era Cristo, a que se seguiram os erros insertos n o T a l m u d e . A argumentação t inha c o m o objec t i -vo combate r os erros, os pecados, a perfídia, a cegueira dos judeus , po r cuja causa estes ainda se encon t ravam e m cativeiro. O s seus inter locutores eram os rabis Astruch, Ferrer, José Albo, Moisés Aben Abet e outros, provenientes de vá-rias comunas aragonesas. N o final o papa condenava, à semelhança de G r e g ó -rio I X e Inocênc io IV, a perversa doutr ina do T a l m u d e e os erros e heresias que cont inha . C o n d e n a ç ã o que se estendia t a m b é m aos seus seguidores, p ro i -b indo-os de e rgue rem novas sinagogas ou de a u m e n t a r e m as existentes, de ar rendarem casas a cristãos, de t e rem sociedade c o m cristãos ou possuírem servidores cristãos e m suas casas ou no trabalho, de f r equen ta rem os banhos ao m e s m o t e m p o q u e estes, de se rem médicos ou parteiros(as) das gentes da maior ia . Ana temizava-os , i m p e l i n d o - o s para as judiarias, e acusava-os de cup idez e de e n r i q u e c e r e m à custa da usura7 3 .

O resultado imedia to desta disputa foi a conversão de mui tos judeus , al-guns ilustres rabis, e suas famílias. Logo no início, abjuraram o juda í smo D . Vidal b e n Benvenis te da Cavalaria e seus familiares74.

A maioria das proposições aduzidas por J e r ó n i m o de Santa Fé, e m T o r t o -sa, fo ram extraídas do Pugio Fidei de Mart i e prevaleceriam na a rgumentação apologética dos séculos x v e xvi , e m Castela, c o m o p o d e m o s verificar n o Li-vro da sabedoria de Deus do converso Afonso de Zamora , n o pr imei ro quartel de Qu inhen tos 7 5 .

J e r ó n i m o de Santa Fé escreveria, c o m base nas suas alegações e m Tor tosa , o Tractatus contra perfidiam judeorum e De Judaeis erroribus ex Talmuth.

Às disputas jun tavam-se , e m Aragão e Castela, as pregações do domin ica -n o Vicente Ferrer, que criavam assim u m clima artificial propíc io às conve r -sões.

E m Portugal , sabemos p o u c o sobre a influência de umas e outras nas conversões de indivíduos da minoria . A documen tação refere-nos algumas c o m a m e n ç ã o da entrada de alguns neófi tos e m ordens religiosas, c o m o na de Alcobaça. O seu escasso n ú m e r o pe rmi te -nos concluir que elas seriam v o -luntárias, sem a pressão emocional provocada pelo clímax das disputas t eo ló -gicas ou das pregações inflamadas.

Sabemos que , para impedi r o abraço forçado do cristianismo, D . J o ã o I proibia que nas terras da O r d e m de Santiago, o n d e se procurava pregar aos judeus , estes fossem obrigados a ir assistir aos sermões, tal c o m o , segundo a tradição, teria imped ido São Vicente Ferrer de vir pregar a Portugal .

Seria j á n o re inado de D . Afonso V que u m converso bracarense, Frei Paulo, causaria transtornos na comun idade judaica da região7 6 .

Das obras de apologética contra os j u d e u s escritas e m por tuguês , apenas chegaram até nós o Tratado teológico em que se prova a verdade da religião de Jesus Cristo, a falsidade da Lei dos Judeus e a vinda do Messias, o Speculum hebraeorum ou Speculum disputationis contra hebraeos da autoria de Frei João , frade alcoba-cense, e m resposta à célebre controvérsia havida entre Frei Paulo e o rabi

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Moisés b e m N a h m a n , o Livro da corte imperial e o Ajuda da fé de mestre A n t ó -nio, o ún ico autor converso conhecido 7 7 .

Para além destes textos de apologética, é provável que, e m Portugal , à se-melhança do que ocorria nout ros reinos da Península e e m França, sucedes-sem disputas religiosas. D . Duar t e referia-as no Leal conselheiro78 e, antes dele, Frei J o ã o de Alcobaça censurava o seu amador ismo, pois e m qualquer praça pública os cristãos disputavam c o m os judeus 7 9 . Álvaro Pais referia-as n o seu Colírio da fé contra as heresias, ao escrever: «Disputando eu e m Lisboa c o m u m embuste i ro hebreu semicul to [...J.»80 Segundo parece, tal hábi to era f r equen te na corte de D . Afonso V, o n d e o soberano discutiria assuntos teológicos c o m José Ibn Yahia8 1 .

T o d a esta literatura, à semelhança do que ocorrera n o resto da Península ou e m França, assentava e m dois princípios antagónicos entre si. Para os j u -deus, Cris to não era o Messias e este ainda não t inha v indo para conduz i r o seu povo , de novo , a Eretz Israel, à Ter ra Promet ida , e para estabelecer o re i -no universal c o m sede e m Jerusalém. Para os cristãos, Cris to era o Messias p r o m e t i d o por Deus aos profetas. Esta disputa sobre qual das duas religiões era a verdadeira deve ter marcado, e m Portugal , o pensamento cristão e t am-b é m o j u d e u , apesar do clima de tolerância que aqui se vivia.

E m Portugal , mui tos destes textos eram eco do que se passava nos reinos vizinhos. Assim, a obra de Frei João de Alcobaça, datada dos princípios do século x iv e uma das versões existentes do ano de 1333, apresentava-se c o m o uma resposta à versão hebraica, escrita po r Nahman ides na disputa de Barce-lona, e m 1263, e m que este fora u m dos intervenientes e o o u t r o o domin ica -no de or igem judaica Paulo Crist iano. T e n d o , c o m o ele diz, consul tado o texto latino e o hebraico, Frei João p ropunha-se defender a verdade da reli-gião cristã contra os erros dos j udeus e acrescentava: «Intitulei-o Espelho dos Hebreus para que assim c o m o o h o m e m p o d e discernir n o espelho as manchas do rosto, assim t a m b é m possam os j u d e u s e os conversos con templa r neste li-vro os antigos erros.»82

Assim, admitia a controvérsia contra os seguidores da Lei de Moisés que se encon t ravam nas «trevas», pois não en tend iam a verdade anunciada pelos profetas. Recor r i a , c o m o outros autores, ao a rgumen to do cativeiro e m que eles ainda pe rmanec iam, devido aos seus pecados, n o m e a d a m e n t e dev ido à não aceitação da vinda do Messias83.

A fonte de Frei João é catalã e reflectia o clima de controvérsia religiosa, desenvolvido pelos Domin i canos e pela corte de Ja ime I de Aragão, que p re -sidiu e o r d e n o u a redacção latina da disputa e que insti tucionalizou os ser-mões nas sinagogas. T e m a s constantes dessa disputa e ram a vinda do Messias, a natureza de Cris to e o dogma da Santíssima Tr indade , entre outros. Tal c o m o outros pregadores, Frei J o ã o t a m b é m referia «as trevas da maldade j u -daica»84.

Ignoramos se a finalidade de Frei J o ã o seria essa mesma: criar i n s t rumen-tos que permit issem aos pregadores nacionais doutr inar publ icamente os j u -deus n o seu própr io te r reno religioso. C o n t u d o , estamos mal in formados so-bre esta prática para per íodos anteriores ao re inado de D . João I, t endo este acabado por proibir as pregações nas sinagogas.

O Livro da corte imperial é u m texto de apologética que, segundo Sidarus, teria t ido a sua or igem na Cata lunha e ent rado e m Portugal c o m o casamento de Isabel de Aragão e D . Dinis, sendo t raduzido para por tuguês . Este autor coloca a redação do original catalão por altura do casamento de Ja ime II c o m Maria de Ch ip re , talvez por encomenda da cor te aragonesa, e declara-o fo r -t emen te marcado pela ideologia apologética de R a m o n Lull, no que respeita aos pagãos, p o r R a i m u n d o Mart i na controvérsia contra o Islão, e po r N i c o -lau de Lira na disputa contra os judeus 8 5 .

Traz ido ou não pela rainha D . Isabel, i rmã de Ja ime II, para Portugal , a verdade é que, c o m o veremos, o Livro da corte imperial teve grande divulgação n o reino, na sua versão portuguesa que t e m sido datada do século xiv.

A n t ó n i o Cae tano de Sousa assinalou a sua presença na biblioteca de D . Duar t e e o m e s m o ou outra cópia deste manuscr i to era m e n c i o n a d o n o

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0 Tora (Pentatateuco), Lisboa, 1491 (Lisboa, Biblioteca Nacional).

F O T O : LAURA G U E R R E I R O .

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t> Perush Há-Berakhot (Comentário à ordem das orações), Lisboa, 1489 (Porto, Biblioteca Pública Municipal).

F O T O : BIBLIOTECA PÚBLICA E M U N I C I P A L DO P O R T O .

testamento da infanta D. Beatriz, sua nora. Deveria estar suficientemente di -vulgado no século xv, para que uma das suas cópias manuscritas pertencesse a u m h o m e m honrado do Porto , Afonso Vasques de Calvos, precisamente a que chegou melhor conservada até nós e se encontra depositada na Biblioteca Municipal do Porto . U m out ro exemplar existia na biblioteca do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra 8 6 .

Tal c o m o já foi salientado pelos autores que o estudaram, o objectivo desta controvérsia era salientar a verdade da fé cristã perante os infiéis judeus , muçulmanos e gentios. R e m e t o para Cruz Pontes a identificação dos extrac-tos de outras obras de apologética, nomeadamente das obras de Nicolau de Lira, e de temas usuais nas controvérsias religiosas, inseridos no manuscri to português.

A Igreja apresenta-se como uma rainha resplandecente que defende as ver -dades do cristianismo contra gentios, judeus e muçulmanos, numa corte impe-rial presidida pelo imperador supremo, que mais não é do que a corte celeste. Nela decorre uma disputa religiosa, narrada à imagem e semelhança das dispu-tas teológicas feitas em Aragão sob o patrocínio do rei e da Igreja, onde a rai-nha que identifica a Igreja discute sobre a verdadeira religião, o cristianismo, com vários interlocutores: diversos rabis judeus, u m filósofo gentio e um alfa-qui. Apenas nos interessa abordar aqui a polémica religiosa com o judaísmo.

O j u d e u aparece identificado «com sua barua grande e seu naijz longo uestido em panos pretos»87. O primeiro dogma a ser trazido para a discussão com a «católica rainha» foi o da Trindade. A interlocutora afirmar-lhe-ia p ro -var a Tr indade divina c o m textos da Sagrada Escritura e c o m o pensamento filosófico, e remontava aos primeiros tempos do cristianismo onde os pr imei -ros cristãos foram judeus . E m seguida explicava a razão por que os judeus não se convertiam: o m e d o de serem pobres fazia-os presos dos bens t e m p o -rais; o ódio ao cristianismo e m que eram criados desde o nascimento; a in -compreensão e rejeição da Tr indade e da Eucaristia88.

Sucede, no diálogo com os rabis judeus , a explicação da Tr indade c o m o Génesis e com o salmo «pello ue rbo do senhor som firmados os çeeos e pello spiritu da sua boca toda a virtude delles e m aquello que diz uerbo se en tende a pesoa do filho e m aquello que diz do senhor se mostra a pesoa do padre. E pello spiritu da sua boca se entende a pesoa do spiritu sancto». Vai buscar a identificação da pluralidade na unidade divina à palavra Eloim, «que sygnifica mais que húa cousa he n o m e de deus» no acto da criação do m u n d o , narrado no Génesis, a Josué, a Jeremias que associa o «senhor das ostes» a «nome de deus tetagramaton»89 .

Identificava Cristo com o «verbo» divino que existe desde o início da criação e contestava a objecção judaica que associava a criação do h o m e m à imagem dos anjos e não de Deus. Invocava em sua defesa Isaías que t ambém afirmava Deus u n o e trino, associando as pessoas divinas a «deus tetagrama-ton», ou seja, Yahvé9 0 .

A Incarnação foi out ro tema abordado com o rabi j udeu e foi pretexto para abordar a figura do Messias «prometido em a lley e em nos profetas he uerdadeiro deus se uerdadeiro homem». Jeremias era citado a propósito da geração de David de onde viria o Messias para os filhos de Israel: «Pois se a ditta autoridade segundo os doutores dos judeus se entende do misia quy se mostra e m a dita autoridade quy auya de uijir em proueza concludese ergo dele quy seia deus e h o m e m . [...] E ergo d o m rreby dise a rreinha católica n o m uos espantedes n e m digades quy xpisto n o m pode seer uerdadeiro deus e uerdadeiro h o m e m pois quy as uosas escripturas o dizem asy c o m o auedes ouujdo.»9 1

O últ imo tema abordado foi o da vinda do Messias que os rabis judeus alegavam não ter ainda vindo, utilizando textos de Isaías, Zacarias, Jeremias, Ezequiel. A rainha contestava as suas asserções c o m base na profecia de Jacob, no Génesis, no sonho de Daniel, no Salmo 94, na interpretação de rabi Bara-quias. Completava a temática da controvérsia contra os judeus a Eucaristia92.

Os judeus apareciam aqui sem argumentos suficientes e fortes para vencer as asserções da «católica rainha», que se baseava sempre na Sagrada Escritura e

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no texto hebraico, acabando p o r se calarem vencidos mas não convencidos , pois não se conver t iam ao cristianismo, ao contrár io do gentio.

Verifica-se que a temática seguida pela Corte imperial é a que respeita ao Messias na apologética catalã antijudaica, n o m e a d a m e n t e no Pugio Fidei de Marti , apesar da «colagem» a Nicolau de Lira, c o m o d e f e n d e m C r u z Pontes e Sidarus. Es tando atribuída a t radução por tuguesa ao século xiv, este manus -crito surge-nos c o m o c o n t e m p o r â n e o do tex to de Frei João de Alcobaça e das obras latinas de Álvaro Pais, bispo de Silves.

N ã o sendo a comun idade judaica tão impor tan te social, económica e cul-tura lmente quan to a catalã/aragonesa, apenas vemos c o m o explicação para a existência das duas obras portuguesas de nítidas influências catalãs o peso que as relações c o m Aragão t iveram na corte portuguesa, a que se juntar ia a i n -fluência ideológica da apologética mendican te .

Curiosa t a m b é m é a referência constante ao trajo negro dos rabis judeus : «Mais logo ou t ro j u d e u m u j ue lho uistido e m panos negros c o m o o p r ime i -ro»; «Mais logo se leuantou ou t ro j u d e u ue lho e amarello e m no rrosto c o m seu grande tabardo p re to e sua barua m u y longua»; «E logo se leuantou ou t ro j u d e u m u y ue lho e m u j magro ben assy uistido de d o o c o m e os pr imeiros seos cabellos longos e m na cabeça»; «outro rreby j u d e u c o m sua cabeça toda calua e seu narjz longo sem mesura uestido asy c o m e os outros. E a sua barua m u j espessa»; «Mais logo se leuantou o u t r o j u d e u m u y dessasemelhado ssua collor amarella e sua barua m u j amcha e asy uistido c o m e os outros.»9 3 A di -ferença tornava-se patente, não só pela religião, mas t a m b é m pela f is ionomia, a cor da pele e o vestuário, para além, obviamente , da onomástica.

N o entanto , o t o m usado pela «católica rainha» era coloquial, afável refe-rindo sempre o seu in ter locutor po r «rabi», «dom rabi», «rabi amigo» e até po r «rabi Moisés» o u «rabi Papias»94, embora exteriorize alguns topoi que v i -riam a caracterizar o j u d e u : cegueira, perfídia, p o v o e m cativeiro p o r q u e m a -tou Cristo9 4 .

O p o v o j u d e u saía vencido da disputa: «Calouse o rraby e os j u d e u s c o m sua perfia e estauam c o m olhos baixos e m tera por que de maao talente o lhauam a católica rrainha que os ia confondendo .» 9 6

Apesar da contumácia judaica , a «católica rainha» declarava a lei dos j u -deus boa, p o r q u e era f u n d a m e n t o da religião cristã97.

T a m b é m na Biblioteca Pública de Braga, C r u z Pontes encon t rou u m manuscr i to do século xiv, conhec ido por Carta do rabi Samuel, que teria sido escrita n o século xi, e m Fez, pe lo rabi Samuel ao rabi Isaac. Nela não se dis-cute a verdade do juda í smo ou d o cristianismo, mas a a rgumentação apresen-tada sobre o cativeiro de Babilónia, sobre o c u m p r i m e n t o das setenta semanas de Daniel e das profecias dos cristãos, lança as dúvidas sobre a verdadeira reli-gião no espírito de rabi Samuel, tanto mais que os árabes t a m b é m afirmavam que o Messias já viera98 . Cur iosamente , uma cópia desta carta era conhecida pelos cristãos-novos de Lisboa, existindo u m exemplar na posse de mestre Tomás .

A única obra de apologética portuguesa, escrita p o r u m converso, é Ajuda da fé, c u j o autor, mestre An tón io , foi c i ru rg ião-mor de D . J o ã o II. Natura l de Tavira, conver tera-se com 40 anos de idade ao cristianismo depois de estudar o T a l m u d e e outros escritos antigos de apologética, de «disputas». Baptizado, resolvera chamar à religião verdadeira os seus ex-correl igionários, escrevendo e m 1486 o seu manuscr i to apologét ico que Cris tóvão Rodr igues Acenhe i ro viria a copiar, a ped ido de mestre Pedro Margalho, pregador de D . J o ã o III99.

Este manuscr i to inicia-se c o m a invocação do salmo «Adju tor ium nos -t rum in n o m y n e domin i qui fecit celurn et terram», invocação usada t a m b é m nas moedas portuguesas, desde D . J o ã o I. Des igna-o Adjutorium fidei «porque sera ajuda e esforço a alguuns zelantes sabeer os f u n d a m e n t o s da sancta fee católica m o r m e n t e aa Judeus que e m tam pequena comta a t eem, asy p o r nam en t ende rem n e m que re rem saber os f u n d a m e n t o s dela c o m o por n o m saberem todalas cousas que seus doctores sobre cada h u u m artigo falaram gro-sando as profecias. E porque os Judeus tem h u u m livro aa que c h a m a m vergo-nha dos christãos, prazendo ao Salvador este sera a tal vergonha pera eles c o m o

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ho virem ou ouvi rem ou ser-lhe-a neçesario serem christãos ou ficarem e m tal vergonha que nam teram reposta pera por sy daar e m este caso»100.

D . J o ã o II pedi ra- lhe que o escrevesse, talvez na sequência do possível impacte do bapt ismo de tão impor tan te rabi j u n t o dos j udeus portugueses. Mestre A n t ó n i o tivera por padr inho o própr io monarca , segundo Garcia de Resende .

P o d e m o s crer que a sua conversão fora a consequência de uma fé adqui -rida no estudo, pois, duran te cerca de quinze anos, debruçara-se sobre «as verdades e fundamen tos da dita fee c o m o era fundada asy e m muitas disputas contra christãos» e «no T a l m u d que m u i b e m passei t odo c o m o e m outras es-prituras e disputas amtigas»101.

As fontes da sua apologética filosófico-religiosa são Aristóteles (Ética, Me-tajisica e Moral), no qual se baseou para explicar o livre arbítrio, o Ant igo Tes tamento , o n d e se salientam os profetas, os Salmos, o Génesis, o Ta lmude , a Misna Torach, o Midrash Sir, mestre Moisés do Egipto, rabi Aquiba e outros autores judeus , textos cabalísticos e os livros de disputas dos conversos, ou se-ja , a apologética peninsular que o antecedeu.

A sua a rgumentação centrava-se à volta do Messias e pretendia provar a vinda deste aos seus antigos companhei ros , usando os escritos judaicos: «Ma-xima he n o T a l m u d Emberahod , capitulo pr imeiro , e mestre Mossem no li-vro chamado Misne Tora dobro da ley, neste diz que a ley de spritura n o m obriga tanto salvo a ley de coor e Moyses a m a n d o u a Yosue e aos velhos e todo Isrrael por tan to foy chamada ley de coor . E p o r q u e agora hos Judeus c o m o v e e m a lguum converso que lhes sabe hos cantos da casa d izem que nam sam obrigados de os goardar na ley.»102

Criticava os autores conversos, seus antecessores, p o r q u e «neses lyvros de disputas desses conversos que eu vii, achey h u u m grande inconvenien te que he ou a rguem mais do que asolvem ou p o r m e t e m mais do que dam. P o r q u e mestre J e r o n i m o q u a n d o se conver teo amte que fose bispo d 'Avynhão fez h u m a grande disputa de que grandes leterados j u d e u s fo ram desbaratados e deles boons christãos, fez h u u m livro que m e pareçeo levar m u y boa regra, mas c o m o quer que ele grande leterado foy ou por n o m veer tantas cousas ou c o m o quer que foy n o m satisfez tam b e m c o m o eu quisera, eu levarey a sua regra mais mais [51c] rijo argoyrey e mais largo provarei»103 . C o m a sua ar-gumentação pre tende «alumiar os olhos de mui tos çegos».

Verif icamos que mestre A n t ó n i o conhecia as disputas peninsulares, n o -meadamen te a disputa de Tor tosa e a obra de J e r ó n i m o de Santa Fé que se-guiria de m u i t o per to , sobre tudo o Livro 1, na temática e nas citações dos textos judaicos, assim c o m o do Pugio fidei104.

N u m a disputa que se desenrolava entre mestre An tón io e u m j u d e u «amigo», tentaria provar, ao longo de doze capítulos, que Cristo era o Mes -sias p rome t ido na Lei:

«Capitulo pr imeiro diraa c o m o toda a discórdia antre nos e h o J u d e u he fundada sobre a vinda do Misia e neste capitulo h i ram os seus a rgumentos prinçipaes que ho J u d e u m o v e contra nos;

Capi tu lo segundo diraa a vinda do Misia que foy no t e m p o promet ido ; Capi tu lo terçeiro diraa c o m o o dito Mesia naçeeo e m Beleem; Capi tu lo quar to diraa c o m o naçeo da Vi rgem Maria e falara na encar-

nação; Capi tulo qu in to diraa que ho Misia he Deus e h o m e m e fala na Tr indade; Capi tu lo seisto diraa c o m o era profet izado do t e m p o d 'Abrão e que os

rex lhe t rozer iam presentes; Capi tu lo sep tymo que antes da vinda do Misia todalas almas eram n o in -

fe rno pelo pecado de Addam; Capi tu lo oytavo c o m o h o Mesia avia de reçeber m o r t e e paixam e que

ao terceiro dia avia de resuscitar e sobir ao ceo e estar a destra de Deus padre; Capi tu lo n o v e n o falara n o sacrifício que avya de ficar depois da vinda do

Mesia; Capi tu lo deç imo c o m o ho Misia avia de dar hy noua e tiraar mui tos

mandamentos , çirimonias e pascoas;

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

Capi tu lo xj diraa c o m o depoi da vinda do Misia se avia de r emove r a ydolatria e das gentes avia de fazer p o v o n o v o e saçerdotes e Isrrael avia de teer o u t r o n o m e e avyam de ser salvos pe lo baut ismo;

Capi tu lo xij que ante que viese sua v imda avia de ser apregoada e que veria c o m muita humi ldade e que ho catyveiro dos Judeus foy pelo que lhe fizeram e nunca mais foy ouvida oraçam de Judeu.» 1 0 5

N o pró logo do seu texto, mestre A n t ó n i o declarava provar que o Messias já viera, t o m a n d o c o m o base o Midrash Rut; rabi Sahuna e rabi Yoshua; mes -tre Moisés do Egipto n o livro dos Juízes; o Ta lmude , para afirmar que era herege o que negava a vinda do Messias; a interpretação da visão de Zacarias po r rabi Salomão. Conclu ía verif icando que era difícil a olhos «cegos» e n t e n -de rem a fé: «E depois que começey gostar da fee e c o m mui to c h o r o m e e n -c o m e n d e y aa Deus e aa sancto A n t o n y o que rogase p o r m y m a nosso Senhor que m e mostrasse seu caminho ate que p rouve a nosso Senhor m e dar tal graça [...] E assy rogo aa todo j u d e u por a m o r de Deus que faça c o m o eu fiz e oulhe h o que ou lhey e trabalhe c o m o trabalhey e logo se lhe abriram os olhos da alma [...].»106

A o pr imei ro a rgumen to do j u d e u sobre a promessa de que o Messias ha -via de vir para os j u d e u s e que Cris to não só não viera para os judeus , c o m o ainda os fizera cair e m cativeiro, respondia- lhe c o m o Ta lmude , livro de Me-kilta, c o m a glosa talmúdica de rabi Salomão que dizia «que no t e m p o do Mesias seriam as gentes repartidas e m qua t ro partes», c o m Midrash Rut, a p r o -pósito da aplicação d o n o m e de Israel aos estrangeiros, c o m Isaías e c o m o Talmud Sanhedrim glosado por rabi Samaia107 .

A segunda dúvida do j u d e u sobre o Messias que havia de conduz i r o p o -vo de Israel, espalhado por t odo o m u n d o , a Jerusalém, segundo Isaías, res-pondia mestre A n t ó n i o associando esta Jerusalém à Jerusalém celeste, e alicer-çando-se e m mestre Moisés do Egipto n o livro Mada, no texto do Génesis sobre a escada de Jacob, no Bereshit Raba, e m rabi Moisés, o C o h e n , e n o dou to r Ben Balao108 .

A afirmação de que o Messias reconstruiria a casa de Deus e m Jerusalém, c o m o profetizava Zacarias, mestre A n t ó n i o baseava-se na profecia de Mala-quias: «eu enviarey o m e u amgeo e alinpara ho c a m i n h o diante m y m e subi-to viraa aa seu paço», no salmo «Esperamos Deus tua gloria», e m rabi Ioshua ben Levi no Genesim Magno, na glosa Midrash Telim, e m rabi Aquiba e rabi Aba que interpretaram Sião c o m o Paraíso109.

Alegava ainda o j u d e u que Cristo não podia ser o Messias, po rquan to destruiu a Lei de Moisés. Mest re An tón io rebateria esta asserção, c o m e ç a n d o pela carne de porco que era proibida pela Lei, animal que era t a m b é m desig-nado por «tornado», pois Deus faria c o m que Israel o viesse a comer . Para tal baseava-se no Talmud Enveraod, e m Ben Z o m a , que relacionavam essas p ro i -bições c o m a saída do Egipto, e re tomava as explicações seguindo o Salmo 81, o Ketubot, no capítulo dos Juízos, rabi José, Isaías, conc lu indo que todos af i rmavam que a Lei ia ser mudada .

Acrescentaria que muitas dessas mudanças fo ram t a m b é m feitas pelos j u -deus e dava o exemplo da festa de Ester, da Hanuca , da c o m e m o r a ç ã o da vi-tória do Macabeus, do Pur im, do lavar as mãos, da candeia ao sábado, etc. Por isso, Cristo podia fazer a mudança da Lei, pois a Ele se aplicava o sacrifí-cio do pão e do v inho, c o m o profetizava Isaías, c o m o fora glosado no Mi-drash Telim e nas confissões de rabi An to da família de rabi Levi e de rabi M e n a é m da Galileia. Concluía que a única lei eterna eram os D e z M a n d a -mentos .

Por isso contestava a circuncisão, tida c o m o condição de salvação pelos judeus ; a Páscoa do pão ázimo que apenas tinha por explicação relembrar a saída do Egipto e prenunciar o cordei ro associando-o a Cristo e o pão à hós -tia; o sábado, in terpre tado c o m o o sét imo dia e m que Deus descansou depois de ter trabalhado, e p o r isso, foi o rdenado ao h o m e m que trabalhasse seis dias e descansasse no sét imo. Por fim rebatia o uso de imagens c o m o acto de i do -latria.

Sendo preceitos fundamenta is da religião judaica a prática do sábado e a

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ausência de imagens, mestre A n t ó n i o tomava u m cuidado especial e m rebatê--los, ci tando autoridades judaicas, tais c o m o rabi Acer nos Haçagod, rabi Abraão, rabi Ismael, Aquiba Radaez .

Das imagens e da criação passou ao tema da Encarnação, j á prenunciada no salmo de David «Eu c o m justiça verei tuas faces» e na profecia de Isaías. E terminava a sua a rgumentação contra o j u d e u , declarando que Cristo era o verdadeiro Messias, p o r q u e «nom m i n g o o u a ley mas compr iu -a e dec larou-- h a c o m o avia de seer pois era mayor que todolos outros profetas»11".

E m je i to de conclusão sumariava as várias proposições que identif icavam Cristo c o m o Messias:

1.a — o Messias havia de ser h o m e m ; 2.a — havia de nascer de uma virgem; 3 / — havia de ser Deus, sendo h o m e m ; 4.a — havia de ser visitado pelos Re i s que lhe trariam presentes; 5.a — havia de vir n o f im da segunda casa de Jerusalém; 6.a — havia de nascer e m Belém; 7_a — a sua vinda havia de ser anunciada e pregada; 8.a — viria e m humi ldade e pobreza; 9_a — todas as almas dos santos, antes da sua vinda, estavam no L imbo e

outras no Inferno, po r causa do pecado de Adão; 10.a — veio para salvar as almas; 11.a — m o r r e u e padeceu para tirar as almas dos padres santos do Inferno

e as de todos os que nele crerem; 12.a — ressuscitou ao terceiro dia e apareceu aos discípulos; 13/ — subiu ao C é u o n d e está à direita de Deus Pai; 14.3 — logo o t emplo e a casa santa fo ram destruídos; 15.a — Deus nunca mais escutou oração feita por j u d e u ; 16." — os j u d e u s estão e m cativeiro por não O aceitarem; 17_a — a sua salvação era para todos os povos, embora tivesse v indo para

os judeus ; 18.a — fez u m n o v o sacerdócio das gentes convertidas; 19.a — a sua misericórdia estava aberta para os que O quiserem conhecer ; 20.a — a salvação das almas era dada pela água do bapt ismo e pela graça

do Espírito Santo; 21.a — havia de dar Lei N o v a e Tes t amen to N o v o ; 22.a — havia de substituir todas as cer imónias da Lei Velha; 23.a — havia de proibir todos os sacrifícios, excepto o do pão e do v inho; 24.a — havia de expulsar toda a idolatria do m u n d o e todos O haviam de

adorar; 25.a — havia de «dar tal pastor que tyvese tal pode r que o que ele fechase

fose fechado e o que abrise fose aberto»; 26.1 — havia de «arrancar a estaqua primeira e que avya de chantar outra

e m lugar fiel»; 27.a — havia de mandar os seus mensageiros pelo m u n d o para anuncia-

r em a Sua Glória a todos os homens ; 28.a — apregoou aos h o m e n s a Lei; 29.a — esteve n o m o n t e das Oliveiras três dias, para cumpr i r a meia se-

mana de Daniel; 30.a — declarou os D e z M a n d a m e n t o s e toda a Lei c o m o principais111 . E p o r q u e os «Judeus sam p o v o du ro de ouvir» e af i rmavam que não havia

t e m p o def in ido para a vinda do Messias, remetia para o capítulo seguinte a justificação das asserções enunciadas.

Malaquias, Isaías, Daniel e Zacarias eram citados para referenciar o t e m p o da vinda do Messias e identif icá-lo c o m Cristo. Igualmente se socorria do Midrash Tilim, na glosa do Saltério, n o que respeitava à entrada de Jesus e m Jerusalém. Baseava-se nos 6 0 0 0 anos da criação do m u n d o e citava rabi Saio-mão , a propósi to dos 1000 anos equivalentes a u m dia de Deus , conc lu indo que a época messiânica coincidia c o m o fim dos 4000 anos, cabendo os últ i-mos 2000, depois dos 2000 anos da Lei, ao t e m p o do Messias. N o sét imo milénio seria a destruição do m u n d o . N a altura, segundo mestre An tón io ,

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A P R O C U R A DO D E U S Ú N I C O

eram já passados 1486 anos do pe r íodo messiânico. E rematava: «dixe Elias aa raby Judaa n o m mingoara ho m u n d o de lxxxb gibileus e no jubi ley derra-deyro ho filho de Davi t viraa contados estes gibileus v e e m a própria conta e m que nosso Senhor veyo».

A propósi to do nascimento do Messias em Belém, c o n f o r m e profetizara Isaías, profecia e m que os j u d e u s ainda acreditavam, con t rapunha a r g u m e n -tando que , no m o m e n t o , em Belém dominava o Islão, pelo que não podia nascer n e n h u m Messias. Rematava , alegando que assim se conf i rmava que Cristo era o Messias112.

N o quar to capítulo, tratava do nascimento do Messias de u m a virgem. Jeremias, Isaías, David , Ezequiel , Salomão e as glosas do Midrash Tilim, do Sanhederim e de outros doutores j u d e u s e ram novamen te chamadas para c o n -firmar os textos sagrados e a identificação de Jerusalém celeste c o m a Igreja. Utilizava o hebraico para explicar «virgem», vetula que significava alma e se aplicava a toda a mu lhe r v i rgem e moça 1 1 3 .

A Encarnação e a Tr indade foram ob jec to de a rgumentação nos capítulos seguintes, onde se usava a mesma dialéctica: os textos do Ant igo Tes tamento , do Génesis aos Profetas, passando pelo Cân t i co dos Cânt icos e os Salmos, fo -ram os a rgumentos usados j u n t a m e n t e c o m as glosas dos doutores da Lei. Pa-ra explicar a unidade divina na Tr indade seguiu rabi Asser no livro Da unida-de: «E diz as dignidades de Deus som trees e som chamados padres e os seus nomes som merçee e ju izo e misericórdia e asy cada h u m a destas trees h u u m arvore t e m todas n o m tem apar tamento n e m soluçam e m suas dynidades p o r -que cada h u m a he comprend ida na outra [...].»

E confirmava a sua a rgumentação c o m Aristóteles, que «diz que Deus he tres causas fynaes juntas», c o m o Ta lmude , o n d e se lê «que ho ve rbo de H e -loym mostra sobrejuizo de trees», com o Génesis na narração da criação de Adão, cujos glosadores af i rmavam que Elo im é n o m e plural, no acto da Cr ia -ção, e c o m Santo Agost inho, e n t r e m e a n d o nos seus a rgumentos exemplos vários do pensamento juda ico sobre a Encarnação e a Ressurreição. Tal co -m o outros autores, seus antecessores nas disputas, associava a Tr indade ao te -tragramata, ou seja, a Yahvé1 1 4 .

Re tomar i a o tema da Tr indade , a propósi to da visita dos Re i s Magos, e associava o cordeiro do sacrifício de Abraão a Cristo. Conc lu ía que a vinda do Messias fora revelada aos «padres santos» e aos gentios1 1 5 .

O tema da salvação da human idade por Cristo era associado ao pecado de Adão que condenara a espécie h u m a n a ao Inferno, nos capítulos sete e oi to. N o n o n o capítulo provava que o ún ico sacrifício era o da Eucaristia, ou seja, o do pão e o do v inho que os j u d e u s t omavam por idolatria. Perante a des-crença dos judeus na Eucaristia, referia a crença deles de que Elias estava p re -sente em toda a circuncisão e p o r isso t inham sempre u m a cadeira disponível para o profeta que nunca chegaram a ver. N o déc imo capítulo, o tema é a Lei N o v a que veio substituir a Lei Velha, tal c o m o predisseram Jeremias, Isaías e outros profetas.

P o d e m o s concluir que o objec t ivo deste converso é provar que Cristo era o Messias p rome t ido na Lei Velha e que os j udeus pe rmanec iam e m cati-veiro p o r q u e não o aceitaram, e m vir tude da sua cegueira e p o r q u e são «jente dura de çerviz».

O texto do manuscr i to não é un i forme. Começa - se por u m diálogo entre mestre A n t ó n i o e u m «judeu» amigo, no pr imei ro capítulo, para te rminar na refutação dos a rgumentos dos j u d e u s e m geral contra Cristo e a religião cris-tã: «meterey algumas perguntas que os j u d e u s m e e m esto ja fizeram». Esta-mos por tan to perante uma disputa ideal que t em por base os textos das dis-putas peninsulares dos séculos x m e xiv.

A fon te directa é o Livro 1 de J e r ó n i m o de Santa Fé, pelo que as fontes judaicas, citadas por mestre An tón io , p o d e m advir daquela, embora se possa supor que o converso por tuguês as conhecesse t ambém. Ignora, pe lo menos na cópia do século xvi que nos chegou, o Livro 11 de J e r ó n i m o de Santa Fé que tratava dos erros do Ta lmude .

Assim encont ramos referências à Mishné Tora e à More de Maimónides ,

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aos Sanhedrin, à Mekiltá, ao Bereshit Rabbá de Moisés ha-Darshan, ao Abot de rabi Natal, aos Midrashim, aos Targumim, n o m e a d a m e n t e de Onqe los e J o n a -tan ben Uzziel , ao Ta lmude , a Aboda Zara, a rabi Aquiba, a Rashi , a N a h -manides, a Ibn Ezra, etc.116 .

Algumas delas já fo ram utilizadas nas disputas anteriores e passadas a escri-to no Pugio Fidei de Mart i , pelo que p o d e m o s concluir que há u m grande en feudamen to à apologética medieval de or igem catalã/aragonesa. Verifica-se t a m b é m que a a rgumentação é semelhante à da Corte imperial e à do texto de Frei João , pois o object ivo de toda esta apologética era demonst rar que o Messias já t inha v indo, levando assim os j u d e u s à conversão.

Mes t r e A n t ó n i o , ao expurgar do seu manusc r i to os capí tulos sobre os erros do T a l m u d e , ident i f icava-se c o m u m a c o r r e n t e proselit ista m e n o s agressiva con t ra os j u d e u s , tal c o m o sucedera c o m P e d r o Afonso , e asso-ciava-se à m e n s a g e m q u e aqueles dois textos t ransmi t iam. Ta l c o m o o t e x -to daque le conver so , a obra de mes t re A n t ó n i o era u m diá logo en t re o cristão mes t re A n t ó n i o e u m j u d e u «amigo», en t re o seu presen te e o seu passado.

P o r ou t ro lado, o Ajuda da fé apresentava afinidades estruturais c o m a es-cola barcelonesa, n o m e a d a m e n t e c o m o Pugio Fidei de R a m o n Marti , que t a m b é m fora a obra que mais marcara a a rgumentação de J e r ó n i m o de Santa

Cristo a caminho do Calvário, retábulo da capela-mor da igreja do Escalhão, Figueira de Castelo R o d r i g o (mestre Arnao e Henrique Fernandes, c. 1524).

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

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A PROCURA DO D E U S ÚNICO

Fé e m Tortosa e n o seu livro sobre o Messias. Mas, ao contrár io deste, não procurava condenar o Ta lmude , c o m o livro herét ico que atacava Cristo e o cristianismo, u t i l izando-o antes para a rgumentar a favor da Lei N o v a contra a «cegueira» dos judeus .

E curioso salientar a p reocupação c o m este texto, e m vésperas da entrada da Inquisição e m Portugal . D e facto, a sua cópia, a ped ido de mestre P e d r o Margalho, pregador de D . J o ã o III, reflectia a necessidade de conver te r os cristãos-novos à causa do cristianismo e de Cristo, c o m o Messias, quando cir-culava entre os ex- judeus a ideia de u m rei dos j u d e u s e m j e s u r a l é m , veicula-da por David R e u b e n i , q u a n d o da sua vinda à cor te por tuguesa. O u seja, aproximava-se o t e m p o da vinda do Messias dos j u d e u s que lhes daria a l iber-tação do cativeiro e os conduzir ia a Sião, es tabelecendo o juda í smo c o m o r e -ligião universal, esperança que Isaac Abravanel, Samuel U s q u e e Ibn Verga transmitiriam nos seus escritos117.

Este estilo de apologética desapareceria no per íodo m o d e r n o , o n d e a ar -gumentação c o m base nos comentár ios bíblicos e nos textos rabínicos daria lugar à transmissão de topoi distorcidos sobre o outro, o j u d e u . Agora aparecia a semelhança física c o m Satanás, a referência à menst ruação e a outros este-reótipos que nada t inham a ver c o m a apologética medieval e que assentavam n u m imaginário popular , cujas raízes talvez se devam procurar n o exter ior da Península Ibérica.

O ANTICRISTIANISMO TEMOS FALADO NO DIFÍCIL DIÁLOGO d o c r i s t ão c o m o j u d e u . N o e n t a n t o ,

esquecemo-nos sempre de que todo o diálogo implica a existência de u m «eu» e de u m «tu», ou seja, de u m «nós». O facto de o p o v o j u d e u ter vivido, desde os séculos 1-11 d. C. , em diáspora, fora da Palestina, o b r i g o u - o a conv i -ver e a viver c o m os goim, os pagãos, os que não per tenc iam ao p o v o eleito, os que não eram judeus .

O s goim não pra t icavam a circuncisão, não festejavam o sabbat, n e m a Páscoa do pão ázimo, n e m j e juavam o Y o m Q u i p p u r , não f requentavam a sinagoga, não rezavam diar iamente a Shema Israel, não j e juavam d o nascer ao pôr do Sol, não celebravam a Páscoa dos Tabernáculos ou Sukkot , fazendo pequenas tendas cobertas de ramos de palmeiras e de flores nos terraços de suas casas ou nas ruas, n e m a festa da Lei, a Simhath Torah , n e m a H a n u c á ou a festa da purificação do T e m p l o , n e m a Páscoa de Shavuoth ou P e n t e -costes, não se guiavam pelo calendário lunar. C o m i a m al imentos proibidos pela Lei, acreditavam n u m Deus u n o e t r ino, defendiam que o Evange lho era a Lei N o v a substituta da Lei Velha dos judeus , acreditavam que eram o n o v o povo eleito por Deus , etc. E m b o r a tivessem a Bíblia c o m o texto sagrado, não eram judeus , pois não se def in iam pela mesma história, religião, tradição, l ín-gua e escrita. N ã o esperavam a vinda do Messias, pois, para eles, o Messias anunciado pelos profetas já viera e era Cris to. O s cristãos eram os outros para os judeus .

N o re lac ionamento c o m os goim era permit ida a usura que a Lei vedava entre os seus seguidores (Deut . 20-21). Estavam-lhes vedados os casamentos c o m cristãos, quer pela Tora que r pelas ordenações gerais do re ino e canón i -cas, ou t e rem relações sexuais extracasamento c o m m e m b r o s de outras rel i-giões, pelo que nas judiarias mais populosas, c o m o Lisboa, havia uma m a n c e -bia.

Re je i t avam os conversos, chamando- lhes «tornadiços», o que , a c rermos e m mestre An tón io , sobre a designação de «tornado» aplicada ao porco , seria s inón imo de «marrano» ou «marano», pois «tornadiço» e «marrano» identif ica-vam-se c o m aquele animal. «Marano» era o insulto q u e Abraão, filho de J a -cob Jeca, lançava a Gil Fernandes e a seus filhos. Samuel Saiam de Barcelos chamara a P e d r o Alvares «marano velhaco» e acrescentara «que n o m c u y -dasse q u e por h u u m a pouca d ' agua de bau t i smo q u e reçebera que vallia mais q u e ante, p o r yisso, vallia m e n o s e outras palavras injuriossas e q u e

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O D I F Í C I L D I Á L O G O E N T R E J U D A Í S M O E C R I S T I A N I S M O

brasfamara comt ra elle e comt ra a fe católica». Igual reacção de u m seu e x --cor re l ig ionár io tivera a conversa Beatriz Mendes , que fora humi lhada p u -bl icamente 1 1 8 .

O conve r so seria o l h a d o c o m suspeição p o r ambas as c o m u n i d a d e s . P o r isso, os nossos soberanos lhes o u t o r g a r a m privi légios, ex tens ivos aos mar idos , n o caso de o i n d i v í d u o c o n v e r t i d o p e r t e n c e r ao sexo f e m i n i n o . E n t r e esses pr ivi légios es tavam as isenções fiscais e a dispensa de serviço mil i tar .

O anticristianismo existia t ambém, embora fosse mais escondido que o ant i judaísmo. Sendo o juda í smo uma religião minori tária e tolerada na Cr is-tandade não convinha aos seus seguidores dar sinais de hostilidade para c o m a religião maioritária e acolhedora. Estando o j u d e u sob a alçada das o rdena -ções gerais do reino, t odo o cr ime de blasfémia contra o cristianismo devia cair sob a jur isdição régia. N o entanto , ele não nos aparece m u i t o d o c u m e n -tado nos textos oficiais, pelo que não será talvez de excluir a hipótese da alça-da eclesiástica.

T a m b é m é u m fac to q u e o equi l íbr io das relações en t re a maior ia e a minor i a p reva leceu , du ran t e três séculos, não t e n d o hav ido aqui o a m b i e n -te p rop í c io à escrita de textos teo lógicos con t ra o cr is t ianismo e e m favor do j u d a í s m o , c o m o o c o r r e u e m Aragão. P o r isso a agressividade juda ica não se exter ior izava, a não ser e x c e p c i o n a l m e n t e p o r actos m e r a m e n t e i n -dividuais con t ra a rel igião maior i tár ia e, sob re tudo , con t ra os apóstatas, con t ra os q u e a b a n d o n a r a m o j u d a í s m o . Insultos, blasfémias e actos d i v e r -sos de desprezo do cr is t ianismo t o r n a v a m - s e actos isolados e sem expressão significativa.

Abraão Levi, m o r a d o r e m Óbidos , foi réu n u m a inquir ição devassa por ter af i rmado que «Santa Maria, nossa senhora, fora judia e Jesuu Chris to , nos -so senhor, fora çapateiro ou alfayate e que dissera que Deus era h u u m e fa-ziam delle trres e que disera mais que n e n h u u m n o m o avia de ver e que os christaãos que o viam e m cada h u u m dia e falavam c o m ele e que mais arra-negara de Deus e de Santa Maria». Estamos perante a contestação dos dogmas da Tr indade e da Eucaristia po r parte de u m j u d e u que afirmava que as or i -gens do cristianismo estavam no juda ísmo.

Por sua vez os j u d e u s de Silves fo ram acusados de satirizar a Páscoa cristã, fazendo «jogos c o m dyabos e gadanhos e a m d a v o m apus h u u m que andava vistido c o m o m o l h o d izendo lhe doestos e abodegando e fazendo todo e m desprozo» da fé da maioria.

Fé arrenegada era c o m o Bo ino de Leão definia o cristianismo que u m seu ex-correl igionário assumira c o m o religião sua e insultava a filha deste conve r -so que permanecera judia , chamando- lhe filha de tornadiço. Pelo insulto fora condenado à pena de açoites.

Igual castigo fora atr ibuído a Abraão, fi lho de Tigesso, m o r a d o r e m O l i -vença, ou a sua substituição por uma multa de mil reais brancos por ter cus-p ido n o crucif ixo.

Isaac Mon te s inho , natural de Pon te de Lima, fora apanhado a blasfemar contra a fé católica, Deus e a Virgem, pelo que os desembargadores da Casa da Suplicação o condena ram à pena de açoites na praça pública c o m uma agulha enterrada na língua e a degredo pe rpé tuo para São T o m é .

Samuel Neemias , sapateiro, fora condenado a desterro para o cou to de Arronches , po r ter colocado cruzes n o inter ior das solas dos sapatos119.

E m conclusão, a história do re lac ionamento dos cristãos c o m os j u d e u s e m Portugal , durante a Idade Média , até à sua expulsão pelo édi to de 5 de D e z e m b r o de 1496, foi caracterizada pela convivência e pela estabilidade, não t endo sofrido os sobressaltos de re lac ionamento dos demais reinos península-res. Apesar da tolerância existente, definida por dispositivos legais régios e ca-nónicos, não p o d e m o s esquecer que todo o diálogo, entre maiorias e m i n o -rias, se reveste de u m substrato ideo lóg ico de dois vec tores que , e m circunstâncias de «crises», se a f i rmam de sinais contrários. Estes vectores anta-gónicos fo ram par t icularmente visíveis no ú l t imo quar to do século xv e p re -pararam, c o m outros factores externos, a expulsão.

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

NOTAS

GARCIA M י O R E N O - Los Judios. 2 HA־COHEN - El valle, p. 41. 3 D ÍAZ ESTEBAN - Lápidas judias, p . 207-215 . 4 FERRO - Os judeus em Portugal no século xiv, 1979, p. 9-10. LIVRO preto da Sé de Coimbra, v י o l . 3, p . 2 4 6 . A s t r a n s c r i ç õ e s s e r ã o a c t u a l i z a d a s . Ve י' ja - se TAVARES - Os judeus cm Portugal no século xv, cap. 1, 11, IN e v u . 7 Ibidem, cap. iv. 8 FOROS de Santarém, v o l . 4 , p . 555, 566 . 9 FOROS de Beja, v o l . 5, p . 4 7 9 , 505, 5 0 6 , 511, 5 2 0 .

10 FOROS da Guarda, v o l . 5, p . 433, 4 4 8 . 11 LIVRO de leis e posturas, p . 35, 211. 12 Ibidem, p. 37. 13 Ibidem, p. 483. 14 FERREIRA - Afonso X, vol . 1, p. 263. 15 LIVRO de leis e posturas, p . 19. 16 FERREIRA - Afonso X, p. 263. 17 Ibidem. 18 LIVRO de leis e posturas, p . 2 6 - 2 7 , 96• 19 Ibidem, p . 3 9 8 - 4 0 0 , 417 -419 , 4 5 8 - 4 6 2 . 20 Ibidem, p. 458-462. 21 CORTES portuguesas: Reinado de D. Afonso IV (1325-135•/), p . 35, 55, 71, 97-98. 22 Ibidem, p . 126 (art.° 4.0) . 23 Ibidem, p . 82 (art.° 71). 24 FERRO - Os judeus em Portugal no século xiv, p . 108. 2 5 I A N T T . C R , A l c o b a ç a , m . 16, n . ° 8. 26 Ibidem. C R , S a n t a C r u z d e C o i m b r a , m . 15, n . ° 6 . 27 Ibidem. D i r e i t o s R e a i s , l i v . 2, f l . 2 0 0 v ; C h a n c e l a r i a d e D . D i n i s , l iv . 3, f l . 162. 28 FERRO - Os judeus em Portugal no século xiv, p . n o . 29 CORTES portuguesas: Reinado de D. Pedro I (1357-1367), p . 44. 30 Ibidem, p. 48 ' 31 CANTIGAS d'escarnho e mal dizer, p . 2 0 3 - 2 0 5 . 32 FERRO - Os judeus em Portugal no século xiv, p . 117-128. 33 CORTES portuguesas: Reinado de D. Fernando I (1367-1383), p. 42-43, 134. 3 4 I A N T T . C h a n c e l a r i a d e D . A f o n s o V , l iv . 2 0 , fl. 9 0 . 3 5 TAVARES — Os judeus em Portugal no século xv, p . 313-326. 36 Ibidem, p . 327-328. 37 RESENDE - Cancioneiro geral. vol . 1, p. 62-63. 38 TAVARES - Os judeus em Portugal no século xv, p . 312, 288. 3 9 FARO - Receitas, p . 2 4 4 - 2 7 6 . 4(1 HERCULANO - História da origem, vol. 1, p . 99. 4 1 LIVRO v e r m e l h o d e D . A f o n s o V , v o l . 3, p . 4 6 1 - 4 6 2 . 42 DOCUMENTOS referentes, v o l . 2 , p . 210. 4 3 LOPES — Crónica de dom João I, P. 29. 44 MORENO - O assalto à Judiaria Grande. 4 5 TAVARES - Os judeus em Portugal no século xv, p . 32. 4 6 FERRO - Os judeus em Portugal no século xiv, p . 60-64 , 108-210. 47 TAVARES - Os judeus em Portugal no século xv, p . 397-416. 48 Ibidem, cap. VIL 49 Ibidem, p. 32. 511 TAVARES — Judaísmo e Inquisição, p. 24-27. 51 IDEM - Os judeus cm Portugal no século xv, p . 431-434. 5 2 PEREZ CASTRO - El manuscrito apologético, p . x c i v - c i . PACIOS LOPES - La disputa, v o l . 1.

MARTINS — Estudos de literatura, p . 3 0 7 - 3 2 6 . LAVAJO - A c o n t r o v é r s i a j u d e o - c r i s t ã , p . 3-11. 5 3 SOTO RÁBANOS - La i g n o r a n c i a d e i p u e b l o , p . 99-114. 54 INVENTÁRIO dos códices alcobacenses, vol . v i . MARTINS - Estudos de literatura, p. 307-316. 55 CRUZ - Santa Cruz de Coimbra. 5 SIDARUS - Le L י' i v r o d a C o r t e E n p e r i a l , p . 131-155. 5 7 B N L . Ajuda da Fé. R e s e r v a d o s , F . G . M a n s . 6 9 6 7 . 5 8 BARKAI - D i á l o g o F i l o s ó f i c o - R e l i g i o s o , p . 11-12. 59JVDAISM 011 Trial, p . 39-75 , 102-150 . 6 0 BARKAI - Diálogo, p . 21. Veja -se LAVAJO - Cristianismo e islamismo, vol. 1, 2. 61 COLOMER - La controvérsia, p . 244. 6 2 COLOMER - La controvérsia, p . 245-255. 6 3 LULL - El Liber predicationis, p. 21-27. 64 Ibidem, p. 31. 65 Ibidem, p. 71. 6 6 OLIVER - El Tratado, p . 6 7 - 6 8 . 67 Ibidem, p . 6 9 - 7 1 , 91-103. 68 Ibidem, p. 104-109. 69 Ibidem, p. 139. 7,1 Ibidem, p. 140-150. 7 1 PACIOS LOPES - La disputa, v o l . 1. 72 Ibidem, p. 359-368.

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O D I F Í C I L D I Á L O G O E N T R E J U D A Í S M O E C R I S T I A N I S M O

73 Ibidem, vol. 2. 74 Ibidem, vol . 1, p . 45-84. 7 5 PÉREZ CASTRO - El manuscrito apologético, p . c r . 7 6 TAVARES — Os judeus em Portugal no século xv, p. 437-445. 77 MARTINS - Estudos de literatura, p . 307-326. 78 D . DUARTE — Leal conselheiro p . 198. 79 MARTINS — Estudos de literatura, p . 356. 80 PAIS - Colírio da fé, vol . 2, p . 47. 81 TAVARES - Os judeus em Portugal no século xv, p . 439. 82 MARTINS - Estudos de literatura, p . 325. LAVAJO - A controvérsia, p . 43. 8 3 PONTES - Estudo, p . 7 0 - 7 5 . 8 4 MARTINS - Estudos de literatura, p . 349-355. LAVAJO - A controvérsia, p . 12-43. PONTES - Estu-

do, p . 9 - 7 6 . 8 5 SIDARUS - Le Livro, p . 150-155. 8 6 PONTES - Estudo, p . 1-2. 87 Ibidem, p. 123. 88 Ibidem, p . 124-125. 89 Ibidem, p . 204-208. 90 Ibidem, p . 131-136. 91 Ibidem, p . 138-139. 92 Ibidem, p . 137-145, 364-391, 4 2 5 - 4 3 0 . 93 Ibidem, p. 208, 210, 213, 221, 224. 94 Ibidem, p . 214-218, 230, p o r e x e m p l o . 95 Ibidem, p. 341, 348, 359. 96 Ibidem, p. 355. 97 Ibidem, p. 450. 98 Ibidem, p . 44-47. 99 BNL. Ajuda da fé, £1. 1-1 v. 100 Ibidem, £1. 1. É p r o v á v e l q u e o l i v r o r e f e r i d o c o m o « v e r g o n h a d o s cr is tãos» se ja o t e x t o h e -

b r a i c o d a a r g u m e n t a ç ã o d e M o i s é s N a h m a n , e m B a r c e l o n a . 101 Ibidem, £1. 1 v. 102 Ibidem, £1. 2 v. 103 Ibidem, £1. 2 v. 1 0 4 PACIOS LOPES - La disputa, v o l . 1, p . 345-368. 105 BNL. Ajuda da fé, £1. 3-3 v. 106 Ibidem, fl. 5 v . C u r i o s a m e n t e , d e v e t e r s i d o d a sua f é e m S a n t o A n t ó n i o q u e t o m o u o n o -

m e d o s a n t o q u a n d o r e c e b e u o b a p t i s m o . 107 Ibidem, fl. 6-6 v. 108 Ibidem, fl. 6 v-8 v. 109 Ibidem, fl. 8 v-9 v. 110 Ibidem, fl. 9 v-18. 111 Ibidem, fl. 18-19. 112 Ibidem, £1. 19-23. 113 Ibidem, fl. 33-37. 114 Ibidem, fl. 37-47. 115 Ibidem, fl. 47-49. 1 1 6 S o b r e as f o n t e s d e J e r ó n i m o d e S a n t a F é , v e j a - s e : PACIOS LOPES - La disputa, p . 355-368. 1 1 7 V e j a - s e TAVARES - Judaísmo׳, IDEM - Los Judios en Portugal. 118 TAVARES - Os judeus em Portugal no século xv, p . 443-444. 119 Ibidem, p . 430-431.

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Islão e cristianismo: entre a tolerância e a guerra santa

Joaquim Chorão Lavajo

O CRISTIANISMO E o ISLAMISMO s ã o d u a s e x p r e s s õ e s d i f e r e n t e s d e f é n o m e s m o Deus , ún ico e verdadeiro , que se revela aos h o m e n s para lhes indicar o c a m i n h o individual e comuni tá r io , que os conduz à plena realização na tu -ral e sobrenatural . Esta base fundamenta l c o m u m confere- lhes u m acentuado ar de família, que se reflecte, sobre tudo, nas respectivas vertentes teológica, jur ídica e moral .

A o aperceberem-se do f u n d o matricial c o m u m , estas duas religiões t ê m dificuldade e m suportar as diferenças que as caracterizam, e acabam p o r m u -tuamen te se rejeitar e p o r conver te r o m ú t u o e secular re lac ionamento prát i -co e m convergência divergente e o respectivo discurso apologét ico e m diálo-go po lémico . A explicação desta aparente ant inomia encontra-se n o facto de os f u n d a m e n t o s doutrinais e m que se apoiam, a Bíblia e o Alcorão, serem parcialmente coincidentes e parcialmente divergentes.

O s m u ç u l m a n o s acei tam a Bíblia c o m o palavra de Deus , mas n u m estádio histórica e dout r inar iamente p ropedêu t i co da revelação alcorânica. A grande divergência consiste, pois, n o facto de os muçu lmanos , apesar do respeito que n u t r e m pela Bíblia, pelos profetas e p o r Cristo, os considerarem ultrapas-sados e actualizados pelo Alcorão e p o r M a o m é . C o m efeito, segundo o isla-mismo, os profetas, n o m e a d a m e n t e Moisés e Jesus, ensinaram o núc leo f u n -damenta l das verdades sobre Deus , o h o m e m e o m u n d o , que havia de ser def in i t ivamente r e t o m a d o e actualizado por M a o m é .

N a perspectiva islâmica, o cristianismo é válido e m tudo aquilo que concer-ne o monote í smo e os artigos da fé concordantes c o m a revelação autêntica al-corânica e é erróneo e m tudo aquilo que por esta foi ultrapassado ou que decor-re da falsificação da Escritura, operada, segundo os muçulmanos, pelos judeus e pelos cristãos.

P o r seu lado, o cristianismo, ao identificar o ence r ramen to da Reve lação c o m o ú l t imo livro do N o v o Tes tamento , rejeita impl ic i tamente a autent ic i -dade da revelação islâmica, que ocor reu quase seis séculos mais tarde. A lém disso, rejeita expl ic i tamente t udo quan to se o p õ e à revelação judeo-cr is tã , compend iada na Bíblia. Nessa rejeição parcial da doutr ina m u ç u l m a n a reside a razão pela qual o islamismo foi durante m u i t o t e m p o considerado pelos cristãos c o m o u m a heresia e não c o m o u m a religião.

U m a grande parte dos desen tendimentos que envenenaram as relações se-culares entre os cristãos e os m u ç u l m a n o s teve o seu f u n d a m e n t o n o desen-t e n d i m e n t o doutr inal que os consti tui e m termos de alteridade; c o n v é m esta-be lecer , logo de in íc io , os pó los básicos da c o n v e r g ê n c i a / d i v e r g ê n c i a doutr inal e moral entre as duas religiões. Par t indo da perspectivação islâmica, p o d e m o s reduzi- los a dois grupos:

— os seis artigos fundamenta is da teologia islâmica (Kalâm): Deus , os an-jos, a Palavra de Deus , os enviados, o U l t i m o Dia e a predestinação;

— os c inco pilares ou mandamen tos do islamismo: a profissão de fé (cha-hâda), a oração ritual (salât), o impos to social ou esmola legal (Zakât), o j e j u m (sawm), a peregr inação ( H a j j ) .

T o d o s estes princípios, que fazem parte do pa t r imónio espiritual c o m u m , são gener icamente aceites pelas duas religiões, mas a sua explicitação específi-ca p rovocou , ao longo dos séculos, u m acentuado mal-estar de uns e m rela-ção aos outros. Esse mal-estar foi agravado por outras divergências de carácter moral , c o m o p o r exemplo , a moral mat r imonia l e doutr inal , pr inc ipa lmente pela rejeição muçu lmana dos dogmas fundamenta is do cristianismo:

— o mistério da Santíssima Tr indade , que os muçu lmanos , e m n o m e do

<] Alcorão manuscrito da época almóada (Marráquexe, Biblioteca Ibn Yusuf) .

FOTO: ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

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A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

Mirhab, ou nicho de orações, da antiga mesquita de Mértola.

FOTO: C AMPO ARQUEOLÓGICO DE MÉRTOLA/ANTÓNIO C U N H A .

m o n o t e í s m o radical, c o n d e n a m vio len tamente , acusando os cristãos de asso-ciadores ou politeístas (muchrik-s)*;

— os mistérios da divindade e incarnação de Cris to, que os m u ç u l m a n o s consideram u m simples h o m e m , ainda que e x o m a d o da dignidade de profeta.

Estas notas introdutórias a judam-nos a c o m p r e e n d e r tanto a situação dos cristãos sob a dominação islâmica, chamados moçárabes, de que nos ocupare -mos na primeira parte, c o m o a dos m u ç u l m a n o s sob dominação cristã, i m -propr i amen te conhecidos ao longo de toda a Idade Média por tuguesa por mouros e ho je , p o r influência castelhana, t a m b é m chamados mudéjares, que se-rão analisados na segunda parte.

A conquista muçulmana da Península Ibérica e o

estatuto social dos cristãos

OS MOÇARABES PORTUGUESES A INVASÃO E CONQUISTA MUÇULMANAS d a P e n í n s u l a I b é r i c a f o r a m f u l m i n a n -

tes. A rapidez das operações deixou os Hispano-Romanos e os Visigodos deso-rientados e quase paralisados durante alguns decénios. E m cerca de apenas cinco anos (711-716), os Berbero-Ârabes conseguiram controlar todo o território hispâ-nico, à excepção de u m pequeno reduto asturiano, na cadeia montanhosa dos Picos da Europa, e de pequenas bolsas demográficas entrincheiradas nos Pirenéus.

Ainda hoje , à distância de mais de onze séculos e me io , ficamos impres-sionados c o m a rapidez da conquista muçu lmana da Hispânia. Ela ficou a de -ver-se, e m pr imeiro lugar, ao d inamismo da jihâd, t e r m o que significa o es-forço, a luta espiritual do h o m e m contra as paixões e as forças do mal, incarnadas pelo demón io 2 , mas que passou, pos te r iormente , a significar a

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I S L Ã O E C R I S T I A N I S M O : E N T R E A T O L E R Â N C I A E A G U E R R A SANTA

guerra santa, isto é, a guerra desencadeada pelos muçu lmanos contra os i n -fiéis, para os subjugar ou obrigar a abraçar o Islão3.

A conquista da Hispânia não ficou a dever-se apenas ao dinamismo religioso islâmico, filho da jihâd. Só u m apoio mui to compromet ido de forças oriundas do seio da comunidade hispano-romana e visigoda permite compreender u m colapso tão rápido e estrondoso. D e entre essas forças salientamos as seguintes:

— o exagerado compromisso existente entre a Igreja e o p o d e r polí t ico t o r n o u cada u m solidário das vicissitudes do ou t ro . Perante u m ataque v indo do exterior , c o m a conivência de forças internas, n e m a Igreja teve força m o -ral suficiente para denunc ia r e travar os dislates dos m e m b r o s traidores, or iundos das fileiras da nobreza visigodo-vit izana, n e m os partidários hispa-n o - r o m a n o s de R o d r i g o conseguiram atrair para o seu lado as forças clericais, para, unidos, imped i r em a entrada do in imigo c o m u m . H o u v e nobres e ecle-siásticos que se colocaram act ivamente ao lado do exérci to invasor;

— a débil implantação do cristianismo e m certas zonas da Hispânia facili-tou a adesão dos nativos à nova religião;

— os antigos invasores visigodos, e m convivência polít ico-social diária c o m os H i s p a n o - R o m a n o s , assimilaram, j u n t a m e n t e c o m a cultura, os efeitos negativos do ab randamento dos costumes e do amolec imen to das virtudes militares que, e m séculos anteriores, lhes haviam garantido a força. O exérci-to hispânico enfermava cada vez mais dos vícios que out rora t i nham p r o v o -cado a ruína do Impér io R o m a n o ;

— o descon ten tamen to generalizado do povo , penalizado pelo peso cada vez mais insuportável dos impostos a que estava sujeito, levava-o a anelar a libertação, de qualquer parte que ela viesse;

— o sistema de eleição dos monarcas constituía u m per igo para aquele povo , cu jo civismo democrá t ico não era m u i t o forte. A luta de m o r t e que separou vitizanos e rodriguistas foi apenas u m breve episódio de u m con tex to polí t ico b e m mais alargado4;

— uma terceira força, marginalizada e acorrentada durante séculos p o r medidas legais adversas, sonhava c o m u m a mudança , que dif ici lmente poderia ser para pior. R e f e r i m o - n o s aos judeus , que viram na possível reviravolta p o -lítica u m a hipótese de melhorar a sua situação, c o m u m p e q u e n o risco de a agravarem ainda mais;

— a aspiração dos servos e escravos à libertação era cada vez mais acentuada; — a participação activa dos filhos de Vitiza e de Jul ião que, p o r razões de

o r d e m política, se puseram ao serviço dos invasores, foi decisiva; — os posteriores casamentos de Abdelaziz c o m a viúva de R o d r i g o , e de

M u n u z a , valido das Astúrias, c o m u m a irmã de Pelágio, imobil izaram ou atraíram m e s m o para o lado dos invasores grupos sociais de grande influência sobre as populações.

Muitos hispano-romanos e visigodos, entre os quais sobressaíram eclesiásticos, não querendo converter-se ao islamismo, n e m sujeitar-se aos invasores, abando-naram as suas terras e refúgiaram-se no reino merovíngio, na Itália e no Nor t e da Península, isto é, nas Astúrias e na Vascónia, onde reforçaram a resistência contra os muçulmanos, contribuindo, assim, para o início da Reconquista hispânica. As crónicas de 741 e 754 fazem-se eco das violências que provocaram essa debanda-da. Os estratos mais baixos da população, demasiado explorados durante a domi -nação romana e visigótica, adaptaram-se mais facilmente à nova situação.

O substrato demográf ico indígena, embora pol i t icamente dominado , foi sempre mais n u m e r o s o do que as minorias berbero-árabes . Segundo Cláudio Sánchez Albornoz , o total dos orientais que entraram na Península Ibérica e se disseminaram entre os milhões de hispanos que nela habi tavam não ultra-passou os 30 000. M e s m o que tivessem sido 150 0 0 0 ou 200 0 0 0 os guerre i -ros árabes e berberes que a invadiram, durante o século V I I I , c o m o pre tende , talvez exageradamente , P. Guichard , o total dos invasores não teria passado de u m a acentuada minor ia e m relação aos autóctones 5 .

N o r m a l m e n t e , os árabes conquistadores não i m p u n h a m o islamismo aos povos que consideravam detentores da revelação divina, a que chamavam «gentes do Livro» (ahl al-Kitâb). Med ian te condições p rev iamente negociadas,

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os cristãos, os j udeus e os zoroastristas pod iam cont inuar a praticar l ivremente as respectivas religiões.

A o ser dominada pelos muçu lmanos , a população hispânica c indiu-se e m três grandes grupos:

— os que aceitaram a conversão ao islamismo que , de acordo c o m a lei alcorânica6 , era n o r m a l m e n t e proposta antes do ataque, ingressaram na c o m u -nidade islâmica (umma) e passaram a usufruir , ao m e n o s teor icamente , dos d i -reitos e prerrogativas atribuídos aos respectivos crentes. Eram os chamados musalima ou muladi-s (muwalladun; sing. muwallad) ou adoptados, que os cris-tãos consideravam e apelidavam f r equen temen te de renegados. Quant i t a t iva -m e n t e numerosos , alguns chegaram a ocupar lugares de relevo na sociedade e tornaram-se mediadores culturais entre os invasores e os moçárabes7 ;

— os cristãos que não aceitavam o convi te à conversão ao islamismo e que não assinavam o respectivo pacto de rendição eram submetidos pela força (1anwatan), que podia ir até à destruição das suas muralhas, enquanto os seus templos eram derrubados ou convertidos e m mesquitas. Privados dos seus bens, pod iam cont inuar a tratar as terras, mas c o m o simples arrendatários e sempre na cont ingência de serem expulsos;

— os que , v o l u n t a r i a m e n t e ou p o r exigência das circunstâncias, se su -j e i t avam à d o m i n a ç ã o islâmica, negoc i avam a l iberdade c o m u m pac to i n -dividual (sulh) ou co lec t ivo (cahd). Esse pac to permi t ia - lhes c o n t i n u a r na posse dos seus bens e gozar de u m a certa a u t o n o m i a ju r íd ica e religiosa, p ropo rc iona l ao grau de submissão n e g o c i a d o e à m a i o r o u m e n o r t o l e r ân -cia dos chefes locais. As crónicas hispânicas medievais cons ide ram esta si-tuação general izada, s o b r e t u d o n o C e n t r o e n o N o r t e da Península Ibérica. U m a s a p r o v a m - n a ; outras r e p r o v a m - n a e acusam de traição aqueles q u e a acei tam.

O s cronistas árabes denomina ram os cristãos submet idos p o r pacto aos muçu lmanos mu'ahidân (os que assinaram u m pacto)8 , ou dimmí-s ( t r ibutá-rios). C o m o t empo , na Hispânia muçu lmana , o pr imei ro t e r m o ficou reser-vado para os cristãos e o segundo para os judeus . O s d o c u m e n t o s latinos, cas-telhanos e portugueses medievais des ignam-nos por moçárabes, palavra q u e v e m do árabe musta'rab (tornado árabe), para significar os cristãos que, não t e n -do abdicado da sua fé, aceitaram viver sob o d o m í n i o islâmico9 .

En t r e as cidades que se submete ram aos muçu lmanos median te u m pac to prévio con tam-se Lisboa, e m Portugal; e Mér ida , To l edo , Lérida, Pamplona , C a r m o n a , Córdova , Sevilha e Múrcia , na Espanha. O s textos desses pactos perderam-se quase todos. Conservaram-se e tornaram-se célebres o assinado e m 713 pelo filho de Muça , c Abd al-cAz1z Ibn Muçâ , c o m o chefe g o d o de Múrcia , T e o d o m i r o 1 0 , e u m excer to do de Toledo 1 1 .

Apesar de t e rem sido dominadas pela força, Santarém, C o i m b r a e Seia acabaram por assinar c o m M u ç a u m pacto de coexistência pacífica, cujas cláusulas deveriam ser ainda mais vantajosas que as dos conhec idos pactos de T o l e d o e Múrcia , pois os cristãos con t inuaram na posse dos seus bens e isen-tos do imposto predial ou caraje12. Apesar d o clima de insegurança que se es-tabeleceu a partir das incursões de Afonso I das Astúrias, fo ram mui tos os cristãos que pe rmanece ram na região de Ent re D o u r o e M o n d e g o .

C o m a conquista de C o i m b r a por Afonso III, e m 878, os moçárabes c o -meçaram a gozar de u m estatuto mais favorável, ainda que provisório, pois as lutas entre cristãos e muçu lmanos con t inuaram a assolar a região, c o m repet i -dos avanços e recuos. E m 987, a cidade foi re tomada p o r Almançor , para só e m 1064 ser def in i t ivamente reconquistada por Fe rnando M a g n o , na sequên-cia de Seia (em 1055), Lamego (1058) e Viseu (1057).

O s moçárabes e ram vítimas de muitas outras vexações discriminatórias. Assim, p o r exigência dos pactos realizados c o m os muçu lmanos dominadores , eram obrigados a dar hospedagem gratuita nas suas igrejas e casas, durante três dias e três noites, aos viandantes muçu lmanos . O s cristãos não p o d i a m vestir n e m calçar c o m o os muçu lmanos ; t inham de rapar só a parte anter ior da ca-beça; era-lhes vedado andar de cavalo; pod iam deslocar-se apenas de mula ou de bur ro , desprovidos de selins e de estribos, e viajar c o m os dois pés p e n -

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dentes para o m e s m o lado do animal; não p o d i a m andar mun idos de espada, n e m fabricar ou utilizar armas.

Sob o p o n t o de vista administrativo, os moçárabes gozavam de u m a rela-tiva au tonomia , na medida e m que lhes era pe rmi t ido serem governados p o r leis e chefes p o r eles escolhidos.

V ivendo n o r m a l m e n t e e m espaços próprios, separados das comunidades islâmicas, os moçárabes e ram governados e protegidos p o r u m comes (qâmís), p o r eles eleito1 3 mas n o m e a d o pelo p o d e r central m u ç u l m a n o , de q u e m de -pendia. O comes era secundado p o r u m exceptor ou cobrador de impostos, que recebia a jizia a que os dimmí-s estavam sujeitos, e p o r u m censor ou qâdí l-na-sârâ (juiz dos cristãos), que os julgava nos litígios internos, de acordo c o m o direito visigótico, compend iado no Liber Judicum, mais tarde chamado Foro juzgo. O s conflitos entre muçu lmanos e cristãos e ram julgados pe lo qâdí e n -carregado da polícia (churta), chamado zavalmedina ou prefei to da cidade. O m e s m o acontecia c o m os litígios entre cristãos, q u a n d o u m a ou ambas as partes o exigiam. O s cristãos exerciam ainda outros cargos, que foram c o n -servados, c o m a respectiva denominação muçu lmana , pela administração cris-tã, após a Reconqu i s t a . En t re eles, o almoxarife, ou in tenden te da fazenda; o almotacé ou fiel de pesos e medidas; o alarife ou per i to de construções.

Alguns cristãos exerciam cargos impor tantes na burocracia emiral e califal e n o própr io exérci to árabe, c o m o nos descrevem d o c u m e n t o s da época, n o -meadamen te os referentes a Córdova 1 4 .

N o decurso da dominação árabe e berbere da Península Ibérica, não foi fácil a convivência de cristãos e muçu lmanos . Aos historiadores que, ainda hoje , na sequência das posições assumidas p o r M e n é n d e z Pidal, Sánchez Al-b o r n o z e A m é r i c o Castro, p roc lamam a exemplar idade da coabitação pacífica dos povos das religiões do Livro e m terras de Al-Andaluz, t emos de recordar que o aparente passivismo c o m que a Península Ibérica se submeteu à d o m i -nação islâmica não foi, cer tamente , s inón imo de paz, n e m de aceitação i n -condicional dos dominadores .

O s cronistas do século VIII caracterizaram a paz instaurada pelos muçu lma-nos na Península Ibérica c o m o uma paz fraudulenta (pax fraudifica). O redactor moçárabe da Crónica de 754 dá-nos conta das devastações e atrocidades que os árabes semearam à sua passagem, desde a Român ia , isto é, o Império Bizantino, c o m a destruição total de cidades, c o m o Pérgamo, até à Hispânia, onde, c o m a «espada, a f ome e o cativeiro [gladio, fame et captivitate], deixaram a desolação»15.

E m abono da veracidade dos cronistas do século viu, que foram testemunhas oculares da implantação do islamismo na Península Ibérica, devemos evocar as próprias fontes árabes, certamente insuspeitas. Elas descrevem, c o m u m realismo não inferior ao dos cristãos, os atropelos e atrocidades então cometidas16.

Apesar das pressões que levaram mui tos cristãos a conver ter -se à fé islâmi-ca, a comun idade moçárabe resistiu e sobreviveu religiosa, linguística e cu l tu -ralmente , apesar da tentativa de absorção p o r parte dos muçulmanos 1 7 .

P o r detrás da aparente serenidade c o m que acatavam a ingente exploração tributária e a marginalização a que se v iam reduzidos, na periferia das cidades e nos campos, os moçárabes a l imentavam pac ien temente , ao longo de gera-ções, o v e e m e n t e anseio de libertação e levantavam-se e m armas cada vez que as conjunturas políticas o pe rmi t i am e aconselhavam.

SE OS CUSTOS DE ORDEM RELIGIOSA e social e ram pesados para os cristãos e j u d e u s (ahl al-dimma), mais o e ram os de o r d e m económica . Re legados p e -los invasores para os meios rurais, os moçárabes viram-se obrigados a t raba-lhar nas suas antigas terras, mas e m provei to dos novos donos, que os one ra -vam c o m pesados impostos. P o r exigência da lei alcorânica18 , e ram obrigados a pagar duas espécies de impostos: a jízia ou capitação e o caraje (harâj).

A jízia era u m a contr ibuição imposta a cada cristão e devia ser paga no f im de cada mês lunar1 9 . O seu quant i ta t ivo variava de acordo c o m as respec-tivas posses: quarenta e o i to dirhems para os ricos, v inte e quat ro para a classe média e doze para os que viviam do trabalho manual 2 0 . C o m o seu p a g a m e n -to, era-lhes garantida a l iberdade religiosa concedida pelo Alcorão às «gentes

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Estatuto económico

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do Livro» (ahl al-kitâb). Dela estavam isentos os idosos, as mulheres , as cr ian-ças, os inválidos, os pedintes, os doentes, os loucos e os monges .

Apesar dos privilégios a que dava direito, a jízia era u m mal a que obri-gatoriamente deviam sujeitar-se os cristãos. O próprio ritual do pagamento visava humilhar os contribuintes e induzi-los a renegar a religião cristã. D e pé e publi-camente, o cristão depositava o imposto nas mãos do recebedor que, por sua vez, o entregava ao senhor, solenemente instalado numa poltrona. Depois, o senhor, seguido normalmente pelos muçulmanos presentes, agarrava o cristão pelo pesco-ço e exclamava, e m tom sarcástico: «o dimmí, inimigo de Alá, paga a jízia»21.

O caraje era u m imposto a que t a m b é m estavam sujeitos os muçu lmanos . Incidia sobre os rend imentos dos bens prediais ou territoriais, de que devia ser en t regue ao Estado uma certa percentagem, que podia ir até 2o %. O seu pagamento , a que os habitantes da Península já estavam habi tuados desde a época romana, garantia aos contr ibuintes a posse das suas propriedades e, consequen temente , uma relativa au tonomia económica .

O quanti tat ivo dos impostos variava de acordo c o m a natureza dos pactos e ainda c o m as alterações, po r vezes unilaterais, a que estavam sujeitos, desde o início da dominação muçu lmana . T u d o dependia do instável condicional is-m o soc ioeconómico e da von tade dos chefes locais. A Crónica moçárabe, de 754, dava-nos já conta desse f e n ó m e n o e das reacções de quantos por ele eram penalizados2 2 .

A situação dos cristãos que viviam sob o d o m í n i o islâmico variava, pois, segundo as épocas e lugares, e p o d e ser caracterizada c o m o u m a tolerância discriminatória.

A LIBERDADE DE QUE GOZAVAM OS cristãos que viviam sob a dominação is-lâmica era m u i t o condic ionada por imposições e restrições de o r d e m social, religiosa e económica , a l tamente discriminatórias. O s pactos assinados entre M a o m é e os cristãos da Arábia e da Síria23 assinalavam já essa situação, q u e viria a agravar-se c o m o t empo , pr inc ipalmente na Península Ibérica.

D e acordo c o m a letra e o espírito dos pactos, não era pemi i t ido aos cris-tãos ostentar a cruz nas igrejas n e m pregar, ensinar e realizar procissões ou o u -tras manifestações religiosas fora delas; não podiam tocar os sinos; nos funerais e outras cerimónias religiosas eram obrigados a rezar e m voz baixa, sempre que estivesse presente algum muçulmano; os defuntos cristãos t inham de levar o rosto coberto e ser sepultados e m cemitérios próprios; a l inguagem dos cristãos era controlada, pois não podiam utilizar nomes, palavras ou expressões m u ç u l -manas24, n e m proclamar verdades da sua fé, c o m o a divindade de Cristo e a Santíssima Trindade, sempre que se o p u n h a m ao Alcorão; não lhes era pe rmi -tido presidir a reuniões em que participassem muçulmanos , n e m sentar-se, quando estes estavam de pé; não lhes era permit ido ter criadas ou escravas m u -çulmanas; os cristãos podiam converter-se ao islamismo, mas se u m m u ç u l m a -no optasse pelo cristianismo era automat icamente mor to ; as mulheres cristãs que casassem com muçulmanos eram obrigadas a abraçar a fé islâmica.

Os moçárabes da Península Ibérica viviam, no rma lmen te , agrupados e m comunidades , das quais as mais impor tantes fo ram as de To ledo , Córdova , Sevilha e Mérida. Algumas dioceses do futuro território português continuaram activas. Entre elas, as de Lisboa e Coimbra, até à reconquista, e a de Santa Maria al Garb (Oxónoba) até à invasão almóada, em 114725. A situação da diocese de Braga não é mu i to clara até à reconquista definitiva, por Fernando M a g n o . Sabe-se que teve vários bispos, residentes nas Astúrias, e que Afonso, o Casto, colocou a cidade de Braga sob a dependência do bispo de Lugo. Lamego t e -ve bispos próprios até finais do século x, pois conhecem-se d o c u m e n t o s p o r eles assinados. Viseu t a m b é m teve bispos ao longo do século x e pr imeira metade do seguinte. C o n h e c e m - s e os n o m e s de vários bispos d o Por to d u -rante a dominação islâmica, ainda que se desconheçam a respectiva c r o n o l o -gia, a actividade desenvolvida e a situação e m relação à residência2 6 .

Igual incerteza histórica reina sobre a situação dos mosteiros do Ocidente pe -ninsular ao longo dos séculos de dominação do Crescente. Passada a agitação dos primeiros tempos, muitos deles refizeram a sua normalidade. A partir de meados

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Liberdade religiosa

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do século IX, sobretudo nas regiões do Porto e Coimbra, é nos mosteiros que muitos cristãos encontram o local apropriado para se consagrarem a Deus e que os moçárabes das vizinhanças vão alimentar a sua fé. Entre outros, há conhe-cimento do funcionamento dos mosteiros de Cete, Lavra, Crestuma, Lorvão, Vacariça, Guimarães, São Miguel de R j b a Paiva, Vairão, Moreira e Pedroso27 .

Apesar do op t imismo c o m que é n o r m a l m e n t e referida a situação dos cristãos hispânicos do pe r íodo pré-a lmóada, devemos salientar que eram m u i -tas as dificuldades que lhes cerceavam a l iberdade religiosa. N e m outra coisa era de esperar, se pensarmos que os bispos instituídos após a invasão, ainda que designados pelas comunidades cristãs, f icavam sujeitos à aprovação dos monarcas muçulmanos , que não quiseram abdicar deste e de outros privilé-gios, herdados dos seus predecessores visigodos. Daí a subserviência de alguns deles. O con t ro lo da Igreja moçárabe tornava-se ainda mais cerrado pelo fac-to de os concílios serem convocados pelos sultões.

Aos cristãos era assegurada a l iberdade de culto, mas só den t ro das igrejas j á existentes na altura da invasão. Tal c o m o as casas de habitação e os mos te i -ros cristãos, as igrejas si tuavam-se no rma lmen te fora da madina. O s cristãos não p o d i a m construir novos templos den t ro das cidades, n e m reconstruir os que se arruinavam. Mui tos deles fo ram conver t idos e m mesquitas2 8 .

U m a das mais impor tantes manifestações da vitalidade religiosa foi o culto dos santos, que c o n t i n u o u aceso e pe rdurou durante toda a dominação islã-mica n o terr i tório peninsular que mais tarde havia de ser o de Portugal .

Segundo Idrisi (século xii), a Igreja de São Vicente pe rmaneceu inaltera-da desde o t e m p o do d o m í n i o cristão visigótico e to rnou-se m u i t o impor t an -te durante a dominação islâmica, pelo facto de ter recolh ido os restos mortais do márt ir São Vicente quando , perseguidos f e rozmen te pelo emir Abder ra -m ã o I (755-788), os cristãos de Valência aí se refugiaram c o m as relíquias, ra-zão pela qual o local veio a receber o n o m e de cabo de São Vicente . A Igreja do C o r v o (Kanisat al-Gurab)29, n o m e pelo qual era conhec ido o referido

Cálice e patena moçárabes, final do século x (Braga, Tesouro da Sé).

F O T O : JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/ / A R Q U I V O C Í R C U L O DE LEITORES.

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t emplo durante o t e m p o da dominação islâmica, to rnou-se u m impor tan te cent ro de peregrinações dos cristãos de Al-Andaluz .

U m moçárabe, mestre Estêvão, chantre da Sé de Lisboa, relata a transia-dação das relíquias do santo para Lisboa, realizada p o r D . Afonso H e n r i -ques30 . A Crónica do mouro Rasis refere t a m b é m esse acontec imento 3 1 , e n -quanto D . Dinis, Zurara e D . Duar te se re fe rem ao culto do santo.

As peregrinações a Santa Maria de Faro começa ram a ter grande p ro jec -ção durante o governo dos Banú H a r u n , no século xi3 2 . Foi p o r essa altura que a cidade de ixou de ser conhecida pela designação romana de Ossónoba para tomar a de Santa Maria, o que expr ime b e m a força religiosa e social dos moçárabes na região. Afonso X de Castela recolhe, e m u m a das Cantigas de Santa Maria, os ecos da devoção que os moçárabes nu t r i am p o r Santa Maria de Faro, cuja imagem remontava já ao t e m p o dos Visigodos3 3 .

A importância religiosa de que se revestiram São Vicente e Santa Maria de Faro, j u n t a m e n t e c o m Huelva , durante a dominação islâmica, levaram Chr i s tophe Picard a considerar esta zona do Gharb Al-Andaluz c o m o «um dos grandes santuários do cristianismo» daqueles tempos 3 4 .

E m Lisboa, além de São Vicente , os moçárabes veneravam os mártires, Justa, M á x i m o e Veríssimo, cujas actas de mart ír io r e m o n t a m ao século x3 5 . O s b e r n o evoca essa devoção, recebida da época pré-islâmica, e a destruição, pelos mouros , da igreja a eles dedicada3 6 . E natural que os cristãos, emigrados no t e m p o da conquista ou pos ter iormente , t enham levado consigo esse cul to e o t e n h a m comun icado às populações que os acolheram.

Tal c o m o e m Faro, São Vicente , Lisboa e Évora, os moçárabes de outras terras e regiões veneravam os seus santos, t ransmit indo o respectivo culto às populações da Reconqu i s t a . Assim, Sanbras (São Brás de Alportel) venerava o

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santo que lhe dera o n o m e ; Évora, São Manços 3 7 ; Beja, São Sisenando; e Santarém, Santa Iria. O u t r o s santos venerados pelos moçárabes, e m diferentes regiões, e ram Santa C o m b a , São Paio e São Mamede 3 8 .

A tolerância que inicialmente caracterizara os muçulmanos de Al-Andaluz foi desaparecendo cada vez mais. A partir do final do século x e, sobre tudo, das invasões almorávida e almóada, passou a ser uma pálida sombra daquilo que fora antes. Mosteiros e igrejas, inicialmente pujantes, acabaram p o r soço-brar ante as violências anticristãs dos muçu lmanos . Assim, o Mos te i ro de São Vicente, e m Sagres, impor tan te cen t ro de peregrinação para os cristãos de Al-Andaluz, deve ter sido destruído por u m grupo de almorávidas que chaci-n o u parte da população e levou cativa outra parte, sem, n o entanto, t e rem destruído o t ú m u l o do santo39 . Y a q u b Almançor declarava orgulhosamente não ter deixado de pé n e n h u m a igreja n e m sinagoga.

As perseguições, o isolamento nos campos ou nos bairros periféricos das cidades e a marginalização social, económica e religiosa a que estavam sujei-tos levava mui tos moçárabes a emigrar para o N o r t e cristão.

Mui tos monges do Sul, ao v e r e m destruídos ou ameaçados os seus m o s -teiros, fo ram fundar outros n o N o r t e , inf luenciando c o m a sua cultura e c o m os arabismos do seu r o m a n ç o moçarábico, c o m o lhe chama Leite de Vascon-celos, as populações das vizinhanças. O c o n h e c i m e n t o da língua e cultura árabes irá permit i r a t radução de obras para latim. H á notícias de monges emigrantes, c o m o o abade R a n u l f o que, no final do século x, fugiu às invés-tidas de Almançor e foi fixar-se e m Paço de Sousa, e o abade Tudei ldus , que se recolheu n o moste i ro de Leça, j u n t o do Por to 4 0 .

O processo de r e p o v o a m e n t o da Península Ibérica most ra-nos t a m b é m que mui tos monges emigraram de Al-Andaluz para os reinos cristãos do N o r t e . Por vezes, emigraram comunidades inteiras.

N ã o foi fácil o encontro da cristandade do Norte , profundamente influen-ciada pela França, c o m os moçárabes. Paralelamente à estabilização política, h o u v e a p reocupação de restaurar as dioceses do terr i tório r ecém-conqu i s -tado e insuflar nos mosteiros de tradição visigótica o espírito re fo rmador de C luny e Cister, b e m c o m o a observância agostiniana de São R u f o de Avi-nhão, que foi implantada e m Santa C r u z de Co imbra . Isso implicava a substi-tuição do rito v is igót ico-moçárabe pelo r o m a n o .

Capitel de pilastra moçárabe pertencente à Igreja de São Frutuoso de Montélios, século x i (Braga, Igreja de São Jerónimo do Real) .

F O T O : DIVISÃO DE DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA/ / INSTITUTO PORTUGUÊS DE M U S E U S / A R N A L D O SOARES.

<3 Selo do concelho de Lisboa, representando a veneração das relíquias de São Vicente, século x i v (Lisboa, Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo) . F O T O : JOSÉ A N T Ó N I O SILVA.

<3 Interior da igreja de I danha-a-Velha.

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

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O longo e confl i tuoso processo da in t rodução do rito r o m a n o na P e n í n -sula Ibérica d o c u m e n t a e loquen temen te as lutas en tão travadas. O s moçárabes e ram detentores do rito visigótico, de que se consideravam os fiéis deposi tá-rios, razão p o r q u e t o m o u o n o m e de rito moçárabe. Por isso, recusavam-se a aceitar a liturgia romana , veiculada pelos cristãos reconquis tadores do N o r t e e que Afonso VI havia imposto ao reino de Leão, e m 1080.

Tal c o m o an te r iormente os moçárabes de To ledo , t a m b é m os de C o i m -bra, aquando da reconquista, e m 1064, l iderados pelo moçárabe Sisnando, l u -taram contra as imposições do N o r t e . O apego às suas tradições, conotadas c o m o islamismo, custou-lhes a acusação de traidores. Graças a Sisnando, f o -ram restauradas, reactivadas e construídas muitas igrejas e entregues, algumas delas, a clérigos emigrados de Al-Andaluz. N o bispo D . Paterno, transferido da Sé de Tortosa, encon t rou Sisnando u m precioso colaborador na empresa c o m u m de restabelecer na região os poderes civil e religioso do re ino de Leão, mas c o m u m forte color ido moçarábico .

Só após a m o r t e de Sisnando (1092) foi possível n o m e a r u m bispo de rito r o m a n o , Crescónio de Tu i . Graças aos seus esforços e aos do sucessor, D . Gonça lo Pais de Paiva, f o r am vencidas as últimas resistências moçárabes e levada a cabo a re forma litúrgica41 .

Foi impressionante o m o v i m e n t o de reconversão monástica que a c o m p a -n h o u a formação d o C o n d a d o Portucalense. O s mosteiros de tradição visigó-tica, masculinos, femininos o u dúplices, t rocaram a R e g r a de São Fru tuoso ou Regula Communis pela de C l u n y e, pos te r iormente , a partir de 1143-1144, c o m a afiliação do Moste i ro de São João de Ta rouca a Claraval e a fundação do Moste i ro de Alcobaça, pela de Cister. Algumas comunidades , c o m o a de Fiães, adoptaram, sucessivamente, os hábitos pre to e branco.

A CONQUISTA DA PENÍNSULA IBÉRICA p e l o s m u ç u l m a n o s p r o v o c o u o e s -t ancamento progressivo da florescente cultura cristã aí implantada, cultura que se havia fo rmado através da confluência da cultura clássica c o m as cu l tu -ras visigótica e suévica, caldeadas pela seiva revitalizadora da mensagem cristã. A cultura hispano-árabe, e m que se inscreve a luso-árabe, f o rmou- se lenta-mente , a partir do encon t ro desse substrato inicial ibérico c o m e lementos culturais árabes e berberes. P o r isso, não é uma cultura árabe, n o sentido o r i -ginal da palavra, n e m hispânica, mas participa das duas componen tes , razão por que deve chamar-se hispano-árabe.

A islamização e m profund idade só viria a realizar-se a partir de meados do século ix, c o m Abder ramão II (822-853). Este califa aprovei tou-se da crise abácida de Bagdade para atrair à Hispânia sábios e artistas orientais. E n v i o u emissários através do Egipto, do Iraque e de out ros países muçu lmanos , à procura de livros; o rdenou a cópia de manuscri tos e f o r m o u u m a biblioteca que atingiu proporções gigantescas. Diz-se que chegou a integrar 400 0 0 0 volumes, n u m a época e m que as congéneres dos principais centros culturais do Oc iden t e lat ino não ultrapassavam as poucas centenas.

O período mais intenso da arabização da Península Ibérica coincidiu com o movimento da Reconquista, que atingiu o apogeu ao longo dos séculos xii e xin.

A divisão do ant igo p o v o hispânico e m dois grupos social, política e reli-giosamente distintos p r o v o c o u u m a diversificação cada vez mais acentuada das respectivas culturas:

— os muladí-s, ao assumirem a religião islâmica, acabaram por assumir t ambém, ainda que lentamente , o estatuto cultural dos outros muçulmanos 4 2 ;

— os moçárabes, na medida e m que viviam socialmente marginalizados e m relação aos muçu lmanos dominadores e rejei tavam a religião islâmica, que era o principal suporte da respectiva cultura, fo ram m u i t o menos i n -fluenciados por esta.

A l íngua e a cultura dos moçárabes, apesar de se deixarem gradua lmente contaminar pelo árabe, mant iveram sempre ligações directas c o m o latim, so-b re tudo através da liturgia cristã e dos contactos c o m a Bíblia, c o m os escritos dos autores cristãos anteriores à conquista islâmica e c o m os dos seus c o n t e m -porâneos de a lém-Pirenéus .

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A avaliar pelas obras dos moçárabes de C ó r d o v a do século ix (Sperain-deo, Eulógio, Paulo Álvaro, Sansão e Leovigildo), as grandes obras da cultura clássica e cristã e ram conhecidas na Península Ibérica. C o m o não podia de i -xar de ser, a Bíblia ocupava o lugar cimeiro.

O segundo lugar cabe à literatura dos Padres e Dou to re s da Igreja, de que os mais citados e ram Santo Agost inho, Santo Ambrós io , Santo Atanásio,^ São J e r ó n i m o , Santo Hilário e, ainda, Or ígenes , Ter tu l iano e São João Crisósto-m o . Dos autores hispânicos, os preferidos eram Santo Isidoro de Sevilha, São Bráulio, Santo Ildefonso, São Julião e Taio .

T a m b é m aparecem f r e q u e n t e m e n t e citados os autores clássicos, principal-m e n t e Cícero , Virgílio, Catão, Horác io , Juvenal , Lucano, Quin t i l i ano e P o r -fírio. A utilização desses autores não significa que os moçárabes deles se servissem acri t icamente. Pelo contrár io, são f requentes as investidas, pr inci -pa lmente de Paulo Álvaro, contra a petulância formal e os erros doutrinais de que os autores pagãos eram portadores4 3 .

H o j e é já pacif icamente aceite a tese de que, durante os primeiros t empos da dominação islâmica da Península Ibérica, os moçárabes e os muladi-s eram detentores de uma cultura m u i t o mais elevada do que a dos anteriores inva-sores. Estes eram, na sua maioria, berberes, isto é, pastores do Alto Atlas, e beduínos do deserto, familiarizados c o m os trabalhos duros do campo e das armas e, po r isso, alheios às actividades do espírito.

C o n h e c e d o r e s do latim e da cultura visigótica e m a n t e n d o f requentes contactos c o m os seus irmãos de religião de a lém-Pirenéus , os moçárabes, ao ap renderem a língua árabe, passaram a ocupar uma situação de vantagem cul-tural sobre os invasores44 . Po r sua vez, os muladi-s, p o r q u e religiosa e social-m e n t e mais p róx imos dos dominadores , cont r ibuí ram ainda mais decisiva-m e n t e para o esplendor da cultura muçu lmana , confe r indo- lhe u m matiz local, que veio a consti tuir a diferença cultural específica da variante h ispano--árabe. O e lemento mais estruturante e especificante da originalidade da cul-tura hispano-árabe, q u a n d o comparada c o m a cultura árabe oriental, foi, cer -tamente , o con t r ibu to cultural do O c i d e n t e cristão45.

C o m o t e m p o , a dialéctica da separação social e religiosa dos d o m i n a d o -res e dominados p rovocou uma crescente inversão da relação cultural das duas comunidades religiosas hispânicas, c o m vantagem para a islâmica. E isto por duas razões, entre outras:

— os h i spano-muçu lmanos , e m contac to directo c o m os seus irmãos do Or ien te , j á detentores dos legados culturais g r eco - romano , sírio, persa, egíp-cio e outros, não pararam de progredir cul turalmente , até a t ingirem o apogeu no século x;

— os moçárabes, separados do resto da Cristandade, pe rde ram gradual-m e n t e o contac to c o m as raízes culturais cristãs, o que p rovocou , po r u m la-do, u m gradual de f inhamen to da sua cultura original e, po r ou t ro , u m a cres-cen te arabização. E m meados do século ix, Paulo Alvaro de C ó r d o v a registava e lamentava já, e duramente , esse f enómeno 4 6 .

Tal c o m o n o resto da Europa , até ao século XII, t a m b é m na Península Ibérica, durante os séculos da dominação islâmica, fo ram os mosteiros os mais l ídimos representantes e p romotores da cultura. As escolas dos mosteiros f o -ram as melhores cidadelas da cultura cristã na Hispânia. Só C ó r d o v a e os seus arredores t inham quinze. E m Portugal , t iveram mui ta importância , na região coimbrã, os de Lorvão e da Vacariça.

Pelos escritos de Santo Eulógio e de Paulo Alvaro, sabemos que as c iên-cias, as artes liberais e a teologia eram ensinadas nas escolas das igrejas cristãs e dos mosteiros de Córdova , f requentadas não apenas por jovens da região, mas t a m b é m por gentes vindas de toda a Península, inc luindo o terri tório que ha-via de ser por tuguês , c o m o foi o caso de São Sisenando de Beja, que estudou na Igreja de São Zoi lo .

A o serem incorporados nos novos reinos cristãos, os moçárabes levaram consigo e t ransmit iram aos seus irmãos na fé o legado da cultura haurida j u n -to dos muçu lmanos , inf luenciando assim a vida económica , militar, adminis-trativa, judicial , literária e artística da época. Formados e m Al-Andaluz, os

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A PROCURA DO D E U S ÚNICO

moçárabes restituíam ao O c i d e n t e a sua cultura, mas t ransformada e revitali-zada pelas influências hispano-árabes.

N o processo da Reconquis ta , os moçárabes estabeleceram ou estreitaram os laços étnicos, culturais e religiosos dos novos reinos cristãos c o m o passado romano-vis igót ico c o m u m , insuflando-lhes alguns dos matizes civilizacionais hispano-árabes, que haviam moldado o seu perfil duran te o t e m p o de c o n v i -vência c o m os muçu lmanos .

Mas não p o d e m o s exagerar o peso da influência moçárabe nos reinos da Reconqu i s t a . E m mui tos casos, até a própria m e m ó r i a desapareceu quase p o r comple to , de ixando ténues rastos n o vocabulár io t o p o n í m i c o e onomást ico . Isto compreende - se se pensarmos que os moçárabes do Sul fo ram acolhidos c o m muitas reservas pelos conquistadores, quando não eram massacrados o u reduzidos à escravidão ou ao cativeiro, c o m o se p o d e documen ta r , e m rela-ção ao terr i tór io por tuguês , c o m os cristãos que O r d o n h o II levou consigo para as Astúrias, q u a n d o atacou, saqueou e quase destruiu Évora, no ano de 91347; c o m o assassinato do bispo moçárabe de Lisboa, perpe t rado pelos p r ó -prios reconquis tadores cristãos; e c o m os moçárabes da região de Lisboa, que D. Afonso Henr iques reduziu à escravidão. Foi contra esta medida que se i n -surgiu São T e o t ó n i o , pr ior do Moste i ro de Santa C r u z de C o i m b r a , q u a n d o in terpelou du ramen te D . Afonso Henr iques e seus h o m e n s por t e r em arrasta-do consigo para Co imbra , c o m o cativos e escravos, mais de u m milhar de moçárabes. O enérgico pr ior obr igou o rei a conceder- lhes a l iberdade e o f e -receu-lhes pousada nas dependências do mosteiro4 8 .

A medida que as terras do N o r t e iam sendo conquistadas, c o u b e aos m o s -teiros e às catedrais restauradas a tarefa de recuperar a cultura visigótica, que havia sobrevivido nas zonas m e n o s controladas pelos muçu lmanos .

Há, pois, que relativizar, simultaneamente, tanto a posição unilateral daqueles que subestimam o contributo hispano-árabe para a formação idiossincrática dos povos português e espanhol, c o m o a daqueles que exageram a dimensão desse contributo, acusando o Nor te reconquistador de ter imposto violentamente ao Sul não apenas a religião cristã mas também os cânones culturais importados de além-Pirenéus. Estão no primeiro caso, entre outros, Alexandre Herculano4 9 e Sánchez Albornoz50 , e no segundo Borges Coelho5 1 e Cláudio Torres52 .

A religião, a língua e a cultura hispânicas são, fundamenta l e respectiva-mente , cristã, latina e romana, matizadas p o r in tervenções de out ros povos , c o m o os Germânicos , os Semitas (árabes e judeus) e os Francos, que con t r i -bu í ram t a m b é m m u i t o posi t ivamente para a ident idade hispânica, f rente a outras identidades, que t iveram diferentes origens e in tervenientes e tnocu l tu -rais, linguísticos e religiosos.

A marca civilizacional árabe de que os moçárabes eram portadores não foi sempre tolerada pelos reis e cristãos do Norte , que algumas vezes os rejeitaram ostensivamente. T a m b é m tem que ver com essa marca e com a herança visigóti-ca a peculiar vivência da liturgia, que levou os moçárabes a resistirem tenazmente à introdução do rito romano, que acabou por ser imposto na Península Ibérica.

MOUROS A Reconquista cristã da

Península Ibérica e o estatuto social dos mouros

A RECONQUISTA FOI O MOVIMENTO HISTÓRICO r e s p o n s á v e l p e l a r e c u p e r a -ção cristã do espaço hispânico, iniciado p o r u m p e q u e n o g rupo de ástures, acantonados nos Picos da Europa . Liderados por Pelágio e apoiados p o r al-guns nobres visigodos, esses h o m e n s do N o r t e resistiram d e n o d a d a m e n t e contra as forças islâmicas, que e m vão tentaram ul t imar a conquista integral da Península Ibérica.

D e início, tratava-se de u m a luta de sobrevivência contra os exércitos berberes e siro-árabes, sem qualquer conotação nacionalista ou cristã, c o m o se depreende da leitura das crónicas hispânicas de 741 e 754, respect ivamente conhecidas pelo n o m e de Bizant ino-Árabe e Moçárabe . Só m u i t o l en tamente o crescente g rupo de resistência assumiu c o m o essencial à sua luta pela l iber-dade as dimensões étnico-pol í t ica e religiosa, que con t r ibu í ram decis ivamente

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para dar consistência e cont inu idade ao m o v i m e n t o reconquis tador . C o u b e às crónicas do ciclo de Afonso III de Leão (866-910) o mér i to de explicitar e su-blimar os object ivos de restauração nacionalista e religiosa que confer i ram à luta a mística da Reconqu i s t a cristã. C h a m a m o s a esse processo ideológico a «gotização» e cristianização da Reconquis ta 5 3 .

N a arrancada militar que levou as forças asturo-leonesas até ao Douro , Afonso I (739-757) e rmou e arrasou o território que separava este rio do rio M i -nho , no intuito de criar u m espaço que servisse de barreira de protecção e m re-lação aos muçulmanos, isto é, uma terra-de-ninguém, controlada pelos cristãos.

A Galiza, herdeira da antiga monarqu ia sueva, ficava assim dividida pelo rio M i n h o e m duas zonas b e m demarcadas: a do N o r t e , mais povoada, que herdaria o n o m e original; e a do Sul, e m expansão na direcção do M o n d e g o , que recebeu o n o m e inicialmente exclusivo do impor tan te bu rgo que c o n -trolava a desembocadura do rio D o u r o e se aplicava já ao terr i tório adjacente: Portucale ou Portugale54. Esse n o m e passaria, doravante , a designar a região que viria a ser a Terra Portucalense, Província Portucalense, Condado Portucalense, ou s implesmente Portucale.

A região de Portucale, diferenciada do resto da Galiza pelo e r m a m e n t o à que se viu sujeita durante mais de u m século, adquir iu maior coesão c o m o r e p o v o a m e n t o de que foi alvo durante os reinados de O r d o n h o I (850-866) e Afonso III (866-910). Este rei, aprovei tando os conflitos dos muladí-s c o m os árabes, conseguiu alargar o seu d o m í n i o até à cidade do M o n d e g o e r e p o -voar, entre outras, as cidades de Braga, Por to , Viseu e Lamego 5 3 .

Portugal det inha já u m a certa individualidade geográfica, mas faltava-lhe a individualidade política. Esta, adquiri-la-ia apenas a partir do final do século xi, durante o re inado de Afonso VI.

E m 1096, talvez p o r q u e D . R a i m u n d o não revelara força bastante para governar o extenso terr i tório que lhe havia sido confiado, ou p o r q u e não conseguia suster o ímpe to almorávida, ou p o r q u e D . Teresa, apesar de ilegíti-ma, era a sua favorita, ou por todas estas razões juntas , Afonso VI ret i rou o governo de Portugal e de C o i m b r a a D . R a i m u n d o para o entregar a D . Henr ique . A partir do casamento c o m D . Teresa, e m 13 de Fevereiro de 1099, D . H e n r i q u e passou a chamar-se conde , confer indo assim uma nova consistência jur ídica ao terr i tório que governava.

A o assumir a direcção do C o n d a d o Portucalense, D . H e n r i q u e aperce-beu-se do alcance das pretensões dos arcebispos de Braga e T o l e d o à jur isd i -ção metropol i tana sobre o terr i tório situado entre o Cantábr ico e o D o u r o . A luta pela configuração religiosa da nova realidade política arrastou-se, c o m altos e baixos para as duas partes. Só no reinado de D . Afonso Henr iques conseguiria Braga i m p o r o seu p r imado a todas as dioceses de Portugal , c o n -t r ibu indo assim, c o m a unidade eclesiástica, para a unidade política.

Por tugal ficava dotado, a partir de então, das valências que o haviam de creditar c o m o país independen te e c o m o u m dos mais vigorosos motores da Reconqu i s t a peninsular: uma consciência nacional; u m a idiossincrasia cristã; u m a língua que mais e mais se individualizava e adaptava à expressão da alma lusitana; uma configuração geográfica ajustada à realidade político-religiosa; chefes políticos à medida do n o v o estado; uma de terminação convergen te de todas as forças estruturais e conjuntura is no sentido de fazerem c o m que P o r -tugal fosse e se afirmasse c o m o nação independen te .

Te rminada a reconquista do seu terri tório, c o m a tomada de Silves, Alvor e Albufeira, e m 1249, Portugal sentia-se l iberto do g lande pesadelo que era o perigo islâmico a rondar as suas fronteiras, mas cont inuava a ser conf ron tado , no seu interior, c o m a mesma realidade, agora convert ida e m minor ia é tn ico--religiosa, pol i t icamente submissa. É da situação da comun idade minori tária islâmica e das suas relações c o m a comun idade maioritária cristã e m terra portuguesa que passamos a ocupar-nos .

A situação dos muçu lmanos e m terras de cristãos, quer no Or i en t e que r no Oc iden te , era análoga, mutatis mutandis, à dos cristãos sob dominação islã-mica. Esta analogia verificava-se tanto n o campo religioso c o m o nos campos económico , social e polí t ico.

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D> Santiago combatendo os mouros, baixo-relevo da Igreja Matriz de Santiago do Cacém (século xiv).

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

N o início da Reconqu i s t a cristã, os m o u r o s vencidos que não conse-guiam fugir eram sistematicamente passados ao fio da espada, ou reduzidos à escravidão. Mui tos dos que escapavam acabavam por não resistir à desumani -dade c o m que eram tratados56 .

O r d o n h o I (850-866) poupava as vidas dos civis, r eduz indo-os à escravi-dão57 , e Afonso III es tendeu essa prática aos inimigos, exigindo resgate pela sua libertação.

Fernando M a g n o , que se regia por princípios mais realistas, mais h u m a n i -tários e mais consentâneos c o m as exigências da religião e ética cristãs, a d o p -tou a política de poupa r as vidas dos inimigos vencidos, ocupando-os e m ac-tividades e c o n o m i c a m e n t e rentáveis, ou servindo-se deles c o m o moeda de venda ou de troca p o r cativos cristãos. O s mouros submet idos e ram doados aos h o m e n s de guerra, c o m o aconteceu após a reconquista de Seia (1055) e Viseu (1058), ou utilizados na const rução de igrejas, c o m o se verif icou c o m os cativos de Lamego (1057), ou expulsos para terras de mouros , c o m o a c o n -teceu c o m os de C o i m b r a (1064)58.

Foi essa a política seguida e desenvolvida por Afonso VI de Leão e Cas te-la (1072-1109) e pelos reis portugueses, que apenas reduziam à escravidão aqueles que de maneira alguma acatavam a dominação cristã. Foi o que a c o n -teceu durante a reconquista de Lisboa, e m 1147, e de Alcácer do Sal, e m 1217. Este pr incípio viria a ser consagrado pelas Partidas de Afonso X , o Sábio59. Mais do que por razões de o r d e m religiosa, essa at i tude era ditada pelas leis gerais da guerra, de que, f r equen temen te , eram vítimas os própr ios moçá ra -bes, apesar de serem cristãos c o m o os conquistadores.

Sabemos pelos forais do Sul de Portugal e po r outros d o c u m e n t o s que os m o u r o s escravos eram comprados , vendidos, trocados, doados, legados e m tes tamento, ou entregues c o m o moeda , c o m o se fossem meros animais ou coisas inanimadas6 0 .

O s senhores e ram de tal maneira donos dos seus escravos que os p o d i a m açoitar, mutilar, apedrejar, encadear e até queimar , sempre que lesassem os seus interesses. Só não podiam castrá-los ou matá-los. A lei obrigava os donos a pagar impostos, foros, dízimas e portagens e a responder pelos actos dos seus escravos61. Se u m m o u r o fugisse, era-lhe cor tado u m pé6 2 ; se falsificasse moeda , era-lhe cortada uma mão 6 3 ; se assaltasse uma igreja era q u e i m a d o à porta da mesma6 4 .

Apesar da desumanidade de semelhantes leis e práticas, e talvez por causa delas, mui tos mouros , c o m a conivência de cristãos, m o u r o s forros ou judeus , fugiam aos seus senhores para outras terras ou para fora do reino. As retalia-ções contra os cúmplices não se faziam esperar po r parte dos cristãos e m geral e dos lesados, e m especial.

D. Duar te , chocado c o m a «malícia e maldade» daqueles que colabora-vam dolosamente na fuga dos escravos mouros , redigiu uma lei, pos ter ior -m e n t e publicada e revalidada p o r D . Afonso V, e m que penalizava d u r a m e n -te os infractores6 5 .

O s mouros escravos p o d i a m alcançar a l iberdade através de vários proces-sos: pela fuga para o estrangeiro, pr inc ipalmente para o N o r t e de África; pe lo refúgio e m determinados concelhos, c o m o os de Freixo, Covi lhã e Urros , que, para fazerem face à falta de m ã o - d e - o b r a e de povoadores , lhes c o n c e -diam a alforria66; pela conversão ao cristianismo, q u a n d o eram escravos de j u -deus; p o r carta de ingenuidade, passada pelos respectivos senhores; pelo res-gate c o m dinheiro impor tado do estrangeiro; pelo escambo c o m cristãos cativos e m terra de mouros .

O resgate e a troca de prisioneiros entre cristãos e m u ç u l m a n o s foi u m a prática implantada n o Gharb, logo desde o início da Reconquis ta , c o m o b e -neplácito tanto das autoridades religiosas cristãs c o m o islâmicas. As crónicas latinas e árabes fazem eco desse comércio 6 7 . O s cerca de 4000 muçu lmanos e moçárabes levados cativos por O r d o n h o II aquando do saque e destruição de Évora, e m 913, destinavam-se, na sua maioria, ao escambo c o m cristãos pr i -sioneiros e m Al-Andaluz e no N o r t e de África6 8 . N o século xi i , a venda e troca de prisioneiros capturados na região entre Évora e Beja atingiu p r o p o r -

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ções m u i t o elevadas e consti tuiu uma fon te de receita semelhante à da p i lha-gem, c o m o referem ainda os cronistas árabes Ibn Hayyân, Ibn Sâhib e Ibn 'Idâri. O m e s m o f e n ó m e n o acontecia e m relação aos portugueses caídos nas mãos dos muçu lmanos . O facto de D . Afonso Henr iques ter destinado o seu mais impor tan te legado (1o 0 0 0 morabit inos) ao resgate dos cristãos cativos é deveras esclarecedor6 9 . O m o v i m e n t o de resgate e escambo de cativos era tão intenso na Idade Média que se insti tucionalizou a figura do alfaqueque, que era tanto o cristão q u e ia a terra de mouros , c o m o o m o u r o que vinha a terra de cristãos libertar os respectivos cativos.

Mui tos documen tos da época atestam que os muçu lmanos , m e s m o os que se rendiam, e ram expulsos das cidades conquistadas pelos cristãos. É isso que refere o sacerdote francês que presenciou a expulsão dos m u ç u l m a n o s que viviam dent ro e fora dos muros de Lisboa, na altura da reconquista 7 0 .

E m tempos de paz, os que se sujeitavam aos conquistadores in tegravam--se, p o u c o a pouco , na população e const i tuíam u m impor tan te e l emento de colonização. O s m o u r o s forros gozavam então de u m a especial pro tecção p o r parte dos monarcas. O foral dado por Afonso VI à cidade de Santarém, e m 1095, most ra-nos claramente que os muçu lmanos , q u e const i tuíam o grosso da população, con t inuavam a viver na cidade, tal c o m o os judeus e os m o ç á -rabes, e e ram protegidos pelo própr io rei71 . Usu f ru í am de l iberdade social e religiosa, con t inuavam na posse dos seus bens e p o d i a m ausentar-se e regres-sar ao país. E m troca destes privilégios, os mouros e ram obrigados a pagar os impostos a que antes estavam sujeitos pelos reis muçu lmanos .

Logo a partir do início da Reconqu i s t a portuguesa, as comunas dos m o u -ros fo ram legalizadas e dotadas de direitos própr ios e colocadas sob a p r o t e c -ção directa dos reis. Tal c o m o antes acontecia e m relação aos reis m u ç u l m a -nos e aos emires, os mouros portugueses e ram considerados per tença do rei por tuguês (mauri meí), que protegia a organização interna da comun idade is-lâmica, ou to rgando- lhe direitos próprios, que a colocavam fora da alçada dos m e m b r o s da comun idade cristã. Através de d o c u m e n t o s c o m o a declaração solicitada por D. J o ã o I aos «Mouros leterados da cidade de Lisboa», que foi redigida de acordo c o m o direito islâmico, sabemos que, e m determinadas circunstâncias, o rei era o legí t imo herdei ro dos mudéjares . Só não herdava nada dos mouros q u a n d o o de fun to deixava c o m o herdeiros u m filho varão, irmãos germanos ou consanguíneos, tios, pr imos, sobrinhos, ascendentes ou descendentes masculinos e nascidos por via t a m b é m masculina7 2 . A d e p e n -dência directa do rei, b e m expressa pelos forais, garantia às comunas a a u t o -nomia e m relação a interferências dos cristãos e j u d e u s e, e m caso de abuso por parte destes, conferia-lhes o direito de apelarem para aquele.

O pr imei ro estatuto ju r íd ico dos m o u r o s portugueses, ho je conhec ido , foi o foral dado e m 1170 por D . Afonso Henr iques aos mouros forros de Lis-boa, Almada, Palmela e Alcácer do Sal73. Aí lhes e ram oficialmente r e c o n h e -eidos os direitos à convivência pacífica c o m os cristãos e judeus , a v iverem de acordo c o m as suas próprias leis e cos tumes e a con t inua rem na posse dos seus bens. Era-lhes t a m b é m reconhec ido o direito de elegerem alcaides p r ó -prios, c o m jurisdição nos campos administrat ivo e judicial e c o m o apoio de outros funcionár ios t a m b é m próprios, n o m e a d a m e n t e tabeliães e escrivães. Por t udo isto, a partir da idade e m que p o d i a m trabalhar para ganhar a vida, eram obrigados a pagar anua lmente ao rei u m maravedi , a tratar as suas v i -nhãs e a vender os seus figos e o seu azeite. Além disso, t inham de pagar a décima dos gados (alfitra) e dos frutos da terra (azaqui ou azoque).

O s direitos e deveres outorgados aos mouros pelo foral de D . Afonso Henr iques fo ram conf i rmados p o r D . Afonso II, e m 121774, e estendidos p o r D . Afonso III aos forais concedidos aos m o u r o s forros de Silves, Tavira, L o u -lé e Faro, e m 126975; aos de Évora, e m 127376; e aos de M o u r a de 129677.

Apesar da pro tecção expl ic i tamente oferecida pelos reis portugueses aos mudéjares e da defesa intransigente que estes faziam dos direitos po r eles l e -galmente adquiridos, nunca deixaram de se fazer ouvir , n o m e a d a m e n t e nas Cortes, os protestos veementes da comun idade maioritária, sobre tudo q u a n d o os seus m e m b r o s não t inham acesso aos mesmos direitos. A fundamen tação

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norma lmen te utilizada nestes protestos, alguns dos quais serão explicitados mais adiante, consiste na suposta injustiça e consequente escândalo p rovocado pelo facto de os reis privilegiarem os «infiéis» e m de t r imen to dos cristãos. Foi o que aconteceu , po r exemplo , quando os representantes de t odo o re ino se queixaram a D . Afonso V, nas Cor tes de Lisboa de 1439, contra o facto de os cristãos t e rem de pagar a dízima ao rei e à Igreja, pelos bens comprados aos mouros , enquan to estes só eram obrigados a pagar ao rei. Assim, conclu íam os queixosos, «os infiéis, que são servos, t êm razão para enriquecer , e os cris-tãos ser pobres, o que parece coisa estranha»78.

Mas n e m tudo eram privilégios em relação aos mudéjares e deveres e m rela-ção aos cristãos. A realidade era b e m outra. O s mouros estavam sujeitos a muitas medidas sociais discriminatórias em relação aos outros grupos étnicos e religio-sos. Essa discriminação legal visava impedir a contaminação dos cristãos através da promiscuidade com os indivíduos de outras raças e religiões. Segundo a m e n -talidade da época, os credos islâmico e judaico eram considerados c o m o epide-mias de que urgia preservar os fiéis cristãos. A legislação portuguesa era, neste campo, u m decalque das legislações eclesiástica e hispânica, que determinavam o local de habitação, o modus vivendi e o vestuário dos judeus e dos mouros.

Apesar das interdições da Igreja e da legislação civil, n o m e a d a m e n t e das Ordenações Afonsinas, realizavam-se por vezes casamentos e uniões entre m e m b r o s das duas comunidades . O exemplo vinha já de longe e de b e m al-to. C o m efeito, Afonso VI de Leão casara c o m Zaida, filha de Almotámide , o rei-poeta de Sevilha. O envo lv imento de D. Afonso Henr iques c o m uma moura deu - lhe u m filho natural, Mar t im Afonso, conhec ido por C h i c h o r -ro7 9 . Análoga ligação p roporc ionou a D . Afonso III uma filha, D . Urraca, que veio a casar c o m Pêro Anes.

Mui tos cristãos, inc luindo os reis, serviam-se de judeus e mouros para p u n i r e m outros cristãos. O papa, através do artigo xv da primeira concordata de D. Dinis c o m o clero, obr igou o rei a não utilizar os mouros e outros

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Infante D. Fernando (escola portuguesa, século xv , Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga).

F O T O : DIVISÃO DE DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA/ / INSTITUTO PORTUGUÊS DE M U S E U S / J O S É PESSOA.

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A PROCURA DO D E U S ÚNICO

agentes contra a vida e segurança dos bispos e seus «sergentes»80. O artigo vil da terceira concordata fez análoga determinação, ao proibir o m e s m o rei de se servir de judeus e mouros para violar o direito de asilo, obr igando os cris-tãos a sair das igrejas, para os p render e m e t e r e m ferros81 . A interdição lança-da por Gregór io IX contra o infante de Serpa, e m 1239, que se servira de u m grupo de muçu lmanos para maltratar e expulsar de u m a igreja de Lisboa os cristãos aí refugiados, foi exemplar8 2 .

SEMPRE QUE OS MOUROS PORTUGUESES a t i n g i a m u m n ú m e r o r a z o á v e l , o r -ganizavam-se e m colónias, chamadas comunas , ou, c o m o f r e q u e n t e m e n t e lhes c h a m a m as Ordenações Afonsinas e outros documentos , communs dos mouros. O s já referidos forais de 1170, 1217, 1269, 1273 e 1296 concederam ou reconheceram personalidade jur ídica a algumas comunas . Essa personalidade foi conf i rmada e alargada, através de outros documen tos régios o u das ordens militares de Santiago e de Évora /Avis , a outras comunidades do terr i tór io por tuguês . N ã o é fácil de terminar o n ú m e r o e a persistência das comunas ao longo dos tempos, pois, e m mui tos casos, os seus m e m b r o s foram-se c o n v e r -t endo ao cristianismo ou aculturaram-se de tal maneira no seio da maioria cristã que os documen tos comprovat ivos da sua personalidade jur ídica se p e r -deram, devido à falta de interesse ou às inclemências erosivas da história.

Mais do que a expressão da generosidade e tolerância das comunidades cristãs e m relação aos muçulmanos , as comunas eram uma forma de simplifi-car a burocracia administrativa e const i tuíam «verdadeiros enclaves jur isdic io-nais no seio de territórios que gozam de uma legislação cristã»83.

Mas não se pense que o facto de os mouros per tencerem a u m enclave j u -risdicional tornava ilimitada a sua liberdade de actuação, mesmo e m problemas tão importantes c o m o o do uso da própria língua. Assim, era expressamente proibida aos tabeliães muçulmanos e judeus a utilização das respectivas línguas no exercício da sua profissão. A gravidade da falta intui-se da gravidade da pena, que era a morte, a não ser que o fizessem por ignorância ou erro. Nesse caso, o prevaricador seria açoitado e irreversivelmente privado do seu oficio84. Era uma maneira de permitir ao rei o acesso e controlo directos dos textos notariais.

C o m base em Gama Barros, Leite de Vasconcelos, Maria Filomena Lopes de Barros e Saul António Gomes, que nos fornecem dados recolhidos nas chancela-rias reais e n u m diploma da Sé de Coimbra, podemos elaborar o seguinte quadro, que nos situa no período que vai desde o reinado de D . Pedro até à expulsão85:

Sabemos que algumas destas comunas e outras não mencionadas no presen-te quadro são mui to anteriores ao referido reinado, mas desconhecemos a sua história e evolução concretas. É o que acontece com as de Almada, Palmela e Alcácer do Sal, que foram instituídas, jun tamente com a de Lisboa, pelo foral de D. Afonso Henriques, e m 1170, ainda que delas nada mais se conheça, ou po r -que desapareceram c o m a instabilidade do processo da conquista-reconquista, ou porque os documentos a elas referentes se perderam. As de Tavira, Faro, Loulé e Silves foram fundadas pelo foral de D. Afonso III, e m 1269; a de Évora recebeu existência legal através do foral de 1273, da autoria do mesmo soberano; e a de Moura ficou a dever-se ao foral dionisino de 129686. Maria Filomena Lo-pes Barros refere que o desaparecimento das comunas de Leiria, Avis, Alenquer e Estremoz se operou na passagem do século xrv para o xv, ainda que tenham continuado a viver mouros nas três últimas localidades referidas87.

O s contenciosos internos da comun idade islâmica eram julgados de acor -do c o m a lei islâmica, seguindo assim a prática que vinha já do t e m p o de D . Afonso Henr iques , que os havia conf iado à jurisdição dos alcaides dos mouros . A o transitarem para a alçada de juízes cristãos, c o m e ç o u a haver abusos por parte destes, que te imavam e m julgá-los de acordo c o m a lei p o r -tuguesa. O s m o u r o s protestaram vivamente e, fazendo-se representar p o r mestre Alie, físico de D . Afonso IV, reclamaram a reposição dos direitos que vigoravam no t e m p o de D . Dinis e seus antecessores. Por carta de 17 de Fe -vereiro de 1340, o rei a tendeu o seu ped ido e o r d e n o u aos juízes, ouvidores e todas as justiças dos seus reinos o c u m p r i m e n t o dessa lei, tão arraigada na t ra-dição88 . P o r q u e mui tos con t inuaram a fazer dela letra morta , D . Afonso V

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Organização jurídica e administrativa dos mouros:

as comunas

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viu-se obrigado a re tomá-la e decidiu que as contendas existentes entre os mouros fossem julgadas «pelos direitos da sua Lei; e b e m assy pelos usos, e costumes, que antre sy ateequi usarom, e costumaram» 8 9 .

C o m o recurso para estes e outros casos duvidosos, a mesma legislação sal-vaguardava o direito de apelação para o rei e para os oficiais para isso depu ta -dos, r e c o m e n d a n d o a estes o dever de ju lga rem de acordo c o m o direito islã-m i c o . O leg i s lador t e v e t a m b é m o c u i d a d o de e x i m i r desta lei os contenciosos respeitantes a dízimas, portagens, sisas e outros direitos reais, que dever iam ser julgados pelos respectivos juízes, de acordo c o m o direito por tuguês ou , n o caso de este os não contemplar , c o m o direito c o m u m 9 0 .

A s TRÊS COMUNIDADES ÉTNICO-RELIGIOSAS ( juda ica , cr is tã , m u ç u l m a n a ) que, ao longo de séculos, conviveram n o terri tório por tuguês sentiam neces-sidade de viver separadas umas das outras, não apenas para me lho r exercerem os seus ritos religiosos e resistirem ao perigo da «contaminação», mas t a m b é m p o r q u e todos desconfiavam de todos e p o r q u e a experiência secular lhes ha -via most rado quan to a segurança, apesar de garantida pelas leis, era faci lmente per turbada p o r interesses individuais ou excessos sectaristas de grupos radicais.

O nosso pr imei ro rei foi bastante mais realista que o avô, Afonso VI. N o foral conced ido aos m o u r o s de Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer do Sal, e m 1170, manifes tou essa diferença e m relação ao de Santarém, de 1095. A f o n -so VI era mais liberal e integrador que D . Afonso Henr iques . O s forais p o r -tugueses insistem mais sobre os deveres do que sobre os direitos dos mouros . O s privilégios que estes recebiam estavam condicionados pelos serviços a pres-tar directamente ao rei e visavam garantir a sua protecção contra possíveis abu-sos dos cristãos. Mais do que o aspecto exploratório, era o da protecção real que estava subjacente à expressão mauri mei, tão repetida pelos nossos reis.

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Segregação étnico-religiosa

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A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

A separação dos m e m b r o s das três comunidades assumia várias formas, a principal das quais era a da delimitação e isolamento dos respectivos bairros, den t ro da estrutura física urbana.

MOURARIAS D e acordo c o m a legislação eclesiástica e civil, consignada, respectiva-

mente , n o IV Conc í l io de Latrão, em 1215, e nas Cor tes de Elvas, e m 1361, os adeptos do Alcorão eram acantonados e m zonas habitacionais urbanas, cha -madas mourarias ou aljamas, situadas no rma lmen te n o arrabalde91 e separadas por u m m u r o das zonas destinadas aos cristãos. Para impedir qualquer con tac -to n o c t u r n o entre os habitantes das duas zonas, os mouros estavam sujeitos a horários, de acordo c o m os quais eram obrigados a cerrar as portas das m o u -rarias ao cair da noi te , no rma lmen te ao toque das Tr indades ou da «oora-çom»9 2 , e a abri-las só de manhã , a partir do toque da primeira missa.

Por pressão dos representantes do povo , as Cor tes de Elvas de 1361, sob D. Pedro , de terminaram a instituição desses bairros e m todas as localidades que tivessem o m í n i m o de dez mouros 9 3 . Invocando essa legislação, f r e q u e n -temente desrespeitada, D . João I e D . Afonso V apelaram de n o v o para a n e -cessidade de todos os mouros se agruparem nas mourarias e de te rminaram o alargamento das respectivas áreas sempre que o a u m e n t o demográf ico o exi -gisse. Era uma maneira prática de mante r os agarenos «fora da companhia , e conversaçom dos Chrisptaãos»94 .

As mourarias eram geralmente dotadas das estruturas e serviços necessá-rios a u m normal aglomerado populacional . Além das casas de habitação,

Travessa do Monta lvo e da Hera (Santarém). Arruamentos de tradição e continuidade islâmicas.

FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

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t i nham uma ou mais mesquitas (masjid), escola (madrasah), açougue (suq = mercado) , padaria, tendas, banhos (hammam-s), cemitér io ou almocávar (al--muqâbar), cadeia (aljube) e albergaria.

A separação subjacente à ideia de mourar ia t inha c o m o object ivo f u n d a -mental , c o m o já foi referido, evitar o convívio e, sobre tudo, as relações ilíci-tas entre os fiéis dos dois credos. Para erradicar os escândalos, que a u m e n t a -vam na cidade de Lisboa, D . Ped ro I, po r lei de 19 de Se tembro de 1366, p roduz iu legislação apropriada, que resumimos:

— a mu lhe r cristã que entrasse só na mourar ia , m e s m o que fosse de dia, seria enforcada;

— o m o u r o ou m o u r a que recebesse i legalmente e m sua casa uma cristã seriam mortos ;

— o m o u r o que fosse encon t rado fora da mourar ia , depois da hora de re -colher, pagaria, pela primeira vez, 5000 libras; se as não possuísse na altura, seria preso até as pagar. Pela segunda vez, pagaria 10 0 0 0 libras; pela terceira, seria publ icamente açoitado, sem outra pena.

Apesar da dureza da lei, os abusos con t inuaram a repetir-se. P rova -o a re -pet ição da legislação a eles respeitante. D . João I impôs a mul ta de 10 libras da m o e d a antiga aos m o u r o s encontrados fora das mourarias entre o toque do recolher e a missa de São Vicente9 5 . Por seu tu rno , D . Afonso V rei terou a lei do recolher obrigatór io logo após o toque das Trindades9 6 .

Para evitar equívocos fraudulentos, os m o u r o s que se disfarçassem de cris-tãos para mais faci lmente perver te rem as cristãs, a lém de ficarem sujeitos às penas correspondentes aos seus actos, eram reduzidos à servidão97 . O s alcovi-teiros que pre tendessem co r romper as cristãs e m favor dos m o u r o s eram c o n -siderados réus de mor te .

Por volta de 1402-1414, o arcebispo de Lisboa, D. João Esteves de Azambu-ja, para erradicar a indesejável promiscuidade entre os membros das duas co -munidades, proibiu, sob pena de excomunhão , os cristãos de viverem nas mourarias, de servirem e m casas de mouros , de participarem nas suas festas, de cuidarem dos seus filhos, de assistirem às suas bodas ou de os receberem e m suas casas. A o mesmo tempo, proibia os mouros de viverem e m casas situadas na área residencial dos cristãos. Se isso fosse inevitável, exigia que não traba-lhassem nos domingos e dias festivos e que não comessem n e m cozinhassem carne durante a Quaresma, nas sextas-feiras e nos restantes dias de abstinência e j e jum 9 8 . Para evitarem a dependência dos cristãos e m relação aos muçulmanos , esses monarcas reiteraram a proibição de os mouros exercerem cargos públicos e serem oficiais dos infantes, condes, prelados e outros senhores.

O s m o u r o s que, n o t e m p o de D . João I, fossem apanhados a beber nas tabernas de Lisboa c o m os cristãos eram penalizados c o m uma multa de 25 li-bras antigas.

Apesar do rigor das legislações eclesiástica e civil, os abusos nunca deixa-ram de existir, não apenas na esfera social, mas t a m b é m na religiosa.

O s mouros , tal c o m o os judeus , cos tumavam abrilhantar as festas religio-sas e reais, r ecebendo os soberanos c o m jogos e danças. Por vezes, a co labo-ração realizava-se até nos próprios actos de culto. H á referências documenta i s da sua participação nas procissões do C o r p o de Deus . Nessas alturas, estavam expressamente proibidos de usar armas99. N ã o foi po r acaso que o Conc í l io de Valhadolid, e m 1322, se insurgiu, ao condenar a actuação de cantores e ac-tores muçu lmanos nas igrejas cristãs. Essa proibição foi ce r tamente ditada p e -10 object ivo de estancar u m cos tume generalizado. A legislação lisboeta de meados do século x v t a m b é m os proibia de tocar, dançar ou realizar outras manifestações artísticas nas festas dos cristãos.

V E S T U Á R I O E S I N A I S D I S T I N T I V O S

O cânon 68 do IV Concí l io de Latrão (1215), para evitar a promiscuidade entre os m e m b r o s de diferentes religiões e para impedir qualquer contac to susceptível de transmitir os gérmens da impureza religiosa, impôs aos m u ç u l -manos e aos j udeus residentes e m países cristãos o uso de distintivos e obr i -gou-os a não aparecerem e m públ ico durante alguns dias da Semana Santa""1.

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A PROCURA DO D E U S ÚNICO

Estatuto cconómico-profissioml dos

mouros portugueses

Esses distintivos eram, pois, p o r u m lado, u m sinal ex te rno da infer ior idade social e religiosa dos muçu lmanos e m relação aos cristãos; po r ou t ro , const i -tu íam u m a expressão visível do separatismo.

E m confo rmidade com a legislação geral eclesiástica, t a m b é m os m o u r o s portugueses eram obrigados a usar u m vestuário específico. A primeira legis-lação civil concernen te à indumentár ia dos mouros , ho j e conhecida , foi e m a -nada por D. Afonso IV, que lhes impôs o uso de u m sinal b ranco n o barrete e o cor te do cabelo à navalha1 0 1 .

Apesar dessa legislação, reiterada por D . Pedro, não foi paci f icamente aceite pelos cristãos, ao longo dos tempos, a indumentár ia dos muçu lmanos . O s pr imeiros não toleravam, por exemplo , que usassem albernozes, e os se-gundos apelavam para os reis, rec lamando o respeito pelas leis que salvaguar-davam os seus usos e costumes e invocando que essa era a indumentár ia p o r eles usada e m terras de mouros 1 0 2 . Para serenar os ânimos exaltados dos cris-tãos, D . Afonso V vol tou a legislar po rmenor i zadamen te sobre o vestuário dos sarracenos. Segundo a lei afonsina, os m o u r o s deviam observar as seguin-tes determinações, sob a pena mín ima de pe rde rem a roupa e serem penaliza-dos c o m 15 dias de prisão103:

— as aljubas deviam ser acompanhadas de aljubetes e ter mangas tão lar-gas «que possam revolver e m cada h u m a delias h u m a :11 da1(14 de medi r pano»;

— os albernozes deviam ser fechados e cosidos c o m os escapulários; — os balandraus ou capuzes deviam trazer u m escapulário atrás. D . J o ã o II obr igou ainda os mouros a usarem capuzes abertos e a ostentar

uma lua vermelha n o ombro 1 0 5 . Já depois da expulsão, e m 1502, D. Manue l l ibertou os que residissem ou passassem p o r Portugal da referida lua v e r m e -lha106.

A QUEM AUSCULTE o VIVER das populações medievais portuguesas, é fácil aperceber-se de que aos m o u r o s estavam n o r m a l m e n t e confiados os ofícios mais difíceis, o que, só por si, é u m indicativo da discriminação social a que eram votados.

Após a Reconqu i s t a cristã do terri tório português, os m o u r o s que aceita-ram viver entre os cristãos cont inuaram ligados às actividades económicas q u e exerciam durante a dominação islâmica. Isto significa que uma grande parte deles c ç n t i n u o u a dedicar-se à vida agrícola, a principal fonte de riqueza do reino. É natural que o seu estatuto económico-prof iss ional se tivesse degrada-do c o m a Reconquis ta , na medida e m que perderam direitos antigos e m fa-vor dos novos senhores. N a maior parte dos casos, passaram a cultivar as t e r -ras c o m o arrendatários ou enfiteutas, e m condições idênticas às dos cristãos que gozavam do m e s m o estatuto. E m mui tos casos, n o entanto , man t ive ram a posse plena das antigas terras107.

A G R I C U L T U R A E O F Í C I O S M E C Â N I C O S

A agricultura era exercida não apenas p o r aqueles que viviam nos c a m -pos, mas t ambém pelos que residiam nos centros urbanos. N a periferia das c i -dades, inc luindo os arrabaldes, realizavam-se actividades agrícolas, pr incipal-m e n t e a pastorícia, a vinicultura e o cult ivo dos cereais, que exigiam grandes extensões de terra. D e n t r o das próprias muralhas, cult ivavam-se os legumes e as árvores de fruta. Daí a existência de muitas hortas (almuinhas) e pomares . N ã o é difícil perceber a importância vital da agricultura «urbana» para a e c o -nomia da população, sobre tudo em tempos de guerra, e m que chegava a r e -presentar a única garantia de sobrevivência.

Está ho je b e m documentada a existência e a impor tância de q u e as a lmui -nhãs de cidades c o m o Lisboa, Po r to e Évora se revestiam, não apenas c o m o pulmões da cidade, mas t a m b é m c o m o meios de subsistência e sobrevivência das respectivas populações1 0 8 .

U m a das principais actividades agrícolas dos m o u r o s era o a m a n h o das v i -nhãs. N ã o é por acaso que alguns forais, c o m o o ou to rgado por D . Afonso Henr iques , e m 1170, aos m o u r o s forros de Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer do Sal, re fe rem o facto de lhes serem confiadas as vinhas do rei109 .

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O vocabulário por tuguês regista ainda ho je mui tos te rmos agrícolas árabes ou de or igem árabe. En t re mui tos outros, registem-se os seguintes: adil (catíl), pousio; alacil (sasír), época das vindimas; albarda (bárdaca); alfaia (haja); a lman-xar (manchar), lugar para secar figos; a lmargem (marj), prado; a lmuinha (mu-nya), horta; alqueive (qalíb), terra de pousio; atafona (tahâna), m o i n h o m o v i -do por animal; ceifa (sayfá); lezíria (jaza'ir) \ quintal (qintâr).

Sobre tudo n o Alentejo , os m o u r o s dedicavam-se à caça c o m o uma das principais actividades. O foral e as posturas da câmara de Évora e os costumes de Beja são claros a esse respeito1 1 0 .

Ainda que as ordenações não refiram outras actividades dos mouros , sabe-mos, através de mui tos d o c u m e n t o s da época, c o m o forais, cartas régias e posturas, que eles se dedicavam a ofícios mecânicos, tais c o m o sapateiros, fer-reiros e oleiros, e ainda c o m o carpinteiros, tapeteiros, pedreiros, albardeiros, esteireiros, esparteiros, tosadores, etc.

Para suprir a falta de artífices que afectava as povoações , n o r m a l m e n t e avessas aos ofícios mecânicos, os nossos reis, muitas vezes a ped ido daquelas, ou to rgavam f r e q u e n t e m e n t e aos m o u r o s privilégios, que iam desde a i m u n i -dade de tr ibutos até ao estatuto de vizinhos1 1 1 .

Lápide funerária, c o m inscrições árabes, proveniente de Lisboa, da R u a das Madres à Madragoa (Lisboa, Museu da Cidade).

FOTO: A N T Ó N I O RAFAEL.

C O M É R C I O E FINANÇAS Mui tos m o u r o s dedicavam-se ao comérc io , quer fixo, quer ambulante 1 1 2 .

O s sedeados nas zonas de fronteira e n o Algarve comerc iavam, respectiva-men te , c o m Castela e c o m o N o r t e de África. Era o que acontecia c o m os de

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A PROCURA DO D E U S ÚNICO

Elvas, f r e q u e n t e m e n t e envo lv idos e m negóc ios c o m os p o v o s da raia es t re-m e n h a 1 1 3 . O s forais r e f e r e m f r e q u e n t e m e n t e a ac t iv idade comerc ia l dos m o u -ros e o pr ivi légio d e isenção dos direi tos de p o r t a g e m .

O m o u r o e o j u d e u , pe lo simples facto de se rem cons iderados «o out ro» , e r am ví t imas da exp loração a t odos os níveis, p r i n c i p a l m e n t e ao nível e c o n ó -m i c o . A prática da usura, a inda q u e p ro ib ida pelas leis cristãs, t o r n o u - s e tão n o r m a l en t r e os m e m b r o s das d i ferentes c o m u n i d a d e s religiosas q u e D . A f o n -so III se v iu ob r igado a p r o m u l g a r u m a lei carregada de sanções, a q u e d e u p o r t í tu lo «Ley p e r q u e e l - R e i d e f e n d e o aos cristaãos e m jeeral l e a m o u r o s e a j u d e u s q u e n o m f a ç o m con t r au tos n e m e m p r e s t e m h u u n s aos o u t r o s s e n o m hua cousa p o r ou t ra semelhauel». C o m ela, o legislador t inha c o m o ob j ec t i vo evitar, p o r u m lado, os p re ju ízos e c o n ó m i c o s q u e o seu não c u m p r i m e n t o acarretava para os devedore s e, p o r o u t r o , a prática da usura, exp l i c i t amen te declarada «defesa de dere i to d e u y n o e de dere i to poset iuo». N a s C o r t e s d e San ta rém, e m 1273, o m e s m o rei, p ress ionado pelos f idalgos e pelos c o n c e -lhos, q u e se q u e i x a v a m dos efei tos perversos dessa lei, t eve de a revogar , não sem rei terar as penas referentes à usura1 1 4 .

O U T R A S A C T I V I D A D E S A o lado dos mudé j a r e s q u e «moure javam» nos t rabalhos duros , m u i t o s

havia q u e ascendiam a cargos social e e c o n o m i c a m e n t e elevados, t an to d e n -t ro c o m o fora das c o m u n a s . Sabe-se , p o r e x e m p l o , q u e j u n t o da cor te de D . Dinis existia u m m o u r o , de n o m e M a o m é , q u e c o l a b o r o u c o m Gil Peres , c lér igo de P ê r o Anes de Por te l na t r adução da Crónica do mouro Rasis, u m a das pr incipais fon tes da Crónica geral de Espanha de Í344]l5. D . A f o n s o V t inha c o m o físico u m m o u r o , c h a m a d o Alie1 1 6 . O m e s m o rei, p o r carta de 17 de M a r ç o d e 1451, n o m e o u seu r e q u e r e d o r , sol ic i tador e p r o c u r a d o r j u n t o dos ou t ros m o u r o s a C a i d e Caciz , c o n c e d e n d o - l h e «todas as l iberdades, rendas, foraes e direi tos q u e ao di to of f ic io per tencem» 1 1 7 .

I M P O S T O S E H E R A N Ç A S N o r m a l m e n t e , os m o u r o s es tavam sujei tos aos impos to s q u e i m p e n d i a m

sobre a genera l idade da p o p u l a ç ã o , c o m o por tagens , peagens e cos tumagens . A l é m disso, reca íam sobre eles várias t r ibu tações específicas.

As Leges pub l i ca ram u m a «Declaração» dos impos to s q u e os m o u r o s d e -v i a m pagar ao rei1 1 8 . Tra ta - se d e u m d o c u m e n t o não da tado , inser ido nas In-quirições de D. Afonso III (fl. iov) , q u e G a m a Barros diz ter sido r ed ig ido n o r e inado d e D . J o ã o I1 1 9 . P o r q u e estes t r ibu tos j á exis t iam e m t e m p o s a n t e r i o -res120 , é u m b o m ind i cado r dos encargos fiscais a q u e es tavam sujei tos os m o u r o s for ros por tugueses . E m síntese, e r a m estes os impos tos :

— a capi tação o u alfitra (al-fitr)121 , q u e incidia sobre todos os m o u r o s , l o -go a par t i r d o na sc imen to , e consistia e m seis d inhe i ros , pagos n o p r i m e i r o dia de cada ano 1 2 2 . A par t i r da idade e m q u e p o d i a m ganha r a vida, pagavam v in te soldos da m o e d a antiga, q u e co r respond ia a u m a libra. P o r isso, a «De-claração» c h a m a - l h e «libra de cabeça»;

— a d íz ima anual (azaqui)1 2 3 d o pão , d o v i n h o , d o azeite, dos l egumes , dos figos passados, das uvas, d o mel , da cera e das crias d o gado cavalar e asi-no , a q u e es tavam sujei tos t odos os m o u r o s , a part i r dos q u i n z e anos de ida-de1 2 4 . Es te i m p o s t o era c o b r a d o à m e d i d a q u e se real izavam colhei tas o u r e n -d imen tos ;

— o azaqui o u q u a r e n t e n a (2 ,5% o u 1/40) , o u a c o r r e s p o n d e n t e p e r c e n -t a g e m e m d inhe i ro , q u a n d o se tratava de quant ias baixas, das crias dos gados b o v i n o , o v i n o e cap r ino e dos camelos e d e todos os ou t ros bens , i nc lu indo os haveres e m o u r o e prata, a q u e es tavam sujei tos os varões c o m capacidade para ganha r a vida. Este i m p o s t o era p a g o n o dia 1 d e M a i o d e cada ano ;

— a q u a r e n t e n a da c o m p r a e v e n d a de bens de raiz, c a b e n d o o u t r o t an to ao i n t e r l o c u t o r n o n e g ó c i o ;

— a d íz ima d o t rabalho, q u e one rava os m o u r o s jo rna le i ros , d o sexo mascu l ino , n ã o sujei tos ao azaqui;

— a d íz ima d o resgate e da alforria;

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ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

— a dízima dos bens móveis e de raiz deixados e m herança, q u a n d o os herdeiros só os reclamavam depois de já t e rem sido inventariados pelo a lmo-xarife do rei, pelo rendei ro ou pelo recebedor 1 2 5 ;

— prestações e m espécie, que recaíam sobre os que cuidavam das vinhas do rei.

Estes impostos, aos quais há a acrescentar derramas extraordinárias, parece não exorbi tarem os lindes do razoável, quando considerados isoladamente. Analisados, po rém, cumula t ivamente , e t endo e m conta que incidiam sobre todas as actividades e produtos , tornavam-se demasiado pesados para as p o p u -lações mouriscas. Mas temos de ter presentes dois factores: po r u m lado, o facto de a situação económica não ser mais favorável aos m o u r o s q u a n d o es-tavam sujeitos aos respectivos poderes islâmicos, c o m o se depreende dos c o n -vénios assinados entre eles e os reis cristãos, logo após a Reconquis ta 1 2 6 ; po r ou t ro lado, ao passarem para a dependência pessoal do rei (mauri me 1) e ao t rabalharem as suas terras, os mudéjares ficaram sujeitos a deveres fiscais se-melhantes aos dos exploradores dos domínios públicos dos estados m u ç u l m a -nos. H á ainda a notar que, n o cur to espaço de vinte e três anos, a situação económica dos mudéjares se degradou, c o m o se depreende da leitura c o m p a -rada dos forais de Évora (1273) e M o u r a (1296).

A P O S E N T A D O R I A

Tal c o m o durante a dominação islâmica, e m que os muçu lmanos se hos-pedavam e m casas de cristãos, sem que estes pudessem recalcitrar, n e m sequer contra os abusos que ultrapassavam os limites da lei, t ambém, após a R e c o n -quista, os senhores cristãos cos tumavam hospedar-se e m casas de muçu lmanos e de judeus . O s m o u r o s queixavam-se f r equen temen te aos nossos reis da ex-ploração de que eram vítimas por parte de pessoas sem consciência. D . A f o n -so II, sensível a esses apelos, apoiou as suas reivindicações, ao conf i rmar , em 1217, o foral de 117o127.

Apesar da legislação favorável , q u e os isentava da obr igação da a p o s e n -tadoria , os abusos c o n t i n u a r a m , pois, e m 1364, os m o u r o s de San ta rém que ixa ram-se a D . P e d r o daqueles que se h o s p e d a v a m e m suas casas. O rei o r d e n o u que , de f u t u r o , n i n g u é m cometesse esse abuso, a não ser c o m u m m a n d a t o especial seu. O s prevar icadores ser iam expulsos das casas dos m o u r o s e obr igados a reparar os danos causados. O m e s m o rei p ro ib iu t o -dos os cristãos, m e s m o os seus filhos, de se aposen ta rem nas casas dos m o u -ros de Évora , b e m c o m o de se ap rop r i a r em das suas roupas e de ou t ros bens.

C o m o t e m p o , o c u m p r i m e n t o das determinações reais p r o v o c o u reac-ções contrárias po r parte dos cristãos. E m 1439 e 1446, os habitantes de Elvas, escandalizados pelo facto de «que o livre fosse servo e o infiel fosse isento»128, apresentaram a D . Afonso V uma queixa contra a incongruência do ped ido de isenção de aposentadoria feito pelos mouros . Indiferente a essas queixas, o rei c o n f i r m o u à referida c o m u n a todos os privilégios, liberdades e mercês que já havia recebido de monarcas anteriores1 2 9 .

P A R T I C I P A Ç Ã O N A G U E R R A E N A M A N U T E N Ç Ã O D A O R D E M

O s m o u r o s estavam dispensados do serviço militar. Duran t e a guerra, t i -n h a m apenas o encargo de guardar as tendas reais e defender os seus tesouros. Excepc iona lmente , assumiram muitas vezes a defesa do reino, mil i tando ao lado das populações cristãs.

Igua lmente estavam isentos de trabalhos paramilitares, c o m o o de trans-por ta rem presos e dinheiros. Q u a n d o , abusivamente, a isso eram obrigados, queixavam-se ao rei, c o m o aconteceu no t e m p o de D . Pedro I, c o m os m o u r o s de Lisboa, Setúbal, Avis e Alenquer . O monarca r e c o m e n d o u então aos alvazis e às justiças a atenção devida a tais situações.

Q u a n d o o rei ia à cidade de Lisboa, os m o u r o s cont r ibu íam indirecta-m e n t e para a sua defesa, p r o p o r c i o n a n d o géneros ao m o n t e i r o - m o r , aos m o ç o s do m o n t e , aos mon te i ro s de cavalo, aos escudeiros e m o ç o s de câ-mara do rei.

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A PROCURA DO D E U S ÚNICO

O DIREITO ECLESIÁSTICO distinguiu sempre o estatuto dos j u d e u s do dos muçu lmanos . E n q u a n t o os pr imeiros não t ê m pátria própria , v ivendo disse-minados entre os out ros povos, os muçu lmanos possuem-na , ainda que a te-n h a m conquis tado aos cristãos ou a outros povos. Por essa razão, nunca os cristãos deram tréguas aos muçu lmanos . Dada a sua conotação religiosa, a guerra dos cristãos c o m os muçu lmanos foi secularmente considerada pelos dois lados c o m o uma guerra santa, quer se revista da forma de •jihâd islâmica, quer de cruzada ou Reconqu i s t a cristã. Para os cristãos, trata-se de uma guer -ra justa, pois t em c o m o object ivos primordiais a defesa e reconquista dos ter-ritórios que outrora lhes per tenceram.

O Decretum de Graciano, no cânone int i tulado Iudeos non debemus persequi, sed Sarracenos, integra uma carta enviada pelo papa Alexandre II (1063) aos bispos da Hispânia, o n d e aquele reconhece «haver u m a impor tan te diferença entre a posição dos j u d e u s e a dos sarracenos. C o n t r a estes, t emos legi t ima-m e n t e u m direito de guerra p o r q u e perseguem os cristãos e os expulsam das suas cidades e reinos»130. Este cânone fo rnece a fundamen tação jur idica aos teóricos da Reconquis ta , c o m o o bispo de Silves, D . Alvaro Pais, para legiti-mar o direito de guerra1 3 1 .

È c o m base nestes pressupostos que deve ser entendida a proibição do comérc io de armas c o m os mouros , tão repetida pelos papas e príncipes e u -ropeus, pois esse comérc io favorecia indi rec tamente os inimigos na guerra contra os cristãos.

Apesar da mental idade e das legislações eclesiástica e civil, os cristãos e os mudéjares viviam no rma lmen te e m contac to uns c o m os outros e m a n t i n h a m in tercâmbio sociocultural no intervalo das guerras; d i spunham de chefes reli-giosos (imãs)132, de pregadores (cátibes), de teólogos (mutakalim-s), de juristas (alfaquis), e de sábios ou doutores (ulemás); pod iam ter, e t i nham de facto, mesquitas, onde realizavam os seus actos de culto e a partir de cujos mina re -tes os muezins chamavam os muçu lmanos à oração. Apesar de o Conc í l io de Viena ter proib ido esse cos tume nas terras cristãs e m 1311, e m Portugal essa lei eclesiástica só foi aplicada a partir das Cor tes de C o i m b r a de 1396, a instâncias dos capítulos gerais do povo .

O s filhos da mesqui ta desf ru tavam ainda de l iberdade para observarem os precei tos morais islâmicos, alguns dos quais e ram m u i t o estranhos à civi-lização cristã e ocidental , n o m e a d a m e n t e o de os h o m e n s p o d e r e m casar si-m u l t a n e a m e n t e c o m qua t ro mulheres , o da in terd ição da carne de p o r c o e do v inho , o da observância ritual da sexta-feira, e m vez do d o m i n g o , c o m o dia de descanso1 3 3 , o da circuncisão e o do j e j u m duran te o mês do R a m a -dão.

A liberdade religiosa dos m o u r o s e m terras de cristãos era uma exigência da doutr ina eclesiástica, que proibira oficialmente, desde sempre, a conversão forçada dos muçu lmanos . Isto não significa que a Igreja e os príncipes cristãos não se preocupassem c o m a evangelização e conversão dos adeptos do Alco-rão. A Igreja fazia-0 através da persuasão e os reis através dos pesados impôs -tos que faziam recair sobre os muçu lmanos , ao m e s m o t e m p o que distri-bu íam privilégios não apenas p o r aqueles que se conver t iam à fé cristã, mas t a m b é m pelos cristãos que casavam c o m mouras convertidas ao cristianis-mo 1 3 4 .

Apesar de os pr inc íp ios se rem claros, h o u v e s e m p r e abusos, q u e r n o p lano eclesiástico, q u e r n o civil. Foi c o n t r a esses abusos q u e legislaram D . J o ã o I, D . Duar t e e D . Afonso V, de acordo c o m a legislação ibérica e c o m base e m textos que os papas C l e m e n t e VI e Bonifác io I X haviam consa-grado aos judeus 1 3 5 .

O s privilégios dos mouros que se conver t iam ao cristianismo desencadea-ram frequentes descontentamentos , polémicas e desacatos sociais po r parte dos «cristãos-velhos». Estes apelidavam os cristãos-novos or iundos do islamis-m o de tornadiços, palavra mal conotada na época. N a q u e l e con tex to social e menta l p r o f u n d a m e n t e marcado pela polémica religiosa, tal d e n o m i n a ç ã o constituía uma ofensa de tal maneira grave que os sucessivos legisladores t ive-ram necessidade de proibir essa prática e de a tornar passível de pena civil136.

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Liberdade religiosa

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ISLÃO E C R I S T I A N I S M O : E N T R E A T O L E R Â N C I A E A G U E R R A SANTA

INTERCAMBIO CULTURAL ISLAMO-CRISTAO: UM BALANÇO POSITIVO

CONTRA O QUE SERIA DE ESPERAR d a m u l t i s s e c u l a r p r e s e n ç a m u ç u l m a n a n o Gharb Al-Andaluz, se o compararmos c o m outras regiões da Península Ibérica, foi d iminu to o con t r ibu to islâmico prestado à arte e, de uma maneira mais abrangente , à cultura portuguesa. As razões foram várias: po r u m lado, a natureza geograf icamente periférica do O c i d e n t e peninsular e m relação aos grandes centros de decisão política, económica e religiosa de Al-Andaluz não favoreceu a radicação de sábios e artistas n e m o dispêndio de grandes energias na região; po r ou t ro , a marcha erosiva do t e m p o apagou e destruiu implaca-ve lmente as marcas de u m a civilização que não interessava preservar; po r o u -tro, ainda, o aprove i tamento de estruturas e materiais antigos por gerações mais modernas não se compadeceu c o m o con tex to e object ivos originais, r econve r t endo-os e descaracterizando-os de acordo c o m a nova idiossincrasia social, cultural e religiosa; po r úl t imo, a ancestral oposição das comunidades cristã e islâmica endureceu as relações mútuas e chegou a justificar, na altura da Reconqu i s t a , a subvalorização, quando não o desprezo sistemático do le-gado civilizacional do adversário de tantos séculos.

H o j e , mais sensíveis do que nunca às raízes culturais da nossa história, é ní t ido, u m p o u c o por toda a parte, o esforço para salvar, recuperar e restaurar os marcos essenciais, integrantes e identificadores da cultura por tuguesa n o con tex to das outras culturas. Essa p reocupação está a produzi r os seus frutos e p r o m e t e alterar, e m sentido positivo, o balanço da presença m u ç u l m a n a entre nós. A crescente recuperação de muralhas e castelos, de igrejas e palácios, de becos e ruelas sinuosas, de açoteias e chaminés, v e m carregada de surpresas. Por detrás do barro e da cal e po r baixo da sobreposição de sucessivas cama-das de pedras e terra, acumuladas e m épocas posteriores, descobrem-se f re -quentenaente preciosidades artísticas e arqueológicas insuspeitadas. Mértola , c o m a madina islâmica e respectivas muralhas e c o m a actual igreja matriz, que não p o d e esconder a sua verdadeira ident idade de mesquita islâmica, é u m símbolo da redescoberta da nossa história na sua integridade pluriciviliza-cional1 3 7 .

Após a Reconquista, as cidades hispânicas continuaram a tradição cultural is-lâmica, criando centros de tradução do árabe para o latim e para as nascentes lín-guas modernas. Sabe-se hoje que, já no século x, foram traduzidos para latim, no Mosteiro de Santa Maria de Ripoll, vários pequenos tratados sobre o astrolábio.

A fama das escolas hispânicas foi tal que, nos séculos XII e x m , estudiosos de toda a Europa, principalmente da França, Inglaterra e Itália, v inham estagiar e m centros peninsulares, para neles se cultivarem na língua e ciência árabes138.

Através do árabe, o Ocidente latino re tomou o contacto com as muitas obras filosóficas e literárias gregas, que haviam sido quase olvidadas pelos povos germânicos, ao repar t i rem entre si o decadente Impér io R o m a n o . Duran te alguns séculos, a Europa viveu cul tura lmente bastante estagnada, a l imentan-do-se apenas de umas tantas obras enciclopédicas, que conseguiram preservar os restos da cultura clássica: as obras de Marc iano Capella e Santo Agost inho, no século v; as de Boéc io e Cassiodoro, no século vi; a de Santo Isidoro de Sevilha, n o século VII; as de Beda, o Venerável, Alcuíno e R á b a n o Mauro , nos s é c u l o s VIII e i x .

A intervenção do árabe c o m o língua de mediação cultural entre o grego e o latim foi tão impor tan te que, p o d e m o s dizer, divide a história científica, cultural e filosófica da Idade Média e m duas épocas distintas, de que o século XII é charneira1 3 9 .

Nes te processo de in tercâmbio cultural, e m que a l íngua árabe exerceu u m papel p reponde ran te e decisivo, fo ram marcos impor tantes as in te rven-ções de Pedro , o Venerável, e da corte de Afonso X de Castela, que p r o p o r -c ionaram a t radução de muitas obras para o latim e para as línguas vernáculas.

A corte de D . Dinis foi t a m b é m u m impor tan te cen t ro de t raduções do árabe, e m que part iciparam act ivamente , ao lado de intelectuais portugueses,

Encontro de dois povos e duas culturas

Conversão de u m muçulmano. Desenho baseado nas iluminuras das Cantigas de Santa Maria, de Afonso X , c. 128o (Espanha, Museu de San Lorenzo dei Escoriai).

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A P R O C U R A DO D E U S Ú N I C O

mouros residentes e m Portugal . A tradução da célebre Crónica do mouro Rasis, uma das mais impor tantes fontes da Crónica geral de Espanha de 1344, do c o n -de D . Ped ro de Barcelos, f icou a dever-se a u m m o u r o , de n o m e M a o m é , e a u m clérigo, Pedro Anes de Portel , a ped ido de D. Dinis1 4 0 .

O ambiente de aceitação e respeito m ú t u o s das diferentes etnias pen insu-lares era propício à convivência dos povos peninsulares e, consequen temen te , ao in tercâmbio de valores culturais. Jograis islamitas deambulavam de corte e m corte e marcavam a sua presença em datas solenes, c o m o as dos casamen-tos e das visitas de reis e príncipes às várias localidades. A tradição dos can to-res e bailarinos m o u r o s a an imarem as festas dos cristãos p ro longou-se até à sua expulsão. Os cancioneiros medievais portugueses d o c u m e n t a m esse f e n ó -m e n o e a respectiva dimensão cultural e social. A in tervenção artística dos mouros n o casamento do príncipe D . Afonso, fi lho de D. João II, e m Évora, mereceu especial atenção aos cronistas R u i de Pina e Garcia de Resende .

Interior da antiga mesquita de Mértola. F O T O : A N T Ó N I O C U N H A .

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I S L Ã O E C R I S T I A N I S M O : E N T R E A T O L E R Â N C I A E A G U E R R A S A N T A

É frequente encontrar e m obras medievais hispânicas cenas que mostram c o m o os membros das duas comunidades viviam e m sintonia cultural, partici-pando nos mesmos divertimentos. São eloquentes as ilustrações do Libro de aje-drez de Afonso X , e m que aparecem, por u m lado, guerreiros mouros e cristãos j ogando o xadrez, c o m o se nada os separasse sob o pon to de vista político e re-ligioso e, por outro, duas damas, uma moura e outra cristã, fazendo do mesmo j o g o espaço de convívio e de amizade. É igualmente eloquente a ilustração das Cantigas de Santa Maria (1265), recolhidas pelo mesmo rei, que apresenta u m m o u r o e u m cristão cantando jun tos e dedilhando alaúdes idênticos.

Por vezes, a colaboração de gentes de diferentes credos religiosos realiza-va-se até nos próprios actos de culto. Foi neste sentido que o Conc í l io de Valhadolid, e m 1322, se insurgiu, ao condenar a actuação de cantores e ac to-res muçu lmanos nas igrejas cristãs. Essa proibição foi cer tamente ditada pela vontade decidida de estancar u m cos tume generalizado.

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

E m tempo de paz, as populações fronteiriças, para a tenderem às necessida-des da vida quotidiana, não deixavam de recorrer aos seus vizinhos, mesmo que estes não comungassem dos mesmos ideais políticos e religiosos. Estes contactos realizavam-se, sobretudo, ao nível do comércio. A isenção de portagem e m to-do o reino, concedida por D. Afonso Henriques, em 1181, aos habitantes de Évora e Our ique que comprassem animais e outros artigos para uso próprio ou para comércio, faz-nos pensar que, sem esses privilégios, as referidas populações eram forçadas a negociar com os seus vizinhos muçulmanos1 4 1 .

Até as lides da guerra cont r ibuí ram para o contac to e osmose das culturas dos povos inimigos. Os principais agentes do in tercâmbio cultural is lamo--cristão fo ram os seguintes:

— os pris ioneiros e exilados, ao serem transferidos para as zonas islâmi-cas, levavam consigo a cul tura de o r igem e, ao regressarem às suas terras, v i n h a m enr iquec idos c o m a cultura árabe, assimilada du ran te a pe rmanênc i a no exílio;

— os moçárabes, emigrados do Sul, carregavam consigo para o N o r t e , j u n t a m e n t e c o m a cultura t a rdo- romana e visigótica, de que eram os mais lí-d imos representantes, e lementos culturais islamo-árabes. Foi política m u i t o seguida pelos reis conquistadores cristãos f ixarem moçárabes nas zonas desabi-tadas das marcas, c o m vista a uma mais fácil integração futura nos seus terri-tórios e, e m última análise, ao r e p o v o a m e n t o . Mui tos desses moçárabes i m -puseram às povoações e lugares por eles fundados os nomes das terras de or igem. Assim, o Co imbrões do Por to , de Viseu e de Braga e a C o i m b r ó de Vila Real ; a C ó r d o v a de Viseu, a Cordove la ou Cordove lha de Viana do Castelo e o M o n t e Córdova do Por to ; o Meridãos de Viseu, a Grada (de Granada) e a Malga de C o i m b r a e o Merideses de Bragança; o Santarém de Braga e Viseu; o Borba da M o n t a n h a , de Celor ico de Basto; e tantos o u -tros t opón imos de or igem meridional1 4 2 . T a m b é m é f requen te aparecerem

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I S L Ã O E C R I S T I A N I S M O : E N T R E A T O L E R Â N C I A E A G U E R R A SANTA

locais com nomes árabes de pessoas, c o m o são os casos de Mafamede, no Porto; Afife e Fazamões, em Viseu143. Os grandes êxodos de cristãos do sul para o centro e norte situaram-se, sobretudo, em três momentos históricos bem definidos: o da conquista árabe, o do recrudescimento das perseguições em mea-dos do século ix e o das invasões almorávidas e almóadas, nos séculos xi e xii. É historicamente sabido que a cada u m destes momen tos corresponde uma crescente arabização;

— os muladt-s que, por razões de o rdem étnica ou religiosa, para se liber-tarem e remirem do escrúpulo da apostasia, regressavam para o convívio dos antigos irmãos na fé, à procura de u m clima que lhes possibilitasse a reinte-gração e vivência do cristianismo. Os muladi-s deixaram o rasto da sua emi -gração e permanência no N o r t e de Portugal em vocábulos c o m o o topoan-t roponímico Moldes, existente nos distritos de Viana do Castelo, Braga, Porto, Aveiro e Viseu144;

— os mouros e mouriscos, ao ficarem entre os cristãos nas terras r econ-quistadas, ou ao serem para lá conduzidos das terras do Sul, c o m o cativos de guerra, influenciaram c o m a sua cultura as comunidades em que se integra-ram, provocando uma simbiose natural e lenta de culturas, o mudejar ismo. Muitos cristãos aceitavam a cultura islâmica, ignorando f requentemente a sua proveniência e desvinculando-a das crenças religiosas a que antes estava asso-ciada. Os muçulmanos imprimiram marcas da sua presença no território po r -tuguês nor tenho em topoantroponímicos c o m o Vilar de Mouros , em Viana do Castelo; São Mar t inho de Mouros , em Viseu; São Pedro de Sarracenos, em Bragança; e Sarrazinhos, em Braga145.

Todos estes grupos contr ibuíram para a miscigenação demográfica e para a osmose cultural que caracterizou, ao longo da Idade Média, não apenas o Sul, mas t ambém o N o r t e de Portugal.

A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA ÁRABE s o b r e a p o r t u g u e s a f o i r e l a t i v a m e n t e impor tan te . É fácil detectá-la, ainda hoje , tanto ao nível erudi to c o m o p o -pular. Apesar da sistemática rejeição do islamismo, subjacente à R e c o n q u i s -ta cristã, e cont inuada ao longo dos séculos seguintes, essa influência f icou indelevelmente impressa em várias centenas de vocábulos d i rec tamente i m -portados do árabe. As áreas lexicais mais d i rec tamente influenciadas pela língua árabe, veiculada pelos moçárabes, m o u r o s e mouriscos, são as da ad-ministração, justiça, vida social, urbanismo, utensílios domésticos, vestuário, construções e matérias de construção, gastronomia, ofícios, ins t rumentos de música, agricultura, fauna, flora, frutas, legumes, flores, recursos naturais, ciências e produtos químicos, as t ronomia, climatologia, medidas e moedas, actividade bélica e marí t ima, cores e colorantes1 4 6 . Ent re muitas outras, é de

Inscrição alusiva à Batalha do Salado, século x i v (Évora, Sé).

FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

<3 Exterior da antiga mesquita de Mértola. FOTO: A N T Ó N I O C U N H A .

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A língua

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A PROCURA DO D E U S ÚNICO

or igem árabe u m a boa parte das palavras por tuguesas começadas pelo p re f i -xo «al».

Ao nível da fonét ica portuguesa, a influência árabe fez-se sentir, m e s m o sobre palavras de or igem latina, veiculadas pelos moçárabes. E m mui tos casos, esse f e n ó m e n o foi consequência da pressão social, que obr igou as minorias moçárabes a adaptarem a sua p ronúnc ia à da maioria arabófona. Assim, por influência da língua árabe, que não conhece a letra p, esta conver teu-se na mais próxima, isto é, no b. Foi o que aconteceu e m palavras c o m o víbora (< vipêra) e baço (< opaciu < opacus).

N o u t r o s casos, a influência árabe ac tuou c o m o isolador, sobre tudo no Sul, imped indo a evolução que seria normal esperar. Assim, o / e o n in ter -vocálicos latinos mant iveram-se no Sul e m alguns t opón imos e provincianis-mos c o m o canito, malina e taleiga, e m contraste c o m a t enden te nasalação do n e supressão do /, que se verifica n o Nor t e , o n d e vence ram os vocábulos cãozi-to, malinha e teiga147.

O s MOÇÁRABES FORAM OS mais l ídimos representantes da tradição artística visigótica, que enr iqueceram c o m a impor tação de e lementos de o r igem ára-be, colhidos ao longo da sua permanênc ia em Al-Andaluz. A o emigrarem para o N o r t e ou ao serem assimilados pelo m o v i m e n t o reconquis tador , de i -xaram a sua marca e m igrejas e outras construções. São representativos da arte moçárabe as igrejas de Santa Maria de M e l q u e (Toledo) , São Cebr ian de M a -zote e São Miguel da Escalada, e m Espanha, e a igreja p ré - românica de São Pedro de Lourosa, e m Portugal , construída e m 912148.

U m a das manifestações mais ricas do encon t ro artístico dos cristãos do Nor t e , e m contacto directo c o m a arte europeia, e os do Sul, foi a dos «Bea-tos de Liebana», isto é, a dos comentár ios ao Livro do Apocalipse, feitos pelo Beato de Liébana, n o século VIII, alguns dos quais fo ram enr iquecidos c o m belas i luminuras, ao longo dos séculos ix a XIII. O s «Beatos» cons t i tuem u m a prova irrefragável da simbiose intercultural e inter-religiosa operada na P e -nínsula Ibérica, na medida e m que apresentam u m texto cristão, i luminado pela sensibilidade artística islâmica. Nas mesmas páginas encon t ramos a escrita visigoda, o arco de ferradura visigótico-islâmico, o modi lhão de lóbulos e a exuberante natureza oriental1 4 9 . U m dos rebentos desses «Beatos» é o do mosteiro de Lorvão, conclu ído e m 1189.

Após a Reconquis ta , era f requente encontrarem-se, na construção de m o -numen tos românicos e góticos, tanto espanhóis c o m o portugueses, artistas m u -déjares e moçárabes a trabalharem lado a lado c o m cristãos do Nor t e . A c o n t e -ceu isso, por exemplo, ao longo do século xn , na construção da Catedral de Coimbra , nas muralhas e igrejas de Santarém e no Castelo do Alandroal. Por vezes, os mudéjares deixaram expressos e m inscrições lapidares os seus sent imen-tos anticristãos e de solidariedade para c o m os seus correligionários andaluzes. A lápide do Castelo do Alandroal é u m exemplo típico. E m mui tos m o n u -mentos , sobre tudo alentejanos, é manifesta a influência islâmica, n o m e a d a -m e n t e nos seguintes aspectos: nos arcos de ferradura, herdados dos visigodos; no uso privilegiado do tijolo, do estuque e do azulejo; nas adufas e grafitos; nas açoteias e chaminés; e no sofisticado trabalho e m madeira dos tectos de alfaije. E a arte mudéjar , uma das mais ricas expressões do encon t ro das cul -turas cristã e muçu lmana . Ultrapassando as divergências religiosas, os seus i m -pulsionadores e artistas foram capazes de criar uma arte t ip icamente hispânica, e m que os canteiros cristãos do N o r t e t rabalhavam c o m azulejadores e es tu-cadores de formação hispano-árabe. E m Portugal , a arte mudé ja r foi reactiva-da nos finais do século x v e ao longo do xvi , sobre tudo na arquitectura civil. A nor te do Te jo , o Paço da Vila, e m Sintra, e o Castelo de O u r é m são exemplares típicos d o mudejar i smo. O pr imei ro foi cons t ru ído pelos artistas de D . Manue l , que lhe impr imi ram marcas do mudeja r i smo andaluz, en tão m u i t o e m voga na Península Ibérica. Os azulejos fo ram impor tados de Se-vilha.

Ao sul do Te jo , Évora é a cidade mais marcada pelo mude ja r i smo q u i -nhentista, de raiz espanhola. Ele manifesta-se e m vários m o n u m e n t o s rel igio-

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Arte e ciência

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sos e civis: nos conven tos de São B e n t o de Cástris e dos Lóios; nos antigos Paços do C o n c e l h o , nos palácios de D . Manue l , dos condes de Basto, do V i -mioso e dos duques de Cadaval.

E interessante notar que mui tos dos mais expressivos exemplos do m u d e -jar ismo por tuguês ficaram a dever-se a artistas portugueses, que herdaram os cânones estéticos da cultura luso-árabe, veiculados, sobre tudo, pelos moçára -bes e mudéjares e, a partir do re inado do Venturoso, pelos artistas vindos de além-fronteiras . Estevão Lourenço e D i o g o de Arruda, respect ivamente, e m São Ben to de Cástris e n o conven to dos Lóios, são exemplos de artistas cris-tãos que adoptaram cânones arqui tectónicos mudéjares .

A partir do século XII, as obras científicas árabes e, c o m elas, muitas das obras da Ant iguidade Clássica, an te r io rmente transladadas para a l íngua do Alcorão, passaram a ser traduzidas para latim e para as línguas vernáculas. A Hispânia d e s e m p e n h o u neste processo, c o m o já referimos, o mais i m p o r -tante papel de med iador cultural.

N o c a m p o da medicina, exerceu u m inf luxo inestimável o Canon (Chifa) de Avicena, que, duran te séculos, foi adoptado c o m o livro de texto e m m u i -tas universidades europeias. A esse livro, b e m c o m o aos Aforismos de Galeno, traduzidos para árabe e para latim, recorr iam obr igator iamente os físicos e boticários da época. O Canon foi o principal veículo da concepção da m e d i -cina c o m o ciência e cont r ibu iu decisivamente para libertar o menta l colect i-vo ocidental da crença supersticiosa de que a doença era u m a consequência da in tervenção directa do d e m ó n i o sobre os homens . Sabemos por Nicolau Clenardo que o méd ico eborense A n t ó n i o Filipe se servia dessas obras e m árabe e que, através delas, in t roduziu o d o u t o humanis ta nos segredos da l ín-gua do Alcorão. O u t r a obra médica, traduzida de u m texto do século xi, que m u i t o inf luenciou o Oc iden te , foi o De simpliàbus.

A ciência médica árabe ficou b e m documen tada na vida e na obra de P e -dro Jul ião e de São Frei Gil de Santarém, dois h o m e n s que exerceram uma p ro funda influência na cultura portuguesa.

O s campos da geografia e da historiografia portuguesas fo ram considera-ve lmente enr iquecidos pela t radução da Crónica do mouro Rasis, encomendada

Igreja moçárabe de Lourosa da Serra (Oliveira do Hospital).

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

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A P R O C U R A DO D E U S Ú N I C O

por D . Dinis a u m clérigo, Pêro Anes de Portel , e a u m certo m o u r o , de n o -m e M a o m é . Essa crónica é u m exemplo ímpar do in te rcâmbio cultural isla-mo-cr is tão, na medida e m que recolhe informações de escritores cristãos co -m o São J e r ó n i m o , Paulo Orós io e Santo Isidoro de Sevilha e veio a ser, a seu t empo , largamente aproveitada por D . Ped ro de Barcelos, na redacção da Crónica geral de Espanha de Í344 1 5 0 .

A gesta por tuguesa dos D e s c o b r i m e n t o s m u i t o f icou a dever à ciência náutica e aos c o n h e c i m e n t o s geográf icos t ransmit idos pelos árabes. A or i -gem da caravela no ant igo kârib h i spano-árabe , o a p e r f e i ç o a m e n t o e d ivu l -gação do astrolábio e das «tábuas toledanas» e a uti l ização da bússola e cartas árabes fo r am alguns dos mu i to s con t r ibu tos científ icos, técnicos e o p e r a t ó -rios de q u e o h o m e m por tuguês se ap ropr iou para fazer f r en te ao igno to «mar-oceano» 1 5 1 .

A astronomia árabe era entre nós conhecida através de traduções feitas na Hispânia e fora dela. A obra fundamenta l era, nesse campo , a m o n u m e n t a l compilação mandada executar p o r Afonso X de Castela, sob o t í tulo Libro dei saber de astronomia. Nela colaboraram, lado a lado, sábios j u d e u s e cristãos, que traduziram e adaptaram obras de autores árabes, entre os quais Albuhazen (Abú-l-Hasan) , Albatênio (Al-Battâni), Albumasar (Abu Ma cchar) e Azar-quiel. As tábuas astronómicas, conhecidas pelo n o m e de Tábuas afonsinas, pelo facto de te rem sido t a m b é m compiladas p o r o r d e m do rei Sábio, a c o m p a n h a -vam no rma lmen te os Libros dei saber, facili tando a aplicação dos c o n h e c i m e n -tos teóricos à prática do saber as t ronómico 1 5 2 .

As obras de autores árabes, c o m o Idrisi, Ibn Said, Ibn Batuta e Ibn Kal-dun , portadoras de informações sobre a geografia e o comérc io africanos, a in-da que não estivessem traduzidas e m português , eram cer tamente conhecidas entre nós através dos muçu lmanos e dos moçárabes d o Gharb Al-Andaluz , sucessivamente integrado no re ino de Portugal . O m e s m o deve dizer-se e m

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relação aos grandes escritores lusos Ibn c A m m a r de Silves, Ibn c A b d u n de Évora e Ibn Bassân de Santarém, cujas obras estão a ser traduzidas para a nossa língua. Mais importante ainda é referir o n o m e do jurista eborense Abu c Abd--Allâh que, já e m pleno século XIII, estudou e m Évora e aí adquiriu a estrutura intelectual que o to rnou célebre no N o r t e de África, onde foi conhecido pelo n o m e de Al-Yâbur í (o Eborense) . A o fundar uma escola de Fiqh (direito islã-mico) e de sufismo e m R a b a t e ao mor r e r c o m fama de santo, pe rpe tuou n o menta l colect ivo e na religiosidade popular do Magrebe a m e m ó r i a da cu l tu -ra luso-árabe1 5 3 .

P o v o essencialmente agrícola e de pescadores, os m o u r o s do G h a r b A l --Anda luz , t an to antes c o m o depois da R e c o n q u i s t a cristã, con t r i bu í r am pa -ra o progresso das respectivas técnicas. As principais actividades agrícolas e ram a cereal icul tura, a oleicul tura , a f ru t icul tura , a vi t icul tura e a ho r t i cu l -tura. Algumas técnicas agrícolas árabes passaram d i rec tamen te para o patr i -m ó n i o laboral por tuguês . Assim, ligados à act ividade moagei ra , l ega ram-nos as atafonas (tâhâna) ou m o i n h o s de t racção animal, as azenhas (assania) ou m o i n h o s de água, e os m o i n h o s m o v i d o s a v e n t o (rahâ); ligadas à irrigação, a nora (nâ'ura) e a azenha (sâniya ou sâkiya); ligada à pesca, a almadrava (al--madraba).

N a área do artesanato, Portugal he rdou dos muçu lmanos técnicas ainda ho je pujantes, n o m e a d a m e n t e n o respeitante à olaria. Materiais de cerâmica, exumados e m diferentes centros do Sul do nosso país e da Andaluzia O c i -dental, manifes tam semelhanças que apelam para u m parentesco de técnicas e de materiais. O s trabalhos arqueológicos realizados e m Mértola e Silves i n d u -zem-nos a pensar não apenas na semelhança dos artefactos, mas t a m b é m na sua difusão pelo Sul peninsular. A cerâmica de mesa utilizada nesta região, a partir de finais do século xi, isto é, sob a dominação dos Almorávidas e Al-móadas, era art ist icamente mais apurada e qu imicamen te diferente da de co -zinha. A sua or igem era, cer tamente , norte-afr icana1 5 4 .

Após a Reconqu i s t a , a difusão e impor tação dessa cerâmica passou a ser assegurada pelos moçárabes e, sobre tudo, pelos mudéjares . N ã o é por acaso que os costumes de Beja, dos finais do século XIII, a t r ibuem a estes grupos a p rodução da cerâmica1 5 5 .

Fragmento de seda atribuído aos séculos xrv ou x v (Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga).

F O T O : DIVISÃO DE DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA/INSTITUTO PORTUGUÊS DE M U S E U S / M A N U E L PALMA.

O Dois painéis de azulejos do início do século xv i . Sevilha (Lisboa, Museu Nacional do Azulejo).

F O T O : ALEXANDRE N O B R E PAIS.

<] Tigela de mesa proveniente de Mértola, meados do século x i (Museu de Mértola).

F O T O : A N T Ó N I O C U N H A .

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A P R O C U R A DO D E U S ÚNICO

A poesia lírica e a narrativa HÁ UMA SEMELHANÇA de c o n t e ú d o e de forma entre a lírica hispano-árabe e a de trovadores c o m o Gui lhe rme IX de Aquitânia, C e r c a m e r o n e Marca-brú. N y k l faz o paralelismo entre a muwachchâha, o zegel, a poesia provençal e os pr imeiros poetas hispânicos, coincidentes nos seguintes aspectos: a rima «aaab» de Ibn Q u z m â n e dos provençais; o estribilho árabe cor respondente à «finada» provençal; o n ú m e r o de estrofes, que oscilam, no rma lmen te , entre cinco e nove; as temáticas e a utilização de nomes fictícios; a in tervenção de u m mensageiro c o m o mediador entre o amante e a amada; a analogia das ati-tudes daquele para c o m esta156.

González Palencia cita exemplos das Cantigas de Afonso X e d e El libro de buen amor de Juan R u i z (o arcipreste de Hita) que seguem o m o d e l o do ze-gel157. B o m seria que os trabalhos de Rodr igues Lapa fossem cont inuados e levados a t e rmo e m relação à o r igem da poesia galaico-portuguesa.

Ho je , não há dúvida de que a narrativa árabe e oriental inf luenciou di -rec tamente a literatura ocidental . Essa influência processou-se através da tra-dução para o latim e para o vernáculo de muitas obras que a l imentaram a cultura e a imagética medievais e se projectaram sobre a Idade M o d e r n a p e -ninsular e europeia.

As obras mais significativas da narrativa oriental que , através d o árabe, in f luenc ia ram a narrativa ocidenta l e marca ram a sua presença na l i teratura por tuguesa , fo ram as seguintes: Disciplina clericalis, As mil e uma noites (Alf

Jarra muçulmana e m «corda seca», proveniente de Mértola, primeira metade do século x n (Museu de Mértola).

FOTO: MUSEU DE MÉRTOLA.

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ISLÃO E CRISTIANISMO: ENTRE A TOLERÂNCIA E A GUERRA SANTA

Layla wa-Laylà), Calila e Dimna (Kalíla wa-Dimna), Libro de los engannos et los asayamientos de las mujeres, t a m b é m m u i t o c o n h e c i d o pe lo n o m e de Livro dos dez sábios ou Dez visires (Sindbar ou Syntipas) e o Liber Scalae (Kitâb al--Micrãj).

D U R A N T E A I D A D E M É D I A , O Oc iden t e cristão teve u m c o n h e c i m e n t o A filosofia m u i t o imperfe i to do pensamento clássico. Além de três diálogos de Platão, do Organon de Aristóteles, da Isagoge de Porf í r io e das compilações de Cássio-doro , Beda, o Venerável, Santo Isidoro e Alcuíno, p o u c o mais se conhecia . O s bizantinos estavam mais voltados para a teologia do que para a filosofia e o u -tras ciência. Esta situação agravou-se q u a n d o Just iniano m a n d o u encerrar as escolas filosóficas de Atenas e Alexandria (529).

Ent re tan to , Platão e Aristóteles con t inuaram a ser lidos e estudados n o Egipto , na Síria e na Mesopotâmia , o n d e a expansão cultural helenista, c o n -temporânea das campanhas de Alexandre M a g n o , n o século iv a. C , os havia deixado. Aí os fo ram encont rar os árabes, na altura das conquistas.

Foi através do árabe que a Europa cristã en t rou de n o v o e m contac to c o m o m u n d o clássico. Esse f e n ó m e n o realizou-se c o m as t raduções dos sé-culos x n e xii i . D u r a n t e esses séculos, fo ram sucessivamente traduzidas obras de Aristóteles, Platão, o Liber de Causis, Avicena, Avicebron, Averróis e M a i -mónides 1 5 8 .

H o j e , j á n i n g u é m duv ida de q u e a i n t r o d u ç ã o n o O c i d e n t e da filosofia árabe e, c o m ela, da filosofia grega, foi u m dos m o t o r e s de a r r anque d o r e n a s c i m e n t o dos séculos x n e XIII159. U m dos m e l h o r e s in té rp re tes h i spâ-n icos do p e n s a m e n t o árabe foi o m a i o r q u i n o R a m o n Lull, q u e t an to p u g -n o u pela a p r o x i m a ç ã o do cr is t ianismo e d o is lamismo, se rv indo- se da filo-sofia de cariz árabe para sensibilizar e atrair à fé cristã os seguidores d o Alcorão . A in f luênc ia do lul l ismo foi de tal mane i r a g rande e m obras p o r -tuguesas, c o m o o Livro da corte imperial, o Boosco deleitoso, o Leal conselheiro, e a l i tera tura f ranciscana, q u e b e m m e r e c e c o n t i n u a r a ser descober ta e explorada 1 6 0 . O e s tudo do lul l ismo e de out ras co r ren te s de p e n s a m e n t o ve iculadoras da cu l tu ra árabe deverá c o n t r i b u i r para u m m e l h o r c o n h e c i -m e n t o dos laços cul turais e rel igiosos q u e , ao l o n g o da Idade M é d i a , p e r -m i t i r a m u m a conv ivênc i a pacíf ica, to le ran te e até co laboran te , t an to dos moçá rabes e m terras de A l -Anda luz , c o m o dos m o u r o s e m terras de Cr i s -t andade .

UM EPILOGO TRÁGICO: A EXPULSÃO DE 1496

TERMINADA A RECONQUISTA, OS m o u r o s fo ram escasseando cada vez mais n o terr i tório por tuguês , c o m o se infere da decrescente presença de re fe rên-cias documenta is . E m meados do século xiv, ainda encon t ramos mui tos no Algarve. A partir de finais do século xv, os documen tos referem-se, sobre tu-do , aos m o u r o s emigrados do N o r t e de Africa, que entraram e m Portugal po r razões de o r d e m económica ou c o m o resultado das campanhas m a r r o -quinas e das expedições esclavagistas.

Apesar da crescente rejeição a que a maioria cristã por tuguesa votava as minorias étnico-religiosas e de algumas tomadas de posição dos concelhos e da Igreja contra o luxo pessoal e das mesquitas1 6 1 , a vida in tercomuni tár ia processava-se ca lmamente , pelo que nada fazia prever o decre to c o m que D . Manue l , n o início de D e z e m b r o de 1496, co locou os j udeus e os m o u r o s ante a alternativa: ou conversão, ou expulsão1 6 2 .

Q u e razões de f u n d o terão levado o Venturoso a publicar lei tão inespera-da c o m o iníqua, t endo e m conta , sobre tudo, que o seu espírito tolerante o havia levado, logo após a ascensão ao t rono , nas Cor tes de M o n t e m o r , a conceder a alforria aos j u d e u s emigrados de Castela, que D . João II reduzira à escravatura?

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A P R O C U R A DO D E U S Ú N I C O

C e r t a m e n t e que t iveram m u i t o peso as opiniões dos m e m b r o s do seu conselho, mas, pela análise dos documen tos da época, sabemos q u e a razão mais for te foi a cláusula imposta pela princesa D . Isabel, filha dos Re i s C a t ó -licos e viúva do malogrado príncipe D . Afonso, de que só casaria c o m o m o -narca por tuguês se este «não consentisse e m seus estados a gente judaica , ce -ga, e em sua cegueira obstinada»163 . D . Manue l o p t o u dec id idamente pela voz do coração e pela vontade de unificar a religião no reino.

C o m o consequência da lei manuel ina, os j udeus e os m o u r o s que não quisessem ser baptizados deviam abandonar o reino até ao final do mês de O u t u b r o de 1497, levando consigo os respectivos bens. O s que desobedeces-sem seriam mor tos e os seus bens entregues aos denunciantes .

Q u a n t o aos mouros , o rei por tuguês , m o v i d o talvez pelo receio de que os mui tos portugueses cativos o u s implesmente residentes e m países islâmicos da Europa, da Africa e da Ásia fossem alvo de represálias, não só os não obrigou a receber o bapt ismo n e m lhes arrebatou as crianças para serem baptizadas, c o m o fez aos judeus , mas até facilitou aos que não quisessem ser baptizados a partida para Africa, sem sofrerem qualquer incómodo 1 6 4 .

A lei manuel ina não t inha c o m o object ivo directo e ú l t imo expulsar os j udeus e mouros , mas apenas pressioná-los ao bapt ismo, assegurando assim a unificação religiosa, ideológica e política do reino. Essa a razão p o r q u e difi-cul tou ao m á x i m o a saída dos judeus , negando- lhes os barcos inic ia lmente promet idos .

As fontes coevas i n fo rmam-nos de que mui tos j u d e u s e m o u r o s se c o n -ver teram então ao cristianismo, recebendo, c o m o bapt ismo, u m n o m e cris-tão, f r e q u e n t e m e n t e o dos respectivos senhores ou padrinhos. A partir da conversão dos j udeus e mouros , passava a haver of icialmente e m Portugal dois tipos de cristãos, os cristãos-velhos, ou s implesmente cristãos, e os cris-tãos-novos ou mouriscos.

Os protestos contra a política de conversão forçada fizeram sentir-se u m p o u c o por toda a parte. U m dos mais fortes e mais autorizados críticos foi o bispo de Silves, D . Fernando C o u t i n h o , que afirma ter visto mui tos j udeus a serem levados pelos cabelos à pia baptismal e critica duramente o bapt i smo forçado dos judeus , apelando para a invalidade de tal acto, recebido por coac -ção165 .

Por seu turno , D . J e r ó n i m o Osór io , t a m b é m ele fu tu ro bispo do Algarve, invoca razões de o r d e m jurídica, ética e teológica para condenar o bapt i smo forçado dos judeus 1 6 6 .

D a m i ã o de Góis, apesar do m u i t o que se t em escrito e m contrár io e do h u m a n i s m o que o caracterizava, pac tuou c o m a imposição do bapt ismo aos judeus , acabando p o r branquear a at i tude de D . Manuel 1 6 7 .

Para obter a plena integração dos cristãos-novos na c o m u n i d a d e cristã, o rei Venturoso ou torgou- lhes mui tos privilégios, c o m o aqueles que lhes p e r m i -t iram o acesso à nobreza, a cargos e dignidades eclesiásticas168, às ordens mi l i -tares, às universidades, à magistratura, às câmaras e a r eceberem os direitos de vizinhança, cidadania e outros.

A partir de D . J o ã o III, os mouriscos e os cristãos-novos de j u d e u s to rna -ram-se te r reno fértil para a actuação da Inquisição portuguesa1 6 9 . C o m efeito, apesar da recepção do baptismo, da mudança de n o m e e da aceitação exter ior dos ritos cristãos, mui tos con t inuavam a praticar, na clandestinidade, os ritos e tradições ancestrais. O s processos da Inquisição referentes aos mouriscos manifestam a sua fidelidade à profissão de fé na unicidade de Deus e na p r o -fecia de M a o m é , à oração ritual, à esmola legal, e ao j e j u m do R a m a d ã o . Além disso, invocavam a intercessão de M a o m é e dos santos muçu lmanos , e m n o m e de q u e m ju ravam; não c o m i a m carne de porco , n e m bebiam v i -nho ; guardavam a sexta-feira c o m o dia santo e observavam as tradições islã-micas relativas aos nascimentos, casamentos, funerais, festas, hábitos a l imenta-res e outras170 .

C o m o consequência da instabilidade religiosa e dos poucos apoios dou t r i -nais que recebiam, era grande a ignorância dos mouriscos, tanto e m relação ao islamismo c o m o ao cristianismo. U m a boa parte deles praticava u m sin-

1 2 8

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I S L Ã O E C R I S T I A N I S M O : E N T R E A T O L E R Â N C I A E A G U E R R A S A N T A

cret ismo religioso, u m a espécie de religião mista, e passava faci lmente do cristianismo para o islamismo e vice-versa, ao sabor do ambien te sociorreli-gioso e m que se situavam.

Alguns m o u r o s conseguiram furar as malhas da Inquisição e con t inuaram a viver e m Portugal sem serem baptizados n e m m u d a r e m de n o m e : uns, gra-ças à pro tecção do rei ou de pessoas influentes; outros, p o r q u e conseguiam escapar ao con t ro lo policial. A sua presença entre nós foi-se esvaindo lenta-mente , até desaparecer, assimilada pela maioria cristã.

NOTAS 1 C f . LAVAJO - M a r i a , p . 3 0 9 - 3 2 9 . 2 T a m b é m a Bíblia, t a n t o n o A n t i g o c o m o n o N o v o T e s t a m e n t o , e s t á c h e i a d e a p e l o s f o r t e s

a o e s f o r ç o e à l u t a c o n t r a as p a i x õ e s q u e d e g r a d a m o h o m e m , a f a s t a n d o - o d e D e u s . C f . L c . 28 , 1 9 - 2 0 .

3 N o s n o s s o s d ia s , o t e r m o jihâd a d q u i r i u t a m b é m o s i g n i f i c a d o d e l u t a c o n t r a o s u b d e s e n -v o l v i m e n t o e c o n ó m i c o , s o c i a l e c u l t u r a l .

4 J I M E N E Z D U Q U E - La Espiritualidad, p . 2 0 3 - 2 0 4 . 5 Apud SÁNCHEZ, M a n u e l - A l - A n d a l u z (711-1031), p . 81. 6 C o . 4 , 9 2 , 9 , 6 - 7 . 7 C f . C H E J N E . - Historia, p . 104 . 8 S e g u n d o o Vocabulista in Arábico ( e d . S c h i a p a r e l l i , F l o r e n ç a , 1871), p . 1 9 0 e 6 1 6 , p a i . (Uri-

butarius»), mu'ahidun v e m d e mu'ahid ( p a r t i c í p i o a c t i v o ) e n ã o d e mu'ahad ( p a r t i c í p i o p a s s i v o ) . O p r i m e i r o s i g n i f i c a «o q u e a s s i n o u u m p a c t o » , o s e g u n d o , «o q u e se e n c o n t r a v i n c u l a d o a u m p a c t o » .

C יי f . SILVEIRA — T o p o n í m i a , p . 6 7 - 6 9 . 1 0 A d d a b b i , C o . A r . E s c u r . N . ° 1 6 7 6 , a c t u a l 1671, d a B i b i . A r . E s c . D e D . M i g u e l C a s i r i . I n

CODERA, F . - Bibliotheca Arabico-Hispana, v o l . 3, p . 259. 11 C f . LÉVI-PROVENÇAL - L'Espagne musulmane, p . 211-212. 1 2 O t e x t o r e f e r e n t e a T o l e d o e n c o n t r a m o - l o n a CRÓNICA Geral de Espanha, v o l . 2 , p . 386 , e

o d e M ú r c i a e m LÉVI-PROVENÇAL - Historia de Espana, v o l . 4 , p . 21. 1 3 «E t u n u s q u i s q u e e x i l l o r u m o r i g i n e d e s e m e t i p s o s c o m i t é s e l i g e r e n t q u i p e r o m n e s h a b i -

t a n t e s t e r r a e i l l o r u m p a c t a R é g i s c o n g r e g a r e n t u r » , CHRONICA Albeldense, n . ° 7 8 . 14 C f . SANCHEZ MARTINEZ - A p o g e o y cr is is d e i e s t a d o c o r d o b e s , p . 2 3 9 - 2 4 0 . 15 CRÓNICA Mozárabe de 754 , n . ° 54, p . 7 0 - 7 2 . 1 6 AL־MAQQARI - Apêndice II de Ahbâr Majimi'a, p . 180, 193. 1 7 C f . LOMAX - La Reconquista, p . 11-12. 1 8 C o . 9 , 2 9 : « C o m b a t e i o s q u e n ã o c r ê e m e m D e u s n e m n o ú l t i m o D i a , n e m p r o í b e m o

q u e D e u s e o s e u E n v i a d o p r o í b e m o s q u e n ã o p r a t i c a m a r e l i g i ã o d a v e r d a d e e n t r e a q u e l e s a q u e m f o i d a d o o L i v r o ! C o m b a t e i - o s a t é q u e p a g u e m o t r i b u t o p o r s u a p r ó p r i a m ã o ( a n y a d i n ) e s e j a m h u m i l h a d o s » . A j í z i a a q u e o A l c o r ã o se r e f e r e a b r a ç a o d u p l o i m p o s t o p e s s o a l e t e r r i t o -rial q u e , p o s t e r i o r m e n t e , f o i d e s d o b r a d o .

" LEVOLGILDO - De Habitu Clericorum, n . ° 1. I n CORPUS. E d . J u a n G i l , p . 6 6 8 : « u t q u i n o b i s a d r e m a n e n t e s d o c t o r e s i m b e c i l l i t a t e c o r p o r i s p r e p e d i e n t e d i r i g e r e g r e s s o s n e q u i b e r i t , a u t i n q u i -s i t o c e n s u u m u e c t i g a l i s , q u o d o m n i l u n a r i m e n s e p r o C h r i s t i n o m i n e s o l b e r e c o g i m u r , r e t i n u e -r i t , s a l t i m n o c t u r n o t e m p o r e i n t e r e c c l e s i a s t i c a m u n i a q u i n e c e s s a r i u m d u x e r i t l e g a t [ . . . ]». EULÓ-GIO DE CÓRDOVA - Memoriale Sanctorum. V o l . 1, n . ° 21, e d . p o r Ibidem p . 385: «[ . . . ] q u o d l u n a r i t e r s o l u i m u s c u m g r a u i m o e r o r e t r i b u t u m » .

2 0 E s t e s i m p o s t o s v a r i a v a m s e g u n d o as c i r c u n s t â n c i a s , d e p a c t o p a r a p a c t o . A s s i m o d e T e o -d o m i r o o b r i g a v a e s t e c h e f e e s e u s s ú b d i t o s a « p a g a r a n u a l m e n t e u m t r i b u t o p e s s o a l , c o n s t i t u í d o p o r u m d i n a r e m m e t a l , q u a t r o a l m u d e s d e t r i g o e q u a t r o d e c e v a d a , q u a t r o m e d i d a s d e m o s t o , q u a t r o d e v i n a g r e , d u a s d e m e l e d u a s d e a z e i t e . E s t a t a x a f i c a r á r e d u z i d a à u n i d a d e p a r a o s e s -c r a v o s » .

2 1 C f . S I M O N E T - Historia, v o l . 1, p . 9 2 - 9 3 ; VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 ,

P• 2?8י 22 CRÓNICA Mozárabe de 754, n . ° 75, p . 9 0 . 2 3 V e r t r a d u ç ã o c a s t e l h a n a e m SIMONET - Historia, v o l . 4 , p . 8 0 1 - 8 0 4 . 2 4 A u t i l i z a ç ã o d e e x p r e s s õ e s á r a b e s d e c a r i z r e l i g i o s o f o i o d e t o n a d o r d a d e t e n ç ã o e d o s 4 0

a ç o i t e s q u e o c o m e r c i a n t e c r i s t ã o , J o ã o , t e v e d e s u p o r t a r . PAULO ÁLVARO DE CÓRDOVA - Indiculus Luminosus, n . 5, e d . p o r G i l : CORPUS, p . 2 7 7 - 2 7 8 .

25 CONQUISTA de Lisboa, p . 7 7 . A o l o n g o d a d o m i n a ç ã o i s l â m i c a , a c i d a d e c o n s e r v o u o s e u b i s p o m o ç á r a b e q u e , n o m o m e n t o d a r e c o n q u i s t a , f o i u m a d a s v í t i m a s d a s v i o l ê n c i a s d o s assa i -t a n t e s c o l o n e n s e s e f l a m e n g o s , c o m o r e f e r e a i n d a o r e l a t o r e a l í s t i c o d o s a c o n t e c i m e n t o s f e i t o p e -l o r e f e r i d o c r u z a d o i n g l ê s . A l g u n s a u t o r e s p e n s a m q u e e s t e b i s p o p o d e r i a t e r s i d o e l e i t o a q u a n d o d a r e c o n q u i s t a d a c i d a d e p o r A f o n s o V I , e m 1 0 9 4 o u 1095, i s t o é , c i n q u e n t a e t r ê s a n o s a n t e s . N ã o a c h a m o s isso m u i t o p r o v á v e l , p o i s , n a a l t u r a d a n o v a c o n q u i s t a i s l â m i c a e n o c l i m a d e i n s e -g u r a n ç a e d e s c o n f i a n ç a p r ó p r i o d a g u e r r a , o s n o v o s s e n h o r e s d i f i c i l m e n t e a c e i t a r i a m a l g u é m t ã o i n f l u e n t e e t ã o l i g a d o a o s i n i m i g o s .

2 6 A L M E I D A - História, v o l . 1, p . 8 0 . 27 Ibidem, p. 75. 2 8 C f . LÉVI-PROVENÇAL - L'Espagne musulmane, p . 211-212.

1 2 9

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

2 9 E s t e n o m e v e i o - l h e d a t r a d i ç ã o q u e r e f e r e q u e q u a n d o o i m p e r a d o r D é c i o , d e p o i s d e t e r m a n d a d o m a r t i r i z a r S ã o V i c e n t e , o r d e n o u q u e o s e u c o r p o p e r m a n e c e s s e i n s e p u l t o , p a r a s e r d e v o r a d o p e l a s f e r a s , u m c o r v o v e i o p o s t a r - s e d i a n t e , p a r a o d e f e n d e r . S e g u n d o a m e s m a t r a d i -ç ã o , n u n c a m a i s o s c o r v o s o a b a n d o n a r a m , m e s m o d e p o i s d a s u a t r a n s l a d a ç ã o p a r a as p r o x i m i -d a d e s d e S a g r e s . A l - I d r i s i , q u e v i s i t o u a r e f e r i d a i g r e j a , n a r r a a p r e s e n ç a d e d e z c o r v o s e a b u H a m i d a l - A n d a l u s i , c i t a d o p o r O m a r I b n e A l u a r d i n o l i v r o Pérola das Maravilhas, r e l a t a v á r i a s l e n d a s q u e c i r c u l a v a m n o s e u t e m p o e d o c u m e n t a m a d e v o ç ã o d e q u e o c o r p o d o s a n t o e r a r o d e a d o .

3 0 M E S T R E ESTEVÃO - T r a n s l a t i o e t m i r a c u l a s a n c t i V i c e n t i i . I n PMH: Scriptores, p . 9 6 - 9 7 . 31 CRÓNICA Geral de Espanha de 1)44, v o l . 2 , p . 3 6 8 . 3 2 DOMINGUES - Ossónoba, p . 4 5 - 4 7 . 3 3 VASCONCELOS - Etnografia, v o l . 4 , p . 2 7 6 . 3 4 PICARD - Histoire, p . 342. 3 5 C f . J IMÉNEZ D U Q U E - La espiritualidad, p . 238. 3 6 C f . CONQUISTA de Lisboa, p . 35. 3 7 M I G N E , J . P . - Patrologia Latina, 9 4 , c o l . 9 2 1 - 9 2 2 . C f . BAPTISTA - S . Manços, p . 5 -6 . 3 8 N ã o r e f e r i m o s a q u i a d e v o ç ã o a S . C u c u f a t e , p o i s c a r e c e m o s d e d a d o s h i s t ó r i c o s s e g u r o s .

R e m e t e m o s , n o e n t a n t o , o l e i t o r p a r a RAU - Semanas medievais portuguesas, p . 148-149 , e M A T T O -s o - O s M o ç á r a b e s , p . 15. C l á u d i o T o r r e s , i n v o c a n d o l e v a n t a m e n t o s e t n o - a r q u e o l ó g i c o s e a h a -g i o n í m i a , r e f e r e a p r e s e n ç a d e m o n g e s e m S ã o C u c u f a t e e n a p o v o a ç ã o d o M o s t e i r o , j u n t o d e M é r t o l a , q u e p r e s t a r i a m a a s s i s t ê n c i a r e l i g i o s a às p o p u l a ç õ e s r u r a i s d a s r e d o n d e z a s . TORRES — O G a r b - A l - A n d a l u z , p . 361 ss.

3 9 C F . MARTINS - Peregrinações, p . 31-33; cf . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 2 8 0 .

4 0 MATTOSO - Le monachisme, p . 201 . 4 1 MATTOSO - O s M o ç á r a b e s , p . 13-14. 4 2 C o m m a i o r p r o p r i e d a d e d e t e r m o s , o s muwalladún e r a m o s d e s c e n d e n t e s d e c r i s t ã o s c o n -

v e r t i d o s a o i s l a m i s m o o u d e c a s a m e n t o s m i s t o s , e n q u a n t o o s q u e se c o n v e r t i a m p o r v o n t a d e p r ó p r i a r e c e b i a m a d e s i g n a ç ã o d e musâlima.

4 3 PAULO ALVARO DE CÓRDOVA - Epistola xiv. E d . J . G i l : CORPUS, p . 2 2 7 . 4 4 C f . SIMONET - Historia, p . 344 , 6 4 2 . 4 5 LÉVI-PROVENÇAL - La civilisation arabe, p . 102. 4 6 PAULO ALVARO DE CÓRDOVA - Indiculus Luminosus. E d . J . G i l : CORPUS, p . 314-315. 4 7 O r d o n o II e o s s e u s t r i n t a m i l h o m e n s t e r ã o l e v a d o c o n s i g o q u a t r o m i l c a t i v o s , m u l h e r e s e

c r i a n ç a s , d e p o i s d e t e r m o r t o o s s e t e c e n t o s m i l i t a r e s q u e d e f e n d i a m a f o r t a l e z a . 4 8 V i t a S a n c t i T h e o t o n i . I n PMH: Scriptores, p . 84 -85 ; CRÓNICA dos sete primeiros reis de Portu-

gal. E d . S i l v a T a r o u c a , v o l . 1, p . 4 8 - 4 9 . 4 9 HERCULANO - História. E d . M a t t o s o , v o l . 3, p . 2 4 7 - 2 5 0 . 5 0 SÁNCHEZ-ALBORNOZ - Espana, v o l . 1, p . 157 ss. 5 1 C O E L H O — Portugal na Espanha árabe, v o l . 3, P r ó l o g o . 5 2 TORRES - O G a r b - A l - A n d a l u z , p . 361 ss. 5 3 LAVAJO - A R e c o n q u i s t a , p . 15-29. 5 4 A s c r ó n i c a s d e A f o n s o I I I d e L e ã o f a l a m r e p e t i d a s v e z e s d e Portugalem o u Portucalem e m

s e n t i d o r e s t r i t o , i s t o é , r e f e r i d a s a o a n t e p a s s a d o d o P o r t o , c o m o u m a c i d a d e e n t r e o u t r a s . A s s i m a CRÓNICA Albeldense, «Vrbes quoque Bracarensis, Portucalensis, Aucensis, Eminensis, Uesensis, atque La-mezensis a xpistianis populantur», e d . G ó m e z M o r e n o - Las p r i m e r a s , p . 6 0 4 ; C f . Rotense, i n Ibi-dem, p . 615.

55 CRÓNICA Albeldense. I n Ibidem. 5 6 R e f e r i n d o - s e às c i d a d e s c o n q u i s t a d a s p o r A f o n s o I das A s t ú r i a s n a r e g i ã o d e E n t r e D o u r o e

M i n h o , o c r o n i s t a S e b a s t i a n i a f i r m a : «Omnes quoque arabes supradictarum civitum inteificiens»; C f . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 2 9 9 - 3 0 0 .

5 7 É a i n d a S e b a s t i a n i , c o n t e m p o r â n e o d o s a c o n t e c i m e n t o s , q u e m o r e f e r e : «Bellatores eorum omnes interfecit, reliquum vero vulgum vergo dulgum cum uxoribus etfiliis sub corona vendidit»; C f . BAR-ROS - História da Administração, 1914, p . 65, n . ° 1.

5 8 C f . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 301. 59 Partida i v , t i t . 21, l e i 1. 6 0 V e r , p o r e x e m p l o , Leges, 1, 417; EORAES de Vila Viçosa, p . 53. 6 1 N o s f o r a i s d o t i p o d o d e É v o r a , a p o r t a g e m e x i g i d a a o s m o u r o s c o r r e s p o n d i a à d o s a n i m a i s

d e g r a n d e p o r t e , e q u í d e o o u b o v i n o ; n o d e S a n t a r é m , e q u i v a l i a a m e t a d e d o s m e l h o r e s e q u í d e o s o u e r a i g u a l às d o s m é d i o s . O p r e ç o d e v e n d a v a r i a v a e n t r e 5 a 10 m o r a b i t i n o s , i s t o é , o p r e ç o d e u m a p e q u e n a p r o p r i e d a d e a g r í c o l a . S a b e m o s p o r u m d e c r e t o d o m u n i c í p i o d e É v o r a q u e , e m 1382, o s m o u r o s c o n t i n u a v a m a s e r o b j e c t o d e v e n d a . C f . PEREIRA - Documentos históricos, v o l . 1, p . 154.

6 2 C f . COSTUMES e f o r o s d a G u a r d a . I n Leges, v o l . 2, 10. 6 3 C f . H E L E N O - Os escravos, p . 156. 6 4 E s t a l e i , q u e c o n d e n a v a a o f o g o o s q u e a s s a l t a s s e m i g r e j a s , f o i o r i g i n a r i a m e n t e e m i t i d a p o r

D . A f o n s o I I I c o n t r a o s j u d e u s e a p l i c a d a p o r D . A f o n s o V a o s m o u r o s . C f . ORDENAÇÕES Afonsi-nas, l iv . 11 , t í t . 87 , p . 501; Ibidem, t í t . 115, p . 556.

65 ORDENAÇÕES Afonsinas, l iv . 11, t í t . 114, p . 554-555. 6 6 C f . H E L E N O - Os escravos, p . 1 6 0 6 7 C f . AJBAR Machmua (Colección de tradiciones): Crónica anónima dei siglo xi, p . 116. 6 8 C f . MARWÂN - Al Muktabas, p . 23. 6 9 BOISSELLIER - La vie rurale, v o l . 2 , p . 4 0 7 . 7 0 C f . BOISSELLIER - La vie rurale, v o l . 2, p . 3 9 4 . 71 PMH: Leges et Consuetudines, v o l . 1, p . 3 4 9 .

1 3 0

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I S L Ã O E C R I S T I A N I S M O : E N T R E A T O L E R Â N C I A E A G U E R R A S A N T A

72 ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 28 , p . 2 2 2 ss. 73 Ibidem, 1, p . 3 9 6 . 74 Ibidem, p . 3 9 6 - 3 9 7 . 75 Ibidem, p . 715-716. 76 Ibidem, p . 7 2 9 - 7 3 0 . 7 7 ANTT - Chancelaria de D. Dinis. L i v . 11, fl. 124. 7 8 VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 323. 7 9 C f . PMH: Scriptores, v o l . 1, p . "182. 80 ORDENAÇÕES del-Rei D. Duarte, a r t . x v , p . 233. 81 Ibidem, a r t . v i l , p . 2 6 3 . 8 2 C f . COSTA - Mestre Silvestre e Mestre Vicente, p . 2 6 6 . A c o l a b o r a ç ã o d e c r i s t ã o s c o m m u ç u l -

m a n o s , e v i c e - v e r s a , v e r i f i c a - s e t a m b é m a o n í v e l d e a l i a n ç a s e n t r e p o v o s e c h e f e s rivais, a l g u m a s v e z e s c o n t r a o s s e u s p r ó p r i o s c o r r e l i g i o n á r i o s . O s e x e m p l o s d e A l m a n s o r , d e C i d o C a m p e a d o r , d e S e s n a n d o D a v i d i z e d e G i r a l d o S e m P a v o r m a n i f e s t a m esse i n t e r c â m b i o p o l í t i c o - m i l i t a r , q u e a c a r r e t a v a t a m b é m , c e r t a m e n t e , o i n t e r c â m b i o c u l t u r a l .

8 3 BOISSELLIER — La vie mrale, v o l . 2 , p . 4 0 2 . 84 ORDENAÇÕES Afonsinas. L i v . 11, t í t . 116, p . 557-558. 8 5 BARBOS - J u d e u s e M o u r o s , v o l . 34, p . 205, 2 0 7 - 2 0 8 . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa,

v o l . 4 , p . 335. GOMES - A M o u r a r i a , p . 155 ss. BARROS - A s c o m u n a s m u ç u l m a n a s , p . 85 ss; IDEM -A comuna muçulmana de Lisboa, p . 20 -21 . T a m b é m a m o u r a r i a d e C o i m b r a p o d e r á v i r a i n c l u i r e s -t e q u a d r o , q u a n d o as i n v e s t i g a ç õ e s f o r e m m a i s a p r o f u n d a d a s .

8 6 O s e s p a ç o s e m b r a n c o n ã o s i g n i f i c a m n e c e s s a r i a m e n t e a i n e x i s t ê n c i a d e c o m u n a m a s a p e -n a s a a u s ê n c i a o u d e s c o n h e c i m e n t o d a r e s p e c t i v a d o c u m e n t a ç ã o .

8 7 BARROS - A comuna muçulmana de Lisboa, 1998 . 8 8 S e g u n d o o u t r o s m a n u s c r i t o s , p o d e r á t e r s i d o e m 16 d e F e v e r e i r o d e 1339. C f . ORDENAÇÕES

Afonsinas, p . 534, n . (a) e (c ) . 89 Ibidem, l iv . 11, t í t . 101, p . 534. 90 Ibidem, p . 534-535. 9 1 I n i c i a l m e n t e , o t e r m o arrabalde e r a s i n ó n i m o d e mouraria e judiaria, a i n d a q u e , n a a l t u r a d a

r e c o n q u i s t a d e u m a p o v o a ç ã o o u p o s t e r i o r m e n t e , p o r c a u s a d o a u m e n t o d e m o g r á f i c o , m u i t o s c r i s t ã o s , p o r fa l t a d e e s p a ç o d e n t r o d e m u r o s , t i v e s s e m d e ficar i n s t a l a d o s f o r a , c o m o a c o n t e c e u n a c i d a d e d e L i s b o a .

9 2 C f . ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 104 , p . 5 4 0 ; Ibidem, t í t . 112, p . 552-553. 93 CORTES Portuguesas, Reinado de D. Pedro I, p . 52. 94 ORDENAÇÕES Afonsinas, l iv . 11, t í t . 102 , p . 535; c f . l iv . 11, t í t . 7 6 , p . 4 5 6 . 9 5 C f . BARROS - J u d e u s e M o u r o s , p . 172. 96 ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 104 , p . 5 4 0 ; c f . t í t . 112, p . 552-553. 97 ORDENAÇÕES Afonsinas, l iv. v , t í t . 26 , p . 9 6 ; C f . ORDENAÇÕES Manuelinas, l iv. v , t í t . 21, p . 7 0 . 9 8 CONSTITUIÇÕES d o A r c e b i s p a d o d e L i s b o a , d e c r e t a d a s p o r D . J o ã o E s t e v e s d e A z a m b u j a

(1402-1414) . Revista Archeologica. 1 (1887) 6 2 - 6 3 ; c f . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 332-333. M o v i d o s p e l a s m e s m a s r a z õ e s , D . D u a r t e e D . A f o n s o V l e g i s l a r a m t a m b é m n e s s e s e n -t i d o , a p l i c a n d o a le i j á e x i s t e n t e p a r a o s j u d e u s : ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 1 0 6 - 1 0 7 , P• 542-543•

9 9 C f . ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 117, p . 558. 1 0 0 C f . HERCULANO - História, v o l . 2, p . 4 6 9 - 4 7 0 . 1 0 1 BRANDÃO, A . - Mon. Lus. v o l . 7 , L i s b o a , 1683, p . 2 4 3 - 2 4 4 ; C f . VASCONCELOS - Etnografia

portuguesa, v o l . 4 , p . 333. 102 ORDENAÇÕES Afonsinas, l iv . 11, t í t . 103, p . 537. 103 ORDENAÇÕES Afonsinas, l iv . 11, t í t . 103, p . 538-539. 1 0 4 A alda o u alna e q u i v a l i a a o c ô v a d o , i s t o é , a t r ê s p a l m o s . 1 0 5 C f . GUERREIRO - M o u r o s , v o l . 4 , p . 352-353. 106 VITERBO - O c o r r ê n c i a s d a v i d a m o u r i s c a , p . 84 . A l u a , q u e i n i c i a l m e n t e e r a v e r m e l h a ,

p a s s o u d e p o i s a s e r a m a r e l a e , finalmente, r e t o m o u a c o r v e r m e l h a . 1 0 7 C f . C f . BOISSELLIER - La vie rurale, v o l . 2 , p . 3 9 8 - 3 9 9 . S a b e m o s , p o r e x e m p l o , q u e o s

m o u r o s d e L o u l é , a q u a n d o d a R e c o n q u i s t a , f i c a r a m c o m u m q u a r t o d o s b e n s , e m r e g i m e d e p r o p r i e d a d e t o t a l ; CRÓNICA de cinco reis de Portugal, p . 213 ss. E r a esse o s e n t i d o d a i n t e r v e n ç ã o d o a r c e b i s p o d e B r a g a j u n t o d o s m u ç u l m a n o s , a n t e s d a c o n q u i s t a d e L i s b o a .

1 0 8 C f . AZEVEDO - D o A r e e i r o à M o u r a r i a , p . 215; AZEVEDO - O r g a n i z a ç ã o E c o n ó m i c a , v o l . 2 , p . 4 0 . C f . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 310.

1 0 9 C f . Leges, v o l . 1, p . 3 9 6 . 1 1 0 C f . BOISSELLIER - La vie mrale. V o l . 2, p . 4 0 0 ; PEREIRA - Documentos históricos, p . 134. 1 1 1 VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 318-319. 1 1 2 D . A f o n s o I V a t r i b u i u a u m m o u r o o a f o r a m e n t o d e u m a t e n d a e m B e j a , a t r o c o d e d o z e

l i b r a s a n u a i s . E s s e a f o r a m e n t o e r a v á l i d o d u r a n t e t r ê s v i d a s . C f . BARROS - História da Administra-ção Pública, v o l . 3, p . 6 2 4 .

1 1 3 C f . BARROS - J u d e u s e M o u r o s , v o l . 35, p . 193-194. 114 ORDENAÇÕES del-Rei D. Duarte, p . 518-523. 1 1 5 C f . CRÓNICA Geral, v o l . 1, p . 330-331; LAVAJO - A C r ó n i c a d o M o u r o . RESENDE - História

da Antiguidade de Évora, c a p . x i . 1 1 6 C f . ORDENAÇÕES Afonsinas, l iv . 11, t í t . 101, p . 533. 117 CHANCELARIA de D. Afonso V. L i v . 2, f l . 6 v ; C f . BARROS - J u d e u s e M o u r o s , p . 2 0 0 . 1 1 8 «Es ta h e a d e c l a r a ç o m d o s f o r a e e s d o s m o u r o s d e c o m o d e v e m d e p a g a r o s d e r e i t o s a e l -

- R e i p e r esses f o r a e e s e p e r d e r e i t o d o s m o u r o s . E p e r c u s t u m e d e q u e e l R e i a n t i g a m e n t e s tá e m p o s s e d e l l e s p e r e s t a g u i s a o s m o u r o s e as m o u r a s p a g a r e m a e l R e i s e u s d e r e i t o s » . I n Leges, v o l . 2, p . 9 8 - 1 0 0 .

1 3 1

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A P R O C U R A D O D E U S Ú N I C O

1 1 9 BARROS - J u d e u s e M o u r o s , p . 2 2 o ss.; 228-230 ; VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 319 ss.

1 2 0 C f . f o r a i s d o s m o u r o s f o r r o s d e 1170 ( L i s b o a , A l m a d a , P a l m e l a e A l c á c e r ) , 1269 (S i l ve s , T a v i r a , L o u l é e F a r o ) , 1273 ( É v o r a ) e 1296 ( M o u r a ) .

121 p/lr e r a 0 i m p o s t o q u e a c o m p a n h a v a a f e s t a d a r u p t u r a d o R a m a d ã o . 1 2 2 E m m e a d o s d o s é c u l o x i v , 1 l i b r a e q u i v a l i a a 2 0 s o l d o s e a 2 4 0 d i n h e i r o s . 1 2 3 A Zakât i s l â m i c a e r a a e s m o l a l e g a l , d i f e r e n t e d a sadaqa, q u e e r a a e s m o l a v o l u n t á r i a . 1 2 4 C f . f o r a i s d o s m o u r o s f o r r o s d e L i s b o a ( D . A f o n s o H e n r i q u e s ) , S i l ve s , T a v i r a , L o u l é e F a -

r o ( D . A f o n s o I I I , d e 1 2 6 9 ) , e d e 1 2 9 6 ( d e D . D i n i s ) ; Leges, v o l . 2 , p . 9 8 - 1 0 0 . 1 2 5 C f . ORDENAÇÕES Afonsinas, l i v . 11, t í t . 28, § 59, p . 241. 1 2 6 BRANDÃO, A . - Mon. Lus. P a r t e 4 , l i v r o 15, c a p . 6 . " , n a e d . d e 1725, p . 343-344 ; Leges,

v o l . 2, p . 9 8 - 1 0 0 ; C f . VASCONCELOS - Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 328. 127 «Et insuper do vobis pro foro nullus pauset in vestris domibus contra vestram voluntatem». Leges,

v o l . 1, 3 9 7 . 1 2 8 C f . VASCONCELOS — Etnografia portuguesa, v o l . 4 , p . 3 2 6 . 1 2 9 C h a n c e l a r i a d e D . A f o n s o V , l i v . v , fl. 6 v . I n ARQUIVO Histórico Português. V o l . 3, p . 4 3 0 . 130 Apud LOPES - O D o m í n i o Á r a b e , p . 4 2 2 ; c f . LAVAJO - A l v a r o P a i s , p . 10-12.

PAIS - Speculum Regum, v 'י3 o l . 1, p . 251. 1 3 2 A i n d a h o j e é c o n h e c i d a n a t o p o n í m i a l i s b o e t a a R u a d o C a p e l ã o , r e f e r e n t e a o c a p e l ã o d o s

m o u r o s . 1 3 3 O s Costumes da Guarda, q u e r e m o n t a m a o s s é c u l o s x m - x i v , p r o i b i a m e x p l i c i t a m e n t e a o s

m o u r o s d e t r a b a l h a r a o D o m i n g o , s o b p e n a d e m u l t a e m d o i s m a r a v e d i s e m f a v o r d o a l c a i d e . C f . Leges, v o l . 2 , 16.

134 ORDENAÇÕES Afonsinas, l iv . n , t í t . 110, p . 5 4 6 - 5 4 7 . 1 3 5 C f . Partida vil, t í t . 25, l e i 2, p . 7 6 v . ; ORDENAÇÕES Afonsinas, l iv . 11, t í t . 9 8 , p . 515-518; Ibi-

dem, t í t . 119, p . 561; DUARTE - Leal Conselheiro, p . 6 2 ; ORDENAÇÕES del-Rei D. Duarte, a r t . 19, p . 2 6 8 .

136 ORDENAÇÕES del-Rei D. Duarte, a r t . x i x , p . 2 6 8 . 1 3 7 TORRES - O G a r b - A l - A n d a l u z , p . 361-416. 1 3 8 A p r o p ó s i t o d e T o l e d o , v e r SCHACK - Poesia y Arte de los Árabes en Espana y Sicilia, v o l . 2 ,

p . 253. 1 3 9 C f . M E N E N D E Z PELAYO - Historia de los Heterodoxos, v o l . 1, p . 4 2 7 - 4 2 8 . 140 CRÓNICA dei Moro Rasi, p . 10; c f . LAVAJO - A C r ó n i c a d o M o u r o , p . 127 ss. 141 C f . A r q . M u n i e , d e É v o r a — Livro do Padre José Lopes de Mira, fl. 8. 1 4 2 C f . SERRA - Contribuição, p . 35 ss. 1 4 3 SERRA - A i n f l u ê n c i a á r a b e , p . 102. 1 4 4 C f . Ibidem, p . 58-59. 1 4 5 C f . Ibidem, p . 6 2 , 7 5 - 7 6 . 1 4 6 LAVAJO - Cristianismo e Islamismo, v o l . 2, p . 830-841 . 1 4 7 C f . FERREIRA - V e s t í g i o s , p . 2 2 0 ; CINTRA - Estudos, p . 7 2 - 7 5 , 109-116. 1 4 8 O s c l a u s t r o s d a c o l e g i a d a d e N o s s a S e n h o r a d a O l i v e i r a , e m G u i m a r ã e s d e n o t a m t a m b é m

u m a f o r t e i n f l u ê n c i a m o ç á r a b e , s o b r e t u d o n o r e s p e i t a n t e a o s a r c o s d e t r a d i ç ã o v i s i g ó t i c a . 1 4 9 C f . AYALA - E l A r t e M u d é j a r , p . 111-112. 1 5 0 C f . LAVAJO - A crónica do Mouro, p . 128 ss. 1 5 1 C f . ARAÚJO - O s M u ç u l m a n o s , v o l . 1, p . 2 8 9 . 1 5 2 C f . ALBUQUERQUE - Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, p . 210 ss. 1 5 3 C f . TAZI - A b u c A b d - A l l â h a l - Y â b u r i , p . 363. 1 5 4 S o b r e es ta p r o b l e m á t i c a v e r MACÍAS - Mértola, p . 126-127. 155 PMH: Leges, v o l . 2, p . 57; c f . BOISSELLIER - La vie rurale, v o l . 2, p . 416 . E s t e a u t o r r e f e r e -

- s e t a m b é m , às «es t r e i t a s m o u r i s c a s d a a l e m m a r » , i m p o r t a d a s p o r V e i r o s , n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o x r v .

156 JS]YKL - El Cancionero de Abencusmán, p . x v n ; IDEM - Hispano-Arabic Poetry, p . 271 ss.; C H E J N E - Historia, p . 219.

1 5 7 GONZALEZ PALENCLA — Historia de la literatura arábigo-espaíiola, p . 333 ss. 1 5 8 P a r a l e l a m e n t e , a i n d a q u e t e n h a m c o m e ç a d o d e p o i s , p r o c e s s a m - s e as t r a d u ç õ e s d i r e c t a s

d o g r e g o p a r a o l a t i m . C o m e ç a n d o c o m o Fedon e o Ménon d e P l a t ã o , a i n d a n o s é c u l o x i i , c o n t i n u a m c o m A r i s t ó t e l e s e r e s p e c t i v o s c o m e n t a d o r e s g r e g o s , P r o c l o (a Elementato Physica, n o s é c u l o XII, e a Elementatio theologica, n o s é c u l o x i n ) , S ã o J o ã o D a m a s c e n o e o u t r o s .

1 5 9 C f . GRABMANN - Historia de la Teologia Católica, p . 6 0 ; ASÍN PALACIOS - Un aspecto inexplo-rado de los origenes de la Teologia Escolástica, v o l . 2, p . 55-56; c f . CASCIARO - El diálogo Teológico, p . 4 9 ss. F o i e s t a o b r a q u e m e s u g e r i u as d u a s ú l t i m a s c i t a ç õ e s .

1 6 0 CAEIRO - E l L u l i s m o , p . 4 6 1 ss. 161 C o r t e s d e 1451, c a p í t u l o s g e r a i s , n . ° 12 e c a p í t u l o s d o c l e r o , n . ° 12, c i t . p o r SOUSA - 1325-

- 1 4 8 0 , p . 354. 162 ORDENAÇÕES Manuelinas., l iv . 11, t í t . 41, p . 213-214; G ó i s - Chronica do Felicíssimo Rei

D. Emanuel, fl. 14 r . 1 6 3 ARRAIS - Diálogos, Dialogo Segundo: da gente judaica, c a p . 11. 1 6 4 G Ó I S - Chronica do Felicíssimo, f l . 15 v ; cf . O S Ó R I O - De Rebvs Emmanvelis, p . 21. 1 6 5 C O U T I N H O , D . F e r n a n d o . I n SYMMICTA Lusitana, v o l . 31, fl. 7 0 ss. B i b l i o t e c a d a A j u d a ;

cf . ALMEIDA - História, v o l . 2, p . 352. 1 6 6 O S Ó R I O - De Rebvs Emmanvelis, p . 20 -21 . 1 6 7 G ó i s - Chronica do Felicíssimo, fl. 15 v . 1 6 8 A S é d e É v o r a c o n t o u e n t r e o s s e u s d i g n i t á r i o s a l g u n s c r i s t ã o s - n o v o s , c o m o J o ã o N a v a r r o

q u e , e m 1512, e r a f e i t o b a c h a r e l ( É v o r a , A S E , c ó d . C E C - 6 - v i i , f l . 130 v-131, 140 r - 1 4 0 v) e P e d r o F e r n a n d e s C ó r d o v a , r e c e b i d o c o m o c ó n e g o ( A N T T - Inquisição de Évora. N . ° 7951, f l . 25) .

1 3 2

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I S L Ã O E C R I S T I A N I S M O : E N T R E A T O L E R Â N C I A E A G U E R R A S A N T A

1 6 9 A I n q u i s i ç ã o f o i e s t a b e l e c i d a e m P o r t u g a l p e l o p a p a C l e m e n t e V I I , e m 1531, a p e d i d o d e D . J o ã o I I I . O p r i m e i r o i n q u i s i d o r - g e r a l f o i F r e i D i o g o d a S i lva , d a O r d e m d o s M í n i m o s d e S ã o F r a n c i s c o d e P a u l a , n o m e a d o p e l o r e f e r i d o p a p a , a t r a v é s d a b u l a Cum ad ttihil magis, d e 17 d e D e z e m b r o d a q u e l e a n o .

1 7 0 S o b r e e s t e t e m a , v e r as d e c l a r a ç õ e s d o s p r o c e s s o s d a I n q u i s i ç ã o d e É v o r a , a n a l i s a d o s p o r BRAGA - O s M o u r i s c o s , 63 ss.

3 3

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A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

Agentes e estruturas de enquadramento eclesiásticos

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Organização eclesiástica do espaço

DO IMPÉRIO ROMANO AO REINO ASTURIANO-LEONÉS*

A REORGANIZAÇÃO GERAL DO IMPÉRIO ROMANO l e v a d a a c a b o p o r D i o c l e -ciano, entre 284 e 388, alterou p r o f u n d a m e n t e a anterior organização p rov in -ciai de Augus to que, e m 27 a. C. 1 , t inha dividido a Península e m três p rov in -cias (Bética, Tar roconense e Lusitânia).

C o m Diocleciano, as três antigas províncias hispânicas dão lugar a cinco: Tarraconense , Cartaginense, Bética, Lusitânia e Galécia2 (estas duas últimas abarcando grande parte daquele que seria pos te r iormente o espaço do terr i tó-rio português) .

Neste con tex to , as divisões administrativas internas e m civitates3 con t inua -ram a expr imir uma realidade não só histórica e administrativa, mas t a m b é m geográfica, económica e m e s m o religiosa.

N o que respeita às fronteiras das províncias e das civitates p o d e m o s consta-tar que os R o m a n o s fizeram coincidir os limites territoriais c o m os acidentes naturais, orográficos ou hidrográficos4 . O traçado das vias romanas teria t am-b é m cont r ibu ído t a m b é m para as delimitações das fronteiras ho je n e m sem-pre fáceis de reconstituir5 .

Desde a re forma de Dioclec iano até ao f im da dominação romana, as províncias administrativas do Impér io mant iveram-se pra t icamente inalterá-veis const i tu indo a base da organização eclesiástica. N o seu seio as civitates forneceram o «suporte administrativo» à nova estrutura diocesana. E nelas que foram criadas as primeiras sés episcopais. O pe r íodo visigótico acabou t a m b é m por reconsti tuir , ao nível eclesiástico, a divisão administrativa de Diocleciano, garant indo a sua cont inuidade ao longo da Ant iguidade Tardia.

É na Carta de Cipriano de Cartago (254/255) que encont ramos os primeiros dados concretos sobre a organização eclesiástica da Hispânia. Para além das três Igrejas destinatárias da carta (Leão-Astorga e Mérida)6 , Cipr iano m e n e i o -na a Igreja de Saragoça7 e alude à existência de outras sés episcopais estabele-cidas e m civitates, de que não menc iona os nomes 8 .

Segundo M . C . Díaz y Díaz, devemos estar perante cidades e m relação estreita c o m a presença, na Península, da Legio VII Gemina 9 . Esta alusão re -mete -nos , efect ivamente, para a importância da presença militar na propaga-ção do cristianismo.

Nesta época, a província eclesiástica ainda não seria uma realidade insti-tuída mas constituiria já u m referencial impor tan te para a resolução das ques-tões internas às Igrejas locais10. A Carta de Cipr iano faz-lhe alusão q u a n d o re -fere que nas eleições episcopais deviam intervir os bispos da província na qual elas se realizavam11 .

Algumas décadas mais tarde, as actas do Conc í l io de Elvira (306/314)12

dão-nos a conhecer a existência de comunidades cristãs organizadas na Hispâ-nia, para além das an te r iormente mencionadas, atestando a sua organização, no início do século iv, e m várias províncias eclesiásticas13.

Além da diocese de Mérida , cen t ro administrat ivo e ju r íd ico de r e c o n h e -cida importância desde o século in1 4 , o Conc i l io de Elvira menc iona , p o r exemplo , pela primeira vez as dioceses de Évora e Faro, na Lusitânia. O facto de estas cidades se t e rem tornado sedes de bispados significa, cer tamente , que t inham adquir ido u m papel de maior relevo na vida da Hispânia do que e m anos anteriores1 5 .

<3 Charola do Convento de Cristo, Tomar (!.' metade do século xm). FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/ /ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

*Ana Maria C. M. Jorge

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A C O N S T R U Ç Ã O D E U M A I G R E J A

Mapa das divisões administrativas da Hispânia romana (segundo Jorge Alarcão). Reproduzido in José Mattoso, História de Portugal, 1, p. 229.

O estabelecimento das sés episcopais teria obedec ido não só a motivações de carácter pol í t ico-administrat ivo, mas t a m b é m a questões de o r d e m g e o -gráfica e social, c o m o era o caso da prox imidade de estradas importantes 1 6 . A organização diocesana ter-se-ia, efect ivamente, mo ldado sobre a hierarquia civil das cidades hispânicas, c o m o é evidenciado pelos estudos realizados ao nível da Lusitânia17.

Dos cânones do Concí l io de Elvira, p o d e m o s ainda deduzir a existência de comunidades cristãs distantes da cidade episcopal18 . Este concíl io indica, c o m efei to, que o crist ianismo se propagava de u m a fo rma ev iden te nas c i -dades, mas que t a m b é m se expandia para a lém destas, nas villae, e m c o m u n i -dades organizadas p rovave lmen te sob a d i recção de u m clérigo ou de u m d iácono , que p o d i a m aí administrar o bap t i smo.

N ã o dispomos, todavia, de vestígios a rqueológicos , para o iníc io do sé-culo iv, relativos a edifícios cristãos c o m baptis tér io1 9 . Para os finais d o século iv e para o século v, p o d e m o s j á constatar cons t ruções de t emplos cristãos e m e s m o baptistérios e m algumas villae: é o caso de Mil reu (Estói-Fa-ro), São Cucufa te , T o r r e de Palma e M o n t e da Cegonha 2 0 , p o r exemplo . C o m o refere, M . C . Diaz y Diaz2 1 , a cristianização realizou-se não só no pia-no social mas t a m b é m no plano geográfico.

N o q u e respeita à estrutura provincial, o Concí l io de Elvira utiliza o t e r -m o «província» mas não define n e m o seu carácter, n e m o seu âmbi to . Aliás, só p o d e m o s pensar que a expressão era utilizada para designar as províncias eclesiásticas22 p o r q u e ela aparece empregue no con tex to de u m a assembleia eclesial. A correspondência en t re a província administrativa do Impér io R o -m a n o e a província eclesiástica é uma questão que cont inua e m aberto2 3 .

N ã o se conhece , para a Ant iguidade Tardia e Alta Idade Média , a de l imi -tação territorial entre as diferentes províncias. C o n v é m m e s m o lembrar que a delimitação territorial implicava uma concepção de fronteira que ainda não existia. Foram, c o m efeito, questões de natureza disciplinar — c o m o a dos lapsi, p o r exemplo — que começaram a colocar este problema. A ausência de limites precisos en t re os bispados no inter ior de u m a província colocava, aliás, problemas f requentes de jurisdição ent re bispos, c o m o sabemos pelos concílios visigóticos.

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E m 400, o cânone 5 do I Conc í l io de T o l e d o fo rnece-nos a primeira re -ferência, implícita, sobre a organização «paroquial», quando diz que os pa -dres, os diáconos e os subdiáconos deviam participar nos ofícios quotidianos, quer residissem na cidade, quer habitassem fora desta, n u m castellum, vicus ou n u m a villa c o m igreja24 . Estamos aqui perante uma distinção clara entre a Igreja da cidade e a Igreja dos meios rurais.

Segundo Alber to Sampaio, teria havido uma coincidência entre os limites geográficos das villae e os das paróquias que lhes sucederam2 5 . Miguel de O l i -veira, debruçando-se t a m b é m sobre este tema, defende que as paróquias mais antigas ter iam tido a sua or igem não só nas igrejas das villae mas t a m b é m nas igrejas monásticas2 6 .

N o século vi, é através dos concílios de Braga, realizados e m 561 e 572, na Galécia, que t o m a m o s c o n h e c i m e n t o da existência de «novas» dioceses e m contex to hispânico. Nestas datas, o re ino suevo fixado na Galécia chegava até ao Sul do D o u r o tendo anexado algumas cidades da província romana da Lusi-tânia, c o m o é o caso das de Lamego, Viseu, Conimbriga e Idanha, que passa-ram a estar sob a direcção do bispo de Braga27. Só e m meados do século vil, mais de me io século depois da destruição do re ino suevo por Leovigildo (por volta de 585), é que o metropol i ta da Lusitânia re toma sob a sua autor idade os bispados situados entre o D o u r o e o Te jo .

Para além dos concílios de Braga, encontramos ainda referência a estas qua-tro dioceses e à sua organização no Parochial suevorum, conhecido igualmente pelo n o m e de Division Theodomiri ou ainda de Concí l io de Lugo, de 56928. Ún ico no seu género e m todo o Ocidente , este documen to é constituído pela lista de «paróquias» da província eclesiástica de Braga, elaborada por volta de 572-582, sendo depois completada durante a Reconquis ta cristã, entre os sécu-los vil e XII, no que respeita ao limite das dioceses29. C o m base nesta fonte, p o -demos afirmar que a organização eclesiástica dos bispados anexados pelo reino suevo comportava no século vi uma autêntica «constelação paroquial»30.

Na análise que fez do Parochial, P. David mostra c o m o as «paróquias» sur-giram da iniciativa episcopal na periferia das cidades, que consti tuíam o c e n -tro da diocese, e se desenvolviam c o m o novos lugares de culto providos de u m clero própr io e de u m baptistério no âmbi to do quadro administrat ivo diocesano, atestando a expansão da sé episcopal31 . T e s t e m u n h a n d o o zelo o r -ganizador do bispo n o âmbi to da sua província eclesiástica, estas «paróquias» foram cer tamente criadas à medida das necessidades dos fiéis não só nos pagi e

A Capitel da Igreja de São Gião (Nazaré).

F O T O : M A N U E L REAL.

Interior da Igreja de São Gião (Nazaré).

F O T O : PUBLICAÇÕES ALFA, S . A .

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nos vici (lugares sem jurisdição territorial), mas t a m b é m nos castella (lugares fortificados).

P. David distingue claramente entre as primeiras igrejas da periferia e as fundadas nas villae o u nos fundi, na maioria dos casos, po r iniciativa dos seus proprietários e escapando ao cont ro lo directo do bispo. N ã o podemos , c o m efeito, esquecer que o bispo podia, t a m b é m ele, fundar igrejas nas villae das quais era proprietár io ou c o m o acordo do respectivo proprietár io.

Para além destas igrejas, P. David menc iona ainda as basílicas e os o ra tó -rios, construídos para venerar as relíquias dos santos.

Actua lmente , c o m o refere José Mat toso, admite-se que as villae pudessem ter servido de quadro à fundação de igrejas rurais, mas é possível pensar t a m -b é m que muitas paróquias pudessem ter surgido a partir de igrejas monásticas, e m e s m o de igrejas fundadas p o r agrupamentos de camponeses, sem n e n h u m precedente anterior3 2 .

Nesta época, ainda não é possível estabelecer limites precisos entre estas comunidades criadas na esfera de influência das cidades; os seus territórios só

Mapa das paróquias suevas (segundo Almeida Fernandes, 1968). Este mapa representa a única tentativa de identificação das paróquias que constam da lista ao Paroquial Suevo (reproduzido in José Mattoso, História de Portugal, 1, p. 313).

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Mapa das dioceses da época visigótica (segundo J. Orlandis). Reproduzido in José Mattoso, História de Portugal, 1, p. 329.

serão delimitados mais tarde já e m con tex to medieval3 3 . C o n t u d o , p o d e m o s constatar que n o II Concí l io de Braga (572) a ideia de «território episcopal» t inha já u m a certa consistência34 . Se não p o d e m o s falar ainda nesta época de uma rede cont ígua de paróquias, vemos já aqui presente a ideia de u m a «constelação de comunidades». P. David chama precisamente a atenção para a complexidade do problema mos t rando a correspondência entre algumas «pa-róquias» suevas e alguns arcediagados medievais3 5 .

O processo de desenvolv imento das «paróquias» c o m o células de e n q u a -d ramento é con t emporâneo , pelo menos desde os séculos v m até x, do esta-be lec imento da aldeia c o m o marco social e m o d e l o de fixação dos homens 3 6 .

A rede paroquial e as funções da paróquia, tal c o m o a conhecemos na época medieval , só começaram a fixar-se c o m a in t rodução do direito canó -nico r o m a n o n o século xi . É a partir desta época que se f ixam t a m b é m p r o -gressivamente os limites paroquiais.

Para além das referências dos concílios, as dioceses visigóticas são t a m b é m conhecidas graças ao Decreto de Gundemar, de 610. Este d o c u m e n t o reúne u m a série de assinaturas de bispos, c o m referência das respectivas sés, a f im de conf i rmar a supremacia da Sé de T o l e d o face aos desafios do poder polí t ico e religioso dos bizantinos estabelecidos no Sul da península3 7 .

Para os séculos VII/VIII, dispomos, para além das assinaturas dos diversos concílios realizados e m To ledo , de duas listas de bispos: a Nomine ávitatum Hispanie, datada do século vii e conservada n u m a cópia do século v m 3 8 , e a lista incluída no Chronicon Albeldense59, c o n t e n d o os nomes das dioceses visi-góticas, mas escrita durante o per íodo da Reconqu i s t a cristã n o século x.

Após a invasão muçu lmana , em 711, a administração eclesiástica diocesana foi-se progressivamente desagregando e o p r edomín io do regime das igrejas próprias (privadas) foi sujei tando o clero à influência dos poderes senhoriais. A medida que avançamos para os séculos ix e x a memór i a do antigo quadro eclesiástico administrativo dos Suevos e Visigodos tomou-se , com efeito, vaga.

N o s séculos ix/x, o programa repovoador da monarqu ia asturiana-leonesa incluiu c o m o pon tos fundamenta is a restauração da vida diocesana e seu c o n -

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t rolo pela autoridade régia40. Paralelamente assistiu-se à erecção de novas d io -ceses c o m o no- lo atesta a crónica albeldense, que oferece u m quadro da o r -ganização eclesiástica do re ino asturiano-leonês.

O ESPAÇO ECLESIÁSTICO EM TERRITÓRIO PORTUGUÊS (1096-1415)*

E N T R E O Ú L T I M O QUARTEL D O SÉCULO XI e m e a d o s d o s é c u l o XIII , as i n s t i t u i -ções eclesiásticas da cristandade latina do Ocidente, sob a coordenação do Papa e da cúria pontifical romana, autonomizavam-se relativamente ao poder imperial, ao mesmo tempo que encorajavam o movimento expansionista das Cruzadas e promoviam o protagonismo político-militar de potentados laicos que as defen-dessem. Nesse mesmo espaço geopolítico, a organização clerical consolidou p ro-gressivamente ao longo deste período u m conjunto amplo de privilégios estatu-tários (as sempre invocadas e denodadamente defendidas «liberdades eclesiásticas», a saber, isenção fiscal, isenção de obrigações militares e autonomia jurisdicional — incluindo o direito de asilo), consignados no Corpus Iuris Canoniá.

Nos reinos peninsulares, o crescimento destas instituições fez-se e m estreita articulação com o poder soberano dos reis, e m virtude do particular enquadra-m e n t o da conquista do Al-Andalus. E m Portugal, entre 1096 e 1249, a corte dos condes D . Henr ique e D. Teresa e dos reis seus descendentes, estirpe fide-líssima a R o m a , afirmava a sua superioridade político-militar ao longo da faixa ocidental da Península Ibérica a sul do rio Minho , pr imeiro sobre o território consti tuído pelos antigos condados de Portugal e C o i m b r a (1096-1139), depois pela Estremadura (1139-1147) e, finalmente, pela Beira Baixa e Alentejo até à costa algarvia (1147-1249). Estabelecia-se assim a unidade política conhecida c o -m o reino de Portugal e do Algarve até 1415 — data e m que D . J o ã o I acres-centou o senhorio de Ceuta à intitulação dos reis de Portugal, correspondente ao pr imeiro alargamento do espaço tutelado pela sua Coroa .

D e t e n t o r de grande parte dos conhec imentos técnicos então disponíveis, principal sustentáculo intelectual da cúria régia, o clero m o l d o u o espaço por tuguês à sua própria administração fiscal e judicial segundo a antiga t radi-ção hispano-goda adaptada às contingências próprias da conquista para sul.

Ao longo dos séculos XII e XIII, o clero secular es t ruturou nos terri tórios diocesanos uma organização eclesiástica, articulada e m três níveis: o mais e le-vado, a cidade cabeça de diocese — civitas; o nível in te rmédio , dos arcediaga-dos e / o u arciprestados (ausentes nas dioceses c o m administração mais cent ra-lizada); e, finalmente, as paróquias ou freguesias.

C o t e j a n d o o conce i to de «burocracias gémeas» utilizado por Jack G o o d y para referir a estreita interligação entre a administração civil e eclesiástica na Idade Média europeia, a administração régia e a administração eclesiástica conf iguraram o m e s m o espaço segundo a sua própria organização, gerando «geografias sobrepostas» — e complementares , po rque tute lando gentes e ins-tituições diversas. O u melhor , dimensões diversas da vivência das mesmas gentes sob a tutela de diferentes instituições.

Assim, entre o per íodo do governo do conde D. Henr ique e o período do reinado de D . J o ã o I anterior à conquista de Ceuta e ao Concíl io de Cons tan-ça/Basileia (1415-1417), o espaço territorial por tuguês foi organizado pela Igre-ja e m n o v e territórios diocesanos, quase todos herdeiros das antigas dioceses visigóticas. Eram eles, e po r o r d e m cronológica da restauração/criação, Braga (arquidiocese), Co imbra , Por to , Lamego, Viseu, Lisboa (arquidiocese a partir de 1393), Évora, Algarve (Silves) e Guarda.

Alguns espaços situados nas franjas fronteiriças de Portugal não se e n q u a -dravam nesta organização diocesana: o En t re M i n h o e Lima (administração de Valença), p r imei ro per tencente à diocese de Tu i , depois a u t ó n o m o e t e m -porariamente ligado à novel diocese de Ceuta e, finalmente, integrado na arqui-diocese de Braga no princípio do século xvi; o quase-enclave de São Pedro de T o u r é m , per tencente ao arcediagado de Lima da diocese de Orense — pelo menos até ao século xiv; as terras de Ribacoa (inicialmente pertencentes à d io -

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*Bernardo de Sá Nogueira

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Mapa das metrópoles eclesiásticas (reproduzido in José Mattoso, História de Portugal, 11, p. 39).

cese de Cidade R o d r i g o e, depois, integradas na diocese de Lamego); e, po r f im, C a m p o Maior , Ougue la e Olivença, até ao início do reinado de D . J o ã o I freguesias da diocese de Badajoz para, após per íodo de administração a u t ó n o -ma, os seus rendimentos serem atribuídos à diocese de Ceuta , já fora do en -quadramento cronológico que nos p ropomos tratar (1444), sendo o território administrado pelo arcediago de Olivença, sob tutela do arcebispo de Braga.

A lém de o terr i tório tutelado pelos reis de Portugal e do Algarve não coincidir exactamente c o m os territórios sob administração dos bispados c o m sede nesse terri tório, entre 1199 e 1393 as dioceses de Lisboa, Guarda, Évora e Lamego fo ram sufragâneas da me t rópo le arquidiocesana de Santiago de Compos te la , após decisão papal no seguimento de disputa prolongada entre as arquidioceses bracarense e compostelana — desde 1120. Duran t e o m e s m o per íodo, e m contrapartida, a arquidiocese de Braga foi metropol i ta , além das dioceses portuguesas do Por to , Viseu e Co imbra , das dioceses gala ico- leone-sas de Astorga, Tu i , Orense e M o n d o n h e d o . Q u a n t o à diocese de Silves, o seu bispo devia obediência ao metropol i ta de Sevilha.

P o r ou t ro lado, havia áreas den t ro de cada espaço diocesano que se exi-m i a m (em maior ou m e n o r grau) à tutela da autor idade episcopal. C o m efei-to, apoiadas e m privilégios concedidos pelos reis e conf i rmados (ou ou to rga -dos) pelos papas, e m certas zonas do terr i tório por tuguês algumas instituições monásticas (por exemplo , os mosteiros cistercienses, o Moste i ro de Santa C r u z de C o i m b r a e m Leiria, os Templár ios e m T o m a r e os Hospitalários n o Crato) t inham sobre si governo quase a u t ó n o m o — reconhecendo obed iên -cia ao superior da respectiva o rdem, ou d i rec tamente ao Papa. E m b o r a c o m força decrescente a partir do século x m e, sobre tudo, do século xiv, u m n ú -

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A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

A geografia eclesiástica portuguesa na época

medieval: estudos, fontes

mero significativo de freguesias no N o r t e / C e n t r o senhorial eram tuteladas por padroeiros leigos — exercendo direitos adquiridos por herança (ou usur-pação) dos fundadores da respectiva igreja paroquial.

O padroado laico, evolução do antigo regime jur ídico da ecclesia própria, fazia com que os patronos tivessem sobre as igrejas, entre outros direitos, o de nomearem o pároco. Mui to enraizado nas dioceses onde preponderava o siste-ma senhorial, o regime do padroado leigo conferia aos descendentes dos f u n -dadores das igrejas e mosteiros u m con jun to de direitos significativos sobre o respectivo governo e patr imónio. Ao longo dos séculos XII e XIII, várias famí-lias da nobreza transferiram para os mosteiros por si patrocinados esses direi-tos. Assim, nos bispados de Braga, Porto, Lamego e Coimbra , casas monást i -cas c o m o Pombeiro , Santo Tirso, Grijó, Paço de Sousa, Arouca e Santa Cruz de Coimbra exerciam influência considerável sobre o eclesiástico paroquial da diocese onde se encontravam implantados.

Por isso, a autoridade episcopal sobre a totalidade dos territórios diocesa-nos (sobretudo nos bispados do Nor te senhorial) só se afirmaria lentamente a partir do século XIII, graças em parte ao apoio colhido pelos bispos na corte dos reis de Portugal, n u m intercâmbio frutuoso entre o episcopado e o pa-droado régio41.

A questão da or igem das paróquias, analisada por Miguel de Oliveira e José Mattoso no seguimento do estudo de Pierre David dedicado ao parochiale suévico42, só ficará definit ivamente apurada após análise exaustiva da organi-zação paroquial em cada diocese portuguesa. Refira-se que as freguesias v i -ram os seus limites demarcados com crescente minúcia pela hierarquia dioce-sana entre o século xii e o início do século xiv, independentemente de terem emergido dos antigos centros jurídicos da administração clerical do per íodo hispano-romano ou suévico (restaurados após a conquista) ou das igrejas par-ticulares fundadas durante a Alta Idade Média. Exig iam-no a cobrança dos direitos eclesiásticos (sobretudo o dízimo) e a necessidade de fazer correspon-der uma hierarquia b e m definida a cada área geográfica delimitada com exac-tidão, de m o d o a garantir uma tutela rigorosa sobre a ecclesia (no que se refere à jurisdição do clero) e a christianitas (principalmente a determinação do c u m -pr imento das obrigações dominicais pelos fiéis).

Para o per íodo proposto, este texto con tém uma descrição do espaço eclesiástico estruturado em cada u m dos territórios diocesanos localizados em território português, precedida da indicação dos trabalhos de historiografia sobre o tema da geografia eclesiástica portuguesa na Idade Média e das fontes de informação utilizadas para o estudar. Essa descrição inclui, para cada d io-cese, a organização paroquial (com especial referência ao padroado régio) e a distribuição das principais ordens religiosas (incluindo as militares)43.

O ESTADO ACTUAL DOS CONHECIMENTOS sobre a organização do espaço pelas instituições eclesiásticas em Portugal durante a Idade Média não é homogéneo para todas as áreas do território. O menor interesse relativo dos historiadores por determinadas dioceses ou áreas da administração eclesiástica deve-se, com frequência, à escassa informação que conseguem recolher nas poucas fontes dis-poníveis. C o m efeito, se a documentação é abundante para as dioceses de Bra-ga, Porto e Coimbra e menos para as de Lamego e Viseu, já para os territórios diocesanos de Lisboa e Évora ela só é significativa a partir da segunda metade do século XIII e século xiv. Quan to a Guarda e a Silves, as fontes de informa-ção escrita relativas ao período em apreço são insuficientes. Acresce que, para este período e para as dioceses do Cent ro /Sul e Interior, o grosso do trabalho de investigação se fundamenta em documentação avulsa — por ausência de sé-ries semelhantes às existentes para os territórios do N o r t e / C e n t r o e Litoral.

A preocupação de enquadrar no espaço a implantação das instituições eclesiásticas no território português durante a Idade Média não é recente na historiografia portuguesa, encontrando-se pelo menos desde o século x v m em João Baptista de Castro44 . Já no século xx, Fortunato de Almeida, Augus-to Vieira da Silva, Miguel de Oliveira45 e, depois, as monografias pioneiras de Avelino de Jesus da Costa e José Mattoso sobre o território arquidiocesano

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de Braga (até ao século xiv) e os mosteiros da diocese do Por to 4 6 abriram ca-m i n h o a numerosos estudos centrados nesta perspectiva.

Aqueles trabalhos, j u n t a m e n t e c o m os de Maria He lena da C r u z C o e l h o (mosteiro de Arouca , séculos x-xin) , D o m M a u r Cocher i l (mosteiros cister-cienses), José Marques (arquidiocese de Braga, século xv), Iria Gonçalves (Mosteiro de Alcobaça, séculos xiv-xv) e Ana Maria Rodr igues (colegiadas de Torres Vedras, séculos xiv-xv), são raízes impor tantes da historiografia do per íodo medieval n o d o m í n i o da geografia eclesiástica47. Desde o final dos anos 8o, os historiadores da Idade Média portuguesa t êm dado numerosos contr ibutos (muitos dos quais sob a forma de dissertações de mestrado, inéd i -tas) para o esclarecimento progressivo da organização do espaço territorial por tuguês pelas instituições eclesiásticas — seculares e regulares. As insti tui-ções eclesiásticas de alguns territórios diocesanos t ê m merec ido mais atenção.

É o caso das dioceses de Lisboa — c o m os trabalhos de Pedro Barbosa (mosteiros de Alcobaça e Cós , até 1325)48, Manue la Santos Silva (colegiadas de Óbidos) 4 9 , Sílvio C o n d e e Maria de Fátima Botão (colegiada de Santa Maria da Alcáçova de Santarém)5 0 , Joel Mata (mosteiro de Santos)51 , F i lome-na Andrade (mosteiro de Cheias)52 , José Varandas (mosteiro de Almoster)5 3 , Carlos Silva (mosteiro de São Vicente de Fora)54 e Inez Marques (colegiada de São Mar t i nho de Sintra)55 — , C o i m b r a — investigações de Maria José Azevedo Santos (Mosteiro de São Paulo de Almaziva),5 6 Maria do Rosár io M o r u j ã o (mosteiro de Celas de Guimarães)5 7 , Saul Gomes (Mosteiro de San-ta Cruz) 5 8 e R u i Mart ins (mosteiro de Semide)5 9 — e Braga — estudos de Maria Alegria Fernandes Marques (padroado régio e m igrejas e mosteiros)6 0 , Cláudia R a m o s (colegiada de Guimarães)6 1 , Sérgio Lira (Mosteiro de São Si-mão da Junqueira) 6 2 , Maria do Rosár io Bastos (Mosteiro de Santa Maria da Oliveira)6 3 e Ana Barros, Cristina Carvalho e Alexandra Nogue i r a (cabido de Braga)64. Mereceram t ambém a atenção dos investigadores as dioceses do Po r -to, Cidade R o d r i g o (parte portuguesa), T u i (parte portuguesa) e Évora, c o m os trabalhos de Luís Amaral (mosteiro de Grijó)65 , Júlia Castro (mosteiro das dominicanas de Gaia)66, Antón io Balcão Vicente (Mosteiro de Santa Maria de Aguiar)6 7 , Teresa de Jesus Rodr igues (administração de Valença)6 8 e H e r m í -nia Vilar (diocese de Évora)6 9 . Finalmente , u m a referência a trabalhos relati-vos a instituições não confinadas a uma só diocese, abrangendo áreas terr i to-riais mais vastas ou m e s m o a totalidade de Portugal: é o caso das ordens militares — Cristina C u n h a ( O r d e m de Avis)70, Már io C u n h a ( O r d e m de Santiago)71 , Paula Costa ( O r d e m do Hospital)7 2 — e do padroado régio — Bernardo de Sá Nogue i r a (igrejas e mosteiros do padroado régio)7 3 .

Grande parte da informação utilizada pelos historiadores t em sido colhida e m documen tação produzida pelas administrações eclesiástica e régia e p r e -servada nos antigos arquivos dos mosteiros, cabidos, colegiadas e da Coroa .

E m primeiro lugar os cartulários. Estas compilações de documentos (cartu-Iaé) — sobretudo patrimoniais — foram ordenadas pelas instituições eclesiásti-cas, principalmente cabidos e mosteiros, c o m a intenção de garantir que a m e -mór i a dos actos registada apenas e m originais não se perdesse c o m a deterioração destes. Elaborados a partir dos finais do século xi, t êm geralmente grande relevância para o estudo da organização do espaço pelas instituições que p romoveram essa elaboração. C o m a documentação normalmente ordenada por sequência de propriedades, espelhando a natureza orgânica do arquivo sub-jacente, é correcto afirmar-se que cada cartulário permite cartografar o patri-m ó n i o da instituição que o m a n d o u fazer no m o m e n t o da sua elaboração.

D e entre os cartulários refiram-se e m especial os tombos denominados censuais, registos das obrigações de natureza diversa que vinculavam os foreiros à instituição proprietária dos prédios que exploravam. Especialmente impor tan-tes a nor te do D o u r o , permit i ram a Avelino de Jesus da Costa reconstituir e interpretar a organização de uma parte importante do espaço diocesano braça-rense a partir do fim do século xi.

O u t r a impor tan te fon te de in formação é constituída pelas listas de igrejas. A mais impor tan te é a de 1320-1321, publicada por For tuna to de Almeida, ela-borada para avaliar os direitos fiscais per tencentes e m terri tório por tuguês ao

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A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

A geografia eclesiástica portuguesa na época medieval: territórios

diocesanos

fisco pontifical r o m a n o que ir iam ser doados pelo papa J o ã o X X I I a D . Dinis. Este inventário, principal fon te de in formação utilizada pelos historiadores para quantificar o n ú m e r o de freguesias existente e m terri tório por tuguês d u -rante a Idade Média , constitui a base principal do presente estudo7 4 .

Relevantes são t ambém as listas de igrejas do padroado régio, provável-men te elaboradas na chancelaria régia. A mais antiga, do reinado de D . A f o n -so II, é u m simples inventário das igrejas que per tenciam e m cada diocese ao padroado dos reis de Portugal; das restantes, elaboradas nos reinados de D . Afonso III e D. Dinis, constam as nomeações («apresentações») dos párocos a essas igrejas. Estas listas especificam o n o m e do apresentado, o seu estatuto, o n o m e da igreja, a diocese em que se encontrava e a data da apresentação do pároco pelo pa t rono (neste caso o rei) à conf i rmação do bispo. Pe rmi tem, por isso, reconstituir a cartografia da malha administrativa eclesiástica tutelada pela Coroa e m cada diocese. Existentes para os períodos de 1259-1270 e 1279-1321, são mais significativas, em termos qualitativos e quantitativos, para o reinado de D . Dinis, conservando-se possivelmente na totalidade no segundo per íodo. Cons t i t uem a segunda principal fonte de informação deste texto7 5 .

Outra fonte régia de grande relevo para o estudo da geografia eclesiástica portuguesa são as inquirições gerais. Estes inquéritos, conduzidos pelos oficiais da administração régia entre os reinados de D . Afonso II e D. Afonso IV, forne-cem informação valiosa sobre a tutela patronal das igrejas paroquiais, por u m la-do, e os direitos jurisdicionais das instituições eclesiásticas nos territórios dioce-sanos de T u i (administração de Valença), Braga, Por to , Lamego, Viseu, Coimbra e Guarda. Para a diocese de Lisboa, apenas fornecem informação rela-tiva ao patr imónio das ordens militares. Maria Alegria Fernandes Marques utili-zou as alçadas de 1258 para estudar o padroado régio na arquidiocese de Braga.

D e entre a documen tação avulsa, merece referência especial o c o n j u n t o de documen tos judiciais relativos a litígios. Por exemplo , os litígios travados entre as diversas administrações diocesanas sobre os limites fronteir iços das mesmas — sobre tudo durante o século x in . São par t icularmente significativos os con jun tos relativos à diocese da Guarda (com Co imbra , Viseu e Évora), sendo igualmente de destacar os que se re fe rem aos confli tos entre C o i m b r a e Por to (século xn) . Boa parte desta in formação é colhida e m sentenças p ro fe -ridas por juízes apostólicos, c o m poderes delegados pelo Papa para d i r imirem os conflitos que o p u n h a m as diversas dioceses. Litígios t a m b é m den t ro de ca-da diocese: entre bispos e cabidos, pela administração das rendas da diocese; e entre a hierarquia secular diocesana e as comunidades monásticas c o m privi-légios de isenção, no rma lmen te sobre direitos fiscais e jurisdicionais.

ENTRE os FINAIS DO SÉCULO XI e O pr imei ro quartel do século xv, a júr is -dição eclesiástica no terri tório senhoreado por el-rei de Portugal e do Algar-ve dividia-se por 13 dioceses: T u i , Orense , Braga, Por to , Co imbra , Viseu, Lamego, C idade R o d r i g o , Guarda, Badajoz, Lisboa, Évora e Algarve (Silves).

A exposição que se segue percorre a totalidade do terr i tório medieval por tuguês , de nor te para sul. Analisa as fronteiras de cada diocese c o m as vi -zinhas, o ag rupamento das freguesias (incluindo, sem diferenciação, igrejas paroquiais e particulares) no inter ior de cada espaço diocesano, a presença do padroado régio nos diversos bispados (indicadora da prox imidade entre o cie-ro ao serviço da C o r o a e a administração eclesiástica de cada diocese) e, final-men te , a importância relativa das ordens religiosas ( incluindo ordens milita-res) e m cada u m deles.

T U I ( P A R T E P O R T U G U E S A )

L i m i t e s — Até aos finais do século xiv, o terr i tório do En t re M i n h o e Lima per tenceu à diocese de T u i , apesar de integrado no senhor io de el-rei de Portugal . O s seus limites naturais são perfeitos: oceano Atlântico a oeste, rio M i n h o a norte , rio Lima a sul. A leste a fronteira c o m o terr i tório galaico da diocese tudense — do senhor io de el-rei de Castela e Leão — era quase exclusivamente definida na região de Castro Laboreiro por afluentes dos rios M i n h o e Lima.

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A D O E S P A Ç O

A historiografia refere-se-lhe c o m o administração (ou comarca eclesiásti-ca) de Valença — principal centro político da região. Segundo A. H . Oliveira Marques, «devido às consequências do Grande Cisma do Oc iden te e do Ion-go confli to polí t ico-mili tar c o m Castela», e m 1381 o clero elegeu os seus p r ó -prios administradores eclesiásticos «separando-se de facto» da diocese de Tui 7 6 . Já fora do âmbi to cronológico proposto para este artigo, e m 1444, os rendi -mentos eclesiásticos do território ( juntamente c o m os de C a m p o Maior e O l i -vença, antigos territórios da diocese de Badajoz) seriam anexados à r ecém--criada diocese de Ceuta , to ta lmente desprovida de meios de subsistência. E m 1512, a administração de Valença foi finalmente integrada na arquidiocese de Braga. R e c o r d e - s e que o território se encontrava, até 1393, indirectamente de -penden te do arcebispo bracarense, metropol i ta do bispo de Tu i .

Fregues ias m e d i e v a i s — Segundo Oliveira Marques , o terri tório estava dividido e m cerca de 180 freguesias, agrupadas e m seis zonas maiores7 7 .

A lista de 1320, publicada por For tuna to de Almeida7 8 , indica-nos os n o -mes dessas zonas e das freguesias que existiam e m cada u m a delas. A oeste, abrangendo a costa atlântica, a terra de Viana (onde encont ramos , entre o u -tras, as igrejas de Viana, Caminha , Afife, Ancora e os mosteiros de São Salva-dor da T o r r e e Cabanas). A nor te , rio M i n h o acima, situavam-se dois grupos de freguesias: o arcediagado de Cerveira (incluindo, entre outras, as igrejas de Cerveira, M o n ç ã o , Valença, Coura , Ruivães e Silva, b e m c o m o os mosteiros masculinos de Sanfins de Friestas, Ganfei e Arga e o f emin ino de Valbom) e, depois, a terra de Valadares (igrejas de Castro Laboreiro, Melgaço, Penso, Porta, e mosteiros de Paderne e Fiães, entre outros). A sul, subindo o rio Li-ma, o arcediagado de Labruja (igrejas de Labruja, Calheiros, Arcozelo, R i o Frio, Estorãos, Bert iandos, e moste i ro de Re fo jo s de Lima, entre outros), te r -

A Mapa das dioceses medievais portuguesas.

Portal da Igreja Matriz de Viana do Castelo (século xv). F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

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A C O N S T R U Ç Ã O D E U M A I G R E J A

ra de Valdevez (igrejas de Valdevez, Abo im, Giela e Soajo e mosteiros de Miranda e Ermelo , entre outros) e terra de Távora (igrejas de Santa Maria, São Mar t i nho e Santa Cristina de Távora, Souto e Padreiro)7 9 .

A influência do padroado régio era significativa, e m articulação c o m o cie-ro de Tu i . N a transição entre os séculos XIII e x iv o rei era padroeiro nesta re-gião dos mosteiros de Santa Maria de Ermelo , Arga, Sanfins de Friestas, Gan -fei, São Salvador da Tor re , São João de Cabanas e Santa Maria de Miranda de Valdevez, ou torgando a eleição dos abades feita pelos respectivos conventos e, c o m o era de regra, apresentando-os à confirmação do bispo de Tui 8 0 .

Duas das cerca de 8o apresentações a igrejas do padroado régio no Ent re M i n h o e Lima entre 1279 e 1321 evidenciam ligações institucionais e pessoais dos apresentados ao clero de T u i e à administração régia81.

O r d e n s re l ig iosas — O s mosteiros existentes na parte por tuguesa da diocese de T u i correspondiam, na quase totalidade, a comunidades fundadas no século xi que adoptaram os costumes da regra benedi t ina reformada por C luny mas não per tenc iam à o r d e m do moste i ro borgonhês . C o m o refere José Mat toso, ao contrár io do que se observou nas dioceses de Braga e Por to , a larguíssima maioria dos mosteiros criados na região da administração de Va-lença e m data anter ior a 1100 manteve-se para além de 120082.

Os mosteiros de Paderne (Melgaço) e R e f o j o s do Lima (Ponte de Lima) tornaram-se canonicais, r ecebendo comunidades de cónegos regrantes de Santo Agost inho, antes do final do século XII. O pr imei ro fora antes u m c o n -ven to femin ino .

T a m b é m localizado p r ó x i m o de Melgaço, o ant igo mosteiro bened i t ino de Santo André de Fiães transitou para O r d e m de Cister no final do sécu-lo XII83. E m b o r a D o m M a u r Cocher i l o identif ique c o m o cisterciense, o mosteiro de E rme lo ainda pertencia ao padroado régio e m 1305.

E m 1320 o padroado da igreja de R i o Frio, no arcediagado de Labruja, era da O r d e m de Cristo.

ORENSE Localizado a nor te do arcediagado bracarense de Barroso, o p e q u e n o ter -

ritório de T o u r é m , qual espigão encravado e m terras galegas, «chegou a estar incorporado na diocese de Orense»8 4 .

Nas listas das apresentações de párocos às igrejas do padroado régio d u -rante os reinados de D . Afonso III e D . Dinis f iguram várias nomeações à Igreja de São Pedro de T o u r é m (datadas de 1248 a 1270 e de 1289 a 1319), c o -m o parcialmente per tencente aos reis de Portugal e integrada no arcediagado de Lima da diocese de Orense 8 5 .

E m 18 de O u t u b r o de 1284, o rei exercia o direito de padroado inerente à posse da terça parte da igreja de Ruivães , n o m e a n d o para ela c o m o pároco o clérigo Mar t im Rodr igues . Esta igreja surge igualmente referida c o m o per -tencente à diocese de Orense 8 6 .

BRAGA L i m i t e s — Desorganizada a administração eclesiástica após a conquista

muçu lmana de 711, a diocese de Braga só voltaria a ser restaurada e m 1070, pelo bispo D . Pedro . Para esta restauração contr ibuiu decis ivamente a ext in-ção da dinastia asturiana-leonesa e m 1037, u m a vez que os reis de O v i e d o e Leão haviam favorecido a manu tenção de Braga sob tutela, pr imeiro , de Lu -go (até à primeira me tade do século x) e, depois, de I r i a /Compos te la . C o m o most rou Avelino de Jesus da Costa, o bispo D . Pedro foi o grande impuls io-nador da organização da diocese, trabalho esse que seria con t inuado pelo seu sucessor, São Geraldo8 7 . Posta e m perigo a autoridade dos arcebispos entre a mor t e do conde D. Henr ique e o ascenso de D. Afonso Henr iques (1112--1128), devido às pressões exercidas pelo arcebispo de Compos te la e barões galegos n o sentido de reintegrar o terri tório portucalense na Galiza, a partir da «primeira tarde portuguesa» não mais seria quest ionada a preeminênc ia bracarense e m terri tório português 8 8 .

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O terri tório diocesano de Braga era, a seguir ao de Évora, o mais extenso das dioceses portuguesas. Se começarmos pela costa atlântica, a arquidiocese iniciava o seu l imite na foz do Ave e seguia até à foz do Lima, subindo este rio até u m p o u c o acima do Lindoso. N o início do século XII, verifica-se que a diocese «se estendia para além de Verin, seguindo aprox imadamente uma linha recta traçada de u m p o n t o situado u m p o u c o a nor te do Lindoso até às margens do rio Rabaçal». O confl i to c o m o bispo e cabido de Orense sobre estas terras, denominadas de Baronceli, manter-se- ia durante o século XII. A o longo do século x m , «a jur isdição de Braga sobre este terr i tório seria substi-tuída pela do Cab ido de Orense»8 9 .

Mais para leste, Braga disputou c o m a diocese de Astorga a região do ar-cediagado de Aliste, si tuado n o ex t r emo nordeste de Trás -os -Montes na re -gião a sul de Puebla de Sanabria. N o Tra tado de Alcanises, celebrado entre o rei D . Dinis e a regência de Castela e Leão (na menor idade do rei Fe rnan-do IV), eram def ini t ivamente resolvidos «os diferendos c o m os bispos de Orense e Astorga por causa dos territórios de Baronceli e Aliste»90. Nes te trata-do ficaria t a m b é m para sempre marcada a restante fronteira terrestre c o m o reino de Leão. Depois , a fronteira leste da arquidiocese c o m Samora e Cidade R o d r i g o era formada pelo rio D o u r o até Barca de Alva. Daí até à conf luên-cia do D o u r o c o m o C o r g o , a linha fluvial duriense cont inuava a marcar os limites diocesanos, c o m Cidade R o d r i g o (parte portuguesa) e c o m Lamego.

C o m e ç a v a m aqui os limites c o m a diocese do Por to , entre as terras de Panóias (Braga) e Penaguião (Porto, ao longo do Corgo) . Depois , a partir da margem direita do C o r g o , a fronteira inflectia para oeste até ao rio Tâmega , na região de Amarante , ao longo da serra do Marão , dando a t ransmontana terra de Panóias lugar à «minhota» terra de Gestaçô (freguesias de Carne i ro e Candemil ) , do lado bracarense. D o lado por tuense , de leste para oeste, à terra de Penaguião (freguesias de Fontes e Medrões) seguiam-se, sucessivamente, a terra de Baião e de Gouveia e Benviver (mosteiro de Jazente).

Passado o T â m e g a para a margem direita, o limite descia até Santo Isidro e, daí, seguia até ao rio Ave. D o lado de Braga ficavam, por exemplo , C o n s -tance, Caíde de R e i , Carvalhosa, os mosteiros de São Miguel de Vilarinho e Ror i z , e Rebordões , nas zonas definidas pela lista de 1320 c o m o terras de Sousa, de Ferreira e de Negrelos. D o lado do Por to , nas terras de M e i n e d o , Penafiel de Sousa, Aguiar de Sousa e Refo jos , f icavam São M a m e d e de R e -cezinhos, o moste i ro de Bustelo, F reamunde , Santa Eulália de Paços de Fer-reira, e os mosteiros de Santo Tirso e de M o n t e Córdova 9 1 . A linha divisória atingia o rio Ave na região entre Santo Tirso (Porto) e R e b o r d õ e s (Braga).

O rio Ave estabelecia a parte final do limite entre a arquidiocese de Braga (arcediagados de V e r m o i m e Faria) e a diocese do Por to (terras de R e f o j o s e da Maia) até ao mar.

Fregues ias m e d i e v a i s — José Marques subl inhou já a fluidez (e p r o -gressiva atomização) das áreas da administração eclesiástica entre meados do século XII e meados do século x m e a falta de correspondência entre estas d i -visões e as da administração régia no m e s m o terri tório (julgados e terras)92.

O s limites acima traçados mos t ram c o m o o terri tório diocesano de Braga era vastíssimo, fazendo fronteira c o m nada menos que 7 dioceses: T u i (parte portuguesa), Orense , Astorga, Samora, C idade R o d r i g o (parte leonesa e p o r -tuguesa), Lamego e Por to . Ne le se encont ravam e m 1320 entre 950 e 1000 paróquias, divididas e m 38 grupos9 3 .

U m a sequência de montanhas (serras de Peneda , Gerês, Cabreira, Alvão e Marão) separavam a região atlântica minho ta do interior t r ansmontano da diocese, def in indo e m cada u m dos «lados» da linha divisória áreas b e m de -marcadas da administração diocesana.

D e nor te para sul, a fronteira entre o espaço m i n h o t o e t ransmontano da arquidiocese era assim definida: do lado do M i n h o , n o Ent re H o m e m e C á -vado por terra de B o u r o e n o Ent re Cávado e Ave por terra de Vieira; do la-do de Trás -os -Montes , po r terra de Barroso. A linha separadora era formada pelas serras da Peneda e Gerês (Bouro-Barroso) e Cabreira (Vieira-Barroso).

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Seguidamente, da parte minhota a terra de Basto (freguesia de R i o Douro) , confinava primeiro c o m Barroso (freguesia de Cambezes), na margem direita do Tâmega; depois, na margem esquerda, com terra de Aguiar de Pena, da qual se encontrava separado pela serra de Alvão e, ainda, com a terra de Pa-nóias. A sul de Basto, a terra de Gestaçô também lindava com terra de Panóias pelo Marão, terminando assim a fronteira entre o M i n h o e Trás-os--Montes . A localização geográfica da vasta terra de Basto, em ambas as mar-gens do Tâmega, tornava-a n u m eixo de articulação entre a zona minhota e transmontana da diocese, certamente importante para a administração dioce-sana. Mas, tal como hoje, a rota principal entre Braga e Panóias fazia-se por Guimarães, Felgueiras e Amarante (Gestaçô).

Utilizando os censuais de Entre Lima e Ave, das terras de Guimarães e de Montelongo, da terra de Panóias, do couto de Braga e terra de Faria, do sé-culo xi, o censual do cabido de Braga (da segunda metade do século xiv), a di-visão dos arcediagados feita em 1145 pelo arcebispo D . J o ã o Peculiar (e a con-firmação de 1188, pelo arcebispo D. Godinho Fernandes), todos publicados por Avelino de Jesus da Costa, a lista de 1320-1321, e a divisão proposta por José Marques para meados do século xv, procuraremos reconstituir o m o d o como a administração eclesiástica organizou o espaço da diocese nos séculos XII a xiv. Dada a extensão do território, separá-lo-emos em M i n h o e Trás-os-Montes.

Mais de quinhentas das quase 1350 apresentações de igrejas constantes das listas do padroado régio do reinado de D. Dinis (1279-1321) dizem respeito a cerca de 200 paróquias da arquidiocese de Braga94. Compara t ivamente aos restantes territórios diocesanos, a influência do padroado régio na arquidioce-se era grande: em termos de n ú m e r o de paróquias verificamos que, na vira-gem do século x m para o xiv, correspondia a cerca de u m quinto.

A rigorosa análise das inquirições de 1258 efectuada por Maria Alegria Fernandes Marques indica que cerca de 20 % das paróquias bracarenses eram do padroado régio, ora pelo facto de o respectivo padroado pertencer (total ou parcialmente) ao rei, ora por se localizarem em herdades foreiras do rei e se dizerem realengas (sobretudo em Trás-os-Montes) . Valor percentual grosso modo aproximado, portanto9 5 .

E m meados do século xv, o padroado régio na arquidiocese estava redu-zido a 60 igrejas — ou seja, o equivalente a cerca de 6 % das cerca de 1050 paróquias então existentes96.

Freguesias medievais — Minho Na parte minhota do território arquidiocesano bracarense, a lista de 1320

indica cerca de 750 paróquias repartidas por 25 áreas da administração eclesiás-tica medieval97. As vinte áreas situadas entre os rios Lima e Ave/Vizela pare-cem orientar-se em função dos rios que correm para o Atlântico. A sul do Vi-zela, as terras de Negrelos e Ferreira teriam resultado da formação do limite fronteiriço com a diocese do Porto, enquanto que as terras de Sousa, Basto e Gestaçô se enquadravam nas bacias do rios Sousa e Tâmega (as duas últimas).

N o Minho , o n ú m e r o de freguesias do padroado régio era significativo em poucas regiões, p redominando o padroado particular: de povoamen to mais antigo, o eclesiástico da zona minhota ficara definido antes de se iniciar o processo de afirmação do poder régio98 .

E N T R E LIMA E C Á V A D O Durante a Idade Média, a administração eclesiástica foi gradualmente di -

vidindo as cerca de 240 freguesias desta região em nove zonas99. Subindo o rio Lima, encontrava-se primeiro o Entre Lima e Neiva da di -

visão dos arcediagados de 1145, denominado em 1320 terra de Aguiar de N e i -va. Abrangia então a zona entre os rios Lima e Neiva e parte da divisão ad-ministrativa régia de Santo Estêvão de Ribalima1 0 0 , mas integrava t ambém algumas freguesias até ao Cávado (sobretudo correspondentes a mosteiros), sobrepondo a sua área de cobertura às do arcediagado de Neiva e do arce-diagaâo de Entre Cávado e Neiva . Das cerca de 40 freguesias que f iguram no catálogo-lista de 1320, constam, por exemplo, os mosteiros de São R o m ã o

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do Neiva , Carvoei ro , Banho , Pa lme e M a n h e n t e (este ú l t imo ext in to n o sé-culo x v e reduzido a igreja paroquial) e as igrejas de São Tiago de Castelo de Neiva , São T iago de Anha , São Mar t i nho de Vila Fria, Santo André de V i t o -rino, São Migue l de Facha, Santa Eulália de Panque , São Ped ro de Deão , Santa Maria de Barco, Santa Leocádia de Geraz, Santa Mar inha de More i ra e São M a m e d e de Deocris te .

A montante , hoje centrada na vila de Ponte de Lima, surgia a terra do Prior do século xi, depois denominada terra de Penela, que abrangia cerca de 25 igre-jas e mosteiros, alguns dos quais de Santo Estêvão de Ribalima. Entre outras pa-róquias, refiram-se os mosteiros femininos de Vitorino das Donas e Cerzedelo e as igrejas de Santa Maria de Rebordões , São Pedro de Calvelo, São T o m é de Correlhã, São Mar t inho de Gandra, Santa Maria de Ponte de Lima, São Miguel de Gondufe , Santa Eulália de Godinhaços, São Salvador do Souto, Santa Cruz de Ribalima, Santa Maria de Duas Igrejas e São Pedro de Goães.

C o n t i n u a n d o a subir o rio Lima pela m a r g e m esquerda, a últ ima divisão administrativa, até Lindoso, era o pr imi t ivamente d e n o m i n a d o arcediagado de Vade (século XII) depois terra da N ó b r e g a (provavelmente apropr iando a designação da administração régia, articulada e m to rno do Castelo da N ó b r e -ga). E m 1320, entre as cerca de 30 paróquias contabilizadas para esta região (hoje centrada e m P o n t e da Barca), encont ravam-se os mosteiros de Vila N o v a de Muía , São M a r t i n h o de Crasto e Bravães e as igrejas de São T o m é de Vade, São Ped ro de Vade, São Ped ro de Codesseda, São M a r t i n h o de Pa-ço Vedro (de Magalhães), Santa Maria de Covas, São Salvador da Nóbrega , São Tiago de Vila Chã , Santa Maria de Abo im, São Vicente de Germil , São Mar t inho de Britelo, Santa Eulália de R u i v o s e, n o ex t r emo oriental da terra, São M a m e d e de Lindoso.

Imediatamente a sul de terra da Nóbrega , descendo ao longo do rio H o -

Igreja de São Salvador de Bravães.

F O T O : JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/ /ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

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m e m até terra de Prado, estendia-se a longa e estreita faixa conhecida c o m o Regalados no século xi (designação mantida pela administração régia), arcedia-gado de Santo An ton ino (de Barbudo) no século XII e terra do D e a d o e m 1320 e e m diante. Entre as cerca de 45 paróquias do território, t endo por centro Vi-la Verde, ficavam o Mosteiro de São Salvador de Valdreu e as igrejas de São João de Couciei ro , São Miguel do Prado (de Regalados), Santa Eulália de Vila Verde, Santa Maria de Barbudo, Santa Marinha de Oriz , São M a m e d e de Gonderiz , São Julião de Lajes, Santa Maria de Turiz, São Paio de Mós, São T o m é de Lanhas, São João de Atães, São Tiago de Atiães, São M a m e d e de Marrancos, Santa Maria de Freiriz e São Salvador de Portela das Cabras.

D o ou t ro lado do rio H o m e m , demarcado por este e pelo Cávado , ficava u m dos mais conhecidos «entre-rios» do M i n h o : o arcediagado de Ent re H o -m e m e Cávado, assim def inido nas duas divisões dos arcediagados, de 1145 e 1188. E m 1320, po rém, já se havia subdividido e m Ent re H o m e m e Cávado e terra de Bouro .

Ent re H o m e m e Cávado abrangia a parcela do terr i tório mais p róx ima da confluência dos rios. Ent re as cerca de 20 freguesias avaliadas e m 1320, esta-vam o moste i ro de R e n d u f e e as igrejas de São Salvador de Orneias, São M i -guel de Fiscal, São Mar t i nho de Carrazedo, Santa Maria de Caires, São Salva-dor de Amares, São Miguel do Por to , São Paio de Sequeiros, São Pedro de Figueiredo e São Paio de Besteiros.

A montante , fazendo a fronteira com o arcediagado t ransmontano do Bar-roso nas serras da Peneda e Gerês, o entre-rios passara entretanto a designar-se terra de Bouro , por ter c o m o centro principal o mosteiro cisterciense de Santa Maria de Bouro . Entre as cerca de 20 paróquias levantadas, refiram-se São João de C a m p o , São Salvador do Souto , São J o ã o de R i o Caldo, São Tiago de C h a m o i m , São J o ã o de Balança, Santa Mar inha de C h o r e n c e , São Paio de Carvalheira, São Paio de Ceramil e Santa Mar inha de Valdosende.

N a restante zona do Ent re Lima e Cávado , a sul do Neiva e a oeste do rio Febros, as divisões dos arcediagados de 1145 e 1188 indicam duas zonas: Ent re Cávado e Ne iva e arcediagado de Neiva 1 0 1 . E m 1320, a região dividia--se e m três áreas: o En t re Cávado e Neiva passara a denominar - se Mes t re -Es-colado, c o m o sugere José Marques1 0 2 , a terra de T a m e l autonomizara-se c o -m o zona da administração eclesiástica e o arcediagado de Ne iva abrangia a maior parte deste terri tório. T o d o s os mosteiros destas três sub-regiões sur-giam agrupados à terra de Aguiar de Neiva , já atrás referida.

En t r e as cerca de 20 freguesias da terra do Mestre-Escolado, situada e m to rno da vila de Barcelos e do mosteiro de Palme (agrupado a Aguiar de Neiva), surgem as igrejas de Santa Maria de Barcelos, Santa Logriça (Santa Lucrécia de Aguiar), Santa Maria de Torgosa , Vila Frescainha (São Simeão, São Mar t i nho e São Pedro) , São Tiago de Arcozelo, Santa Eulália de Faro, São Migue l de Gemeses, São Ped ro de Fragoso e São Mar t i nho de Escariz.

A pequena terra de Tamel , centrada n o moste i ro de M a n h e n t e ( t ambém agrupado a Aguiar de Neiva), abrangia cerca de 15 freguesias em 1320, entre as quais T a m e l (São Veríssimo e Sanfins), Santa Maria de Galegos, Santa M a -ria de Lijó, São M a m e d e de Arcozelo, São Mar t i nho de Alvito e São João de Vila Boa (de Tamel) .

Restava o agrupamento de freguesias correspondente ao arcediagado de N e i -va, geograficamente heteróclito porque entrecruzado c o m as terras de Aguiar de Neiva, Penela, Tamel e Mestre-Escolado e que se estendia desde a costa atlântica (São Miguel de Cepães, ou das Marinhas) até quase ao Lima (São Salvador de Ginzo). Entre as cerca de 30 freguesias aí avaliadas e m 1320, encontram-se igrejas como São Paio de Perelhal, São Pedro de Alvite, Santa Marinha de Alheira, Santa Eulália de Cabanelas, São Salvador de Regaúfe, Santa Maria de Abade, Santa Marinha de Foijães, São Paio de Antas, Santa Maria de Geraz, Santa Maria de Quintiães, São Salvador de Cervães e São Mart inho de Aborim.

N o Ent re Lima e Cávado, o padroado régio tinha uma presença p e q u e n a e dispersa, excepto e m terra de Aguiar de Neiva. Nas terras do D e a d o e de Entre H o m e m e Cávado essa influência era nula, ou quase nula1 0 3 . Talvez por esta razão terra de B o u r o se tivesse au tonomizado e m relação a En t re

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H o m e m e Cávado , u m a vez que aí encont ramos três paróquias realengas: São Tiago de C h a m o i m , Santa Mar inha de C h o r e n c e e São João de C a m p o .

E N T R E C Á V A D O E AVE A divisão dos arcediagados de 1145 most ra-nos a administração eclesiástica

desta região dividida e m quat ro grandes áreas: arcediagado de Faria, arcedia-gado de V e r m o i m , Archidiaconatum de in circuitu Bracare (situado e m to rno da cidade e abrangendo uma área superior à do couto) e arcediagado de L a n h o -so. As cerca de 270 freguesias indicadas na lista de 1320 encont ravam-se dis-tribuídas p o r oi to terras: Faria, Vermoim 1 0 4 , Penafiel (de Bastuço), c o u t o de Braga, Chanf rado , Lanhoso, Pedralva e Vieira.

A vasta terra de Faria t inha por l imite a costa atlântica entre os rios Cáva -do e Ave a oeste, o rio Cávado a nor te , os rios Ave e Este, a sul. A leste, Fa-ria lindaria d i rec tamente c o m o arcediagado de Braga, a princípio, e, mais tarde, c o m a terra de Penafiel de Bastuço, p resumive lmente após a a u t o n o -mização desta e m relação ao cou to de Braga. En t re as cerca de 60 paróquias da lista de 1320, contam-se , po r exemplo , os mosteiros de Santa Clara de Vila do C o n d e e de São Pedro de Rates e as igrejas de Santa Eulália de R i o C o -vo, Santa Maria de N ine , São Miguel de Carreira, São Salvador de Nabais, São Salvador de Minhotães , São Lourenço de Alvelos, São Miguel de Arcos, São Salvador de Arnoso, São Migue l de Argivai, São Tiago de Vila Seca, São Migue l de Laundos, São Tiago de A m o r i m , São R o m ã o de Fon te Cober ta , São Salvador de Fornelos, Santa Maria de Góios e São Salvador de Crastelo.

A terra de V e r m o i m localizava-se a or iente de terra de Faria, além do rio Este. O limite meridional e oriental era fo rmado pelo rio Ave, que a separava pr imei ro da diocese do Por to e, depois, das terras de Ent re Ambas-as-Áves e Guimarães. N a fronteira nor te surgiria a terra de Penafiel (de Bastuço), de -pois de au tonomizada c o m o área da administração eclesiástica. A noroeste , V e r m o i m feria na terra do Chan t r ado — terra de Sande no século XII105. M e -nos vasta mas mais densamente povoada que a terra de Faria, t inha e m 1320 cerca de 70 paróquias. En t re elas os mosteiros de Oliveira, Landim, São Si-mão da Junque i ra , R e q u i ã o e Sande (os dois últ imos extintos no século xv, sendo reduzidos a igrejas paroquiais) e as igrejas de São João de Brito, São Mar t i nho de Leitões, São Tiago de R o n f e , São Tiago da Carreira, Santa M a -ria de V e r m o i m , Santa Maria de Abade (de Ve rmoim) , Santa Maria de Vila N o v a (de Sande), São Miguel do M o n t e , São Migue l de Ceide , Sanfins de R i b a de Ave, São C o s m e do Vale, Santo Adrião (de Vila N o v a de Famali-cão), Santa Maria de Bagunte , Santa Leocádia de Fradelos, São Salvador de Vilarinho, São Salvador de Lagoa, Santa Eulália de Palmeira, São Tiago de Antas e São Cris tóvão de Cabeçudos .

A nor te de terra de V e r m o i m , até ao Cávado , localizava-se a terra de P e -nafiel (de Bastuço), abrangendo as freguesias do antigo terr i tório do cou to de Braga out rora lindantes c o m terra de Faria. Ent re as cerca de 35 paróquias si-tuadas nesta região e m 1320, são de referir os mosteiros da Várzea e Vilar de Frades (ambos extintos e reduzidos a igrejas paroquiais n o século xv) e as igrejas de Bastuço (São Paio, São J o ã o e Sanfins), Santa Maria de Arnoso, São M a m e d e de Cesures, Santa Cristina de Algoso, São T iago de Encourados , São T iago de Cequiade , São Salvador de Regoe la , São Jorge de Airó, São Salvador de Tebosa , São P e d r o de Adães, São T i a g o de Priscos, São Ju l ião de Paços, São Miguel de C u n h a , Santa Maria de Sequeira, São Lourenço de Celeiros e São Pedro de Sá.

A cidade e o cou to de Braga ficavam no coração do Ent re Cávado e Ave, mais p róx imos do pr imei ro rio. E m 1320, entre as cerca de 40 paróquias abrangidas pelo antigo Archidiaconatum de in circuitu Bracare encont ravam-se os mosteiros de Tibães, Adaúfe, Vimiei ro e Lomar (com excepção do pr imeiro , todos extintos e reduzidos a igrejas paroquiais no século xv) e as igrejas de São Paio e São Pedro de Mere l im, São Frutuoso de Montél ios , São Migue l de Foroços, São Pedro de Maximinos , São Vítor , São J o ã o do Souto , São Mar t i nho de D u m e , Santa Maria de Panóias, Santa Maria de Mir , São João de Semelhe, Santo Adrião de Padim, Santa Maria de Palmeira, Este (São Si-

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meão, São Pedro e São Mamede) , São Miguel de Gualtar, Santa Eulália de Tenões, Santa Maria de Lamaçães e São João de Nogueira .

N a extrema noroeste da terra de Vermoim, além de terra de Sande, con -f rontando c o m o cou to de Braga, situava-se a terra do C h a n t r a d o — consti-tuída a partir de parte das paróquias da antiga terra de Sande. Centrada em Briteiros, tinha pouco mais de uma dezena de freguesias, entre as quais São Salvador, Santo Estêvão e Santa Locaia (Santa Leocádia) de Briteiros, Santa Cristina de Longos, São Clemente de Sande, São Cro io (Cláudio) de Barco e São T o m é de Caldelas.

A restante zona do Entre Cávado e Ave era formada no século xu pelo ar-cediagado de Lanhoso, tendo juntas as igrejas de Sande (integradas nas terras de Vermoim e do Chantrado), de Penafiel de Soaz, Pedralva e Vieira. E m 1320, já as duas últimas circunscrições se haviam autonomizado em relação a Lanhoso.

Localizada entre as terras do Chantrado e de Lanhoso e o couto de Braga, a pequeníssima terra de Pedralva tinha origem nas antiquíssimas encomunhações de Pratu Alvari, sendo constituída por apenas sete freguesias, entre as quais C o -dessosa, Sobreposta, São T o m é de Lageosa e São Salvador de Pradalvarinho.

Terra de Lanhoso ficava na margem esquerda do rio Cávado. E m 1320, incorporadas as igrejas de Penafiel de Soaz, confrontava a norte c o m as terras de Entre H o m e m e Cávado e de Bouro , na margem direita do rio, a oriente com terra de Vieira, a sudeste c o m o rio Ave (terras de Guimarães e M o n t e -longo na margem esquerda do rio), a sul c o m terras do Chant rado e de Pe -dralva e, finalmente, a oeste c o m o couto de Braga. Entre as cerca de 20 fre-guesias que então lhe pertenciam, refiram-se São Lourenço de Navarra, Santa Maria de Moure , Santa Lucrécia de Algeriz, Santa Eulália de Crespos, São Mar t inho de Aguas Santas, São João de Re i , São Mar t inho de Monçul , Santo Estêvão de Geraz, São Tiago de Lanhoso e São Paio de Pousada.

A montante , o Ent re Cávado e Ave terminava c o m a terra de Vieira, já nos contrafortes da serra da Cabreira — fronteira c o m a transmontana terra (ou arcediagado) de Barroso. Entre as vinte e três paróquias que a formavam em 1320, refiram-se o mosteiro de Fonte Arcada (reduzido a igreja paroquial no século xv) e as igrejas de São Miguel de Taíde, São João e São Paio de Vieira, São Salvador de Roças , São Julião de Tabuaças, Santo Estêvão de Cantelães e São João das Covas.

O rei era u m padroeiro influente na região ocidental do Entre Cávado e Ave — terras de Faria, V e r m o i m e Penafiel de Bastuço — , apresentando os párocos em cerca de 25 igrejas. Talvez Penafiel de Bastuço se tivesse consti-tuído e m área administrativa au tónoma relativamente ao couto de Braga por essa mesma razão: do antigo Archidiaconatum de in circuito Bracare só em Bastu-ço existiam paróquias do padroado régio (Sanfins de Bastuço, São Miguel de Cunha , Santa Cristina de Algoso e São Salvador de Regoela) no reinado de D. Dinis.

E m contrapartida, na região central desta zona — terra do couto de Bra-ga, e vizinhas terras do Chant rado e de Pedralva — não encontrámos qual-quer referência a apresentações régias.

E N T R E AVE E VIZELA As cerca de 95 paróquias deste conhecido «entre-rios» minho to , geral-

mente designado na Idade Média como Entre Ambas-as-Aves («Antre A m b a -las Aves»), surgem agrupadas nas divisões do século XII em três zonas, de j u -sante para montan te dos rios: as igrejas de Entre Ambas-as-Aves (stricto sensu), o arcediagado de Guimarães e as igrejas de Mon te longo (já arcediagado e m 1188). Monte longo , a zona mais a montante , entestava com terra de Vieira, a norte, e terra de Basto, a leste. E m 1320, encontra-se a mesma divisão.

A terra de Entre Ambas-as-Aves, situada no t roço imediatamente a m o n -tante da confluência entre os rios Ave e Vizela, tinha em 1320 cerca de u m a dezena de freguesias106.

E m terra de Guimarães (arcediagado de Guimarães nas divisões de 1145 e 1188), centrada na importantíssima colegiada/mosteiro da vila do mesmo n o -me, existiam em 1320 quase 70 freguesias. Entre elas, as correspondentes aos

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mosteiros de Costa, São T o r q u a t o e Sou to (os dois últ imos reduzidos a igre-jas paroquiais no século xv) e às igrejas de São R o m ã o de Arões, Santa Eulá-lia de Golães, São Ped ro de Polvoreira, São Mar t inho de Candoso , São Sal-vador de Pinheiro 1 0 7 , Santa Maria de Inflas, Santa Maria de Infantas, São Miguel e São João de Caldas (de Vizela), Santa Eulália de G o n t i m , Santa E u -lália de Fermentões , Santa Eulália de Nespereira, São T o m é de Aveção, San-to Estêvão de Urgeses, São Paio de R i b a de Vizela, São Pedro de Freitas, São Jul ião de Cerafão, Santa Maria de Sobradelo e São João de Ponte .

N a secção superior do Ent re Ave e Vizela, l indando c o m terra de Basto, ficava a terra de M o n t e l o n g o (hoje Fafe), na qual se agrupavam cerca de quinze paróquias. Ent re elas, Santa Ovaia Antiga (Santa Eulália de Fafe), San-ta Eulália de R e v e l h e (em tempos anteriores ao século x iv conhecida p o r Santa Eulália de Gamazãos), Santa Maria de Ant ime , São T o m é de Estorãos, São M a r t i n h o de More i ra de R e i , São Gens de M o n t e l o n g o e Santa C o m b a de Fornelos (Monte longo) .

O Ent re Ave e Vizela — pr incipalmente as terras de Guimarães e M o n t e -longo — era decer to o cent ro administrativo do padroado régio na região minho ta , senão m e s m o na arquidiocese. Aqui o rei era padroei ro da m u i t o poderosa colegiada de Santa Maria de Guimarães, dos mosteiros da Costa e São T o r c a t o e de numerosas igrejas — directamente , ou anexas à colegiada.

E N T R E AVE E T Â M E G A A região que abrangia R i b a de Vizela e Sousa constituía a fronteira te r -

restre c o m a diocese do Por to a oeste do Tâmega: ia deste rio até ao Ave e ao Vizela, atravessando o t roço in te rmédio da bacia do rio Sousa. A nor te , subia até terra de Basto. Surge na divisão dos arcediagados de D . J o ã o P e c u -liar (1145) separada apenas e m duas partes: «Ecclesiis qui sunt in R i p a Avicelle a Vilarino usque Burgaanes» e arcediagado de Sousa108. N a lista de 1320 a pr i -meira é denominada terra de Negrelos e a segunda terra de Sousa, surgindo entre ambas terra de Ferreira. Por conseguinte , três terras.

Na fronteira c o m a diocese do Porto, terra de Negrelos (ou as antigas «Igre-jas de R iba Vizela») era constituída por uma dezena de freguesias. Entre elas, os mosteiros canonicais de São Miguel de Vilarinho e São Pedro de Ror iz e as igrejas de São Tiago de Rebordões , São Tiago de Burgães, São Mar t inho do C a m p o e São M a m e d e de Negrelos. D o lado de lá da fronteira, e m território do Porto, situavam-se os mosteiros de Santo Tirso e M o n t e Córdova.

E m seguida, sempre j u n t o à linha de fronteira, ficando do lado da diocese por tuense as actuais vilas de Paços de Ferreira e F reamunde , encontrava-se terra de Ferreira c o m apenas seis freguesias: São Tiago de Carvalhosa, São J o ã o da Portela, São Tiago de Lustosa, São João de Eiriz, São Tiago de Fi-gueiró e Sanfins de Ferreira109 .

Grande parte do limite bracarense c o m o Por to era fo rmado por terra de Sousa, c o m cerca de 70 freguesias. Ne la se integravam, entre outros, os m o s -teiros masculinos de Pombe i ro , Caramos, Mancelos , Travanca, Freixo e o fe-m i n i n o de Vila C o v a (os dois últ imos reduzidos a igrejas paroquiais n o sécu-lo xv), b e m c o m o as igrejas de São Vicente de Sousa, São Migue l de Borba, Santo Adrião de R i b a de Vizela, Santa Maria de Arões, Santa Maria de Idães, São Veríssimo de Lagares, Santa Mar inha da Pedreira, Telões, Santa Maria de Vilar de T o r n o , São Pedro de Caíde, Amarante e São Salvador de Lousada.

B A S T O N o t e rmo do M i n h o ficava a terra de Basto. Enquadrada na bacia h id ro -

gráfica do Tâmega , esta região estendia-se p o r ambas as margens do rio: C a -beceiras e Celor ico na m a r g e m direita, M o n d i m na margem esquerda. Terra de Basto era a fronteira do M i n h o c o m Trás -os -Montes (Cabeceiras c o m Barroso, e M o n d i m c o m Aguiar de Pena e Panóias). N a lista de 1320 e n c o n -tramos o terri tório dividido e m cerca de 40 paróquias1 1 0 . En t re elas os m o s -teiros de Re fo jo s de Basto e Arnóia e igrejas c o m o São Salvador de O v e l h ó (hoje Bilhó), São Vicente de Ermelo , Fervença, São Cris tóvão de M o n d i m , São Pedro de Cabeceiras, São Mar t i nho de Baúlhe, São Tiago de Our i lhe ,

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Santo André de R i o Douro , São Salvador de Ribas, São Mar t inho de Sei-dões, Santa Senhorinha de Basto, Santa Maria do Ou te i ro e Santa Maria de Borba de Juniores.

G E S T A Ç Ô Cerca de dezena e meia de paróquias figuram na lista de 1320 para a área

administrativa denominada terra de Gestaçô, a leste do Tâmega. Metade eram vigararias do poderoso mosteiro benedi t ino de Pombei ro , o qual é aqui contabilizado — embora estivesse situado em terra de Sousa, mais perto do rio Vizela. Gestaçô fazia fronteira a sul c o m a diocese do Por to (mais exacta-mente c o m as terras de Gouveia e de Baião) e c o m terra de Panóias, a leste. A norte ficava-lhe o território mondinense , per tencente a Basto.

Aqui estavam localizados t ambém os mosteiros femininos de Gondar e Lufrei, ambos reduzidos a igrejas paroquiais no século xv. Incluindo f regue-sias maronenses c o m o Candemil e Carneiro, a terra de Gestaçô é dificilmente integrável no Minho .

Freguesias medievais — Trás-os-Montes Na divisão dos arcediagados de 1145 realizada por D . J o ã o Peculiar, a re-

gião transmontana da arquidiocese de Braga está arrumada em cinco grandes áreas administrativas, a saber: arcediagado de Barroso, arcediagado de Panóias, arcediagado de Aliste, arcediagado de Mon tenegro (com as igrejas de Baronce-11) e, finalmente, arcediagado de Bragança, Miranda, Lampaças, Ferreira e Le-dra. Perdidas as igrejas de Baronceli e do arcediagado de Aliste para as dioceses de Orense e Astorga, respectivamente, em 1297, como acima se viu, não cen-traremos sobre elas a nossa atenção.

A lista de 1320 mostra-nos as cerca de 245 paróquias de Trás-os-Montes distribuídas por 13 terras111: terra de Panóias, terra de Vilariça112, terra de Freixo de Espada à Cinta, terra de Ledra, terra de Lampaças, terra de Mi ran-da, terra de Bragança, terra de Vinhais, terra de Montenegro , terra de Ferrei-ra113, terra de Chaves, terra de Aguiar de Pena, terra de Barroso.

Esta multiplicação do n ú m e r o de terras ter-se-á certamente devido ao in -tenso povoamento da região transmontana verificado durante o século XIII. As terras de Vilariça e de Freixo, situadas a oriente do rio T u a e a sul das ser-ras de Bornes e de Mogadouro , poderiam ter-se constituído por desmembra-men to dos territórios meridionais do arcediagado de Bragança (em relação a Miranda e Lampaças) ou dos territórios orientais de terra de Panóias. Pela sua localização, a área administrativa de terra de Aguiar de Pena resultou concer -teza de cisão relativamente a terra de Barroso ou terra de Panóias (separada da terra de Chaves pela serra da Padrela, não é provável que tivesse emergido desta). A terra de Chaves de 1320 corresponde à antiga terra de Montenegro , então transformada numa área residual a nordeste da terra de Chaves, na fronteira c o m terra de Vinhais. Q u a n t o a terra de Vinhais (dividida em duas, Vinhais e Lomba, n o século xv), resultou provavelmente de divisão do arce-diagado de Bragança — embora se pudesse ter igualmente destacado de Montenegro . Interessante é o facto de se manter a existência de terra de Fer-reira em 1320, uma vez que no século XII ela aparecia agrupada a Bragança — e não a Mon tenegro ou Barroso. Q u a n t o a Ledra, Lampaças e Miranda, já re-feridas em 1145, autonomizaram-se evidentemente e m relação a Bragança.

U m a das características marcantes do eclesiástico t ransmontano é a pre-sença do padroado régio, particularmente nas terras de Panóias, Lampaças, Bragança e Barroso.

Entremos em Trás-os-Montes por terra de Panóias114. Esta terra transmonta-na, a única documentada nos censuais publicados por Avelino de Jesus da Cos-ta115, tinha cerca de 30 paróquias que se estendiam, de oeste para leste, da serra do Marão (São Miguel da Pena, Santo André de Campeã116) até ao Tua (Santo Estêvão de Abreiro e São Mamede de Rábatua), e, de norte para sul, da vizi-nhança de terra de Aguiar de Pena (Santa Maria de Jales e São Miguel de Tras-mires, hoje Tresminas) até ao rio Douro. Além das freguesias já indicadas, a lista de 1320 refere, entre outras, as de São Salvador de Mouçós, São Jorge de Fa-

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vaios, Santa Maria de Alijó, São Tiago de Murça, São Félix (Sanfins) do Douro, São Pedro de Abaças, Santa Maria de Constantina, São Tiago de Vila Nova, Santa Maria de Paços, São Salvador de Torgueda e Santa Comba do Corgo.

Prosseguindo para leste, além do Tua, encontrava-se terra de Vilariça. Das cerca de 15 paróquias abrangidas nesta área administrativa, quase todas se situam entre os rios Tua e Sabor, tendo a nor te terra de Ledra, a serra de Bornes e a mais meridional das freguesias de terra de Lampaças — Santa M a -ria de Sambade. N a extrema oriental ficava a freguesia de São Pedro de Al-fandega (da Fé). A leste do rio Sabor, uma importante paróquia: São Tiago de Tor re de Monco rvo , l indando c o m a serra de R e b o r e d o e, logo, c o m a terra de Freixo de Espada à Cinta. Importantes eram, também, as igrejas de São Bar tolomeu de Vila Flor, São Salvador e São João de Ansiães, Santa M a -ria de Vilarinho de Castanheira e São Miguel de Linhares. O Mosteiro de Santa Maria de Bouro era padroeiro da Igreja de Santa C o m b a de Frades.

N a pequena (para a escala transmontana) terra de Freixo de Espada à Cinta, existiam quatro paróquias: São Miguel de Freixo, São Bar tolomeu de Urros, Mós e, j u n t o às águas durienses, Alva. Esta terra era b e m delimitada a oeste, sul e leste pelo rio D o u r o e a nor te pela serra de R e b o r e d o . Até onde se estenderia além desta?

A nor te das terras de Vilariça e de Freixo estendiam-se, de oeste para les-te, as terras de Ledra, Lampaças e Miranda, abrangendo a região central do leste t ransmontano a sul de terra de Bragança.

Geograficamente situada no «coração» de Trás-os-Montes e tendo por centros principais Santa Maria de Mirandela e Santa Cruz de Lamas de O r e -lhão, a terra de Ledra confrontava com seis outras divisões da administração eclesiástica bracarense no território: a sul Vilariça, a sudoeste e oeste Panóias, a oeste Chaves, a noroeste Montenegro , a norte e nordeste Bragança, a leste e sudeste Lampaças. Das 13 paróquias aí existentes, refiram-se Santa Maria de Tor re de D . Chama, Santa Maria de Nuzelos, Santa Eugênia de Ala, Santa Maria de Mascarenhas, São T o m é de Abambres e Fornos de Ledra.

Entre terra de Ledra e terra de Miranda, c o m terra de Bragança a norte e terra de Vilariça a sul, situava-se a extensa terra de Lampaças. Entre as 36 pa-róquias que dela faziam parte em 1320, encontravam-se São Lourenço de Sal-selas, São Nicolau de Salsas, São Pedro de Cendas, Santa Maria de Izeda, São Pedro de Carção (no ext remo oriental), Santa Maria de Talhinhas, Santa M a -ria de Castro Vicente, Santa Maria de Sambade (no extremo meridional), Santa C o m b a de Chac im e São Marta de Bornes, Macedo de Cavaleiros, Macedo do Ma to e Castro Roupa l . A Igreja de São Cristóvão pertencia à O r d e m do Hospital117.

Finalmente, a oriente da faixa central de Trás-os-Montes as paróquias es-tavam agrupadas na terra de Miranda. Esta ocupava toda a fronteira leste com a diocese de Samora, a sul de Bragança, confrontando c o m terra de Bragança a norte, terra de Lampaças a oeste (talvez Vilariça a sudoeste) e terra de Frei-xo a sul. Entre as 22 paróquias bracarenses que aqui encontramos, p o d e m re-ferir-se Mogadouro , Penas Róias, Santa Maria de Miranda, Maladas, V imio-so, Veguzelo e Pinhelo (ambas do mosteiro de Castro de Avelãs), Ifanes, Angueira e Palaçoulo (as três do mosteiro de Moreruela , da diocese de Leon) e Ulgoso. Esta diversidade do padroado das igrejas reflecte, certamente, a p o -sição fronteiriça de Miranda e a disputa pelo eclesiástico da região entre poderosos mosteiros e ordens militares.

N o ext remo nordeste de Trás-os-Montes , l indando quase totalmente c o m a diocese de Astorga, a administração eclesiástica surge dividida em duas zonas: terra de Bragança e terra de Vinhais.

E m terra de Bragança a lista de 1320 localiza 51 paróquias118. Entre elas o mosteiro de Castro de Avelãs e as igrejas de Santa Maria, São Tiago, São João e São Vicente de Bragança, Santo André de Ouzilhão, Santo Estêvão de Fresulfe, Santa Maria de Gondesende, Zeive, São Lourenço de França, São R o m ã o de Baçal, Guadramil, Santa Maria de Deilão, Penas Junças, Ervedosa, Santa Maria de Alfaião, Ameixiedo, Ar imonde , São João de Trabasceiro e Santa Marinha de R i o Frio.

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A C O N S T R U Ç Ã O D E U M A I G R E J A

N o limite c o m a diocese de Orense , terra de Vinhais tinha apenas 1o pa-róquias, entre elas Santo André e São Migue l de Vinhais, São Nicolau de Candedo , Santa Eulália (hoje Santalha), R e b o r d e l o e Sobreiro.

A sul, entre Vinhais e terra de Chaves, talvez c o m terra de Ferreira a oes-te (parti lhando ambas c o m Vinhais a fronteira c o m a diocese de Orense) fica-va terra de M o n t e n e g r o , out rora abrangendo toda a região de Chaves a sul mas e m 1320 já reduzida a uma pequena área administrativa c o m 3 f regue-sias119. E ram elas São Bar to lomeu de Águas Réveis , Santa Maria de Moreiras e Santa C o m b a dos Vales.

Terra de Ferreira pertencia ao arcediagado de Bragança na divisão de 1145. Apesar de a lista de 1320 a designar por «terra de Frieira» e de existir, ainda h o -je , uma localidade denominada Frieira e m território t ransmontano (entre Izeda e Macedo do Mato), a maioria das 13 freguesias então incluídas nesta terra situa-vam-se todas na fronteira c o m Orense: Vilela Seca, Vilar de Perdizes, São J u -lião de Montenegro , São Pedro de Monfo r t e de R i o Livre, Santa Olaia (Santa Eulália de Monfor te de R i o Livre) e São João de Castanheira de R i o Livre. Corresponde, portanto, à terra de Monfo r t e de R i o Livre referida por José Marques. Geograficamente discrepante parece a inclusão neste grupo da igreja de Tinhela, situada entre as terras de Chaves, Panóias e Aguiar de Pena120 .

Terra de Chaves ocupava t ambém uma posição central n o terri tório t ransmontano, con f ron tando c o m Ferreira e M o n t e n e g r o a nor te e noroeste , Ledra a leste, Panóias a sul, Aguiar de Pena a sudoeste e Barroso a oeste121 . A lista de 1320 contabiliza 15 freguesias e m terra de Chaves1 2 2 . En t r e elas, San-ta Maria de Chaves, São Nicolau de Carrazedo, São João de Ervões, São Tiago de Alhariz, São Salvador de Vilar de Nantes , Faiões, Santa Leocádia de M o n t e n e g r o e São Lourenço de Lilela. Duas das igrejas paroquiais eram do padroado da O r d e m do Hospital.

Este périplo pelas terras da administração eclesiástica bracarense e m Trás-- o s - M o n t e s termina na fronteira c o m terra de Basto e, depois, c o m terras de Vieira e de Bouro . As últimas áreas administrativas são terra de Aguiar de P e -na e terra de Barroso.

N a pequena terra de Aguiar de Pena, a lista de 1320 inclui apenas seis f re -guesias, entre elas, Santa Mar inha de Pena, São Salvador de Pena, Pensalvos e Telões.

C o m as terras transmontanas de Aguiar de Pena a sudeste, Chaves a leste e Ferreira a nordeste, as terras minhotas de Basto a sul e sudoeste, e de Vieira e B o u r o a oeste e, f inalmente, as terras galegas (e portuguesas)1 2 3 da diocese de Orense a norte , situava-se a vastíssima terra de Barroso, na qual encon t ra -mos 30 freguesias. Ref i ram-se , entre outras, o moste i ro de Pitões das Júnias, da O r d e m de Cister, São Tiago de Mour i l he e Padornelos (bem a norte) , São Pedro de Cove lo , Santa Maria de Biade, Santa Maria de Monta legre , Santa Maria de Covas, Santa Maria de Salto, Santa Mar inha de Cove lo , São Tiago de Guilhofrei , Cervos, Bobadela, Santo André de Fiães, São Salvador de C a n e d o e, no ex t r emo da fronteira meridional , São Pedro de Cerva e São M a m e d e de Cambezes .

A presença relativa do padroado régio e m Trás -os -Montes era mu i to mais impor tan te (excepto nas terras de Aguiar de Pena e de Freixo) do que no M i n h o , dado o m u i t o m e n o r n ú m e r o de freguesias nesta parte do terr i tó-rio diocesano bracarense1 2 4 .

Esta presença cresceu mui to na região durante os reinados de D. A f o n -so III e D . Dinis, depois de o pr imei ro reservar para a C o r o a o direito de apresentação às paróquias sem pa t rono . Nes te esforço, o Bolonhês e o Lavrador contaram c o m o apoio dos arcebispos de Braga, sobre tudo D . Mar t im Pires de Oliveira1 2 5 .

O r d e n s re l ig iosas — Segundo José Mat toso , dos 78 mosteiros fundados na região minho ta da arquidiocese de Braga pr incipalmente no século xi (e, e m m u i t o m e n o r grau, até meados do século XII), apenas 46 pe rmanece ram para além de 1200126. E m meados do século xv, p o u c o mais de 20 subsistiam na região1 2 7 .

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Vista geral do Mosteiro de Santa Maria de Pitões das Júnias (século XII).

F O T O : JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/ /ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

A c o m p a n h a n d o o grande crescimento demográf ico da região minho t a durante o século xi, sobre tudo e m Ent re Cávado e Ave, o n ú m e r o foi-se re -duz indo ao longo da segunda metade do século xii . Para esta redução cont r i -buiu a concorrência entre u m n ú m e r o excessivo de mosteiros, cuja sobrevi-vência dependeu de factores c o m o a absorção de comunidades mais fracas, a integração (directa ou indirecta) nas novas ordens monásticas surgidas de além-fronteiras e do apoio de pat ronos c o m ligações estreitas à corte.

Dos mosteiros benedi t inos que haviam pe rmanec ido para além de 1200, apenas nove sobreviveram ao século xv: os mosteiros masculinos de São R o -mão de Neiva , Carvoe i ro , Pa lme e R e n d u f e n o Ent re Lima e Cávado, T i -bães no Ent re Cávado e Ave, Pombe i ro , Travanca, Arnóia e R e f o j o s de Bas-to e m En t re Ave e Tâmega ; p o r fim, o moste i ro f emin ino de Vi to r ino das Donas , não longe de P o n t e de Lima. Duran t e o século x v eram extintos e reduzidos a igrejas paroquiais os masculinos de M a n h e n t e , Várzea, Vilar de Frades (cedido depois aos Lóios), Várzea, Rates , Vimiei ro , Lomar , Sande, Adaúfe e Fon te Arcada e os femininos de Cerzede lo (Lima), Vila Cova , L u -fiei e G o n d a r (Sousa e Tâmega) .

E m Trás -os -Montes a única comun idade benedi t ina de que há notícia era o m u i t o poderoso moste i ro de Castro de Avelãs, c o m influência considerável n o eclesiástico br igant ino e mirandês. N a região de terra de Miranda, o m o s -teiro leonês de Morei ro la (ou Moreruela) det inha o padroado de algumas igrejas.

Dos mosteiros canonicais que adoptaram a R e g r a de Santo Agost inho (ou fo ram criados de novo) a partir do segundo quartel do século XII, na esteira de Santa C r u z de Co imbra , fo ram extintos n o século x v Bravães, Banho , R i o M a u , R e q u i ã o , Souto , São Torca to e Freixo, restando 11: Vila N o v a de Muía , São M a r t i n h o de Crasto e Valdreu (Entre Cávado e Lima), São Simão da Junquei ra , Landim e Santa Maria da Oliveira (Entre Cávado e Ave, j u n t o a este), Costa (Entre Ambas-as-Aves), Vilarinho e R o r i z (Riba de Vizela), Caramos e Mancelos (Entre o Sousa e o Tâmega) . Vale a pena referir que os mosteiros canonicais se concen t r am quase todos ora per to da fronteira c o m a diocese do Por to , j u n t o aos rios Ave e Vizela, ora per to do Lima.

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A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

0 Mapa dos conventos e mosteiros no século x v (seg. A . H. O . Marques, Portugal na crise dos séculos xiv e xv, p. 383).

Mapa das instituições monásticas (seg. M . H . C . C o e l h o , Portugal em definição de fronteiras, p. 251).

Q u a n d o comparada com outras dioceses, sobretudo Lamego, Coimbra e Lisboa, a presença cisterciense na arquidiocese de Braga foi mui to discreta, restringindo-se a zonas de m e n o r povoamento : em terra de Bouro , o Moste i -ro de Santa Maria do Bouro (primeiro u m eremitério, depois mosteiro bene -ditino e integrado em Cister por volta de 1195) e, em terra de Barroso, o de Pitões das Júnias (inicialmente benedi t ino e, a partir de 1248, cisterciense, mas contra a vontade do arcebispo de Braga)128.

Q u a n t o às ordens mendicantes, a sua instalação na arquidiocese data de b e m cedo. C o m e ç a n d o pelos Franciscanos, as primeiras fundações foram as dos conventos de Guimarães e Bragança, comprovadamente no terceiro quartel do século XIII129. As primeiras clarissas tiveram c o m o casa o Conven to de Santa Clara de Vila do Conde , fundado em 1318 pelo bastardo régio D. Afonso Sanches e sua mulher1 3 0 . Até à fundação do mosteiro de Vila Real, no tempo do arcebispo D. Fernando da Guerra, já no século xv, o ún i -co convento dominicano na arquidiocese foi o de Guimarães.

A influência das ordens militares no eclesiástico da arquidiocese de Braga nota-se quase exclusivamente em Trás-os-Montes , principalmente em terra de Miranda. Encont ramos referência sobretudo aos Templár ios /Cr is to e Hospitalários.

Nas terras do M i n h o , essa presença confmava-se em 1320 às igrejas de Santa Maria de A b o i m (Nóbrega) e São An tão e Santa Eulália de Sousela (Sousa), da O r d e m de São João do Hospital . E m terr i tór io t r ansmontano , po rém, pe r t enc iam aos Hospitalários as igrejas de São Cris tóvão (Lampa-

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Igreja românica da Cedofeita (Porto).

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

ças), Freixel e R o i o s (Vilariça), Vila M a r i m , Poiares e Abre i ro (Panóias)1 3 1 , Ervões e T u a z e n d e (Chaves) e U l g o s o (Miranda) . A O r d e m de Cr i s to t i -nha apenas o eclesiástico das paróquias de M o g a d o u r o e Penas R ó i a s (Mi -randa) .

PORTO L i m i t e s — Res t au rada en t r e 1112 e 1114, a ant iga diocese s u e v o -

-visigótica do P o r t o alargaria duran te o século XII os seus t e rmos antigos a expensas dos terr i tór ios das vizinhas Braga e C o i m b r a . D . H u g o , o p r ime i ro bispo (sagrado e m M a r ç o de 1113), foi n o m e a d o p o r in t e rvenção do arcebis-p o de Compos t e l a , D i e g o Gelmírez , de q u e m era h o m e m de conf iança . A au tonomização d o ter r i tór io d iocesano do Po r to , até aí conf iado à a d m i -nistração de Braga (à semelhança do que sucedeu c o m os terr i tórios de La-m e g o e Viseu, conf iados ao bispo de C o i m b r a ) , foi possível dev ido à f ragi-l idade da posição bracarense face a Composte la , causada pela m o r t e do conde D. H e n r i q u e (1112) e pela in tervenção ex t remamente desfavorável do papa Calisto II132.

A questão dos limites c o m a diocese de C o i m b r a f icou encerrada c o m a bula do papa Inocênc io IV Provisionis nostrae, de 12 de Se tembro de 1253. Q u a n t o a Braga a solução definitiva teria de esperar pe lo pont i f icado de Leão XIII , já n o século xix. Segundo D o m i n g o s More i ra , apesar de e m 1193 o cardeal Gregór io de Santo Angelo, legado do papa Celest ino III, ter r eco -m e n d a d o ao arcebispo bracarense que admitisse o alargamento do bispado

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por tuense ent re tanto verificado, os prelados de Braga nunca o r econhece ram de facto. José Marques quest iona este alargamento, c o m base na investigação de C â n d i d o dos Santos para época posterior1 3 3 .

Segundo José Marques , a fronteira quatrocentista entre a diocese do P o r -to e a arquidiocese de Braga começava na foz do rio Ave e inflectia para su-deste e depois para leste até ao Tâmega , de ixando den t ro de Braga Santo T i r -so, São Migue l do C o u t o , M o n t e Córdova , Penamaior , Meixomi l , Santa Eulália de Paços de Ferreira, F reamunde , Figueiras, Cristelos, Pias, M e i n e d o , Recez inhos , Ataíde, Castelões e Constance 1 3 4 . N a lista das igrejas de 1320, po rém, encon t ramos do lado da diocese do Por to , agrupados nas igrejas de terra de Re fo jo s e igrejas de M e i n e d o , os mosteiros de Santo Tirso e M o n t e C ó r d o v a e as igrejas de São Salvador de Castelões, Santa Eulália de Paços de Ferreira e São M a m e d e de Recez inhos . Por ou t ro lado, do lado de Braga e n -contramos, entre muitas outras, as igrejas de R e b o r d õ e s , Carvalhosa, Lousa-da, Covas e Caíde de R e i . D o m i n g o s More i ra p r o p õ e que o limite, subindo o Ave, seguia rio Vizela acima e, depois, p o r terra, seguia até ao m o n t e T e -m o n e (lugar de Vila Meã , freguesia de Pombe i ro , conce lho de Felgueiras), prosseguindo r u m o ao m o n t e Éguas ( R i o D o u r o , Cabeceiras de Basto) até ao m o n t e Farinha (Senhora da Graça, M o n d i m de Basto) e, daí, pela serra do Marão e pelo rio C a m p e ã até ao rio C o r g o e deste até ao Douro 1 3 5 . Este li-mite, até Cabeceiras e M o n d i m de Basto, terras de Basto adentro, é difícil de aceitar136. As discrepâncias de opinião existentes most ram que o assunto não está to ta lmente esclarecido e obriga a estudo rigoroso137. O terri tório d ioce-sano por tuense ter-se-ia alargado de facto ent re os século XII e xiv, re -cuperando a arquidiocese algumas das freguesias perdidas na época de D . Fer -nando da Guerra — ou antes138?

A sul do D o u r o , a fronteira c o m os bispados de Lamego e de C o i m b r a começava na foz do Arda, subindo por este ao m o n t e M e d a (Lamego), deste até ao m o n t e Nabal (limite das freguesias de Escariz e Chave) e deste pelo rio Antuã até ao mar (fronteira c o m Coimbra) .

Entre 1132 e 1137 a terra de Santa Maria transitou, de facto, da jurisdição de Coimbra para a do Porto. C o m efeito, e m 1132 o bispo Bernardo de Coimbra fazia doação das igrejas de Argoncilhe, Perosinho, Serzedo, Travanca, Travaçô e Eirol ao mosteiro de Grijó e a 26 de O u t u b r o de 1137 o bispo do Porto, D . João Peculiar, confirmava esta doação e, reportando-se às três primeiras, re-fere ter a terra de Santa Maria pertencido outrora à diocese de Coimbra .

Pos te r iormente os bispos de C o i m b r a tentaram recuperar as freguesias perdidas para o Por to , mas c o m êxito relativo e apenas temporár io . A terra de Santa Maria encontrava-se sol idamente vinculada à jur isdição do bispo do Por to .

Fregues ias m e d i e v a i s — N o terr i tório diocesano do Por to , a organiza-ção do espaço está documentada para todo o per íodo medieval ora estudado.

N o século xii , a diocese por tuense encontrava-se dividida e m dez agru-pamentos de freguesias referidos c o m o arcediagados: Santa Maria (terra da Feira), Maia, Refo jos , Aguiar (de Sousa), Penafiel (de Sousa), M e i n e d o (Lou-sada), Gouveia (Amarante), Benviver (Marco de Canaveses), Baião e Pena -guião (Régua) .

N a lista de 1320, as igrejas da diocese do Por to surgem divididas e m nove terras: Baião, Penaguião, Gouveia e Benviver (juntas), M e i n e d o , Penafiel, Aguiar, Re fo jos , Maia e Santa Maria1 3 9 .

A lista das Rationes Decimarum, de 1371, dá-nos Santa Maria, Maia, R e f o -jos, Aguiar e Ferreira, M e i n e d o , Penafiel e Baião e Penaguião. O u seja, Fer-reira acrescentada a Aguiar de Sousa e Penaguião agrupada a Baião.

C o m base nestas três cartografias, D o m i n g o s More i ra e laborou u m i n v e n -tário exaustivo das freguesias da diocese do Por to para os séculos x iv e xv1 4 0 . Passamos a resumi-lo, apo iando-nos na seguinte divisão e m n o v e grupos de paróquias ( incluindo a cidade): Po r to (civitas e te rmo) , Santa Maria, Maia, Refo jos , Aguiar de Sousa e Ferreira, M e i n e d o , Penafiel, Gouveia e Benviver , Baião e Penaguião.

<] Portal do mosteiro de Cete (c. 1320), Paredes.

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Ret i r ando as freguesias das terras de Sousa e Negrelos (pertencentes a Bra-ga) e da terra de Vouga (pertencentes a Coimbra) , contabilizamos cerca de 310 freguesias, apesar da extinção de u m p u n h a d o de paróquias medievais durante os séculos x v e xvi e respectiva incorporação nas freguesias contíguas141 .

E m algumas das 310 igrejas acima referidas, era o rei que t inha o direito de nomear («apresentar») o pároco1 4 2 . A julgar pelas listas das apresentações às igrejas do padroado régio nos reinados de D . Afonso III e D. Dinis, na diocese do Por to a influência régia era mu i to diminuta, excepto e m terra da Maia1 4 3 .

Na cidade do Por to , existia apenas a freguesia da Sé (única até ao final do século xvi). N o t e r m o D o m i n g o s More i ra identifica oi to freguesias, a saber, Aldoar, Campanhã , Cedofei ta , São Mar t i nho de Lordelo, Miragaia, São M i -guel de Nevogi lde , Paranhos, São Mar t i nho de Lordelo e R a m a l d e (estas duas possivelmente do padroado régio).

R o d e a n d o a cidade e te rmo do Porto, situava-se a vasta terra da Maia (in-cluindo Bouças/Matosinhos), c o m o rio Ave a norte, separando a diocese po r -tuense da bracarense. Aqui existiam na Idade Média 64 freguesias, 38 das quais localizadas nos actuais concelhos da Maia e Vila do C o n d e e as restantes nos de Matosinhos, Santo Tirso, Gondomar e Valongo (apenas três). Entre elas as paró-quias correspondentes ao priorado de Leça e aos mosteiros de Vairão, R i o T i n -to, Moreira e Aguas Santas144 — este do padroado régio, jun tamente c o m as igrejas de Santa Maria de Alvarelhos, Santa Maria de Avioso, São Miguel de Moroça, São Tiago de Milheiros, Santa Maria de Nogueira , Santa Ovaia de Aveleda, São Pedro de Fajozes, São Salvador de Macieira da Maia e Guifões145 .

Vinha depois a terra de Refo jos , pr incípio da fronteira terrestre c o m a ar-quidiocese bracarense (até aí definida pe lo rio Ave). As 11 freguesias identif i -cadas nesta terra estavam localizadas, na sua totalidade, n o actual conce lho de Santo Tirso, inc luindo os mosteiros de Santo Tirso e de R e f o j o s de M o n t e Córdova . As igrejas de São Salvador de M o n t e C ó r d o v a e Santa Maria R e -guenga eram do rei.

E m seguida temos, igualmente na fronteira c o m Braga, as duas terras de Aguiar de Sousa e Ferreira, reunidas na lista de 1371. Encon t r amos aí 38 f r e -guesias, distribuídas pelos actuais concelhos de Paços de Ferreira, Paredes (so-

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bre tudo este), Valongo, G o n d o m a r , Lousada e Penafiel. En t re elas, os m o s -teiros de Vandoma , Ce te , Vilela e Lordelo. E ram do rei as igrejas de São R o m ã o de Aguiar de Sousa146, Baltar, Cristelo, Rebordosa , Melres, Santa Ovaia de Paços de Ferreira e o Moste i ro de Santa Ovaia de Vandoma .

O p e q u e n o terr i tório do arcediagado de M e i n e d o , t a m b é m na fronteira c o m a arquidiocese, fazia já a ligação ao Tâmega , nele se encon t r ando nove freguesias, localizadas nos actuais concelhos de Lousada, Penafiel e Amarante (oito das quais nos dois primeiros). A freguesia de São M a m e d e de Reces i -nhos pertencia ao padroado régio.

As 31 freguesias recenseadas para a época medieval na terra de Penafiel de Sousa, fim da fronteira terrestre c o m Braga até ao Tâmega , na margem direi-ta do rio, per tenc iam aos actuais concelhos de Penafiel e M a r c o de Canaveses (das quais 29 ao pr imeiro) , inc luindo os mosteiros de Paço de Sousa, Bustelo e En t r e -os -R ios . Apenas a Igreja de São Migue l de Paredes pertencia ao pa-droado régio, nesta zona e m i n e n t e m e n t e senhorial1 4 7 .

N a terra de Gouve ia e Benviver , na margem esquerda do rio Tâmega , D o m i n g o s More i ra levantou 25 freguesias e integrou-as nos actuais concelhos de Marco de Canaveses e Amarante (20 das quais no primeiro) . Ent re elas in -cluíam-se os mosteiros de São João de Pendurada , Vila Boa do Bispo e Tuias. Duas freguesias, Ariz e São Salvador do M o n t e , eram realengas.

Finalmente, a terra de Baião e Penaguião teria na Idade Média aprox ima-damente 35 freguesias, localizadas na actualidade nos concelhos de Baião (me-tade), Mesão Frio, Santa Marta de Penaguião, Peso da R é g u a (outra metade nestes três) e Marco de Canaveses (apenas uma). A serra do Marão a nor te e o rio C o r g o a leste eram as fronteiras naturais c o m Braga. E m terra de Baião situava-se o Moste i ro de Santo André de Ancede . Per tenc iam ao padroado régio as igrejas de Barqueiros, Fontes, M e d i m , Santo Adrião de Sever e, tal-vez, São Fraústo da Régua 1 4 8 .

A sul do D o u r o o terri tório diocesano por tuense abrangia uma grande área outrora per tencente ao bispado de Coimbra : a terra de Santa Maria (jul-gado de Feira). Aí são levantadas 85 freguesias, identificáveis nos actuais c o n -celhos de Feira, Gaia, Oliveira de Azeméis, Ovar , Espinho, Arouca , Estarreja e São João da Madeira (três quartos das quais nos três pr imeiros concelhos)1 4 9 . Aqui se localizavam os mosteiros de Gri jó , Pedroso, Cucujães e Vila Cova . D o rei eram as paróquias de Esmoriz, São Nicolau da Feira, Fe rmedo , L o u -rosa, M a f a m u d e e Santa Maria de Gaia.

O r d e n s re l ig iosas — Dos 55 mosteiros fundados na diocese do Por to entre os séculos ix e XII, só 25 permanecer iam além de 1200.

Dos sobreviventes, a maioria adoptara a regra benedi t ina reformada por C l u n y (não se filiando, po rém, na ordem) ou recebera os C ó n e g o s Regran tes de Santo Agost inho após a fundação de Santa C r u z de C o i m b r a e m 1131 (pri-mei ro Gr i jó e, até ao fim do século XII, Ancede , Lordelo, Tuias, Vilela, Vila Boa do Bispo e Moreira)1 5 0 . E m 1320, o mais rico de todos era Santo Tirso (benedit ino). A bastante distância, os de Paço de Sousa (benedit ino) e Gri jó (canonical), seguidos de Pedroso e São João de Pendurada e, logo, de Vila Boa do Bispo e Bostelo. O s restantes fo ram taxados e m montan tes iguais (e po r •vezes inferiores) aos de igrejas paroquiais.

Por sua vez, os mosteiros de Santo Tirso e Gr i jó de t inham o padroado de várias igrejas na diocese, sobre tudo e m terra da Maia e de Santa Maria, res-pect ivamente .

A o r d e m militar de São João do Hospital era inf luente n o eclesiástico (e n o temporal) da diocese do Por to . N ã o só aí se encontrava a primeira sede do seu pr iorado e m Portugal, o bailiado de Leça, c o m o t a m b é m aí det inha, e m 1320, o padroado de 8 igrejas — sobre tudo e m terra da Maia (Leça do Bailio) e, igualmente , e m terra de Santa Maria e terra de Penaguião ( junto à bracarense terra de Panóias, onde a o r d e m era poderosa).

A presença da O r d e m do T e m p l o / C r i s t o no eclesiástico por tuense era simbólica, apenas c o m o padroado de uma igreja e m 1320. A lista cria inex-pl icavelmente e m terra de Santa Maria u m grupo de freguesias inti tulado

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A C O N S T R U Ç Ã O D E UMA IGREJA

Portal da Sé Velha de Coimbra.

FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

«Igrejas da Terra da O r d e m de Cristo», mas não atribui à o r d e m o padroado de qualquer delas151.

Duas ordens presentes na diocese do Por to t inham vínculos ao padroado régio: os premonstratenses do Moste i ro (e antigo eremitério) de Santa Ovaia de V a n d o m a e a mal conhecida O r d e m do Santo Sepulcro de Jerusalém, cuja sede e m Portugal ficava no moste i ro de Aguas Santas152.

A entrada dos Mendicantes na cidade do Porto (sobretudo dos Francisca-nos), durante a década de 30 do século XIII, foi acompanhada de grandes c o n -vulsões na cidade, no caso dos Franciscanos, e de transferências de direitos de padroado de igrejas para o bispo por parte de leigos, no caso dos Pregadores — consignadas no censual do cabido da Sé do Por to . As Clarissas entrar iam e m 1257 n o moste i ro de En t re -os -Rios , r e fo rmando-o , e as Domínicas estavam presentes e m Vila N o v a de Gaia desde 1345.

COIMBRA L i m i t e s — En t re 1064 e 1147, a diocese de C o i m b r a esteve situada na

fronteira polí t ico-mili tar do re ino de Leão c o m o Al-Andaluz. Aliada a c o m -plexas conjunturas de transição provocadas pela conquista para sul, esta posi -ção de fronteira (mantida depois n o plano cultural) p rovocou boa parte da instabilidade da vida eclesiástica na diocese — que se atenuaria c o m D . A f o n -so III. N o entanto, ao tomar posse e m 1279, ainda o bispo D . Aymer ic d 'Ebrard encontrava a administração diocesana e m mau estado.

Depois da conquista definitiva de C o i m b r a pelo rei de Leão Fernando Magno , e m 1064, a diocese de Co imbra , restaurada p rovave lmente por volta de 1080, durante o governo de D. Sesnando, viveria depois de 1088 «dias conturbados c o m o c h o q u e entre o tradicionalismo moçárabe e as novas ideias da reforma gregoriana»153 . Esses choques , segundo José Mat toso agudi -zados pela nomeação de dois bispos pró- f rancos em 1092 (Crescónio) e 1128 (Bernardo) contra a vontade do clero capitular, maior i tar iamente moçárabe ,

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A DO E S P A Ç O

culminar iam, n o seguimento da escolha de Bernardo e m de t r imento do arce-diago Telo , na fundação do Moste i ro de Santa C r u z e m 1131.

Patrocinado pelo rei, apoiado e m sectores poderosos e politicamente influen-tes da nobreza, da cavalaria coimbrã e da corte régia, o mosteiro tornar-se-ia mais poderoso que o próprio cabido da Sé de Coimbra ao longo do século XII. Isentos da jurisdição e fisco episcopais e m Coimbra e e m Leiria, os Cónegos Crúzios alargariam a sua influência (patrimonial e espiritual) e m toda a diocese e fora dela — e m Cidade Rodr igo , Lisboa e Évora (Arronches). O governo da diocese por dois bispos crúzios entre 1147 e 1176, D . J o ã o Anaia e D . M i g u e l Pais Salomão, parece ter aumentado a influência do mosteiro na diocese.

O s apoios e êxi to do Moste i ro de Santa C r u z fizeram c o m que vários an -tigos mosteiros acolhessem a reforma canonical. Talvez não seja po r acaso que a passagem definitiva da terra de Santa Maria para a diocese do Por to é simbolizada, c o m o acima referimos, pela doação pelo bispo Bernardo ao Moste i ro de São Salvador de Gri jó (aí localizado) das igrejas de Argonci lhe, Peros inho e Serzedo. Este fora o mais impor tan te dos antigos mosteiros a re -ceber os Crúzios .

N ã o foi apenas a «cisão crúzia» que enf raqueceu a autor idade episcopal de Co imbra . E m 1147, após a conquista de Lisboa, o rei nomeava bispos para as antigas dioceses visigóticas de Lamego e Viseu, até aí sujeitas à administração coimbrã. C o m a transferência da terra de Santa Maria (Feira) para o bispado do Por to e os d e s m e m b r a m e n t o dos territórios lamecense e viseense, o bispa-do de C o i m b r a adquiria a sua configuração definitiva, acabando por def inir -

Cabeceira da igreja do Convento de Santa Clara-a-Velha (Coimbra).

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

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A C O N S T R U Ç Ã O D E U M A I G R E J A

-se em quat ro zonas: cidade e t e r m o e os arcediagados de Vouga, Seia e P e -nela, c o m o adiante se especificará.

Fregues ias m e d i e v a i s — As cerca de 240 freguesias da diocese de C o i m b r a (incluindo os mosteiros) surgem agrupadas na avaliação de 1320 e m quatro grupos de igrejas. Destas, no entanto , a lista não contabiliza indivi -dua lmente as dez paróquias do isento de Leiria, subsumidas aos cont íguos pr iorado de Leiria (jurisdição eclesiástica do prior de Santa Cruz) e ao pr iora-do de Colmeias (jurisdição eclesiástica do bispo de Coimbra) . Algumas deze-nas das paróquias da diocese per tenciam ao padroado régio, c o n f o r m e teste-m u n h a d o pelas listas de D . Afonso III (1259-1266) e D . Dinis (1279-1321).

N a primeira, sem título, a lista inclui as oito paróquias dá civitas (Sé, São João de Almedina, São Salvador, São Cristóvão, São Bar tolomeu, São Tiago, Santa Justa e São Pedro), acrescentando-lhes ainda os numerosos, e impor tan-tes, mosteiros da diocese. C o m excepção do mosteiro de Folques, em Arganil, e dos priorados de Leiria e de Colmeias, de Santa Cruz , os mosteiros referidos ficavam quase todos situados ora perto da cidade (Santa Cruz, Almaziva, Santa Clara, São Jorge, Celas de Guimarães, Celas j u n t o da ponte) , ora no Baixo M o n d e g o (Seiça) ou na região central da diocese (Semide e Lorvão).

E m seguida, a lista divide o bispado de C o i m b r a e m três grandes terr i tó-rios. O maior , a nor te do M o n d e g o , era o arcediagado de Vouga , f ronteira com os bispados do Por to , de Lamego e de Viseu; o arcediagado de Seia, a leste de Co imbra , abrangia igualmente u m vasto terr i tório a leste que lindava com as dioceses de Viseu e da Guarda; f inalmente , n o arcediagado de Penela, a sul do M o n d e g o , C o i m b r a lindava c o m a Guarda e c o m Lisboa — f icando os isentos templário e crúzio de pe rmeio .

C o m quase 100 freguesias e m 1320, o arcediagado de Vouga começava a nor te p o r uma estreita faixa dominada pela serra da Gralheira o n d e se ident i -ficam, entre outras, as freguesias de Codal , Macieira de Cambra (régia), São Pedro de Castelões e São Migue l de Travaçó, encaixadas entre os bispados do Por to (fronteira por tuense consti tuída p o r Ovar , Avanca e as zonas de i n -fluência de São João da Madeira e Oliveira de Azeméis), Lamego (região de Arouca, c o m a freguesia hospitalária de Rossas mais pe r to do terr i tório c o i m -brão) e Viseu (extrema do arciprestado de Lafões, c o m as freguesias de J u n -queira, Sever, Ribei radio , Re igoso e Arcozelo)1 5 4 .

Depois a área do arcediagado estendia-se para sul até ao M o n d e g o , sub in-do o rio desde a foz até Santa C o m b a D ã o (excepto a civitas e t e r m o de Coimbra) e, daí para norte , fazendo fronteira a leste c o m a diocese de Viseu. Este grande terr i tório era d o m i n a d o pela bacia do rio Vouga e pelas ribeiras da margem direita do M o n d e g o . A influência do padroado régio era m u i t o forte nesta região, sendo do rei as igrejas de São Miguel de Aveiro, Santa Maria e São T iago de Vagos, São Vicente de Branca, Ilbavo, Eixo, R e q u e i x o , São Pedro de Segadães, Santa Eulália de Águeda, São Vicente de Sangalhos, San-to Adrião de Ões 1 5 5 , São Lourenço do Bairro, São Cris tóvão de Macinhata , São Paio de Arcos, São Pedro de Valongo, Santa Maria e São Jul ião de Pena -cova, São Salvador e São Paio de Figueiredo, Santa Maria de Antes, T e n t u -gal, as igrejas de M o n t e m o r - o - V e l h o (Santa Maria, São Mar t inho , São Salva-dor, Santa Maria Madalena, São Miguel e São João) , São Cucufa te de Moi ta , Santa Eulália de Águeda, Santa Maria de Lamas, São Vicente de O u r e n ç a , São Migue l de Oliveira, Eiras, Covelos, Carregosa, São Miguel de Sobral, Espinhei, Santa Eulália e São Tiago de Vale Grande , Avelãs, São Miguel de Fermelã e, no interior, j u n t o ao limite c o m a diocese de Viseu, São Salvador da Albergaria de Doninhas 1 5 6 e Maceira de Alcova. Além das igrejas do rei, a lista de 1320 refere, mais a nor te , as paróquias de Salreu, Cacia, Soza, Esguei-ra; entre a Anadia e C o i m b r a e, M o n d e g o abaixo, pela margem direita até à foz, Vilarinho, Bolho , Mur t ede , Can tanhede , Cord inhã , Out i l , Botão , S o u -selas, Brasfemes, Sanfins, Maiorca, Alhadas e Foz do M o n d e g o ; f inalmente , na região leste do arcediagado até à confluência entre o Dão e o M o n d e g o , além da serra do Buçaco e abrangendo-a , Sazes, Carva lho /Cercosa , M a r m e -leira, Espinho, Mor tágua , São J o a n i n h o e Santa C o m b a Dão .

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N o território do arcediagado de Seia, que correspondia grosso modo ao es-paço definido entre o rio M o n d e g o e o rio Alva e a serra da Estrela, até ao Ceira, a lista de 1320 dá-nos cerca de 65 paróquias. Enquadravam-se nesta área várias igrejas do padroado régio — c o m o São Julião e São Pedro de Gouveia (esta doada a Santa Clara de Coimbra depois de 1317), Santo Isidro de Linhares, São Pedro de Folgosinho, São T o m é de Penalva de Alva, São João de Lagos, São Pedro de Travanca (de Lagos), Santa Maria de Seia, São R o m ã o de Seia, Bobadela, Sinde e São João de Moimenta — além de, entre outras, as freguesias de Mesquitela, Cadoiço, Vila Cortês, Melo, Casal, Nabais, São Paio, Arcozelo, Vinhó, Pinhanços, Valezim, Loriga, Sameice, Meruge , Tra -vancinha, Santo André do Ervedal, Midões, Tábua, Oliveira do Hospital, Nogueira do Cravo, a antiquíssima São Pedro de Lourosa, Avô, Coja, Arga-nil e, finalmente, Góis.

O arcediagado de Penela era configurado a nor te pelos rios M o n d e g o e Ceira, a leste e sudeste pela serra da Lousã e pelo rio Zêzere (divisória entre as dioceses de Coimbra e da Guarda) até Ferreira; a sul, pela fronteira c o m o isento de T o m a r e c o m a diocese de Lisboa, ficando do lado desta Alpedriz, Por to de Mós e O u r é m e, do lado de Coimbra , o território dos priorados crúzios de Leiria e Colmeias. As cerca de 60 paróquias da região agrupavam--se sobretudo ao longo das bacias hidrográficas. Primeiramente, a nor te e oeste, na margem esquerda do Mondego e no território entre os seus afluentes Arunca/Anços e Ceira, existiam, entre outras, as freguesias de Lavos, Samuel, Figueiró, as templárias Ega157, Soure, Redinha , Pombal e Abiul, a crúzia Al-vorge, Pombal inho, Antanhol , Zambujal , Podentes, Almalaguês, Cernache e quatro freguesias do padroado régio: São Miguel e Santa Eufêmia de Penela, Miranda (do Corvo) e Santo Ildefonso de Anobra. Mais para leste, na zona do Ceira e da serra, Lousã, Serpins, Vilarinho e São Paio de Arouce — esta do rei. Já localizadas ao longo do sistema subsidiário do Te jo (Zêzere e N a -bão), mais a sul, ficavam Ansião, Aguda, Pousafoles — hoje Pousaflores — , Pedrógão, Alvaiázere (régia) e Pelmá, alcançando a extrema sueste da diocese em Águas Belas, Dornes e Ferreira do Zêzere (as duas últimas da O r d e m de Cristo). Finalmente, na bacia constituída pelos rios Lis/Lena ficavam as dez paróquias dos priorados de Leiria e Colmeias cuja jurisdição eclesiástica se di-vidia entre o prior do Mosteiro de Santa Cruz (São Pedro, São Mart inho, Santo Estêvão, São Tiago, da vila, e Paredes, do termo) e o bispo de C o i m -bra (Colmeias, Espite, Vermoil , Souto e São Simão)158. A fortíssima presença no arcediagado de Penela dos cavaleiros templários, depois de Cristo, recorda igualmente a fase da conquista posterior à instalação da milícia do T e m p l o (1128, ainda c o m D . Teresa) até à conquista de Santarém e Lisboa (1147).

Ficava igualmente no arcediagado de Penela a Igreja de Santo Estêvão de Pereira do padroado régio.

O r d e n s rel igiosas — Sendo Coimbra capital de Portugal durante o mais importante período de formação do reino (1128-1248), natural é que as grandes mudanças na vida eclesiástica então ocorridas — em estreita ligação com o movimento das Cruzadas, em geral, e da conquista peninsular, em especial — fossem vividas ou se repercutissem de m o d o muito particular nesta diocese.

A já referida fundação do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, em 1131, constitui u m dos primeiros marcos. Protegido pela estirpe régia, panteão dos dois primeiros reis, o mosteiro crúzio irradiaria imediatamente a sua influência pelas dioceses do Porto, Braga e Lisboa, levando à adopção da vida canonical em mosteiros tão importantes como São Vicente de Fora, Grijó, São Simão da Junqueira e outros. Só superado em riqueza pelo Mosteiro de Alcobaça, deten-tor de património vastíssimo centrado na diocese de Coimbra (Leiria sobretudo) mas estendendo-se às de Évora, Lisboa e Cidade Rodrigo (transferido para o Mosteiro de Santa Cruz de Cortes, após fundação deste), o mosteiro era pa-droeiro de numerosas igrejas localizadas na diocese conimbricense e gozava de jurisdição eclesiástica plena em cinco das dez paróquias do priorado de Leiria.

Ou t ro importante mosteiro canonical era São Jorge de Coimbra, influente na Covilhã, ao qual pertencia o padroado da Igreja de Santa Maria Madalena

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de Portalegre, doado por D. Afonso III. T a m b é m o Mosteiro de São Pedro de Folques em Arganil, igualmente detentor do padroado de igrejas na diocese da Guarda, tinha relações estreitas c o m Santa Cruz. O mosteiro de Celas j u n t o à ponte de Coimbra, futuro Mosteiro de Santa Ana, era de irmãs crúzias.

Impacte igual ou maior teve a implantação da o rdem cisterciense na d io-cese. Principalmente devido aos mosteiros femininos de Celas de Guimarães (para onde foi transferida a comunidade de Celas de Alenquer) e de Lorvão (de onde foram expulsos os monges benedit inos aí existentes), entregues ao senhorio das infantas Teresa e Sancha, filhas de D. Sancho I, no início do sé-culo x m . Além de Celas e Lorvão, existiam igualmente as comunidades mas-culinas de São Paulo de Almaziva e de Seiça.

A lista de 1320 refere ainda as monjas beneditinas de Semide, convento localizado perto de Miranda do Corvo .

O Mosteiro de Santa Clara (a cujo padroado pertencia a Igreja de São Pedro de Gouveia em 132o)159 tinha então dimensões ainda b e m modestas, fundado que fora pouco antes, em 1288. Desde a segunda década do século x m que os Frades Menores (1221) e Pregadores (1227) haviam criado casas na ci-dade, estabelecendo-se os Franciscanos em Leiria em 1231. C o m o mostrou J o -sé Mattoso, o modelo de espiritualidade crúzia desenvolvido na urbe por Santa Cruz propiciou o êxito do mov imen to mendicante na cidade160 .

Defensora da fronteira a sul de Coimbra entre 1128 e 1147 e participante activa na conquista de Santarém e Lisboa, a O r d e m do T e m p l o dominava nos eclesiásticos de dois núcleos territoriais do arcediagado de Penela: na ba-cia dos rios Anços/Arunca , as igrejas de Ega, Soure, Red inha e Pombal e, j u n t o ao rio Zêzere, no extremo sudeste da diocese, nas igrejas de Dornes, Ferreira do Zêzere e Poços.

Fronteira em época anterior a esta, duas outras ordens militares estavam também presentes no arcediagado de Seia, mas menos: os Hospitalários e m Oliveira do Hospital e Figueiró, j u n t o à fronteira c o m a Guarda, e os cava-leiros de Avis no Casal.

VISEU Limites — A antiga diocese visigótica de Viseu foi restaurada em 1147, na

mesma ocasião da sua «irmã gémea» de Lamego. Após a conquista de Lisboa, como atrás referimos para a diocese de Coimbra, o rei D. Afonso Henriques nomearia bispos para ambas, separando-as do bispado de Coimbra — a cujas autoridades eclesiásticas havia sido confiada a administração da diocese viseense desde a restauração da diocese conimbricense no último quartel do século xi.

Na lista de 1320, as cerca de 160 igrejas do espaço diocesano viseense apresentam-se agrupadas em sete regiões. D e oeste para leste podemos e n u -merá-las: arciprestado de Lafões, arciprestado de Besteiros, igrejas de A q u é m -- M o n t e , igrejas de Aguiar, igrejas de Trancoso e te rmo, igrejas de Pinhel e te rmo e igrejas de Castelo M e n d o . Surge ainda uma oitava região denomina -da igrejas da Mouraria, que não conseguimos localizar161.

E m 1279-1321, o rei apresentava os párocos à confirmação do bispo e m cerca de 30 freguesias em toda a diocese de Viseu. Nesse per íodo, a inf luên-cia do padroado régio encontrava-se em todo o território, com excepção de Castelo M e n d o e Pinhel1 6 2 .

Freguesias m e d i e v a i s — N a fronteira com a diocese de Coimbra, a oes-te, ficavam o arciprestado de Lafões e o arciprestado de Besteiros. N o centro da diocese, envolvendo a civitas, encontramos as igrejas de Aquém-Mon te . Ainda na zona central mas para norte, fazendo já fronteira com Lamego, fica-vam as igrejas de Aguiar. Depois, a leste, v inham primeiro as igrejas de Tran -coso e termo e, fazendo fronteira com os bispados de Cidade Rodr igo e da Guarda, as igrejas de Pinhel e termo e as igrejas de Castelo Mendo .

O arciprestado de Lafões, tendo por núcleo central a terra de Lafões (São Cristóvão, São Pedro do Sul, Sul, Vouzela, Santa Cruz), abrangia todo o n o -roeste da diocese em t o m o do rio Vouga, começando j u n t o ao limite c o m Coimbra e fazendo toda a fronteira com Lamego até à zona u m pouco a leste

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do eixo Viseu-Castro Daire. Esta sub-região da diocese viseense era delimitada pelas serras da Gralheira (nordeste), Arada (norte) e Caramulo (sul), estreitan-do-se a partir da área de Lafões/Sul e conf ron tando c o m o rio Vouga a sul.

Entre as cerca de 45 igrejas do arciprestado, conseguimos identificar na ex-trema nordeste a noroeste da fronteira c o m Coimbra as paróquias de Junqueira, Santa Maria de Sever, Ribeiradio, Arcozelo, Reigoso, Campia, Alcafaz, Álcofra e, já no Caramulo, São João de Souto. Depois, subindo o Vouga, encontramos na zona de Lafões propriamente dita as freguesias de Vouzela, Santa Cruz, o mosteiro cisterciense de São Cristóvão de Lafões, São Paio de Oliveira (hoje de Frades), São Pedro do Sul e, mais a norte, Sul e Figueiredo de Alva, entre o u -tras. N a extrema leste desta área diocesana ficavam as freguesias de São Pedro de Mões e Santa Maria da Várzea. São Pedro do Sul e Santa Maria de Vouzela, jun tamente c o m as igrejas de São Mar t inho de Alva de Reriz, São Miguel do Mato, Santa Maria de Pidelo, Santa Maria de Pepim e São Miguel de D o m a -mouros (mais tarde Mamouros) pertenciam ao padroado régio.

N o sudoeste da diocese, a sul da serra do Caramulo , fazendo fronteira c o m o bispado de Co imbra , localizavam-se as cerca de 20 freguesias do arei-prestado de Besteiros. Esta zona estava centrada nas freguesias de São Tiago e Santa Eulália de Besteiros, Molelos, Ardavaz, Tonde la e T o n d a , f icando a sul, a caminho do M o n d e g o , as paróquias de Tre ixedo , Papízios, P inhe i ro de Àzere e Parada, e a nor te as de Fráguas e Caparrosa. O rei apresentava os pá -roços e m quatro igrejas, a saber, São Salvador de Castelões, São Mar t inho de Ó v o a , Santa Maria de Tonde la e São Pedro de Molelos.

E m seguida, a lista de 1320 apresenta a maior área dent ro da diocese de Vi -seu c o m o igrejas de A q u é m - M o n t e . A designação, característica de q u e m vive no planalto beirão, não pode deixar de referir-se à região a oeste onde p redo -minava a serra do Caramulo — enquadrada pelos arciprestados de Lafões e Besteiros. As quase 50 paróquias de «Aquém-Monte» estendiam-se do rio Vouga, a norte, ao rio M o n d e g o , a sul, até à fronteira c o m a zona de T r a n c o -so e a diocese da Guarda (Celorico) a leste. Reun indo -a s e m dois grupos, E n -tre Vouga e D ã o e Entre Dão e M o n d e g o , encontramos, entre outras, no pri-meiro as freguesias de Silgueiros, São Mar t inho e Santa Eulália do C o u t o (da cidade de Viseu?)163, Lordosa, Cepões, Cavernães, São Miguel de Budiosa, Santa Maria de Sátão, São Mar t inho de P indo e São Miguel de R i o de M o i -nhos (as quatro últimas do padroado régio), e, no segundo, Oliveira do C o n -de, Cabanas, Canas de Senhor im, Senhorim, Alcafache, os mosteiros de M a -ceira-Dão e de Santa Eufêmia de Ferreira de Aves, São Miguel de Fornos de Azurara (Mangualde), Matança, São Julião de Azurara, São Pedro de Santar, São Pedro de Penalva do Castelo, Santa Maria do Castelo de Tavares, São M i -guel de Fornos de Algodres e São Pedro de Pena Verde. O s párocos das seis últimas paróquias eram apresentados pelo rei, b e m c o m o os de duas outras igrejas de A q u é m - M o n t e : São Miguel de Ribafeita e Santa Maria de Gulfar.

A nor te de «Aquém-Monte», l indando c o m a diocese de Lamego, ficava o território denominado igrejas de Aguiar, incluindo apenas três freguesias: na vila as de São Pedro e Santo Eusébio1 6 4 ; a sudeste de Aguiar, ficava Santa M a -ria de Carapitos. A pequena dimensão desta área administrativa, a sua localiza-ção j u n t o à diocese de Lamego e o facto de as duas da vila (Santo Eusébio e São Pedro) terem c o m o pat rono o rei, faz-nos pensar se Aguiar da Beira não teria uma importância estratégica para o eclesiástico régio na diocese de Viseu.

N a região oriental encon t ramos pr imeiro as 16 freguesias denominadas igrejas de Trancoso 1 6 5 . N a vila e imediações identif icamos nada menos que nove paróquias: Santa Maria, Santa Maria do Sepulcro, Santa Luzia, São T o -mé, São Miguel , São Bar to lomeu , São Tiago, São Ped ro e São J o ã o de Vila N o v a de Trancoso , sendo as três últimas do padroado régio. N o te rmo, loca-lizado a leste de Trancoso, f iguram, entre outras, as igrejas de Freches, Maçai, Vila Franca (então do Conde ) , More i ra de R e i e São João da Póvoa de R e i (no século xii i ainda São João de Póvoa de Ervas Tenras, ou de Póvoa N o v a de l -Rei ) . Nestas duas, c o m o a designação b e m explica, era o rei q u e m apre-sentava o pároco.

A leste de Trancoso , no limite oriental do espaço diocesano viseense,

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j u n t o às dioceses de Lamego, C idade R o d r i g o e Guarda, ficavam as cerca de 2o paróquias designadas c o m o igrejas de Pinhel . Na vila encon t ramos as oi to freguesias de Santo André , São Pedro , Santa Maria Madalena, São Mar t inho , Santa Maria do Castelo, São Tiago, São Salvador e São João (esta da O r d e m do Hospital), localizando-se j u n t o dela a Igreja de São J o ã o do Seixo. A oeste da vila, entre esta e o t e rmo de Trancoso, c o m a fronteira lamecense a norte , identif icamos as paróquias de Santa Eufêmia e Valbom. Seguindo para sul, j u n t o ao t e rmo de Trancoso, ficava pr imeiro a paróquia de Ervas Tenras e depois, j á per to da diocese da Guarda, as de Freixedas e Lamegal. J u n t o à fronteira cudana c o m Cidade Rodr igo , face a Almeida e Castelo B o m , si-tuavam-se as freguesias de Valverde e Atalaia — n o m e b e m sugestivo da res-pectiva posição estratégica.

F o r m a n d o uma «bolsa» a sul do t e rmo de Pinhel , entre os territórios d io -cesanos da Guarda e Cidade R o d r i g o , estavam localizadas as 1o igrejas da te r -ra de Castelo M e n d o , as freguesias mais distantes da civitas viseense. D o lado oriental, as paróquias da vila (São Vicente, Santa Maria e São Pedro , esta do padroado régio), j u n t a m e n t e c o m Santa Maria de Leomil e Po r to de Ove lha conf ron tavam c o m Ribacoa . D o lado ocidental , Cerzeira (do Moste i ro de Santa Maria de Aguiar), Cabreiros e More i ra vol tavam-se para a Guarda. N ã o encont rámos apresentações régias a quaisquer igrejas de Pinhel .

Ordens religiosas — Na lista de 1320, além do antigo mosteiro beneditino de Santa Eufemia de Ferreira de Aves e dos cistercienses de São Cristóvão de La-fões e Maceira-Dão, a única instituição referida é a O r d e m do Santo Sepulcro, à qual estava anexo o mosteiro de Vila Nova, incluído entre as «igrejas de A q u é m --Monte» e, por dedução a partir do nome (não encontrado e m outra igreja do território português), a Igreja de Santa Maria do Sepulcro e m Trancoso.

Integradas no padroado da O r d e m de São João do Hospital estavam as igrejas de São João e m Pinhel e a de Ansemil (no arciprestado de Lafões). N a região d o arciprestado de Besteiros figura a única freguesia da O r d e m de Cristo: P inhe i ro de Ázere.

L A M E G O L i m i t e s — A diocese de Lamego foi restaurada e m 1147, j u n t a m e n t e

c o m Viseu, sendo ambas desmembradas da diocese de Co imbra . Manue l Gonçalves da Costa não faz referência específica às fronteiras da

diocese de Lamego entre os séculos XII e xv, m e n c i o n a n d o quase exclusiva-m e n t e os limites diocesanos na época suevo-visigótica1 6 6 . Supomos que tal si-lêncio significa que a linha divisória seria pacífica relat ivamente às dioceses de C o i m b r a e Viseu, c o m as quais confrontava a oeste e sul. Até 1147, r ecorde --se, as três haviam coexistido dent ro do espaço conimbricense .

Q u a n t o aos limites c o m o Por to , c o m a qual confrontava a oc idente e nor te (com o D o u r o de pe rme io neste quadrante) , estes teriam ficado def ini -dos ainda antes da restauração da diocese quando , entre 1132 e 1137, a ju r i sd i -ção dos bispos do Por to sobre a terra de Santa Maria se firmou (ver limites da diocese d o Por to , supra).

A leste, a região entre Côa e Águeda seria integrada e m Lamego e m 1403, depois de per tencer à diocese de Cidade R o d r i g o .

Lamego lindava c o m as dioceses de Braga, Por to , Co imbra , Viseu e C i -dade R o d r i g o . Apenas a partir de 1403, ao integrar as terras de Ribacoa , pas-saria a ter confrontações c o m a diocese da Guarda.

Fregues ias m e d i e v a i s — Manue l Gonçalves da Costa agrupa as f r egue -sias medievais da diocese de Lamego em 15 núcleos: Lamego (civitas e t e rmo) , Tarouca , Caria e Moimen ta , Armamar , Tabuaço , São J o ã o da Pesqueira, N u m ã o , Meda , P e n e d o n o , Sernancelhe, Alto Paiva, Castro Daire , R e s e n d e , Cinfães e, po r úl t imo, Paiva e Arouca1 6 7 . As paróquias de R ibacoa , integradas na diocese de Lamego e m 1403, são referidas na secção dedicada à diocese de Cidade R o d r i g o — à qual per tenciam. A presença do padroado régio na d io -cese de Lamego, particularmente forte no aro da civitas e nas terras de N u m ã o ,

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A D O E S P A Ç O

Igreja de São Martinho dos Mouros (séculos xn-xni) .

F O T O : JOSÉ M A N U E L OLIVEIRA/ /ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

Castro Daire e M e d a e quase ausente nos territórios de Tarouca , Sernancelhe e Alto Paiva, parece ter enfraquecido a partir do re inado de D . Dinis.

N a cidade de Lamego, existiam duas freguesias — Sé e Almacave. N o ter-m o (denominado aro), são identificadas 23 paróquias, a saber, Avões, Bagaús-te, Balsemão, Britiande, Cepões , Ferreirim, Mós , Ferreiros de Avões, Lalim, Magueija , Melcões, Parada do Bispo, Sande, Várzea de Abrunhais , Lazarim, Mei j inhos, Penajóia, São Mar t inho de Cambres , São Miguel de Belães, São Pedro de Penude , Samodães, Valdigem e São João de Figueira (das quais as nove últimas eram do padroado régio, sendo o pároco de Figueira apresenta-do al ternadamente pelo rei, pelos herdadores e pela l inhagem de Berredo). A partir do reinado do Lavrador, con tudo , a influência do rei n o aro l amecen-ce diminuiria: Valdigem seria doada ao bispo de Lamego (depois de 1289), La-zarim a D . Estevainha Pires de Alvarenga (1302), Samodães ao Moste i ro de São João de Tarouca (1306) e, a partir da segunda metade do século xv, as igrejas de Mei j inhos e Penajóia deixariam de per tencer ao padroado régio.

N o arciprestado de Tarouca , centrado na bacia hidrográfica do rio Va ro -sa, surgem quatro paróquias (Tarouca, Dalvares, M o n d i m e Várzea da Serra) e seis igrejas anexas, ou seja, u m total de 10 igrejas.

E m terra de Caria e M o i m e n t a e ram sete as freguesias medievais (Santa Maria e São Paio de Caria, M o i m e n t a da Beira, Leomil, Cabaços, São Fins e Peravelha) c o m sete igrejas anexas — u m total de 14 igrejas. A o padroado ré -gio per tenceu, apenas até ao século xv, a Igreja de São Paio de Caria.

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Entre as zonas anteriores e o rio D o u r o , do Varosa ao Távora , ficava a região montanhosa do arciprestado de Armamar , com quatro paróquias (São Miguel de Armamar , Fontelo, Folgosa e São Mar t i nho das Chãs) e 11 igrejas anexas, representando u m total de 15 igrejas. O rei apresentava o pároco nas igrejas de São Miguel de Armamar , Ermida de São D o m i n g o s de Q u e i m a d a e São Ped ro de Que imada , anexa a Folgosa.

Nas acidentadas terras do arciprestado de Tabuaço , e m to rno da bacia do rio Távora , existiam quatro paróquias (Tabuaço, Sabroso, Granja do T e d o e Aldeia de Sendim) e 10 igrejas anexas, cor respondendo a u m total de 14 igre-jas. Granja do T e d o talvez tivesse per tenc ido ao padroado régio, mas só até ao século xv.

D o u r o acima, o arciprestado de São J o ã o da Pesqueira era fo rmado por seis freguesias (São Pedro, São T iago e São João da Pesqueira, Soutelo , T r e -vões e Paredes da Beira) e u m a igreja anexa, total izando sete igrejas. O rei apresentava o pároco e m São J o ã o da Pesqueira.

Alcandorada sobre o rio, na fronteira c o m a diocese de Cidade R o d r i g o , a rochosa terra de N u m ã o abrangia sete paróquias (São Pedro de N u m ã o , Santa Maria de N u m ã o , Valbom, Hor ta de N u m ã o , Muxagata , C e d o v i m e Santa Maria da Veiga e m Foz Côa) e quat ro anexas, n u m total de 11 igrejas. A forte influência do padroado régio — igrejas de São Pedro e Santa Maria de N u m ã o , Santa Maria de Vale de Boi , Santa Maria e São João de C e d o v i m e Santa Maria da Veiga e m Foz C ô a — diminuiu c o m a doação de São P e -dro e São João ao bispo de Lamego (1302 e 1304). E m 1403 as duas paróquias de C e d o v i m seriam unidas n u m a só, sendo o respectivo pároco n o m e a d o al-te rnadamente pelo bispo e pe lo rei.

E m b o r a designada por arciprestado da Meda , a região e m causa era d o m i -nada por Longroiva e Marialva, que fo rmavam c o m N u m ã o os dois centros da linha de fronteira c o m o re ino de Leão, entre 1169 e 1297. E ram oi to as freguesias medievais — a saber, Meda , Longroiva, São João , São Tiago, Santa Maria e São Pedro de Marialva, São Pedro e Santa Maria de Ranhados , além de seis anexas: ou seja, u m total de 14 igrejas n o terri tório. N a região d e p e n -dente de Marialva, a diocese de Lamego lindava c o m as dioceses de Cidade R o d r i g o e Viseu. O rei apresentava párocos às igrejas de São João , São Tiago e Santa Maria de Marialva, b e m c o m o às de São Ped ro e Santa Maria de R a -nhados. Aveloso, igreja anexa à da Meda, t a m b é m per tencera aos reis de P o r -tugal até D . Afonso II, que a d o o u ao bispo de Lamego.

N a agreste região do arciprestado de P e n e d o n o havia três paróquias (São Pedro e São Salvador de P e n e d o n o e Santa Maria de Penela), c o m sete ane-xas, n u m total de 10 igrejas. E ram realengas as igrejas de Santa Maria de P e -nela e Souto de P e n e d o n o , anexa à primeira.

N a extrema meridional das terras altas da diocese de Lamego, no limite c o m a de Viseu, o arciprestado de Sernancelhe t inha três freguesias (Sernan-celhe, Fon te Arcada e Vila da Ponte) e seis anexas, total izando n o v e igrejas.

N a região do Alto Paiva fo ram levantadas quat ro freguesias medievais (Alhais, Fráguas, Pendi lhe e Vila Cova-a -Coe lhe i ra , esta do padroado da O r -d e m do Hospital), c o m duas anexas, total izando seis igrejas.

Per to do rio Paiva, o planalto granít ico do arciprestado de Castro Daire dividia-se por seis paróquias (São Pedro e Santa Maria de Castro Daire, E r -mi da de D . R o b e r t o , Baltar, São João de P inhei ro e Gosende) , além de seis anexas, n u m total de 12 igrejas. E ram realengas as igrejas de São Ped ro e San-ta Maria de Castro Daire, Parada de Ester e São João de Pinheiro , b e m c o m o o moste i ro da Ermida de D . R o b e r t o .

O arciprestado de R e s e n d e era const i tuído por c inco freguesias (Resen -de, Anreade, Aregos, São João de Miomães e São M a r t i n h o de Mouros) , com três anexas, total izando oi to igrejas. O rei era padroei ro das igrejas de São Mar t i nho de M o u r o s e da de São João de Miomães .

Partilhando a mesma paisagem com Resende ficava o arciprestado de C i n -fàes, prolongando-se desde o D o u r o à serra de M o n t e m u r o . O s visitadores percorriam oito freguesias (São João de Cinfães, São Cristóvão de Noguei ra , Santiago de Piães, Ferreiros de Tendais, Santa Cristina de Tendais, Alvarenga,

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Nespereira e M o i m e n t a do Douro ) , que t inham anexos oito templos, n u m to -tal de 16 igrejas. Per tenciam ao padroado régio as paróquias de São João de Cinfães, São Pedro de Ferreiros de Tendais e Santa Cristina de Tendais.

N a ext rema ocidental da diocese, fronteira c o m as dioceses do Por to e de Co imbra , estavam as terras de Paiva e Arouca, c o m seis freguesias (Sobrado, Castelo de Paiva, Santa Mar inha de Rea l , Pedor ido , Arouca e Moldes) e 11 anexas, total izando 17 igrejas. O rei apresentou o pároco de Santa Maria de Sobrado até ao século xv.

M e s m o se acrescentarmos as freguesias da região de Ribacoa unidas à diocese e m 1403, ao total apurado de 187 paróquias da diocese de Lamego (incluindo as anexas), verif icamos que, mais uma vez, existe discrepância c o m o valor de 182 indicado na bibliografia168 . Esta discrepância entre contagens, possivelmente devida a critérios diferentes de contabilização, sublinha de n o -vo a necessidade de uni formização daqueles, de m o d o a permit i r u m levanta-m e n t o rigoroso das paróquias medievais.

O r d e n s re l ig iosas — A influência cisterciense era p redominan te na d io -cese de Lamego, aí exist indo quatro conventos da o rdem: Arouca, de monjas (em 1320 o segundo moste i ro cisterciense mais rico de Portugal , a seguir a Alcobaça), São J o ã o de Tarouca , Salzedas e São Ped ro das Águias. São J o ã o de Tarouca foi o pr imei ro conven to da o r d e m fundado e m Portugal , ainda quando o terr i tório lamecense se encontrava sujeito ao bispo de Coimbra 1 6 9 .

E m Lamego estavam localizados igualmente os mosteiros benedi t inos fe-mininos de Tarouque la e Rec ião , este menos impor tante . Tarouque la — ini-cialmente masculino, p r imei ro benedi t ino , depois canonical — passaria às monjas bentas n o final do século XII, não sem resistência da comun idade de cónegos regrantes aí residente. Q u a n t o a Rec ião , e m plena decadência n o se-g u n d o quartel do século xv, foi palco de agitadíssima disputa pela sua tutela entre duas facções de monjas de vida bastante secular e os frades Lóios, envia-dos para reformar o convento 1 7 0 .

Ref i ram-se igualmente o moste i ro canonical de Cárquere , ligado aos se-nhores de Resende , e o antigo eremitér io da Ermida de D . R o b e r t o (ou Santa Maria de Paiva), depois mosteiro premonstratense, v inculado ao pa-droado régio171 .

A influência da O r d e m do T e m p l o / C r i s t o era significativa na região oriental da diocese — entre 1169 e 1297 fronteira c o m o re ino de Leão. E m 1320, per tenc iam aos cavaleiros de Cristo as igrejas de Muxagata (terra de N u m ã o ) , Meda , Longroiva e Fonte Longa. T a m b é m São Pedro de Marialva e a anexa de São Pedro de Vale de Ladrões são referidas p o r Manue l Gonça l -ves da Costa c o m o per tencentes aos Templár ios .

CIDADE RODRIGO ( P A R T E P O R T U G U E S A )

L i m i t e s — As paróquias situadas entre os rios C ô a e Águeda, chamadas terra de Ribacoa , per tenceram à diocese de Cidade R o d r i g o até 1403, ano e m que fo ram transferidas para a diocese de Lamego. Manue l Gonçalves da Costa inventaria cerca de 50 freguesias neste terri tório, entre igrejas pa ro -quiais e anexas172, n ú m e r o coincidente c o m as 54 indicadas c o m o transferidas e m 4 de Ju lho de 1403173.

E m 12 de Se tembro de 1297, po r acordo celebrado e m Alcanices, o rei de Castela e Leão Fernando IV desistia de Ribacoa , que passava a integrar o te r -ritório senhoreado por seu fu tu ro sogro, o rei de Portugal D . Dinis. N o ecle-siástico, po rém, a tutela do terri tório con t inuou a per tencer ao bispo de C i -dade R o d r i g o .

A sucessiva nomeação de dois leoneses para a sé lamecense entre 1302 e 1312, pelos papas Bonifácio VIII e C l e m e n t e V, poderá ter-se dest inado a contrabalançar a perda de influência da monarqu ia castelhano-leonesa na re-gião. Segundo M . Gonçalves da Costa, e m 1302 o papa teria seguido o inusi-tado p roced imen to de n o m e a r o bispo D . Afonso das Astúrias, an te r iormente cónego de Palência, sem intervenção do cabido e sem aguardar o benepláci to prévio do rei174.

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Fregues ias m e d i e v a i s — A lista de 1320 indica os principais centros da região: Castelo R o d r i g o , Almeida, Castelo B o m , Vilar Maior , Sabugal e, f i-na lmente Alfaiates, cada qual c o m os seus termos.

C o m e ç a n d o de nor te para sul, na área denominada igrejas de Castelo R o d r i g o localizava-se o maior n ú m e r o de freguesias — cerca de 20. Ent re elas, na zona ocidental, de fronteira pr imeiro c o m a diocese de Lamego e de -pois c o m a de Viseu, ficavam São Salvador de Castelo Melhor , Santa Maria, São Salvador e São Tiago de Almendra e Santa Maria de Penha de Aguiar1 7 5

(Lamego) e Vilar T o r p i m (Viseu). Mais para o interior, Santa Maria e São João de Castelo Rodr igo , São Vicente de Figueira de Castelo Rodr igo , São Pedro de Almofala, Vilar Torp im, Escalhão, Algodres, Vilar Amargo, São Miguel de Escarigo e Santa Maria de Vermiosa e, limite sul, Malpartida.

A fronteira c o m a diocese de Viseu cont inuava nas freguesias de Almeida, Castelo B o m e Vilar Maior .

N o g rupo das igrejas de Almeida f iguram apenas, na lista de 1320, as três freguesias de Santa Maria de Almeida, Santa Maria Madalena de Vale da J u n -ça e Santa Maria de Vale da Mula .

Das igrejas de Castelo B o m faziam parte as paróquias de Santa Maria e São Mar t i nho de Castelo B o m , São João de Vilar Formoso , São Tiago de Nabais, Santa Maria de Freineda e São Ped ro de R i o Seco.

As seis freguesias de Vilar Ma io r eram São Pedro e Santa Maria de Vilar Maior , São João de Malhada Sorda, Santa Maria de Besmula, São Bar to lo-meu de N a v e de H a v e r e São João de Fermelo.

Dos últ imos dois grupos de freguesias, Sabugal e Alfaiates, só o pr imeiro lindava c o m uma diocese portuguesa — a da Guarda.

As 14 paróquias do Sabugal incluíam, além de São João, Santa Maria do Castelo, São Tiago, São Lourenço , Santa Maria Madalena, São Migue l e São Pedro , as sete da vila, as freguesias de São Miguel de Aldeia do Bispo, Q u a -drazais e Santa Maria do Souto.

Entre as sete igrejas de Alfaiates contavam-se São Tiago e São João da vila e, ainda, a de Santa Maria de Aldeia da Ponte , Peça e Santa Maria de Vila Flor.

N ã o surgem quaisquer apresentações às igrejas da diocese de Cidade R o -drigo nas listas do padroado régio de D. Afonso III e D . Dinis. A t e n d e n d o à sua incorporação no terri tório por tuguês depois de 1297, c o m o Tra tado de Alcanices, após longa integração no re ino de Leão desde 1169, esse facto não causa admiração.

O r d e n s re l ig iosas — M u i t o per to de Figueira de Castelo R o d r i g o fica-va o Moste i ro de Santa Maria de Aguiar, or ig inalmente de fundação bened i -tina mas integrado na o rdem cisterciense n o ú l t imo quartel do século XII.

N a freguesia de Pereiro, das igrejas de Castelo R o d r i g o , teve provável -m e n t e a sua primeira sede a O r d e m Militar de São Jul ião do Pereiro, mais tarde de Alcântara após a sua transferência para a cidade leonesa do m e s m o n o m e , situada j u n t o à margem esquerda do rio T e j o — mui to per to da f r o n -teira com a diocese da Guarda. E m 1320, o padroado da igreja ainda pertencia aos cavaleiros de Alcântara.

G U A R D A L i m i t e s — Erigida entre 1199 e 1203 n o lugar da antiga diocese visigótica

da Egitânia (Idanha-a-Velha), a diocese da Guarda o c u p o u uma posição cen-trai n o terri tório por tuguês , con f ron tando a oeste e noroes te c o m Co imbra , a nor te e nordeste c o m Viseu, a leste c o m as dioceses de Cidade R o d r i g o (La-mego , a partir de 1403, depois da integração de R ibacoa neste terr i tório d io -cesano) e Coria , a sudeste c o m Badajoz, a sul c o m Évora e a sudoeste c o m Lisboa176.

A fundação da diocese da Guarda veio abrir conflitos c o m os bispados v i -zinhos sobre territórios fronteiriços. O litígio de maiores proporções , c o m Coimbra , arrastou-se entre 1204 e 1256, c o m sucessivas mediações de juízes apostólicos delegados. E m 27 de Abril de 1256, sentença definitiva proferida pelo papa Alexandre IV atribuía ao bispo da Guarda as igrejas de Be lmonte ,

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Inguias, Olas (mantendo o bispo de C o i m b r a o senhorio secular das mesmas), Celor ico, Misarela, Prados e V i d e m o n t e e ao bispo de C o i m b r a Linhares e seu t e rmo e a parte do t e r m o de Seia e m litígio177. Antes de resolvido o c o n -flito c o m Coimbra , breve do papa Inocêncio IV dava solução, e m 1249, ao litígio que o p u n h a os bispos de Guarda e Viseu, a t r ibuindo as igrejas do aro e de J e rme lo e as de Castelo M e n d o ao segundo1 7 8 . Segundo Pinharanda G o -mes, o litígio c o m Évora f icou resolvido quando, e m 1241, o bispo D . V icen -te se c o m p r o m e t e u a aceitar a resolução dada pelo chantre de Lisboa e pelo arcediago da Covi lhã sobre as terras egitanienses de a l ém-Te jo , que não iam além do t e rmo de Portalegre1 7 9 .

Fregues ia s m e d i e v a i s — A lista de 1320 divide as quase 220 paróquias do terr i tório diocesano da Guarda por 10 zonas: Guarda (cidade e te rmo) , Celor ico (vila e te rmo) , Be lmon te , Sortelha, Penamacor , Monsan to , Por ta le-gre, Marvão e Castelo de Vide, Abrantes e Covi lhã. O eclesiástico da diocese da Guarda era inf luenciado pelo padroado das ordens militares, sobre tudo do T e m p l o / C r i s t o , mas t a m b é m do Hospital e de Avis e Alcântara, estas duas e m mui to m e n o r grau. O padroado régio não era significativo.

A sul a diocese da Guarda prolongava-se além do Te jo , e m dois co r r edo -res. O pr imeiro , es tendendo-se da m a r g e m direita à m a r g e m esquerda do T e j o e fazendo fronteira nas duas margens c o m a diocese de Lisboa, reunia as 15 freguesias denominadas igrejas de Abrantes. N a margem direita do Te jo , este g rupo incluía, entre outras, as de Vila de R e i , Mart inchel , A m ê n d o a , Mação , Alcaravela, as c inco de Abrantes (Santa Maria do Castelo, São Vicen -te, São João , São Tiago e São Pedro) e a de São Julião de P u n h e t e (Cons tân-cia); na margem esquerda, surgem-nos a de Longome l e a de São Francisco de P o n t e de Sor — esta na ext rema sul dos limites c o m Évora1 8 0 . N o s re ina-dos de D . Afonso III e D . Dinis, per tenciam ao padroado régio nesta zona as igrejas de Santa Maria, São João e São Pedro de Abrantes, Vila de R e i e São Julião de Punhe t e , esta cedida ao bispo da Guarda e m 1292.

Ainda a sul do T e j o , mais a leste, separado da zona de influência de Abrantes por u m p ro longamen to da diocese de Évora até ao T e j o pelo Cra to e Amieira (onde predominava a O r d e m de São João do Hospital), ficava o segundo corredor . Nes te estavam situadas 18 freguesias: as sete agrupadas nas igrejas de Marvão e Castelo de Vide (incluindo Alegrete) e as oito corres-ponden tes às igrejas de Portalegre, além das três freguesias transtaganas das igrejas da Covi lhã (Montalvão, Alpalhão e Santa Maria de Nisa)181 . N o p n -mei ro grupo , e ram do rei Santa Maria e São Tiago de Marvão, Santa Maria, São Ped ro e São Salvador de Castelo de Vide e São João de Alegrete. Nas listas do padroado do reinado de D . Dinis não figura qualquer apresentação relativa a Portalegre, depois de D . Afonso III ter n o m e a d o párocos para as igrejas de São Vicente , São Tiago e São Mar t inho entre 1260 e 1266182. Teria o padroado das igrejas de Portalegre feito parte do senhorio doado pelo Bolo-nhês ao seu filho segundo D . Afonso e m 1271, ao contrár io do das de Castelo de Vide e Marvão (cujas apresentações p e r m a n e c e m ao longo do pe r íodo dionisino)1 8 3?

A maior subdivisão do espaço diocesano egitaniense apresentada na lista de 1320 abrangia as 74 igrejas da Covi lhã, abarcando toda a zona central e ocidental da diocese, a nor te e leste das igrejas de Abrantes1 8 4 . M e n o s aperta-da na área meridional , a malha paroquial incluía, entre outras, as freguesias de R ó d ã o , Castelo Branco, Quebrada , Sarzedas e São T iago de Sovereira Fo r -mosa (esta do padroado régio) e, mais a oeste, e m zona de influência dos Hospitalários, Sertã, Maceira, Oleiros e Álvaro. Mais para nor te o n ú m e r o de paróquias parece aumentar , p r imei ro ao longo da fronteira serrana ocidental c o m C o i m b r a (Pampilhosa, Cambas, Janeiro , Dornelas, O u r o n d o , Silvares) e, depois, e m to rno da Covi lhã e do Fundão . N a Covi lhã existiam 13 igrejas: São Salvador, São Pedro , São Bar to lomeu , Santa Maria Madalena, São D o -mingos, Santo Estêvão, São Mar t inho , São Miguel , São Silvestre, São Tiago, São Lourenço , São Vicente e Santa Maria do Castelo, sendo o pároco desta apresentado pelo rei. N a região e m to rno do Fundão existiam, entre outras,

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A C O N S T R U Ç Ã O D E U M A I G R E J A

Mapa dos conventos franciscanos, dominicanos e de clarissas (reproduzido in José Mattoso, História de Portugal, 11, p. 234).

as freguesias de Castelejo, Fundão , Alcongosta, Sou to da Casa, Alpedrinha, Alcaide, Valverde, Fatela, São Vicente da Beira, Lardosa, Bemposta , Pêro Vi -seu, Capinha , Paul, To r to sendo , Peraboa, Caria, Orjais, Teixoso, Verdelhos e Santa Maria da Mata, esta do padroado régio. N o ex t r emo nor te , f icavam a freguesia do Colmeal e, encravadas na serra da Estrela, as igrejas de Manteigas (São Ped ro era do rei) e a de Valhelhas.

A leste do distrito eclesiástico covilhanense, j u n t o à fronteira , localizava--se uma região de for te influência da O r d e m do T e m p l o / C r i s t o . Aí se situa-vam as freguesias cor respondentes às igrejas de M o n s a n t o (13, inc luindo, além das duas igrejas de Monsan to , Rosman inha l , Segura, Salvaterra, Ida-n h a - a - N o v a , O ledo , Acha, Proença-a -Velha , Penha Garcia, Mede l im , Al-deia de J o ã o Pires e Aldeia de D . Salvador). En t r e 1310 e 1318 surgem diversas apresentações do rei às igrejas de Rosman inha l , Salvaterra, Idanha-a-Velha , Segura, P roença-a -Velha , Acha e O ledo . Tal c o m o e m Nisa, t ra tou-se so-m e n t e de uma interferência temporár ia do padroado régio, dev ido à ex t in -ção da O r d e m do T e m p l o . C o m a criação da O r d e m de Cristo, e m 1319, es-tas igrejas fo ram integradas n o padroado da nova milícia, sendo referidas pela avaliação de 1320 c o m o per tencentes à o r d e m (excepto a de Oledo) . Das igrejas de Monsan to , era ainda do padroado régio a de Aldeia (que foi) de D . Salvador.

Ainda a leste da região tutelada pela Covilhã, a nor te de Monsanto , as f re-guesias surgem agrupadas e m duas pequenas áreas que confinavam c o m as terras portuguesas da diocese de Cidade R o d r i g o : as igrejas de Penamacor (oito igrejas, incluindo, além das cinco de Penamacor , M e i m ã o , M e i m o a e Santa Maria de Aranhas, pe r t encendo esta e São Ped ro de Penamacor ao padroado régio) e as igrejas da Sortelha (oito igrejas, as três da vila e Moi ta , Bendada, Aguas Belas, Pena lobo e Valverde, sendo do rei Santa Maria de Sortelha).

V e m de seguida o p e q u e n o terr i tór io das igrejas de B e l m o n t e , onde , a lém dos templos da vila, f icavam Olas e Maçainhas . É possível que, a lém de exígua, esta área fosse descontínua1 8 5 .

As igrejas da Guarda e seu t e r m o abrangiam, além das oito freguesias da civitas (Santa Maria do Mercado , Santa Maria do T e m p l o , São Tiago, São J u -lião, São Vicente, São Nicolau, São Pedro e Santa Maria Madalena), outras 41. Algumas, poucas, a oeste (Faia e Videmonte ) e sul (Vela e Aldeia do Bis-po) da cidade. A maioria das paróquias do t e rmo, p o r é m , encontrava-se si-tuada a nordeste, leste e sudeste da Guarda: ora per to da fronteira c o m a d io -cese de Viseu (entre outras, Avelãs, Pêra do M o ç o , Argomil , J e rme lo , Pousade e R o c h o s o ) , ora c o m a de Cidade R o d r i g o (Marmeleiro , Pega, Touro ) , ora mais para o interior (Vila Fernando, Pousafoles e Aldeia de Santa Maria Madalena) . A lém das igrejas de Je rmelo , na região da Guarda restava ao rei e m 1313 a igreja de Marmele i ro , depois de, e m 1292, D . Dinis ter cedi-do ao bispo D . J o ã o Mart ins o padroado das igrejas de Santa Maria do M e r -cado e capela de Mileu 1 8 6 .

N a ext rema setentrional da diocese da Guarda estavam localizadas as cerca de 20 freguesias correspondentes às igrejas de Celor ico e seu t e rmo . En t re outras, conseguimos identificar as de Fo rno Telheiro , Cor t iço , Prados, Rapa , Por to da Carne , Sobral, Açores, Aveloso, Baraçal e Minhoca l , a lém das qua-tro da vila (Santa Maria, Santo André , São João e São Mar t inho) .

E m 1285 e 1309, talvez vestígio residual da situação p o u c o clara causada pelos conflitos fronteir iços c o m as dioceses de C o i m b r a e de Viseu, e m t e m -pos idos mas não m u i t o distantes, encont ramos por engano registadas nas lis-tas do padroado régio c o m o per tencentes à Guarda as igrejas de São Pedro de Castelo M e n d o (Viseu) e Santo Isidro de Linhares (Coimbra) 1 8 7 .

O r d e n s re l ig iosas — As ordens militares, sobre tudo a O r d e m do T e m -p io /Cr i s to , t inham u m grande peso na diocese egitaniense. A lém da p r e p o n -derância na zona das igrejas de M o n s a n t o — seis das quais (pelo menos) lhe per tenc iam — , segundo a lista de 1320 eram três freguesias tuteladas pelos Templár ios na área de influência da cidade da Guarda: Santa Maria do T e m -pio, na cidade, Marmele i ro , Jaiva e Touro 1 8 8 . À o r d e m pertencia ainda o pa-

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A DO E S P A Ç O

droado de 14 das igrejas da Covi lhã, desde Aldeia de Mar t in i Anes a B e m p o s -ta, Castelo N o v o , Lordosa, T o r r e do Alcizado, Fatela, Castelejo, Silvares, Alpedrinha, Castelo Branco , R ó d ã o e Vidigueira e, na m a r g e m esquerda do T e j o , Nisa e Alpalhão. E m Portalegre era sua a Igreja de Santa Maria Maior . O u seja, pelo m e n o s 24 paróquias.

M e n o s inf luente n o eclesiástico, mas c o m vastos domín ios temporais na diocese, a O r d e m de São João do Hospital t inha o padroado de nove igrejas: Santa Maria do Mercado , na cidade da Guarda, Cor t i ço , no t e r m o de Ce lo r i -co, Sertã, Álvaro, Ole i ros e Cort içada, na região oeste da diocese (margem esquerda do rio Zêzere) e, f inalmente , na vila de Portalegre, o n d e nada m e -nos de três paróquias (São Tiago , São M a r t i n h o e São João) lhe per tenc iam e m 1320. A O r d e m de Avis tutelava três freguesias: Valhelhas (na serra da Es-trela), São Vicente da Beira e Santa Maria do Castelo de Portalegre. P o r fim, a lista de 1320 declara pe r t ence rem à O r d e m de Santiago as igrejas de Santa Maria de Mação e A m ê n d o a , na área de influência de Abrantes.

A q u a n d o dessa avaliação, e ram do moste i ro canonical de São Ped ro de Folques de Arganil (diocese de Coimbra) as igrejas de Santa Maria da P a m p i -lhosa (da Serra) e de São J o ã o de Man ta e m C o l o ( termo da Covilhã) , b e m próximas do l imite entre as duas dioceses.

Das ordens mendicantes , até ao final do re inado de D . Dinis apenas os Franciscanos se haviam implantado na diocese: Guarda (1233), Covi lhã (1235) e, depois, Portalegre (1266).

A lista de 1320 refere ainda o moste i ro de Maceira, t r ibutado n u m m o n -tante semelhante ao dos mais débeis mosteiros das dioceses de Braga e Por to . Era cer tamente o moste i ro de Maceira da Covi lhã (ou Santa Maria da Estre-la), referido p o r D o m M a u r Cocher i l c o m o u m dos mais pobres da o r d e m e m Portugal . N ã o encon t rámos sobre ele mais informações 1 8 9 .

D o moste i ro egitaniense de Santo Antão de B e m Espera, irradiaria n o sé-culo x v para Lisboa, Santarém, Pinhel e Besteiros a obra hospitaleira dos C ó -negos Regran tes de Santo Antão, o r iundos de França e instituídos e m o r d e m pelo papa n o final do século XIII190.

BADAJOZ ( P A R T E P O R T U G U E S A )

Dois terri tórios portugueses situados nas margens direita e esquerda do rio Guadiana, j u n t o à fronteira c o m Castela, per tenc iam à diocese de Badajoz. N a m a r g e m direita C a m p o Maior , c o m as igrejas de Santa Clara de C a m p o Maio r e Santa Maria de Ougue la . N a m a r g e m esquerda, Ol ivença , c o m as igrejas de Taliga e de Ol ivença .

E m 1444, já fora do âmbi to desta exposição, o terr i tório seria anexado à diocese de Ceu ta . E m 1472, embora con t inuando a per tencer à diocese de Ceuta , a administração do arcediagado de Ol ivença era atribuída à a rquid io-cese de Braga, a t í tulo de indemnização por trocas c o m o bispo de Ceu ta re -lativas t a m b é m à comarca eclesiástica de Valença. E m 1570 seria f ina lmente incorporado na nova diocese de Elvas191.

LISBOA L i m i t e s — A diocese de Lisboa lindava c o m os territórios diocesanos de

Co imbra , a nor te , Guarda, a leste (em ambas as margens do rio Te jo ) e E v o -ra, a sul. Res taurada e m 1147, n o seguimento da conquista de Santarém e Lis-boa, a nova diocese teve c o m o pr imei ro bispo o inglês Gilbert of Hastings, n o m e a d o pelo rei D . Afonso Henr iques e sagrado pelo arcebispo de Braga, D . J o ã o Peculiar — j u n t a m e n t e c o m os bispos de Viseu e de Lamego 1 9 2 . A diocese olisiponense estaria na linha de fronteira c o m o Islão ( jun tamente c o m a diocese de Évora a partir da conquista desta cidade, e m 1166) até 1217, data da conquista de Alcácer do Sal.

Aparen temen te , o p r imei ro bispo a dar o r d e n a m e n t o às freguesias foi D . Aires Vasques, a instância do papa Alexandre IV, e m breve datado de 27 de Se tembro de 1257. E m 1382, o bispo D . M a r t i n h o teria p roced ido a nova divisão.

E m 1393, a diocese era instituída e m arquidiocese. A nova me t rópo le pas-

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Cabeceira da Igreja Matriz de Atouguia da Baleia.

FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

sava a ter c o m o sufragâneas Lamego, Guarda, Évora e Algarve (Silves). As três primeiras, tal c o m o Lisboa, depend iam an te r io rmen te da me t rópo le compostelana e Silves da sevilhana.

O padroado régio foi importante na diocese de Lisboa, pelo menos até ao reinado de D. Dinis. Nos períodos de 1259-1266 e 1279-1321, os párocos da grande maioria das freguesias dos principais centros urbanos — a saber, Lisboa, Santarém, Sintra, Torres Vedras, Alenquer , Torres Novas, Óbidos , O u r é m e Por to de Mós — surgem nomeados pelo rei. U m a vez que a corte itinerava durante boa parte do ano entre Lisboa e Santarém, os reis precisavam de ter na diocese de Lisboa os benefícios eclesiásticos necessários ao sustento dos clérigos que, na corte, constituíam u m importante pilar da sua administração193 .

Fregues ias m e d i e v a i s — N a Idade Média , o bispado de Lisboa era cia-ramente d o m i n a d o p o r dois centros urbanos grandes e complementares : Lis-boa e Santarém, únicos arcediagados da diocese.

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A lista de 1320, depois de designar estas duas áreas c o m o arcediagados, passa a agrupar as freguesias per tencentes a cada uma sob os títulos «Igrejas de Santarém» e «Igrejas de Lisboa». Além destes dois grupos, a lista subdivide as freguesias do terri tório olisiponense e m mais onze: a sul do Te jo , as igrejas de Almada, de Setúbal e de Palmela; a nor te do rio, as igrejas de Sintra, de M a -fra, de Alenquer , de Torres Vedras, de Óbidos , de Por to de Mós, de O u r é m e de Tor res Novas . A distribuição geográfica das igrejas indicadas na lista evi-dencia algumas descont inuidades e cruzamentos entre os territórios de Santa-rém, Alenquer , Ób idos e P o r t o de Mós.

C o m e ç a n d o pela região no r t e e nordes te da diocese, na f rontei ra c o m as dioceses de C o i m b r a e da Guarda e c o m o isento de Leiria (do Mos te i ro de Santa Cruz) e o isento de T o m a r (da O r d e m de Cristo) , a no r t e das serras dos Candee i ros e de Aire, existiam na época medieval as sete igrejas de P o r -to de M ó s ( incluindo as três da vila, Santa Maria , São Ped ro e São João , as duas últimas do padroado régio, a de Santa Maria de Al jubarrota e, estra-n h a m e n t e agregadas a este g rupo , São Ba r to lomeu de O t a , Santa Maria de Povos e Santa Maria da Azambuja) 1 9 4 e, logo, as c inco igrejas de O u r é m , inc lu indo as qua t ro freguesias da vila (Santa Maria , São João , São T iago e São Pedro) e a paróquia de Freixiedas. Destas c inco, só São T iago não era do rei.

Fachada da Sé de Lisboa.

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

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A C O N S T R U Ç Ã O D E U M A I G R E J A

A sul da área de O u r é m e, j u n t o à serra de Aire e a leste desta, situava-se a região das igrejas de Torres Novas , onde a lista de 1320 contabiliza t ambém cinco freguesias: as quat ro da vila (Santa Maria, São Salvador, São Pedro e São Tiago, todas do padroado régio) e a Igreja de Santa Maria da Serra — talvez cor respondente à actual Almonda .

A sul das serras dos Candeei ros e de Aire situava-se a vastíssima região designada por igrejas de Santarém, cujas mais de 40 paróquias abrangiam toda a região leste e sudeste da diocese de Lisboa (desde a fronteira com as dioceses da Guarda e de Évora, nas margens direita e esquerda do Te jo , até ao eixo R i o Maior /Avei ras , a oeste) e se estendiam ao ex t r emo noroeste d o terr i tór io diocesano olisiponense (nomeadamente as freguesias de Alpedriz, do padroado régio195, Cós e Pederneira). A sul do Te jo , é feita referência às igrejas de U l -me, Montargil , Salvaterra de Magos e M u g e . A lezíria ribatejana da margem esquerda, maiori tariamente integrada na diocese de Lisboa, era atravessada por u m espigão da diocese de Évora consti tuído pelas vilas e termos de C o r u c h e e Benavente , chegando possivelmente até ao Tejo . As freguesias transtaganas da diocese de Lisboa situadas a oeste desta «testa de ponte» eborense já não sur-gern incluídas nas igrejas de Santarém. Na margem direita do rio, as paróquias mais importantes que figuram na lista de 1320 são as de Aveiras, R i o Maior , Almoster, Achete, Pernes, Golegã, Santa Maria do Zêzere, Santa Maria de T o m a r e três igrejas cujos párocos eram apresentados pelo rei: Abitureiras, Azinhaga (já assim denominada em 1320, mas anter iormente conhecida c o m o Santa Maria de Almonda) e Alcanede1 9 6 . Po r fim, evidentemente , as muitas igrejas situadas na vila de Santarém e arredores — Santa Maria da Alcáçova, Santa Iria, São Mateus, São Mar t inho , São Lourenço, São Bartolomeu, São Salvador, Santa Cruz , São Pedro e São João de Alfange (todas do padroado ré -gio), Marvila, São Nicolau, Santo Estêvão, São Julião e São Tiago — , os mos -teiros escalabitanos (Almoster, São Domingos , Santa Clara, Trindade) e dois mosteiros de Lisboa agrupados às igrejas de Santarém: Cheias e Tr indade.

C a m i n h a n d o para oeste, a lista de 1320 dá-nos e m seguida as igrejas de Alenquer . Das c inco freguesias da vila — Santo Estêvão, São Tiago , Santa Maria da Várzea, São Pedro e Santa Maria de Tr iana — eram do padroado régio as três últimas. Pertencia t a m b é m ao rei, já na serra de M o n t e j u n t o , a Igreja de Santa Maria de Aldeia Galega da Merceana (anter iormente M o n t e s de Alenquer) , na fronteira c o m Torres Vedras e Óbidos 1 9 7 . Po r razões que não logramos alcançar, o Moste i ro de Alcobaça (o mais rico de Portugal) e a Igreja de São Leonardo da Atouguia (o mais rico dos benefícios do padroado régio) surgem integrados no t í tulo das igrejas de Alenquer 1 9 8 .

Abrangendo a maior parte da região costeira central da diocese de Lisboa, a sul dos coutos de Alcobaça e até a sul da serra de M o n t e j u n t o , ficavam as oi to igrejas de Óbidos . Nelas se con tavam as quatro freguesias da vila (Santa Maria, São João , São Pedro e São Tiago, sendo os párocos apresentados pelo rei nas duas últimas) e as de Santa Maria de Alvominha , a leste, Santa Maria da Vila Verde , a sul (Monte jun to ) , e Santa Maria da Lour inhã, a sudoeste. Santa Maria da Arruda surge igualmente incorporada e m Ó b i d o s (quando, pela lógica da cont inuidade , deveria estar integrada ou e m Alenquer ou e m Torres Vedras). Encravada no terri tório de Óbidos , recorde-se, ficava a f r e -guesia da Atouguia , associada a Alenquer .

N a zona costeira a sul e oeste dos territórios de Óbidos e Alenquer situa-vam-se as sete igrejas de Torres Vedras, incluindo as quatro freguesias da vila (Santa Maria, São Tiago, São Pedro e São Miguel, todas do padroado régio), Santa Susana de Alcabrichel e, além de Monte jun to , Carvoeira e M o n t e Agraço.

A sul de Torres , na região costeira ocidental , até ao mar, c o m o t e rmo de Lisboa a leste, su rgem-nos as três igrejas de Mafra (Santo A n d r é de Mafra , São Migue l de Alcains e Santa Maria de Cheleiros) e, depois, as c inco igrejas de Sintra, g rupo const i tuído pelas quat ro freguesias da vila (São Pedro, São Mar t inho , Santa Maria e São Miguel , as duas últimas de apresentação régia) e pela paróquia da Enxara do Bispo.

A nor te do T e j o resta referir as mais de 30 paróquias de Lisboa. C o m Sin-tra a oeste e noroeste, Torres Vedras a nor te e, assim o cremos, Santarém a

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nordeste, existiam n o vastíssimo t e rmo olisiponense as freguesias de Alhandra, Tojal, Loures, Odivelas, Belas, Santa Maria de Bucelas, São Silvestre de U n h o s e São Julião de Frielas. Estas três eram do padroado régio, tal c o m o Santa Maria de Sacavém e São João do Lumiar, localizadas, à semelhança de São Lourenço de Carnide e Santa Maria dos Olivais, nos arrabaldes mais p r ó -ximos da cidade. Vejamos as 23 freguesias da urbe lisboeta. D e n t r o da muralha antiga da cidade encontravam-se sete paróquias: além da sé, as igrejas de Santa C r u z da Alcáçova, São Mar t inho , São Bar to lomeu, São Jorge , São Tiago e São João da Praça (as quatro últimas do padroado régio). Fora da cerca moura , mas depois rodeadas pela cerca fernandina, podemos reunir as restantes 16 f re-guesias e m dois grupos. Pr imeiro, no da parte oriental, incluem-se o Moste i ro de São Vicente de Fora, São Pedro, São Miguel e Santo Estêvão de Alfama (as três apresentadas pelo rei) e — entre São Vicente, Alfama e o castelo — as pa-róquias de São T o m é , Santa Mar inha do Oute i ro , Santo André e São Salva-dor. O s párocos das duas últimas eram igualmente de nomeação régia, tal co -m o os das igrejas de São Lourenço , Santa Maria de Alcamim (mais tarde São Cristóvão), São M a m e d e e Santa Maria Madalena, localizadas na parte oc iden-tal da cidade velha, na encosta do castelo. A zona do antigo esteiro do Te jo , na actual Baixa, era abrangida pelas igrejas de São Nicolau, São Julião e Santa Justa199 . A parte ocidental da cidade nova, além da Baixa e até Alcântara, esta-va integrada na freguesia de Santa Maria dos Mártires.

Destas 23 freguesias, e ram as dos Mártires, a oeste, Santa Justa, a noroeste , e Santo Estêvão de Alfama, a nor te , que l indavam c o m os arrabaldes. Sur -p reenden te é a incorporação nas igrejas de Lisboa da igreja de Canha , do pa-droado da O r d e m de Santiago. Esta, quer pela p rox imidade geográfica que r pela afinidade do padroado, deveria surgir associada ou às igrejas de Setúbal ou às de Palmela.

Finalmente , as paróquias da diocese de Lisboa a sul do T e j o , excep to C a -nha, su rgem-nos integradas e m três grupos. E m todos eles, o padroado da O r d e m de Santiago é dominante 2 0 0 .

Nas igrejas de Almada, todas da O r d e m de Santiago, incluíam-se, além das duas freguesias da vila (São Tiago e Santa Maria), a paróquia de Santa Maria de Sesimbra. As duas igrejas de Palmela (São Pedro e Santa Maria) eram t a m b é m santiaguistas, tal c o m o quatro das cinco igrejas de Setúbal (San-ta Maria e São Julião, São L o u r e n ç o de Alhos Vedros e Sabonha). Só a Igreja de Santa Maria de Samora Corre ia não é referida c o m o per tencen te aos cava-leiros espatários.

O r d e n s re l ig iosas — Só c o m D . Afonso III o cen t ro da governação p o -lítica do re ino de Portugal (e, então, do Algarve) se deslocaria para Lisboa. N o entanto , a influência da cidade e da diocese haviam-se reforçado c o m a conquista de Alcácer do Sal, e m 1217, protagonizada pelo p rópr io bispo. Era na diocese olisiponense que se encontrava u m maior e mais diversificado n ú -m e r o de instituições religiosas, invar iavelmente sedeadas na cidade de Lisboa e na vila de Santarém.

A o r d e m cisterciense desempenhava na diocese u m papel crucial: o M o s -teiro de Alcobaça, o mais r ico existente e m Portugal , foi panteão dos reis de Portugal entre D . Afonso II e D . Ped ro I. D . Dinis fez construir o moste i ro f emin ino de Santa Maria de Odivelas, para aí se fazer sepultar201 . A lém de Alcobaça e Odivelas, existiam na diocese de Lisboa os mosteiros femininos de Cós (a no r t e de Alcobaça) e Almoster (próximo de Santarém). E ram do Mos te i ro de Alcobaça o padroado da igreja de M u g e e do moste i ro de O d i -velas o das igrejas de São Jul ião de Frielas e Santo Estêvão de Alenquer .

O Mos te i ro de São Vicente de Fora, f u n d a d o após a conquista da cidade e a restauração da diocese de Lisboa, per tencia aos C ó n e g o s Regran tes de Santo Agost inho. Proprie tár io de vastos domín ios e m zonas limítrofes de Lis-boa (Telheiras e Loures, entre outras), o moste i ro tinha, e m 1320, u m perfil tr ibutário semelhante aos de São J o ã o de Tarouca e Salzedas (mui to distante, pois, dos riquíssimos Alcobaça e Santa C r u z e dos m u i t o ricos Arouca ou Santo Tirso).

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A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

Mapa dos domínios de Alcobaça e dos Templários (reproduzido in José Mattoso, História de Portugal, 11, p. 68).

E r a m n u m e r o s o s os c o n v e n t o s f e m i n i n o s na diocese de Lisboa: a lém de Cós , Odive las e Almos te r , exis t iam as donas de Santos (da o r d e m mil i tar de Santiago) e de Cheias, as clarissas de Santa Clara de Santarém (original-m e n t e estabelecido e m Lamego) e de Lisboa202 , e as domínicas de São D o -mingos de Santarém.

As ordens mendicantes cedo marcaram presença na diocese de Lisboa, aí exercendo desde logo, tal c o m o nas restantes dioceses do C e n t r o e Sul, signi-ficativa influência sobre os m o v i m e n t o s de leigos e m t o r n o de confrarias e ir-mandades2 0 3 . E m b o r a não menc ionados na lista de 1320, supomos que p o r não possuírem bens taxáveis, deve fazer-se referência à presença dos frades menores e m Lisboa. Pr imei ro e m Lisboa e Alenquer (no segundo decénio do século XIII) e, já na década seguinte a 1240, e m Santarém. O s Frades Prega-dores (só mais tarde conhec idos c o m o Dominicanos) t iveram c o m o cent ro de or igem e m Portugal a vila de Santarém, logo em 1218. E m b o r a Santarém fosse u m dos centros urbanos mais antigos e impor tantes na génese da própria o rdem, o conven to de Lisboa cedo g a n h o u ascendente sobre o escalabitano após a sua fundação e m 1241.

Res ta referir a O r d e m da Santíssima Tr indade , da redenção dos cativos. Estabelecida até meados do século XIII apenas na diocese de Lisboa, c o m conven tos e m Lisboa e Santarém (este c o m bens impor tantes na diocese de Évora, e m Alvito), a sua implantação geográfica demonst ra b e m c o m o os as-suntos relacionados c o m o resgate de prisioneiros diziam respeito à região mer idional do terr i tór io e e ram tutelados de per to pela C o r o a .

A presença das ordens militares n o eclesiástico de Lisboa era m u i t o for te .

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O s Templár ios receberam e m doação a totalidade do padroado das igrejas de Santarém, devido à sua m u i t o activa participação na conquista das urbes esca-labitana e olisiponense. Esse privilégio seria pos te r iormente pe rmu tado por importantes contrapartidas, associadas à consti tuição do isento de T o m a r . A sua influência era par t icularmente significativa na região oriental da d ioce -se, j u n t o ao conven to de T o m a r e ao isento desta vila — per to da fronteira c o m a diocese da Guarda onde os cavaleiros d i spunham de grande poder . E m 1320, eram templárias as igrejas de Casével, São Tiago de Santarém, São L o u -renço de Carn ide (em Lisboa) e Santa Maria de T o m a r .

D e t e r m i n a n t e na conquis ta de Alcácer do Sal e m 1217, e m 1320 a O r -d e m de Sant iago de t inha o p a d r o a d o da to ta l idade das igrejas de Almada , Palmela , Sesimbra e Setúbal , a lém das igrejas de Alpedr iz e B e l m o n t e . N o p a d r o a d o da O r d e m de Avis in tegravam-se as igrejas de Alcanede e M o n -targil.

Implantados e m Lisboa desde meados do século XIII estavam t a m b é m os Eremitas de Santo Agost inho, mais tarde conhecidos c o m o Frades Gracianos, depois de e m 1362 t e r em colocado o seu conven to sob a invocação de Nossa Senhora da Graça. Out ras casas seriam fundadas na diocese de Lisboa ainda no século XIII, e m Torres Vedras e, talvez, e m Penaf i rme. N o final do sé-culo x iv surgiria u m conven to em Santarém2 0 4 .

É V O R A

L i m i t e s — Após a conquista portuguesa da cidade aos muçu lmanos e m 1165, Évora foi restaurada c o m o diocese2 0 5 . Até ao pe r íodo que m e d i o u entre a fundação da cidade da Guarda e a notícia do p rov imen to do pr imeiro bispo egitaniense (1199-1203), o terri tório diocesano eborense teve limites extensíssi-mos — e p rovave lmente mal definidos, uma vez que se encontrava localiza-do e m terra de fronteira.

N o l imite nor te , Évora prolongava-se p o r u m estreito cor redor até à ex -trema administrativa natural — a saber, o curso por tuguês do rio T e j o . Este cor redor da diocese de Évora até Amieira seria ladeado pelos dois p ro longa-mentos transtaganos da diocese da Guarda: a oeste, a extensão da administra-ção abrantina além do T e j o , até P o n t e de Sor; a leste, as áreas de influência de Nisa, Marvão , Castelo de Vide e Portalegre.

A fronteira entre Évora e Lisboa começava na zona de Montargi l : f icando esta freguesia e a da Erra do lado de Lisboa, a linha divisória inflectia de n o v o para noroeste até ao T e j o de m o d o a incluir C o r u c h e e Benavente e m É v o -ra. Situadas a leste e oeste deste «espigão» eborense cravado na lezíria ribateja-na, Salvaterra de Magos e Samora Corre ia per tenc iam à diocese de Lisboa.

Depois a linha l imítrofe descia para sul, contornava as povoações de C a -nha e Pegões Velhos (pertencentes ao eclesiástico olisiponense) e, passando por Landeira, terminava provave lmente na zona da Marateca — u m a vez que a área de influência de Alcácer do Sal já pertencia a Évora2 0 6 .

Duran te a época romano-vis igót ica, a diocese de Beja, antigo conventus romano , mantivera a sua preponderância no Alentejo . N o entanto , po r ra-zões relacionadas com as vicissitudes polít ico-mili tares da conquista do Al --Andaluz , o terr i tório acabou por ficar sujeito à igreja de Évora durante toda a Idade Média — e m u i t o além dela, até ao século xviii .

C o m pert inência, Jú l io César Baptista conjec tura que a própria conquista da cidade p o r Geraldo Sem-Pavor , acrescida da atribuição da conquista ao m e s m o e à sua iniciativa desenquadrada (isto é, aparen temente independen te de u m poder soberano legítimo), se teria devido ao facto de D . Afonso H e n -riques não p o d e r protagonizá-la de iure, pois desse m o d o infringiria a letra do Acordo de Pon tevedra firmado e m 1165 c o m o rei Fernando II de Leão. N o entanto , criado o bispado e n o m e a d o o pr imeiro prelado pelo rei por tuguês , isso significava o r econhec imen to de facto da sua preeminência sobre a totali-dade do terri tório alentejano — conquis tado e por conquistar . Se levantada, a questão da restauração da diocese de Beja teria posto e m causa não só a júr is -dição eclesiástica desses territórios, mas t a m b é m a soberania política sobre os mesmos.

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A C O N S T R U Ç Ã O D E U M A I G R E J A

Até à conquista definitiva do Algarve, e m 1249, a linha de demarcação a sul ter-se-ia mant ido igualmente flexível. N o entanto, não há notícia de a diocese eborense ter tido alguma vez jurisdição — n e m de direito, n e m de facto — sobre o Algarve. A fugaz criação da diocese de Silves, após a conquis-ta temporária da cidade (1189-1191), teria cer tamente contr ibuído para definir b e m cedo a separação entre os territórios eclesiásticos alentejano e o algarvio.

N a fronteira oriental, os limites diocesanos terão sido fluidos neste pe r ío -do. N ã o é plausível que, até meados de Duzentos , os direitos jurisdicionais de Évora tivessem colidido c o m os das dioceses castelhanas adjacentes — so-b re tudo Badajoz. Man tendo - se in termi tente o d o m í n i o cristão nesta cidade até 1230, data da conquista definitiva de Elvas e Badajoz, a administração p o -lít ico-militar (mui to menos a eclesiástica) não estaria ainda consolidada.

Após a criação da diocese da Guarda e até meados do século x m , as dis-

Interior da Sé de Évora (finais do século xiu-inícios do século xrv). F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A DO E S P A Ç O

putas entre os bispos da Guarda e Évora sobre a jur isdição episcopal no terri-tór io do r ecém-de f in ido t e r m o de Marvão (1226) imbricam-se nas vicissitudes da conquista do Al-Andalus.

O s pr imeiros bispos egitanienses (entre os quais o antigo chanceler de D . Sancho II, mestre Vicente) , travaram acerbos pleitos c o m os bispos das dioceses vizinhas a propósi to da demarcação da diocese. N a fronteira sul da diocese da Guarda, a l ém-Te jo , os bispos egitanienses reclamaram c o m o pe r -tencente ao seu terr i tório diocesano (fundados cer tamente na delimitação da antiga Sé de Idanha) aquele que, e m 1226, seria demarcado c o m o o t e r m o de Marvão. O s bispos de Évora — senão de direito, ce r tamente de facto — consideravam a região c o m o integrada na Guarda. C o m o se viu acima, e m 1241 o bispo D . Vicente compromet ia - se a aceitar a decisão dos juízes aposto-licos nomeados para dar solução a este confl i to.

A intromissão dos diversos poderes regionais nesta questão, n o quadro da con jun tu ra (para mais ex t r emamen te confusa) da definição das áreas de c o n -quista dos reinos de Portugal , Leão e Castela, cont r ibuiu provave lmente para agravar o conflito e por adiar a sua solução por algumas décadas. U m exemplo: e m 1215, D . Afonso Teles, o Velho, senhor de Albuquerque, e a sua mulher D . Teresa Sanches, filha bastarda do rei de Portugal D . Sancho I e de D . M a -ria Pais Ribe i ra , reconhec iam, através de carta dirigida ao bispo de Évora, a jurisdição deste sobre o terr i tório que senhoreavam 2 0 7 .

E m 1226, D . Sancho II concedia carta de foral aos cavaleiros de Marvão e, c o m ela, u m extensíssimo t e rmo . A doação ter-se-ia p rovave lmente desti-nado a assegurar a participação desta força militar na (malograda) tentativa de conquista de Elvas desse ano e proteger a retaguarda contra o rei de Leão. C o m efeito, desde o encon t ro do Sabugal c o m o rei Fernando III de Castela e Leão, e m 1224, que as relações c o m os Leoneses não eram as melhores .

É possível que por detrás deste m o v i m e n t o reivindicativo (ou e m arti-culação c o m ele) estivessem as ambições territoriais do rei Afonso I X de Leão e / o u de alguma o r d e m militar — ou várias. A partir do terceiro quartel do século xii e até meados do século XIII, a conquista dos territórios a lentejano e algarvio foi essencialmente protagonizada pelas ordens militares — sobre tudo Avis e Santiago.

Fregues ia s m e d i e v a i s — A lista cor respondente à avaliação de 1320-1321 divide a diocese de Évora e m 12 grupos de freguesias, aparen temente encabe-çados pelos centros urbanos mais importantes da C o r o a nessa área. O cruza-m e n t o desta in formação c o m as listas das apresentações às igrejas do padroado régio de D . Afonso III (1259-1266) e D . Dinis (1279-1321) pe rmi te -nos analisar o eclesiástico eborense c o m algum p o r m e n o r .

Se dispusermos de nor te para sul as unidades resultantes dessa divisão, cia-ramente resultante de elaboração por parte de funcionários ligados à C o -roa2 0 8 , p o d e m o s reconsti tuir u m itinerário.

Incluído no final da lista e não considerado c o m o grupo de freguesias fi-cava o terr i tório mais setentrional da diocese, const i tuído pelas igrejas do pr iorado do Cra to (que se declara per tencerem à O r d e m do Hospital , j u n t a -m e n t e c o m Amieira , a nor te , e Portel) . Imedia tamente a sul surge o g rupo das igrejas de Alter do C h ã o . E m b o r a incluído na diocese de Évora, o texto explicita que a Igreja de Santa Maria de Alter do C h ã o (afinal a única do grupo) «é do bispo e cabido da Guarda». A t e n d e n d o a esta descrição, as au to -ridades eclesiásticas eborenses teriam uma influência m u i t o escassa sobre a re-gião mais a nor te da diocese.

Seguia-se depois u m vasto terr i tório d e n o m i n a d o c o m o igrejas de M o n -forte, cu jo d e n o m i n a d o r c o m u m parece ser a tutela da O r d e m de Avis209. As freguesias si tuam-se ao longo da bacia do Sorraia desde o T e j o (Benavente e Coruche ) , sendo rodeadas p o r u m aro const i tuído por Galveias, Seda, Alter Pedroso, C a b e ç o da Vide, M o n f o r t e , Veiros e Est remoz, den t ro do qual fica-vam Cabeção , Pavia, Avis, Benavila, Ervedal, Fronteira, C a n o e Sousel. N e s -te g rupo são t a m b é m integradas as igrejas de Borba, Vila Viçosa2 '0 , Alandroal e J u r o m e n h a , além das distantes igrejas de N o u d a r e de Santa Maria de Be -

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Concelhos do Centro e Sul dos domínios das ordens militares (reproduzido in José Mat toso , História de Portugal, I I , p . 2 1 2 ) .

ja — ambas da O r d e m de Avis. Da presença hegemónica dos cavaleiros da antiga Milícia de Évora no eclesiástico desta zona parece destoar apenas a vila de M o n f o r t e , onde o rei era padroei ro das igrejas de Santo Estêvão, São Sal-vador, Santa Maria Madalena e São Pedro .

A leste do anter ior terri tório, con f ron t ando c o m a diocese da Guarda a nor te e a de Badajoz a leste e a sudeste, ficava o g rupo das igrejas de Elvas. Ne le são incluídos, além dos templos da vila — dos quais Santa Maria do A ç o u g u e (ou do Foro), São Ped ro e São Salvador e ram de apresentação r é -gia, tal c o m o a igreja de Vila Fernando — , Vila B o i m , Barbacena, Assumar e Arronches .

N a zona central da diocese encon t ramos as igrejas da cidade de Évora, abrangendo o moste i ro das donas de Castris, da O r d e m de Cister. N o e n t o r -no imediato da civitas de Évora, a nor te e leste, quatro pequenos grupos: além das igrejas de Arraiolos (Vimieiro incluído) e das igrejas de Évora M o n -

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A D O E S P A Ç O

te ( incluindo a de Mon to i to ) , as igrejas de Te rena (Santa Maria e São João) e as igrejas de Monsaraz (São João , São Bar to lomeu , São Tiago, Santa Maria), todas seis do padroado régio.

C o m p l e t a n d o a zona central, e rodeando a civitas a oeste e sul, são e n u -meradas as igrejas de M o n t e m o r , agrupando Lavre, M o n t e m o r - o - N o v o , Al-cáçovas, Aguiar, Vila N o v a do Alvito, Cuba , Santa Clara da Vidigueira, San-ta Maria de Viana, Santa Maria de Ares211 , Santa Maria e São Bar to lomeu de Oriola e Vila R u i v a de Malcabrão, as seis últimas de apresentação régia — o que revela u m a concent ração de igrejas do padroado do rei na subzona de Viana até à Vidigueira. N o t e - s e que não existem quaisquer apresentações às igrejas de M o n t e m o r - o - N o v o nas listas dionisinas, depois de, entre 1259 e 1266, figurarem nas listas do padroado afonsino os templos de São Tiago, Santa Maria (do Açougue) e São João 2 1 2 .

A região sul da diocese é dividida e m três áreas. N o centro , as igrejas de Beja213 . A oeste, abrangendo a bacia hidrográfica do Sado e o litoral alenteja-no até à zona de influência do Mira, ficavam as igrejas de C a m p o de O u r i -que, r eun indo Garvão, Panóias, Ferreira, Tor rão , Santiago do C a c é m e Alcá-cer do Sal a O u r i q u e , única circunscrição cujas freguesias eram do rei (Santa Maria de Marach ique e Santa Maria de Vila N o v a de Our ique) 2 1 4 .

Es tendendo-se desde o litoral sul do Alente jo pela fronteira c o m o Algar-ve até ao limes c o m Castela (Riba-Odiana) , encont ramos , p o r fim, as igrejas de Odemi ra . Foram integradas neste g rupo as igrejas de O d e m i r a (Santa M a -ria e São Salvador, ambas do padroado régio), Almodôvar , Castro Verde, Messejana, Aljustrel, Mér tola , Serpa, M o u r a e M o u r ã o .

Exterior da Igreja Matriz de Viana do Alentejo.

F O T O : N U N O CALVET/ARQUIVO C Í R C U L O DE LEITORES.

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A C O N S T R U Ç Ã O D E UMA I G R E J A

N e n h u m destes agrupamentos correspondia, ao contrário do que se ver i-ficava na maioria das dioceses do Nor t e e Cen t ro , a divisões do tipo arcedia-gado ou arciprestado. A organização centralista da diocese de Évora está b e m patente no facto de o primeiro arcediagado só ter surgido no final do sé-c u l o XIV2 1 5 .

O r d e n s rel ig iosas — A influência de Cister na diocese de Évora fazia-se sentir de diversas maneiras. E m primeiro lugar através do convento feminino de São Bento de Castris, estabelecido nas proximidades da civitas j u n t o à es-trada para Arraiolos216. E m segundo lugar, pela presença do Mosteiro de Al-cobaça — c o m o proprietário e senhor, mas sem peso directo no eclesiástico da diocese — em Elvas, M o n t e m o r e Beja (couto de Beringel).

Mas a O r d e m de Cister influía no eclesiástico da diocese de Évora devido principalmente às igrejas do padroado da O r d e m de Avis217. Inicialmente se-deada e m Évora e, depois de 1214, em Avis, a o rdem possuía vastos domínios na diocese que se distribuíam desde Beja a Benavente. N o entanto, o grosso do seu poder centrava-se no vale do Sorraia, estendendo-se, além de Estre-moz, a Borba, Vila Viçosa, Alandroal e Ju romenha . Das 32 igrejas desta área denominadas igrejas de Monfo r t e na lista de 1320 (incluindo Santa Maria de Beja), só as da própria vila de Monfor t e não pertenceriam à ordem2 1 8 .

Mu i to poderosa na diocese de Évora era, também, a O r d e m de Santiago. A área de influência dos cavaleiros espatários principiava no Guadiana, em Mértola, prolongando-se primeiro até Our ique . A sul da serra algarvia, a o r -dem exercia u m controlo quase sem concorrência sobre o eclesiástico da d io -cese de Silves. Depois, entre a costa atlântica e a bacia do Sado, os Santia-guistas dominavam até Alcácer do Sal — e, já na diocese de Lisboa, Setúbal, Almada, Palmela e Sesimbra. Segundo a lista de 1320 pertenceriam ao padroa-do dos cavaleiros espatários na diocese eborense as igrejas de Mértola, Castro Verde, Messejana, Almodôvar , Aljustrel, Alcácer do Sal, Garvão e Ferreira do Alentejo. O escambo de 1249 entre o mestre D. Paio Peres Correia e o bispo D. Mar t inho referia t ambém as de Santiago de Cacém, Torrão e Cabrela. A sede da o rdem em Portugal, inicialmente localizada em Alcácer do Sal (diocese de Évora), seria mais tarde transferida para Palmela (diocese de Lis-boa). E m que medida teria o «factor diocese» contr ibuído para esta mudança?

Após o acordo de 1260 entre os bispos de Évora e da Guarda relativo aos territórios transtaganos da diocese egitaniense, Arês era a única igreja mantida pela O r d e m do T e m p l o na diocese eborense.

Exterior da Igreja da B o a N o v a (Terena, Alandroal, 2.a metade do século xiv) .

FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A DO E S P A Ç O

Igreja da Flor da Rosa (Crato, 2.a metade do século xiv). FOTO: JOSÉ MANUEL OLIVEIRA/ /ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

A O r d e m do Hospital t inha algum poder no espaço eclesiástico de Évora, pe r t encendo- lhe as igrejas de Portel , Cra to e Amieira. O s territórios destas duas últimas vilas e castelos levavam a fronteira da diocese eborense até ao T e j o . D o ou t ro lado, e m terras egitanienses, ficava Belver, igualmente hospi -talária. Até 1271, foi da o r d e m t a m b é m o senhorio das vilas de Moura , M o u -rão e Serpa. E m 1320, já M o u r ã o pertencia a Avis, sendo as igrejas de Serpa e M o u r a do rei. N o t e r m o de Portel , doado aos cavaleiros pelo m o r d o m o - m o r do rei D . Afonso III, D . J o ã o Peres de Abo im, a o r d e m erigiu o Moste i ro de Vera Cruz do Marmelar2 1 9 . O priorado, inicialmente estabelecido no século XII e m Leça, e m terra da Maia (diocese do Porto) , seria transferido no século XIII para o Cra to .

Além do Moste i ro de Alcobaça, outras corporações religiosas não sedea-das e m Évora exerciam influência n o eclesiástico eborense. E ram elas os m o s -teiros da Tr indade de Santarém e de São Vicente de Fora (de Lisboa) e o Moste i ro de Santa C r u z de Co imbra .

Santa C r u z recebeu e m 1236 do rei D . Sancho II o senhor io da vila de Arronches , inicialmente integrado no t e r m o de Marvão def in ido e m 1226 pe -lo m e s m o rei220. O moste i ro det inha inicialmente, além da igreja da vila, a de Assumar, ambas objec to de acordos c o m o bispo de Évora e m 1248 e 1266. A lista de 1320 já só refere c o m o per tencente aos Crúzios a freguesia de Ar -ronches2 2 1 .

A influência do Moste i ro de São Vicente de Fora n o espaço eclesiástico eborense teve curta duração. C o m efeito, a doação que D . Afonso III lhe fez do Mos te i ro de São Cucufa te , j u n t o à Vidigueira, acabaria p o r ser desfeita e m 1305 por m e i o de escambo, de n o v o c o m a Coroa , que faria regressar o d o m í n i o e o eclesiástico ao rei, po r pe rmuta c o m R i b a m a r de Algés e o pa -droado de Santa Justa de Lisboa222 .

Já o Moste i ro da Tr indade de Santarém entraria na diocese de Évora atra-vés da doação da vila do Alvito, feita e m tes tamento (datado de 1279) pelo chanceler de D . Afonso III, Estêvão Eanes2 2 3 . A o contrár io de São Vicente de Fora, a sua presença não enfraqueceria.

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A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

O s Franciscanos e os Domin icanos chegaram cedo a Évora e Estremoz, durante o reinado de D . Sancho II. O s Frades M e n o r e s criariam depois casa e m Beja, ainda durante o século XIII. Q u a n t o aos Frades Pregadores, o p r i -mei ro conven to de São D o m i n g o s seria instalado e m Elvas e, no final de D u -zentos, e m Évora.

A partir do século x iv o eremit ismo to rnou-se u m a impor tan te realidade na diocese de Évora. N o início do século estabeleciam-se em Vila Viçosa os Frades Gracianos (Eremitas de Santo Agostinho)2 2 4 . Mas o grande centro da vida eremítica no Alente jo foi a serra de Ossa, per to do R e d o n d o , d o n d e ir-radiou, segundo Ângela Beirante, grande parte das comunidades criadas a partir da segunda metade de Trezentos 2 2 5 .

A L G A R V E (S ILVES)

L i m i t e s — A diocese do Algarve (Silves) l indava a n o r t e c o m a d i o c e -se de Évora e a leste c o m a de Sevilha. Cr iada pela pr imei ra vez e m 1189, na sequênc ia da e fémera conquis ta da c idade aos m u ç u l m a n o s , logo seria perd ida e m 1191, a q u a n d o da invasão a lmóada . A organização da d iocese seria iniciada e m 1252, p o r acção de A f o n s o X de Castela. P o r isso foi su -fragânea de Sevilha até 1393, passando en tão a ter c o m o me t ropo l i t a Lis-boa, elevada a a rquid iocese pela bula de Boni fác io I X In eminentissimis dig-nitatis226.

Fregues ias m e d i e v a i s — N a diocese do Algarve não existia divisão e m territórios, c o m o se diz no índice da avaliação de 1320-1321227.

A semelhança da diocese de Évora, a administração eclesiástica no re ino do Algarve era m u i t o centralizada, uma vez que para a totalidade do ter r i tó-rio não ident if icámos senão 14 freguesias — algumas delas abrangendo certa-m e n t e áreas mu i to extensas.

Pe rcor rendo o terri tório da diocese de oeste para leste, su rgem-nos e m pr imeiro lugar as freguesias de Aljezur e de Santa Maria de Lagos228.

C o n t i n u a n d o p o r barlavento, encontrava-se em seguida o espaço pa ro -quial cor respondente à Sé Catedral de Silves. Depois , prosseguindo até à r e -gião central do terri tório, estavam localizadas as freguesias de Santa Maria de Porches2 2 9 , Santa Maria de Albufeira, São D o m i n g o s e Santa Maria de Pader -ne2 3 0 , São C l e m e n t e de Loulé e Santa Maria de Faro.

Já n o sotavento, ficavam as duas freguesias de Tavira, Santa Maria e São Tiago, e a de Santa Maria de Cacela. Finalmente, as de São T iago de Castro M a r i m e Santa Maria de Alcout im.

As listas do padroado régio dionisino mos t ram-nos apresentações a várias igrejas do bispado do Algarve, a saber, Santa Maria e São D o m i n g o s de Pa-derne (1285-1294), São C l e m e n t e de Loulé (1280-1294), Santa Maria de Al je -zur (1286-1289), Santa Maria de Porches (1289) e Santa Maria de Lagos (1293). Po rém, q u a n d o e m 22 de Abril de 1321 os juízes executores da avaliação p r in -cipiaram a avaliar c o n j u n t a m e n t e os bispados de Évora e do Algarve, já se declarava pe r t ence rem ao padroado da O r d e m de Santiago as igrejas de Loulé e Aljezur. Assim sendo, no final do re inado de D . Dinis a presença do rei c o -m o padroei ro no Algarve reduzia-se a Lagos, Porches e Paderne. M u i t o p o u -co significativa, por tanto .

O r d e n s r e l i g i o s a s — A h e g e m o n i a do pad roado da O r d e m de Sant ia-go sobre as igrejas paroquiais do Algarve é c la ramente demons t rada pela lis-ta de 1320 (1321 para o re ino d o Algarve). E m 1321, à excepção de Albufeira , as restantes freguesias pe r t enc i am aos Espatários — algumas das quais, c o m o acima se viu, r e c e n t e m e n t e transferidas do pad roado régio. Isto revela e e n o r m e inf luência da o r d e m no eclesiástico da região — p a r t i l h a n d o - o , p rovave lmen te sem inter ferência de ou t ros poderes , c o m o bispo e cab ido de Silves.

Da presença de outras ordens religiosas na região durante o pe r íodo e m apreço, apenas nos é dado c o n h e c i m e n t o da fundação do conven to francisca-no de Tavira, e m 1320.

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A DO E S P A Ç O

ENTRE O ÚLTIMO QUARTEL do século xi e meados do século x m , o espaço eclesiástico definiu-se e m terri tório por tuguês e m to rno das dioceses de Bra -ga, Co imbra , Por to , Lamego, Viseu, Lisboa, Évora, Guarda e Silves. As f re -guesias dos bispados de Tu i , Orense , Cidade R o d r i g o e Badajoz localizadas e m Portugal acabariam por ser integradas e m dioceses portuguesas no século xv. Em 1393, com a elevação de Lisboa a arquidiocese e a afectação à nova me t ró -pole das sufragâneas da Guarda, Évora e Silves, e de Lamego à arquidiocese de Braga, o espaço diocesano português passava a corresponder, quase totalmente, ao território do reino de Portugal e do Algarve. E m termos de área, as maiores dioceses eram Évora e Braga. Grandes territórios t inham também a Guarda, Lis-boa e Coimbra . D e menores dimensões eram Viseu, Algarve, Por to e Lamego.

N o s séculos XII a xiv, a cartografia da organização paroquial por tuguesa apresenta u m a organização do espaço m u i t o diversa entre N o r t e e Sul. Por u m lado, o elevado n ú m e r o de freguesias existente n o N o r t e / C e n t r o s enho-rial, pr inc ipalmente nas dioceses de Braga e Por to , mas t ambém, embora e m m e n o r grau, nas de Lamego e Viseu e n o arcediagado de Vouga da diocese de Co imbra , fazia c o m que fosse reduzida a área tutelada pela administração paroquial . Por out ro , na região do terri tório do C e n t r o / S u l concelhio , as pa -róquias ocupavam áreas m u i t o vastas, administradas por colegiadas no rma l -m e n t e localizadas nas sedes dos concelhos — abrangendo superfícies signifi-cativas do respectivo termo 2 3 1 .

O padroado leigo nas igrejas e mosteiros do N o r t e / C e n t r o senhorial, m u i t o significativo até ao século XII, foi sendo transferido para os mosteiros patrocinados pelas famílias patronais, tornados mediadores privilegiados dessas l inhagens e m matéria eclesiástica a partir do século x m .

Mas o rei era o mais impor t an t e padroe i ro . O padroado dos reis de P o r -tugal, e m e r g e n t e a part ir de D . Afonso II e r e fo rçado n o re inado de

A geografia eclesiástica portuguesa na época medieval: conclusões

Cabeceira da Sé de Silves (século xv).

FOTO: N U N O CALVET/ARQUIVO CÍRCULO DE LEITORES.

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A CONSTRUÇÃO DE UMA IGREJA

D . Afonso III c o m a at r ibuição pela C o r o a a si própr ia do direi to de pa -d roado de todas as igrejas sem pa t rono , marcava presença no eclesiástico de todas as dioceses d o re ino. N o re inado de D . Dinis, as centenas de igrejas do padroado régio e m t o d o o terr i tór io — m u i t o impor t an t e no bispado de Lisboa e no arcebispado de Braga, quase insignif icante n o Algarve — davam ao rei o p o d e r de n o m e a r os párocos de mui tas freguesias do re ino , e m b o r a essas n o m e a ç õ e s estivessem sujeitas à conf i rmação dos bispos da respectiva diocese. N o arcebispado de Braga, a inf luência do pad roado régio era m e -diada pela colegiada de Santa Mar ia de Guimarães , a mais impor t an t e de t o -do o eclesiástico régio. A localização das paróquias régias j u n t o aos l imites externos da arquidiocese (com o Por to , T u i — parte por tuguesa , e Orense ) , ou pe r to dos limites in ternos das diversas áreas da administração eclesiástica, obr igam a pondera r se existiria u m a estratégia b e m de te rminada do pad roa -do régio e m Braga.

Nas dioceses do Sul, o padroado das ordens militares era p reponderan te . A sul do Te jo , a O r d e m de Santiago dominava o eclesiástico de toda a bacia do rio Sado, o curso inferior do Guadiana (onde mais tarde escambaria alguns pontos de influência c o m a O r d e m de Cristo), a região da diocese de Évora que lindava com o re ino do Algarve e a diocese de Silves. Várias dezenas de igrejas nas dioceses de Lisboa, Évora e Silves pertenciam aos cavaleiros espatá-rios. N o N o r t e da diocese de Évora, es tendendo-se da margem esquerda do T e j o à margem direita do Guadiana, abrangendo toda a bacia do Sorraia, até Es t remoz e mais a leste, a O r d e m de Avis reservava para si o eclesiástico de algumas dezenas de igrejas, n u m a relação de confl i to c o m o bispo e cabido eborenses. A O r d e m do T e m p l o / C r i s t o apresentava párocos n u m elevado n ú m e r o de freguesias do arcediagado de Penela da diocese de Co imbra , n o arcediagado de Santarém da diocese de Lisboa e u m p o u c o por toda a d ioce -se da Guarda, marcando t a m b é m presença na fronteira oriental da diocese de Lamego e e m terra de Miranda, n o arcebispado de Braga. Finalmente, a O r -d e m do Hospital marcava o eclesiástico da diocese do Por to (terra da Maia), do arcebispado de Braga (sobretudo e m terra de Panóias) e, f inalmente , da diocese de Évora (priorado do Crato) — e, n o arcediagado de Seia, e m O l i -veira do Hospital.

Se a região por excelência das ordens militares se situava nos territórios a sul do sistema m o n t a n h o s o central e do M o n d e g o (excepto os Hospitalários), os Cistercienses t inham feito das dioceses de Lamego, Co imbra e Lisboa o espaço central de implantação das suas casas conventuais . Aí se encontrava o maior n ú m e r o dos mais ricos conventos dos monges e monjas de hábi to branco — Arouca, São João de Tarouca , Salzedas, Lorvão, Celas de G u i m a -rães, Alcobaça, Odivelas e Almoster . Só m u i t o mais tarde presentes no Algar-ve, os Cistercienses t inham u m a presença m u i t o m e n o s impor tan te nas d io -ceses de Évora, Guarda e C idade R o d r i g o (parte portuguesa) , Viseu, Braga e T u i (parte portuguesa) .

Já os Cónegos Regran tes de Santo Agost inho, nascidos na diocese c o -nimbricense c o m a implantação de Santa C r u z entre Co imbra e Leiria, e m -bora alargassem a sua influência a Lisboa e Cidade R o d r i g o c o m a fundação de São Vicente de Fora e Santa C r u z de Cortes , respect ivamente, or ientaram a sua expansão sobre tudo para as dioceses do Por to e de Braga, o n d e mui tos antigos mosteiros receberam a reforma canonical ou fo ram fundados de n o -vo — sobre tudo na diocese por tuense e na região fronteiriça entre o terr i tó-rio bracarense e os do Por to e T u i (parte portuguesa) .

O s mosteiros benedi t inos situavam-se quase exclusivamente nas dioceses de Tui , Braga e Por to , menos e m Lamego — sendo residual a sua presença e m Viseu. Dos quase 12o mosteiros fundados nas dioceses de Braga e P o r t o durante os séculos xi e XII, entre Benedi t inos e Canonicais apenas cerca de 70 alcançaram o século XIII e não mais de 40 sobreviviam e m meados do sé-culo xv.

I r rompendo a partir da segunda década do século XIII, a partir de Santa-rém, Lisboa e Coimbra , as ordens mendicantes cedo conquistaram a espiritua-lidade dos meios urbanos, sobretudo das confrarias de leigos, aí se const i tuindo

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A D O E S P A Ç O

e m mediadores da relação c o m o A lém e pregadores eméritos. Franciscanos e Dominicanos , sobre tudo os primeiros, exper imentar iam graves dificuldades ao implantar-se nas cidades do Por to e de Braga. Dos primeiros, o p o u c o que conhecemos diz respeito aos conventuais , já que o m o d o de vida da obser-vância p o u c o se prestava à manu tenção de arquivos significativos. Q u a n t o aos Trinitários, a redenção dos cativos a que se dedicavam fez c o m que escolhes-sem Lisboa e Santarém c o m o cent ro das suas operações.

Outras ordens presentes no Portugal medieval, embora mal conhecidas, foram os Freires do Santo Sepulcro (Porto e Viseu), os Premonstratenses (Por-to e Lamego), os Eremitas de Santo Agost inho (Lisboa e Évora), Cónegos de Santo Antão (Guarda) e os Eremitas da Serra de Ossa (Évora). É provável que a pouca importância que atribuíam à acumulação de pat r imónio, por u m lado, e a sua implantação confinada a zonas específicas do território, por outro , expli-q u e m que seja ho je difícil reconstituir a memór ia dessa presença.

Assim se descreveu, ainda que parcialmente, a forma c o m o a Ecclesia cristã do Oc iden t e marcou a organização do espaço territorial no re ino de Portugal e do Algarve, entre o século XII e o pr incípio do século xv. A estreita ligação entre as suas instituições e a sociedade portuguesa dessa época fez c o m que, p o r todo o Portugal , a paisagem construída e a vivência das gentes, na sua maioria per tencentes à Christianitas, reflectissem vincadamente essa presença.

NOTAS

C י f . ESTRABÃO - G e o g r a p h i a , 3, 4, 1978. R e d i g i d a n a é p o c a d e A u g u s t o , es ta o b r a c o n s t i t u i u m a f o n t e e t i m o l ó g i c a f u n d a m e n t a l p a r a o c o n h e c i m e n t o d o s p o v o s d a H i s p â n i a a n t i g a . C f . t a m b é m ALBERTINI - Les divisions admínistratives, p . 25 ss.

2 C f . STROHEKER - S p a n i e n i m S p ã t r ó m i s c h e n , p . 587-605 . S o b r e a a d m i n i s t r a ç ã o p r o v i n c i a l n a H i s p â n i a cf . TRANOY - La Galice romaine, p . 146-167 .

3 C f . ALARCÃO - O domínio romano, p . 28. E s t e a u t o r p r o c u r o u , p e l a p r i m e i r a v e z , i d e n t i f i c a r as civitates d a L u s i t â n i a e t r a ç a r as suas f r o n t e i r a s . V e r t a m b é m IDEM — I d e n t i f i c a ç ã o das c i d a d e s d a L u s i t â n i a , p . 21-34.

4 C f . CHEVALIER - C i t é e t t e r r i t o i r e , p . 7 6 2 - 7 6 6 . 5 SILLLIÈRES - V o i e s r o m a i n e s , p . 74-81; FERNANDEZ CORRALES - E l t e r r i t ó r i o d e A u g u s t o

E m e r i t a , p . 889 -898 ; FRANCISCO MARTÍN - Conquista y Romanización, p . 35. 6 C f . CIPRIANO DE CARTAGO - E p i s t u l a 6 7 , p . 4 4 7 . 7 Ibidem, 6.1, p . 456 . 8 Ibidem, 5.1, p . 454 . 9 C f . DÍAZ Y DÍAZ - E n t o r n o d e los o r í g e n e s , p . 423-443 ; JOVER ZAMORA (dir . ) — Historia de

Espana, v o l . 2, p . 419. 1 0 S o b r e o b i s p o m e t r o p o l i t a , cf . MAISONNEUVE - M é t r o p o l e , M é t r o p o l i t a i n , c o l . 72-73 ;

GARCÍA-VILLOSLADA (dir . ) - Historia de la Iglesia, v o l . 1, p . 4 9 4 - 4 9 6 . 11 CIPRIANO DE GARTAGO - E p i s t u l a 6 7 , 5.2, p . 454 . 12 C f . VIVES - Concílios, p . 1. 1 3 C f . os c â n o n e s 19 e 24 , VIVES — Concílios, p . 5-6. 14 C f . ÉTIENNE - M é r i d a , c a p i t a l e d u v i ca r i a t , p . 2 0 4 - 2 0 7 . S o b r e M é r i d a cf. t a m b é m ARCE -

M é r i d a t a r d o r r o m a n a , p . 2 0 9 - 2 2 6 . 15 ALARCÃO - S o b r e a r o m a n i z a ç ã o , p . 105. 1 6 C f . DÍAZ Y DÍAZ - L ' e x p a n s i o n d u c h r i s t i a n i s m e , p . 85; ALARCÃO - O domínio romano,

p . 8 7 - 1 0 6 . 17 C f . ÉTIENNE - Le c u l t e i m p é r i a l , p . 215. 1 8 C f . o c â n o n e 38, VIVES - Concílios, p . 8. 1 9 C f . GODOY FERNÁNDEZ - B a p t i s t é r i o s h i s p â n i c o s , p . 6 0 7 . 2 0 C f . p a r a u m e n q u a d r a m e n t o ge ra l , GORGES - Les «villae» hispano-romaines, e ALARCÃO;

ÉTIENNE; MAYET - Les villas romaines, 1990 . 21 DÍAZ Y DÍAZ - L ' e x p a n s i o n d u c h r i s t i a n i s m e , p . 85. 2 2 C f . a e s t e p r o p ó s i t o , BLÁZQUEZ MARTÍNEZ - Nuevos estúdios, p . 4 6 0 . 2 3 A p e s a r d a c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e a d i v i s ã o a d m i n i s t r a t i v a e a d i v i s ã o ec les iás t i ca t e r s i d o e s -

t a b e l e c i d a , a o n í v e l d a I g r e j a u n i v e r s a l , e m 451, p e l o C o n c í l i o d e C a l d e d ó n i a . C f . GURT Y ESPAR-RAGUERA; RIPOLL LÓPEZ; C . GODOY FERNANDEZ - T o p o g r a f i a d e la A n t i g u e d a d , p . 164, 168.

2 4 VIVES, Concílios, p . 21: «... si i n t r a c i v i t a t e m f u e r i t v e l i n l o c o i n q u o est ecc l e s i a a u t Castelli a u t v i c u s a u t v i l lae . . .» .

2 5 SAMPAIO - As villas d o N o r t e d e P o r t u g a l , p . 3-254. 2 6 OLIVEIRA - As paróquias rurais. 2 7 C f . DAVID - La m é t r o p o l e e c c l é s i a s t i q u e d e G a l i c e , p . 211-251; MANSILLA - A n t i g u a s d i v i -

s i o n e s p o l i t i c a s - a d m i n i s t r a t i v a s , p . 433-475. 2 8 C f . COSTA (ed . ) - Liber fidei, v o l . 1, n o t a 1, p . 16. S o b r e a t o p o n í m i a « p a r o q u i a l » d o s é -

c u l o v i , cf . MATTOSO - Identificação de um país, p . 180, 273; N E T O - O Leste do território bracarense, p . 4 5 - 6 0 ; MARTINS - O e s p a ç o p a r o q u i a l d a d i o c e s e d e B r a g a , p . 283 -294 .

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A C O N S T R U Ç Ã O D E U M A I G R E J A

2 9 DAVID - Études historiques, p . 4 5 - 8 2 . 3 0 C f . Ibidem, p . 36 -38 . 31 Ibidem, p . 1 - 6 . 3 2 MATTOSO - História de Portugal, v o l . 1, p . 4 7 0 . 3 3 C f . IDEM - A h i s t ó r i a das p a r ó q u i a s , p . 3 7 - 5 6 . 3 4 C f . SÁNCHEZ SALOR - Jerarquias eclesiásticas, p . 22. 3 5 C f . COSTA — O bispo D. Pedro, v o l . 1, p . 126-138. 3 6 C f . GARCÍA DE CORTÁZAR - La sociedad rural, p . 1 7 - 4 6 ; IDEM - O r g a n i z a c i ó n s o c i a l d e i e s -

p a c i o , p . 1 9 7 - 2 3 6 . 3 7 C f . GONZALEZ BLANCO - E l d e c r e t o d e G u n d e m a r o , p . 159-169. 3 8 E s t a l is ta é c o n h e c i d a t a m b é m p o r Nomina sedium episcopalium e c o n s e r v a - s e n o c ó d i c e

o v e t e n s e d e 7 8 0 . C f . , a׳ e s t e p r o p ó s i t o , SANCHEZ ALBORNOZ - Fuentes para el estúdio de las divisiones eclesiásticas; DAVID - Études Historiques, p . 1.

3 9 C f . CRÓNICAS Asturianas, p . 2 2 8 - 2 2 9 . 4(1 MATTOSO - História de Portugal, v o l . 1, p . 4 7 5 . 4 1 SX-NOGUEIRA - I g r e j a e E s t a d o . 4 2 DAVID - Etudes historiques; OLIVEIRA - As paróquias rurais; MATTOSO - H i s t ó r i a das p a r ó q u i a s . 4 3 B r e v e s í n t e s e s o b r e o t e m a : SÁ-NOGUEIRA — G e o g r a f i a e c l e s i á s t i c a . 44 MAPPA de Portugal Antigo e Moderno. 2.;' E d . , L i s b o a , 1763. 4 5 ALMEIDA - História da Igreja; SILVA - As freguesias de Lisboa; OLIVEIRA - As paróquias rurais. 4 6 COSTA — O bispo D. Pedro; MATTOSO — Le monachisme ibérique. 4 7 C O E L H O — O mosteiro de Arouca; COCHERIL — Routicr des abbayes cisterciennes; MARQUES —

A arquidiocese de Braga; GONÇALVES - O património do Mosteiro de Alcobaça; RODRIGUES - A s c o l e -g i a d a s d e T o r r e s V e d r a s .

4 8 BARBOSA - Povoamento e estmtura agrícola. 4 9 SILVA - E n s a i o p a r a u m a m o n o g r a f i a . 5 0 C O N D E - S o b r e o p a t r i m ó n i o ; BOTÃO - Uma instituição medieval de prestígio. 5 1 MATA — A comunidade feminina da Ordem de Santiago. 5 2 ANDRADE — O mosteiro de Cheias. 5 3 VARANDAS — Monacato feminino e domínio rural. 5 4 SILVA — São Vicente de Fora. 5 5 MARQUES - A colegiada de São Martinho de Sintra. 5 6 SANTOS — Vida e morte de um mosteiro cisterciense. 5 7 MORUJÃO — Um mosteiro cisterciense feminino. 5 8 E n t r e o s n u m e r o s o s e s t u d o s d e s t e a u t o r s o b r e g e o g r a f i a e c l e s i á s t i c a , v e r : O r g a n i z a ç ã o p a r o -

q u i a l e j u r i s d i ç ã o e c l e s i á s t i c a n o p r i o r a d o d e Le i r i a . 5 9 MARTINS - Património, parentesco e poder. 6 0 MARQUES - A l g u n s a s p e c t o s d o p a d r o a d o n a s i g r e j a s e m o s t e i r o s . 6 1 RAMOS — O mosteiro e a colegiada de Guimarães. 6 2 LIRA - O mosteiro de S. Simão da Junqueira. 6 3 BASTOS - Santa Maria da Oliveira. — BARROS - A aquisição e gestão de bens; CARVALHO - O património do cabido; NOGUEIRA י4'

A formação e defesa do património. ' , 5 AMARAL - São Salvador de Grijó. 6 .CASTRO — O Mosteiro de São Domingos de Donas י'6 7 VICENTE - Santa Maria de Aguiar. 6 8 RODRIGUES - O Entre Minho e Lima [ t r a b a l h o i n c i d e n t e s o b r e o t e r r i t ó r i o j á d e p o i s d a s e -

p a r a ç ã o r e l a t i v a m e n t e a T u i ] . 6 9 VILAR — As dimensões de um poder. 7 0 C U N H A - A ordem militar de Avis. 7 1 C U N H A — A ordem militar de Santiago. 7 2 COSTA — A ordem militar do Hospital. 7 3 SÁ-NOGUEIRA - A o r g a n i z a ç ã o d o p a d r o a d o r é g i o . 7 4 A p e s a r das l a c u n a s s u b l i n h a d a s , p o r e x e m p l o , p o r J . MARQUES p a r a a a r q u i d i o c e s e d e B r a g a -

A arquidiocese, p . 2 6 1 - 2 6 2 . O u t r a s o p i n i õ e s s o b r e o c a t á l o g o d e 1320-1321 ( d o r a v a n t e r e f e r i d o c o -m o Lis ta d e 1320): MATTOSO - H i s t ó r i a d a s p a r ó q u i a s , p . 48 ; VILAR - Diocese de Évora, p . 222 ; e a s í n t e s e d e M . A . F . MARQUES - O c l e r o - h o m e n s d e o r a ç ã o e a c ç ã o , p . 2 2 9 .

7 5 A N T T , Gavetas da Torre do Tombo, G a v e t a 19, m . 3, n . ° 4 7 ; m . 14, n . ° 3; m . 6 , n . ° 31 e m . 1, n . ° 13 ( r e i n a d o d e D . D i n i s , 1279-1321) e G a v e t a 10, m . 3, n . ° 15 ( r e i n a d o d e D . A f o n s o I I I , s ó 1259-1266) . D o r a v a n t e r e f e r i d a s c o m o Gavetas, s e g u i d a s d a c o t a r e s p e c t i v a .

7 6 MARQUES - Portugal na crise, p . 365. 7 7 MARQUES - Portugal na crise, p . 3 6 7 . 7 8 C a t á l o g o d e t o d a s as i g r e j a s , c o m e n d a s e m o s t e i r o s q u e h a v i a n o s r e i n o s d e P o r t u g a l e A l -

g a r v e s , p e l o s a n o s 1320 e 1321... (ALMEIDA - História da Igreja, p . 9 0 - 1 4 4 ) . 7 9 A L M E I D A - História da Igreja, v o l . 4 , p . 113-116. 80 Gavetas, 19-14-3, fl. 31 ( a p r e s e n t a ç õ e s a o m o s t e i r o d e G a n f e i , d a t a d a s d e 28 /3 /1299 e 24 /8 /1305)

e fl. 41 ( a p r e s e n t a ç ã o a o m o s t e i r o d e E r m e l o , d e 2 9 / 8 / 1 3 0 5 ) . E m 1298 , o v i c e - c h a n c e l e r d e D . D i -n i s , A f o n s o M a r t i n s , r e g i s t a v a c a r t a d e D . F e r n a n d o , b i s p o d e T u i , d a t a d a d e 8 d e M a r ç o d e 1278, c o n f i r m a n d o G o n ç a l o M o g o , a p r e s e n t a d o c o m o p á r o c o p o r D . A f o n s o I I I à I g r e j a d e S a n t a C r i s t i n a d e M e i a d e l a ( G a v e t a s , 19-14-3, f. 3 0 v ) .

8 1 F e r n ã o Pa i s , c ó n e g o d e T u i , e r a a p r e s e n t a d o e m 1 d e M a r ç o d e 1298 à I g r e j a d e S a n t a M a r i a d e M o n ç ã o (Gave tas , 19-14-3, f. 29) . J o ã o E s t e v e s , filho d o a l m o x a r i f e d e V a l e n ç a E s t ê v ã o E a n e s e r a a p r e s e n t a d o e m 6 d e M a r ç o d e 1320 à I g r e j a d e S a n t a M a r i a d e C a m i n h a (Gave tas , 19-1-13, f. 2) .

8 2 MATTOSO - Identificação de um país, v o l . 1, p . 195. 8 3 COCHERIL - Routie des abbayes cisterciennes, p . 2 9 - 3 0 .

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A DO E S P A Ç O

8 4 MARQUES - A arquidiocese de Braga, p . 251. P e r t e n c e u à d i o c e s e d e O r e n s e a t é , p e l o m e n o s , a o r e i n a d o d e D . D i n i s . D e p r e e n d e - s e d a e x p o s i ç ã o d e J o s é M a r q u e s q u e j á es tar ia s o b t u t e l a d a a r q u i d i o c e s e d e B r a g a n a é p o c a d e D . F e r n a n d o d a G u e r r a .

85 Gavetas, 10-3-15 ( D . A f o n s o I I I ) ; 19-14-3; 19-1-3; ( D . D i n i s ) . E m 2 d e M a r ç o d e 1291, P e d r o G a l v ã o , a r c e d i a g o d e L i m a p e l a i g r e j a d e O r e n s e , m a n d a v a a o s p a r o q u i a n o s q u e a c a t a s s e m o p á -r o c o a p r e s e n t a d o p o r D . D i n i s . T o u r é m p e r t e n c i a , p o i s , a o a r c e d i a g a d o a u r e n s i a n o d e L i m a ( G a -vetas, 19-14-3, fl. 19).

86 Gavetas, 19-14-3, fl. 3 v . 8 7 V e r c r o n o l o g i a e p o n t o s p r i n c i p a i s d o l o n g o e s t u d o d e d i c a d o p o r e s t e a u t o r a o t e m a e m

COSTA - O b i s p o D . P e d r o (1990) p . 379-434 . 8 8 MATTOSO - A formação d a n a c i o n a l i d a d e , p . 4 7 - 5 6 . 8 9 MARQUES - A arquidiocese, p . 2 4 0 . 9(1 MARQUES - A arquidiocese, p . 2 4 0 . 9 1 V e r a b a i x o , n o t e x t o s o b r e a d i o c e s e d o P o r t o , m a i s d a d o s a c e r c a d e s t a f r o n t e i r a . 9 2 MARQUES - A arquidiocese, p . 255-263. 9 3 S e g u i n d o a Lis ta d e 1320, O l i v e i r a MARQUES (Portugal na crise, p . 367) i n d i c a 937 f r e g u e s i a s

d i s t r i b u í d a s p o r 39 g r u p o s . B a s e a d o s n a m e s m a lista, c o n t a b i l i z á m o s c e r c a d e 9 9 0 , s e g u i n d o J . MARQUES e n ã o a c e i t a n d o a d i v i s ã o e n t r e V e r m o i m d e S u s ã o e V e r m o i m d e J u s ã o . A p o i a d o s o b r e t u d o n a s c o n f i r m a ç õ e s d e D . F e r n a n d o d a G u e r r a , d o s e g u n d o q u a r t e l d o s é c u l o x v , J . MARQUES (A arquidiocese, p . 261-262) a p u r a 1058, d i s t r i b u í d a s p o r 43 g r u p o s . P a r a m e a d o s d o s é -c u l o XIII, M . A . F . MARQUES c o n t a b i l i z a 9 5 0 ( A l g u n s a s p e c t o s d o p a d r o a d o , p . 373).

9 4 D o t o t a l das i g r e j a s c o n s e g u i m o s i d e n t i f i c a r 187 (93 nas t e r r a s d o M i n h o e 9 4 nas d e T r á s -- o s - M o n t e s ) . F i c a m p o r i d e n t i f i c a r 33. N o e n t a n t o , d e v i d o às p o t e n c i a i s r e p e t i ç õ e s j á i d e n t i f i c a -das ( p o r e x e m p l o , a m e s m a i g r e j a c o m n o m e s d i f e r e n t e s ) , o p t a m o s p o r es ta e s t i m a t i v a c o n s e r v a -d o r a . P a r a o n ú m e r o d e a p r e s e n t a ç õ e s v e r SÀ-NOGUEIRA - A o r g a n i z a ç ã o d o p a d r o a d o r é g i o , p . 423.

9 5 MARQUES - A l g u n s a s p e c t o s d o p a d r o a d o , p . 373. 9 6 MARQUES - A arquidiocese, p . 1075-1076 . M e s m o a t e n d e n d o à c o n t a b i l i z a ç ã o d o p r i o r a d o d e

G u i m a r ã e s c o m o u m a s ó p a r ó q u i a , a d i m i n u i ç ã o é m u i t o c lara . 9 7 D i f e r e n ç a d e c e r c a d e v i n t e p a r ó q u i a s a m e n o s d a nos sa c o n t a g e m (749) r e l a t i v a m e n t e a o

c ô m p u t o d e 7 6 7 f r e g u e s i a s r e a l i z a d o p o r J . MARQUES p a r a as á reas c o r r e s p o n d e n t e s a o M i n h o ( m e a d o s d o s é c u l o x v ) . E m t e r m o s r e l a t i v o s , a m a i o r d i s c r e p â n c i a ( o n z e ) e n c o n t r a - s e e m t e r r a d e B a s t o .

9 8 MARQUES - A l g u n s a s p e c t o s d o p a d r o a d o , p . 373. 9 9 A e x t e n s ã o e c o m p o s i ç ã o des t a s z o n a s a d m i n i s t r a t i v a s f o r a m - s e a l t e r a n d o e n t r e o final d o

s é c u l o x i e o s e g u n d o q u a r t e l d o s é c u l o x v . J . MARQUES c o n s i d e r a m a i s d u a s t e r ras , a l é m das n o -v e a d i a n t e e n u n c i a d a s ; N e i v a ( d e s t a c a d a a o a r c e d i a g a d o d e N e i v a ? ) e P r a d o ( d e s t a c a d a à t e r r a d o D e a d o ? ) (A arquidiocese, p . 261-262) .

1 0 0 D e s i g n a d a c o m o « te r ra d e A b a d e » n o c e n s u a l d e E n t r e L i m a e A v e (COSTA - O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 142-147).

101 N o c e n s u a l d e E n t r e L i m a e A v e , d o s é c u l o x i , es ta z o n a é d e n o m i n a d a « E n t r e N e i v a e C á v a d o e d e s d e o F e b r o s a t é a o m a r » . C o m o o b s e r v a A v e l i n o d e J e s u s d a COSTA, « a l é m das fre-g u e s i a s p r ó p r i a s d e s t a t e r r a o u d o a r c e d i a g a d o d e N e i v a , a b r a n g e o u t r a s q u e p o s t e r i o r m e n t e p e r -t e n c e r a m às t e r r a s d e A g u i a r d e N e i v a e d e A g u i a r d e R i b a L i m a , B a r c e l o s , D e a d o , M e s t r e -- e s c o l a d o , P e n e l a , P r a d o e T a m e l » ( O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 148).

1 0 2 MARQUES - A arquidiocese, p . 263 . 1 0 3 A p e n a s u m a a p r e s e n t a ç ã o à I g r e j a d e S ã o M i g u e l d e C r a s t ê l o , d e P e n e g a t e . 1 0 4 A Lista d e 1320 s u b d i v i d e - a e m t e r r a d e V e r m o i m d e S u s ã o e t e r r a d e V e r m o i m d e J u s ã o .

U m a v e z q u e J o s é M a r q u e s ( A arquidiocese, p . 262) n ã o r e t é m es ta s u b d i v i s ã o p a r a o s é c u l o x v , n ã o a c o n s i d e r a r e m o s . C o m o o u t r a s d a Lis ta d e 1320, é p o s s í v e l q u e n ã o c o r r e s p o n d e s s e a u m a á r ea a d m i n i s t r a t i v a o r g â n i c a .

1 0 5 A t é 1320, o m o s t e i r o d e S a n d e e o u t r a s i g r e j a s d a t e r r a d e S a n d e f o r a m i n c o r p o r a d a s e m t e r r a d e V e r m o i m e as r e s t a n t e s ( e n t r e as q u a i s as d e B e s t e i r o s ) p a s s a r a m a p e r t e n c e r à t e r r a d o C h a n t r a d o .

106 Q C E N S U A ! DE G u i m a r ã e s e M o n t e l o n g o (COSTA - O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 221-256) n ã o p e r m i t e i d e n t i f i c a r q u a l q u e r de las , p a r e c e n d o - n o s e m fa l ta . N a Lista d e 1320 s ã o a q u i a g r u p a d a s as s e g u i n t e freguesias: S ã o P e d r o d o M o n t e , S a n t a M a r i a d e G r a d i z e l a , S ã o P e d r o d e R i b e i r a d e A v e ( R i b a d ' A v e ) , S a n t o A n d r é d o S o b r a d o , S ã o M i g u e l d e E n t r e A m b a s - a s - A v e s , S ã o T i a g o d e L o r d e l o , S ã o L o u r e n ç o d e R o m ã o , C e r z e d e l o , S ã o S a l v a d o r d e G a n d a r e l a , S ã o J o ã o d e C a l v o s e S ã o B a r t o l o m e u (ALMEIDA - História da Igreja, v o l . 4 , p . 104) .

1 0 7 R e f e r i d a c o m o S ã o T i a g o e m 1320 (COSTA - O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 239) . 1 0 8 COSTA - O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 4 2 7 . 1 0 9 C o m o a d i a n t e v e r e m o s , a d e s i g n a ç ã o d e s t a z o n a c o m o « te r ra d e F e r r e i r a » t e r á s i d o t a r d i a .

N a d i v i s ã o d e 1145, F e r r e i r a e r a u m a das t e r r a s t r a n s m o n t a n a s d e p e n d e n t e d o a r c e d i a g a d o d e B r a -g a n ç a (COSTA - O bispo D. Pedro, p . 4 2 7 ) .

1 1 0 U m a das d i f e r e n ç a s m a i s s i gn i f i c a t i va s e n t r e a Lis ta d e 1320 e os n ú m e r o s d e J . MARQUES, q u e a p o n t a 51 freguesias p a r a t e r r a d e B a s t o e m m e a d o s d o s é c u l o x v ( A arquidiocese, p . 261).

111 N ú m e r o i n f e r i o r às 291 c o n t a b i l i z a d a s p o r J . MARQUES (A arquidiocese, p . 261-262) . A d i f e -r e n ç a j u s t i f i c a - s e p e l o m u i t o m a i o r n ú m e r o d e p a r ó q u i a s e m t e r r a d e C h a v e s e t e r r a d e B r a g a n ç a n o s e g u n d o q u a r t e l d o s é c u l o x v .

1 1 2 S e m p r e r e f e r i d a c o m o «Valar iça». O p t a m o s p o r é m p o r V i l a r i ç a , s e g u i n d o A v e l i n o d e J e s u s d a C o s t a e J o s é M a r q u e s .

1 1 3 N o t e x t o p u b l i c a d o es tá «Fr ie i ra» . U m a v e z q u e n o s é c u l o x i i ex i s t i a u m a «Fer re i r a» i n -c l u í d a n o a r c e d i a g a d o d e B r a g a n ç a , s u p o m o s q u e se t r a t a r á d e s t a (ALMEIDA - História da Igreja, v o l . 4 , p . 112). A s ig re jas n e l a i n c l u í d a s c o r r e s p o n d e m às d e M o n f o r t e d e R i o L i v r e .

1 9 7

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A C O N S T R U Ç Ã O D E U M A I G R E J A

1 1 4 P a r a o s e g u n d o q u a r t e l d o s é c u l o x v , a i m p o r t â n c i a d e t e r r a d e P a n ó i a s c o m o aces so d a a d m i n i s t r a ç ã o ec les iás t i ca a T r á s - o s - M o n t e s es tá b e m d e m o n s t r a d a n o s i t i n e r á r i o s d o a r c e b i s p o D . F e r n a n d o d a G u e r r a , r e c o n s t i t u í d o s p o r J o s é M a r q u e s . V e m o s q u e o P a ç o d e M a t e u s e r a a p r i n c i p a l r e s i d ê n c i a a r q u i e p i s c o p a l e m t e r r i t ó r i o t r a n s m o n t a n o (A arquidiocese, p . 75, 8 4 e 9 0 ) .

1 1 5 C e n s u a l d a t e r r a d e P a n ó i a s , d o s é c u l o XIII (COSTA - O bispo D. Pedro, v o l . 2, p . 257 -280 ) . 1 1 6 C u j a a l b e r g a r i a , c o n h e c i d a c o m o A l b e r g a r i a d o M a r ã o , o u d a C a m p e ã , e ra p r o v a v e l m e n t e

p o n t o o b r i g a t ó r i o d e d e s c a n s o n a d u r a t ravess ia d a se r ra d o M a r ã o . 117 S ã o J e r ó n i m o d e V a l e d e P r a d o s , u m a das f r e g u e s i a s q u e a Lis ta d e 1320 a g r u p a a L a m p a -

ças, f i cava n o c e n t r o d e t e r r a d e Ledra . 1 1 8 E n o r m e d i f e r e n ç a r e l a t i v a m e n t e a o c ô m p u t o d e 7 9 f r e g u e s i a s f e i t o p o r j . MARQUES p a r a o

s e g u n d o q u a r t e l d o s é c u l o x v ( A arquidiocese, p . 261). P a r t e p o d e r á d e v e r - s e a i g r e j a s a t r i b u í d a s e m 1320 a M i r a n d a e m a i s t a r d e a B r a g a n ç a : c o m e f e i t o , a Lista d e 1320 d á 22 p a r ó q u i a s a M i r a n -d a , e n q u a n t o q u e J . MARQUES c o n t a b i l i z a 16. M a s o u t r a e x p l i c a ç ã o t e r á d e se r e n c o n t r a d a p a r a esta g r a n d e d i s c r e p â n c i a , a m a i o r i d e n t i f i c a d a p a r a t o d a a a r q u i d i o c e s e d e B r a g a .

1 1 9 J . MARQUES i n d i c a 5 p a r a o 2 . ° q u a r t e l d o s é c u l o x v ( A arquidiocese, p . 261). 1:11 T a l v e z a d i s c r e p â n c i a n ã o se ja t ã o g r a v e , u m a v e z q u e o u t r a s i g r e j a s o u t r o r a p e r t e n c e n t e s

a M o n t e n e g r o / C h a v e s t a m b é m figuram n e s t e g r u p o . 121 N ã o c o n s e g u i m o s d e t e r m i n a r se n a f r o n t e i r a n o r d e s t e M o n t e n e g r o se i n t e r p o r i a e n t r e

C h a v e s , V i n h a i s e B r a g a n ç a , o u se C h a v e s l i n d a v a d i r e c t a m e n t e c o m a m b a s - s o b r e t u d o c o m V i n h a i s , d e v i d o à l o c a l i z a ç ã o d e R e b o r d e l o .

1 2 2 O u t r a e n o r m e d i s c r e p â n c i a r e l a t i v a m e n t e a o c ô m p u t o d e J . MARQUES, q u e l e v a n t a 31 f r e -gues i a s ( A arquidiocese, p . 261). P a r t e e x p l i c a r - s e - á p e l a i n c l u s ã o d e c e r c a d e u m a d e z e n a d e p a r ó -q u í a s f l a v i e n s e s e m t e r r a d e F e r r e i r a ( o u M o n f o r t e d e R i o L i v r e ) , n a q u a l a Lista d e 1320 c o n t a -b i l iza 13 i g r e j a s , c o n t r a 3 n o s é c u l o x v .

1 2 3 S ã o P e d r o d e T o u r é m . 1 2 4 A p e s a r d e n ã o s u r g i r q u a l q u e r a p r e s e n t a ç ã o às ig re jas d a t e r r a d e F r e i x o n a s listas d i o n i s i -

nas , n a Lis ta d e 1320 l ê - s e q u e a t e r ça d a I g r e j a d e S ã o M i g u e l d e F r e i x o e ra d o re i (ALMEIDA -História da Igreja, vol. 4, p. 112).

1 2 5 MARQUES - A l g u n s a s p e c t o s d o p a d r o a d o , p . 373-375; SÁ-NOGUEIRA - A o r g a n i z a ç ã o d o p a d r o a d o r é g i o , p . 432.

1 2 6 MATTOSO - Identificação de um país, v o l . 1, p . 195. 1 2 7 MARQUES - A arquidiocese, p . 6 5 4 ( m a p a x v ) e 721 ( m a p a XVII). 128 COCHERIL - Routier des abbayes cisterciennes, p . 52. A l é m da r e s i s t ê n c i a d o c u m e n t a d a À filia-

ç ã o d e J ú n i a s n a O r d e m d e C i s t e r p o r p a r t e d o a r c e b i s p o D . J o ã o V i e g a s d e P o r t o c a r r e i r o , é pos s íve l q u e a i m p l a n t a ç ã o d o s C i s t e r c i e n s e s e m B r a g a fosse i g u a l m e n t e d i f i c u l t a d a p e l a fal ta d e loca is a p r o p r i a d o s , d a d o o n ú m e r o e l e v a d í s s i m o d e m o s t e i r o s e x i s t e n t e . C o n h e c e n d o os rigoro-sos c r i t é r i o s s e g u i d o s p o r es ta o r d e m p a r a e s c o l h e r o s loca i s d e i m p l a n t a ç ã o , es ta e x p l i c a ç ã o p a r e -c e a c e i t á v e l .

1 2 9 MARQUES - A arquidiocese, p . 825, 828. 1 3 0 Q u a n t o a o C o n v e n t o d e S a n t a C l a r a d e A m a r a n t e , e m b o r a c o m p r o v a d a a sua e x i s t ê n c i a

n o t e m p o d o a r c e b i s p o D . F e r n a n d o d a G u e r r a , só p o d e r i a t e r p a s s a d o às Cla r i s sas a p ó s m e a d o s d o s é c u l o (MARQUES - A arquidiocese, p . 835).

131 A ú l t i m a t e r i a s i d o i n t e g r a d a n a o r d e m p o u c o a n t e s : e m 5 d e A g o s t o d e 1298 a i n d a o r e i a p r e s e n t a v a o r e s p e c t i v o p á r o c o ( G a v e t a s , 19-4-3, A- 2 9) •

1 3 2 MATTOSO — A f o r m a ç ã o n a n a c i o n a l i d a d e , p . 45-48 . 1 3 3 MARQUES — A arquidiocese, p . 245. 134 Ibidem. 135 MOREIRA — Freguesias da diocese do Porto. 1 3 6 C o m e f e i t o , a Lis ta d e 1320-1321 loca l i za n a a r q u i d i o c e s e d e B r a g a , a g r u p a d o s às « Igre jas d e

T e r r a d e B a s t o » ( e n t r e F a f e , C e l o r i c o e C a b e c e i r a s d e B a s t o ) , e n t r e o u t r o s t e m p l o s os d e O u r i -l h e , C a ç a r i l h e , S e i d õ e s , R i b a s , P e d r a ç a , B a ú l h e , O u t e i r o e , m a i s a c i m a , R i o D o u r o - a l é m d o m o s t e i r o d e A r n ó i a . N a m a r g e m e s q u e r d a d o T â m e g a , s u r g e m as i g r e j a s d e M o n d i m , E r m e l o e F e r v e n ç a . L o g o , n ã o p a r e c e p o s s í v e l q u e a d i o c e s e d o P o r t o a l c a n ç a s s e , e n t ã o , estas p a r a g e n s .

137 A l g u n s e x e m p l o s q u e d e m o n s t r a m b e m q u e o a s s u n t o d e v e se r e s t u d a d o à l u p a . C o m o se v i u , J . MARQUES a f i r m a q u e as ig re jas d e S ã o M a m e d e d e R e c e z i n h o s e d e S a n t a E u l á l i a d e P a -ç o s d e F e r r e i r a p e r t e n c i a m à a r q u i d i o c e s e e m m e a d o s d o s é c u l o x v (Arquidiocese, p . 245). O r a n ã o só a Lis ta d e 1320 as i n d i c a c o m o p e r t e n c e n t e s à d i o c e s e d o P o r t o , c o m o as listas das a p r e s e n t a -ç õ e s d o p a d r o a d o r é g i o c o r r o b o r a m e s t e f a c t o , p e l o m e n o s n o r e i n a d o d e D . D i n i s (Gavetas, 19-- 3 - 4 7 - fls. 33 e 39 p a r a S a n t a O v a i a d e P a ç o s , e m 1300 e 1303; e fl. 51 v p a r a S ã o M a m e d e d e R e -c e z i n h o s , e m 1312). J á a I g r e j a d e S ã o P e d r o d e C a í d e , o u C a í d e d e R e i ( t e r r a d e S o u s a ) , a t r i b u í d a p o r D o m i n g o s M o r e i r a à d i o c e s e d o P o r t o , é r e f e r i d a n a s m e s m a s l istas c o m o p e r t e n -c e n t e à a r q u i d i o c e s e d e B r a g a (1307-1314: ibidem, fls. 45, 56). P a r e c e ú t i l , p o r t a n t o , u m e s t u d o c e n t r a d o n a d e t e r m i n a ç ã o d o s l i m i t e s f r o n t e i r i ç o s e n t r e P o r t o e B r a g a e sua p o s s í v e l fluidez a o l o n g o d o s é c u l o x r v , q u e a t e n d a s o b r e t u d o a d o c u m e n t a ç ã o d o s m o s t e i r o s d e R o r i z e S ã o M i -g u e l d e V i l a r i n h o - o n d e J . MARQUES a f i r m a e n c o n t r a r e m - s e as p r o v a s da d e l i m i t a ç ã o q u e d e -f e n d e (Arquidiocese, p . 252). T a l v e z a s s i m seja p o s s í v e l a p u r a r , c o m s e g u r a n ç a , o m o d o c o m o e v o -l u i u a r e p a r t i ç ã o d e f r e g u e s i a s e n t r e as d u a s d i o c e s e s n e s t a z o n a .

1 3 8 D o m i n g o s M o r e i r a d á - n o s u m i n v e n t á r i o das p a r ó q u i a s c o m e x i s t ê n c i a d o c u m e n t a d a n a I d a d e M é d i a q u e a c t u a l m e n t e p e r t e n c e m à d i o c e s e d o P o r t o , p o d e n d o d a r a e n t e n d e r q u e essas f r e g u e s i a s j á n a é p o c a m e d i e v a l p e r t e n c i a m à d i o c e s e d o P o r t o — o q u e n ã o a c o n t e c i a .

1 3 9 A s u b d i v i s ã o d a s « I g r e j a s d a T e r r a d a O r d e m d e C r i s t o » à p a r t e , n o t a d a n a L i s t a d e 1320, d e s t i n o u - s e p r o v a v e l m e n t e a t e r e m c o n t a a n o v a o r d e m e n t ã o e m p r o c e s s o d e c o n s t i -t u i ç ã o . N ã o n o s p a r e c e q u e c o r r e s p o n d e s s e a u m a d i v i s ã o r e a l . ALMEIDA - História da Igreja, v o l . 4 , p . 93.

1 4 0 MOREIRA - Freguesias.

1 9 8

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A D O E S P A Ç O

141 Couço em Moreira (Maia), Santa Cristina de Coronado em Folgosa (Maia), Santa Maria de Negrelos em Roriz (Santo Tirso), Parada de Castanheira em Lordelo (Paredes), São Veríssi-m o da Ribeira em Regilde (Felgueiras), Ervosa em São Martinho de Bougado (Santo Tirso), São Paio de Virães em Roriz (Santo Tirso) e São Miguel de Vila Verde em Telões (Amarante) (MOREIRA — Freguesias, p. 109). Além das extintas, fica a questão das freguesias cuja atribuição é feita ora a Braga ora ao Porto. Alista fornecida p o r j . MARQUES (Arquidiocese, p. 246) correspon-de àquelas sobre as quais existem dúvidas. Domingos Moreira situa as freguesias nos concelhos actuais, o que facilita a respectiva localização.

142 SÁ-NOGUEIRA — A organização do padroado régio. 143 Note-se que a presença do padroado régio na diocese foi determinada com base na infor-

mação de listas de apresentações referentes à época de 1259-1321. A evolução destas ao longo do reinado de D. Dinis mostra um enfraquecimento claro do padroado régio, por doação dos direi-tos de apresentação a terceiros.

144 O rei apresentava como prior ao mosteiro de Águas Santas um freire/cónego (surgem ambas as designações) da Ordem do Santo Sepulcro, pelo mesmo método acima referido para os mosteiros da administração de Valença. As três apresentações a este mosteiro datam de 1264, 1283 e 1309 (Gavetas, 19-4-3, As- 2 e 47; 10•(15־3־

145 A igreja de Almoroça figura na Lista de 1320 (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 94). Domingos Moreira — que, recorde-se, indica os nomes actuais das freguesias — não a refere.

146 Por lapso, uma apresentação régia de 4 de Dezembro de 1298 dá esta igreja na arquidioce-se de Braga (Gavetas, 19-14-3, fl. 30). Na Lista de 1320, porém, da diocese do Porto consta refe-rência à igreja de Aguiar, na rubrica «Igrejas da Terra de Aguiar», enquanto que nas «Igrejas da Terra de Sousa» da arquidiocese bracarense não existe qualquer menção a uma igreja de Aguiar ou de São R o m ã o (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 99 e 105-106). Mais u m exemplo que permite duvidar que que a pertença de algumas freguesias nesta zona de charneira fosse clara.

147 Da lista consta a Igreja de São Pedro de Paredes. A dificuldade da diferença de orago é importante.

148 Da lista consta São Fraústo de Sever. Sendo «Sever» o antigo nome da Régua, e dada a raridade do orago, fizemos a identificação. Medim figura na Lista de 1320 (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 96).

149 Domingos Moreira identifica 18 freguesias no arcediagado de Vouga, a sul da diocese do Porto na fronteira com Coimbra, como pertencentes à diocese portuense — localizadas nos m o -dernos concelhos de Estarreja (2), Vale de Cambra (6), Oliveira de Azeméis (6) e Albergaria--a-Velha (4). Mas a fonte por si indicada, a Lista de 1320, dá todas essas freguesias na diocese de Coimbra. Ver nota 138 supra.

150 GOMES - Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. 151 N ã o iden t i f i cado p o r MATTOSO; KRUS; ANDRADE - O castelo e a feira, p . 162-163. 152 Águas Santas pertencia ao padroado régio no reinado de D. Dinis (ver nota supra). E m

1320, estava-lhe anexado o mosteiro de Vila Nova, em Viseu (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 120). Ver GOMES - Premonstratenses.

153 MARQUES — O clero — homens de oração e acção, p. 225. 154 E m 1 de Março de 1281, o rei apresentava o clérigo Paio Domingues como pároco da

Igreja de Santa Maria de Mosteiro, ignorada na Lista de 1320 (Gavetas, 19-3-47, fl. 6). Se esta fre-guesia corresponde ao Mosteiro localizado a norte de Macieira de Cambra, então a fronteira en-tre as dioceses de Coimbra e Lamego seria u m pouco mais extensa.

155 A Lista de 1320 dá como orago Santo André (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 123). 156 Na Lista de 1320, diz-se que a freguesia de Macieira de Alcova estava unida à Albergaria

(ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 124). 157 Supomos que a apresentação do rei à Igreja de Santa Maria de Ega, em 23 de Abril de

1319 (Gavetas, 19-3-31, fl. 2), terá sido meramente temporária. Terá obedecido quase decerto à mesma explicação adiantada mais abaixo para o grupo das «Igrejas de Monsanto» da diocese da Guarda: sob custódia provisória da Coroa, após a extinção da Ordem do Templo, transitaria de-pois para a O r d e m de Cristo.

158 GOMES — Organização paroquial. 159 Pertenceu ao rei pelo menos até 12 de Setembro de 1317, data da apresentação de mestre

Estêvão, físico do rei, como pároco da igreja (Gavetas, 19-1-13, f. 4). 160 MATTOSO - Cluny, Crúzios e Cistercienses na formação de Portugal, p. 112. 161 Dela faziam parte as igrejas de Santa Marinha, Santa Maria, São Vicente, da Torre e a de

Freimim de Santo Antão (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 121-122). 162 Das igrejas viseenses constantes das listas das apresentações de D. Afonso III para 1259-1266

(Gavetas, 19-3-15) ainda constava a de São Salvador do Lamegal (termo de Pinhel), sem apresenta-ção durante o reinado de D. Dinis. Continuaria a pertencer ao padroado régio?

163 Ao contrário do que sucede nas outras dioceses, a Lista de 1320 apresenta a Igreja Catedral de Santa Maria no final, depois do termo de Trancoso (ALMEIDA — História da Igreja, vol. 4, p. 122).

164 Na Lista de 1320 lê-se «Santos Velhos», em vez de «Santo Osevho» (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 121).

165 Separadas na Lista de 1320 entre vila e termo. 166 COSTA - História do bispado e cidade de Lamego, vol. 1, p. 52-57. Depois de terminado este tex-

to, o dr. Anísio Saraiva informou-nos de que o primeiro arcediagado surgiu em Lamego apenas no século xv. Por isso a Lista de 1320 apresenta as igrejas da diocese de Lamego numa só sequência, sem qualquer subdivisão. Apesar de o agrupamento proposto por M. Gonçalves da Costa não ser, portanto, medieval, mantivemo-lo por comodidade de exposição, com esta ressalva.

167 COSTA - História do bispado e cidade de Lamego, vol. 2. 168 MARQUES - Portugal na crise, p. 367.

1 9 9

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A C O N S T R U Ç Ã O D E U M A I G R E J A

169 Ver FERNANDES - A acção dos Cistercienses de Tarouca. 170 COSTA - História do bispado, vol . 2, p . 517-537. 171 GOMES - Premonstratenses. 172 COSTA - História do bispado, vo l . 2, p . 410-432. 173 Ibidem, vol. 1, p. 188. A Lista de 1320 indica cerca de 60. 174 Ibidem, vol. 1, p. 154. 175 Hoje Penha dAguia , terra natal do historiador António Joaquim Ribeiro Guerra, que

aqui recordamos. 176 GOMES - História da diocese da Guarda. Pelo menos até 1320, a diocese da Guarda não con-

frontava a norte com a de Lamego, mas somente com a de Viseu. C o m efeito, aquando da ava-liação de 1320, as igrejas dos territórios de Trancoso e Pinhel surgem todas integradas na diocese viseense. Assim, só em 1403 as dioceses da Guarda e de Lamego passaram a ser vizinhas, com a integração de Ribacoa no território lamecense.

177 Texto integral em GOMES - História da diocese, p. 34-44. 178 GOMES - História da diocese, p. 46. 179 GOMES - História da diocese, p. 44. 180 Ao comentar esta subdivisão da Lista de 1320, Pinharanda Gomes (História da diocese,

p. 47-48) não faz qualquer referência à inclusão das igrejas transtaganas de Longomel e Ponte de Sor no bispado da Guarda.

181 A Igreja de Santa Maria de Nisa, da Ordem do Templo, era apresentada pelo rei a João Domingues, filho de Aparício Domingues, em 28 de Julho de 1313 (Gavetas, 19-14-3, n.° 3, f. 54). Intromissão temporária, apenas, verificada no período posterior à extinção dos Templários e an-terior à criação da O r d e m de Cristo.

182 Gavetas, 10-3-15. Sobre as freguesias de Portalegre, ver VIANA - Notas sobre a organização paroquial.

183 Sobre este senhorio ver SÁ-NOGUEIRA - A constituição do senhorio fronteiriço. Em todo o caso, e m 1320 todas pertenciam a ordens militares, excepto a de Santa Maria Madalena, do mosteiro canonical de São Jorge de Coimbra. Mas nessa data já o senhorio se havia desintegrado.

184 Pinharanda Gomes (História da diocese, p. 48) contabiliza apenas 63 igrejas, contagem que é insuficiente.

185 Se a igreja de Maçainhas indicada na Lista de 1320 corresponder à actual localidade de Maçainhas de Baixo, entre ela e Belmonte ficavam várias freguesias pertencentes às Igrejas da Covilhã e do termo da Guarda (a saber, Colmeal, Vela, Aldeia do Bispo e Fernão Joanes).

186 Às duas igrejas da Guarda juntava-se a de São Julião de Punhete (Constância). GOMES — História da diocese, p. 47.

187 Gavetas, 19-14-3, £1. 4 (1/4/1285, Castelo Mendo) e £1. 47 (30/7/1309, Linhares). 188 Esta igreja de Jaiva é talvez a de Pousafoles. E m 1259, o concelho da Guarda doava Tou ro

e Pousafoles («Tauri e Saigafales») à O r d e m do Templo (GOMES - História da diocese, p. 50). 189 COCHERIL - Routier des abbayes cisterciennes, p. 133-136. 190VILAR - Cónegos Regrantes de Santo Antão. 191 ALMEIDA - História da Igreja, vol. 1, p. 282. 192 MATTOSO - A formação da nacionalidade, p. 76. 193 Nos dois primeiros anos do seu reinado, por exemplo, por exemplo, D. Dinis apresentava

a igrejas do padroado régio olisiponense o chanceler mestre Pedro Martins (Santa Maria da Alcá-çova de Santarém), mestre Pedro seu médico (São Tiago de Óbidos), Domingos Eanes Jardo, di-to seu antigo chanceler (São Leonardo da Atouguia), além de outros «clérigos do rei» (Gavetas, 19-3-47).

194 As igrejas da Azambuja e de Povos, perto do Tejo , eram ambas do padroado régio, tal co-mo as de Porto de Mós. Sobre a da Ota, embora a Lista de 1320 não o refira, é provável que pertencesse ao Mosteiro de Alcobaça.

195 Após seis apresentações régias entre 1279 e 1316, a Lista de 1320 indica que pertencia à O r -dem de Santiago. Teria sido doada no intervalo entre 1316 e 1320?

196 Existem três apresentações régias à igreja de Alcanede entre 1279 e 1289. A Lista de 1320 já a atribuía à Ordem de Avis.

197 Na apresentação feita ao escrivão da cozinha do rei Afonso Domingues, em 10 de Julho de 1319, o orago da igreja é São Lourenço (Gavetas, 19-6-31).

198 p e [ a lógica da continuidade geográfica, Atouguia incorporar-se-ia nas igrejas de Óbidos e o Mosteiro de Alcobaça neste grupo - ou no das igrejas de Santarém. Segundo esta mesma lógi-ca, também a Igreja de Santa Maria da Ventosa, integrada nas igrejas de Alenquer, deveria figurar nas igrejas de Torres Vedras.

199 São Nicolau ainda era do padroado régio em 1265, ano em que mestre Pedro de Bena-vente foi apresentado como pároco (Gavetas, 10-3-15). A ausência de qualquer apresentação du -rante o período dionisino faz-nos presumir que o seu padroado tivesse sido alienado. Para São Julião existem várias apresentações ao longo do reinado de D. Dinis. O padroado de Santa Justa seria doado pelo rei ao Mosteiro de São Vicente de Fora em 1305, por permuta com o da Igreja de São Cucufate, perto da Vidigueira (Torre do Tombo , Chancelaria de D. Dinis, Livro 5.0, fl. 17 v).

200 Esse predomínio prolongava-se pela diocese de Évora, imediatamente a sul, através de dois grupos de paróquias: as igrejas de Ourique e as igrejas de Odemira (ver diocese de Évora).

201 Também D. Afonso IV e D. Fernando ficaram sepultados na diocese de Lisboa, o primei-ro na sé (com a rainha D. Beatriz) e o segundo em Santa Maria da Alcáçova de Santarém.

202 A Lista de 1320 refere as clarissas de Lisboa (ALMEIDA - História da Igreja, vol. 4, p. 127), embora José MATTOSO não as inclua no seu mapa dos conventos franciscanos e dominicanos (A formação da nacionalidade, p. 234.)

203 MATTOSO - A formação da nacionalidade, p. 235.

CENTRO DE hSTUUOo D!. H&lOhU htUulUárt

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O R G A N I Z A Ç Ã O E C L E S I Á S T I C A D O E S P A Ç O

2 0 4 ALONSO - A g o s t i n h o s . 2 0 5 A h i s t ó r i a d a r e s t a u r a ç ã o d a d i o c e s e d e É v o r a n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o XII, b e m c o -

m o d a d e f i n i ç ã o d o s seus l i m i t e s , e n c o n t r a - s e e s t u d a d a e m d o i s v a l i o s o s e s t u d o s d o P . e J ú l i o C é -sar BAPTISTA - L i m i t e s d a d i o c e s e d e É v o r a ; IDEM - R e s t a u r a ç ã o da d i o c e s e d e É v o r a .

2 0 6 BAPTISTA - L i m i t e s , p . 7 . 207 Ibidem, p . 6 , 27 . M a r t i m S a n c h e s , i r m ã o d e D . T e r e s a , e r a e n t ã o m u i t o i n f l u e n t e n a c o r t e

d o r e i d e L e ã o , A f o n s o I X - p o r s e r e m a m b o s p r i m o s d i r e i t o s d o r e i e n e t o s d e D . A f o n s o H e n -riques. P o d e p r e s u m i r - s e q u e , p o r d e t r á s d e s t e r e c o n h e c i m e n t o , f a v o r á v e l a o b i s p o d e É v o r a , e s -t a r i a m i n t e r e s s e s p o l í t i c o s q u e t r a n s c e n d i a m o c o n f l i t o e n t r e j u r i s d i ç õ e s e p i s c o p a i s . P o r o u t r a s p a -lavras , é p o s s í v e l q u e o c o n f l i t o u l t rapassasse o e s t r i t o â m b i t o d o s n e g ó c i o s ec les iás t i cos ; o u , e n t ã o , q u e es tes d o m i n a s s e m a d i n â m i c a p o l í t i c a s e c u l a r .

2 0 8 S ó a s s i m se e x p l i c a q u e as i g r e j a s d e M é r t o l a e M o u r a s e j a m d e f i n i d a s c o m o « Ig re ja s d e O d e m i r a » e A l c á c e r d o Sal c o m o «Igre jas d e O u r i q u e » . O u r i q u e e O d e m i r a e r a m o s ú n i c o s c e n -t r o s d o p a d r o a d o r é g i o n e s t a s d u a s s u b - r e g i õ e s .

2 0 9 A c o m p r o v á - l o a i n c l u s ã o d e u m a s ó i g r e j a d e E lvas n e s t e g r u p o , a d e S a n t a M a r i a d a A l -c á ç o v a , d a q u a l se d i z « q u e é d a o r d e m d e S. B e n t o d e A v i z » . As r e s t a n t e s i g r e j a s d e E l v a s c o n s -t i t u e m u m g r u p o à p a r t e . T a m b é m a I g r e j a d e S a n t a M a r i a é a ú n i c a d e B e j a q u e f i g u r a n e s t e g r u p o , c e r t a m e n t e p o r p e r t e n c e r à a n t i g a m i l í c i a d e É v o r a ( i n f o r m a ç ã o c e d i d a p e l o d r . H e r m e -n e g i l d o F e r n a n d e s ) .

2 1 0 E m 22 d e J a n e i r o d e 1280, o r e i d a v a - l h e c o m o p á r o c o J o ã o M a r t i n s , i r m ã o d e m e s t r e P e -d r o M a r t i n s , s e u c h a n c e l e r e f u t u r o b i s p o d e C o i m b r a (Gavetas, 19-3-47, fl. 3). A Lis ta d e 1320 j á a r e f e r e c o m o p e r t e n c e n t e à O r d e m d e A v i s .

2 1 1 S a n t a M a r i a d e A r e s , S a n t a M a r i a e S ã o B a r t o l o m e u d e O r i o l a e V i l a R u i v a d e M a l c a b r ã o n ã o f i g u r a m n a Lis ta d e 1320, e m b o r a c o m a p r e s e n t a ç õ e s rég ias e n t r e 1315 e 1317. A i d e n t i f i c a ç ã o d e A r e s c o m A r ê s ser ia d i f íc i l , d e v i d o à g r a n d e d i s t â n c i a g e o g r á f i c a e n t r e as i g r e j a s d e M o n t e -m o r - o - N o v o e es ta v i la , m a s s o b r e t u d o p e l o f a c t o d e a i g r e j a d e A r ê s t e r ficado n a O r d e m d o T e m p l o a p ó s o a c o r d o d e 1260 e n t r e o m e s t r e d a o r d e m e o b i s p o d e É v o r a . P o r c o n s e g u i n t e , t a l v e z a A r e s a p r e s e n t a d a p e l o r e i e m 13 d e A b r i l d e 1315 a o c l é r i g o A f o n s o E a n e s c o r r e s p o n d a à a c t u a l A i r e s .

212 Gavetas, 10-3-15. T a m b é m a I g r e j a d e S ã o M a m e d e d e É v o r a d e i x a d e i n t e g r a r as listas d i o n i s i n a s , d e p o i s d e e m 1264 figurar nas d e D . A f o n s o I I I .

2 1 3 E x c e p t o a p r i n c i p a l , S a n t a M a r i a , a s s o c i a d a às i g r e j a s d e M o n f o r t e p o r p e r t e n c e r p a r c i a l -m e n t e à O r d e m d e A v i s , c o m o j á r e f e r i m o s .

2 1 4 E m 1261, a i g r e j a d e V i l a N o v a d e O u r i q u e a i n d a e r a r e f e r i d a c o m o « o u t r a i g r e j a a f a z e r e m M a r a c h i q u e » (Gavetas, 10-3-15).

2 1 5 VILAR - As dimensões de um poder. A es t e i m p o r t a n t e t r a b a l h o , q u e t o r n a É v o r a ( j u n t a m e n -t e c o m B r a g a ) a ú n i c a d i o c e s e p o r t u g u e s a o b j e c t o d e e s t u d o a p r o f u n d a d o p a r a o p e r í o d o m e d i e -va i , só t i v e m o s ace s so e m fase j á a d i a n t a d a d e e l a b o r a ç ã o d e s t e t e x t o .

2 1 6 M o s t e i r o p o b r e e m 1320, u m a v e z q u e a a v a l i a ç ã o o t r i b u t a a p e n a s e m 15 l ibras ( c o m p a r e -- s e c o m o u t r o s m o s t e i r o s c i s t e r c i e n s e s f e m i n i n o s : A r o u c a : 9 0 0 0 ; L o r v ã o : 5 0 0 0 ; C e l a s : 1 0 0 0 l i -b ras ; O d i v e l a s : 2 0 0 0 ; A l m o s t e r : 1100).

2 1 7 A O r d e m d e A v i s e s t ava e s t r e i t a m e n t e l i g a d a à O r d e m d e C i s t e r e m P o r t u g a l , a t r a v é s d o M o s t e i r o d e A l c o b a ç a . M a s t a m b é m e m C a s t e l a - L e ã o a O r d e m d e C a l a t r a v a t i n h a esse f o r t e v í n -c u l o ( J o s e p h 0 'CALLAGHAN - T h e a f f i l i a t i o n o f t h e o r d e r o f C a l a t r a v a w i t h t h e o r d e r o f C i t e a u x , i n The Spanish military orders of Calatrava and its affiliates, L o n d r e s , 1975 - apud VILAR).

2 1 8 S o b r e o s c o n f l i t o s e n t r e a O r d e m d e A v i s e o b i s p o e c a b i d o d e É v o r a r e l a t i v o s a j u r i s d i -ç ã o ec les iás t i ca , fisco, e t c . , v e r VILAR - As dimensões de um poder, p . 245-68 . O c a p í t u l o s o b r e « O e s t a b e l e c i m e n t o das u n i d a d e s p a r o q u i a i s » (p. 218-243), m o s t r a a l g u m a s d i s c r e p â n c i a s c o m a Lis ta d e 1320 — p o r e x e m p l o , o p a d r o a d o d e C o r u c h e n o b i s p o e c a b i d o (das t rês p a r ó q u i a s ? ) , o d e E s t r e m o z n a O r d e m d e S a n t i a g o . M a s as c r o n o l o g i a s são d i f e r e n t e s e as t r a n s f e r ê n c i a s e e s -c a m b o s d e p a d r o a d o s e r a m c o m u n s n a t r a n s i ç ã o d o s é c u l o XIII p a r a o x i v .

2 1 9 VILAR — As dimensões de um poder, p . 2 7 6 - 2 8 0 . 2 2 0 SA-NOGUEIRA - A c o n s t i t u i ç ã o d o s e n h o r i o f r o n t e i r i ç o , p . 22. 2 2 1 VILAR - As dimensões de um poder, p . 2 8 6 - 2 8 7 . 2 2 2 VILAR - As dimensões de um poder, p . 284 . A a u t o r a r e f e r e q u e a i n f l u ê n c i a d e S ã o V i c e n t e

n ã o d e s a p a r e c e r i a p o r c o m p l e t o n o s e g u i m e n t o de s se e s c a m b o . 2 2 3 SÁ-NOGUEIRA — O t e s t a m e n t o d e E s t ê v ã o E a n e s . 2 2 4 ALONSO - A g o s t i n h o s . 2 2 5 BEIRANTE - E r e m í t i s m o . 2 2 6 ALMEIDA - História da Igreja, v o l . 1, p . 283. 2 2 7 ALMEIDA - História da Igreja, v o l . 4 , p . 92 . 2 2 8 S a n t a M a r i a d e L a g o s n ã o figura n a lista d a a v a l i a ç ã o d e 1320-1321. N o e n t a n t o , e m 9 d e

J u n h o d e 1293 o c l é r i g o D o m i n g o s P i r e s e r a a p r e s e n t a d o c o m o p r i o r à c o n f i r m a ç ã o d o b i s p o d e S i lves (Gavetas, 19-14-3, fl. 17 v ) .

2 2 9 S a n t a M a r i a d e P o r c h e s t a m b é m n ã o figura n a lista d a a v a l i a ç ã o d e 1320-1321. N o e n t a n t o , e m 28 d e A b r i l d e 1289 M i g u e l P i r e s , e s c r i v ã o d e L o u l é , e r a a p r e s e n t a d o c o m o p r i o r à c o n f i r m a -ç ã o d o b i s p o d e S i lves (Gavetas, 19-14-3, fl. 9 v ) .

2 3 0 S a n t a M a r i a d e P a d e r n e n ã o figura n a lista d a a v a l i a ç ã o d e 1320-1321, m a s s u r g e p o r d u a s v e z e s n a s l istas d o p a d r o a d o r é g i o , c o m a p r e s e n t a ç õ e s e m 1291 e 1292 (Gavetas, 19-14-3, fl. 12 v e14).

2 3 1 RODRIGUES - C o l e g i a d a s .

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