fidel castro - uma biografia consentida- furiati

1106
Claudia Furiati Editora Revan UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA TOMO I - DO MENINO AO GUERRILHEIRO

Upload: anaogigante

Post on 28-Jun-2015

1.271 views

Category:

Documents


35 download

TRANSCRIPT

Claudia Furiati

UMA BIOGRAFIA CONSENTIDATOMO I - DO MENINO AO GUERRILHEIROEditora Revan

Claudia Furiati

1 Edio

Editora Revan

Copyright 2001 by Claudia Furiati

Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida, seja por meios mecnicos, eletrnicos ou via cpia xerogrfica, sem a autorizao prvia da Editora.

Coordenao Geral

Nei SroulevichProjeto Grfico e Capas

Fernando PimentaReviso

Heloiza GomesDiagramao e Editorao

Domingos SvioFotos e Ilustraes Grficas

Todas as fotos e ilustraes grficas da presente edio foram gentilmente cedidas pela Oficina de Assuntos Histricos do Conselho de Estado da Repblica de Cuba, incluindo as dos fotgrafos cubanos Alberto Korda, Librio Noval, Ral Corrales e Osvaldo Salas; pelo jornal Juventud Rebelde, de Havana; pela Agncia Noticiosa Prensa Latina (PL); e pelos fotgrafos brasileiros: Magno Mesquita, Evandro Teixeira/AJB, Wilson Dias/Radiobrs, Luiz Antonio/ Agncia O Globo, Acervo-AE; e divulgao do Palcio da Liberdade.Fotolitos

Imagem & Texto Ltda.

CIP-Brasil, Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Furiati, Claudia, 1954 - Fidel Castro, Uma Biografia Consentida / Biografia I Tomo: Do Menino ao Guerrilheiro - 576p. II Tomo: Do Subversivo ao Estadista - 480p. ISBN

Esta no ser uma biografia autorizada, muito menos oficial. Trata-se de uma biografia consentida. Somente a lerei aps sua publicao. Reservo-me o direito de dela discordar, se achar conveniente.(Declarao do Comandante Jess Montan autora, em nome de Fidel Castro) Havana, setembro de 1997

In memoriam

A Jess Montan Oropesa e Manuel Pieiro Losada, chaves de realizao desta obra que no puderam ver concluda.

SumrioT O M OPREFCIO

I

O destino do homem transformar o mundo ......................... 13 Roberto Amaral 27

PRLOGO .......................................................................................

P A R T ECAPTULO 1 CAPTULO 2 CAPTULO 3 CAPTULO 4

I

Dentes AfiadosDon Angel, um gallego criollo .......... Sob as rdeas de Lina ......................... Titn Fidel ........................................ Garoto bamba de colarinho bordado .............................. 37 47 53 69

P A R T ECAPTULO 5 CAPTULO 6 CAPTULO 7 CAPTULO 8

I I

Bola na Cesta e TrampolimNamoro e reviravoltas ........................ 85 Mensagem a Mister Roosevelt .......... 99 Bate-papo com quem pega no batente .................................. 113 Do pdio tribuna ............................ 121

P A R T ECAPTULO 9

I I I

Pistolas & ComplsO Quixote cubano frente aos bandidos ..................................... 139 Nas guas de um tubaro ................. 153 Tufo em Bogot .............................. 169

CAPTULO 10 CAPTULO 11

CAPTULO 12 CAPTULO 13

Cara ou coroa? .................................. 187 Doutor em leis, pai de famlia e candidato ................ 199 O golpe do sun-sun........................... 215

CAPTULO 14

P A R T E

I V

Esconderijos & EmboscadasPouco dinheiro e muito segredo ...... 233 Questo de surpresa ......................... 245 A providncia dos tenentes .............. 261 Mergulho no branco ......................... 279 Anistia para um duelo ...................... 301 Mxico, Texas & New York ............ 317 Antes s, que mal acompanhado ..... 337 Jogos de xadrez ................................ 351 Maratona para um naufrgio ........... 369 Estria de guerrilha .......................... 389 Dois comandantes valem quatro ...... 415 A unidade dos americanos ............... 441 Miragens da plancie ........................ 449 Operao FF (Fim de Fidel) ............ 467 Tarde demais para caar o urso ....... 481 Militares, para qu?.......................... 495 Frentes de Guerra ............................. 507 Cronologia da guerrilha ................... 517 539

CAPTULO 15 CAPTULO 16 CAPTULO 17 CAPTULO 18 CAPTULO 19 CAPTULO 20 CAPTULO 21 CAPTULO 22 CAPTULO 23 CAPTULO 24 CAPTULO 25 CAPTULO 26 CAPTULO 27 CAPTULO 28 CAPTULO 29 CAPTULO 30

ANEXO I ANEXO II

NOTAS ..........................................................................................

NDICE NO FINAL DO TOMO II

Agradecimentos

P

reservo em mim todos os gestos e os rostos dos que me acompanharam em Cuba, Estados Unidos, Brasil e outros lugares, nessa extensa jornada, torcendo pelo seu placar seguro. Muito especialmente: Nei Sroulevich, amor e cmplice na produo deste livro, do incio ao fim; Helena e Daniel, meus filhos, que com sua generosidade e inteligncia guiaram-me nas horas difceis e compreenderam que o silncio ou a distncia eram um modo de me ter por perto; Marilia, minha me, meu irmo Luis e a fortuita lembrana de meu pai Ilmar em dias e noites de concentrao e trabalho; Demais personagens de meu convvio: Ilka, Tha, Maria e Antnio, o real dono da casa. E Iupi, meiga cocker spaniel que estabeleceu um posto ao lado do computador; Lus Henrique Arajo, meu entusiasmado ajudante de pesquisas em Cuba; Paulo Nazareth, advogado e homem de Letras, que se debruou sobre os originais da biografia com a profundidade dos sbios; Beatriz Damasceno, uma leitora diligente e certeira. Adriana Mendona, meu tranqilo socorro nos acidentes da informtica. Aninha e Marcos, a singela tropa do escritrio; Oscar Niemeyer, Roberto Amaral, Alcione Arajo, Eric Nepomuceno, Marcello Cerqueira e Milton Coelho da Graa, mentes que dissecaram com sinceridade e brilho o meu manuscrito;11

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

Frederico Duque Estrada Meyer, perfeito diplomata, feito irmo, durante sua gesto na embaixada brasileira em Havana. Jos Aparecido de Oliveira e Jos Nogueira, embaixadores da cultura; Ignacio Dominguez Chambombiant, o Chino, leal escudeiro durante os meus anos de residncia em Cuba; Emlio Aragons e Tona, Manuel Rodrguez, Mercy Espern, Lzaro Mora, Mara Elena Mora, Marta Harnecker, Camila Pieiro, Arnol Rodrguez e Antonio (Tony) Martnez, doces companheiros de minha vida estrangeira; Luis Bez, Benigno Iglesias, Jos Tabares del Real e Jorge Risquet, firmes aliados e conselheiros na tormenta da investigao; Pedro lvarez Tabo, funcionrios da Oficina de Assuntos Histricos do Conselho de Estado da Repblica de Cuba e a sua supervisora, inesquecvel amiga, Elza Montero Maldonado, os guardies da histria de Fidel; Hilda e Gemma, as competentes cubanas que digitaram milhares de pginas da coleta de informaes; Max Lesnick e sua esposa Miriam, que me acolheram com o carinho maior e conduziram-me por trilhas de Miami a enriquecer esta biografia; Ramn Snchez Parodi e Jorge Lezcano Perez, os embaixadores incansveis do projeto. Jos Arbes, Armando Campos, Sergio Cervantes, Nora Quintana e Jorge Ferrera, do Departamento Amrica do CC do PCC; Adhemar Reis, o torcedor maior desse time; Lcia Riff, a agente destemida a conduzir esta obra por outros mares; Fernando Pimenta, o mago das linhas e figuras; Renato Guimares, meu caro e eterno editor; Alfredo Guevara, Faure Chomn, Alfredo Chino Esquivel, Felipe Prez Roque, Carlos Valenciaga, Rogelio Polanco, Tania Fraga Castro, Vilma Espn, Ral, Ramn e Fidel Castro, todos os testemunhos e personagens desta obra, a quem espero haver correspondido com honestidade.C.F.12

PrefcioO destino do homem transformar o mundoRoberto AmaralOs homens fazem sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. Karl Marx O 18 brumrio de Lus Bonaparte

No tenhamos dvida de que sempre existir espao para o exerccio da vontade poltica, quando esta se manifeste com vigor adequado. Celso Furtado O capitalismo global

D

e um lado, uma personalidade extraordinria, voluntarista; de outro, a necessidade histrica exigindo transformaes sociais. De um lado, o mpeto do lder; de outro, as condies objetivas, desfavorveis. De um lado, o homem e suas circunstncias; de outro, seu papel de agente, indmito. Entre um condicionante e outro, o acaso. Como resultado, o acidente13

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

histrico de uma revoluo impossvel, fazendo-se real onde no devia e quando no podia. A sobrevivncia de um fenmeno poltico sem a audincia das leis da histria, eis a crnica deste livro extraordinrio. Dificilmente, outra biografia colocaria de forma to clara e ao mesmo tempo to imperiosa a reflexo sobre o papel do indivduo na histria. E muito raramente um lder ter sido to sujeito da histria, arteso dos fatos, cinzelando as circunstncias. evidente que a ao humana est presa a condies objetivas presentes e herdadas do passado a revoluo socialista no poderia ser construda sobre os escombros da Bastilha; Bismarck, lembra Plkanov, fosse qual fosse seu papel na histria, jamais conseguiria retornar a Alemanha economia natural mas o homem livre para agir: podendo optar, faz-se no mundo, mudando o mundo, inventando-se e inventando o mundo com sua existncia. Com estas linhas queremos sublinhar o papel das circunstncias construindo o indivduo, e interferindo no andamento dos fatos, e de certa forma moldando seu papel de agente. No caso do biografado, porm, trata-se de uma relao dialtica: conhecendo as circunstncias que modificam/condicionam sua existncia, Fidel forcejou sempre por alter-las, por utilizar-se delas, e com elas construir o processo histrico. Rompeu com todas as fronteiras onde o quiseram deter, para tornar-se uma legenda e um smbolo e, finalmente, um mito, o ltimo mito do nosso tempo, desafiando tudo, inclusive a dbcle do socialismo real, a autodissoluo da Unio Sovitica e o fim da guerra fria com a estrepitosa vitria, vitria poltica, ideolgica, econmica e militar dos Estados Unidos da Amrica. O livro que vamos ler nas pginas seguintes, para alm da biografia de Fidel Castro, a revelao de mais de meio sculo da histria de nosso Continente; para alm da histria recente de Cuba, a histria da luta dos povos subdesenvolvidos, a histria dos humilhados e ofendidos da Terra lutando por dignidade.14

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO PREFCIO Roberto Amaral

a histria do Terceiro Mundo. a histria no contada da descolonizao da frica. a histria da opresso e da liberdade. A histria de muitos erros pessoais e coletivos, de muitos acertos e de muitas dvidas, vez que o passado conhecido ainda no pode anunciar o futuro. a histria de um projeto poltico e das biografias que o conduzem se esbatendo contra os limites das circunstncias. No h ainda distanciamento histrico para o julgamento de Fidel Castro, nem este o objetivo de Furiati, que, mergulhando na histria pessoal do lder cubano, e a partir dela, recompe com esmero, com cuidado, com ateno, como quem esculpe, como quem desenha, como quem borda, a saga de quase um sculo de Amrica Latina. Os dados so postos vista do leitor, quase crus, limpos, livres de valorao. Caber a cada um concert-los e, arrumando-os, construir sua prpria interpretao da nica revoluo social conhecida pelo Continente. No recm-findo sculo XX, a Amrica Latina, uma poro da tragdia ocidental, conheceu a fome, a pobreza, o atraso, teve esperana e sonhou com riqueza e igualdade social, e padeceu sob a opresso da sociedade de classes. Aqui reinaram algumas das piores ditaduras de todo o sculo, todas elas implantadas e sustentadas pelo grande irmo do Norte. Os Trujillo na pequena Repblica Dominicana e, na mesma ilha, no Haiti, a ditadura Duvalier. Os Somoza na Nicargua. Em toda a Amrica Central e Caribe, depois da depredao colonial espanhola, as intervenes dos marines e os governos tteres da United Fruit Company. A longa ditadura Gomez na Venezuela. Na Colmbia, por todo o sculo e at hoje, uma sucesso de ditaduras e governos autoritrios e conservadores e a guerra civil permanente. Stroessner no Paraguai. O peronismo e as ditaduras militares na Argentina, a ditadura militar no Chile, o varguismo e a ditadura militar no Brasil, a ditadura militar no Uruguai. De comum, a preeminncia dos interesses norte-americanos, a estagnao econmica, a sucesso de golpes de Estado sempre a servio das foras con15

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

servadoras , e, repetio impossvel de evitar, as intervenes militares norte-americanas. Tudo fazia crer que estvamos condenados desesperana. Atrasados, dependentes, sem autonomia histrica, sem soberania, nosso destino parecia estar definido como o de coadjuvantes, figurantes numa histria em cujo roteiro no nos cabia dar palpite. Foi neste Continente e foi neste tempo que a aventura voluntarista de uns poucos jovens, atuando em um dos pases mais pobres do mundo, dos menores do Continente, numa ilha de camponeses, sem indstria, sem recursos naturais, comeou a mudar a histria, a apenas 150 quilmetros do mais poderoso pas capitalista do planeta, seu inimigo luciferino. Cuba, depois da ocupao direta norte-americana iniciada nos fins do sculo XIX, comea a ser administrada por governos tteres ou subalternos aos interesses dos Estados Unidos, todos conservadores e autoritrios. Destacam-se, na represso, a ditadura de Gerardo Machado, e a longa ditadura Batista, de 1934 at 1944, e, finalmente, de 1952 at sua queda em 1958. E que Cuba era esta que os jovens da Sierra Maestra iriam revolver? Uma cloaca. Pobre e prostituda, entreposto da mfia e do contrabando, balnerio para repouso de gangsters aposentados, exlio de ditadores latino-americanos em recesso, condomnio de cassinos para lavagem de dinheiro, zona livre onde a CIA e os servios de inteligncia tinham quartel para a arquitetura de seus golpes contra as democracias sobreviventes e os movimentos de libertao nacional. Um pas sem futuro, sem amanh, sem porvir, sem o direito de querer, mngua de orgulho. Um povo sem esperana. Nessa Cuba, a expectativa de progresso da mulher camponesa, da filha do trabalhador, da menina de classe mdia era a prostituio, o grande atrativo do balnerio, respeitada fonte de receita, mantida a economia na monocultura da cana. Scia no gozo, uma pequena elite militares, grandes latifundirios, executivos das companhias norte-americanas, o grande comrcio ,16

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO PREFCIO Roberto Amaral

sustentada por uma ditadura que jamais conheceu os limites da perversidade. Solta em meio ao mar do Caribe premonio do isolamento? Cuba, 114.524 km 2, uma ilha sem significao econmica em 1958. Economia predominantemente agrria (acar, tabaco e frutas), receita dependente da exportao do acar, sem indstria (registre-se a manufatura de charutos, mais do que tudo um artesanato e poucos estabelecimentos txteis), sem proletariado organizado, pequena burguesia alienada aos interesses forneos, sem vida sindical importante, sem movimento social organizado, a resistncia ditadura, urbana, tinha como base, ver o leitor, o movimento estudantil, a Universidade de Havana, a complexa Federao dos Estudantes Universitrios. No Continente, a crise social j explodira por sucessivas vezes nos pases mais avanados e industrializados, no Brasil (1922, 24-25, 30, 35, 37), na Argentina, na Venezuela e na Colmbia. Superada a II Guerra Mundial, e estabelecido o novo Tratado de Tordesilhas, coubera-nos, ao Continente, a condio de protetorado norte-americano. E aqui, sem o progresso, se instalou a paz. Enquanto a crise rondava a Europa, a sia convulsionada, o Oriente Mdio prestes a explodir, a frica conhecendo os primeiros movimentos de libertao nacional e descolonizao, a Amrica Latina era a calmaria, a pasmaceira, a tranqilidade. Aqui, no se conheciam projetos revolucionrios, e as democracias consentidas conviviam com as ditaduras autorizadas. No Brasil vivamos os anos de ouro de JK, a crena de que a industrializao seria possvel (e com ela a superao de todos os nossos problemas) e de que o subdesenvolvimento no era um determinismo. Aqui ento se pensava que a democracia poderia gestar a reforma social. Foi nesse tempo, no rveillon de 1958 para 1959, que o mundo foi despertado para o anncio da queda de Batista. Sim, de princpio era apenas isso: uma revoluo democrtico-burguesa. Um levante popular, uma guerrilha que contara com17

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

simpatias dos democratas de todo o Continente, mesmo nos Estados Unidos, derrubara uma das mais abjetas ditaduras do mundo, sanguinria e corrupta, servial a todos os mandantes e opressora do povo cubano, e instalara um novo regime, comprometido com a realizao de eleies gerais em 18 meses, o reordenamento constitucional e a reorganizao dos partidos. Do outro lado do mundo os vietnamitas anunciando o que viria a ser a mais dramtica guerra de libertao nacional de todos os tempos resistiam ao domnio francs. Desde 1954 que o povo argelino estava em guerra contra a dominao francesa. Nasser, que j retomara o Canal de Suez do controle ingls, estava associado a Nehru, Sukarno e Tito no movimento dos no-alinhados, no intento de construir uma alternativa margem das grandes potncias que comandavam a guerra fria. Os hngaros j se haviam levantado contra o regime de Kadar e j haviam sido calados pelas tropas do Pacto de Varsvia. A tessitura da realidade, a construo dos fatos, a arrumao da histria, a objetivao do sonho, o leitor vai encontrar na narrao de Furiati, como o relato digno de um partcipe, porque ela tem absoluto controle dos fatos que conta, expe, descreve, documenta. A histria comea muito cedo. Comea no final do sculo XIX, quando, em dezembro de 1899, o jovem Angel Castro, retornando da Espanha, desembarca em Havana e vai trabalhar nas minas de Oriente, para conhecer Lina, com ela se casar, para que pudessem nascer Angelita, Ramn e Fidel, Ral, Juana, Emma, Agustina. O conto comea em 1926 ou 1927, com o nascimento de Fidel Castro e, acompanhando a vida de Fidel Castro, menino livre numa fazenda de Birn, no interior de Cuba, jovem rebelde em Havana, prisioneiro poltico, conspirador no exlio mexicano, lder guerrilheiro em Sierra Maestra e estadista contestador, Furiati descreve, vis--vis, a construo da personalidade de um revolucionrio exemplarssimo e a arquitetura de uma revoluo impossvel, passo a passo, pea por pea, num artesanato histrico, numa recomposio de fatos e eventos, na18

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO PREFCIO Roberto Amaral

montagem e desmontagem de quebra-cabeas que se transformam iluminando uma histria que nos interessa a todos, pois diz respeito a ns todos, latino-americanos. Embora seja a biografia de Fidel Castro, o leitor tem diante de seus olhos a histria de Cuba, que, contextualizada, a histria recente da Amrica Latina. Contando-a, Furiati conta a nossa histria, a histria de nossos povos e de nossos pases, uma longa histria de submisso e revolta, de pobreza e luta pelo progresso, de subordinao e luta pela soberania. Com a exceo da revoluo de 1917, nenhum outro movimento influenciou tanto o mundo, e principalmente nosso Continente, quanto a revoluo cubana e nenhum lder exerceu tanto fascnio sobre as multides de jovens esperanosos quanto Fidel. Nenhum lder permaneceu no pdio por tanto tempo, e no conheo outra identificao to profunda, to ntima entre o lder e sua gente, entre a histria do lder e a histria de seu pas. Como sabido, do ponto de vista da teoria marxista clssica, era impossvel uma revoluo socialista em Cuba. E no entanto ela se deu. Do ponto de vista da poltica e da geopoltica, da estratgia militar, da correlao internacional de foras, era impossvel sua sobrevivncia em face do bloqueio poltico-econmico e militar imposto pelos Estados Unidos e seus aliados; no entanto, ela sobreviveu. J l se vo 42 anos! No havia qualquer sorte de dvida de que o regime cubano cairia, como castelo de cartas de baralho, ou como peas de domin, na sucesso das quedas dos regimes do socialismo real do Leste europeu, na seqncia da desconstituio da Unio Sovitica. E no entanto, o regime de Castro sobreviveu. J l se vo 12 anos da queda do muro de Berlim. Se o desenvolvimento das foras produtivas materiais no suficiente para desencadear, por si s, a contradio insolvel com as relaes de produo vigentes, mostra a histria das grandes naes industrializadas, a revoluo cubana veio demonstrar a possibilidade da irrupo social em formaes19

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

polticas mais atrasadas, em sociedades autoritrias, em regimes de exceo com parca densidade industrial. Fidel Castro parece haver compreendido, com seu voluntarismo, mas tambm com sua obsesso revolucionria, com sua fidelidade aos objetivos traados sem considerao s leis da histria, que, se o socialismo uma possibilidade, talvez at favorecida pela histria, no uma conseqncia inelutvel. No sendo uma ddiva, mas uma mera possibilidade, uma escolha poltica, que precisava ser buscada. Caber histria que a posteridade escrever a explicao cientfica da revoluo cubana e do papel nela exercido pelo seu lder. Caber histria explicar sua sobrevivncia impossvel. No esse o objetivo de Furiati. Mas sem este livro essa compreenso dificilmente seria alcanada. A biografia consentida de Fidel Castro e s uma biografia assim consentida e assim informada, e assim documentada poderia ser to reveladora, reveladora do papel do homem no desencadear dos fatos, das circunstncias na moldagem do heri tambm a histria consentida da Cuba revolucionria, em seus dramas, em suas vitrias e em seus malogros, em sua comovente luta pela sobrevivncia, em seu esforo por superar a realidade objetiva que tantas vezes a condenou ao fracasso. Dessas pginas saltaro revelaes as mais notveis. Louve-se a coragem das autoridades cubanas franqueando autora o acesso a seus arquivos; louve-se a coragem da bigrafa, louve-se sua persistncia, louve-se sua tenacidade. Paralelamente histria de Fidel, o leitor conhecer a luta de libertao nacional de todos os povos subdesenvolvidos a partir de 1960, e conhecer a participao direta de Cuba, particularmente sua ajuda aos povos de Angola (em 10 anos passaram por esse pas mais de 200 mil combatentes cubanos) e da Arglia; conhecer tambm o fracassado projeto de exportar a revoluo para a Repblica Dominicana, o Laos, Venezuela, Congo, Tanznia e, finalmente, a Bolvia. O fracasso da OLAS (Organizao Latino-Americana de Solidariedade), e suas implicaes20

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO PREFCIO Roberto Amaral

na histria da resistncia armada ditadura brasileira. Conhecer o fracasso da revoluo tricontinental (sia, frica e Amrica Latina). Conhecer por outros olhos a crise dos msseis, e como o povo cubano foi utilizado pela Unio Sovitica num jogo de barganha com os Estados Unidos. Por estas pginas desfilaro, entre outros, Manuel Pieiro, Ral Castro, Alfredo Guevara, ico Lopez, Armand Hart, Camilo Cienfuegos, Risquet e Ernesto Che Guevara, que Fidel vai conhecer no Mxico, quando se preparava para a guerrilha. Ao contrrio de Fidel revolucionrio nacionalista cubano, que via o mundo a partir de Cuba , Che no conhecia limitaes de fronteiras, nem de pases, nem de povos. Ao contrrio de Che, Fidel era um patriota stricto sensu. Todos os seus atos, todos os seus gestos, seus projetos quase diria seu pensamento tambm esto voltados para Cuba e seu destino. Che era um internacionalista, sua ptria era o Terceiro Mundo. Quando decide juntar-se ao grupo de revolucionrios cubanos exilados, nos preparativos para a futura odissia da Sierra Maestra, Che exigiu de Fidel, nos conta Furiati, que jamais o limitasse e que futuras razes de Estado no o impedissem de rumar para a luta em qualquer pas latino-americano. Em comum, tinham a viso quase romntica, visionria, idealista e nada leninista da revoluo: uma procura obsessiva que no considera condies objetivas. Como se o leitmotiv fosse a aventura indmita, o prazer de desafiar o impossvel, a necessidade de testar-se, provar-se, superar-se, vencer. No est no plano da cincia poltica a explicao da sada de Che de Cuba, de seus projetos insurrecionais na frica e, finalmente, de seu fracasso solitrio e triste, compungente, na Bolvia. De suas memrias, Furiati recupera este texto revelador: Via como duvidosa a possibilidade da vitria [da revoluo cubana], mas envolvia-me com o comandante rebelde, ao qual me ligava, desde o princpio, um lao de simpatia e aventura e a compreenso de que valeria a pena morrer em uma praia estrangeira por um ideal to puro.21

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

Montado no Rocinante que as circunstncias lhe permitiram, frente de pequeno exrcito de desvairados, vestido apenas na armadura de uma paixo desenfreada por sua Dulcina, Fidel um Quixote moderno, o cavaleiro da triste figura, aplogo da alma ocidental que deu certo, derrotando no Moinhos de Vento, mas drages verdadeiros, os quais, porm, vencidos, renascem para a luta, e o lder cubano, tanto quanto o heri cervantino, no conhece a paz, mas sua Dulcina permanece preservada. No economizou sonhos, dores e meios. Seu fiel escudeiro, porm, mesmo sem seu Rocinante, mesmo sem exrcito, aventurou-se na faanha alucinada/desesperada de libertar no uma, mas todas as Dulcinias, e morreu, vencido pelo Moinho da empreitada solitria, sem duelo, sem as honras que devem ser reservadas a todos os cavaleiros andantes. Puro, de uma pureza quase ingnua, deixou saudade e saiu de cena admirado pelo que no conseguiu fazer. Sua imagem cone de amigos e adversrios, multiplicada pelo sistema que no conseguiu abalar. Se Claudia Furiati me permitisse eu diria que este livro so cinco. No primeiro, conta a histria da vida rural em Cuba, contando a histria do menino rebelde que ainda no sabe o destino que a histria lhe reservou, correndo livre, camisa aberta ao peito; a descoberta da vida, a vida livre, o menino cavaleiro, os campos vencidos pelo potro Careto, jogador de basquete e beisebol, nadador, pugilista, atleta; a recomposio da vida familiar, as primeiras letras, a primeira sada de casa, at os estudos no colgio dos jesutas, em Santiago, onde se condenava a fraqueza e o deslize, preservava-se a iniciativa e o exemplo. Como pano de fundo, a grande depresso, a ditadura Machado, a revoluo dos sargentos e a primeira e longa ditadura de Batista. J ento, ainda menino, estabelecer que algo era impossvel era a melhor maneira de estimul-lo em sua perseguio. Em setembro de 1945, Fidel galga pela primeira vez as escadarias da Universidade de Havana e comea sua politizao, que vai concluir, mais tarde, no embate real e nas leituras inten22

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO PREFCIO Roberto Amaral

sivas que a priso lhe permite. o segundo livro. Compreende a construo do lder estudantil, e mais tarde do lder popular, a luta legal contra a segunda ditadura Batista, a tentativa de internar-se na Repblica Dominicana, para derrubar Trujillo, sua participao no Bogotazo de 1948, a formatura em Direito, o primeiro casamento, a lua-de-mel nos Estados Unidos e a compra de O capital em Nova York, a pequena banca de advogado, o fracassado ataque ao Quartel Moncada, a queda, a priso, o julgamento, a autodefesa e o famoso discurso A Histria me absolver, a vida na cadeia, a insacivel fome de leitura, os estudos dos clssicos marxistas, a Anistia, os breves dias de liberdade em Havana e a partida para o Mxico. J ento um intelectual marxista. O terceiro livro eu chamaria de Mxico e a preparao do heri. A dura vida do exlio e a cuidadosa, minuciosa montagem da revoluo, os pequenos sucessos e os pequenos fracassos, os avanos e os recuos, at o embarque, numa noite de chuva, no velho Granma, iate aposentado, alquebrado aps um ciclone que o deixara submerso. A misso quase impossvel tornara-se questo de honra; era a pura f na via armada, a crena de que o embate seria o motor que conduziria a luta de massas ao seu grau mais elaborado. O fato objetivo da resistncia armada faria explodir no campo e nas cidades, por todo o pas, o apoio popular. Na noite de 25 de novembro de 1956, nesse iate em que mal cabiam 25 pessoas, embarcam 82 rebeldes, armas, munies e mantimentos. So apenas 12 os que chegam a Sierra Maestra, para comear a histria. O quarto livro essa histria, a histria de Sierra Maestra at a queda de Batista e a tomada do poder. Conto, memria, anais, dirio, crnica, a histria contada de dois anos de luta revolucionria. Uma revoluo perdida desde o incio que no entanto conheceu a vitria. Sem perder a viso macro, as interrelaes do processo social que fermentava a revoluo, as articulaes internacionais, Furiati nos conta a saga de Sierra23

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

Maestra passo a passo, operao por operao, revelando como o ato isolado dos primeiros rebeldes se transforma num processo revolucionrio que termina contagiando toda a sociedade cubana. Em 24 de maio de 1958, havia 280 rebeldes lutando contra 10 mil soldados do exrcito em 14 batalhes de infantaria e sete companhias independentes e mais as tropas areas e navais. No rveillon desse mesmo ano as tropas rebeldes tomam Havana. Em nenhum momento merece registro o papel do partido poltico como organizao revolucionria. Porque no havia partidos revolucionrios em Cuba. Os partidos tradicionais, na oposio, liberais todos eles, no se constituem em instrumento de organizao da sociedade. Mesmo o partido comunista cubano (Partido Socialista Popular), que chegara a apoiar Batista em 1940, infenso a qualquer ruptura com a institucionalidade. No h partido, nem comunista, nem socialista, no h organizao leninista articulando os rebeldes nem no exlio no Mxico, nem na ao revolucionria a partir de Sierra Maestra. No com os partidos que os rebeldes vitoriosos vo governar. Fidel, primeiroministro, vai dialogar diretamente com as massas, sem mediao. Partido poltico s aparece mesmo em cena a partir de 1965, quando Fidel adota o modelo sovitico do partido nico e organiza, para com ele governar, seu Partido Comunista Cubano. Finalmente, ao quinto volume eu daria o ttulo de Poder. A partir de 1959 (tomo II) esta biografia se transforma na histria da revoluo cubana, no do ato da tomada do palcio presidencial e da instalao do governo provisrio, mas de seu sempre difcil e caro exerccio, sua construo, sua preservao, sua sobrevivncia. Fundem-se Fidel e Cuba, biografia e histria. Certamente se surpreender o leitor, por no conseguir, a partir da, distinguir os dois destinos, tanto esto imbricadas a vida de Fidel e a histria da Ilha. Muitas vezes se chocar com a confuso entre Fidel e o poder, entre Fidel e as instituies cubanas, entre Fidel e o Partido Comunista, como se tudo fosse uma s e nica coisa: o grande lder, onipresente e onipotente, exercendo24

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO PREFCIO Roberto Amaral

um poder pessoal, para alm dos limites das instituies e do Estado. O lder que no s dirigiu, mas acima de tudo construiu a revoluo, construir o regime, construir o Estado, presidir a histria de Cuba, de forma pessoal, personalssima, ensinando que o papel do homem na histria muito maior do que poderia supor nossa v filosofia, mas sem conseguir fugir daquilo que parece ser o destino, a saga e a maldio de todas as revolues, Moloc insacivel: devorar-se a si mesma, devorando suas entranhas e delas renascendo todo dia, crise aps crise. A revoluo e suas circunstncias. Despedindo-se do jovem estudante, que se encaminhava para a Universidade, em 1945, seu orientador no colgio dos Jesutas, em Santiago, padre Armando Llorente, antecipou-lhe uma vida brilhante: Fidel tem madeira e no faltar o artista. No sabia ele, porm, que Fidel seria seu prprio escultor.Rio de Janeiro, novembro de 2001 R.A.

25

Prlogo

A

pesar de outros prognsticos, escrever sobre Fidel Castro no seria um mar de rosas. Foi um furaco devastador, que no via ntido quando me dispus a ir at o fim naquela ilha do Caribe. Aventurar-me nessa densa biografia, em primeiro lugar, seria o fruto do aprofundamento, durante muitos anos, da minha relao com Cuba e Fidel, cuja seqncia de momentos cruciais passo a narrar, na ordem que me fala a lembrana. Noite de festa nos sales do Laguito, uma pequena vila de manses, ocultas por jardins de macias rvores nos arredores de Havana, em volta de um viveiro, onde tambm se situa a fbrica dos charutos Cohiba. No saguo de entrada, o aglomerado que se formava apresentao dos convites provocava um incmodo, no obstante os folgados espaos e o tmido burburinho. Vi-me, como de hbito, perdida, embora cruzasse com algumas pessoas queridas, outras que apreciava e desconhecia, de um lado e outro de duas grandes mesas em perpendicular que dispunham o buf. No havia tantos comensais a ancor-las, imagem das recepes dos anos 80. O atendimento era discreto, numa seleta reunio, em 1993. O pas suportava, com uma nvoa nos semblantes, a fatalidade de uma crise. Fidel ainda no estava. Tampouco se sabia se viria, diziam os mancomunados do ritual do Comandante. Passou algum tempo e sbito disparava a notcia de que ele acabara de entrar por uma porta lateral. De fato, vi, mais ao fundo do salo, for27

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

mar-se um cerco, com a cabea de Fidel, com seu inseparvel bon, despontando de leve sobre as pessoas que lhe pediam aquela espcie de bno protocolar. Aproximei-me devagar, em dvida de se teria alguma oportunidade de cumpriment-lo, e adiante nos enxergamos. O cerco das pessoas afrouxou. Fidel dirigiu-se a mim resoluto, tomando-me de surpresa. Como anda o seu livro, Claudia?, mostrando interesse por ouvir sobre o ZR - O Rifle que matou Kennedy, que eu escrevera recentemente e cuja narrativa identificava, com informaes providas pelo Servio Secreto de Cuba, um estranho enredo: os autores e executores do assassinato do Presidente Kennedy seriam os mesmos dos atentados vida de Fidel. Para pesquis-lo e escrev-lo, eu havia permanecido em Cuba durante todo o ano anterior. Acima da curiosidade poltica do Comandante, sempre atento aos detalhes, o motivo da pergunta, naquele momento, representou-me ateno e cavalheirismo. Era como se Fidel adivinhasse o desapontamento que me corroa, em razo de um acontecimento ocorrido naqueles dias. Vai bem, Comandante, obrigada..., respondi-lhe, controlando a emoo. Depois das edies em portugus e ingls, agora est caminhando a em espanhol. Ah, sim! Com quem?, perguntou-me. Vacilei dois segundos, em prejuzo do timing dele, enquanto pensava ser impossvel lidar com Fidel com meiasverdades e revelei: O original da traduo estava na mesa de um coronel do Ministrio do Interior, mas desapareceu e no h cpia. Desapareceu? Como?, quis saber ele. No se sabe, disse. Ter sido a CIA?, ironizou, tentando corrigir o mal-estar. Logo se virou para o seu secretrio-assistente: Anota isso, Felipe (Felipe Prez Roque, ex-dirigente estudantil, secretrio executivo do Conselho de Estado e hoje ministro das Relaes Exteriores). Como o nome do coronel? No sei., respondi. Quem estava por perto, e ouviu, gelou, pensando que eu fosse revelar o nome.28

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO Prlogo

Rapidamente, providenciou-se uma nova traduo e saiu a edio cubana em menos de 60 dias. At hoje, no sei se o sumio do original foi apenas displicncia, mas foi naquele dilogo que senti quanto o livro a que me dedicara, ao versar sobre a segurana dele, compunha um forte elo entre ns, cujo desenlace ainda estava por descobrir. O assunto voltou tona um ano depois, quando estvamos, eu e Nei Sroulevich, com um grupo de artistas brasileiros em visita ao Palcio do Governo para um encontro com Fidel. Em meio conversa sobre novelas, medicina cubana e economia brasileira, perguntou-me Fidel de sopeto: Devo alguma coisa a voc, Claudia? O que posso fazer?. Nada em absoluto, Comandante. Eu que lhe devo..., interrompendo a frase, quase por instinto, sem nem saber por qu. O fato que, naquela fase, j me encontrava quase que exclusivamente dedicada a estud-lo, conhecer mais e tudo sobre Fidel, reunindo materiais na expectativa de escrever um ensaio biogrfico. A persona me cativava, embora, ao mesmo tempo, eu repudiasse a sujeio mental, o que me preservava o senso crtico. Para esse segundo trabalho, havia consolidado idias, um plot dramatrgico, pode-se dizer: Fidel era um ser com uma rara espcie de imunidade. Apesar de atrado constantemente s situaes extremas, a morte ou a tragdia perseguindo-o incessantes, ele jamais derrubado. Era, decerto, um heri, mas tambm, e por isso, o seu avesso. Como lder e estrategista, atingira o limite ao desenhar uma poltica inclusiva e excludente. Nada de santo, portanto. Poderia ser, quem sabe, Godot ou um bom ditador, conforme sugerira Gabo (Gabriel Garca Mrquez), em um intervalo das aulas da Oficina de Roteiros na Escola de Cinema em San Antonio de Los Baos (Cuba) frase que, claro, retive para sempre como a impresso de um mito sobre o outro. Biografar Fidel era o plano que eu no ousava explicitar, ainda que j fosse real. Ao dar-me conta de que, em 1996, ele29

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

completaria 70 anos, tomei a deciso de lanar-me ao risco e preparei um projeto para lhe apresentar. Em esboo, dividia sua trajetria em sete partes, quase uma dcada por parte, sete vidas como a do gato, numa referncia ao seu flego. Era visvel nos traos. Fidel envelhecera e abria-se, em seu ntimo, um ba de memrias. Aqui e ali, entre conhecidos ou em atos formais, ele intercalava as conversas com algumas lembranas, fatos fora dos registros, de um modo inadvertido. Talvez fosse a atmosfera de final de milnio que se aproximava, ou um mal comum da terceira idade, viver de passado. J temiam certos assessores que ele se fizesse indiscreto, que o especialista em surpresas decidisse reverter a histria, como o subversivo jovem de outrora. Hora certa para a proposta. Observando-o em uma dessas ocasies, abordei-o: No chegou o momento de deter-se a discorrer sobre sua vida e obra, Comandante? Olhou-me arregalado, divisando a inteno escondida e no me respondeu. Nem negou. E esse nosso novo encontro teria ficado no meu atrevimento, ou no silncio dele, se no fosse exatamente este a me compelir a buscar o canal certo. Procurei o comandante Jess Montan, amigo e ajudante histrico de Fidel, cuja sala era ao lado da dele, no terceiro andar do Palcio do Governo, e entreguei-lhe o projeto que havia redigido. Trs meses transcorreram, Montan me transmitiu a resposta: Fidel dava o seu aval, abria-me todo o seu arquivo secreto, confidencial e reservado, mas no queria ser biografado. Diabos! Era um contra-senso e por qu? No desejava interferir no texto, nem autorizar uma biografia, esclareceu ele. Para Fidel, biografar um poltico era discutvel como conceito, mope para compreender a Histria, alm de, por ideologia, ele rejeitar qualquer indcio de culto personalidade. Se fosse s isso, considerei, jamais me ocorrera algo que pudesse se assemelhar a uma histria oficial, at porque em Cuba h suficientes historiadores e escritores para a tarefa. O efeito do trabalho, entretanto, seria o de uma biografia, querendo Fidel ou no. Dias depois, chega30

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO Prlogo

mos a uma concluso e adotamos uma definio sui generis, criada por Fidel, que deixava explcita sua concordncia: seria uma biografia consentida. E mais, ele s a leria depois de publicada, discordando, publicamente, se assim desejasse. preciso sublinhar que o aval no surgia do nada. Historiadora e jornalista por formao, eu mantinha relaes correntes com personalidades polticas e intelectuais cubanos desde a dcada de 70. Meu livro, ZR Rifle, garantira-me confiana, pela preciso e tica com que tratei os dados que colhi. Destacados jornalistas e historiadores estrangeiros procuraram o consentimento de Fidel para escrever sua biografia e no obtiveram. Quanto ao nico trabalho de porte nessa direo, do jornalista norteamericano Tad Szulc (Fidel: um retrato crtico), falecido em maio de 2001, realizado com sua anuncia, foi por Fidel considerado capenga em seu resultado final. Outras tentativas de descrev-lo restringiam-se a uma etapa de sua vida e obra ou so entrevistas, eficientes como tal, destacando-se as do brasileiro Frei Betto, do italiano Gianni Min e do nicaragense Toms Borge. Ainda mencionando-se as coletneas sobre Fidel editadas pelo australiano David Deutschmann. No decorrer dos cinco anos seguintes, em que residi em Cuba a maior parte, pude pontualizar com Fidel, por breves minutos, certos aspectos e detalhes das informaes que coletava. Uma dessas vezes, Fidel, em um impulso, pegou um pedao de papel e escreveu-me uma dedicatria. Sobre a parte referente ao segundo tomo desta obra, que se inicia no ano de 1959 com o triunfo do Exrcito Rebelde e sua chegada ao poder, alcanvamos o consenso de que sua histria tornava-se tambm a histria da revoluo em sua totalidade e relaes, dois entes apenas tenuamente dissociveis, o que, de alguma forma, terminava correspondendo anttese de Fidel sobre biografias de lderes polticos e homens de Estado. Dificuldades? Todas. Por vezes seria impraticvel persuadir entrevistados e depoentes a dar seu livre testemunho sobre31

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

Fidel, fosse pelo costume de desconfiar da mdia estrangeira, fosse pelo slido hermetismo sobre a pessoa do chefe, mesmo aps telefonemas do gabinete de Montan ou do escritrio do Conselho de Estado, atestando os meus objetivos. Ainda haveria intrigas, provocaes e at ameaas, de cubanos dentro e fora de Cuba, contrrios feitura do livro por diversas razes; ou a infinita demora de respostas sobre algum episdio ou assunto privado de Fidel. Ao menos, em meio aos obstculos, eu havia ganho um novo aliado: o comandante Manuel Pieiro (Barba Roja), chefe da inteligncia de Fidel durante mais de duas dcadas, incondicionalmente presente durante minha estada em Cuba, indo minha casa quase todos os dias, disposto a limar as arestas e esclarecer o que fosse necessrio em nome de Fidel. Sem trgua, na agonia pela concluso, seriam ao todo nove anos de uma turbulenta jornada. Atirada sobre o colosso de fatos, centenas de arquivos no computador, precisava ainda puxar a meada e escrever. Um nascimento, uma fazenda e uma ilha. Incio de sculo. Distante comeo que lhes ofereo a seguir.Rio de Janeiro, novembro de 2001 C.F.

32

(Para Claudia, inesquecvel amiga, insupervel pesquisadora da Histria.Fidel Castro Ruz, 16 de outubro de 1994)

34

Grupo de alunos do Colgio La Salle, 1936/37

P A R T E

I

Dentes Afiados35

Angel Castro, pai de Fidel

36

C A P T U L O

1

Em visita casa de Don Angel, em Lncara, Galcia - Espanha

Don Angel, um gallego criollo

E

ra fins do sculo XIX, quando em Lncara, Galcia, um jovem de nome Angel Castro alistava-se em um grupo de recrutas que rumaria para a guerra em Cuba. Com seu imprio esfacelado, a Coroa Espanhola ainda acalentava a esperana de manter a derradeira colnia e despachara emissrios s37

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

aldeias, arregimentando rapazes para as tropas. Aps uma seqncia de derrotas frente aos mambses1 do Exrcito Libertador cubano, Madri tentava resistir ao esgotamento. A Prola das Antilhas, como apelidaram a Ilha, havia assumido para os espanhis, ao longo de sculos, um valor estratgico. Angel, ento com quase 20 anos, era descendente de lavradores. Ainda pequeno, ficara rfo e fora morar, com os quatro irmos2 , na casa de um tio, dono de uma pequena fbrica de chourios. Obrigado a desempenhar um ofcio pelo qual no possua interesse, nem habilidade, ingressar no servio militar significava a possibilidade de mudar de vida e ainda deixar um bom dinheiro aos parentes3 . Angel conseguiu incorporar-se ao destacamento usando uma outra identidade, a de um jovem fidalgo, cujos pais ofereceram centenas de pesetas a quem propusesse substitu-lo. Chegando a Cuba, recebeu a patente de cabo, mas no teve de entrar em combate, pois informaram-no de que os adversrios haviam decretado uma trgua. Decidiu, ento, procurar um parente, que lhe disseram residir em Camajuan, em uma provncia central do pas. Com ele, acabou ganhando uma ocupao e um salrio em sua manufatura de ladrilhos4 . Decerto, avizinhava-se o fim da guerra. Permanecendo a Espanha impotente para reverter o fracasso, os Estados Unidos alertaram-na: se no se alcanasse a paz em breve, atuariam como lhes conviesse. Haviam j, em parte, destitudo os espanhis do seu monoplio comercial na regio, ao penetrar na explorao do acar, das minas, do tabaco e em outras atividades, restando concluir o domnio poltico. No tardou e o Presidente McKinley, autorizado pelo Congresso a liquidar o conflito, solicitou a colaborao do embaixador cubano em Nova York, Toms Estrada Palma, que acedeu a que os generais cubanos, com suas tropas, se pusessem sob as ordens das foras norte-americanas. Sob intenso bombardeio, em questo de horas, a esquadra espanhola encontrava-se no fundo do Mar do Caribe e Cuba, sob a ocupao militar dos Estados Unidos.38

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 1 Don Angel, um galego criollo

Terminada a guerra, em 1898, a maioria dos soldados e recrutas espanhis foi compelida a regressar terra natal. Sob o ardor da Andaluzia ou das Canrias, muitos deles haviam vindo na expectativa de vencer e ficar no Novo Mundo, mas isso s foi permitido aos que haviam constitudo famlia, como o capito Capablanca, pai de um futuro campeo mundial de xadrez5 . Angel Castro foi um dos tantos repatriados a contragosto. Pouco depois retornaria por conta prpria, como um simples imigrante. Sem um centavo no bolso, desembarcou do vapor francs Mavane, no porto de Havana, em 3 de dezembro de 18996 . Ansiava assentar sua vida em Santiago, na Provncia do Oriente, mas a regio que conhecera transformara-se em um ano. Uma leva de empresrios norte-americanos, que viera acompanhando o general John R. Brooke, o primeiro interventor militar, pudera adquirir, a preos irrisrios, vastas extenses de terra. A Cuba Company, a Gramerey Sugar Refinery, a McCann Sugar Refinery e a United Fruit Sugar Company montaram grandes usinas de explorao de acar. A presena norte-americana se confirmaria com a introduo da Emenda Platt Constituio de Cuba em 1901, que atribua aos Estados Unidos o direito de interveno e determinava a cesso de pores do territrio cubano para a construo de bases e estaes. Assim, ergueu-se a Base Naval de Guantnamo, que existe at hoje, no extremo sul de Cuba, percebido como um ponto ideal de superviso sobre as Amricas. Theodore Roosevelt, o novo Presidente, anunciava a poltica do Big Stick, inspirando-se na Doutrina Monroe. Em Cuba, iniciavase o longo perodo de uma Repblica alinhada a esses interesses. Os meios de sobrevivncia no oriente restringiram-se. Angel Castro s conseguiu estabelecer-se como operrio nas minas, longe de Santiago. Junto a outros imigrantes, trabalhou ainda em construo de ferrovias. Era analfabeto, mas habilidoso e, anos depois, seu tino para os negcios despertava. Em 1905, montou na cidade de Guaro uma penso-bodega, batizada de El Progreso, onde vendia refeies populares. A seguir, passou39

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

a coordenar grupos de trabalhadores para escavaes em ferrovias e para o corte de lenha, utilizada como combustvel nas usinas da United Fruit Company. No demorou a acumular capital e logo obteve cidadania cubana, j que entrara em vigor uma lei que a concedia aos espanhis residentes. Do casamento com a filha de um empregado da United Fruit, Mara Luisa Argota Reyes, em maro de 1911, houve cinco descendentes, mas s dois, Maria Ldia e Pedro Emlio, cresceriam saudveis. A ltima filha veio ao mundo quando o casal j vivia separado e Angel conhecera aquela que viria a ser a me de Fidel: Lina, uma camponesa que migrara de Guane, do outro lado da Ilha, o extremo ocidental. Seus familiares haviam sido expulsos da terra, quando um furaco arrasara toda a regio. Presas de um imenso redemoinho, amarraram-se em cips desprendidos dos arbustos de tabaco para no disparar na ventania, conta Alejandro, um irmo de Lina, ao recordar a condio retirante da famlia. D. Pancho, o pai, modesto criador de gado, que dirigia carretas de carga7, ao ver escapar a sorte, migrava, apostando na prpria disposio. O pouco de bens que lhe restou dessa vez, ele vendeu e aceitou uma oferta de trabalho em Camagey, de onde contratadores mandavam buscar os que quisessem vir, depois da catstrofe. Pancho e sua famlia fizeram uma viagem de trem, amontoados, por quase 700 quilmetros, fixando-se, finalmente, na aldeia de Hatuey. Angel Castro ampliara as atividades. Nos meses de safra, o cliente norte-americano chamava-o para comandar o corte e o transporte da cana-de-acar. Tornara-se um empreiteiro reconhecido e, vez por outra, realizava viagens, com o objetivo de prover de braos as plantaes. Em uma passagem por Camagey, conhecera D. Pancho. Este, ocupado em consertar a buzina da carroa, prximo a uma serraria, viu quando algum, de repente, apeou do cavalo. Virou-se e deu com aquele senhor, belo tipo, portando um jaqueto e um revlver na cintura. Identificou-o por instinto: um galego, imigrante como ele. Angel apresentou-se e40

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 1 Don Angel, um galego criollo

mostrou-lhe os documentos: Sou espanhol contratador, queria saber se me deixam dormir por aqui. Tambm necessitaria de algum que me guiasse para encontrar um cavalo.8. Procurava por um cavalo negro-azulo com uma estrela prata na fronte, que lhe fora roubado. Um conhecido dissera t-lo visto por aquela regio. Pancho ofereceu-lhe hospedagem, arrumou um campons que conhecia os arredores e, na manh seguinte, o cavalo apareceu. Angel ainda quis permanecer uns dias, pois apreciara o jeito e o trato dado por Dona Dominga, a esposa de Pancho. Via-a durante o dia, laboriosa, preocupada com o asseio, dando brilho s tinas e s panelas, enquanto o marido e os filhos lidavam com dificuldade com aquela terra seca e rida. Resolveu propor-lhes trabalho, argumentando que fornecia boa comida e que no oriente era melhor o pastoreio do gado, com a grama gorda que crescia s margens das ferrovias. D. Pancho possua, ademais, oito juntas e duas quadrilhas de bois9, o que Angel necessitava para reforar a carga das empreitadas. Trato feito, um telegrama seria o sinal para providenciar a mudana. Escutando tenso o refro da Chambelona ressoando nas cercanias, Pancho esperava o capataz que viria busc-lo. Com ele, Dominga e os sete filhos: Panchita, Panchito, Lina, Antonia, Enrique, Alejandro, Maria Jlia e Belita, ainda um beb, sem sequer haver sido batizada, conforme a preocupao dos pais. A toada que D. Pancho ouvia era a propaganda dos liberais que andavam em rebelio pelo pas em 1917, com a tocha incendiria em punho, como nos tempos do Exrcito Libertador, protestando pelas fraudes eleitorais. Em contrapartida, soldados ameaavam os transeuntes, usando machetes para golpear os revoltosos. Com a chegada de Nemsio, o capataz, a famlia seguiu viagem, enfrentando riscos, at Cueto, onde deteve-se na pousada de um espanhol. As goiabeiras haviam vedado a passagem e foi preciso abrir uma vereda no monte. Ao atingirem as margens do caudaloso Rio Nipe, onde barqueiros cobravam um real10 para realizar a travessia, D. Pancho resolveu improvisar uma balsa41

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

de tbuas de yagrumas11, iando-a, para pr a carroa em cima. E assim chegaram a Guaro. D. Angel recebeu-os satisfeito e recomendou: O americano no nenhum p-rapado. homem de dinheiro e eu sou o seu contratador. Devemos corresponder. poca de prosperidade. A demanda e o preo do acar cubano s faziam subir. A especulao econmica atingia o auge com o fim da Primeira Guerra Mundial, beneficiando Cuba, visto que outros fornecedores encontravam-se impedidos de abastecer o mercado. Empresrios correram aos bancos a buscar emprstimos para aumentar a produo, em uma verdadeira dana dos milhes. Foi o comeo da febre aucareira, na linguagem popular chamada vacas gordas. Com a colheita, havia dias de deixar repletas dezenas de carretas e o produto era vendido a lucros estupendos. Pipocaram bancos, financeiras, manses e palcios nas cidades. Angel enriqueceu. Alm do que acumulara, ainda tirou a sorte grande, ganhando na loteria duas vezes. Na primeira, foram quase 100 mil dlares. Seus planos de comprar terras se concretizaram. Em Birn, adquiriu hectares no meio de um permetro ocupado por grandes empresas: a Altagracia Sugar Company ao norte; uma mineradora e a serraria Bahamas Cuban Company, ao sul; a Miranda Sugar State, a oeste; e a United Fruit, a leste. Adiante, negociou lotes na vizinhana: as de Miguel Otorga e as de Carlos Hevia e Demtrio Castillo, antigos generais da Independncia, a quem pagava o equivalente a 5% da renda do produto comercializado. Comprou a propriedade dos Osrio e uma colnia chamada Dumoi, contguas a Birn, e aproximadamente 200 hectares do norte-americano Thompson, alm de aes de mineradoras. Montou ainda uma empresa para explorar madeira das terras que adquiriu em Pinares de Mayar e, em Guaro, construiu imveis para alug-los.12 Plantou cana-de-acar, cedro, majagua13, laranja, bananas, coco, vegetais e outras frutas, e desenvolveu a pecuria. No total, chegou a possuir 1.800 hectares (70 caballeras) em seu nome, empregando 600 trabalhadores,42

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 1 Don Angel, um galego criollo

alm de ser arrendatrio e colono. Assim se tornou D. Angel, um exemplar do gallego criollo, adotando um apreo pela terra como aqueles antigos produtores locais. Todo dia, de manhzinha, dizia ao ajudante Balsa: Sela o azulo!. Punha um terno branco, a escopeta frente, atravessada no peito e, atento a cada detalhe, percorria a propriedade, onde, s vezes, apareciam bandoleiros, que os camponeses chamavam alados maus, exigindo dinheiro14 . Ocupava-se de mandar limpar a mata, destruir os insetos e vigiava a retirada da cana. Desenvolvera o instinto do campo, via o cu limpo e adivinhava quando estouraria um temporal. Em poca de seca, exigia que a terra fosse regada com baldes. Em tempo morto, parava horas remexendo a lenha do engenho com um ltego, por puro costume.15 Chegou, certas vezes, a comandar um corte de quatro milhes de arrobas. Panchito e Enrique, filhos de D. Pancho, eram encarregados de juntar as mudas de cana para a grua. Se algumas quebrassem na passagem da carreta, Castro mandava recolh-las. No final, dizia-lhes: Agora podem ir buscar o capim para as vacas. Pagava dois ou trs pesos pelo feixe de cana que os rapazes transportavam e um peso pela saca de gros para o pasto, dizendo a Ren Cid, o inspetor: Faa o vale dos muchachos!, quando no lhes pagava em dinheiro vivo. D. Pancho era quem cuidava da entrega. No sabia ler ou escrever, mas tinha boa cabea: ditava de memria, sem engano, a quem correspondia cada carreta. Alejandro, ainda garoto, ajudava a arriar a junta de bois. Menino, melhor ir pegar a madeira, dizia-lhe Castro; e mandava-o, junto com Enrique, ao bosque La Caridad, propriedade de um norte-americano, colher a caoba. Se os trabalhadores saam dos limites da propriedade, D. Angel aconselhava: Cuidado! No vo se enganar com as cartas. Referia-se aos grupos em conflito. Havia os leais ao governo e os da Chambelona, mas ele mesmo preferia apoiar ambos. Com isso, impunha respeito. Em certa oportunidade, quando os43

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

adversrios j iam se enfrentar diante do cemitrio de Birn, ordenou que se apartassem e eles acederam16 . Dava alimento aos alados e aos da guarda federal, pois o chefe do quartel no tinha como pagar os seus homens. Era alvo de pedintes17 e, por ser mo-aberta, concedia.18 Alejandro jamais esqueceu aquela poca: Eu me metia embaixo da cama, quando via os bandos chegarem. Uns, descalos; outros, sem camisa... Um dia, Dona Dominga encontrou a casa, ainda em final de construo, em cinzas. Castro, alarmado, correu ao campo e avisou D. Pancho: Pra a! Queimaram a tua casa. Decidiu, ento, transferi-lo para um outro local, provisoriamente. O tempo das vacas gordas culminou em um crack vertiginoso. Mil novecentos e vinte seria o ano das vacas magras: comerciantes, fazendeiros, estabelecimentos bancrios e creditcios faliram. Salvaram-se apenas as companhias mais fortes, as norte-americanas, o que favoreceu uma nova concentrao do capital para todos os setores. As inverses norte-americanas chegariam a 1.360 bilho de dlares 6,3 vezes mais que no incio da Primeira Guerra Mundial. Os empresrios dos Estados Unidos tornaram-se donos de 75 usinas aucareiras e 40% das melhores terras do pas controlando, assim, 68,5% da produo nacional. Castro deu graas a Deus por desconfiar de bancos. Guardava dinheiro no cofre e, portanto, pde socorrer o seu amigo, o empresrio Fidel Pino Santos, que, levado runa absoluta, ameaava suicidar-se. Em uma fase turbulenta, Castro gabava-se por j ter eleito Birn, como morada, um calmo e recndito vale rodeado por um pequeno planalto, o qual s viria a aparecer em um mapa anos depois, nomeado Sabanilla de Castro (Pequena Savana de Castro)19 . A localidade contava com uma natureza abundante e privilegiada, plena de arbustos, riachos e rvores de madeiras preciosas granadilho, jigu, caoba e cedro. Em uma primeira panormica, aludia galega Lncara, sua terra natal. Enquanto ele adorava aquele vale, sua esposa, Mara Argota, jamais mostrara a boa vontade para sequer visit-lo. Tratando de44

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 1 Don Angel, um galego criollo

aparentar uma origem nobre, dizia que a vida de interior a entediava; que o campo era para os pssaros20 . Se vinha da cidade por uma semana, encerrava-se em casa de nariz em p, o que a fez ser apelidada de Maria Rica pelos empregados do marido. Um dia declarou que no retornaria a Birn e partiu. Os conhecidos de Castro comearam a comentar que ele estava separado; outros pensavam que ele era solteiro. Abatido, virava um ermito no meio do mato. O casamento desmoronara, mas os dois filhos, Pedro Emlio e Maria Ldia, continuariam a ir fazenda quando possvel.21 Montada em uma eguazinha branca, a jovem Lina deslocava-se com agilidade pela propriedade para cumprir tarefas. Quando D. Angel a avistava, aproximava-se para trocar algumas palavras, cuidadoso. J estava apaixonado e um dia decidiu pedir a sua mo em casamento, ao que D. Pancho respondeu: Castro... No. Voc ainda um homem casado. No quero a minha filha na vida, lutei muito para cri-la. Alm do mais, dizia, Lina era muito mais jovem que ele; tinha 16 anos e Angel, quase 47. Pode at me custar a fazenda, que vale um milho e pouco. Eu a levo e me caso!, insistiu com veemncia o galego. D. Pancho retrucou: Bem, mas eu no estou de acordo. O outro foi embora meio acabrunhado, mas trs dias depois roubou-a de fato. O vivo Soto, paisano natural de Valladolid, aproveitou o momento venturoso e se casou com Antonia, irm de Lina. E no havia muito, Panchita, a mais velha, havia se casado e ido morar em outra aldeia com o cozinheiro Daro, outro galego do primeiro grupo de Birn. Quanto a Angel, recuperou o garbo. Voltou a montar em seu cavalo moro, vestido com ternos impecveis de linho marca Drix #100 e sapatos Frnshn, da melhor qualidade na poca. Sua figura impressionava tanto que seu amigo Pino (Fidel Pino Santos), agora o seu procurador, resolveu perguntar quem passava a sua roupa. Castro respondeu que era a sogra. Para Dona Dominga no era nada fcil, pois o fazia em45

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

uma tbua de zinco sobre um fogareiro de carvo, sendo preciso amarrar um trapo com um sebo no ferro de passar, para no pegar na roupa. Aos domingos, Castro s vezes tomava uns tragos com os amigos e passava da conta. Pedia, ento, que a sogra viesse urgente para trat-lo; preparar-lhe um remdio. s noites, ele ia dormir tarde, tentando ler ou ouvindo rdio em busca de notcias. Assim acomodava-se a vida na Fazenda Manacas22.

Casa natal de Fidel

46

C A P T U L O

2

Lina Ruz, me de Fidel

Sob as rdeas de Lina

L

e c, para cima e para baixo, a p ou a cavalo, com um revlver Colt na cintura, usando botas altas sob os vestidos soltos, assim era Lina. De manh cedinho, dava milho s galinhas da granja, ordenhava vacas e cuidava dos zebus no curral. Atrs da casa da fazenda, havia um grande laranjal47

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

que era a sua predileo. O prprio D. Angel podava os galhos e Lina cortava as laranjas com tesoura ou enxertava as sementes1, alternando-as com cultivos de aipim, batata-doce e banana, em uma rotao instintiva que revigorava a terra, contrastando com o sistema predatrio aplicado nos canaviais. Como a me, Dominga, era uma catlica praticante. Comumente rezava o tero, fazia promessas e acendia velas para as imagens dos santos e da Virgem Maria, pedindo proteo. Manacas diferia do patriarcado que imperava em outras fazendas. Lina no se furtava a dar a sua opinio sobre qualquer assunto, quando no o assumia ela mesma. Seu carter marcaria os filhos do casal, particularmente Fidel, que teria sua vida amorosa pontilhada de mulheres fortes que souberam se impor, ainda que contracenando com sua personalidade. Embora parentes e ntimos evitem tocar no assunto, h que frisar que, por muito tempo, Lina permaneceu na condio de esposa ilegtima de Castro, que demorou para conseguir divorciar-se de Mara Luisa. Considerando-se os padres da poca, ela contava apenas com seus dotes pessoais para ganhar o respeito dos que a cercavam. Hora e outra, era vista passando com o molho de chaves nas mos2, vistoriando as dependncias principais. Tinha gnio e fibra, mas ficava de mau humor quando se via retida nas tarefas da cozinha, um infortnio que no mais sofreu aps a chegada de Josefa, uma empregada que Castro tivera em sua residncia em Guaro. Detinha ainda uma habilidade que exercitava com prazer e pela qual era requisitada no cotidiano: era uma enfermeira autodidata. Diagnosticava, receitava remdios e dava pontos; administrava os primeiros socorros e realizava pequenas cirurgias; mantinha instrumentos fervidos, aplicava injees e vacinava os animais. Mostrava destreza com as mos, apesar de no contar com alguns dedos da direita, perdidos anos antes, quando fora atingida pelo cilindro mecnico de condensar a massa na padaria da fazenda.3 Lina precisou receber vrias aplicaes de antiinflamatrios no Hospital da Usina Preston e, l, familiari48

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 2 Sob as rdeas de Lina

zou-se com a prtica da medicina. O farmacutico Castellanos, que montara sua loja em uma usina norte-americana prxima, era quem vendia fiado os remdios aos trabalhadores da fazenda, incluindo os custos na conta mensal de D. Angel4. Ele tomara os traos do grande senhor. Todos os dias, matava-se um boi e, se no era vendido, Castro mandava salgar a carne para dividi-la entre os trabalhadores. Andava sempre com uma sacola de casimira ou de linho onde guardava a carteira, na eventualidade de ter de desembolsar alguma quantia a camponeses que chegavam s suas terras sem destino, normalmente em tempo morto. Resolvera no largar de mo, na entressafra, os seus empregados que fossem pais de famlia, liberando os demais para buscar trabalho em outra parte. poca de colheita, chegava na sapa, caminhonete de duas portas do tipo usado pelos militares norte-americanos, trazendo goiabadas, latas de leo, po, queijo, tabaco e rum. Metia o p no freio e dizia ao capataz: Vamos! O caf de nossa gente!, pedindo para ele chamar todo mundo5. De repente, parava ao lado de um trabalhador sulcando a terra e oferecia-lhe gentilmente um charuto dos que guardava nas algibeiras. Ao aproximar-se o Natal, os camponeses faziam fila no porto da sua residncia. Uma semana antes da festa, ele mesmo ia at Santiago providenciar os mantimentos para encher as cestas garrafas de cidra, de vinho moscatel, guloseimas, compotas e pores de uvas e mas. Nen Snchez separava os machos do rebanho no pasto, amarrando as patas numa vara, para que cada qual levasse o seu cabrito ou o leito da ceia. Se algum ia se casar, Castro dava-lhe a posse de um pedao de terra e animais; providenciava todo o enxoval dos noivos e quando lhe perguntavam de quem era o casrio, respondia: Ih, rapaz... Acho que meu. Em caso de emergncia, mobilizava um grupo para levar uma grvida ou um enfermo ao Hospital da Usina Preston. Se necessria a internao, escrevia uma nota ao Dr. Silva, garantindo o pagamento. Periodicamente inspecionava como andavam49

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

as vestimentas de seus empregados e se os via de camisa rasgada ou de sapatos estragados, pedia a Lina para entregar os novos do estoque do armazm, que ficava em frente ao correio-telgrafo, s margens do caminho real, como chamavam a estrada de terra em direo a Manacas. Era ela quem o gerenciava. Por ser dotada de senso previdente, foi em Lina que D. Angel passaria a confiar para certos assuntos administrativos. Conhecendo sua prpria suscetibilidade frente s reclamaes de um trabalhador, mandava-o ir falar com Lina no armazm, que, de sua parte, se desconfiasse de abuso no teria desprendimento, exceto com os velhos haitianos que viviam num grande barraco no muito afastado da fazenda. Junto com os jamaicanos, os haitianos haviam chegado a Cuba no incio da febre aucareira, quando o governo encampara a imigrao de trabalhadores braais para as colnias. Em dez anos, haviam entrado no pas mais de 250.000 haitianos e outros milhares de jamaicanos que, de uma forma geral, viviam em condies subumanas. Por aquele produtivo latifndio, mais as terras que arrendara ou colonizava, a sua vizinha United Fruit chegou de fato a oferecer-lhe 800 mil dlares, mas D. Angel recusou. No as venderia nem por um milho. Vista ao natural, de dentro, a fazenda de Birn era como uma aldeia ou um mundo parte. Alm dos distintos estabelecimentos, a residncia principal era um sobrado suspenso sobre altos pilotis de madeira, tipo chal, como nas casas de provncia do interior da Galcia, com o teto vermelho de zinco e grandes janelas pintadas de branco. Na parte de baixo, o que seria um poro aberto, fez-se um curral onde, ao anoitecer, as vacas adormeciam aps haverem sido recolhidas do pasto. Ao lado, foi montada uma pequena leiteria em que se fabricava queijo. No primeiro andar do sobrado, a sala era decorada com mveis de vime e de madeira caoba; havia ainda trs quartos espaosos com camas confortveis e armrios com espelhos, uma despensa para mantimentos, outra de remdios e os banheiros. No final do corredor ficava a copa, de onde se descia at a cozi50

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 2 Sob as rdeas de Lina

nha de fogo a carvo. No segundo andar, junto ao quarto do casal, um mirante em que a brisa corria folgadamente. Lateral construo, a escada a que se tinha acesso por uma portinhola de rija fechadura. Atravs do caminho real e das transversais ao longo da via frrea, viam-se os chuchos estaes de corte e distribuio da cana-de-acar, onde se concentravam moradias e parcelas de terras das centenas de trabalhadores. Dona Dominga vivia no chucho 31, a dois quilmetros da casa-grande. Junto fazenda, foi erguida uma rinha6 para a briga de galos, uma diverso que se generalizara no pas. Castro era um aficionado e comprava os galos que vinham da Espanha, informando-se da chegada das embarcaes por seus amigos santiagueiros. Havia camponeses que levavam os seus prprios galos disputa, outros apostavam toda a quinzenada num dos contendores, ou a gastavam em bebida, chegando casa sem um centavo. Em tempo de safra, os homens trabalhavam at sbado noite na colheita e, de madrugada, amontoavam-na nos vages de carga, garantindo, assim, a folga do domingo. Nesse dia, todo mundo tinha direito a cumbanchar7 e a beber cerveja gelada, Rum Bacardi e El Cachau, uma cachaa de gua de coco, mel e rum; mas, nesse caso, Lina recomendava anotar8 os gastos de cada um. Do casal Angel e Lina, vieram os primeiros filhos. Em 1923, Angelita e, em 1925, Ramn, ambos rebentos bem desenvolvidos: Angelita nasceu pesando mais de seis quilos e Ramn, quase seis. A comadre Faustina no deu conta dos partos. No nascimento de Angelita, foi preciso chamar com urgncia o mdico do Hospital da Usina Preston, um norte-americano, o Dr. Strom. Segundo este, os fetos cresciam com exagero, porque Lina tomava leite puro e fresco em quantidade, hbito que adquiririam, desde os primeiros anos, tambm as suas crianas, que tomavam o primeiro leite extrado das vacas.

51

Em Birn, 1928

52

C A P T U L O

3

Angelita, Ramn e Fidel

Titn Fidel

E

m um 13 de agosto, vinha ao mundo Fidel Castro, o terceiro filho de Lina e Angel. O nome foi previamente escolhido em homenagem ao amigo Fidel Pino Santos, que no apenas Angel Castro ajudara a eleger-se deputado, como a ele se associara em um vantajoso contrato com a United Fruit.53

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

Ano do nascimento? Mil novecentos e vinte e seis ou 1927. Hora? No h certeza, apesar do estipulado nos documentos. Talvez por se tratar da identidade de algum fora do comum, o nascimento de Fidel sugere por si um leitmotiv de romance. Seu primeiro documento de identidade foi o registro de batismo, celebrado na Catedral de Santiago de Cuba, anos depois, a 19 de janeiro de 1935. Ali aparece com o nome Fidel Hiplito e o sobrenome materno, Ruz Gonzalez. Posteriormente, seriam feitas trs certides de nascimento. Na primeira, datada de 1938, foi registrado como Fidel Casiano Ruz Gonzalez1. Como os pais ainda no eram legalmente casados, ficava proibida a incluso do sobrenome paterno. Tampouco era costume estabelecer documentos de nascimento ou de casamento naquela poca, notadamente no interior do pas, ou pela dificuldade de deslocamento aos principais centros ou por outros empecilhos, da o espao de mais de dez anos at formalizar-se o nascimento de Fidel. A segunda certido de 1941, lavrada com o objetivo de constar que Fidel teria um ano a mais. Havendo ele completado o primeiro grau, o velho Angel deu 100 pesos ao secretrio do juiz da comarca para que ele mudasse os termos do documento anterior, fazendo constar o ano de 1926 como o do nascimento do filho, o que o habilitaria a matricular-se no segundo grau do Colgio Beln. Foi assim que essa data tornou-se oficial, explica a irm Angelita. Nada escuso; eram procedimentos corriqueiros na esfera do poder, por camaradagem, dinheiro ou troca de favores. Nesta certido, Fidel aparecia com o que se tornou o seu nome atual Fidel Alejandro Castro Ruz2 , dado que D. Angel j efetivara o divrcio da primeira esposa. Contudo, o juizado, meses depois, despachou-lhe um comunicado declarando que a certido apresentava distores e precisava ser refeita. Em 1943, com Angel e Lina recm-casados3, providenciou-se uma nova, a definitiva4. Sendo assim, oficialmente, Fidel veio luz em 1926 e, aos que sustentam esta verso, Angelita oferece mais contra-argu54

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 3 Titn Fidel

mentos, baseando-se em relatos ouvidos de sua me: Com partos brbaros como aqueles, no seria possvel haver uma diferena de apenas dez meses entre Ramn e Fidel. O parto de Ramn foi a seco5, tiveram de buscar o mdico urgente, a cavalo, pois as vias estavam impraticveis. Depois, minha me precisou de um longo resguardo e, alm disso, amamentava os filhos at um ano e pouco. Ramn Castro tambm declara ter 22 meses a mais que o irmo6, o que nos faz concluir que Fidel nasceu no dia 13 de agosto de 1927. Sutilmente, na comemorao do seu 50 aniversrio, como que reconhecendo o equvoco, aps o irmo Ral Castro ter afirmado que, na realidade, ele estava completando 49 anos, Fidel comentou: Bem, tenho a idade que os papis dizem. Se dizem 50, tenho 50. Foi uma observao sensata, j que, a essa altura, era tarde demais para fazer do consagrado um simples no-dito. No imaginrio de milhares de cubanos, o nmero 26 tornara-se um smbolo ligado revoluo, extrapolando a prpria figura de Fidel. Alm de ser o dobro de 13 (dia em que Fidel nasceu), 26 fora o ano em que um famoso ciclone assolou a Ilha. Portanto, o nmero acrescia-se de significados reviravoltas, mudanas, rebelio, como a que foi semeada num dia 26 (de julho), quando um grupo dirigido por Fidel tentou tomar de assalto o quartel Moncada, como reao ao golpe de Estado desatado por Fulgncio Batista no ano de 52 (o dobro de 26). Claro est que estas coincidncias numerolgicas s ganham sentido pelo aparecimento de Fidel no cenrio poltico. Assim, no sendo naturalmente aconselhvel quebrar a magia dessa histria, aceitamos deixar os 27 como um atropelo fortuito, causado por investigadores tinhosos. Ainda resta a impreciso da hora do nascimento, s vezes difcil de ser estabelecida com exatido, ainda mais neste caso, j que a memria de Lina podia no estar to fresca quando foi feita a primeira certido. Nesta, constava que o nascimento ocorrera s duas horas; j nas posteriores, fixava-se a meia-noite. Mas no55

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

consenso dos pesquisadores do Arquivo Fidel Castro, a hora correta a primeira. Quanto aos vrios complementos do nome Hiplito, Casiano e Alejandro que constam dos diferentes registros, tm tambm o seu enredo. Os catlicos praticantes, como Lina, tinham o hbito de atribuir aos filhos o nome do santo do dia, de acordo com o almanaque cristo. Mas, como o dia 13 de agosto dos santos Hiplito e Ponciano, no lhe restou outra alternativa que a de dividir a dupla. Inseriu-se Hiplito na ata de batismo e inventou-se um Casiano para a primeira certido (diga-se: uma aproximao de bom gosto com o verdadeiro nome do santo). Por predileo calada e persistente, Lina ainda reintroduziu Casiano no diploma de segundo grau de Fidel, mesmo depois de estabelecido Alejandro. Ao mesmo tempo, mentalizava com freqncia a imagem daquele que, segundo ela, era o verdadeiro protetor do filho, So Fidel de Sigmaringa (cujo dia 24 de abril). Na trama da identidade de Fidel, a ltima influncia se origina em um dos seus tios, cujo nome completo Alejandro Fidel. Notese que Alejandro seria o seu codinome preferido em uma fase de clandestinidade. Como os irmos, Fidel nasceu grande, pesando 5,443 quilos. Mais um parto difcil, com a chamada urgente do mdico. Herdou o bero de ferro espcie de patrimnio familiar que viera na bagagem dos Ruz Gonzalez quando se retiraram do oeste , que ficava no quarto dos pais no andar de cima, junto ao solar. Ali, deitado, bem desperto, o beb Fidel arqueava as sobrancelhas e movia a boca para a frente com um leve sorriso matreiro, quando algo lhe agradava ou surpreendia, uma expresso que se fez peculiar. Ele vinha ao mundo em meio a acontecimentos que lanavam no cenrio nacional as figuras que agitariam o pas e a sua vida em particular, como Rubn Martnez Villena, Julio Antonio Mella, Eduardo Chibs e Antonio Guiteras. Nos anos 20, em meio instabilidade econmica, a rebeldia irrompera nas cidades, abarcando intelectuais, estudantes e operrios. Em dezembro56

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 3 Titn Fidel

de 1922, fora criada a Federao dos Estudantes Universitrios (FEU). No seu primeiro congresso, condenou-se o isolamento submetido Revoluo Russa pela comunidade internacional e foi exigida a anulao da Emenda Platt, assim como do Tratado Permanente entre Cuba e os Estados Unidos. Em Havana, o Protesto dos 13, um manifesto de jovens intelectuais, em maro de 1923, denunciava falcatruas do Estado. Entre os seus assinantes, Martnez Villena e Juan Marinello, futuros dirigentes de esquerda, Nicolas Guilln e Alejo Carpentier, os escritores que desenvolveriam a temtica da nao cubana com uma excelente qualidade. Criou-se a primeira central sindical do pas (Confederao Nacional Operria de Cuba - CNOC) e, em 1925, foi fundado o Partido Comunista de Cuba (PCC), como uma seo da III Internacional Comunista. Seu principal lder era Julio Antonio Mella, presidente da FEU. Acusado de terrorismo pelo general Machado, o Presidente, Mella foi preso e tornado incomunicvel. Declarou-se em greve de fome, um ato considerado pequenoburgus por outros dirigentes do PC que solicitaram o seu afastamento. Passados vrios dias, Mella sofria um colapso e, por presso popular, foi posto em liberdade, seguindo, clandestino, para o exlio no Mxico. Ali, Mella tornar-se-ia dirigente do Partido Comunista Mexicano, uma soluo tirada do bolso pelo Bur do Caribe7 uma diviso da Internacional Comunista coordenada pelo partido comunista norte-americano , ante o pedido de sua expulso. Mantendo contato com os seus aliados em Cuba, Mella iniciava gestes para uma insurreio armada. Informado do plano, o Presidente Machado mandou assassin-lo. Na Universidade de Havana, o recm-criado Diretrio Estudantil, com Antonio Guiteras e Eduardo R. Chibs, deflagraria a luta contra a prorrogao do mandato do ditador Machado, conforme aprovara o Congresso. Nessa conjuntura, esboou-se a problemtica da esquerda cubana no curso da Repblica. Decorria, em sua origem, de di57

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

vergncias entre organizaes no exterior. Havia as que se disciplinaram no modelo sovitico, subordinando-se aos ditames do Komintern como o PC cubano , as que assumiram um projeto social-democrata ou reformista e as que se afogaram nas amargas heranas da guerra. Em Birn, com quase dois anos, com o cabelo bem louro e cacheado, Fidel impressionava por seu olhar inquiridor e a postura ereta8. Aos quatro, j freqentava a escola pblica de Birn, uma casinha de madeira de teto de zinco, com mesas e cadeiras de ferro batido.9 Como no tinha onde ficar, nem queria se afastar dos irmos, a professora Eufrasia Feliu (Eufrasita) aceitou-o provisoriamente; mas o menino insistia tanto em permanecer, que acabou tornando-se aluno regular, a pedido de Lina. A classe era composta por uns 20 alunos, incluindo os irmos e os primos de Fidel Ana Rosa e Clara (esta da mesma idade do menino), Luis e Maria Antonia, os filhos de Antonia e os camponeses da fazenda: Carlos Falcn, Julita, o negrinho Genaro, Pedro e Angel Guevara e Juan Socarrs, todos maiores. Ali, Fidel aprendeu a cantar o Hino Nacional e a identificar os smbolos ptrios; observava as aulas e rabiscava o caderno. Sentava-me numa pequena carteira, na primeira fila; dali via o quadro-negro e escutava tudo o que ela dizia, lembra ele. Dona Dominga gostava de ouvir as histrias da escolinha, quando os netos visitavam-na em seu chucho. Fidel chamava-a de me, assim como D. Pancho de pai, por conta da convivncia diria com os tios na infncia. Maria Jlia e Belita, as tias mais novas, ainda eram solteiras e viviam no sobrado, ajudando nos afazeres domsticos. A primeira foto de Fidel fora tirada em 1930, em frente casa de Dominga10, acompanhado de Lina e as irms, todos recostados em uma caminhonete. Ano difcil. Dominga s no entendia porque Castro estimulava que todos estudassem, em vez de ajudar mais na lavoura. Antigos moradores de Birn recordam que no houve safra; que outros proprietrios locais roubaram a produo de colonos e vice-versa, em um cr58

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 3 Titn Fidel

culo vicioso. Eram os efeitos da Quinta-feira Negra, o dia da queda da Bolsa de Nova York. Mais de um milho de pessoas ficaram desempregadas em Cuba. Rubn Martnez Villena, o organizador de um grande movimento grevista, foi eliminado a mando do general Machado. Durante a Grande Depresso, vrios engenhos detiveram a moagem. O governo norte-americano tentava sustentar os preos do acar cubano, mas o mercado s se reativou quatro anos depois. Aps as aulas, todos os dias, Fidel ia ao Rio Birn, banhar-se na cova do Charco Fundo ou no Charco del Jobo, uma pequena lagoa sombreada por rvores de jobo, uma pequena fruta amarela parecida com a ameixa. Acompanhando-o, os irmos e os filhos dos camponeses, mais quatro cachorros Huracn, Napolen, Guarina e Escopeta11 , que com eles corriam at o rio, fazendo um escarcu. Fidel aprendeu rpido a nadar e o fazia bem. Normalmente entrava na lagoinha montado no Careto, nome dado por ele a um potro de bom trote e cor marrom, com uma grande mancha branca na fronte. Pescando manjubas, em uma certa ocasio, Fidel tirou uma bem do fundo e colocou sobre a cabea do amigo Carlos Falcn, que, zangado, ameaou quebrar-lhe as costas. Pura brincadeira; aqueles dois eram feito unha e carne, principalmente se fosse preciso unir esforos contra um adversrio comum. Na escolinha, estudava o filho do prefeito que era metido a valento. Vamos tirar a banca dele, props Fidel ao amigo, expondo-lhe um plano. No meio de um jogo de bola, no recreio, Carlito Falcn esbarrou no tal filho do prefeito e deu-lhe uma pisada. Ganhou um bofeto e Fidel se apresentou: D em mim!, gritou. Embolaram-se os trs. Em poucos minutos de briga, assistidos pela professora que chegara ao porto, o filho do prefeito pedia arrego.12 Correndo pela terra, quase sempre descalo, Fidel brincava de caar com estilingue e arco e flecha, mostrando boa pontaria. s vezes, atingia uma lima em cheio. A plantao de ctricos ampliara-se; alm das laranjas, agora havia grapefruits, tangeri59

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

nas e limas, que, como dizia Lina, eram bem teis nas doenas de infncia, que costumavam pegar todos os irmos e primos de uma vez s. A fazenda chegou a ter 15 mil rvores de ctricos, vendidos a dez centavos a centena e a um peso o milhar, sendo um cliente fixo o Hospital da Usina Preston. No fim do dia, hora de dormir, Fidel j ocupava, com o irmo Ramn, um dos quartos do andar de baixo. Um novo irmo estava por nascer, Ral, em 3 de junho de 1931. A cada dia, os meninos ficavam mais levados. Certa vez deixaram a porta da escola aberta e, de noite, fomos rasgar o mapa de Cuba, porque Birn no aparecia nele, conta Ramn13. Noutra ocasio, a professora chamou a ateno de Fidel, que lhe gritou um palavro aprendido com os vaqueiros e os haitianos, correu pelo corredor enfezado e saltou por uma janela dos fundos. Acabou caindo em cima de um caixote de goiabada e feriu-se com um prego na lngua. Lina, enquanto tratava do ferimento, disse-lhe que tinha sido um castigo de Deus pela boca suja14. Eventualmente, saam da escola e desapareciam pelo campo; ou metiam-se no barraco com os haitianos e almoavam com eles. Chegavam a apreciar a sopa de farinha fervida, que, com um pouco de sorte, podia vir acompanhada de um pedao de carne seca. Ao sentarem-se mesa em casa, acabavam deixando a comida no prato. Lina, deduzindo o motivo, apressava-se a dar-lhes purgantes para no pegarem doenas. Quando no havia aula, de manhzinha corriam ao batey (a lavoura), permanecendo at tarde. Nas casas dos camponeses compartilhavam da refeio com batata-doce ou das espigas de milho assadas, estas da preferncia de Fidel. Castro no se importava muito com as travessuras dos filhos. Dependendo do caso, podia enfurecer-se, mas logo serenava. As repreenses mais speras cabiam me. Lina, quando achava necessrio, impunha sua autoridade com um cinto deixado sempre ao alcance. Depois das surras e s escondidas, Ramn e Fidel iam pegar o cinto no armrio e picotavam-no com a tesou60

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 3 Titn Fidel

ra; mas ela arranjava outro. Fidel era quem sabia lev-la. Quando a me ameaava dar-lhe palmadas, olhava-a com firmeza, aceitando a advertncia. Chegava a oferecer as ndegas e Lina se desconcertava. No carter, Fidel se parecia muito com Lina. Quando se machucava, agentava calado e se curava sozinho. Operava lagartixas, dizendo que seria cirurgio, assimilando o pendor da me. J nos traos fsicos, e em certos sentimentos, era como o pai. Cresci no seio de uma famlia de um grande proprietrio, com todas as comodidades e privilgios,15 mas meu pai era realmente um homem generoso. Observvamos a sua maneira de ser e, mais tarde, em vrias ocasies, vamo-nos resolvendo as coisas ao seu jeito16, recorda Fidel. Encontrando-se s margens do rio, um dia, ainda pequeno, disse a um garoto de mais ou menos seis anos: Por que voc no vai escola aprender? Se no, amanh vo te enganar e roubar.17 O menino respondeu que no tinha nem roupa nem sapato para ir escola. Ento, Fidel juntou seu par de sapatos e a camisa que vestia, fez uma trouxa, ps em cima de uma pedra, chegou perto do menino e segredou: Ali embaixo da cachoeira deixei o sapato e a camisa para voc. Amanh, voc se apronta e vai escola comigo. No dia seguinte, ao passar o garoto pela tenda, Lina reparou no traje e ficou intrigada. Esses sapatos e essa camisa so de Titn, disse-lhe. O menino respondeu que tinha achado a roupa no rio, mas que, se ela quisesse, devolvia. Lina pensou bem e deu de ombros, resolvendo esquecer o assunto. Durante a infncia, entretanto, Fidel no era de ficar o tempo todo ao ar livre. Como j sabia ler, freqentemente, detinha-se nas pginas de algum livro de histrias. Gostava dos relatos picos e se entusiasmava quando o seu meio-irmo, Pedro Emlio, ao vir de visita, falava-lhe das batalhas gregas e romanas que estudava. Abstraa-se quando D. Angel falava dos heris da Independncia de Cuba, da guerra que ele prprio vivera. Escapava at o correio e permanecia contemplativo, da janela, observan61

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

do como o telegrafista recebia as mensagens e a naturalidade com que as memorizava; escutando o som recorrente das teclas da mquina Underwood18. Inquieto, afetivo, afoito, reflexivo e autoconfiante. A personalidade de Fidel era mesmo incomum e mltipla, com inteligncia e dotes amplos. A memria era especialmente privilegiada, quem sabe uma herana do av D. Pancho. Lia um poema e o retinha imediatamente. Naquela poca, j precisvamos conviver com a memria dele, declara Ramn, conformado19. Do av, pegou ainda o temperamento de pavio curto. D. Pancho, quando se incomodava com algum, no queria conversa, virava as costas. Se ficava brabo com Castro, botava o p na estrada. Uma vez, ele se desgostou porque o genro, entre as terras comprometidas com um plantio, inclura uma parte que era sua, justo a das bananeiras tratadas com tanto esmero. D. Pancho reuniu a famlia, meteu os pertences numa carreta e foi para Gbara, depois sabe-se l para onde. Maria Jlia e Belita insistiam em voltar para Birn e conseguiram afinal amolecer o pai20. Ele partiu e regressou outras duas vezes, mas dizem que a causa real do regresso era Lina ou Antonia, que sempre estavam para dar luz. Os partos serviam de reconciliao. *** Pelo pas, a ditadura de Machado atingia os estertores. Vrias organizaes armadas clandestinas, de ao, surgiam, a favor e contra a manuteno do Presidente. Por orientao do Presidente Franklin Delano Roosevelt, promotor da diplomacia da boa vizinhana, em maio de 1933, chegou a Cuba Benjamn Summer Welles, com a misso de convencer Machado a abandonar o governo. Ao chegar, Welles foi pedir o apoio de um grupo de comunistas detidos21 para acalmar a ascendente contestao, os quais solicitaram liberdade para tomarem providncias. O Partido Comunista via-se diante de um dilema: um setor propunha a62

TOMO I DO MENINO AO GUERRILHEIRO CAPTULO 3 Titn Fidel

entrega de toda deciso s massas; outro admitia um acordo com Machado, justificando ser melhor que lidar com uma nova interveno norte-americana. A crise englobou categorias das foras armadas e da polcia. Dois sargentos Fulgncio Batista e Zaldvar tramaram um golpe, em contato com dirigentes estudantis e comunistas. Batista, mais uma figura a despontar na poca, seria a que Fidel derrubaria do poder 25 anos mais tarde. A Revoluo dos Sargentos, iniciada na madrugada de 4 de setembro de 1933, estabeleceu no poder um governo de cinco, sob a Presidncia de Ramn Grau San Martn. Mas, logo, confrontar-se-iam duas tendncias: a de Batista, promovido a coronel e a chefe do Estado Maior do Exrcito, e a de Antonio Guiteras, secretrio de Governo, Guerra e Marinha, que implementou vrias medidas progressistas. Tropas comandadas por Batista, que s escondidas entendia-se com o embaixador Summer Welles, reprimiram as manifestaes de apoio ao regime. Mas seria Guiteras o acusado pelos comunistas de responsvel pela violncia nas ruas, por ser superior a Batista na hierarquia do poder. Condicionados por uma viso sectria, no fundo rejeitavam a poltica que traara Guiteras. Atacado pelos dois extremos, da direita e da esquerda, ele se enfraqueceu e com ele, a tentativa de um projeto nacional. Quanto ao Presidente Grau San Martn, parecia no saber que lado era melhor. Em 1934, o coronel Batista acabou apoderando-se do governo, abrindo campo para mandatrios afinados com os Estados Unidos. *** Em Birn, a professora Eufrasita permanecia durante todo o perodo letivo, residindo em uma casa cedida especialmente para ela por D. Angel, seguindo nas frias para Santiago, onde viviam seus parentes. Em meados de 1933, ela comeou a insistir com Castro sobre a convenincia de as crianas estudarem na63

FIDEL CASTRO UMA BIOGRAFIA CONSENTIDA Claudia Furiati

cidade, onde receberiam uma instruo melhor. Repisava que Fidel era aplicado e esperto, assim como Angelita, ainda que nunca mencionasse Ramn, que no demonstrava inclinao para os estudos. Argumentava que ambos poderiam ficar aos cuidados de sua famlia, que Lina conhecera quando fora a Santiago e da qual guardava uma boa impresso. A famlia Feliu se compunha de trs irms solteironas e um pai vivo. Nestor havia sido um alfaiate de prestgio, mas estava velho e enfermo. A irm mais velha era mdica, a do meio, pianista, sendo a menor Eufrasita, todas educadas no Haiti e dominando o francs. Lina retinha na memria especialmente a competente mdica, por quem Angelita havia sido