historical times, physical times, epidemiological times ... · tion matérielle,economie et...

30
7 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997 DEBATE DEBATE Tempos históricos, tempos físicos, tempos epidemiológicos: prováveis contribuições de Fernand Braudel e Ilya Prigogine ao pensamento epidemiológico Historical times, physical times, epidemiological times: probable contributions of Fernand Braudel and Ilya Prigogine to epidemiological thinking 1 Departamento de Farmácia Social, Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Olegário Maciel 2360, 7 o andar, Belo Horizonte, MG 30180-112, Brasil. Gil Sevalho 1 Resumo O texto é uma abordagem acerca do tempo enquanto categoria científica para a epide- miologia. A partir do aforismo tempo-lugar-pessoa, o tempo é apontado como elemento pouco pensado pela epidemiologia, embora esteja presente em vários dos seus conceitos. No entanto, o tema tem sido objeto de reflexão importante na movimentação recente de várias disciplinas, tais como a história, a geografia, a biologia e a física, e deve por isto representar para a epidemiolo- gia um ponto de vista interessante, tanto no que concerne ao diálogo interdisciplinar quanto ao estabelecimento de um olhar crítico voltado para a própria disciplina. Com o objetivo de argu- mentar a respeito destes aspectos,apresenta-se o tempo histórico de Fernand Braudel e o tempo físico de Ilya Prigogine, construções teóricas que serão comparadas com um provável tempo epi- demiológico. Ao final, usando a questão das infecções emergentes como exemplo, faz-se conside- rações sobre a aparente inadequação epistemológica do tempo epidemiológico para reconhecer e lidar com os aspectos sociais e históricos envolvidos na complexidade do adoecer humano cole- tivo. Palavras-chave Epidemiologia; Tempo; Interdisciplinaridade Abstract The text is an approach on time as a scientific category in epidemiology. Considering the aphorism time-place-person, time is pointed out as an element with little theoretical con- cern, despite its presence in main epidemiological concepts. While a topic connected to impor- tant changes in other disciplines, such as history, geography, biology and physics, time represents an interesting point of view to the interdisciplinary dialogue and its relevance for a critical knowledge in epidemiology. To argue about this idea, the historical and physical time construc- tions of Fernand Braudel and Ilya Prigogine are presented.These time theoretical constructions are compared with a probable epidemiological time.Finally, using the emerging infectious dis- eases as an example, some considerations are made about an apparent epistemological inade- quacy of the epidemiological time to recognize the social and historical aspects involved in the complexity of the disease expressions in human populations. Key words Epidemiology; Time; Interdisciplinarity

Upload: phamkhuong

Post on 16-Sep-2018

224 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

7

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

DEBATE DEBATE

Tempos históricos, tempos físicos, temposepidemiológicos: prováveis contribuições de Fernand Braudel e Ilya Prigogine aopensamento epidemiológico

Historical times, physical times, epidemiologicaltimes: probable contributions of Fernand Braudeland Ilya Prigogine to epidemiological thinking

1 Departamento de FarmáciaSocial,Faculdade de Farmácia,Universidade Federal de Minas Gerais.Av. Olegário Maciel 2360,7o andar, Belo Horizonte, MG30180-112, Brasil.

Gil Sevalho 1

Resumo O texto é uma abordagem acerca do tempo enquanto categoria científica para a epide-miologia. A partir do aforismo tempo-lugar-pessoa, o tempo é apontado como elemento poucopensado pela epidemiologia, embora esteja presente em vários dos seus conceitos. No entanto, otema tem sido objeto de reflexão importante na movimentação recente de várias disciplinas, taiscomo a história, a geografia, a biologia e a física, e deve por isto representar para a epidemiolo-gia um ponto de vista interessante, tanto no que concerne ao diálogo interdisciplinar quanto aoestabelecimento de um olhar crítico voltado para a própria disciplina. Com o objetivo de argu-mentar a respeito destes aspectos, apresenta-se o tempo histórico de Fernand Braudel e o tempofísico de Ilya Prigogine, construções teóricas que serão comparadas com um provável tempo epi-demiológico. Ao final, usando a questão das infecções emergentes como exemplo, faz-se conside-rações sobre a aparente inadequação epistemológica do tempo epidemiológico para reconhecer elidar com os aspectos sociais e históricos envolvidos na complexidade do adoecer humano cole-tivo.Palavras-chave Epidemiologia; Tempo; Interdisciplinaridade

Abstract The text is an approach on time as a scientific category in epidemiology. Consideringthe aphorism time-place-person, time is pointed out as an element with little theoretical con-cern, despite its presence in main epidemiological concepts. While a topic connected to impor-tant changes in other disciplines, such as history, geography, biology and physics, time representsan interesting point of view to the interdisciplinary dialogue and its relevance for a criticalknowledge in epidemiology. To argue about this idea, the historical and physical time construc-tions of Fernand Braudel and Ilya Prigogine are presented. These time theoretical constructionsare compared with a probable epidemiological time. Finally, using the emerging infectious dis-eases as an example, some considerations are made about an apparent epistemological inade-quacy of the epidemiological time to recognize the social and historical aspects involved in thecomplexity of the disease expressions in human populations.Key words Epidemiology; Time; Interdisciplinarity

Introdução

Há alguns anos interrogo-me sobre o aforismoepidemiológico tempo-lugar-pessoa, que podeser lido como tempo-espaço-população emuma perspectiva mais complexa. Minha curio-sidade repousa exatamente na ausência de dis-cussões específicas concernentes à categoriatempo em epidemiologia.

Na ambientação crítica dos epidemiologis-tas latino-americanos, o elemento populaçãodo aforismo tem sido objeto comum de deba-tes em virtude do próprio caráter coletivo e so-cial da disciplina, e o espaço foi recentementerevestido no discurso epidemiológico de novosentido (Silva, 1985; Sabroza et al., 1992) me-diante os aportes originados das transforma-ções ocorridas na geografia (Moraes, 1993). Noentanto, mesmo neste contexto, o elementotempo parece não ser objeto de curiosidade dadisciplina. Pelo menos no que diz respeito àformulação de discussões específicas e abor-dagens aprofundadas.

É interessante apontar esta aparente faltade preocupação com o tema, quando se perce-be como alguns conceitos clássicos da discipli-na são suportados fundamentalmente pelaperspectiva do tempo. Conceitos como sazona-lidade e tendência secular das doenças, porexemplo, são delineadas exatamente em fun-ção do tempo. Além disso, a classificação tradi-cional dos estudos epidemiológicos em trans-versais, caso-controle e coorte ancora-se notempo, do mesmo modo que a distinção básicaentre endemia e epidemia, como apontamSournia & Ruffie (1985:181), "faz inserir o parâ-metro tempo na história da saúde dos homens".

Certamente, todos estes conceitos envol-vem contextualizações de representações deespaço e de tempo, embora este último apare-ça como elemento silencioso, desde que não écontemplado com uma atenção capaz de pro-piciar suporte teórico específico aprofundado,possibilitando dessa maneira, inclusive, umaanálise crítica da própria epidemiologia.

Tudo se passa como se o tempo sempreexistisse e disso os epidemiologistas nunca te-nham duvidado, sem que, de fato, a epidemio-logia necessitasse discuti-lo, abordá-lo ou,num sentido mais extremo e exato, considerá-lo. A epidemiologia parece não refletir acercadas representações que faz do tempo.

Por outro lado, a ciência, como um todo, serevigora com as perspectivas e experiências in-terdisciplinares, sendo que, nestas mobiliza-ções, o tempo tem sido objeto bastante fre-qüente. Novos olhares, que admitem o espaçocomo produto social historicamente construí-

SEVALHO, GIL8

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

do (Santos, 1990), têm transformado a geogra-fia, ao passo que diferentes perspectivas dotempo – como as discussões sobre as relaçõesentre o "acontecimento", o "evento", e a "longaduração", entre mudança e permanência (No-ra, 1988; Vovelle, 1990; Braudel, 1992) – movi-mentam uma "história nova". Além disso, a di-nâmica temporal evolutiva da biologia surgecomo objeto de discussão (Gould & Eldredge,1977) e a irreversibilidade, a flecha do tempo,revela-se tema fundamental presente nos de-bates da física contemporânea (Prigogine &Stengers, 1984).

O tempo, portanto, pode representar para aepidemiologia um elemento importante notrânsito interdisciplinar, possibilitando melhorentendimento do adoecer humano coletivo.

Assim, o propósito deste texto é, a partir doponto de vista do tempo, olhar a história e a fí-sica e, depois, retornar à epidemiologia com ointuito de informar a disciplina quanto a estesoutros tempos, tecendo comparações e apon-tando possíveis contribuições em relação aopensamento epidemiológico.

O tempo histórico de Fernand Braudel

No âmbito da história, a pretensão aqui é apre-sentar as reflexões acerca do tempo postas emmarcha pela história nova francesa, alimenta-das por autores que se movimentado-se emtorno da revista Annales D'Histoire Économi-que et Sociale, fundada em 1929 por LucienFebvre e Marc Bloch. A chamada Escola dos An-nales – convém que seja dito – não representouum bloco monolítico de pensamento, mas, emum movimento que se internacionalizou, pro-moveu profundas transformações na ciênciada história. No entender de Burke (1991), ospontos gerais comuns desse deslocamento se-riam: a orientação para uma história-problemaem substituição à tradicional narrativa deacontecimentos, bem como a interdisciplinari-dade e a busca da história de todas as ativida-des humanas.

O tempo, no que concerne à dinâmica dasmudanças e permanências sociais, é o objetoda história por excelência, sendo que, na per-cepção de Reis (1994a), se a história nova fran-cesa pretende ser chamada de nouvelle, é por-que apresenta uma concepção diferente dotempo histórico ao enfatizar principalmente alonga duração, o tempo longo. Neste aspecto, opersonagem fundamental é o grande historia-dor de uma segunda fase dos Annales, nos anos1950 e 60, Fernand Braudel, com sua dialéticada duração.

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 9

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

As transformações do tempo histórico pro-movidas pela nouvelle histoire centram-se naforma de perceber a relação entre a mudança –o evento – e a permanência – o tempo longo.Contrapondo-se à história tradicional, por de-mais entregue ao evento, os historiadores danova história mergulharam na estrutura, nalonga duração, onde estão os seres humanoscomuns, anônimos, em seu cotidiano. Perce-beram aqueles que é na escuridão da profundi-dade, até então pouco visitada, que se encon-tra a lentidão da cultura, a resistência dos há-bitos e valores, os movimentos repetitivos, porvezes inconscientes, característicos da luta hu-mana contra os obstáculos sociais e naturais.Neste sentido, a perspectiva dos Annales signi-ficou também o surgimento de personagensantes desprezados, esquecidos e desconheci-dos, como as mulheres, os pobres, os margi-nais; novos temas de investigação emergiramda profundidade, tais como os sentidos, os so-nhos, os costumes, as mentalidades; inéditasformas de abordar os temas passaram a utilizarnovas fontes documentais, de modo que oselementos produzidos involuntariamente tor-naram-se fontes prioritárias, e a história pas-sou a não se esgotar mais nos documentos ofi-ciais, em uma história do Estado produzida in-tencionalmente, na qual os historiadores tradi-cionais só percebiam os eventos, os aconteci-mentos rápidos, e deles só retiravam vultos,heróis e datas. O evento, a mudança, para serpercebido, deve emergir da permanência, dotempo longo, das prisões da longa duração, pa-ra usar uma expressão de Braudel. Construiruma dialética da duração, em que a estrutura,a conjuntura e o evento, ou seja, os tempos lon-go, médio e curto sejam apreciados e distingui-dos, é o projeto de Fernand Braudel, em tornodo qual esta discussão está centrada.

O tempo histórico de Braudel é próximo doestruturalismo das ciências sociais, mas, dife-rentemente deste, não negligencia o evento,como explica José Carlos Reis em seu livroNouvelle histoire e tempo histórico – as contri-buições de Febvre, Bloch e Braudel (Reis, 1994a).A dialética da duração de Braudel consiste em,na perseguição ao tempo coletivo, ultrapassaro indivíduo e o evento sem negá-los, já que osintegra em uma realidade mais complexa. Asestruturas são elementos da longa duração,lentos, aparentemente imóveis, contínuos,permanentes; sustentam as oscilações cíclicasdo tempo médio e exercem sobre os eventosuma contenção. O tempo médio é constituídopelas conjunturas, ciclos e interciclos que po-dem potencializar-se ou anular-se reciproca-mente, dando uma impressão de imobilidade

que o olhar do tempo longo vai esclarecer, per-mitindo a visualização do curso irreversível dotempo histórico. É esta perspectiva que vaipossibilitar a explicação do evento, do tempocurto, que, junto com os tempos longo e mé-dio, compõe a dialética da duração.

A dialética da duração de Braudel é, portan-to, um tempo composto, fundamentalmentecoletivo, que não tem a duração do indivíduo,mas sim a de décadas, séculos. Em sua comple-xidade e interdisciplinaridade, admite a coexis-tência de velocidades e orientações diferentes,permitindo, assim, a visualização da multipli-cidade, dos tempos plurais que conformam osritmos dos grupos sociais ao movimentaremsuas vidas.

Para Braudel (1992:43, 49), a importânciada dialética da duração está na percepção dapluralidade do tempo social, na "oposição viva,íntima, repetida indefinidamente entre o ins-tante e o tempo lento a escoar-se". A base destetempo dialético é a estrutura, uma arquitetura,articulação, "uma realidade que o tempo utili-za mal e veicula mui longamente".

Reis (1994a), ao discutir a contribuição deBraudel para o tempo histórico, analisa princi-palmente duas de suas grandes obras: La Me-diterranée et le monde méditerranéen à l'épo-que de Phillipe II – primeira edição de 1949 esegunda de 1966 (Braudel, 1984) – e Civilisa-tion matérielle, economie et capitalisme, de1979 (Braudel, 1996).

Em O Mediterrâneo ..., Reis (1994a) esclare-ce, o primeiro volume é o da longa duração eestá posicionado sob o signo da geografia hu-mana. Examina as repetições, a história lenta,quase imóvel, que traduz as relações dos sereshumanos com o meio natural que os cerca. Oscostumes, os hábitos, a sobrevivência vincu-lam-se ao clima, à paisagem. "Se a história tra-dicional se interessava somente pelas crises des-tes movimentos lentos, Braudel quer se interes-sar pelas lentas preparações destas crises e pelasintermináveis conseqüências que as sucedem"(Reis, 1994a:77). O segundo volume de O Medi-terrâneo ... está marcado pelas ciências sociais,a sociologia, a economia, a demografia, a an-tropologia, e seu objeto é o homem social emsuas relações societárias nos sensos político eeconômico não no tempo longo por excelên-cia, mas nas conjunturas do tempo médio, nolimbo entre mudança e permanência. Já o ter-ceiro volume é o livro do tempo curto, doseventos que cercam a vida de um vulto: FelipeII. É o exemplar da história tradicional, que, noentanto, não pode ser isolado do contexto daobra, só sendo compreendido adequadamentequando inserido na dialética da duração.

SEVALHO, GIL10

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

Para Reis (1994a:79), um dos aspectos cen-trais da obra de Braudel é o conceito de ritmo eisto pode ser visto em O Mediterrâneo ... . Notempo longo existem os ritmos diferenciadosda vida na planície, no deserto, no mar, nasilhas, e, dentro de cada um destes, há outros rit-mos de vidas particulares. Braudel quer mos-trá-los em "suas singularidades e evitando o es-tereótipo. Há uma vida montanhesa, mas osmontanheses não são sempre os mesmos. Háuma vida na planície, mas há vidas diferentesna planície". Estes ritmos locais e regionaismarcados pela espacialização geográfica noprimeiro volume da obra, combinam-se aos rit-mos sociais dos grupos de indivíduos percebi-dos no segundo volume, e esta combinação vaipossibilitar a visualização dos eventos do tem-po curto do terceiro volume. Braudel pretendefazer estes ritmos convergirem na unidade his-tórica do Mediterrâneo do século XVI através daconstrução de um tempo econômico-social-de-mográfico-cultural em que as divergências nãodevem ser suprimidas, mas identificadas.

Esta perspectiva também é seguida em Ci-vilização material ..., onde Braudel relacionatrês níveis. A "civilização material", o nívelquase imóvel da economia informal, da produ-ção cotidiana e das trocas de auto-subsistên-cia, em que predominam os fatos pequenos erepetitivos, onde "semeia-se como sempre, tra-balha-se como sempre, navega-se como sempre"(Reis, 1994a:106). Acima deste plano, e a ele li-gado dialeticamente, emerge o tempo médiodo mundo do "mercado", no qual as realidadessão mais conscientes e as trocas, reguladas pe-la concorrência. O terceiro nível, o do "capita-lismo", é um nível transnacional, mundial, re-gularizado pelo monopólio, conformando ummundo de iniciados com saberes e poderesinacessíveis ao homem comum, onde as trocassão fundadas mais em uma relação de força doque sobre as necessidades. É assim que Brau-del constrói sua dialética da duração, relacio-nando estrutura, conjuntura e evento. Enquan-to em O Mediterrâneo ... o tempo curto foi qua-se eliminado, em Civilização material ..., oevento, o capitalismo, domina os níveis da lon-ga e média duração e se constitui no tempo domundo que invadirá todos os interiores.

Braudel (1987:19-20) visualiza estrutura,conjuntura e evento como camadas cuja espes-sura vai se modificando com o correr da histó-ria. No entanto, o tempo longo, "o reino do ha-bitual, do rotineiro (...) invade o conjunto da vi-da dos homens, difunde-se nela como a sombrada tarde enche uma paisagem".

Reis (1994a) percebe que na obra de Brau-del estão envolvidos três tipos de tempo: a re-

construção, ou seja, a organização do materialdo conhecimento, a concepção do autor e otempo vivido da realidade. Braudel inclui, por-tanto, em sua dialética da duração, o temporeal e o tempo reconstruído; o tempo recons-truído e a visão geral da história do historiador,"e tanto no tempo real quanto no reconstruído,as relações de exclusão e inclusão das dimensõeslonga, média e curta das durações" (Reis, 1994a:82). Desse modo é que percebe e identificadescontinuidades e assimetrias na continuida-de do tempo longo e obtém um resultado com-plexo, não-linear, não-determinista, onde ascoletividades movimentam a história.

O fundamental para Braudel (1992) é a apli-cação de um modelo que compreenda a multi-plicidade das durações. Qualquer objeto de in-vestigação deverá ser situado nesta dialética daduração, sendo envolvido pelo historiador emuma rede de tempos diferenciados, de modo anão ser reduzido nem à longa, nem à média,nem à curta duração (Reis, 1994a).

A pesquisa, diz Braudel (1992:68), "deve sersempre conduzida, da realidade social ao mo-delo, depois deste àquela, e assim por diante,por uma seqüência de retoques, de viagens pa-cientemente renovadas".

Quanto à utilização de suas reflexões sobreo tempo por outras disciplinas, Braudel (1992:44), num artigo clássico a respeito da "longaduração" publicado originalmente em 1958, éjustamente quem prescreve:

"talvez, de nossa parte, tenhamos algumacoisa a lhes dar. Das experiências e tentativas re-centes da história, desprende-se – consciente ounão, aceita ou não – uma noção cada vez maisprecisa da multiplicidade do tempo e do valorexcepcional do tempo longo. Esta última noção,mais que a própria história – a história das cemfaces – deveria interessar às ciências sociais,nossas vizinhas".

O tempo físico de Ilya Prigogine

Algumas descobertas recentes têm reveladoum tempo físico irreversível, o que contraria adinâmica clássica e sua reversibilidade do tem-po. Neste aspecto, uma das perspectivas maisinteressantes é a do físico-químico belga, deorigem russa, Ilya Prigogine, com a proposta deuma "termodinâmica generalizada" inspiradaem suas contribuições para a compreensão dasestruturas dissipativas que lhe valeram o Prê-mio Nobel de Química de 1977.

Segundo Prigogine (1988), a ciência herdoudo século XIX duas concepções fundamentais,porém aparentemente paradoxais: a visão me-

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 11

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

canicista, determinista e reversível, baseadaem negação do tempo, e a visão termodinâmi-ca, fundamentada no crescimento da entropia,que conduz à morte térmica irremediável. Noséculo XX surgiram a mecânica quântica e a re-latividade, mas nenhuma destas rompeu coma intemporalidade da física clássica.

A termodinâmica surgiu no século XIX, en-volvendo em seu contexto o aparecimento dasmáquinas térmicas que movimentaram a revo-lução industrial, suportadas na constatação deque "a combustão liberta calor, e o calor podeprovocar uma variação de volume, quer dizer,pode provocar um efeito mecânico" (Prigogine& Stengers, 1984:83).

Em 1847, Joule denominou de conversão astransformações de ordem qualitativa envolvi-das neste processo que resultava em um efeitomecânico e que representam "a conexão entrea química, a ciência do calor, a eletricidade, omagnetismo e a biologia" (Prigogine & Stengers,1984:87). Joule também definiu um equivalentegeral das transformações físico-químicas quepossibilita o meio de medir a grandeza conser-vada quantitativamente nestas transforma-ções, posteriormente chamada de energia. Éuma função de estado, uma grandeza física quese conserva nas transformações sofridas pelossistemas físicos, químicos e biológicos, a qual,no entender de Prigogine & Stengers (1984:88),a partir de então vai "ser colocada na base doque podemos chamar de ciência do complexo, evai constituir o fio condutor que permitirá ex-plorar de maneira coerente a multiplicidadedos processos naturais".

No entanto, como explicam Prigogine &Stengers (1984), o processo era pensado emtermos da relação em que o trabalho produzi-do era dependente do grau de perfeição dofuncionamento das máquinas, ou seja, a ques-tão se resumia ao rendimento ideal que pode-ria ser prejudicado por atritos e fricções do me-canismo, mas jamais por perda inerente aoprocesso de transformação da matéria. Mesmoporque a idéia de conservação que rege a ciên-cia dos séculos XVIII e XIX somente admite adiferença pela substituição de outra diferença,nunca pela eliminação. Em relação ao movi-mento, essa ciência admite que apenas é possí-vel transformá-lo e transferi-lo aos outros cor-pos, concepção que também orientou a termo-dinâmica de Sadi Carnot quando, em 1824,enunciou o princípio da conservação de ener-gia, o primeiro princípio da termodinâmica.

Quanto à termodinâmica clássica, Prigogi-ne & Stengers (1984) esclarecem que a conser-vação de energia é condição de todos os siste-mas, efetuando-se as trocas apenas de forma

fechada e reversível; neste sentido, é justamen-te a perspectiva das perdas que introduz na fí-sica a irreversibilidade e a flecha do tempo. Noentanto, se o conceito de irreversibilidade des-creve "um mundo que queima como uma for-nalha, sem recuperação concebível" (Prigogine& Stengers, 1984:91), a energia, embora conser-vando-se, precisa dissipar-se, ou seja, diante dacondição de conservação expressa no primeiroprincípio, a perda só poderia ser consideradacom a revelação de uma nova função de esta-do, a entropia.

Conceituada por Clausius em 1865, a entro-pia está ligada às trocas caloríficas entre os sis-temas físicos – que são construções espaciaisabstratas – e o meio exterior – chamado mun-do exterior – e faz parte do segundo princípioda termodinâmica. Mantendo-se a idéia daconservação da energia enunciada no primeiroprincípio, torna-se possível fazer variar um es-tado através da entropia. As trocas com o meioproduzem no interior do sistema transforma-ções irreversíveis responsáveis pela queda derendimento observada no ciclo de Carnot, aqual não é explicada sem a idéia de entropia.

Matematicamente, conforme explicam Pri-gogine & Stengers (1984), sendo S a entropia,temos dS=deS+diS, onde deS descreve o fluxode entropia entre o sistema e o meio, e diS, aentropia produzida no interior do sistema, ouseja, as transformações irreversíveis mencio-nadas. Por definição, diS terá sempre valor po-sitivo ou nulo e deS poderá ter valor negativo,nulo ou positivo, dependendo dos sistemas se-rem isolados, fechados ou abertos, sendo estesúltimos aqueles que trocam matéria e energiacom o mundo exterior. Desta forma, em umsistema isolado – que não troca matéria nemenergia com o exterior – o fluxo de entropia énulo, só subsistindo o termo de produção deentropia, diS, de modo que a entropia apenaspode aumentar ou permanecer constante.

Desta forma, "para todo o sistema isolado, ofuturo é a direção na qual a entropia aumenta"(Prigogine & Stengers, 1984:96), o que traduzi-ria uma evolução espontânea do sistema e aexistência física de uma flecha do tempo. Tem-se, assim, o segundo princípio da termodinâ-mica: todo o sistema evolui para a entropiamáxima, um estado de equilíbrio onde nenhu-ma reversibilidade será possível. A morte tér-mica. Situação de equilíbrio que funciona co-mo verdadeiro atrator dos estados de não-equilíbrio. Um estado atrator correspondente àmáxima desordem do sistema, ao equilíbrio e àmáxima entropia.

Embora tais postulações fossem possíveisao nível de uma física macroscópica, tornava-

SEVALHO, GIL12

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

se necessário trabalhá-las ao nível microscópi-co, o que foi feito por Boltzmann ao introduzira probabilidade na física, ainda no século XIX.O Princípio da Ordem de Boltzmann parte dahipotética existência de um sistema compostopor um número N de elementos colocados emuma caixa dividida em dois compartimentos.Para conhecer a probabilidade de ter N1 ele-mentos num compartimento e N2=N-N1 nooutro, recorre-se à teoria das probabilidades.Considerando-se P o número de repartiçõesque fará chegar a N1=N2=N/2, obtém-se umvalor de P tanto maior quanto menor a diferen-ça entre N1 e N2, e o maior valor de P quandoN1=N2=N/2. Além do que, quanto maior for N,maior será o número de repartições assimétri-cas, ou seja, será cada vez maior o "esqueci-mento" em relação ao estado inicial, à "dissi-metria inicial" (Prigogine & Stengers, 1984:100). Ao ser atingido o equilíbrio no caso dossistemas microscópicos, os afastamentos desseestado serão cada vez menos possíveis e a dis-tribuição dos elementos do sistema flutuaráem volta do estado atrator, que é o do equilí-brio.

A partir desta perspectiva, que continuaconsiderando um sistema isolado, o Princípioda Ordem de Boltzmann foi generalizado paraos sistemas fechados e abertos, revelando-secapaz de "compreender a singularidade dos es-tados atrativos que são estudados pela termodi-nâmica do equilíbrio" (Prigogine & Stengers,1984:100). Desta forma, Boltzmann foi o pri-meiro a mostrar que podia interpretar o cresci-mento irreversível da entropia como medidada desordem molecular.

Uma questão, no entanto, a termodinâmicado equilíbrio não resolvia: diante do conheci-mento até aqui exposto, como explicar os orga-nismos vivos que parecem não evoluir para umestado de equilíbrio, desordem e entropia má-xima? É neste sentido que Prigogine (1972) ob-serva que toda a discussão sobre a posição dabiologia com relação às ciências físicas conduzcedo ou tarde ao problema da situação dos sis-temas vivos em relação às grandes leis de orga-nização da física. Quanto a isto, segundo Pri-gogine, a maioria dos biólogos atualmente in-siste em que o teorema do crescimento da en-tropia seria aplicável, no caso da vida, ao con-junto sistema vivo-meio ambiente. Neste âm-bito, os sistemas vivos seriam considerados sis-temas abertos trocando energia com o meio,de tal forma que o crescimento da entropia va-leria não para os sistemas vivos tomados isola-damente, em cujo interior a entropia diminui-ria em favor de uma organização cada vezmaior, mas para a totalidade do conjunto. Por

conseguinte, o Princípio da Ordem de Boltz-mann também seria adequado à situação.

Mas Prigogine & Stengers (1984:102) argu-mentam que tal perspectiva não é correta, pois,quando consideramos uma célula ou uma ci-dade, percebemos que estes sistemas, além deserem abertos, vivem da sua abertura. "Alimen-tam-se do fluxo de matéria e energia que vem domundo exterior. Está excluído que uma cidade,ou uma célula viva, evolua para uma compen-sação mútua, um equilíbrio entre os fluxos queentram e saem". A cidade e a célula morrerão seisoladas do seu meio, pois são uma espécie de"encarnação" dos fluxos que transformam con-tinuamente.

Prigogine (1972) explica que as teorias datermodinâmica, da evolução biológica e socio-lógica foram formuladas à mesma época, em-bora contrariamente à idéia termodinâmica deevolução para a desordem máxima e o equilí-brio no estado de entropia máxima, as idéias deevolução em biologia e sociologia estão asso-ciadas a uma organização crescente, a uma or-dem, portanto, e à formação de estruturas maise mais complexas. Desta forma, Prigogine nãojulga adequada aos organismos vivos a termo-dinâmica do equilíbrio enquanto modelo deexplicação. Para ele, a perspectiva correta noque diz respeito à explicação da vida estariacompreendida dentro de uma "termodinâmicada vida" e consistiria na consideração de siste-mas abertos que contam com reservatórios ex-ternos de matéria e energia suficientementegrandes para suportarem um estado perma-nente de não-equilíbrio. Assim é que encontra-remos associação entre os sistemas vivos e asestruturas dissipativas da física.

Enquanto o Princípio da Ordem de Boltz-mann – que descreve o segundo princípio datermodinâmica – mostra-se adequado aos es-tados de equilíbrio, não o é para as estruturasdissipativas, que estão associadas a um princí-pio de ordem diferente, o da ordem por flutua-ção. As estruturas dissipativas são estados ins-táveis, porém contínuos, que oscilam em tornodo estado atrator de equilíbrio. Compreendidasno âmbito de uma termodinâmica do não-equilíbrio, tais estruturas representam, no en-tender de Prigogine, uma perspectiva adequa-da à explicação dos sistemas vivos e sua orien-tação para a ordem e o não-equilíbrio.

Para Goldbeter (1988), a alternância dosdias e das noites, as mudanças de clima e as es-tações dão ritmo ao escoamento irreversível dotempo. Os seres vivos conformam ritmos bioló-gicos em consonância com as variações perió-dicas do meio. A vida humana, por exemplo,não se poderia manter sem os ritmos que go-

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 13

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

vernam a respiração, as atividades dos neurô-nios e do coração. Os processos químicos e detransporte biológico envolvidos na vida, taiscomo as reações enzimáticas e o transporte deíons através de membranas, parecem obedecertambém a certa ordem por flutuação, a qualimpõe instabilidade, um estado de não-equilí-brio permanente, que sobrevive oscilando emtorno do estado atrator de equilíbrio. Além dis-so, relações biológicas ao nível macroscópicodevem também funcionar segundo o tipo deordem descrito, tal como os sistemas preda-dor-presa em que o crescimento ou a diminui-ção da população de presas precede sempre osmovimentos iguais e correspondentes na po-pulação de predadores.

No entender de Prigogine (1972; 1988), estaforma de ver as coisas – que compreende umaflecha do tempo, uma irreversibilidade – propi-ciaria o entendimento da ordem biológicaorientada para uma complexidade cada vezmaior e para a amplificação de inovações. Nes-te contexto não-linear de uma termodinâmicado não-equilíbrio seriam aceitáveis os fenôme-nos de auto-organização, a associação interce-lular e a formação de organismos superioresque se produzem longe do equilíbrio.

As descobertas experimentais da instabili-dade das partículas elementares, das estrutu-ras de não-equilíbrio e da evolução do univer-so, que marcaram a física a partir dos anos1950, apontaram "a necessidade de ultrapassara negação do tempo irreversível que constitui aherança legada pela física clássica à relativida-de e à mecânica quântica" (Prigogine & Sten-gers, 1990:16).

Prigogine (1988:5, 7) acredita que o tempoprecedeu a criação do universo, e que o big-bang, além de não ser uma singularidade, nãosignifica o começo do tempo, mas sim "insta-bilidade", "mudança de fase" de um processoque se desenvolve em escala maior. "O univer-so tal como nós o vemos é então o resultado deuma transformação irreversível, e provém deum 'outro' estado físico". Para ele, o nascimen-to do nosso tempo não é o nascimento do tem-po. Nesta concepção, a vida seria resultado deflutuações e o tempo sempre preexistirá a estasflutuações potenciais. A vida se formaria a ca-da momento em que as circunstâncias plane-tárias se apresentassem favoráveis, do mesmomodo que o universo se formará cada vez emque as circunstâncias astro-físicas se mostrempropícias. Mas o tempo não é ontológico, não éretorno nem eterno retorno, é irreversibilidadee evolução.

Para Prigogine & Stengers (1984:97), "astransformações reversíveis pertencem à ciência

clássica, no sentido de que elas definem a possi-bilidade de agir sobre o sistema, de controlá-lo(...) neste quadro a irreversibilidade é definidanegativamente, e só aparece como uma evolu-ção 'incontrolada' que se produz cada vez que osistema escapa do equilíbrio". Assim, a termo-dinâmica contemporânea, a do não-equilíbrio,veio contrapor-se ao determinismo da ciênciaclássica. Neste último contexto, a irreversibili-dade é que está implicada nos modernos re-presentativos do comportamento dinâmico, eos sistemas reversíveis só são compreendidoscomo casos limites particulares (Prigogine &Stengers, 1990).

Ver as coisas desta forma não é simples, se-gundo Prigogine (1988); exige mesmo profun-da mudança de consciência. Se antes a analo-gia da desordem era o não-equilíbrio – a turbu-lência – e a da ordem era o equilíbrio – o cristal–, a termodinâmica mostra hoje que a desor-dem acompanha o equilíbrio e a ordem o não-equilíbrio.

Prigogine (1988) conta que sempre lhe in-quietaram duas afirmações de inspiradoresseus. A do filósofo Henri Bergson de que "otempo é invenção ou não é absolutamente na-da", e a do bioquímico Jacques Monod de que"a velha aliança rompeu-se; o homem sabe fi-nalmente que está só na imensidão indiferentedo universo de que emergiu por acaso". Refle-tindo acerca destas frases, Prigogine tem-sededicado, por um lado, a mostrar que o tempoexiste, não é ilusão, e, por outro, a fazer umaciência que reúna o ser humano e a naturezaem nova aliança.

Talvez seja no tempo irreversível, comple-xo, não determinista, e – por que não supor? –em uma ordem por flutuação, que Prigogine(1988:14, 19) vê "convergência" entre a física dehoje e a história nova, ao "reler (...) alguns tex-tos de Marc Bloch", um dos fundadores dos An-nales. Prigogine está certo de que "o tempo éconstrução" e admite a necessidade de uma vi-são globalizante implicada na conservação doplaneta para a construção do futuro. É dessemodo que sua "termodinâmica generalizada"está fundamentada na complexidade que en-volve e liga tudo, os seres humanos, a natureza,a sociedade.

Epidemiologia e tempo

Segundo Reis (1994b:66), não há unanimida-de nas definições ou noções de tempo produ-zidas pela ciência. Para o autor, "os tempos pa-recem emergir uns dos outros, tanto na realida-de quanto no conhecimento".

SEVALHO, GIL14

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

Tanto na realidade quanto no conhecimen-to, o tempo é apreendido de tal maneira que,ao imaginá-lo, o fazemos segundo metáforasde natureza e substância, forma, direção eorientação, construindo a partir disso umaidéia do tempo.

No âmbito do conhecimento, Reis (1994b)percebe três tempos principais: "o tempo da fí-sica", "o tempo da filosofia", e, talvez, "o tempoda história", um "terceiro tempo". As perspecti-vas de objetividade e subjetividade marcarãoas diferenças entre o tempo da física e o da fi-losofia, os dois tempos fundamentais do co-nhecimento.

O tempo da física, explica Reis (1994b:65,66), é objetivo por excelência. Trata-se do tem-po exterior, dos movimentos numeráveis danatureza, que naturaliza o evento e o transfor-ma em movimento. Conseqüentemente, équantificável e "reversível". Considera-se aquique esta preferência pela reversibilidade dizrespeito ao contexto da física da relatividade deEinstein e não ao tempo da física da termodi-nâmica de Prigogine, apresentado neste texto,que tem como característica fundamental a ir-reversibilidade e também não é desconhecidopor Reis.

Já o tempo da filosofia, conforme expõeReis (1994b), é subjetivo, interior. Forjado apartir das mudanças vividas da consciência, dasua incomensurabilidade, é por isto qualitativoe preferencialmente irreversível.

Desta forma, as dimensões de anteriorida-de, posterioridade e simultaneidade são pró-prias do tempo da física, do seu projeto de cau-salidade matemática, bem como as de futuro,passado e presente caracterizam o tempo da fi-losofia, do tempo vivido. O tempo da história,um possível terceiro tempo, seria justamenteaquele que ligaria natureza e consciência, quefaria uma ponte entre a física e a filosofia aoconsiderar e reconhecer em sua composição aobjetividade e a subjetividade.

A epidemiologia – em sua intenção de con-tar "doentes em populações" (Almeida Filho,1989:16, 17; 1992:50) e medir a ocorrência dasdoenças – necessitava, para aparecer, das me-didas estatísticas e da taxonomia da clínica,pois a contagem precisa de uma classificaçãoanterior.

O despontar das classificações das doençaspode ser assinalado nos anos 1600, desde ostrabalhos de inspiração botânica de ThomasSydenham. A clínica médica, com sua taxono-mia baseada em sintomas, sinais e localizaçõesanatômicas, nasceu – como aponta Foucault(1977) – dentro dos hospitais franceses já trans-formados em recursos terapêuticos pelos revo-

lucionários da passagem do século XVIII para oXIX. A estatística, por sua vez, surgiu no declí-nio da Idade Média, durante a formação dosestados nacionais, da necessidade de contartrabalhadores e soldados para medir a riquezadestas nações, em uma época na qual tanto osucesso nas guerras quanto a produção depen-diam do número de pessoas envolvidas e nãodas máquinas de produção e de guerra.

Assim, embora vestígios da formação daepidemiologia possam ser percebidos desde amedicina grega hipocrática dos séculos IV e VA.C. – conforme é o caso dos conceitos de en-demia e epidemia, esboçados no texto Ares, Á-guas, Lugares como doenças que habitam ouvisitam um lugar – esse domínio do conheci-mento surgiu, enquanto ciência, no século XIX.Contando com bases históricas fundamentaistambém na medicina social dos anos 1800,apresenta as características de uma disciplinado coletivo (Ayres, 1993).

Para estudar a questão da saúde/doençaem populações humanas, como aponta Almei-da Filho (1989:19, 20), o "raciocínio epidemio-lógico" acompanha a ciência moderna e "tra-duz a lógica causal em termos probabilísticos(...) adotando e desenvolvendo o método obser-vacional aplicado à pesquisa em populações"(grifos no original). Desse modo, segundo o au-tor, o termo "observacional" caracteriza a estra-tégia comparativa da disciplina e o termo "pro-babilístico", sua disposição quantitativa.

Na busca desta relação causal, a epidemio-logia procura associações estatísticas entre ospossíveis fatores determinantes e a ocorrênciade doenças em populações humanas. Determi-nantes que podem estar entre as característi-cas individuais dos membros das populaçõesestudadas, como sexo e idade, em particulari-dades sócio-econômicas, como renda e profis-são, peculiaridades geográficas relacionadas àsformas de ocupação do espaço e outras ligadasà cultura, aos hábitos e comportamentos.

Em linguagem estatística, o objetivo da dis-ciplina é investigar comparativamente a distri-buição destes fatores na população, identifi-cando também os indivíduos doentes. As asso-ciações estatísticas encontradas entre os fato-res apresentados e a ocorrência de doenças ali-cerçarão uma provável determinação destaocorrência, orientando, a partir disso, a aplica-ção de medidas para controlá-la.

Assim fundamentada, a epidemiologia,adotando linguagem matemática, procuroualinhar-se no caminho das ciências duras, debases experimentais e estatísticas. Neste ali-nhamento, tornou-se por demais conhecida aperspectiva positivista da disciplina.

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 15

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

Em ciência, para Stengers (1990:84), "é sa-bido, e doravante mesmo os epistemólogos o sa-bem, que não há fato sem linguagem interpre-tativa (...)". Tal constatação, que anuncia a par-ticipação do observador na condução do expe-rimento, pressupõe a associação íntima entreconceitos e operadores com o fim de fazer dofato algo cientificamente aceitável. Segundo aautora, o essencial, portanto, será "fazer falar"objetos e sujeitos, de modo que seu "testemu-nho" possa ser legitimado pela comunidadecientífica, à qual é socialmente outorgado opoder político para tal reconhecimento.

Neste sentido, afirma Stengers (1990:85,93), "nas ciências experimentais o trabalho decriar uma testemunha (fidedigna – acréscimomeu), de fazer falar um fato, é sempre um tra-balho de purificação e controle". E, "quando ooperador remete sempre a uma abstração – con-trole e purificação – o conceito corresponde auma operação concreta de captura e redefiniçãodo mundo da qual depende a significação dooperador".

Diante destas considerações de Stengers(1990) torna-se possível admitir que, ao operarseus conceitos, a epidemiologia o faça na con-textualização do seu projeto científico positi-vista, ou seja, que sua movimentação científicarequeira para esta operacionalização um tem-po também positivista. Tal deve ser o modo pe-lo qual a epidemiologia faz falar seu objeto,"doentes em populações" (Almeida Filho, 1989:16, 17; 1992:50). É preciso que se perceba, en-tão, que uma das características fundamentaisdo positivismo é o isolamento do objeto, a suaexteriorização e purificação.

Como esclarece Reis (1994b:88, 89, 90), otempo positivista é modelado pela física e foi oque aproximou o tempo da história daquele dafísica mediante a adoção do positivismo pelasciências sociais no século XIX, possibilitando osurgimento de uma "física social". Trata-se, se-gundo o autor citado, de um tempo evolutivo eirreversível, cujo propósito é "situar eventossingulares e irrepetíveis no tempo-calendário(...) dar homogeneidade, linearidade e conti-nuidade a estes eventos irreversíveis e descontí-nuos, inserindo-os nos números do calendário eatribuindo-lhes uma sucessiva necessária, poisnumérica e baseada nos conceitos de causa econseqüência (...)" (grifos no original).

O positivismo, em seu projeto empiricista ehomogeneizador, "sublinha decididamente ocomo e evita responder ao que, ao porque e aopara que" (grifos no original) (Mora, 1991:314).

Quer controlar os eventos, por si sós únicose irrepetíveis, eliminando a perspectiva de mu-dança neles contida. Quer afastar o terror dos

eventos, o seu conflitante potencial de mudan-ça.

O tempo da epidemiologia se caracteriza,por conseguinte, como tempo quantitativo:objetivo e exterior. Não é o tempo vivido e, emvez de passado-presente-futuro, envolve di-mensões de anterioridade-simultaneidade-posterioridade.

Interessa, portanto, refletir acerca do pro-pósito da epidemiologia de, através do enten-dimento do adoecer coletivo humano, contro-lá-lo. Esta pretensão de controle é um dos ele-mentos fundamentais da disciplina, pois, co-mo esclarece Almeida Filho (1992:71), ao con-trário da clínica, cujo objetivo mais próximo éa intervenção sobre a doença do indivíduo, aepidemiologia tem como "compromisso funda-mental (...) a produção de conhecimento em si"referente a "padrões de distribuição da ocorrên-cia em massa de doenças em populações". Jus-tamente nesta perspectiva de antes conhecerpara, desse modo, controlar, é que se insere aintenção de prever, sendo o ato de prever, emsentido mais amplo, elemento fundamental doprojeto científico moderno como um todo.

Segundo Barbosa (1992:76, 77), quando oracionalismo científico foi erigido à posição de"único paradigma possível" da modernidade efoi suspensa a validade dos saberes estéticos,religiosos e "até mesmo políticos", o ato de pre-ver passou a constituir o projeto da ciênciamoderna de domínio sobre a natureza. Para oautor citado "toda previsão estrutura-se no in-terior da experiência do devir do mundo", emcuja essência está a ameaça constante do con-vívio com o inesperado e o inédito. Desta for-ma, "para salvar-se, torna-se imperioso afastaras ameaças do devir, e para tal é necessário con-trolá-lo, submetê-lo ao império da lei e entãodominá-lo".

Em relação ao tempo da epidemiologia pa-rece ocorrer que, em sua objetividade e exte-rioridade, captura elementos descolados darealidade, unicamente por sua simultaneidade,sem que esta captura implique necessariamen-te em qualquer relação social entre os elemen-tos ou fenômenos. O tempo do conhecimentoepidemiológico trabalha com os fatos de modoa artificializá-los, separá-los das pessoas, am-putá-los de sua historicidade e submetê-los es-tatisticamente. Dessa maneira, controla oseventos, eliminando a sucessão e a ameaça demudança.

Por conseguinte, sempre será difícil para aepidemiologia perceber as relações sociais pro-fundas, as inter-relações humanas emaranha-das no tecido social. No tempo do conheci-mento epidemiológico, os tempos históricos e

SEVALHO, GIL16

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

sociais não são compreendidos. Como assinalaGoldberg (1990:98), "ao se considerar os indiví-duos como unidades estatísticas independentes,ignora-se completamente a existência das rela-ções sociais nas quais as representações, os com-portamentos, os saberes e os modos de vida sãoproduzidos".

No entender de Goldberg (1990:98, 99), "aanálise estatística opera um corte no tempo eapresenta uma imagem, em um momento da-do, das situações de risco ou dos comportamen-tos sanitários de uma população, sem apreen-der sua historicidade". Conseqüentemente, osmovimentos diferentes e contraditórios dosgrupos sociais não são visualizados em suacomplexidade. Uma complexidade da qualparticipam também outras coisas e outros se-res, pois, afinal – e é curioso que nem sempreisto seja percebido – a realidade não se faz sóde seres humanos. Estes outros seres e coisasque nos cercam é que permitem o sentido eorientação à vida. Compõem nossas ações, re-velam nossos caminhos e dão concretude aonosso tempo.

Assim, este corte no tempo, de que falaGoldberg, parece não eliminar somente a pos-sibilidade de visualização das interações hu-manas, mas também das interações dos agru-pamentos humanos com estes outros seres ecoisas do meio. Capturando valores no mo-mento, na simultaneidade, descolando-os darealidade complexa, o tempo epidemiológicopode fazer perceber, de modo equivocado, re-lações diretas de variáveis que se religam inver-samente ou mesmo associar variáveis que defato não têm ligação entre si. Em outras pala-vras, esta captura na simultaneidade pode as-sociar doenças a fatores determinantes queverdadeiramente não o são, reconhecendo, al-gumas vezes, causalidades erradas.

Um indício de que o tempo do conheci-mento epidemiológico desconhece estas inte-rações sociais e naturais complexas e que po-de, portanto, incorrer nos erros mencionados,deve ser buscado em uma observação de Skra-banek no artigo denominado The poverty ofepidemiology (Skrabanek, 1992). O autor exa-minou os resumos dos trabalhos apresentadosem uma reunião científica de epidemiologistasrealizada nos Estados Unidos, em 1990, e ob-servou que, aparentemente, qualquer combi-nação entre exposição e doença se prestou paraque os participantes do encontro calculassemriscos relativos, odds ratios e riscos proporcio-nais, sem que levassem em conta razões de im-plausibilidade biológica ou elaborassem hipó-teses que suportassem as associações preten-didas.

Considerados estes fatos, é possível admitirque a socialização das coisas, que não pareceser primordial para o tempo epidemiológico,deve ser, então, procurada fora da disciplina,em outros tempos de diferentes áreas do co-nhecimento, com a finalidade de complemen-tar as análises epidemiológicas, dar-lhes maiorabrangência e consistência. De tal modo que, apartir do reconhecimento e aceitação destesoutros tempos de diversas disciplinas, a epide-miologia opere melhor o seu objeto, doentesem populações, e seja alçada ao nível de com-plexidade perseguido pela ciência atual.

No que diz respeito à dialética da duração –o tempo histórico de Fernand Braudel – algunsaspectos relativos à visualização da cultura po-dem servir para comparações interessantescom a epidemiologia. Foi a antropologia, comas reconstruções de cenários a partir de vestí-gios arqueológicos, sua percepção das peculia-ridades sociais dos grupos humanos e da lenti-dão da cultura, que inspirou a história nova emseu mergulho na longa duração do tempo embusca das explicações do evento. Deve ser con-siderado que justamente a cultura tem sido re-conhecida como conceito de difícil operaçãopara a epidemiologia, por envolver elementosde difícil quantificação (Helman, 1994). Certasquestões, tais como o descolamento culturalobservado quando do desenvolvimento deprogramas de controle de doenças em socieda-des tradicionais e que tem sido apontado co-mo das causas principais de alguns insucessosdestas ações (Uchôa & Vidal, 1994), possivel-mente resultam da inadequação do tempo epi-demiológico positivista em lidar com estas si-tuações do tempo longo. Isto parece indicartambém que temporalidades sociais distintaspercebidas pela dialética da duração da histó-ria, não o são pelo tempo epidemiológico.

A possibilidade de observar epidemias-eventos emergirem da profundidade da longaduração do tempo e serem explicadas pelacombinação estrutura-conjuntura-evento re-presenta, sem dúvida, perspectiva interessantepara o conhecimento do adoecer das coletivi-dades humanas. Da mesma forma, os perfis desaúde das populações imbricados no tecido so-cial poderão ser melhor compreendidos se exa-minados sob a dialética da duração, um tempocoletivo, irreversível, complexo, não-determi-nista, que abriga e reconhece temporalidadesmúltiplas. Tal enfoque também deve significarum contexto do tempo do conhecimento capazde permitir a formulação de previsões maisadequadas à realidade.

Já no que se refere ao tempo físico da ter-modinâmica generalizada de Ilya Prigogine e

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 17

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

suas contribuições potenciais à epidemiologia,é preciso considerar a aceitação das influên-cias das ciências humanas, declarada pelo físi-co-químico belga (Prigogine & Stengers, 1984;Prigogine, 1988; 1990). A tenacidade de Prigo-gine em defesa da irreversibilidade do tempofísico veio justamente da sua estranheza ante ofato da evolução biológica, da sociologia e dahistória apontarem para um tempo irreversí-vel, enquanto a física de Einstein se orientavapara a reversibilidade e para uma idéia de eter-nidade que situava a física em uma intempora-lidade. É neste sentido que Prigogine (1988) fa-la da "redescoberta da tempo" por parte da físi-ca, quando trata da existência da flecha dotempo, da certeza a respeito da irreversibilida-de a que o conduziram suas investigações nocampo da termodinâmica.

De certa maneira, Prigogine pretende hu-manizar a física. Retirá-la da posição avessa emrelação aos rumos percebidos da história eaproximá-la das ciências humanas. É neste con-texto que explica a vida como ordem que tendepara o não-equilíbrio, como instabilidade queprevalece à custa das trocas de nutrientes quemantém com o mundo exterior. Os sistemas vi-vos se auto-organizam, amplificam inovaçõese, por conseguinte, caminham em complexida-de crescente. É uma ordem por flutuação, queoscila, mas não é frágil, porque depende tam-bém de uma consciência humana de futuro.

Prigogine sabe e declara que o tempo éconstruído. Em sua termodinâmica generaliza-da constrói um tempo físico-químico e lhe atri-bui as características de não-linearidade e não-determinismo. É um tempo dos elementos, dascoisas, dos outros seres biológicos, mas tam-bém é tempo humano. O próprio envelheci-mento humano diz da irreversibilidade dotempo (Prigogine & Stengers, 1984). O nasci-mento do tempo, para Prigogine, transcende ouniverso, mas o tempo é irreversível, porque abiologia – ciência da vida – e a história – ciên-cia do tempo social humano – mostraram-lheesta irreversibilidade.

Para a ciência clássica, sustentam Prigogine& Stengers (1984:7, 22), "o microscópico é sim-ples" e a natureza é um autômato, regida porleis que descrevem o mundo segundo trajetó-rias deterministas e reversíveis, e diante daqual o ser humano é estranho, está só "nummundo mudo e estúpido". Mas, perguntam Pri-gogine & Stengers, como é possível distinguirum cientista moderno de uma bactéria quetambém interroga o mundo e não cessa de co-locar à prova a decifração dos sinais químicosque a orientam? Na perspectiva de Prigogine, anatureza não é um autômato, pois interroga o

cientista a todo momento e, muitas vezes, odesmente.

Assim, a introdução do conceito de irrever-sibilidade e da noção de instabilidade refletemum contexto no qual a ciência se abre ao mun-do em que se desenvolve. "O tempo hoje reen-contrado é também o tempo que não fala maisde solidão, mas sim da aliança do homem coma natureza que ele descreve" (Prigogine & Sten-gers, 1984:15).

No que concerne à epidemiologia, portan-to, compreender o tempo físico irreversível dePrigogine, onde a vida é ordem e não-equilí-brio, implica adentrar na complexidade que li-ga as sociedades humanas à natureza. Dito deoutra forma, significa investigar o fenômenodo adoecer das coletividades humanas, enten-dendo-o segundo pressupostos não-determi-nistas, pelos quais o evento enfocado possa seradmitido e percebido como participante deuma realidade em constante transformação,em uma relação dinâmica de interdependênciaentre o cultural, o histórico, o social e o bioló-gico.

Como explicam Schramm & Castiel (1992:380, 381), a idéia de complexidade se alastroudas ciências biológicas, humanas e sociais pa-ra as ciências duras como a física. Este olharda complexidade confere "à própria naturezauma dimensão essencialmente histórica, vincu-lada à flecha do tempo (...) a bifurcações, a rup-turas de simetria, ao acaso" (grifos no original).Trata-se de uma visão que admite os sistemasvivos vinculando-se na troca de matéria, ener-gia e informação com o ambiente, sendo taistrocas "máximas nos sistemas dinâmicos, comoas sociedades humanas, que são tipos de siste-mas dentre os mais complexos". As sociedadeshumanas lidam com o desenvolvimento deprojetos e satisfação de desejos, gerando inces-santemente novos vínculos com o ambiente,diminuindo, portanto, a capacidade de contro-le e previsão sobre o conjunto sistema-am-biente.

No estudo do adoecer coletivo humano, ter-mos como determinação, causalidade, exposi-ção, risco, suscetibilidade ou mesmo endemia eepidemia talvez percam seu significado origi-nal, sendo substituídos por outros, ou porven-tura desapareçam quando considerados forada linearidade e da simplicidade da ciênciaclássica, quando enquadrados em outras cons-truções do tempo, como as da dialética da du-ração de Braudel e da termodinâmica generali-zada de Prigogine, só visualizadas no âmbitoda interdisciplinaridade.

SEVALHO, GIL18

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

Finalizando: o caso das "infecções emergentes"

Ao final serão aventadas questões relacionadasàs chamadas infecções emergentes, problemaque tem preocupado extremamente não só osepidemiologistas. Trata-se de abordagem mui-to breve à vista da riqueza e da transcendênciado assunto, servindo apenas para compor a ar-gumentação tecida até aqui. Apenas serão pin-çados alguns pontos centrais para reforçar oobjetivo principal deste texto, qual seja, o dedemonstrar a importância do ponto de vista dotempo para o pensamento epidemiológico.

Para Morse (1995:12) as "infecções emergen-tes" podem ser definidas como aquelas que sórecentemente surgiram ou que já existiam, mas"rapidamente aumentam sua incidência ou ex-tensão geográfica". O autor sugere que, de mo-do "operacional", estas infecções podem servistas como um "processo de duas fases: 1) in-trodução de um agente infeccioso em uma novapopulação de hospedeiros (se o patógeno é ori-ginado do meio, possivelmente em outras espé-cies, ou como uma variante de uma infecçãohumana já existente), seguido de 2) estabeleci-mento e disseminação adicional na nova popu-lação de hospedeiros".

Já a ocorrência das infecções emergentestem sido atribuída a fatores demográficos,comportamentais, tecnológico-industriais, re-lativos ao desenvolvimento agrícola e uso daterra, a deslocamentos populacionais, comoviagens de lazer e comércio, transportes de car-gas e alimentos, capacidade de adaptação emutação bacteriana, além de falência das me-didas de saúde pública (Lederberg et al., 1992).

É notório que estes fatores responsáveis pe-las infecções emergentes, esta causalidadeapresentada, implica uma visão epidemiológi-ca que contempla desde elementos da ordembiológica até os históricos, culturais, políticos,econômicos e sociais. Uma visão que pode sermelhor identificada quando Wilson (1994:4)afirma que o entendimento da emergência dedoenças requer a visualização do organismo edo meio, do ecossistema e da sociedade, para oque "uma perspectiva global é essencial".

Deve ser visto, no entanto, que este posicio-namento, ao menos no que diz respeito à epi-demiologia norte-americana, traduz nova dis-posição em relação ao conhecimento do adoe-cer coletivo humano, que parece vir acompa-nhado também de certa perplexidade diantedas infecções emergentes. Assim, Levins(1994a:406) sustenta que a consideração doproblema das infecções emergentes "deve prin-cipiar pela rejeição do modelo da transição epi-

demiológica (...) que suporta a crença no declí-nio das doenças infecciosas e em sua substitui-ção por outros problemas médicos". Segundo omesmo autor (Levins, 1994b:xvii), a frustraçãodiante da persistência das infecções "forçouuma nova consciência" de que as doenças nas-cem e caem, desenvolvem-se e espalham-seincessantemente, e que, por isto "temos quenos preparar para um amanhã mais complexo".Ressalte-se que a transição epidemiológica,embora discutida e criticada por alguns auto-res (Barreto et al., 1993; Possas & Marques,1994), é figura epidemiológica que até recente-mente gozava de ampla aceitação pela maioriados epidemiologistas.

Para Wilson (1994:1, 11), esta nova realida-de "desafia a nossa confiança no poder da ciên-cia e da tecnologia para controlar a natureza",o que conduz a perguntas como:

"O processo de emergência (de doenças in-fecciosas – acréscimo meu) está relacionado aode adaptação de uma espécie à presença de ou-tra, sendo, por exemplo, coabitação estável, ou,ao contrário, uma conseqüência da remoção deprévios competidores ou predadores? A emer-gência de doenças é justamente o fim visível doespectro do processo contínuo de adaptação eevolução? Há limitações fundamentais nos con-ceitos de causalidade que dificultam os esforçospara detectar e acompanhar novas doenças?Como compreender a complexidade dos siste-mas que influenciam a presença, abundância edistribuição das espécies?".

Bastante estimulante é ver o surgimentodeste tipo de questionamento no âmbito daepidemiologia norte-americana, pois entre osepidemiologistas latino-americanos e brasilei-ros há já algum tempo são construídas aborda-gens sociais e críticas que discutem os rumosda disciplina. Mais interessante ainda é ver taisquestionamentos colocados a partir, justamen-te, das doenças infecciosas, berço por excelên-cia da disciplina.

Parece, então, que com o problema das in-fecções emergentes, emerge também a necessi-dade de rever o conhecimento epidemiológico,pois, obviamente, os elementos para respondera estas perguntas residem na complexidade eenvolvem desde a ordem epistemológica pro-priamente dita até o reconhecimento e utiliza-ção de conceitos e noções de diversas discipli-nas. Certamente em relação a este estado decoisas, Garrett (1995:22) sugere, para o enten-dimento e enfrentamento das infecções emer-gentes, "um novo paradigma para encarar adoença (...) que permita uma relação não-linearentre o Homo sapiens e o mundo microbianodentro e fora do seu corpo".

19

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

O surgimento da AIDS, da infecção pelo ví-rus Ebola e o retorno da cólera, entre inúmerosacontecimentos, requerem novas formas daciência interrogar a natureza e compreender omundo. A preservação da vida humana no pla-neta exige uma convivência respeitosa com anatureza e não a pretensão de conquista e do-mínio. Deveríamos, como pensa Thomas(1990), aprender com nossos ancestrais micro-bianos os hábitos através dos quais estabelece-ram normas e regulamentos de intervivência,conseguindo assim sua longevidade.

Diante do que foi apresentado, seria inte-ressante refletir sobre a utilidade do ponto devista do tempo para o pensamento epidemio-lógico, ou seja, para a compreensão do fenô-meno do adoecer humano coletivo. Com certe-za, a dialética da duração de Fernand Braudelviabilizaria, entre outras coisas, a melhor ava-liação do modelo de transição epidemiológica.Em outra perspectiva, a percepção da dinâmi-ca dos sistemas vivos – como a do sistema pre-dador-presa em sua relação com as doenças,por exemplo – caso fosse considerada sob a óti-ca do tempo da termodinâmica generalizadade Ilya Prigogine, possibilitaria à epidemiolo-

gia um trajeto investigativo, reflexivo e opera-cional mais adequado à realidade. Nestes ter-mos, estaríamos nos movimentando segundoo que Almeida Filho (1990:339, 340) chamou de"um novo paradigma epidemiológico", o dacomplexidade, que tenta lidar com "processosde determinação não-linear", "processos sensí-veis à condição inicial" e "sistemas dinâmicos"que se alteram a cada momento. No entanto, ébom esclarecer, um paradigma novo envolveimprescindíveis mudanças na concepção deciência do pesquisador, na forma como perce-be a relação ser humano-natureza.

O conhecimento humano, apesar das resis-tências e bloqueios, historicamente sempre vi-veu às custas de trocas, transportes, metáforasde conceitos, noções e idéias entre as diversasáreas do saber. Sempre precisou disto para ali-mentar-se e crescer. Neste contexto foi consi-derado aqui o ponto de vista do tempo para aepidemiologia, pois, como afirma Souza San-tos (1995:47), na perspectiva da interdiscipli-naridade e da complexidade, "os temas são ga-lerias por onde os conhecimentos progridem aoencontro uns dos outros”.

Referências

ALMEIDA FILHO., N., 1992. A Clínica e a Epidemiolo-gia. Salvador-Rio de Janeiro: Apce-Abrasco.

ALMEIDA FILHO, N., 1990. Paradigmas em epidemio-logia. In: Anais do Primeiro Congresso Brasileirode Epidemiologia. pp. 329-346. Rio de Janeiro:Abrasco.

ALMEIDA FILHO, N., 1989. Epidemiologia sem Nú-meros – Uma Introdução Crítica à Ciência Epi-demiológica. Rio de Janeiro: Campus-Abrasco.

AYRES, J. R. C. M., 1993. O objeto da epidemiologia enós. Physis – Revista de Saúde Coletiva, 3:55-76.

BARBOSA, W. V., 1992. Da razão complexa. In: Saúde:Coletiva? – Questionando a Onipotência do So-cial (S. Fleury, org.) pp. 75-93. Rio de Janeiro:Relume – Dumará.

BARRETO, M. L.; CARMO, E. H.; NORONHA, C. V.;NEVES, R. B. B. & ALVES, P. C., 1993. Mudançasnos padrões de morbi-mortalidade: uma revisãocrítica das abordagens epidemiológicas. Physis –Revista de Saúde Coletiva, 3:127-146.

BRAUDEL, F., 1996. Civilização Material, Economia eCapitalismo. Rio de Janeiro: Martins Fontes.

BRAUDEL, F., 1992. História e ciências sociais. A longaduração. In: Escritos sobre a História. (F. Braudel,org.) pp. 41-78. São Paulo: Perspectiva.

BRAUDEL, F., 1987. A Dinâmica do Capitalismo. Riode Janeiro: Rocco.

BRAUDEL, F., 1984. O Mediterrâneo e o Mundo Me-diterrâneo na Época de Felipe II. Lisboa: MartinsFontes.

BURKE, P., 1991. A Escola dos Annales 1929-1989 – aRevolução Francesa da Historiografia. São Paulo:Unesp.

FOUCAULT, M., 1977. O Nascimento da Clínica. Riode Janeiro: Forense – Universitária.

GARRETT, L., 1995. A Próxima Peste – Novas Doençasnum Mundo em Desequilíbrio. Rio de Janeiro:Nova Fronteira.

GOLDBERG, M., 1990. Este obscuro objeto da epi-demiologia. In: Epidemiologia – Teoria e Objeto.(D. C. Costa, org.) pp. 87-136. São Paulo-Rio deJaneiro: Hucitec-Abrasco.

GOLDBETER, A., 1988. Temps et rythmes biologi-ques. In: Redécouvrir le Temps (A. Nysenholc & J.P. Boom, orgs.) pp. 93-102. Bruxelas: Universitéde Bruxelles.

GOULD, S. J. & ELDREDGE, N., 1977. Punctuatedequilibria: the tempo and mode of evolution re-considered. Paleobiology, 3:115-151.

HELMAN, C, 1994. Cultura, Saúde e Doença. PortoAlegre: Artes Médicas.

LEDERBERG, J.; SHOPE, R. E. & OAKS, Jr., 1992.Emerging Infections – Microbial Threats to Healthin the United States. Washington: Institute ofMedicine-National Academy Press.

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO

SEVALHO, GIL20

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

A preocupação do artigo de Sevalho é – como oautor declara desde o início – o tempo. A con-frontação de três tempos (da História, da Físicae da Epidemiologia) através de autores para-digmáticos fornece a ocasião para que ele te-matize e questione o problema central da ra-cionalidade científica moderna, manifesta ain-da atualmente na Epidemiologia: como con-trolar o tempo, ou mais exatamente, como con-ceituar um tempo previsível?

À primeira vista esta parece uma questãoque não pode ser fundamentada do posto devista filosófico (epistemológico e ontológico),pois o fato de conceituar de certo modo a di-mensão da temporalidade – no caso humano,portanto, também dimensão da contingência –não significa que se possa de fato mensurá-laconforme a proposta científica da modernida-de: criar através da conceituação formal, umtempo controlável, previsível. O que significacriar um tempo potencialmente estático.

O tempo previsível, estático, supõe, por suavez, o universo, isto é, um mundo finito, orde-nado por leis decifráveis segundo um códigoespecífico (no caso, a linguagem matemática),

Debate sobre o artigo de Gil SevalhoDebate on the paper by Gil Sevalho

Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,Rio de Janeiro, Brasil.

Madel T. Luz

LEVINS, R., 1994a. Basic elements in a conceptualframework for new and resurgent disease. In: Dis-ease in Evolution – Global Changes and Emer-gence of Infectious Diseases (M. E. Wilson, R.Levins & A. Spielman, eds.), pp. 405-407. NewYork: The New York Academy of Sciences.

LEVINS, 1994b. The challenge of new diseases. In:Disease in Evolution – Global Changes and Emer-gence of Infectious Diseases (M. E. Wilson, R.Levins & A. Spielman, eds.), pp. 17-19. New York:The New Academy of Sciences.

MORA, J. F., 1991. Dicionário de Filosofia. Lisboa:Publicações Dom Quixote.

MORAES, A. C. R., 1993. Geografia – Pequena HistóriaCrítica. São Paulo: Hucitec.

MORSE, S. S., 1995. Factors in the emergence of in-fectious diseases. Emerging Infectious Diseases,1:11-22.

NORA, P., 1988. O retorno do fato. In: História: NovosProblemas (J. Le Goff & P. Nora, orgs) pp. 179-193.Rio de Janeiro: Francisco Alves.

POSSAS, C. A. & MARQUES, M. B., 1994. Health tran-sitions and complex systems: a challenge to pre-dictions. In: Disease in Evolution – Global Changesand Emergence of Infectious Diseases (M. E. Wil-son, R. Levins & A. Spielman, eds.) pp. 285-296.New York: The New York Academy of Sciences.

PRIGOGINE, I., 1990. O Nascimento do Tempo. Lis-boa: Edições 70.

PRIGOGINE, I., 1988. Penser le temps. In: Redécou-vrir le Temps (A. Nysenholc & J. P. Boom, orgs.)pp. 5-19. Bruxelas: Université de Bruxelles.

PRIGOGINE, I., 1972. La thermodinamique de la vie.La Recherche, 3:547-562.

PRIGOGINE, I. & STENGERS, I., 1990. Entre o Tempo ea Eternidade. Lisboa: Gradiva.

PRIGOGINE, I. & STENGERS, I., 1984. A Nova Aliança.Brasília: Universidade de Brasília.

REIS, J. C., 1994a. Nouvelle Histoire e Tempo Históri-co – As Contribuições de Febvre, Bloch e Braudel.São Paulo: Ática.

REIS, J. C., 1994b. Tempo, História e Evasão. Campi-nas: Papirus.

SABROZA, P. C.; TOLEDO, L. M. de & OSANAI, C. H.,1992. A organização do espaço e os processos en-dêmico-epidêmicos. In: Saúde, Ambiente e De-senvolvimento (M. C. Leal, P. C. Sabroza, R. H. Ro-drigues & P. M. Buss, orgs.) pp. 55-77. São Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco.

SANTOS, M., 1990. Por uma Geografia Nova. São Pau-lo: Hucitec.

SCHRAMM, R. F. & CASTIEL, L. D., 1992. Processosaúde/doença e complexidade em epidemiolo-gia. Cadernos de Saúde Pública, 8:379-390.

SILVA, L. J., 1985. Organização do espaço e doença.In: Textos de Apoio – Epidemiologia I. pp. 159-185.Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública.

SKRABANEK, P., 1992. The poverty of epidemiology.Perspectives in Biology and Medicine, 35:182-185.

SOURNIA, J.-C. & RUFFIE, J., 1985. As Epidemias e oHomem. Lisboa: Edições 70.

SOUZA SANTOS, B., 1995. Um Discurso Sobre as Ciên-cias. Porto: Edições Afrontamento.

STENGERS, I., 1990. Quem Tem Medo da Ciência? –Ciências e Poderes. São Paulo: Siciliano.

THOMAS, L., 1990. Prefácio. In: Micro-Cosmos – Qua-tro Biliões de Anos de Evolução Microbacteriana(L. Margulis & D. Sagan, eds.) pp. 13-16. Lisboa:Edições 70.

UCHÔA, E. & VIDAL, J. M., 1994. Antropologia médi-ca: elementos conceituais e metodológicos parauma abordagem de saúde e doença. Cadernos deSaúde Pública, 10:497-504.

VOVELLE, M., 1990. A história e a longa duração. In:A História Nova ( J. Le Goff, org.) pp. 63-96, SãoPaulo: Martins Fontes.

WILSON, M. E, 1994. Disease in evolution. In: Diseasein Evolution – Global Changes and Emergence ofInfectious Diseases (M. E. Wilson, R. Levins & A.Spielman, eds.) pp. 1-12. New York: The New YorkAcademy of Sciences.

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 21

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

portanto um mundo determinado. Sem estaconcepção cosmológica, que atravessa a razãoclássica e chega aos nossos dias, torna-se im-possível compreender porque o tempo foi con-cebido durante três séculos como unidade demensuração e previsão por diversas disciplinascientíficas, inclusive pela medicina e seus di-versos ramos, dos quais a Epidemiologia tor-nou-se progressivamente um dos mais impor-tantes (Luz, 1988).

Deste ponto de vista, o tempo das ciênciasnaturais, o tempo da prevenção, tornado abs-trato através da linguagem matemática, é partefundamental do paradigma que compõe a ra-cionalidade científica vigente ainda hoje, oqual somente será ultrapassado na medida emque o próprio paradigma que lhe serve de fun-damento seja superado (Luz, 1988).

Outro tempo concebido, através de Brau-del, é o tempo da história, em que duração eritmo conferem a esta dimensão da contingên-cia uma plasticidade bem destacada no artigode Sevalho. Tempos longos, médios, ou curtos,tempos sazonais, que parecem repetir-se, outempos eventuais, que se afiguram únicos e ir-reversíveis, conferem à representação da tem-poralidade histórica um dinamismo ausentedo tempo das ciências naturais, que o autor de-finiu como tempo da Física. O tempo da Histó-ria é mais duração do que sucessão de instan-tes, trajetória de momentos deslocados segun-do uma escala de previsão, por isso torna-sepossível propor uma dialética da duração aoconjunto das ciências humanas. Mas poderãoas ciências naturais – sobretudo a Epidemiolo-gia, que se debruça sobre o adoecimento cole-tivo no perspectiva de nele intervir, controlan-do a doença no mais curto espaço de tempopossível – absorver, como deseja Sevalho, umaconcepção do tempo em que a indeterminaçãodo acaso, da liberdade, seja possível? O tempoda intervenção e do controle será compatívelcom o tempo da dialética da duração, que su-põe uma razoável interiorização da subjetivi-dade? Do meu ponto de vista, esses tempos sãoirreconciliáveis sob uma perspectiva analítica.

Um terceiro tempo definido no artigo é otempo da Física contemporânea, através dacontribuição de Prigogine, muito bem analisa-da pelo autor. O tempo da Nova Aliança, o tem-po Flexa, irreversível, rompe com a concepçãomecânica ainda vigente no conjunto das ciên-cias naturais, pois supõe um mundo indeter-minado, em expansão rumo à complexidade,um tempo que poderíamos definir como mul-tidimensional por oposição à unidimensionali-dade do tempo newtoniano, do tempo previsí-vel. O tempo de Prigogine repõe a noção de

Cosmos na macrofísica devido à interação detodos os seres, concebidos como sistemas inte-rativos, inacabados, em constante evolução,portanto, em constante movimento.

Aqui também é muito grande o papel quepode ter a liberdade – portanto, a imprevisibili-dade – ausente do modelo clássico que carac-teriza até o momento a Epidemiologia. Nãoconsigo ver esta disciplina adotando tal repre-sentação do tempo sem abandonar seu velhoparadigma. Uma outra Epidemiologia deverianascer deste abandono e da adoção do novomodelo, fruto da opção pelos dois tempos pro-postos por Sevalho. Mas, neste caso, estaría-mos ainda diante da disciplina Epidemiologia?

Haveria ainda outro tempo a ser considera-do, que gostaria que o autor do presente artigotivesse analisado. É o tempo da Psicanálise, otempo dos sujeitos, que é pura duração, quetem seus próprios ritmos. Do meu ponto de vis-ta, não é sem importância para a Epidemiolo-gia examiná-lo, uma vez que sua intervençãose dá sempre sobre sujeitos individuais, embo-ra sua perspectiva seja a de coletividades. Masos sujeitos não são coleções de indivíduos. Sãopessoas. A dimensão fundamental que vivemcomo seres contingentes é a da duração, não ado tempo mecânico. Esta representação detempo também teria que ser interiorizada pelaEpidemiologia se a disciplina se propusesse aflexibilizar “seu tempo”.

Finalmente, há um problema básico quan-do se reflete sobre a questão do tempo. É quenão se pode repensá-lo sem levar em conta, si-multaneamente, a questão do movimento noseu sentido mais amplo, isto é, o de transfor-mação. O tempo irreversível de Prigogine, as-sim como os tempos da História e da Psicanáli-se, supõe uma realidade em movimento, isto é,instável, em constante transformação. Ora, otempo da Psicanálise presume uma realidadeestável, ordenável, em que o movimento, domesmo modo que o tempo, é previsível, con-trolável. Tempo e movimento são irmãos gê-meos na racionalidade clássica mecânica.Romper com a noção do tempo, ou mesmo“abri-la”, supõe descerrar a noção de movi-mento e adotar a concepção de um mundo su-jeito ao caos, imprevisível até certo ponto. Po-derá a Epidemiologia abrir mão de uma dassuas bases fundamentais, do ponto de vista so-cial e epistemológico, isto é, “ordenar” a socie-dade quanto à questão da doença coletiva? Se-gundo meu ponto de vista, não em uma opera-ção analítica. Nem mesmo sintética, como pro-põe o autor deste belo artigo. Mas nada impe-de que o realize em uma operação sincrética,como já o vem fazendo, através da incorpora-

SEVALHO, GIL22

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

Departamento de Medicina Social,Faculdade de Medicina,Universidade Estadualde Campinas, Brasil.

Everardo DuarteNunes

Adauto Novaes (1992), ao escrever a Introduçãoao conjunto de textos apresentados original-mente no ciclo de conferências sobre “Tempo eHistória – Caminhos da memória, trilhas do fu-turo”, faz uma série de perguntas que parecemfundamentais para iniciar os comentários sobreo trabalho de Gil Sevalho.Pergunta Novaes:

“O que é a experiência do tempo? Pode umacultura falar do tempo sem recorrer às diversasformas de elaborar suas tradições e de narrar ahistória? Como pensar a história a partir de umatradição que trabalha com a idéia de tempo ab-soluto, sem conexão com as diferentes dimensõessociais, políticas e intelectuais, e que procuraidentificar a sociedade a uma única experiênciatemporal? Como pensar, enfim, a natureza docontemporâneo: tempo fragmentado, tempo des-locado, tempo modelado, tempo repetitivo – veloz– volátil, tempo sem memória?”

Se os contextos da discussão do ciclo de con-ferências e o da proposta de Sevalho são diferen-tes – visto que no primeiro caso tratava-se de re-lacionar o tempo às questões de “o que é a mo-dernidade”, “o que é liberdade”, “o que é huma-no”, e no segundo, ao “tempo epidemiológico” –há, no entanto, pontos comuns. O principal é ode superar a visão que tem no tempo presentesua única referência. Como diz Novaes (1992),“...narrar a história de um povo a partir apenasdo tempo presente, tempo fragmentado, direcio-nado, ‘instante fugidio tido como único temporeal’ ” (Chauí, 1992, apud Novaes, 1992) é negara articulação de épocas e situações diferentes, osimultâneo, o tempo da história e o pensamentodo tempo.

Também Bosi (1992), em seu magistral Otempo e os Tempos, facilita-nos essa difícil incur-

são ao sintetizar um aspecto básico sobre o te-ma: “A cronologia, que reparte e mede a aventurada vida e da História em unidades seriadas, é in-satisfatória para penetrar e compreender as esfe-ras simultâneas da assistência social”.

Se não bastassem as inúmeras referências eanálises de Sevalho, as citações acima confir-mam a necessidade de que os campos consti-tuintes da Saúde Coletiva revisitem a dimensãotemporal, em especial aqueles que têm comoponto nuclear para seus estudos a perspectivado tempo. Está nesse caso a Epidemiologia. Masnão é de qualquer tempo que Sevalho trata emseu artigo. No estudo em questão, são o tempohistórico e o tempo físico os balizadores dassuas preocupações.

Acerca do tempo, Fernand Braudel concebeuma dialética da duração em que a estrutura, aconjuntura e o evento – demarcados pelo tempolongo, médio e curto, respectivamente – possamser capturados. Isto é apontado no texto de for-ma precisa e ilustrado com os próprios exem-plos de Braudel. É o tempo social construindo ocaminhar dos homens, demarcando gerações,criando ritmos que regulam suas vidas, seus tra-balhos e suas linguagens.

Mas, como aponta Goldbeter na citação deSevalho, os seres vivos e a vida humana não sepoderiam manter sem os ritmos das atividadesfisiológicas do corpo, como também, segundoPrigogine, o tempo existe, ou melhor, preexiste àcriação do universo. Mas quantos tempos! Tem-po social, tempo biológico, tempo físico, tempocósmico, tempo mental. Para a finitude do ho-mem, a infinitude do tempo. Tempo dentro doTempo. Tempos individuais e tempos coletivos,ambos históricos, mas com dimensões diferen-tes. Tempos objetivos e tempos subjetivos.

Foi dito acima que certas disciplinas deve-riam revisitar a categoria tempo, pois esta é nu-clear para o entendimento dos seus objetos. Po-rém, rigorosamente, não há disciplina que deixede trabalhar com o tempo – as naturais, as hu-manas, as matemáticas, as filosóficas. Permane-cendo no plano dos tempos sociais, parece-meque se poderá avançar em alguns pontos nãoabordados pelo autor e que servirão para o pro-jeto de uma epidemiologia capaz de ultrapassaro “tempo positivista”, ou, como escreve Sevalho,que vá além dos limites de uma perspectiva que“Capturando valores no momento, na simulta-neidade, deslocando-os da realidade complexa, otempo epidemiológico pode fazer perceber equi-vocadamente relações diretas de variáveis que serelacionam inversamente ou mesmo associar va-riáveis que de fato não têm relação entre si”.

Em O espectro do tempo social, Gurvitch(1964) apresenta um encaminhamento sobre o

ção de contribuições das ciências sociais, tor-nando possível a coexistência no seu campo,lado a lado, às vezes de modo conflituoso, osdois paradigmas de tempo.

LUZ, M. T., 1988. Natural, Racional, Social – RazãoMédica e Racionalidade Científica Moderna. Riode Janeiro: Ed. Campus.

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 23

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

Laboratório de Epidemiologia eAntropologia Médica,Centro de Pesquisa René Rachou,Fundação Oswaldo Cruz,Belo Horizonte, Brasil.

Maria ElizabethUchôa

Constatando a ausência de discussões especí-ficas em epidemiologia sobre a categoria tem-po, bem como sua participação central naconstrução de conceitos epidemiológicos clás-sicos, Sevalho dirige o olhar a outras discipli-nas – física, filosofia e história – e à epidemio-logia, que passa a ser, então, objeto de refle-xões.

O texto introduz um debate, interessante ecertamente renovador, a respeito do própriodiscurso epidemiológico. O autor detecta a op-ção por um tempo objetivo e positivista nocentro do projeto científico da epidemiologia.Evolutivo e irreversível, o tempo positivistapermite situar eventos, analisar padrões dedistribuição, identificar fatores de risco e mes-mo prever... Objetivo, o tempo positivista cap-tura a simultaneidade de situações, mas asdesconecta da sua historicidade. Descontex-tualizado, o tempo positivista descontextuali-za. Assim, a complexidade das relações entreindivíduos, representações e comportamentosnão pode ser apreendida em sua globalidade.O risco maior de tal descontextualização é, se-gundo o autor, a produção de falácias, ressal-tando que a identificação de estudos epide-miológicos bem conduzidos tem a preocupa-ção de avaliar a exposição em momentos ante-cedentes a seu efeito (temporalidade) ou mes-mo de verificar mudanças na exposição ao lon-go do tempo.

Sevalho sugere que a abordagem do adoe-cer das coletividades seria enriquecida pela in-tegração de “outros tempos”, como o tempo his-tórico de Fernand Braudel e o tempo físico ir-reversível de Prigogine. A dialética da duraçãode Braudel reconectaria o evento a sua histori-cidade, tornando essencial para sua compreen-são uma análise da articulação entre estrutura-conjuntura e evento. A termodinâmica genera-lizada de Prigogine e suas noções de irreversi-bilidade e instabilidade do tempo viriam re-si-tuar o evento como participante da realidade(multidimensional) em constante transforma-ção e resgatar a apreensão da globalidade.

A argumentação do autor, inteligente e bemconduzida, introduz uma questão bem maisgeral ao nos remeter à clássica fragmentaçãodo fenômeno saúde-doença, a uma ou outradas suas dimensões e à dificuldade que encon-tram disciplinas diversas em apreendê-lo emsua globalidade. Em estudos construídos a par-tir do paradigma biomédico – como é o caso daepidemiologia – a dificuldade em assimilar asdimensões social, cultural ou histórica podeefetivamente comprometer os resultados das

tempo social no qual formações sociais particu-lares estão associadas com um sentido específi-co de tempo. Recorde-se que esta idéia já haviasido desenvolvida por Durkhein no clássico For-mas elementares da vida religiosa, quando assi-nalou que o “fundamento da categoria tempo é oritmo da vida social”. Não se trata de detalhar to-da a proposta de Gurvitch, que engloba oito ti-pos de tempos sociais aos quais correspondemníveis, formas e formações sociais, mas salientarque com essa classificação, conforme analisaHarvey (1992), é possível pensar que “cada rela-ção social contém seu próprio tipo de tempo”. As-sim, ele pode ser: permanente, ilusório, errático,cíclico, retardado, alternado, à frente de si mes-mo (acelerado), explosivo.

Combinando alguns elementos da tipologiade Gurvitch ao esquema de Braudel, talvez sejapossível construir uma ordenação aos estudosepidemiológicos na dimensão sócio-históricaem três grandes áreas: Epidemiologia Estrutural(para a longa duração); Epidemiologia Conjun-tural (para a média duração); Epidemiologia dosEventos (para a curta duração). Sem dúvida, adimensão tempo – tal como a dimensão espaço– pode ser elemento chave para aproximar a epi-demiologia dessa abordagem, o que a colocariacomo campo sem limites, fato apontado porNaomar Almeida Filho, porém, que não se esgo-tem em meras descrições os eventos por ela es-tudados (em suas diversas dimensões tempo-rais), mas sejam interpretados. Para isso, é im-prescindível recorrer ao discurso histórico nãocomo imagem especular do conjunto de eventosque afirma simplesmente descrever, mas como“um sistema de signos” (White, 1994). Somenteeste possibilita compreender a trágica realidadedo adoecer humano tanto no plano do indivíduoquanto no do coletivo.

BOSI, A., 1992. O tempo e os tempos. In: Tempo e His-tória (A. Novaes, org.) pp. 19-32. São Paulo: Com-panhia das Letras.

GURVITCH, 1964. The Spectrum of Social Time. Dor-drecht.

HARVEY, D. 1992. Condição Pós-Moderna. São Paulo:Loyola.

NOVAES, A., 1992. Sobre tempo e história. In: Tempo eHistória (A. Novaes, org.) pp. 9-18. São Paulo: Com-panhia das Letras.

WHITE, H., 1994. Trópicos do Discurso: Ensaios sobre aCrítica da Cultura. São Paulo: Edusp.

SEVALHO, GIL24

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

limites estreitos do seu âmbito disciplinar es-pecífico mediante a incorporação de novos ter-ritórios de conhecimento e através de umaabordagem que poderíamos chamar generica-mente de “interdisciplinar”. Braudel, pela dife-rente periodização dos fatos históricos emtempo longo, tempo médio e tempo curto e in-corporando dados vindos da geologia e geogra-fia; Prigogine por meio da tentativa de estabe-lecer uma “nova aliança” entre disciplinas cien-tíficas e disciplinas humanísticas. Braudel ePrigodine, contudo, defendem de fato concep-ções de tempo opostas. Braudel – um destaca-do representante das Ciências Humanas preo-cupado em introduzir na sua disciplina (a His-tória) os elementos das assim chamadas Ciên-cias Exatas – permite, por um lado, pensar umtempo composto, formado por estrutura, con-juntura e evento (que são a outra formulaçãode tempo longo, médio e curto), ao passo quePrigogine – um destacado cientista das Ciên-cias Exatas ou naturais – ao insistir sobre a irre-versibilidade do tempo, sintetizada pela metá-fora da flecha do tempo, permite pensar, antesde qualquer consideração, em um padrão ob-jetivo do tempo: o tempo que passa, cronológi-co, que preexiste às concepções/construções eaté constitui, kantianamente, uma das condi-ções a priori do conhecimento, quer dizer, “arepresentação necessária que sustenta todas asintuições” (Kant, I. Crítica à Razão Pura. Est.Transc., par. 4), inclusive as intuições sobre opróprio tempo.

Neste panorama nasce, portanto, a indaga-ção de como conciliar, em uma eventual inte-gração da temporalidade na epidemiologia, aconcepção “complexa” e basicamente “históri-ca” do tempo com a concepção “objetiva” domesmo, considerando que até hoje a legitimi-dade reconhecida à epidemiologia decorreusobretudo dos seus aportes quantitativos. Ouseja, como integrar, em um mesmo campo pro-blemático, a concepção construtivista defendi-da, por exemplo, por Henri Bergson, segundo aqual o tempo é pura invenção do espírito, coma concepção objetivista de um Jaques Monod,para quem o tempo existe em si e é indiferenteàs nossas tentativas de interferência (comobem expressa sua afirmação de que o universoé indiferente ao humano). Existem, evidente-mente, várias maneiras de enfrentar esta ques-tão.

Uma maneira pragmática de responder tal-vez seja a de não escolher nenhum a priori,aceitando (segundo o conselho do epistemólo-go Feyerabend: anything goes) que existe umapluralidade legítima de concepções da tempo-ralidade, e, em particular, a oposição entre um

Por que não introduzir o tempo (ou melhor “ostempos”) em epidemiologia para entender me-lhor o processo do adoecimento de indivíduos,grupos e populações humanas?

É com este tipo de preocupação que Gil Se-valho começa seu perguntar acerca da possibi-lidade de se pensar uma epidemiologia menos“positivista” e mais preocupada com a históriavivida, menos quantitativa e mais qualitativa,em suma, mais complexa.

Para tanto, o autor parte da constatação deque a epidemiologia não medita suficiente-mente (nem apropriadamente) sobre as “repre-sentações que faz do tempo”, ficando implícitoque uma correta reflexão acerca da temporali-dade permitiria “melhor entendimento doadoecer humano”, não redutível nem à meracontagem de doentes em populações nem àmera medição da ocorrência de doenças (que éo que a epidemiologia em substância faz e é le-gitimada a fazer). Em seguida, o autor recorre adois operadores conceituais tirados da “caixade ferramentas” (como diria Wittgenstein), ti-dos como indispensáveis para reformular aproblemática “complexa” da epidemiologia: 1)a dialética da duração, do historiador FernandBraudel; 2) a concepção de tempo irreversível(sintetizada pela metáfora da flecha do tempo),teorizada pelo Prêmio Nobel de Química, IlyaPrigogine.

Trata-se de autores que aparentemente têmuma preocupação comum: a de ultrapassar os

Escola Nacional deSaúde Pública,Fundação OswaldoCruz, Rio de Janeiro,Brasil.

Fermin RolandSchramm

pesquisas ou dificultar sua transposição parapolíticas concretas de saúde.

Concordo em que o reconhecimento e aaceitação da existência de “outros tempos” oude outras dimensões inerentes ao adoecer hu-mano lança as bases de uma análise crítica,mas surge aqui a interrogação acerca da possi-bilidade de operacionalizar conceitos comocultura, relações sociais ou tempo históricodentro do projeto teórico e metodológico daepidemiologia.

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 25

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

tempo objetivo e um tempo subjetivo. Assim,dependendo do ponto de vista adotado, o tem-po pode ser concebido de várias maneiras,aparentemente todas pertinentes, para darconta de determinados acontecimentos que,de uma forma ou outra, dizem respeito à vidahumana no seu contexto (formado de outroshumanos, outros sistemas vivos e artefatosmateriais e virtuais etc.). Desta maneira, tería-mos um conjunto de tempos físicos (ou váriasconcepções físicas do tempo conforme a teoriafísica envolvida: newtoniana, einsteniana, pri-goginiana); um conjunto de tempos biológicos(que não respeita algumas leis da termodinâ-mica clássica porque relativo à autopoiese dossistemas vivos); um conjunto de tempos histó-rico-sociais (também com características per-tinentes que não aparecem nas outras concep-ções); tempos psicológicos, tempos narrativos,tempos filosóficos etc. Em suma, uma multipli-cidade de concepções de tempo servindo parafinalidades diferentes. E porque não introduzirentão o tempo em epidemiologia, com especi-ficidades próprias?

Porém, do ponto de vista epidemiológico(se é que se pode utilizar esta expressão no sin-gular), será que as concepções “objetivistas” e“subjetivistas” de tempo são igualmente utili-záveis? E ainda, qual seria uma concepção es-pecífica de tempo para a epidemiologia, se éque deve existir, para supostamente dar contade fenômenos específicos da disciplina?

Existe, evidentemente, uma maneira filosó-fica de enfrentar a questão do tempo, à qualem princípio é sempre possível recorrer. Damesma forma, neste caso, as coisas não sãomais simples, pois deve-se fazer as contas compelo menos três sentidos gerais de tempo, a sa-ber: a ordem de sucessão entre eventos (o tem-po como Kronos), o contexto em que se desen-volvem coisas e aquele dos fenômenos.

Pode-se recorrer, também, à própria teo-ria científica da segunda metade do séc. XIX,quando Darwin, por um lado, e Boltzman, poroutro, introduziram a noção de evolução empopulações (de indivíduos de uma espéciesubmetidos à pressão da seleção para Darwin,de partículas submetidas a colisões para Boltz-man). Ou seja, como bem percebeu Prigogine(1994. ) El fin de la ciencia? In: Nuevos Paradig-mas, Cultura y Subjetividad. [D. F. Schnitman,org.] pp. 37-60. Buenos Aires-Barcelona-Méxi-co: Paidos), mesmo em Boltzman a direcionali-dade do tempo (sua irreversibilidade) apareceao nível populacional e não individual, o que oaproxima de certa “objetividade”, tal como aentenderíamos hoje (depois da crise dos fun-damentos), e de determinada vivência que nos

assegura não ser o tempo uma ilusão, mas algobem real, independente do fato de existiremvários pontos de vista pertinentes sobre eleque co-habitam em nossos espaços conversa-cionais. Neste caso, dever-se-ia talvez indagaracerca das relações entre tempo e complexida-de, além de seus aportes para uma epidemio-logia “complexa” e “evolutiva”. Mas isso fica pa-ra outro número especial.

O artigo de Gil Sevalho, dentro do contextoatual da discussão científica/acadêmica, trazaos epidemiologistas o alerta de que a discipli-na a que se dedicam apropriou-se de uma ca-tegoria fundamental para o historicidade doadoecer humano, sem refletir a respeito dela equanto ao impacto que exerce sobre as formu-lações das suas propostas de construção do co-nhecimento. Sem sombra de dúvida, a epide-miologia emerge do tempo e nele se embrenhapara erigir conceitos que lhe são instrumentaise, entretanto, não explicita tal fato, talvez atéporque o saber do que é o tempo, é uma coisa,e conceituá-lo, outra, totalmente diferente.

Desse modo, interessa-me dirigir este co-mentário aos aportes que a disciplina da histó-ria pode oferecer à discussão acerca dos proce-dimentos epidemiológicos, mesmo porque asligações desta com o pensamento de Prigogineencontram-se bem desenvolvidos pelo autor.

A apropriação das concepções de tempoelaboradas pela metodologia da história – no-tadamente as proposições braudelianas, portrazerem embutida a idéia da multiplicidade e,conseqüentemente, as de ruptura e regularida-de – apontam para sua instrumentalizaçãoprofícua à epidemiologia, na medida em queabrangem as noções de retrospecção e pros-pecção que lhe são tão caras. A longa, a médiae a curta duração formam uma estrutura pen-sada em termos de totalidade que facilita des-de a produção de desenhos metodológicos atéa formulação histórica do adoecimento, por-que não faz tabula rasa do pretérito e permitea operacionalização mais inteligível da idéia deprocesso.

O edifício braudeliano convida a lidar comas generalizações e com o reconhecimento daregularidade, princípio básico da concepçãoda longa duração dialeticamente articulada à

Maria HelenaCabral de Almeida Cardoso

Departamento deGenética, Instituto Fernandes Figueira,Fundação OswaldoCruz, Rio de Janeiro,Brasil.

SEVALHO, GIL26

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

média e à curta duração. Talvez seja este ingre-diente o que mais atrações pode oferecer à re-flexão epidemiológica, uma vez que permitevalorizar tanto as diferenças como as seme-lhanças na busca de uma Epidemiologia totalanáloga a uma História total.

Ao trazer para a discussão os três tempospropostos por Reis (p.16), e assim mostrar acorrelação estreita que este estabelece com omodelo dos três tempos de Braudel, sobretudocomo trabalhados em “Civilização Material,Economia e Capitalismo”, o autor permite a lei-tura de uma concepção hegeliana, na qual oterceiro tempo, sugerido como aquele da His-tória, funcionaria como espécie de síntese, rea-lizando-se à maneira de campo de aplicação emanifestação dos dois primeiros. Esta abran-gência da epidemiologia, aliás bastante seme-lhante ao da História científica dos Annales,encontraria nas reflexões metodológicas destaum caminho para realizar-se. Contudo, a am-bigüidade e o inexato constituem o verdadeiroreino da história, e é exatamente este o pontosobre o qual uma epidemiologia não positivis-ta deveria debruçar-se com coragem reflexiva.

A separação entre natureza/cultura ou na-tureza/sociedade, razão/mito ou ciência/mito– como quer que chamemos – desde há cincodécadas vem sendo questionada diante da des-coberta que sua operacionalização não nosdespertou para aquilo que socialmente haviasido produzido e que não se encaixava, de ma-neira estrita, em nenhum desses pólos/pilaresconstruídos pelo entendimento positivista davida neste planeta. Trazer a função da histori-cidade para dentro da epidemiologia, mais doque pensar os três tempos braudelianos, é, nomeu entender, um meio de partir da complexi-dade, sendo também a grande contribuição deSevalho. Pensar a historicidade é substituir cri-térios epistemológicos circunscritos a objetose métodos por novos paradigmas, nos quais aspermutas, as transferências, as apropriações,as trocas, o inexato, as ambigüidades, as me-diações, as metáforas... se entrelaçam, com-pondo enredos e narrativas a respeito do adoe-cer, cujo substrato histórico processual seja oleitmotiven que poderá dar outro sentido aosestudos epidemiológicos.

Se a História, para Sevalho, “é a ciência dotempo social Humano” (p.23), a Epidemiologiaque ele busca seria “a compreensão do fenô-meno do adoecer humano coletivo” (p.27).Neste caso, sua afinidade com a História pro-posta pelos Annales apresenta-se completa ecoerente. Mas será que o desejo de totalidade,tanto o da Epidemiologia como o da História, épossível de ser totalmente realizável?

Departamento de Medicina Preventiva,Faculdade de Medicina,Universidade de SãoPaulo, São Paulo, Brasil.

Moisés Goldbaum O trabalho apresentado é extremamente insti-gante, retomando de forma oportuna e compropriedade o debate (pouco estimulado e re-conhecido) a respeito da teoria e dos conceitosem epidemiologia. O paraíso que o autor pro-cura traçar com a evolução de outras áreascientíficas, ainda que não possa ser aplicadode modo imediato e direto a outras tantas, temo mérito de suscitar novas aproximações quan-to à definição de variáveis e ao pensamentocausal na metodologia epidemiológica.

A apreensão feita acerca da perspectiva po-sitivista da disciplina mostra o alinhamento damesma e a tradução da sua lógica nos termosdas teorias da probabilidade. É uma evidênciaregistrada, mostrando que a afirmação feita so-bre o fato de o método epidemiológico não seindagar a respeito das representações que fazdo tempo e, portanto, das suas outras variáveis,merece ser revitalizada. É oportuno dizer, en-tão, que, seja explicitamente ou não, os movi-mentos predominantes na disciplina conce-bem e utilizam suas variáveis atendendo a suaoperacionalidade e às instâncias nas quais pro-move ou sugere a própria intervenção. Em ou-tras palavras, trata-se de verificar, ou melhor,explicitar, qual concepção e qual referencialestão sendo utilizados para entender a “sociali-zação das coisas”, uma vez que as diferentesformas como esta é apreendida – seja no espa-ço, no tempo, ou nas próprias pessoas – dão-lhe a abrangência e consistência pretendidas,guardando a coerência da explicação ou inter-pretação.

No caso do pensamento causal predomi-nante, a epidemiologia utiliza o tempo comoforma para encontrar factualmente elementosque expliquem a ocorrência de eventos em es-tudo. Duas situações em que isso ocorre sãona sazonalidade (por exemplo, variações tér-micas ou a possibilidade menor ou maior dedispersão ou concentração de substâncias noambiente) ou na tendência secular (por exem-plo, a introdução e/ou incorporação de novastecnologias ou alteração de hábitos e costu-mes). Apresenta-se coerente com o modelo ex-plicativo, no qual um ou vários antecedentes(físico, químico, biológico e “social”) são iden-tificados e a eles se atribui a qualidade de, li-nearmente, promover e desencadear altera-ções no organismo humano, ou seja, o seu con-seqüente. Na raiz desse raciocínio localiza-se aforma como a causalidade é pensada em epi-demiologia e operacionalizada enquanto ins-trumento para orientar a intervenção em saú-de.

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 27

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

Não se pode, a despeito de o positivismo “serum projeto empiricista e homogeneizador, que-rer controlar os eventos, por si só únicos e irre-petíveis, eliminando a perspectiva de mudançasnele contida”, deixar de mencionar os avançosalcançados por esse tipo de conhecimento, osquais dialeticamente engendram as contradi-ções à pretendida eliminação da “sucessão” e àcontenção da “ameaça de mudança”. Veja-se,nesse sentido, algumas conquistas sociais assi-naladas na erradicação de certas doenças in-fecciosas ou mesmo na identificação de ele-mentos nocivos ou protetores à saúde huma-na. Em tal condição pode-se verificar que essemodelo tem-se mostrado “útil” para situaçõesespecíficas, às quais se aplicam modelos expli-cativos menos complexos e que se consolida-ram na Saúde Pública tradicional ao lidar comdeterminadas doenças infecciosas (os exem-plos de intervenção através da vacinação e dosaneamento são bastante eloqüentes).

Da mesma forma, não se pode generalizar(ainda que seja prática corrente, na qual, comfreqüência, os números obscurecem o objetoda pesquisa: o doente ou doentes, ou seja, aspessoas) a situação descrita por Skrabanek, ha-ja visto que os maus usos das técnicas de pes-quisa têm sido criticados unanimemente pelosautores mais responsáveis.

O tema abordado por Sevalho, como já dis-semos, é oportuno e pode estender-se ao con-junto da epidemiologia e não só à variável tem-po.

Nessa circunstância, é interessante regis-trar outras indagações a partir da polêmica es-tabelecida nos meios científicos concernente àmenor ou maior proximidade da Epidemiolo-gia à Saúde Pública, tal como a exibida pelasponderações anotadas por Susser & Susser(1996a; 1996b) e Pearce (1996). Tanto um comoo outro procuram mostrar suas preocupaçõesquanto ao distanciamento da metodologia epi-demiológica da sua contribuição central, que éa Saúde Pública na sua vertente populacional.Essas observações – aliás, expostas pela pri-meira vez por ocasião do III Congresso Brasi-leiro de Epidemiologia – permitem identificartrês eras epidemiológicas sucessivas (sanitária,de doenças infecciosas e das doenças crôni-cas), às quais correspondem três paradigmasexplicativos (miasmático, bacteriológico e da“caixa preta”, respectivamente). Apesar deconstatarem evolução ou mudança de paradig-mas, impõe-se a reflexão sobre se, verdadeira-mente, isso significa inovação.

Winkelstein (1996), em editorial no mesmonúmero da revista dos artigos citados, indaga-se quanto ao caráter evolutivo dessa represen-

tação, uma vez que, segundo seu argumento,com esse raciocínio presente na epidemiolo-gia, descobertas ou evidências são mostradasda mesma forma desde 1767. Talvez assim seesteja a reforçar a idéia de que não se estádiante de novo paradigma e que, em últimainstância, o modelo represente uma sofistica-ção daquele primeiro. Se essa concepção forreal, o problema não se coloca ao nível das va-riáveis e se desloca à compreensão de paradig-mas explicativos como questão central na epi-demiologia, cuja abordagem, por exemplo, foiiniciada no nosso meio por Almeida-Filho(1992).

De qualquer forma, importa assinalar, co-mo o fez Pearce (1996), que as técnicas utiliza-das na epidemiologia, na medida da sua ade-quação à esfera da intervenção sobre a saúde,ou seja, o objeto de trabalho, têm-se mostradobastante úteis em áreas científicas outras co-mo a Clínica: nos estudos etiológicos, prognós-ticos e de curso de doenças nos indivíduos. Po-rém, em contrapartida, observa-se um fossocada vez maior na sua aplicação à Saúde Públi-ca, tal como concebida originalmente. No des-dobramento dos artigos de Susser nota-se aemergência de nova era epidemiológica, ultra-passando-se o “paradigma” da caixa-preta parao das “caixas chinesas” e eco-epidemiologia.Abrem-se aí as necessidades para incorporar,ao lado do plano individual, aquilo que cha-mam de perspectivas molecular e societárias,procurando resgatar uma “epidemiologiaorientada à saúde pública”. Parece evidenteque essa última abordagem obriga a trabalharo entendimento do social na disciplina, ou se-ja, implica em ocupar-se de outra questão fun-damental, aquela expressa nas concepções quese tem de população, para daí compreender oespaço, o tempo e as próprias característicaspessoais.

Essas questões centrais, na medida que se-jam revistas e aplicadas ao método epidemio-lógico, podem promover campo fértil para anecessária incorporação dos avanços científi-cos das diversas áreas, como, por exemplo,vem sendo feito com as modernas técnicas ma-temático-estatísticas. O texto de Sevalho é umconvite ao aprofundamento de todos esses te-mas.

ALMEIDA-FILHO, N., 1992. A Clínica e a Epidemiolo-gia. Salvador: APCE-Abrasco.

PEARCE, N., 1996. Traditional epidemiology, modernepidemiology, and public health. American Jour-nal of Public Health, 86:678-683.

SUSSER, M. & SUSSER, E., 1996a. Choosing a futurenfor epidemiology. American Journal of PublicHealth, 86:668-673.

SEVALHO, GIL28

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

Instituto de Saúde Coletiva, UniversidadeFederal da Bahia,Salvador, Brasil.

Naomar de Almeida Filho

O texto de Gil Sevalho abre uma discussão deextrema relevância neste momento de recons-trução teórica da ciência epidemiológica. Re-conhecendo a ousadia e pertinência do texto-provocação, que certamente deverá constituirimportante referência na literatura conceitualna área da Saúde Coletiva, trago um breve co-mentário sobre os tempos epidemiológicos, es-perando poder modestamente contribuir parao debate em questão.

À semelhança de outras ciências constituí-das a partir da invenção das probabilidades eda revalorização do campo observacional, sãotrês os tempos da epidemiologia: tempo real,tempo lógico e tempo simbólico. A incorpora-ção do tempo real nas medidas epidemiológi-cas pretende fazer referência a uma dimensãoexterna, hipoteticamente invariante (comouma constante física), a dimensão do tempo fí-sico. Este uso, digamos, superficial do tempo,apenas replica estratégias heurísticas de todosos campos disciplinares de inflexão quantitati-va, nostálgicos de uma suposta “dureza” epis-temológica que compõe parte da mitologia dasciências ditas naturais.

Entretanto, pode ser interessante exploraroutros sentidos do tempo na epidemiologia, namedida em que, desta forma, podemos inter-rogar-nos acerca da lógica e da ontologia queestruturam o pensamento dominante na área,pomposamente denominado de “raciocínioepidemiológico”. Em outra oportunidade (Al-meida Filho, 1994) tentei organizar algumas re-flexões preliminares em torno de tal questão.Como Sevalho não incorpora este material nasua discussão, isto pode indicar que eu não te-ria atingido suficiente clareza na argumenta-ção de então, reforçando a necessidade de re-tomá-la neste contexto.

A práxis humana é regida por uma raciona-lidade – ou meios de categorização – que Cas-toriadis (1982) denomina lógica conjuntista-

SUSSER, M. & SUSSER, E., 1996b. Choosing a futurefor epidemiology: I. Eras and paradigms. Ameri-can Journal of Public Health, 86:674-677.

WINKELSTEIN JR., W., 1996. Editorial: eras, para-digms, and the future of epidemiology. AmericanJournal of Public Health, 86:621-622.

identitária. Esta lógica baseia-se na categoriade ‘conjunto’, que envolve a agregação de coi-sas não idênticas em categorias homogêneas,bem como sua incorporação em hierarquias,com propósitos cognitivos ou pragmáticos.Apesar de se observar alguma forma de racio-nalidade operando através de instituições dis-cursivas e práxicas em todas as culturas, a so-ciedade moderna desenvolve ao extremo a ló-gica identitária na linguagem matemática for-malizada da ciência. Inclui-se, nesta perspecti-va, o processo de fragmentação do mundo, quesepara temporal e topologicamente as causasdos efeitos ou, o que nos interessa particular-mente, os fatores de risco do risco em senso es-trito. Neste sentido, não se torna fácil de refu-tar a insistência dos pré-teóricos (ou ideólo-gos) da ciência epidemiológica em apresentarcorrelações como se fossem laços causais ecausas como processos naturais (e, portanto,anistóricos), porque tal abordagem representaa aplicação de teorias de causalidade do sensocomum. Efetivamente, a não complexidade dalógica causal garante, desse modo, a credibili-dade do seu poder antecipatório (base do sa-ber tecnológico da produção moderna), inte-grando-a na formação econômico-social e nasredes de poder que a constituem (Stengers,1989).

O tempo lógico da epidemiologia implicadois elementos de discussão, ambos concer-nentes à questão fundamental da causalidade.Primeiro, o lugar da temporalidade na lógicaseqüencial do determinismo epidemiológico.Trata-se, neste caso, de um tempo linear, irre-versível, produtor de nexos assimétricos, umtempo unívoco, eventual (no sentido precisode “por referência à noção de evento”). Segun-do, o emprego do tempo como elemento de ba-se para a inferência preditiva não só no campoepidemiológico, mas, por extensão, a toda aárea da Saúde Coletiva, em particular na plani-ficação da saúde. A partir do conhecimento arespeito dos eventos em certa amostra é possí-vel predizer, para o futuro, a ocorrência, notempo, de novos eventos naquela amostra (ousua população de referência), efetuando-seuma predição "verdadeira", porém ilegítimaem sentido filosófico rigoroso. Por outro lado,podemos também predizer não para um futu-ro, ainda não ocorrido, mas na direção do des-conhecido, do não investigado, em uma varia-ção que poderíamos denominar transversal.Chamei a este caso de "pseudo-predição" (Al-meida Filho, 1994), porque, paradoxalmente,embora não constitua antecipação, é legítimano sentido de que, ao menos em certo âmbito,há uma lógica subjacente que a fundamenta.

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 29

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

Em síntese, a temporalidade não é critério devalidação e sim elemento constitutivo de umapredição verdadeira na aplicação do conheci-mento epidemiológico.

Vejamos agora o terceiro tempo, o temposimbólico, a temporalidade como resultante deum processo particular de construção metafó-rica do sentido do tempo. Nesta etapa, desde jános defrontamos com um elemento metafóri-co essencial do tempo: aqui, ou agora, o senti-do de ‘sentido’ é duplo: significação (ou cons-trução identitária, para usar o termo castoria-diano) e direção.

Deleuze, em Logique du sens (1969), partin-do da matriz filosófica grega, traz duas leiturasparadoxais e contraditórias do tempo: o eternoconfronto entre Chronos e Aion. Sempre haviao Aion. O Aion será – desde sempre – o reino daação, das forças, dos efeitos e das causas. Otempo do Aion é uma linha reta feita de instan-tes. No Aion, o presente não existe, é apenas di-visão, refeita a cada instante, entre um passadoe um futuro. Ou melhor, trata-se do presente“sem densidade”, feito de momentos, “o pre-sente do ator, da dançarina ou do mímico, pu-ro ‘momento’ perverso” (Deleuze, 1969:197).Por sua vez, Chronos inventa o ‘evento’, presen-te singular que instaura os fatos, os estados, ascoisas e os corpos (Zourabichvili, 1994). Aí (ouentão) só o presente existe, já que passado e fu-turo são dimensões relativas ao presente. Otempo é o movimento do presente, movimentocircular em torno de presentes singulares, oseventos. No Aion, os eventos só ocorrem se“efetuados ou performados” por atores, sujei-tos do ato. Para Chronos, os eventos são puros,puras singularidades impessoais, ocorrênciaspré-individuais.

Devemos recuperar a noção de evento a par-tir de uma perspectiva complementar àquela daNouvelle histoire indicada por Sevalho. Na pers-pectiva metafórica de Chronos, o ‘evento’ car-rega a conotação de algo discreto, isolado, dis-tinto, descolado do resto das coisas, o eventoenquanto fragmento de uma realidade maisampla (Castoriadis, 1992). O mundo (real ouvirtual) é metaforicamente traduzido como uni-verso de entidades individuais (os eventos cha-mados ironicamente de fatos) que podem serpotencialmente incluídos ou excluídos de agre-gados denominados ‘conjuntos’. O evento deveser identificado como tal, quer dizer, como sin-gularidade pré-individual, diferente do resto dascoisas, do que ele não é; em síntese, visto como"outra coisa" (Zourabichvili, 1994). Neste pro-cesso, inevitavelmente são fabricados limitesarbitrariamente estabelecidos, dado que, paraconfigurar-se como objeto de conhecimento, a

coisa-fato-processo-fenômeno deve tornar-separte isolada da totalidade indiferenciada.

De volta à epidemiologia, a operação maisfundamental e necessária para pensar a deter-minação epidemiológica consiste na distinçãoentre causa e efeito. Aí, é preciso que a causa, oevento C (chamemos de antecedente, determi-nante), seja distinto do restante das coisas, di-ferente do indiferenciado, C seja diferente de C(não C ). Da mesma forma, outro evento signifi-cativo D (escolhi D por doença, mas pode-se lertambém efeito, resultado) terá que ser diferentedo indiferenciado. Ora, ambos se distinguem ese destacam do [C, D] (não C, não D), da "massasem forma", do magma (Castoriadis, 1982), poratribuições de natureza distinta e definida. As-sim, C é diferente de D, não se confunde nem sereduz a D. Constrói-se, desta forma, a diferençaentre a causa e o efeito, sem o que estes termosjamais encontrariam uma definição, ou seja,sua identidade enquanto eventos singulares.

A flecha do tempo. O rio do tempo. Corren-teza, fluxo irreversível. Metáfora espacial dotempo como direção. Eis a temporalidade to-mada como assimetria, direcionalidade, fluxo(de eventos). Tomemos esta série metafóricabasicamente como expressão da representaçãoespacial ou linear do tempo, talvez o traço maisfundamental do modo moderno de pensar, par-te essencial da nossa lógica subjacente maisprimitiva (Castoriadis, 1982; 1987). Uma deter-minada relação de ordenação temporal enten-dida como abstração espacial do tempo, parteda lógica conjuntista-identitária. Para Casto-riadis (1982), o pensamento convencionalacerca do tempo adota, por referência, lugar ouespaço, porque isto é o que "permite a identi-dade do diferente". Definido como ordem (desucessão), o tempo é referencial e assim possi-bilita ao "idêntico diferenciar-se de si mesmo"pela retenção de um espaçamento temporal,ainda assim vinculado ao passado. Cada mo-mento, no entanto, pode também ser visto co-mo tempo-instante em si, momento no qual sepermite a emergência do que não estava deter-minado ocorrer.

Segundo Castoriadis, tornar-se “outro” nãoé o mesmo que se tornar “diferente de”. Emer-gir como outro constitui gênese ontológica –quer dizer, a própria criação da alteridade, doimprevisto, do novo. A noção de ontogênese ra-dical compreende os fenômenos da emergên-cia referidos pelas propostas das novas alter-nativas paradigmáticas para a ciência contem-porânea (Morin, 1980). Assim, o tempo é a ver-dadeira manifestação do fato de que algo “ou-tro” em relação ao existente está sendo trazidoà existência, e que este “outro” não é simples-

SEVALHO, GIL30

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

mente conseqüência ou exemplar diferente do“mesmo” (Castoriadis, 1982:185).

Considerar a determinação do objeto deconhecimento como sua propriedade essen-cial, fazendo assim equivaler causalidade a“coisidade”, implica a adoção da tese metafísi-ca da essência-substância, por referência à“instituição social-histórica da coisa”, uma ex-pressão de Castoriadis (1982). Em outras pala-vras, a ontologia ocidental mais básica, a no-ção do que é uma coisa, é a cada momento dotempo inscrita em uma ontologia conjuntista-identitária. Como resultado, reifica-se as pro-priedades da determinação. Ao tomar determi-nações parciais e limitadas como substância –coisas integralmente determinadas, enfim, co-mo objetos –, a racionalidade ocidental moder-na obscurece o princípio de que a ontogênese,a alteridade-alteração, a emergência, ocorrecontinuamente no Aion, em todos os instantesdo tempo.

O determinismo inerente à lógica conjun-tista-identitária, por isso característico do cha-mado raciocínio epidemiológico, é incapaz delidar com a ontogênese radical na medida emque, ao aderir estritamente a cadeias preexis-tentes de categorias, pode somente reconheceras diferenças nos mesmos – mas nunca a emer-gência do “outro”. Por este motivo, pode-se res-ponsabilizar esta forma de pensar pela parali-sia dos modelos explanatórios da situação dasaúde, pois trata-se de um pensamento queopera pela imobilização das categorias básicasdo ser. Tais categorias são fechadas em suaexistência, bloqueadas perante a própria histo-ricidade, assumidas como universalmenteexistentes, sem incorporar os mínimos requisi-tos das representações culturais e sociais.

A tradição de uma história cultural recupe-rada por Sevalho mostra que as categorias fun-damentais do pensamento ocidental (as “men-talidades”) modificam-se com o tempo e que asucessão de eventos históricos não poderánunca ser vista simplesmente como resultadode cadeias de causalidade. “Causalidade nãosignifica ‘irreversibilidade’ nem algum tipo deordenamento temporal e menos ainda (...) umamera sucessão regular, empiricamente estabe-lecida, de um fenômeno para outro” (Castoria-dis, 1982:65).

Se aceitamos a leitura da causalidade comouma série de eventos do passado, é porque as-sumimos que um modelo de referência con-juntista-identitário instituído reflete certotempo natural. Uma posição epistemologica-mente mais atraente pode ser a de considerá-lo como tempo socialmente instituído. A insti-tuição social do tempo traduz tanto uma tem-

poralidade explícita (tempo marcante e signifi-cativo) quanto uma temporalidade implícita,produtora de alteridade-alteração. A dimensãosocial-histórica do tempo como alteração podereferir-se a uma temporalidade natural (esta-ções, ciclo lunar, dia-noite). Entretanto, dadoque os atores sociais-históricos filtram sua per-cepção do tempo através das próprias institui-ções, o “tempo natural” nunca poderá ser co-mo tal diretamente percebido ou apreendido.A temporalidade social-histórica implícita deuma dada sociedade (assim como sua relação auma “temporalidade natural”) engendra e épor sua vez sujeita a uma dimensão particulardo “imaginário social”, imensa meta-metáforada cultura e da história.

Em síntese, a temporalidade da epidemio-logia estrutura-se usando como base uma me-táfora do evento e uma série significante meta-fórica do fluxo. Não é outro o sentido da fun-ção de ocorrência, base da própria definiçãodo objeto epidemiológico, segundo Miettinen(1985). Também não estamos longe dos crité-rios de causalidade de Sir Bradford Hill (Weed,1989) ou do sistema de lógica de Mill, confor-me traduzido por MacMahon & Pugh (1970),ícones do chamado raciocínio epidemiológico.Trata-se aqui de uma temporalidade fragmen-tária, conforme intuitivamente se pode verifi-car na fixação dos limites temporal e corporalno processo de identificação de caso nos estu-dos epidemiológicos. Os casos são definidospor referência a eventos relativos à saúde-doença, reconhecidos enquanto ocorrênciassingulares. Enfim, a análise da natureza dotempo na desconstrução do discurso epide-miológico termina por revelar os principaispontos-cegos do paradigma dominante nocampo da epidemiologia: por um lado, a nega-ção dos “momentos perversos” em que irrom-pe a subjetividade (Castiel, 1994); por outro la-do, sua incapacidade “chronica” de dar contados fenômenos emergentes (como, por exem-plo, no campo da saúde, as epidemias de AIDS,do vírus Ebola, da drogadição, da violência, eos paradoxos da mortalidade infantil, do siste-ma unificado de Saúde...). Enquanto isso, noAion, eventos novos se produzem a todo ins-tante, desafiando a vã temporalidade da epide-miologia.

ALMEIDA FILHO, N., 1994. Caos e causa na epide-miologia. In: Epidemiologia e Qualidade de Vida.Anais do II Congresso Brasileiro de Epidemiologia.(M. F. F. L. Costa & R. P. de Sousa, orgs.) pp. 117-126. Belo Horizonte: Coopmed/Abrasco.

CASTIEL, L., 1994. O Buraco e o Avestruz: a Singulari-dade do Adoecer Humano. Campinas: Papirus.

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 31

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

CASTORIADIS. C., 1982. A Instituição Imaginária daSociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

CASTORIADIS C., 1987. As Encruzilhadas do Labirin-to. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

CASTORIADIS, C., 1992. As Encruzilhadas do Labirin-to/3 (O Mundo Fragmentado). São Paulo: Paz eTerra.

DELEUZE, G., 1969. Logique du Sens. Paris: Les Édi-tions du Minuit.

MACMAHON, B. & PUGH, T., 1970. Epidemiology:Principles and Methods. Boston: Little, Brown &Co.

MORIN, E., La Méthode. Tome II. La Vie de la Vie.Paris: Seuil.

MIETTINEN, O., 1985. Theoretical Epidemiology. NewYork: John Wiley & Sons.

STENGERS, I., 1989 Quem tem Medo da Ciência?Ciência e Poderes. São Paulo: Siciliano.

WEED, D., 1989. Causal criteria and popperian refu-tation. In: Causal Inference. (K. Rothman ed.)pp15-32. Chestnut Hill: Epidemiologic ResourcesInc.

ZOURABICHVILI, F., 1994. Deleuze – Une Philosophiede l’Évènement. Paris: PUF.

Instituto de Filosofia eCiências Sociais,Universidade Federal doRio de Janeiro,Rio de Janeiro, Brasil.

Wilmar do ValleBarbosa

O tempo, como questão que não diz respeitoapenas a relógios e relojoeiros, é sem dúvida umtema fascinante. Mais fascinante ainda se tornaao sabermos que as propriedades atribuídas aoque usualmente chamamos de “realidade” nãosão senão aquelas que o observador – nós, hu-manos – pôde estabelecer a partir dos seus sen-tidos e da sua capacidade de construção de sig-nificados. Na verdade, somos uma espécie obser-vadora que, ao longo do seu próprio itinerário,vai elaborando as formas da realidade, que nosencanta descobrir a posteriori. É neste processode construção de esquemas de realidade, a co-meçar dos dados proporcionados pelos sentidose da designação de significados por via da lin-guagem mesma, que também nos construímoscomo seres pensantes. Esta cadeia de significa-dos leva-nos a crer na existência de um tempoque flui continuamente em direção à morte.

Mas trata-se apenas de uma crença? Cremosque o tempo flui constantemente, quando, naverdade, o mundo que se encontra lá fora – cha-memo-lo “natureza” – seria imóvel, quieto, masdevido a alguma misteriosa “propriedade” da

nossa mente, se nos afigura em contínuo e in-cessante movimento? Obviamente não se tratadisto. Estamos apenas humildemente tentandosugerir que o ato de demonstrar a existência deum tempo que flui sem cessar ao exterior de nósconstitui tarefa tão gigantesca que até o presen-te não se pôde fazê-lo a contento.

Podemos estabelecer o compasso do tempoatravés, por exemplo, da água que escorre poruma torneira, pois sabemos que o que flui é aágua com relação à pia, digamos, à razão de xmetros cúbicos por dia. Mas quando se trata dopróprio tempo, o que é que flui incessantemen-te? Flui relativamente a que? Quanto flui por se-gundo, minuto, hora? Como o tempo pode me-dir o próprio tempo? Afinal de contas, o que éeste tempo que seguramente sentimos fluir, sen-timento sem o qual não podemos pensar nematribuir significados ao que chamamos de reali-dade?

Justamente por ser difícil elaborar uma defi-nição unívoca é que não mais supomos que hajaum tempo, mas tempos. Já os antigos, como nosensina Mircea Eliade, possuíam dois tipos detempo: aquele incessantemente repetível, divi-no, o do cosmos, e aquele da duração profana, odo cotidiano, trivial e sem nenhuma transcen-dência. Para os antigos gregos, o universo surgea partir do ordenamento do caos, e um dos seusprimeiros deuses é justamente Kronos (KronoV,deus fundador), que se transforma em Cronos(KronoV, deus do tempo), e é desta visão demundo que emerge a controvérsia, muito remo-ta, entre o paradigma do “transformar-se e mo-dificar-se” e o do “permanecer e ser”, que animaa imaginação dos filósofos gregos sobretudo apartir de Heráclito e Parmênides. Por sua vez, aciência moderna, com Einstein, descartou defi-nitivamente a noção newtoniana de tempo ab-soluto, fazendo-nos ver que o tempo é um as-pecto da relação que se estabelece entre o uni-verso e um observador, sendo, na verdade, umsistema de referências.

No nosso entendimento, ao buscar aproxi-mar o “tempo da história” ao “tempo da epide-miologia”, Gil Sevalho corretamente procura re-ver uma tendência constitutiva da ciência mo-derna que se manifesta por meio de dois proce-dimentos básicos: (a) afastar-se da “natureza-tal-como-percebemos-pelos-sentidos”, isto é,descartando, quando não desqualificando, amudança e a diferença e (b) observar e descre-ver as relações imutáveis que supostamenteexistem sob as mutáveis, privilegiando, destaforma, o paradigma do “permanecer e ser”.

Tais procedimentos estão na base do voca-bulário tanto do “materialismo” quanto do“idealismo” modernos, pois, por um lado, se o

SEVALHO, GIL32

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

Diante das contribuições dos debatedores-co-laboradores, inicio minhas considerações rele-vando algumas características centrais do arti-go. Quero dizer, então, que o trabalho apresen-tado é parte das reflexões que venho desenvol-vendo em meu programa de doutoramento naEscola Nacional de Saúde Pública, centrado notema Epidemiologia e Tempo, sob orientaçãode Eduardo N. Stotz e co-orientação de Luis D.Castiel. Como tal, é um texto aberto, uma colo-cação de propostas e dúvidas; que é tambémprocura de informações e de companheiros dediscussão e, neste sentido, sua indicação paradebate pelos editores dos Cadernos foi extre-mamente proveitosa, pelo que, desde já, lhesagradeço.

Quanto à escolha de Fernand Braudel e IlyaPrigogine como referências centrais, esta sedeve ao fato de serem autores absolutamentecontemporâneos e proeminentes no que dizrespeito à temática do tempo e, sobretudo, porse oferecerem explicitamente para o trajeto in-terdisciplinar. Foi devido a isto que os retirei da“caixa de ferramentas” para utilizá-los comoinstrumentos no esforço de argumentação, co-mo bem percebeu F. R. Schramm em sua inter-venção neste debate. Algo que se torna maisconvidativo quando consideramos o engaja-mento desses autores, um na história e outro nafísica: Braudel, de um lado, tentando endurecero tempo histórico, cientificizá-lo, e Prigogine,de outro lado, buscando amolecer o tempo físi-co, torná-lo mais social. Embora sejam pers-pectivas diversas acerca do tempo, têm ambasno seu cerne algo de fundamental para a ciên-cia de modo geral, mas especialmente caro àepidemiologia: a integração sociedade/nature-za que perpassa as categorias indivíduo, coleti-vo, vida e morte, cultura e meio ambiente.

Penso que houve consenso entre nossosdebatedores-colaboradores quanto à pertinên-cia e necessidade de discutir o ponto de vistado tempo no contexto da epidemiologia e, portranscendência, da saúde coletiva. É a partirdeste consenso que vários pontos interessan-tes são apresentados.

E. D. Nunes aponta a importância da con-sideração do tempo sociológico de G. Gur-

O autor responde The author replies

primeiro tenta compreender o mundo pergun-tando-se sobre aquilo que o constituiria de mo-do definitivo, por outro, o idealismo indaga-sesobre a forma definitiva que foi dada a um fenô-meno x para que ele se diferenciasse daquiloque o produziu, isto é, de um fenômeno y (ounão-x). A controvérsia tipicamente moderna en-tre idealismo e materialismo tende a perder suarelevância cultural, pois o ambiente em que flo-resceu e adquiriu seu importante sentido, temsofrido modificações significativas. Isto porque– a partir de meados do séc. XIX e por via de re-flexão sistemática sobre os processos civilizató-rios humanos, que se encontram em constantemutação – instituiu-se a história como ciênciade um “objeto” que só pode ser entendido sob oparadigma do “transformar-se e modificar-se”, jáque não possui nenhuma “lei imutável” por de-trás das suas constantes mudanças, tornando-serefratário, portanto, a todo pressuposto determi-nista.

Este certamente constitui o grande desafioque temos pela frente e que Sevalho indica compropriedade: compreender os processos huma-nos e os do universo em uma relação dinâmicade interdependência entre o cultural, o históri-co, o social e o biológico (o “natural”). Procura-se articular os tempos da natureza, da sociedade,da história e da cultura, de modo a promoveruma renovada inteligibilidade do mundo tal co-mo nós o experimentamos.

Se de fato, como quis Bacon, saber é poder, odesconhecimento é fonte de insegurança e te-mor. Por isto mesmo, a espécie humana, obser-vadora que é, busca incessante e necessaria-mente segurança. E essa procura significa paraos homens uma busca de significados. Saber quehá tempos, e não um tempo, e sentir que estestempos fluem em direções irreversíveis e desco-nhecidas, obriga-nos mais do que nunca a pen-sar. Porém, pensar significa escolher aspectos danossa experiência e ordená-los. Pensar é, de fa-to, construir, e construir significa inventar. “In-ventar é preciso”, diríamos, parafraseando o le-ma dos antigos argonautas, sabendo, juntamen-te com Sevalho, que, no entanto, não há inven-ção definitiva, assim como não há tempo defini-tivo.

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 33

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

vitch, o que complementaria a dialética da du-ração de Braudel. Realmente, a classificaçãodos agrupamentos humanos desenvolvida porGurvitch, em que a duração e o ritmo são ca-racterísticas fundamentais, pode ser situadanesta posição em relação à dialética de Brau-del. No que diz respeito à epidemiologia, estaoperação pode contextualizar as característi-cas dos grupos populacionais estudados emsuas diversas temporalidades, tornando-asmais visíveis e compreensíveis. Há que ser vis-to que, se Braudel considerava o tempo deGurvitch muito acontecimental, curto, comoaponta Reis (1994), Le Goff (1986: 78-79), ou-tro autor expoente da Nouvelle Histoire, apon-ta o débito da história para com a sociologia, e“particularmente” com Gurvitch, em relaçãoao “reconhecimento de uma multiplicidade dotempo”. Uma multiplicidade que já pode servista no relativismo cultural de E. Durkheimem “Formas elementares da vida religiosa”, co-mo bem indica Nunes. Afinal, como explicaReis (1996:11), “o projeto original de uma nou-velle histoire não partiu de historiadores, masde sociólogos durkheimianos.” Sem desprezar,portanto, as críticas de Braudel à Gurvitch, háque se ter em conta, como o próprio Nunesafirma, que “o principal é ... superar a visãoque tem no tempo presente a sua única referên-cia.”

Penso que outra perspectiva sociológica dotempo a ser visitada é a de N. Elias (1994), quepretende eliminar a separação entre sociedadee natureza, considerando como seu objetivo oestudo dos seres humanos-na-natureza. Damesma forma que no pensamento de Braudel,nas reflexões de Elias há uma base estruturalis-ta, quando este autor pensa sobre o comporta-mento humano sendo moldado pelo “processocivilizador”, no tempo longo, através da impo-sição de autocoerções reguladoras. Para Elias,a interiorização do tempo dos relógios mecâni-cos no comportamento humano, a transforma-ção dos símbolos dos relógios em símbolos deorientação da vida humana propriamente dita,é uma das principais características das socie-dades contemporâneas e é prova de que o pro-cesso civilizador se dá também através de coer-ções que partem do coletivo, do social, para oindividual. Com este sentido, em trabalho re-cente tentei relacionar a velocidade social docapitalismo globalizado com as infecçõesemergentes (Sevalho, no prelo). Penso que aspostulações de Elias, pouco utilizadas na áreada saúde coletiva, podem ser úteis na com-preensão das relações entre subjetividade,comportamento, cultura, modificação ambien-tal, evolução biológica e doença.

Atenta para a questão da subjetividade quecerca o adoecer coletivo humano, M. T. Luzaponta pertinentemente a utilidade do tempopsicanalítico em uma reflexão que tenha o pro-pósito de rever o estado atual da epidemiologiapartindo do ponto de vista do tempo. Poucossão os epidemiologistas que têm enfrentado aquestão da subjetividade, sendo, neste contex-to e dentre nós, os trabalhos mais expressivosos de L. D. Castiel (1994; 1996), pelo que pensoque a proximidade de Castiel nesta discussãosobre epidemiologia e tempo é necessária. Emminhas reflexões apenas tenho sido capaz detangenciar a questão através de referências aosautores da Nouvelle Histoire, especialmente deBraudel ou àqueles próximos a estes, como é ocaso do citado N. Elias. Nestas perspectivas, asubjetividade é reconhecida e mesmo salienta-da, como no caso da história das mentalidades,mas perde seu poder para a objetividade conti-da nas estruturas. Dosse (1993), aliás um dosmais severos críticos da Nouvelle Histoire, mos-tra que o estruturalismo avança em meados doséculo XX combatendo justamente a subjetivi-dade do existencialismo de J.-P. Sartre.

A questão da consideração da subjetivida-de e da objetividade também é tema centraldas reflexões de F. R. Schramm quando apontaa existência de uma aparente oposição entreum tempo “construtivista” e um tempo “objeti-vista”, oposição que procura destacar ao citarH. Bergson e J. Monod. Tal oposição também éreconhecida por Prigogine, como pretendimostrar no texto em debate, ao indicar estesdois autores como seus inspiradores. A opçãodominante da Nouvelle Histoire pela relevânciado tempo longo, das estruturas, afasta-se daperspectiva de Bergson. Burke (1991) indicamesmo certa aversão de L. Febvre, um dos fun-dadores dos Annales, à subjetividade do tempode Bergson. Na dialética da duração de Brau-del, que considera o evento, a mudança, a sub-jetividade está presente, mas é superada pelaestrutura. Penso que esta preferência pela ob-jetividade, que se evidencia na aceitação deuma característica ontológica do tempo, e apercepção de que esta não é exclusiva, postoque o tempo também é construído no viver eno desenvolvimento do conhecimento huma-nos, parece aproximar o pensamento de Brau-del do de Prigogine, embora continuem episte-mologicamente (mas, ouso provocar, será queirremediavelmente?) separados. E este é umponto importante a ser considerado, pois, co-mo esclarece N. de Almeida Filho em sua inter-venção neste debate, a dificuldade da “vã tem-poralidade da epidemiologia” em reconhecer onovo, o evento que emerge com sua singulari-

SEVALHO, GIL34

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

dade, é um dos problemas principais a ser des-tacado em nossa discussão quanto à epidemio-logia e ao tempo.

W. do V. Barbosa, em sua bela e estimulantereflexão filosófica, percebe o nascimento daciência da história, e a conformação do seu ob-jeto, no século XIX, sob “o paradigma do trans-formar-se e modificar-se”, e conclui pelo conse-qüente distanciamento da história em relaçãoaos pressupostos deterministas. Assim, o en-volvimento da epidemiologia com o tempo his-tórico a aproximaria da pretensão de “com-preender os processos humanos e os do universonuma relação dinâmica de interdependênciaentre o cultural, o histórico, o social, o biológico(o natural) ... de modo a promover uma renova-da inteligibilidade do mundo tal como nós o ex-perimentamos.” Nesta perspectiva, em queuma interdependência toma o lugar de um de-terminismo, penso que Barbosa, como eu, e as-sim também se colocou Schramm, reconhece anecessidade de refletir acerca de um tempoepidemiológico complexo, o que traz, conse-qüentemente, a necessidade de rever os pres-supostos da causalidade epidemiológica.

M. H. C. de A. Cardoso nos esclarece sobrea utilização do tempo histórico pela epidemio-logia, em especial a dialética da duração deBraudel, e nos alerta para alguns problemasque, em sua opinião, estariam aí envolvidos.Notadamente, quanto a estes problemas, a au-tora se detém na dimensão de totalidade atri-buída à concepção de Braudel. São críticas per-tinentes, pois a rotulação de história total podeser estendida a vários historiadores dos Anna-les. Reis (1996: 50) aponta que este aspecto po-de compreender duas perspectivas diversas noâmbito da Nouvelle Histoire: o total no sentidode tudo em relação aos temas tratados, que dizrespeito então ao alargamento do campo his-tórico, e o total no sentido de todo, de “conhe-cer uma época como uma totalidade” estrutu-rada “em torno de um princípio unificador.” Énesta segunda perspectiva que se poderia si-tuar uma “contaminação” pelos pressupostosde coerência e continuidade da história tradi-cional, o que comprometeria a prática da his-tória-problema, um dos fundamentos do mo-vimento dos Annales. Cardoso sustenta que ocomprometimento da epidemiologia com umhistoricismo, diferentemente da ligação comuma história total, seria mais produtivo para adisciplina, pois possibilitaria melhor enfrenta-mento da “ambigüidade” e do “inexato” que“constituem o verdadeiro reino da história.”Ocorre que também ao historicismo se atiramrotulações de “um relativismo total; reduzido àimpotência, à busca de uma realidade sempre

tendenciosa.” (Dumoulin, 1993: 388). Penso quea generalização é fase inerente à reflexão cien-tífica, pois possibilita a comparação e a dife-renciação, e que a atenção à regularidade per-mite a visualização do acaso, desde que a pers-pectiva da sua emergência seja reconhecida econsiderada na investigação, ou seja, desdeque sejam ponderadas multiplicidades, ruptu-ras e mudanças. Assim, reafirmando a impor-tância do pensamento de Braudel nesta discus-são relativa à epidemiologia e ao tempo, im-portância que é reconhecida por Cardoso, pre-firo, prudentemente, deixar para os historiado-res a solução da querela descrita.

M. Goldbaum aponta a importância dasdiscussões teóricas em epidemiologia e desta-ca corretamente os sucessos conseguidos pelaepidemiologia positivista no controle e naidentificação etiológica das doenças. Um mo-delo que, explica o autor, “tem se mostrado‘útil’ para situações específicas, às quais se apli-cam modelos explicativos menos complexos eque se consolidaram na Saúde Pública ao lidarcom algumas das doenças infecciosas.” Trata-se,sem dúvida, de um ponto de vista legítimo,mas sabemos, com Goldbaum, que as constru-ções paradigmáticas reservam áreas que de-vem ser submetidas a tensões e que isto, de fa-to, é o que confere força ao paradigma, quandoeste suporta a absorção de mudanças sem querupturas críticas ameacem definitivamente suasobrevivência. Aí é que devem estar as diferen-ças entre não-modificação, “evoluções ou mu-danças de paradigmas.” Neste sentido, pensoque, em se tratando justamente do conheci-mento, mesmo identificando sucessos, deve-mos colocar perguntas, que é o que conformao ato próprio da busca do conhecimento. De-vemos indagar a respeito de incompletudes,equívocos, permanência de problemas sem so-lução, áreas obscuras, e, principalmente, quan-to à própria possibilidade de ampliar nosso co-nhecimento da realidade. Neste movimentocoloca-se para mim o ponto de vista do tempo– em especial este – como questão fundamen-tal a ser explorada pela epidemiologia. É estainvestigação, apenas iniciada neste debate, quepode “suscitar novas aproximações sobre a defi-nição de variáveis e sobre o pensamento causalna metodologia epidemiológica”, como o afir-ma Goldbaum, e, mais além, incorporar ao“plano individual” as “perspectivas molecular esocietárias”, o que constitui certamente umaaspiração que dividimos Goldbaum, eu e ou-tros.

Sem dúvida, dentre nós brasileiros e, certa-mente, com maior transcendência, são de N.de Almeida Filho os estudos mais importantes

CONTRIBUIÇÕES AO PENSAMENTO EPIDEMIOLÓGICO 35

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

produzidos a respeito da ordem epistemológi-ca da epidemiologia. Almeida Filho sempre es-tá à frente nesta discussão e, portanto, não ésem razão que me indica artigo da sua autoria,intitulado Caos e causa na epidemiologia (Al-meida Filho, 1994), onde aborda a questão dotempo com originalidade. Conheço o artigo,mas, quando o li, meu momento de reflexãonão permitiu absorvê-lo, pelo que o reserveipara uma necessária releitura posterior. Deve-ria tê-lo incorporado na discussão que fiz emmeu artigo, pois assim certamente a enrique-ceria. De qualquer modo, Almeida Filho o re-cupera e ultrapassa em sua intervenção nestedebate ao apresentar os três tempos da epide-miologia: o “tempo físico” ou “real”, o “tempo ló-gico”, e o “tempo metafórico”. Para o autor, estestempos compõem e constituem epistemologi-camente a disciplina, ou seja, compõem e cons-tituem a sua ligação a uma natureza externa,invariante, imóvel e, portanto, controlável; asua contextualização segundo uma racionali-dade que produz conjuntos identitários de“propósitos cognitivos ou pragmáticos”, possibi-litando a diferenciação categórica entre causae efeito e a formulação de inferências prediti-vas; constituindo seu alinhamento determinis-ta, portanto, e o seu envolvimento por uma ma-triz causal em que predomina uma ordem desucessão. Desta forma, aí estariam compreen-didas a natureza quantitativa e probabilísticada disciplina, de onde surge a noção de riscoepidemiológico e sua perspectiva de uma cau-salidade linear. Penso, então, que Almeida Fi-lho não é discordante das considerações feitasem meu artigo, mas as transcende quando ana-lisa o tempo epidemiológico, que identifiqueicomo positivista.

M. E. Uchôa, estudiosa da antropologia mé-dica e das suas relações com a epidemiologia,interroga sobre “a possibilidade de operaciona-lizar conceitos como cultura, relações sociais outempo histórico dentro do projeto teórico e me-todológico da epidemiologia.” Luz indaga se aproposta de intervir e controlar doenças emcurto prazo, que marca a epidemiologia, e,mais além, se o estatuto paradigmático da dis-ciplina permitem a “flexibilização” dos temposimplicados no raciocínio epidemiológico. EShramm pergunta se perspectivas “objetivistas”e “subjetivistas” do tempo poderiam ser “igual-mente utilizáveis” pela disciplina e se é possí-vel uma concepção específica de tempo quesirva à epidemiologia.

Grande parte das respostas a estes questio-namentos pode ser direcionada, penso, a partirdo próprio desenvolvimento deste debate, tan-to do que já foi até aqui comentado como de

formulações mais explicitamente apresentadaspelos nossos debatedores-colaboradores. Nes-ta última categoria se enquadram as elabora-ções de Nunes, ao sugerir uma sistematizaçãoonde coexistam uma “epidemiologia estrutu-ral”, uma “conjuntural” e uma “epidemiologiados eventos”; a de Luz, ao indicar uma operação“sincrética”, vista por ela como já em desenvol-vimento, através da qual a epidemiologia ab-sorva pragmaticamente as diversas noções ourepresentações de tempo; e a de Schramm aoapontar as possibilidades da aceitação de uma“pluralidade legítima de concepções da tempo-ralidade ... servindo para finalidades diferentes... dependendo do ponto de vista adotado”, ouda construção de uma reflexão através do de-senvolvimento de um exercício filosófico in-vestigativo que considere “pelo menos três sen-tidos gerais de tempo ... a ordem de sucessão en-tre eventos (o tempo como intervalo), a transfor-mação de seres e coisas que as leva ao seu ama-durecimento e conclusão (o tempo do Kronos)”e “o contexto em que se desenvolvem coisas e fe-nômenos.” São idéias sobre as quais devemosnos debruçar a partir deste debate, atentos pa-ra os concursos da interdisciplinaridade e dacomplexidade.

Vejo um arcabouço, uma arquitetura a par-tir da qual tenho construído minhas reflexõesacerca do tempo e da epidemiologia, que podeser útil aos interessados pelo tema. Penso quehá um tempo real, que não é o tempo físico aoqual Almeida Filho faz referência em sua inter-venção, mas o tempo vivido e sentido; um tem-po epistemológico; e um tempo do pesquisador.O tempo real é aquele que o conhecimentocientífico humano tenta apreender, sem nuncaconseguir representá-lo em sua essência; é otempo que o conhecimento persegue sempre,mas que sempre lhe escapa, que se solta e vol-ta a se apresentar adiante, desconhecido eatraente. O tempo epistemológico é o tempo doconhecimento propriamente dito, alinhado edemarcado segundo as formas do pensamentocientífico. Mas é o pesquisador quem constróie desconstrói estas demarcações de acordocom saberes, interesses e outros sentimentosligados a sua visão de mundo, e assim tambémhá um tempo do pesquisador, que é aquele si-tuado entre o tempo da realidade e o do conhe-cimento, pois está irremediavelmente ligado aambos, e que promove aproximações. É o tem-po do pesquisador que permite um exercíciometa-epidemiológico como o deste debate epode ser evidenciado no trabalho de algunsepidemiologistas como P. C. Sabroza, quandoem suas aulas e publicações (Sabroza et al.,1995, como exemplo) revela-se marcante um

SEVALHO, GIL36

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):7-36, jan-mar, 1997

sentido histórico que comporta tanto evoluçãosocial quanto biológica. Este arcabouço, a queme referi, pode permitir-nos a departamentali-zação e visualização de outros tempos ou tem-poralidades e sua análise.

O tempo, como reconheceu Barbosa emsua intervenção, é um tema fascinante. Elias(1994) afirma mesmo que, ao explorar a pro-blemática do tempo, podemos dar-nos contade revelações concernentes a nós mesmos quenão seriam compreendidas antes. Aqui, Almei-da Filho deixou firmado o ponto de vista deque “enfim, a análise da natureza do tempo nadesconstrução do discurso epidemiológico ter-

Referências

ALMEIDA-FILHO, N., 1994. Caos e causa na epide-miologia. In: Epidemiologia e Qualidade de Vida(Anais do II Congresso Brasileiro de Epidemiolo-gia) (M. F. F. L. Costa & R. P. de Sousa, orgs.) pp.117-126. Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Coop-med-Abrasco.

BURKE, P., 1991. A Escola dos Annales 1929-1989 – aRevolução Francesa da Historiografia. São Paulo:Unesp.

CASTIEL, L. D., 1994. O Buraco e o Avestruz – A Singu-laridade do Adoecer Humano. Campinas: Papirus.

CASTIEL, L. D., 1996. Moléculas, Moléstias, Metáfo-ras – O Senso dos Humores. São Paulo: Unimarco.

DOSSE, F., 1993. História do Estruturalismo – 1. OCampo do Signo, 1945/1966. São Paulo-Campi-nas: Ensaio-Unicamp.

DUMOULIN, O., 1993. Historicismo. In: Dicionáriodas Ciências Históricas (A. Burguière, org.) pp.387-388. Rio de Janeiro: Imago.

ELIAS, N., 1994. Time: an Essay. Oxford-Cambridge:Blackwell.

LE GOFF, J., 1986. Reflexões Sobre a História. Lisboa:Edições 70.

REIS, J. C., 1994. Nouvelle Histoire e Tempo Histórico.São Paulo: Ática.

REIS. J. C., 1996. Annales – A Renovação da História.Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto.

SABROZA, P. C.; KAWA, H. & CAMPOS, W. S. Q., 1995.Doenças transmissíveis: ainda um desafio. In: OsMuitos Brasis – Saúde e População na Década de80 (M. C. S. Minayo, org.) pp. 177-244. São Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco.

SEVALHO, G. Velocidade/aceleração temporal e in-fecções emergentes: epidemiologia e tempo so-cial. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, noprelo.

mina por revelar os principais pontos-cegos doparadigma dominante no campo da epidemio-logia ... .” Recentemente conversávamos, eu eLuis Castiel, quanto à necessidade da epide-miologia enfrentar uma realidade onde se ins-crevem outras pessoas, outros lugares e, princi-palmente, outros tempos.

Quero agradecer o interesse dos debatedo-res-colaboradores, meus companheiros de dis-cussão, pelo artigo e dizer que se minhas inter-pretações no que diz respeito a suas interven-ções foram corretas, ainda que, por certo, in-completas, estas são as minhas contribuições aeste debate, que, aguardo e desejo, prossiga.