histÓrico do choro na cidade de pablo... · 2018-02-08 · 2 manifestações do choro. aqui...

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1 AS TERRITORIALIDADES DO CHORO NA CIDADE DE NATAL Pablo Raniere Medeiros da Costa Departamento de Geografia – UFRN Prof. Dr. Alessandro Dozena Prof. Adjunto Orientador – DGE/UFRN RESUMO Este trabalho discute as manifestações do choro em Natal, a partir das territorialidades geradas pelo mesmo. Enfatiza uma análise que expressa os usos do território que, ao longo do tempo, contribuíram para uma situação geográfica favorável à territorialização do choro na cidade de Natal. Para tanto, fez-se necessário uma abordagem sobre o tema, cujo principal objetivo fosse o de identificar na cidade os espaços que mantêm forte relação com o choro; assim como os bairros, bares, instituições governamentais e escolas de música. Nesses espaços, os indivíduos ouvem, tocam e promovem o estilo na cidade, gerando territorialidades que remetem ao gênero musical, não só do ponto de vista material, perceptível na paisagem (portadora de símbolos); mas também no imaterial, por possuir um conteúdo intangível, que se encontra nos sujeitos – a partir da corporeidade que contribui para a dimensão identitária do estilo na cidade. O artigo também apresenta elementos que possibilitam a identificação, nos eventos histórico- geográficos e nas manifestações atuais do choro, a indissociabilidade entre as esferas política, econômica e cultural; na medida em que avaliamos ser impossível atingir o movimento do espaço geográfico na atualidade sem a compreensão dessas três dimensões associadamente. Palavras-chave: Choro, territorialidades, identidade, Natal. INTRODUÇÃO Este artigo busca explicar a dinâmica espacial provocada pelo choro, a partir da interação entre os que tocam e o ouvem na cidade. Ao trabalharmos com o conceito de território inserido nas abordagens culturais em geografia, não nos restringimos a clássica conceituação de território definido como o espaço que age por intermédio das relações de poder nos diversos níveis e escalas da sociedade. Aqui, considera-se o território como sendo o “[…] fruto de uma apropriação simbólica, especialmente através das identidades territoriais, ou seja, da identificação que determinados grupos desenvolvem com seus espaços vividos” (HAESBAERT, 2006: p.120). Assim, buscamos: “[…] interpretar as identificações e representações presentes no território e considerá-lo como uma dimensão de experiência humana dos lugares, [...] realizada cotidianamente pelos grupos sociais que nele habitam e lhe conferem dimensões não apenas simbólicas, mas também econômicas e políticas (DOZENA, 2009: p.24)”. É nesse sentido que percebemos a impossibilidade de dissociar a cultura das dimensões política e econômica que, como veremos, encontram-se imbricadas nas

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AS TERRITORIALIDADES DO CHORO NA CIDADE DE NATAL

Pablo Raniere Medeiros da Costa Departamento de Geografia – UFRN

Prof. Dr. Alessandro Dozena

Prof. Adjunto Orientador – DGE/UFRN

RESUMO

Este trabalho discute as manifestações do choro em Natal, a partir das territorialidades geradas pelo mesmo. Enfatiza uma análise que expressa os usos do território que, ao longo do tempo, contribuíram para uma situação geográfica favorável à territorialização do choro na cidade de Natal. Para tanto, fez-se necessário uma abordagem sobre o tema, cujo principal objetivo fosse o de identificar na cidade os espaços que mantêm forte relação com o choro; assim como os bairros, bares, instituições governamentais e escolas de música. Nesses espaços, os indivíduos ouvem, tocam e promovem o estilo na cidade, gerando territorialidades que remetem ao gênero musical, não só do ponto de vista material, perceptível na paisagem (portadora de símbolos); mas também no imaterial, por possuir um conteúdo intangível, que se encontra nos sujeitos – a partir da corporeidade que contribui para a dimensão identitária do estilo na cidade. O artigo também apresenta elementos que possibilitam a identificação, nos eventos histórico-geográficos e nas manifestações atuais do choro, a indissociabilidade entre as esferas política, econômica e cultural; na medida em que avaliamos ser impossível atingir o movimento do espaço geográfico na atualidade sem a compreensão dessas três dimensões associadamente. Palavras-chave: Choro, territorialidades, identidade, Natal.

INTRODUÇÃO

Este artigo busca explicar a dinâmica espacial provocada pelo choro, a partir da interação entre os que tocam e o ouvem na cidade. Ao trabalharmos com o conceito de território inserido nas abordagens culturais em geografia, não nos restringimos a clássica conceituação de território definido como o espaço que age por intermédio das relações de poder nos diversos níveis e escalas da sociedade. Aqui, considera-se o território como sendo o “[…] fruto de uma apropriação simbólica, especialmente através das identidades territoriais, ou seja, da identificação que determinados grupos desenvolvem com seus espaços vividos” (HAESBAERT, 2006: p.120). Assim, buscamos:

“[…] interpretar as identificações e representações presentes no território e considerá-lo como uma dimensão de experiência humana dos lugares, [...] realizada cotidianamente pelos grupos sociais que nele habitam e lhe conferem dimensões não apenas simbólicas, mas também econômicas e políticas (DOZENA, 2009: p.24)”.

É nesse sentido que percebemos a impossibilidade de dissociar a cultura das dimensões política e econômica que, como veremos, encontram-se imbricadas nas

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manifestações do choro. Aqui trataremos de expor alguns eventos histórico-geográficos que implicaram em mudanças tanto na forma quanto no conteúdo de alguns objetos situados na área urbana de Natal. Estes, repercutem nas práticas culturais que envolvem o choro, tanto as enfraquecendo quanto as tornando mais fortes.

Objetivamos ainda explicar como as manifestações de choro têm repercutido espacialmente desde a década de 1970 até os dias atuais, buscando juntamente com o próprio movimento de urbanização natalense; analisar as territorialidades do choro e os processos de conformação de territorialidades em determinados pontos da cidade. Foi dado maior enfoque ao bairro da Ribeira, por se tratar de um bairro antigo de Natal, que faz parte de seu centro histórico e possui forte relação com o choro.

Para tanto, abordaremos o uso do território para além dos aspectos econômicos, considerando que apesar de atualmente o espaço muitas vezes expressar os princípios da competitividade e da rapidez, as ações podem re-significar os objetos, utilizando-os para fins que não correspondem a sua finalidade primaz (hegemônica)), a do dinheiro. Também há a promoção de solidariedades orgânicas, ações horizontais que traduzem uma maior coletividade nas práticas sociais; e que por isso ganham um conteúdo contra-racional1.

HISTÓRICO DO CHORO NA CIDADE

O choro estabelece territorialidades em Natal, na medida em que tal noção pressupõe certa “inconstância” no que se refere às apropriações do espaço pelos sujeitos, por se tratar de uma relação de apropriação que:

pode ser construída a partir de múltiplos veículos, imaginário, sentimentos, posse, propriedade, uso, sem que nenhum deles signifique sempre o exercício efetivo de um controle sobre os objetos e as práticas sociais que aí ocorrem” (GOMES, 2002: p. 13).

Apesar do chorinho não ser originário de Natal, mas do estado do Rio de Janeiro, apresentaremos aqui, a partir da dinâmica do gênero na cidade, alguns elementos capazes de corroborar com a hipótese de que há uma identidade territorial em Natal vinculada ao choro. Para tanto, subsidiaremos tal hipótese evidenciando os processos pelos quais essa relação identitária possibilitou historicamente com que o choro estabelecesse territorialidades na cidade.

Antecedentes

As manifestações de choro na cidade não são recentes. Foram dois os grandes artistas que, apesar de não serem naturais de Natal, tiveram um importante papel no fortalecimento de uma identidade atrelada ao choro na capital e no estado como um todo: K-ximbinho (Sebastião Barros) e Ademilde Fonseca. Considerado o maior expoente do choro do estado, o potiguar K-ximbinho (1917-1980), nascido em

1 Pois se tratam de “[…] outra razão, uma “razão emocionante” ao invés de uma “razão racionalizante”. Em geral, tem-se o hábito de se acreditar que a emoção é irracional, sendo que ela não deve ser tida como um parâmetro de racionalidade.” (DOZENA, 2009; p.164).

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Taipú-RN, foi clarinetista e compôs vários choros, dentre os quais “Sonoroso” (o mais famoso). Ademilde Fonseca (1921), natural de São Gonçalo do Amarante, é considerada a maior intérprete do choro cantado do país. Ambos tiveram ao longo de suas vidas um importante reconhecimento artístico, não só em Natal, mas também no âmbito nacional e internacional.

Nas décadas de 1970 e 1980, o Café Nice, localizado no bairro do Alecrim, foi ponto de encontro de vários chorões2. João Juvanklin, um dos maiores compositores de choro de Natal e Alexandre Moreira (sobrinho de Juvanklin), são alguns que, entre outros, tocaram no local durante este período. No entanto, o desenvolvimento do comércio (formal e informal) no bairro do Alecrim, no final das décadas de 1980 e 1990, proporcionou uma aglomeração de estabelecimentos comerciais de vários tipos, sobretudo os de cunho popular; o que acreditamos ter sido um dos motivos para que o Café Nice fosse fechado.

Seria impossível explicar a dinâmica do choro em Natal se o tratássemos como algo supra-orgânico, ou seja, que se impõem às instâncias política e econômica. Tratando-as separadamente ou dicotomicamente, não consideraríamos o fato de que o espaço geográfico é uma instância que inclui todas elas.

Mais recentemente, na década de 1990, alguns bares dos bairros de Tirol, Petrópolis e Cidade Alta, tornaram-se os principais espaços onde aconteciam as manifestações do choro na cidade. Alguns dos bares como o Vila Franca (muito freqüentado por Diogo Guanabara no início de sua carreira), localizado ao lado da sede do América Futebol Clube em Tirol, foi vendido. Fica evidente que a própria dinâmica da cidade em expansão, tem contribuído ao longo dos anos para a instabilidade do choro em Natal; estando ora em evidência, ora em inexpressividade.

Atualmente, o Espaço Cultural Buraco da Catita, localizado na Ribeira, constitui-se no principal local de realização do choro (que ali acontece em todas as sextas-feiras). Muito embora existam outros locais, como o Real Botequim no Shopping Cidade Jardim em Capim Macio, onde recebe todos os sábados Alexandre Moreira e seu grupo, o Bar Lamparina também em Capim Macio e o Solar Bela Vista na Ribeira. Na seqüência, demonstraremos que o bairro da Ribeira se apresenta como um local favorável às territorialidades do choro.

Alguns eventos de Choro

Constatamos que alguns eventos foram de suma importância para que o choro se fortalecesse na cidade. Entre eles, a compra do antigo Hotel Bela Vista3 pelo Serviço Social da Indústria (SESI) em 1958. Após ser tombado como patrimônio histórico e arquitetônico em 1990, tornou-se um Centro de Cultura e de Lazer - o Solar Bela Vista. Atualmente, é um centro difusor de choro na cidade, funcionando como escola de música aos industriários. O choro é um dos estilos musicais mais ensinados,

2 Termo utilizado para denominar quem toca choro. 3 Localizado no Bairro da Ribeira.

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até porque o importante bandolinista de Natal, Alexandre Moreira4, é um dos professores.

A criação da Fundação José Augusto, no bairro de Petrópolis em 1963, foi outro acontecimento que contribuiu não só para as manifestações do choro, mas para a cultura norte-rio-grandense de modo geral. Esta fundação visa preservar e incentivar a cultura do estado como um todo. A criação do Instituto de Música Valdemar de Almeida, em 1986, associado à Fundação José Augusto, igualmente contribuiu para a formação de músicos que compõem a cena do choro na cidade. Entre eles, Diogo Guanabara foi o que ganhou maior destaque; tendo Alexandre Moreira como seu professor no Instituto.

Outro fato (este talvez o que mais repercutiu nas manifestações do choro), foi a “Operação Urbana Ribeira”, projeto de recuperação e revitalização do Bairro da Ribeira. Finalizado em 2007, promoveu uma série de melhorias do ponto de vista urbanístico. Esse projeto imprimiu uma série de modificações no bairro, que não só o revitalizaram do ponto de vista paisagístico (forma), mas também no seu conteúdo (função), na medida em que fortaleceu o aspecto histórico e cultural do bairro, até então muito esquecido. A criação do Museu de Cultura Popular Djalma Maranhão, onde estava situada a antiga rodoviária de Natal, é um bom exemplo disso.

Uma situação geográfica favorável

Esse processo de revitalização e restauração do bairro contribuiu para dinamizá-lo, sobretudo do ponto de vista econômico, visto que com o incremento da área urbana, a Ribeira passou a oferecer condições mais favoráveis para a criação de estabelecimentos relacionados à revitalizada “aura boêmia” do bairro. Com esse movimento, começaram a surgir novos bares: o Buraco da Catita5 (criado em 2008), que privilegia a boa música, principalmente o choro; o Central Ribeira (criado em 2011) localizado na Rua Chile6, que enfatiza a gastronomia, mas que também tem uma programação musical; e o Armazém Hall (criado no final de 2007), também localizado na Rua Chile (foto 1).

4 Bandolinista considerado um dos maiores expoentes do estilo na cidade, considerado o primeiro professor de bandolim de Natal. Formou o “Regional Sonoroso”, um dos maiores grupos de choro na década de 1990. É considerado por Diogo Guanabara seu mestre. 5 Bar localizado na Ribeira e que se constitui num espaço extremamente importante para o choro na cidade de Natal. O termo Catita faz referência a uma das músicas do disco de K-ximbinho, Saudades de Um Clarinete. 6 Antiga e importante rua do bairro da Ribeira, além de fazer parte do centro histórico da cidade, possui um movimento cultural muito forte.

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Foto 1: Armazém Hall na Rua Chile Fonte: Pablo Raniere M. da Costa, junho de 2011.

A conformação deste conjunto de eventos, que são “[…] um veículo de uma ou algumas das possibilidades existentes no mundo, na formação socioespacial […], que se depositam, isto é, se geografizam no lugar.” (SANTOS, 1996, p.115), caracteriza a expressão de uma situação geográfica favorável à territorialização do choro no Bairro da Ribeira, situação esta que:

[…] decorreria de um conjunto de forças, isto é, de um conjunto de eventos geograficizados, porque tornados materialidade e norma. Muda, paralelamente, o valor dos lugares porque muda a situação, criando uma nova geografia. Assim, ao longo do tempo, os eventos constroem situações geográficas que podem ser demarcadas em períodos e analisadas na sua coerência. (SILVEIRA, 1999, p.22).

É a partir desta soma de eventos superpostos, intencionalmente ou não, que o choro consegue ganhar maior expressividade em Natal.

DA “LAMA” AO “BURACO”

Entre os anos de 2006 a 2008, ano em que foi inaugurado o Buraco da Catita, os criadores deste espaço, Camilo Lemos e Marcelo Tinoco (também músicos), se reuniam no Bar de Nazaré, nas mediações do Beco da Lama7. Essa turma de amigos

7 Do ponto de vista cultural, trata-se de um importante logradouro localizado no bairro Cidade Alta, que abriga uma série de botecos e sebos. Vale destacar a associação denominada de “Sociedade dos Amigos do Beco da Lama (SAMBA)”, que realiza uma série de eventos no beco, tais como o Festival Gastronômico Pratonomundo, o Festival MPBeco e o Carnabeco. No entanto, suas instalações são

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músicos se inicialmente se reuniram para aprender a tocar o choro, reuniões que ocorriam nas tardes das sextas-feiras; sendo o estudo do estilo o principal objetivo. Muitos aprenderam a tocar seus instrumentos aí, revelando-se como um espaço bastante democrático e convidativo:

Era guardador de carro, médica, uma grande mistura. Talvez fosse ali, o local mais democrático. A gente percebeu que Natal estava carente de alguma coisa desse tipo (Camilo Lemos, 2008, trecho de entrevista retirado do site overmundo8).

O Bar de Nazaré é um bar pequeno e está próximo ao Beco da Lama. Além de não possuir capacidade física (como podemos observar na foto 2) para comportar o movimento de público que só crescia, também não teve o apoio, sobretudo do poder público, para melhorar as condições do bar ou do próprio beco (diferentemente do Buraco da Catita). Essa precariedade fez com que o grupo deixasse o local. Após um curto período ainda tocando nas imediações do Beco da Lama, Camilo Lemos e Marcelo Tinoco resolveram criar o Buraco da Catita (foto 3). Inaugurado em 23 de abril de 2008, homenageou dois ícones do choro: Pixinguinha, carioca e João Juvanklin, potiguar.

Foto 2: Fachada do Bar de Nazaré Fonte: Pablo Raniere M. da Costa, maio de 2011.

Desde então, o Buraco da Catita se tornou um verdadeiro reduto para os

chorões e para o que apreciam o estilo na cidade. Além de ter suscitado uma dinâmica espacial que envolve o comércio informal, o Buraco da Catita se mostra capaz de aglutinar pessoas de classes sócio-econômicas distintas, privilegiando não só o lado comercial; que também existe:

precárias, decorrente da pouca mobilização (a não ser da própria associação), no sentido da preservação do lado cultural e histórico do beco. 8 Site voltado para a difusão da cultura brasileira produzida no Brasil e no mundo. http://www.overmundo.com.br/ . Acesso realizado em maio de 2011.

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Isso não é um bar, e nunca vai ser um bar. É um espaço pra gente tocar e agregar arte, um espaço de realizações. E que se toque música com esse espírito, sem mecenato (Camilo Lemos, 2008, site overmundo, op. cit.).

Eu acho maravilhoso. Estão tornando o Choro mais público, mais próximo do povo (Carlos Zens, 2008, op. cit.).

Natal viveu um período de efervescência musical entre os anos de 1970 e 1980, e há um movimento de retomada do estilo. Um bom exemplo é o Buraco da Catita, que semanalmente atrai a atenção de um grande público (Bruno Barros, entrevista ao jornal Tribuna do Norte, 23/02/2011).

Já tem uns dois, três anos com todo esse movimento da Catita, e a coisa tem crescido bastante. Sobretudo tem atraído muitos jovens a conhecer esse gênero que é o choro. A “Catita” é uma casa onde todos os músicos, independente do estilo, se sentem à vontade para tocar, além de serem respeitados (Diogo Guanabara, entrevista realizada em 24/04/2011).

Após a análise do depoimento dos entrevistados e as idas ao campo, alguns questionamentos surgiram, com relação ao Espaço Cultural Buraco da Catita: O que o faz concentrar as manifestações de choro na cidade e quais são os elementos materiais e imateriais que contribuem para a polarização do movimento nesse lugar?

Foto 3: Fachada do Espaço Cultural Buraco da Catita, antes da reforma em 2010. Fonte: www.revistacatorze.com.br.

Estabelecemos alguns fatores presentes nesse espaço que, além de contribuírem com o maior vínculo entre os freqüentadores, também revela uma “geograficidade”; na medida em que esta:

Refere-se às várias maneiras pelas quais sentimos e conhecemos ambientes em todas as suas formas, e refere-se ao relacionamento com os espaços e as paisagens, construídas e naturais, que são as bases e recursos das habilidades do homem e para as quais há uma fixação existencial (DARDEL apud NOGUEIRA, 2008, p. 213).

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Nesse sentido, alguns elementos fazem com que o Buraco da Catita se torne extremamente convidativo aos músicos e aglutine pessoas interessadas na socialização:

• a localização na esquina da Travessa José Alexandre Garcia com a Rua Câmara Cascudo (fotos 4, 5 e 6), contribui para tornar o bar convidativo pois permite uma maior socialização entre as pessoas, que interagem com o espaço mesmo estando fora dele (sobretudo após a reforma9).

• a dinâmica espacial desencadeada pelo bar também envolve o comércio informal (foto 6). Este se constitui em um “concorrente” ao Buraco da Catita – que não se opõe, atendendo ao público menos abastado que fica, de modo geral, na parte externa do estabelecimento. A prática deste comércio informal possibilita uma maior diversidade no quesito “poder de consumo”, já que os preços do bar são geralmente altos. O público que fica dentro do bar é composto, via de regra, por indivíduos com melhores condições financeiras.

• a própria localização do “Buraco da Catita” na Ribeira, bairro histórico da cidade e que possui uma forte relação com a história da cidade, reforça a sua presença na paisagem e no imaginário coletivo natalense.

• o conjunto paisagístico, tanto do bairro quanto do próprio bar, remete a um passado boêmio da primeira metade do século XX. Tal conjunto paisagístico engloba um conjunto de prédios históricos que se assemelham a alguns prédios cariocas do final do século XIX (período do surgimento do choro); atestando a influência direta da arquitetura da Belle Époque parisiense.

Foto 4: Frente do Buraco da Catita após a reforma Fonte: Pablo Raniere M. da Costa, junho de 2011.

Apesar da Ribeira concentrar as manifestações de choro em Natal, esse

movimento é recente e traduz certa inconstância; como manifesta nosso entrevistado:

9 As condições para a reforma foram possibilitadas pelo incentivo dado pela prefeitura no ano de 2010, ao empregar um valor na casa dos R$ 33.000 para a revitalização da Travessa José Alexandre Garcia, onde fica o Buraco da Catita. O Bar teve seu símbolo “desenhado” no calçamento da Travessa, fechada para a passagem de veículos. Além disso, houve a troca da iluminação externa, de acordo com a ambientação do espaço, além de uma série de mudanças internas; como a pintura e a troca do piso. Cabe aqui novamente afirmar a importância de se pensar geograficamente um fenômeno cultural relacionando-o com a dimensão política e econômica. Estas três dimensões explicitam a dinâmica espacial das manifestações culturais.

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O movimento do choro é instável em Natal […] Hoje o centro é o Buraco da Catita, mas depois pode não mais ser (Alexandre Moreira, entrevista realizada em 10/03/2011).

Apesar do choro em Natal se caracterizar por uma inconstância, é interessante notar que essa instabilidade está relacionada com o próprio movimento da cidade, cujos desdobramentos decorrentes do seu crescimento redefinem constantemente seu conteúdo. Cabe-nos entender esse movimento inerente a cidade de Natal, inserindo-o no âmbito de seu processo de crescimento urbano horizontal e vertical.

Os poucos incentivos para a cultura no estado contribuem para essa instabilidade que, pode ser minimizada com ações como as efetivadas na Ribeira. Torna-se importante que os poderes públicos e privados se atentem para as mudanças necessárias em prol de ações de política cultural. Como aqui demonstramos, há uma série de músicos dispostos a trabalhar por essa causa. Movimentos como o que ocorre no Buraco da Catita tendem a contribuir com esse processo de valorização das manifestações culturais em Natal.

O bairro da Cidade Alta também deveria ser contemplado com projetos, como os do bairro da Ribeira. Igualmente, trata-se de um lugar rico do ponto de vista histórico-cultural; abrigando sebos, botecos e logradouros como o Beco da Lama e sua intensa movimentação cultural. Acreditamos que o Beco da Lama poderia ser mais explorado a partir da adesão do poder público aos anseios dos que lá tiram seu sustento, como dona Nazaré - impossibilitada (legalmente) de pôr suas mesas e cadeiras na parte externa do bar, e de convidar grupos de samba e de choro a fim de ampliar seus lucros.

Foto 5: Movimento de pessoas na parte externa do Buraco da Catita (Travessa José Alexandre Garcia)

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Foto 6: Comércio informal na Rua Câmara Cascudo Fonte: Pablo Raniere M. da Costa, janeiro de 2011.

REDES DE SOCIABILIDADE: A CONFRARIA DO CHORO

“Há uma conexão entre os chorões em Natal”. (Alexandre Moreira, em entrevista realizada em 10/03/2011).

Assim como aponta o trecho acima, a dinâmica do choro em Natal evidencia

um forte sentido de coletividade e de sociabilidade. A Confraria do Choro10 é um exemplo claro disso, na medida em que estabelece relações que “transcendem organizações empiricamente delimitadas, e que conectam, simbólica ou solidaristicamente, sujeitos individuais e atores coletivos” (WARREN, 2005: p.35 apud DOZENA, 2009: p.22). Expressa, assim, uma ação comunicativa em que “intervêm processos de interlocução e de interação que criam, alimentam e restabelecem os laços sociais e a socialidade entre os indivíduos e grupos sociais que partilham o mesmo quadro de experiência” (RODRIGUES, 1994: p.75 apud SANTOS, 2009: p.316).

O movimento da Confraria do Choro (foto 7) aponta para um caminho alternativo, não só para se produzir música na atualidade, mas também para contrapor ao cotidiano feroz e vertical imposto pela “lógica dos cifrões”. Sendo o choro mal divulgado e muito pouco incentivado na cidade, acreditamos que essa organização dos músicos expressa a vontade dos mesmos em “consolidar” e difundir o gênero na cidade; como afirma o entrevistado:

A intenção é “bater uma pelada” musical, capaz de contribuir com a formação de público para este tipo de música. Não vamos cobrar ingresso nem os músicos ganharão cachê, tudo vai ser feito para valorizar a boa música. A única exigência que fazemos é o local oferecer uma boa infra-estrutura para receber os músicos (Bruno Barros, entrevista ao jornal Tribuna do Norte, 23/02/2011).

10 Uma coligação organizada por Bruno Barros (violonista), que visa difundir o estilo na capital potiguar. As apresentações ocorrem sempre em um local diferente, que não necessariamente precisa ser um bar.

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Nas idas ao campo, observamos que na Confraria do Choro o que conta é a descontração acima de tudo, o encontro e a confraternização entre as pessoas; inclusive entre os músicos:

Também acredito que a Confraria é uma boa oportunidade para os músicos trocarem experiências, técnicas e material didático (Bruno Barros, entrevista ao jornal Tribuna do Norte, 23/02/2011).

Nesse movimento, não só o espaço traduz esse uso “alternativo” do território, como também o tempo que, na forma de temporalidades, traduz certa subversão, por se tratar de “uma interpretação particular do tempo social por um grupo ou por um indivíduo” (SANTOS, 2009; p.267).

Essa temporalidade, mesmo que subjetiva, apresenta uma conotação homogeneizante nas relações sociais, sobretudo as que envolvem as dinâmicas econômicas e que obedecem a um tempo predominantemente rápido e linear. Entretanto, os processos globais não são capazes (pelo menos ainda) de se superpor à capacidade criativa e subversiva dos homens lentos; aptos a interagir com os espaços de forma “irracional”.

Foto 7: Bruno Barros na 3ª Confraria do Choro, realizada no Solar Bela Vista. Fonte: Pablo Raniere M. da Costa, abril de 2011.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos com este artigo, mesmo que de forma introdutória e deixando uma série de lacunas, abordar o choro e práticas sociais a ele atreladas, por um viés geográfico. Assim sendo, buscamos expressar no movimento do território proporcionado por seus usos, algumas territorialidades decorrentes da dinâmica do choro na cidade de Natal.

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Consideramos ser pertinente a discussão das manifestações culturais na geografia, pois além de concordarmos com Cosgrove (1998), para quem “A geografia está em toda parte”, acreditamos que assim como o choro “toda cultura se encarna, para além de um discurso, em uma forma de territorialidade” (BONNEMAISON, 2002, p.97).

Buscamos abordar materialidade/imaterialidade, objetividade/subjetividade, racionalidade/irracionalidade; de modo relacional e não dicotômico. Dessa forma, entendemos ser possível se não atingir, ao menos aproximar da realidade do fenômeno que, mesmo (como neste caso) sendo de ordem cultural, compõe a totalidade. A totalidade é também política e econômica, encontra-se em constante processo de totalização, ou seja, renovando-se constantemente. Tentamos aqui externar as territorialidades do choro, evidenciando, nesse processo, a relação que este estabeleceu e estabelece com os elementos políticos e os econômicos.

Além de contar com músicos criativos e dispostos não só a difundir o estilo, mas também a desenvolvê-lo11 (haja vista a hibridização de gêneros realizada por Diogo Guanabara, que inclui nas suas composições elementos do xote, baião, jazz), as manifestações do choro em Natal promovem uma dinâmica espaço-temporal que se contrapõe às premissas “globalizantes” dos homens rápidos, objetivos, funcionais, burocráticos. Possibilita, assim, na interação e na ação comunicativa entre as pessoas de classes sócio-econômicas e “tribos” distintas, a reverberação do som contagiante e alegre do choro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONNEMAISON, J. Viagem em torno do território. In: CORREA, R. L. & ROSENDHAL, Z. (Orgs.). Geografia cultural: um século (3). Rio de Janeiro, EdUERJ, 2002.

CAZES, H. Raízes musicais do Brasil: catálogo de textos. Rio de Janeiro: SESC, 2005.

CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z. Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1998.

________, R. L.; ROSENDAHL, Zeny. Introdução a geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

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DOZENA, A. As territorialidades do samba na cidade de São Paulo. 2009. 266 f. Tese (Doutorado em Geografia) Universidade de São Paulo, SP: 2009.

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Page 13: HISTÓRICO DO CHORO NA CIDADE de Pablo... · 2018-02-08 · 2 manifestações do choro. Aqui trataremos de expor alguns eventos histórico-geográficos que implicaram em mudanças

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