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Harun Farocki y el gesto de imagen Danusa Depes Portas UFRJ y PUC-Rio [email protected] Resumen: Escribir es luchar, escribir es devenir, escribir es cartografiar. Escribir es crear, y crear es resistir para inventar nuevas formas de vida que escapan a las codificaciones del hombre, así como la producción de signos que constituyen los espacios prefabricados de la cultura contemporánea, que capturan y nos controlan todo el tiempo. La intención aquí es definir los aspectos de la técnica de composición de Harun Farocki en el dominio de su pensamiento por imágenes desde tres de sus películas: Interface (1995); Respite (2007); Transmission (2008). Farocki no es un filósofo, sino un estrategista. El parece mirar a su tiempo como una guerra incesante y opera una herramienta para entender la violencia política en las imágenes de la historia. Los escritos de Farocki como sus películas se rigen por un espíritu crítico que se ejerce sobre la producción de imágenes, sino también sobre la economía política, la Historia, los dispositivos tecnológicos. Referente al cine, el requisito es una crítica de la cultura visual en un esfuerzo para leer al vasto inventario de imágenes recurrentes en el espacio público, investigando, de modos los más diversos, el empleo de imágenes de la midia desde la tecnología y de la reflexión sobre las condiciones de su producción. Hay presupuesto en este procedimiento el intento de elaborar una arqueología y genealogía de la imagen, situándola en el marco de un sistema de conocimientos y valores que ancora las formas de poder en la sociedad, dirige la producción y el uso de tantas imágenes. El montaje, desmontaje y remontaje de las imágenes se operan de un modo que causa extrañeza a los que buscan, aunque sean conocidas: es cuando se vuelven opacas por este desplazamiento que estas imágenes por fin pueden tener sus sentidos 1

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Harun Farocki y el gesto de imagen

Danusa Depes Portas

UFRJ y PUC-Rio

[email protected]

Resumen:

Escribir es luchar, escribir es devenir, escribir es cartografiar. Escribir es crear, y

crear es resistir para inventar nuevas formas de vida que escapan a las codificaciones

del hombre, así como la producción de signos que constituyen los espacios

prefabricados de la cultura contemporánea, que capturan y nos controlan todo el tiempo.

La intención aquí es definir los aspectos de la técnica de composición de Harun

Farocki en el dominio de su pensamiento por imágenes desde tres de sus películas:

Interface (1995); Respite (2007); Transmission (2008). Farocki no es un filósofo, sino

un estrategista. El parece mirar a su tiempo como una guerra incesante y opera una

herramienta para entender la violencia política en las imágenes de la historia.

Los escritos de Farocki como sus películas se rigen por un espíritu crítico que se

ejerce sobre la producción de imágenes, sino también sobre la economía política, la

Historia, los dispositivos tecnológicos. Referente al cine, el requisito es una crítica de la

cultura visual en un esfuerzo para leer al vasto inventario de imágenes recurrentes en el

espacio público, investigando, de modos los más diversos, el empleo de imágenes de la

midia desde la tecnología y de la reflexión sobre las condiciones de su producción. Hay

presupuesto en este procedimiento el intento de elaborar una arqueología y genealogía

de la imagen, situándola en el marco de un sistema de conocimientos y valores que

ancora las formas de poder en la sociedad, dirige la producción y el uso de tantas

imágenes. El montaje, desmontaje y remontaje de las imágenes se operan de un modo

que causa extrañeza a los que buscan, aunque sean conocidas: es cuando se vuelven

opacas por este desplazamiento que estas imágenes por fin pueden tener sus sentidos

1

renovados. La escritura fílmica de Farocki es un pensar de otra manera, en la disyunción

de lo visible y lo enunciable.

Palabras clave: Régimen Escópico. Dispositivo. Imagen Dialéctica

Harun Farocki y el gesto de imagen

1. Rasgar os tempos, armar os olhos

Michel Foucault disse, certa vez, em entrevista, que escrever é lutar, resistir;

escrever é vir-a-ser; escrever é cartografar (DELEUZE, 1988, p.53). Escrever é criar, e

criar é resistir para que se invente novas formas de vida que escapam às codificações do

homem bem como as produções de signo que vão compor os espaços pré-fabricados da

cultura contemporânea, que nos sequestra e nos controla a todo instante. Só o ato de

criação pode fazê-lo. Isso não passou desapercebido a Gilles Deleuze e Felix Guattari

que, em Mil Platôs, vislumbra com precisão a secreta solidariedade entre escrita e

potência: “Escreve-se sempre para dar vida, para libertar a vida lá onde ela está

aprisionada, para traçar linhas de fuga. Para isto, é preciso que a linguagem não seja um

sistema homogêneo, mas um desequilíbrio, sempre heterogêneo”. (DELEUZE, 1996, p.82)

O intuito desse trabalho é o de definir aspectos da técnica composicional do artista

visual Harun Farocki no domínio do seu pensamento por imagem. Farocki não é um filósofo,

mas um estrategista. Ele parece ver o seu tempo como uma guerra incessante e opera uma

ferramenta para entender a violência política nas imagens da história. Tal deve-se à

função específica da imagem e o seu caráter histórico. Mostrou Deleuze (1990) que a imagem

não é algo fora da história: é um corte ele próprio móvel carregado enquanto tal de uma

tensão dinâmica. É uma carga desse gênero que via Walter Benjamin (2006) naquilo a que

chamava uma imagem dialética, que era para ele o próprio da experiência histórica.

Os escritos de Farocki como seus filmes são regidos por um espírito crítico que

se exerce sobre a produção de imagens, mas também sobre a economia política, a

História, os dispositivos tecnológicos. Relativamente ao cinema, a exigência é de uma

crítica da cultura visual num esforço de leitura de vasto inventário de imagens

recorrentes no espaço público, investigando, de modos os mais diversos, o emprego de

imagens da mídia a partir da tecnologia e a reflexão sobre as condições de sua produção.

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Há pressuposto nesse procedimento o intento de elaborar uma arqueologia e uma

genealogia da imagem, situando-a como parte integrante de um sistema de saberes e

valores que ancora formas de poder em sociedade, comanda a produção e o uso de

tantas imagens. A montagem, desmontagem e remontagem das imagens é operada de

uma maneira que cause estranhamento a quem as olhe, ainda que sejam conhecidas.

Nos modos do testamento metodológico do Atlas warburgeano Mnemosyne,

Farocki é um analista de constelações visuais. Apesar de todas as diferenças de método

e conteúdo que podem separar a pesquisa de um filósofo-historiador e a produção de um

artista visual, ficamos impactados pelo seu método heurístico comum quando baseado

em uma montagem de imagens heterogêneas. Método que não é usado nem para

estabelecer classificações definitivas, nem um inventário exaustivo, nem para catalogar

de uma vez por todas (como dicionário, arquivo ou enciclopédia), mas sim para recolher

segmentos, restos do parcelamento do mundo, respeitar sua multiplicidade. E para

outorgar legibilidade às relações postas em evidência, reconfigurar, e, assim, descobrir

novas analogias, novos trajetos de pensamento. Ao modificar a ordem, faz com que as

imagens tomem uma posição. Se aparece como um trabalho incessante de recomposição

do mundo, é, em primeiro lugar, porque o mundo mesmo sofre decomposições

constantemente. Bertold Brecht dizia, a respeito do ‘deslocamento do mundo’, que é ‘o

verdadeiro sujeito da arte’ (DIDI-HUBERMAN, 2008).

Rasgar os tempos, armar os olhos é a imagem do ato criador de Harun Farocki,

uma escritura que resiste a definições, oscilando entre poesia e reflexão, como entre

ficção e documentário. A escritura fílmica de Farocki é o modo de pensar focaulteano,

que Deleuze descreveu como devir, como qualquer coisa que se realiza no milieux, no

entre-dois, na disjunção do enunciável e do visível.

2. Pensar o mundo contemporâneo procurando a potência do seu devir-imagem

A sentença de Cézar Migliorin1 que nomeia essa seção nos inquieta e se

transforma em constante indagação. Ensaiando uma possível resposta, coloco em jogo

dois diagnósticos feitos por Giorgio Agamben sob o signo da nudez:

1 A sentença se refere à interpelação feita no contexto do Seminário Cinema Estética e Política: a resistência e os atos de criação, SOCINE 2011.

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Deleuze definiu a operação do poder como separar os homens daquilo que

podem, isto é, de sua potência. O homem é o ser vivo que, existindo sob o modo de

potência, pode tanto uma coisa como o seu contrário, a sua impotência. Hoje, nada

rende tantos pobres e tão pouco livres como este estranhamento da impotência.

Aquele que é separado da sua impotência perde em contrapartida a capacidade de

resistir. (AGAMBEN, 2011, p.63)

Em outro momento, Agamben fala da perda dos gestos, nos seguintes

termos: Uma época que perdeu seus gestos está obscecada por eles; para os homens

que tiveram sua natureza subtraída, cada gesto se converte em destino. E quanto mais

perdiam os gestos, sua desenvoltura, sob a ação de potências invisíveis, mais indecifráveis

se fazia a vida. A característica do gesto é que por meio dele não se produz nem se

atua, mas se assume e se suporta. O que o gesto mostra é o ser em linguagem do

homem como pura medialidade. (AGAMBEN, 2002, p.43)

A partir desses dois pontos, gostaria de pensar o trabalho de Harun Farocki

operando uma montagem de imagens heterogêneas nos modos do testamento

metodológico do Atlas warbougeano Mnemosyne(2009), com base nas noções de gesto e

de sobrevivência. Método que não é usado nem para estabelecer classificações, nem um

inventário, nem para catalogar, mas sim para recolher segmentos, restos do

parcelamento do mundo, respeitar sua multiplicidade. E para outorgar legibilidade às

relações postas em evidência, reconfigurar, e, assim, descobrir novas analogias, novos

trajetos de pensamento. Ao operar essa (des)montagem, Farocki faz com que as

imagens tomem uma posição.

Aby Warburg dá os primeiros passos em um tipo de busca à que uma história da

arte definiu como “ciência da imagem”, quando, a rigor, seu verdadeiro centro era o

gesto como cristal de memória histórica, convertida sua rigidez em destino. O que faz

Warbourg é transformar a imagem em um elemento histórico e dinâmico. Nesse sentido,

o Atlas Mnemosyne é uma representação em movimento virtual dos gestos da

humanidade ocidental, desde a Grécia clássica até o fascismo (como fotogramas de um

filme). Uma constelação em que os fenômenos se concertam em um gesto.

No mesmo sentido, Walter Benjamin (2006) falava em imagem dialética, essa

noção precisamente destinada a compreender de que maneira os tempos se tornam

visíveis, assim como a própria história nos aparece como um relâmpago passageiro que

convêm chamar de imagem. Esse mecanismo produtor de imagens para o pensamento

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nos mostra o modo pelo qual o outrora encontra, aí, o nosso agora para se libertarem

constelações ricas de futuro, então podemos compreender a que ponto esse encontro dos

tempos é decisivo, essa colisão de um presente ativo com seu passado reminiscente.

Deve-se sem dúvida a Benjamin essa colocação do problema do tempo histórico em

geral. Mas cabe inicialmente a Aby Warburg ter mostrado não apenas o papel

constitutivo das sobrevivências na própria dinâmica da imaginação ocidental, mas ainda

as funções políticas de que os agenciamentos memorialísticos se revelam portadores.

Deleuze (1990) mostra ainda que toda imagem está animada por uma polaridade

antagônica: de um lado é a reificação e a anulação de um gesto, por outro, conserva

intacta sua dynamis. O primeiro polo corresponde à reminiscência de que se apropria a

memória voluntária; o segundo, a imagem que surge como um relâmpago na epifania da

memória involuntária. É como se em toda a história da arte se elevasse uma muda

invocação à libertação da imagem no gesto. O cinema devolve as imagens à pátria do

gesto.

2.1. Mesa de montagem “Transmission”

Figura 1: fotograma, Transmission, 2007

Dez anos antes do filme Transmission (2007), Harun Farocki havia feito um

estudo sobre a expressividade das mãos (o gesto) na história do cinema e que também

dá nome ao filme de 1997. Nele, Farocki declara: Hoje, estamos acostumados a ver as

seções de imagem que levam nosso olhar. Sem a orientação da imagem e sem a palavra

falada, achamos difícil de compreender tudo o que está em jogo. As expressões faciais

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e gestos dos atores no filme silencioso vêm diante de nós como uma língua estrangeira

que não aprendemos.

Tempos em que não nos sentimos mais “esclarecidos”, de acordo com a ordem

das razões, nem “radiantes” segundo a ordem dos afetos. 40’41’’ de Transmission, após

registrar gestos dos homens em diversos lugares do mundo, a sequência é de uma auto-

estrada urbana em Tel Aviv, Farocki nos esclarece através de cartelas: “Uma vez por

ano se pensa nos judeus nos campos alemães que foram sequestrados e assassinados. E

pensa-se naqueles que ofereceram resistência contra os nazistas. Yom ha-Shoah, às dez

horas da manhã por dois minutos a vida cotidiana é suspensa. A pausa é um gesto

especial – o gesto do não-gesto.”

O trabalho de Farocki é essa constante interpelação sobre o quê fazer com as

imagens. E mais fortemente: qual o destino das imagens? Trabalhos como esse (FIG.1)

parecem nos responder: o destino das imagens somos nós.

2.2. Mesa de montagem “Interface”

Harun Farocki interroga o contemporâneo na medida de seus impensados, de

suas sobrevivências. A exigência é de uma crítica da cultura visual num esforço de

leitura de vasto inventário de imagens recorrentes no espaço público e no espaço de suas

próprias imagens. Há pressuposto nesse procedimento a intenção de elaborar uma

arqueologia e uma genealogia da imagem, situando-a como interface de um sistema de

saberes e valores que ancora formas de poder em sociedade, comanda a produção e o

uso de suas formas itinerantes.

Figura 2: fotograma, Interface, 1996

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A montagem, desmontagem e remontagem das imagens é operada de uma maneira que

cause estranhamento a quem as olhe, ainda que sejam conhecidas: é quando tornadas

opacas por esse deslocamento que essas imagens podem, afinal, ter seus sentidos

renovados, o que concede ao seu projeto maior potência. Por vezes a estratégia é colar-

se em jogo, como anteparo da própria imagem, e no corpo-a-corpo com o dispositivo

exibir em seu gesto a irredutibilidade a linguagem. Como é o caso de Inextinguishable

Fire (FIG.3) que é retomado, entre outros filmes, em Interface (FIG.2)

Figura 3: fotogramas, Inextinguishable Fire, 1969

Ser contemporâneo, dito de outro modo, seria dar-se os meios de ver aparecerem

luzes vagas no espaço de superexposição, feroz, demasiado luminoso, de nossa história

presente. Essa tarefa pede ao mesmo tempo coragem – virtude política – e poesia, que é

a arte de fraturar a linguagem, de quebrar as aparências, de desunir a unidade do tempo.

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2.3. Mesa de montagem “Respite”

Imagem não é horizonte. A imagem nos oferece algo próximo a lampejos, o

horizonte nos promete a grande e longínqua luz. O messianismo benjaminiano trata de

uma imagem lacunar do futuro, e não de um grande horizonte de salvação ou fim dos

tempos. A imagem se caracteriza por uma intermitência, sua fragilidade, seu intervalo de

aparições, de desaparecimentos, de reaparições e de re-desaparecimentos incessantes. A

imagem é pouca coisa: resto ou fissura. Um acidente do tempo que torna

momentaneamente visível ou legível. Enquanto o horizonte nos promete o todo,

constantemente oculto atrás de sua grande “linha” de fuga. Em Harun Farocki

descobrirmos frequentemente com encantamento, a potência oculta do menor gesto, do

menor rosto, do menor lampejo – uma política da sobrevivência. O que desparece nessa

feroz luz do poder não é senão a menor imagem ou lampejo de contrapoder. Pode-se

fazer uma genealogia do poder sem desenvolver o contratema que aí constitui a “tradição

dos oprimidos”? Para onde foram, em tal economia, esses lampejos?

Figura 4: fotograma , Respite, 2006

Farocki olha seu mundo contemporâneo com uma violência sempre apoiada em

imensas pesquisas na espessura do tempo, articulando poeticamente suas imagens do

presente a uma energia que ele extrai das sobrevivências, na arqueologia sensível dos

gestos, assim levanta impensados, nos coloca com frequência face aos retornos do

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recalcado histórico. Isso nos interessa pelo que nomeei aqui de política das

sobrevivências que vai de par com toda política das imagens e da exposição política em

geral. Isso significa, concretamente, que em sua montagem, em sua própria “rítmica”, é

obrigado a descrever os tempos e contratempos, os golpes e contragolpes, os temas e

contratemas, essa capacidade de suspensão, de transformação, de bifurcação. Farocki

nos fala da imagem operatória quando Auschwitz, o paradigma, perdeu sua própria

potência: sua potência de sintoma, de exceção, de protesto em ato. O ponto é o jogo

entre os royalties (e os direitos) e os piratas que vendem imagens da 2ª Guerra ou dos

campos de concentração. Se não foram eles que a produziram e, no entanto, estão

enriquecendo a suas custas, isso é obsceno; acentua Farocki. O fundamental,

acrescenta, é que as vítimas nos documentos são apresentadas de tal forma que sofrem

uma segunda humilhação...repetir e repetir as terríveis imagens de Bergen-Belsen...2

Em Respite (2006), Farocki opera a (des)montagem dessas imagens, ele nos apresenta a

materialidade dessas imagens. Em edição simples nos apresenta o material bruto de

arquivo documentado por Rudolf Breslauer, em 1944, no Police Transit Camp for Jew.

A própria imagem passa como um relâmpago, imagem irrecuperável do passado

que está arriscada a desaparecer como cada presente que não a reconhece. Mas essa

lembrança, embora vaga, nos é preciosa: ela faz da imagem, essa beleza fugaz, a

passante por excelência. A imagem seria, portanto, o lampejo passante que transpõe, tal

um cometa, a imobilidade de todo horizonte: “A imagem dialética é uma bola de fogo

que transpõe todo o horizonte do passado”, escreve Benjamin (2006). Nesse nosso

mundo histórico – longe, portanto, de todos os derradeiros fins e de todo Juizo Final -,

nesse mundo onde “o inimigo não para de vencer” e onde o horizonte parece ofuscado,

o primeiro operador político de protesto, de crise, de crítica ou de emancipação, deve

ser chamado imagem, no que diz respeito a algo que se revela capaz de transpor o

horizonte das construções totalitárias. Este é o sentido de uma reflexão, a meu ver

capital, esboçada por Benjamin sobre o papel das imagens como modos de “organizar”

– isto é, também, de desmontar, de analisar, de contestar – o próprio horizonte de nosso

pessimismo fundamental. Harun Farocki se faz seu contemporâneo.

A imagem aparição única, preciosa, é, apesar de tudo, muito pouca coisa, coisa

que queima, “transpõe todo o horizonte” para cair sobre nós, nos atingir. Ela acaba por

desaparecer de nossa vista e ir para um lugar onde será, talvez, percebida por outra

pessoa, em outro lugar, lá onde sua sobrevivência poderá ser observada ainda. De

2 Trecho de entrevista com Harun Farocki em www.cine-fils.com

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acordo com essa hipótese de Didi-Huberman (2009), a partir de Warburg e Benjamin, a

imagem é um operador temporal de sobrevivências – portadora, a esse título, de uma

potência política relativa a nosso passado como à nossa “atualidade integral”, logo, a

nosso futuro. O que ‘caí’ não ‘desaparece’ necessariamente, as imagens estão lá, até

mesmo para fazer reaparecer ou transparecer algum resto, vestígio ou sobrevivência –

uma aparição apesar de tudo.

A imagem dialética à qual nos convida Benjamin consiste, antes, em fazer

surgirem os momentos inestimáveis que sobrevivem, que resistem a tal organização de

valores, fazendo-a explodir em momentos de surpresa. Somos “pobres em experiência”?

Façamos dessa mesma pobreza – dessa semiescuridão – uma experiência. Não assume a

imagem, em sua própria fragilidade, em sua intermitência, a mesma potência, cada vez

que ela nos mostra sua capacidade de reaparecer, de sobreviver?

Essa proposta se refere à temporalidade impura de nossa vida histórica, que não

se compromete nem com a destruição acabada, nem com o início de redenção. E é nesse

sentido que é preciso compreender a sobrevivência das imagens, sua imanência

fundamental: nem seu nada, nem sua plenitude, nem sua origem antes de toda memória,

nem seu horizonte após toda catástrofe. Mas sua própria ressurgência, seu recurso de

desejo e de experiência no próprio vazio de nossas decisões mais imediatas, de nossa

vida cotidiana.

Essas “imagens intermitentes” podem ser vistas não somente como testemunhos,

mas também como profecias, previsões quanto à história política em devir. Moribundos,

todos nós o somos, a cada instante, somente por afrontar a condição temporal, a extrema

fragilidade de nossos “lampejos” de vida. Não se pode dizer que a experiência, seja qual

for o momento da história, tenha sido “destruída”. Ao contrário, faz-se necessário

afirmar que a experiência é indestrutível, mesmo que se encontre reduzida às

sobrevivências e às clandestinidades de simples lampejos na noite.

Essa redução, ainda que fosse extrema como nas decisões do genocídio, quase

sempre deixa restos, e os restos quase sempre se movimentam: fugir, esconder-se,

enterrar um testemunho, ir para outro lugar, encontrar a tangente. Todas são atos

políticos fundados sobre a sobrevivência dos signos ou das imagens, quando a

sobrevivência dos próprios protagonistas se encontra comprometida. Essa força se

compromete como diz ainda Maurice Blanchot (2009), com ‘o ponto de partida de uma

reivindicação comum’ fundada sobre o ato de ‘dar o direito a palavra’ à experiência dos

povos nas formas de uma transmissão.

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Respite é um filme sobre a precisão do espírito, sobre a exatidão do corte e sobre

o mistério da imagem como resíduo da vida. Sobre a montagem como encontro com a

vida e sua ruptura e reafirmação pelo que se ausenta. Essa vontade de história

construída sobre ela mesma e tonificada como interrupção e política dos detalhes. A

busca do tempo como carne do cinema.

3. Variar as relações entre os vários pontos cintilantes de uma vida (ou do mundo)

O momento contemporâneo insiste em que os fragmentos da memória sejam

emancipados para que possam se deslocar entre contextos diferenciados potencializando

sentidos e visibilidades singulares. É importante toda vez arrancar dos dispositivos a

possibilidade de uso que os mesmos capturam. É preciso desconfiar tanto das imagens

quanto das palavras. Imagens e palavras são tecidas nos discursos, formando redes de

significação. Meu caminho é ir à procura de um sentido camuflado, limpar os

escombros que obstruem as imagens; diz Farocki.3 Se Harun Farocki recorre tantas

vezes (e repetidas vezes) às sequências, montado séries cuja sutura do movimento e do

afeto engendra uma perspectiva analítica (e não mimética), é para mostrar pelas

imagens registradas por Rudolf Breslauer que, embora o tempo e a experiência nunca

deixem de jogar juntos, eles não pertencem ao mesmo mundo. O tempo pode muito bem

trazer mudanças, o envelhecimento, a morte, mas o pensamento-emoção é mais forte;

ele, somente ele, pode mostrar suas rugas invisíveis.

Nalgum lugar na brecha aberta entre memória e desejo. Seria ainda preciso que a

memória fosse “uma força e não um fardo”. Seria ainda preciso reconhecer a essencial

vitalidade das sobrevivências e da memória em geral quando ela encontra as formas

justas de sua transmissão. Nos sinais enviados por intermitências, sua essencial

liberdade de movimento, sua faculdade de fazer aparecer o desejo como o indestrutível

por excelência.

Devemos, portanto, – na brecha aberta entre o passado e presente – nos tornar ( a

imagem singela de Pasolini) vaga-lumes e, desse modo, formar novamente uma

comunidade do desejo, uma comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de

tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se

contentar em descrever o não das luzes que nos ofusca. O que aparece nesses corpos em

3 Outro trecho da entrevista com Harun Farocki em www.cine-fils.com

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fuga não é mais do que a obstinação de um projeto, o caráter indestrutível de um desejo,

sua alegria fundamental – sua alegria apesar de tudo.

Bibliografía:

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