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FACULDADE DE SÃO BENTO
BACHARELADO EM TEOLOGIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
FÉ E RESILIÊNCIA:
EM BUSCA DE UM SENTIDO PARA O SOFRIMENTO
Julio Cesar de Oliveira
São Paulo
2018
FACULDADE DE SÃO BENTO
BACHARELADO EM TEOLOGIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
FÉ E RESILIÊNCIA:
EM BUSCA DE UM SENTIDO PARA O SOFRIMENTO
Monografia apresentada como exigência para
obtenção do título de Bacharel em Teologia.
Orientador: Prof. Dr. Pe. Márcio Alexandre
Couto.
São Paulo
2018
Julio Cesar de Oliveira
Fé e resiliência:
Em busca de um sentido para o sofrimento
Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado em Teologia da
Faculdade de São Bento do Mosteiro de São Bento de São Paulo,
como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em
Teologia.
Orientador: Prof. Dr. Márcio Alexandre Couto.
Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em 27/11/2018, pela banca
examinadora:
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Márcio Alexandre Couto
_________________________________________________________________________
Prof. Magno José Vilela
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Domingos Zamagna
AGRADECIMENTOS
Ao Deus Trino...
Que acolhe em seu amor a humanidade sofredora.
À família...
Fonte de vida e vocação.
Aos professores...
Fontes de conhecimento e inspiração...
Um agradecimento afetuoso...
À minha família religiosa, Ordem dos Servos de Maria, chamada a estar aos pés das
infinitas cruzes da humanidade, a todos meus confrades que me apoiaram e incentivaram
em minha vocação, sendo presença e sinal do amor de Deus em minha vida.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Frei Marcio Alexandre Couto, da Ordem dos Pregadores,
pela disponibilidade e doação no processo de desenvolvimento deste trabalho, sempre
com a cordialidade e a escuta evangélica, e por suas orientações que enriqueceram este
trabalho. Também aos estimados professores que compõem a banca examinadora Prof.
Dr. Domingos Zamagna e Prof. Dr. Magno José Vilela pelos quais tenho grande apreço.
Mas o sofrimento insiste em ser notado. Deus sussurra em nossos
prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nosso sofrimento:
ele é o seu megafone para despertar um mundo surdo.
(C.S.LEWIS)
És perseverante, pois sofreste por causa do meu nome, mas não
esmoreceste.
(Apocalipse 2,3)
A fé esclarecida que tens, guarda-a para ti diante de Deus.
(Romanos 14, 22 )
RESUMO
O Sofrimento constitui uma realidade inerente ao ser humano e tem uma pluralidade em suas
manifestações, abrangendo desde sua natureza física à sua capacidade psíquica e espiritual.
Nesse contexto as ciências procuram dar uma resposta sobre a realidade do sofrimento, e
encontram uma multidimensionalidade para sua abordagem. Em uma dimensão
antropológica, o sofrimento constitui-se como resultado de uma condição natural do ser
humano enquanto matéria, que possibilita alcançar outras dimensões a partir de sua vivência
e reflexão sobre sua própria existência. Frente a esta realidade este trabalho procura refletir
sobre caminho que o ser humano se coloca na busca de significar o sofrimento: é a busca de
sentido para o sofrimento que perpassa toda a história humana. A partir do método teológico,
este trabalho propõe uma abordagem sobre o sofrimento a fim de atribuir-lhe um sentido.
Essa abordagem tem a sua fundamentação na Revelação, que se encontra na Sagrada
Escritura, desde o Antigo Testamento e que alcança sua plenitude no Novo Testamento na
pessoa de Jesus Cristo. Partindo da compreensão de resiliência como capacidade do ser
humano de lidar com o sofrimento em convergência com a virtude da fortaleza, encontramos
na fé uma adesão pessoal do homem a Deus, que auxilia o homem no processo de resiliência.
Concomitante a esse processo encontramos a busca de sentido, que vai possibilitar ao ser
humano a compreensão de seu sofrimento e então poder ressignificá-lo e vivê-lo na
perspectiva da fé. Definindo o conceito de sentido e aplicando-o na dimensão da fé em Jesus
Cristo, o ser humano que sofre se vê inserido numa dinâmica que envolve três áreas
importantes do estudo teológico: a escatologia, a soteriologia e a eclesiologia. A busca de
sentido para o sofrimento, encontra uma resposta na experiência de Deus dentro da vivência
da fé, que envolve o ser humano num processo profundo de resiliência.
Palavras-chave: Sofrimento. Resiliência. Sentido. Fé.
RÉSUMÉ
La Souffrance constitue une réalité inhérente à l’être humain et possède une pluralité dans
ses manifestations, en incluant depuis la nature physique jusqu’à sa capacité psychique et
spirituelle. Dans ce contexte, les sciences essaient de donner une réponse sur la réalité de la
souffrance et elles trouvent une multidimensionnalité à son approche. Dans une dimension
anthropologique, la souffrance s’achève comme le résultat d’une condition naturelle de
l’homme en tant que matière, ce qui permet d’atteindre d’autres dimensions à partir de
l’expérience et de la réflexion sur sa propre existence. Dû cette réalité, ce travail tente de
réflechir sur le chemin dans lequel l’homme se met à la recherche de comprendre la
souffrance : c’est la quête au sens pour la souffrance qui a lieu à travers toute l’histoire
humaine. À partir de la méthode théologique, ce travail propose une approche sur la
souffrance dans le but d’y trouver du sens. Cette approche a son fondament dans la
Révélation qui se trouve dans l’Écriture Sacrée, depuis l’Ancien Testament et qui atteind sa
plénitude au Nouveau Testament, dans la personne de Jésus Christ. Dans le cadre de la
compréhension de la résilience comme la capacité de l’être humain de gérer la souffrance en
convergence à la vertu de la forteresse, on trouve dans la foi un instrument d’aide dans le
processus de la résilience. En même temps, on trouve la quête au sens qui permet à l’homme
d’avoir la compréhension de sa souffrance et donc de pouvoir y attribuer la signification et
la vivre dans la perspective de la foi. À la définition du concept du sens et à la mise en place
de la foi en Jésus Christ, l’homme qui souffre se voit placé dans une dynamique qui entoure
trois domaines importants de l’étude théologique : l’eschatologie, la sotériologie et
l’ecclésiologie. La quête pour le sens de la souffrance trouve une réponse dans l’expérience
de Dieu à l’intérieur de la foi, qui insère l’homme dans un processus appronfondi de la
résilience.
Mots-clés : Souffrance. Sens, signification. Foi.
Sumário
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 10
1. SOFRIMENTO .......................................................................................................... 12
1.1 ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA .................................................................. 12
1.2 SOFRIMENTO NA PERSPECTIVA BÍBLICO - TEOLÓGICA ...................... 15
1.2.1 O desenvolvimento da compreensão do sofrimento na literatura bíblica
do Antigo testamento: ............................................................................................... 16
1.2.1.1 O Sofrimento no pensamento pré-exílico............................................... 16
1.2.1.2 O Sofrimento na literatura deuteronomista ............................................ 18
1.2.1.3 O sofrimento na literatura profética. ...................................................... 20
1.2.1.4 O sofrimento na literatura sapiencial ..................................................... 23
1.2.2 A compreensão do sofrimento a partir de Jesus Cristo na perspectiva do
Novo Testamento ....................................................................................................... 25
1.2.2.1 O Sofrimento na perspectiva dos Evangelhos. ....................................... 26
1.2.2.2 Jesus Cristo diante do sofrimento........................................................... 30
1.2.2.3 O Sofrimento na Teologia Paulina ......................................................... 33
1.2.2.4 O Sofrimento na 1ª Carta de Pedro. ....................................................... 35
2. SOFRIMENTO, RESILIÊNCIA E SENTIDO ....................................................... 38
2.1 RESILIÊNCIA ...................................................................................................... 38
2.1.1 Resiliência e a Virtude da Fortaleza .......................................................... 42
2.2 SENTIDO ............................................................................................................. 45
2.2.1 A compreensão de “sentido”. ...................................................................... 46
2.2.1.1 Sentido como finalidade. ........................................................................ 46
2.2.1.2 Sentido como valor................................................................................. 47
2.2.1.3 Sentido como direção. ............................................................................ 49
2.2.2 O sentido da Vida ........................................................................................ 50
2.2.3 O sentido do Sofrimento ............................................................................. 51
3. FÉ E O SENTIDO PARA O SOFRIMENTO ......................................................... 54
3.1 FÉ .......................................................................................................................... 55
3.1.1 A fé na busca de sentido para o sofrimento. ............................................. 57
3.1.1.1 Fé na dimensão escatológica e o sentido como finalidade. .................... 61
3.1.1.2 Fé na dimensão soteriológica e o sentido como valor. ........................... 64
3.1.1.3 Fé na dimensão eclesiológica e o sentido como direção. ....................... 66
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 69
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ........................................................................... 73
10
INTRODUÇÃO
A busca de sentido para o sofrimento perpassa toda história humana, uma vez que
o ser humano está sujeito ao sofrimento em suas várias possibilidades de manifestações.
O ser humano então se pergunta: Que sentido há no sofrimento? Por que sofremos? Como
lidar com o sofrimento e suas consequências na vida? Essas e outras reflexões surgem a
partir da capacidade do ser humano de pensar sua existência e, por conseguinte sua
finitude. Nesse processo de indagação acerca do sofrimento, o ser humano encontra-se
diante de outros fatores que colaboram na busca de uma resposta: sua capacidade de
superação, sua abertura à experiência transcendental, entre outros.
A busca de uma resposta a fim de encontrar um sentido para o sofrimento foi
sendo sistematizada pelas diversas ciências, o que possibilitou uma melhor compreensão
do sofrimento e suas manifestações na vida do ser humano. As abordagens realizadas
pelas ciências podem ser conjugadas a fim de apresentar um caminho de reflexão
sistêmico e sinérgico do conhecimento já adquirido a respeito do sofrimento.
No intento de colaborar com o ser humano na busca de uma resposta de sentido
para o sofrimento, neste trabalho propomos apresentar um caminho de reflexão a partir
da Teologia, em diálogo com outras áreas do conhecimento. Para realização da reflexão
aqui proposta, procuramos utilizar o pensamento de alguns autores sobre o tema, a fim de
buscar uma resposta coerente com o pensamento teológico. Desse modo, o método
consiste em apresentar conceitualmente alguns temas centrais na busca de sentido,
apresentando-os na perspectiva teológica.
Na primeira parte deste trabalho, procuramos compreender o sofrimento na
perspectiva antropológica, baseando-nos na apresentação do sofrimento em sua
multidimensionalidade pelo médico e professor Doutor Auro Del Giglio, que atua em
uma prática da medicina humanística. Outros autores que abordam temas importantes
nessa perspectiva do sofrimento também foram apresentados contribuindo para a
compreensão do sofrimento na perspectiva antropológica. Para compreensão do
sofrimento na perspectiva bíblico - teológica, seguimos de perto o autor Duarte Lourenço
em sua obra sobre o sofrimento no pensamento bíblico, entre outros autores.
Na segunda parte, após ter compreendido os aspectos fundamentais
antropológicos e bíblico-teológicos do sofrimento, propomos uma reflexão sobre a
importância da resiliência na busca de sentido. Para tanto, iniciamos com a abordagem
11
do conceito da resiliência, termo mais recente na abordagem comportamental do ser
humano, demonstrando que o ser humano é capaz de lidar com o sofrimento de forma
ativa, e sua aproximação com a virtude da fortaleza, aplicando assim uma dimensão
teológica ao termo. A abordagem do sentido, a fim de contextualizá-lo neste trabalho,
fundamentou-se na definição de Clodovis Boff, em sua obra “O livro do sentido”, que
nos apresenta o sentido em três dimensões: finalidade, valor e direção, que contribuíram
sumamente para apresentar o sentido do sofrimento a partir do pensamento teológico.
Nessa parte, destacamos a busca de sentido, tanto para a vida quanto para as demais
dimensões que constituem um caminho de reflexão para o ser humano.
Na terceira parte, destacamos a fé como instrumento que contribui no processo de
resiliência e na busca de sentido para o sofrimento. A partir de alguns autores, podemos
compreender o que é a fé e sua manifestação na vida do ser humano. Compreendidos
sucintamente a importância da fé no processo de resiliência e busca de sentido,
empregamo-nos então numa reflexão teológica a fim de apresentar uma resposta que
conduza à compreensão de um sentido para o sofrimento. Nessa reflexão, retomamos a
definição de Clodovis Boff, das três dimensões do sentido aplicando-as à realidade
teológica da escatologia, soteriologia e da eclesiologia, baseando-nos na “Carta
Apostólica Salvifici Doloris” sobre o sentido cristão do sofrimento humano.
A estrutura da reflexão proposta no trabalho permite alcançar seu intuito inicial
de apresentar uma resposta na busca de sentido para o sofrimento, por meio da fé e da
capacidade de resiliência de cada ser humano.
12
1. SOFRIMENTO
1.1 ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA
O sofrimento do ponto de vista antropológico constitui uma realidade
multidimensional, ao qual o ser humano no decorrer da história procurou dar uma resposta
por meio dos diversos segmentos práticos e teóricos do conhecimento. As respostas não
encerram em si as possibilidades de abordagens da problemática sobre o sofrimento,
sendo possível conjugar antigas e novas formas de abordagens na busca de compreender
a inclinação natural do ser humano de resistir às condições que conotam o sofrimento nas
suas mais variadas formas.
Essa multidimensionalidade do sofrimento nos leva à busca de uma definição
capaz de sintetizar essa pluralidade de suas manifestações e então aprofundar-se seguindo
a especialização de cada dimensão. Segundo Giglio (2013, p.46): “sofrimento pode ser
definido como experiência de suportar dor ou desconforto”, a amplitude desta definição
nos permite trilhar por vários caminhos de abordagens do sofrimento, como o mesmo
autor afirma:
O sofrimento ocorre quando existe ameaça à destruição da pessoa e persiste
até que esse perigo de desintegração tenha desaparecido ou a pessoa tenha se
recomposto de alguma outra forma. Por envolver o ser humano em qualquer
uma de suas possíveis vertentes, o sofrimento é essencialmente uma
experiência multidimensional, pois pode se falar de sofrimento físico,
psicológico, espiritual, existencial. (CASSELL,1982, apud GIGLIO, 2013,
p.46)
Com base nessa compreensão podemos afirmar que o sofrimento sempre esteve
presente na história humana como uma realidade inseparável de sua própria natureza,
principalmente no que tange ao corpo, seu sofrimento físico. O sofrimento físico,
associado à dor, no decorrer da história vai sendo instrumentalizado pelas culturas e se
manifesta muitas vezes de forma ambígua. Se por um lado, há uma inclinação natural de
resistência e fuga do sofrimento, por outro lado, podemos verificar que em diversas
culturas o sofrimento é associado a rituais religiosos de penitência e purificação.
Encontramos também uma instrumentalização do sofrimento como o meio de tortura ou
então, como busca de prazer como o masoquismo, sadomasoquismo entre outros.
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Encontramos no sofrimento físico, para além de suas experiências
instrumentalizadas, a experiência da própria condição humana enquanto corpo, matéria
corruptível, porque “ Perante o fato de que os seres materiais (entre eles o corpo humano)
são corruptíveis e sujeitos à morte. ” (SCHLESINGER e PORTO, 1995, p. 2411).
Nesse âmbito encontramos as doenças, que afetam o ser humano na complexidade
de sua constituição física e que independe de sua vontade colocando-o a priori numa
condição passiva de sofrimento e sob ameaça daquela destruição da pessoa citada por
Giglio (2013).
O sofrimento físico encontra, por meio das diversas ciências, uma possibilidade
de amenização, alívio ou mesmo erradicação, sendo importante salientar que mesmo
erradicado um determinado sofrimento físico, o ser humano estará sempre sujeito a este
sofrimento decorrente de sua condição natural de matéria. O sofrimento físico quando
não passível de ser amenizado ou erradicado, tem seu fim naquela destruição da pessoa
citada por Giglio (2013), que aqui podemos denominar morte. Segundo Callia (2005, p.
8) “A morte, como advento da consciência, passou a ocupar uma posição básica na
existência da humanidade: o ser humano, como sabemos, é o único ser vivo que pensa a
sua existência e, consequentemente, a sua morte”.
A morte vista como fim do sofrimento, encerra em si aquela passividade de
sofrimento do ser humano decorrente de sua condição natural, mas deixa em aberto à
humanidade uma variável de fatores acerca de seu próprio fim. Por vezes a morte ganha
seu significado a partir da experiência acerca do sofrimento, segundo Reis:
Se a morte representar o alívio de dores físicas e aflições psíquicas
insuportáveis, ou de outros dissabores quaisquer – subtração de algo negativo
– diz-se que a morte é um bem negativo: por tirar o ruim, melhora. Se a morte,
contudo, for apenas o término de uma vida repleta de satisfações e alegrias –
subtração de algo positivo -, a morte é um mal negativo – o fim do bem bom.
(REIS, 2005, p. 21)
Surge então o sofrimento em torno da própria morte, pois ela revela a finitude da
natureza humana, e leva o ser humano a refletir sobre ela, debruçando-se sobre sua própria
existência.
No campo da reflexão sobre sua existência, o ser humano se depara com outras
dimensões além daquela de matéria em que o sofrimento também se faz presente, como
citado por Giglio (2013), a saber: psicológico, espiritual, existencial, entre outros. Essa
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contextualização pode ser verificada a partir de algumas afirmações do autor sobre o
atendimento aos seus pacientes:
Na busca de causas biológicas da febre não saberemos como abordar crises
existenciais, mas percebendo o sofrimento do paciente encontraremos tudo: a
febre, o papel do antibiótico, o medo, a angústia e, inclusive, as imensas
diferenças culturais dos seres humanos que tratamos. (GIGLIO, 2013, p. 14)
Ou ainda:
Ao abordarmos o sofrimento de um paciente sob diversos ângulos e sob
diversas formas de pensar, estaremos diante da possibilidade de uma
verdadeira síntese das várias vertentes que compõem o entendimento do ser
que sofre e, assim, mais próximos de um novo paradigma para melhor poder
compreendê-lo e tratá-lo. (GIGLIO, 2013, p. 30)
Por meio da reflexão em torno da existência humana é possível, portanto, perceber
o sofrimento nas suas mais variadas manifestações. Muitas vezes, o sofrimento é apenas
compreendido sob a ótica da dor, porém é preciso considerar: “Que o sofrimento
entendido como ato ou efeito de sofrer, suportar, tolerar, padecer com paciência ou
padecer dores, transcende a dor física para atingir o plano moral e espiritual. Por isso, ele
é considerado uma característica humana”. (VIEIRA; PIRES, 2009, p. 21)
Também por ultrapassar a dimensão física, é que o sofrimento apresenta sua
multidimensionalidade, tornando difícil uma compreensão sucinta de suas manifestações
na vida do ser humano. Essa compreensão muitas vezes é apresentada de forma coletiva,
uma vez que o ser humano é um ser relacional inserido em uma sociedade e sua relação
com o sofrimento é por vezes vivenciada sob os aspectos culturais, religiosos e sociais do
ambiente em que ele vive, como podemos constatar na seguinte afirmação:
O sofrimento não tem um significado único e universal. Muito pelo contrário.
Sua concepção varia conforme as diferentes épocas e culturas. Cada sociedade
estabelece uma relação com o sofrer que é captada por seus integrantes e ajuda
a configurar o existir daquela população. Sendo assim, as experiências de
sofrimento são elaboradas, interpretadas e expressas de formas diversas”
(VIEIRA; PIRES, 2009, p. 25)
O significado do sofrimento, encontra-se então na sua multidimensionalidade, na
sua pluralidade de manifestações não sendo único e universal, pois o próprio ser humano
em sua existência é um ser em contínua descoberta.
Como em toda experiência comum aos seres humanos as ciências procuram dar
uma resposta, também para o sofrimento. Podemos encontrar as várias abordagens que
procuram situar o sofrimento dentro de uma estrutura lógica de pensamento, mas as
subjetividades em torno das próprias experiências humanas tornam o sofrimento o objeto
15
da reflexão das mais variadas ciências. A medicina, a psicologia, a filosofia, a teologia
entre outras ciências, procuram conceituar o sofrimento dando-lhe um significado e
sentido próprio.
Dentro das diversas ciências, que refletem sobre o sofrimento, encontramos na
Teologia, um papel importante que conjuga o sofrimento na sua multidimensionalidade,
no qual é possível refletirmos à luz de uma perspectiva histórica.
1.2 SOFRIMENTO NA PERSPECTIVA BÍBLICO - TEOLÓGICA
Ao falarmos de antigas e novas formas de abordagens sobre o sofrimento,
encontramos no campo da Teologia um profundo desenvolvimento histórico da
compreensão do termo, decorrente da experiência social do povo judeu, transmitido entre
suas gerações e que vai ganhando novo significado nas diferentes épocas culturais,
sociais, entre outras.
A fonte principal desse conhecimento histórico do sofrimento no pensamento
teológico, encontra-se na Sagrada Escritura, é a partir de seus escritos redigidos nas
diferentes épocas que o pensamento a respeito do sofrimento vai se desenvolvendo.
É preciso, ao considerar tais escritos na perspectiva teológica, ressaltar seu valor
transcendental, ou seja, não apenas como uma estrutura lógica e racional do pensamento,
mas seu conteúdo da Revelação Divina, método onde razão e fé se conjugam, e se culmina
na experiência contemplativa da Verdade:
A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o
espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem
colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última
análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa
chegar também à verdade plena sobre si próprio. (FIDES ET RATIO, n.1)
Ora, a verdade é o objeto final das ciências, na perspectiva teológica, a verdade
constitui o próprio Deus, e sua interação com o ser humano dá-se na história por meio da
Revelação:
A verdade que Deus confiou ao homem a respeito de Si mesmo e da sua vida
insere-se, portanto, no tempo e na história” ... Assim, a história constitui um
caminho que o Povo de Deus há de percorrer inteiramente, de tal modo que a
verdade revelada possa exprimir em plenitude os seus conteúdos, graças à ação
incessante do Espírito Santo. (FIDES ET RATIO, n.11)
16
Na Sagrada Escritura, portanto, seguindo o método teológico, a Revelação de
Deus, se dá em meio à história de um povo eleito, que vai ganhando sua universalidade
no decorrer da mesma história. Por situar-se na história, a Revelação dá-se por meio dos
atributos próprios do ser humano, de fatores inerentes à sua existência:
A história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a ação de Deus em
favor da humanidade. Ele vem ter conosco, servindo-Se daquilo que nos é mais
familiar e mais fácil de verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do
qual não conseguiríamos entender-nos. (FIDES ET RATIO, n.12)
Partindo dessa compreensão da Revelação contida na Sagrada Escritura, e que se
dá por meio da história, não podemos excluir a experiência do sofrimento, uma vez que
este se faz presente no contexto quotidiano da vida humana, e conforme afirma o papa
João Paulo II na Carta Apostólica Salvifici Doloris (1984, n.6) “A Sagrada Escritura é
um grande livro sobre o sofrimento.”.
Para uma melhor compreensão do pensamento sobre o sofrimento na Sagrada
Escritura, podemos apresentar seu desenvolvimento a partir de uma abordagem geral,
perpassando sua própria literatura; no Antigo Testamento por meio das tradições pré-
exílicas e de três linhas gerais: literatura deuteronomista, sapiencial, profética e nos
escritos neotestamentários.
1.2.1 O desenvolvimento da compreensão do sofrimento na literatura bíblica
do Antigo testamento:
1.2.1.1 O Sofrimento no pensamento pré-exílico.
O conjunto de textos que compõem o Antigo Testamento, foi escrito em diferentes
épocas, e possuem em si suas particularidades demonstrando um desenvolvimento
histórico no pensamento veterotestamentário sobre as mais diversas questões que
envolvem o ser humano, entre elas o sofrimento.
Os primeiros textos do Antigo Testamento remontam ao período pré-exílico: são
os textos mais representativos das chamadas “tradições mais antigas”. Nesses textos, o
ser humano é considerado em sua totalidade e nessa perspectiva não encontraremos
distinção das manifestações do sofrimento, estando o foco de sua abordagem mais
inteiramente ligado ao seu sentido, Segundo Lourenço (2006, p.20) “ Não se preocupando
17
muito com a origem o escritor sagrado procura antes transmitir-nos uma perspectiva sobre
a razão e o sentido do sofrimento”.
Lourenço (2006) afirma que nessa tentativa de dar uma razão e um sentido para o
sofrimento, o escritor sagrado apresenta o sofrimento como um castigo por um pecado
cometido, estabelecendo desta forma uma forte relação entre pecado e sofrimento. Essa
forma de pensar, permitia também justificar a garantia da divindade de manter uma
correta ordem do universo, a partir de uma justa retribuição do comportamento humano
face a uma mesma ordem preestabelecida.
No início do livro do Gênesis encontramos a narrativa da criação e o relato da
queda do homem no paraíso1, onde podemos constatar a relação causa-efeito entre o
comportamento humano e o sofrimento, no qual o autor do livro do Gênesis busca
justificar por meio do pecado de Adão e Eva uma realidade vivida procurando dar uma
explicação e um sentido. Segundo Lourenço (2006, p.20) “Esta procura de uma
justificação encontrada no “pecado dos pais”, com as consequentes explicações deduzidas
a partir do mesmo, o cenário ideal de causa-efeito que assim explicitaria as origens do
sofrimento”
Para Lourenço (2006) esse pensamento sobre a origem do sofrimento a partir do
“pecado dos pais”, vai no decorrer do tempo encontrando um ponto de confronto, a
medida em que é possível constatar que essa ordem social preestabelecida não
correspondia a uma realidade objetiva em que o crente bíblico se via confrontado:
Na ordem social, e particularmente com a progressiva sedentarização da
sociedade israelita, o que constata é que nem sempre o justo prospera e, muitas
vezes, o ímpio e o pecador são bem-sucedidos e consegue obter grande sucesso
nos seus empreendimentos. (LOURENÇO, 2006, p.21)
Essa realidade confrontante com aquela noção de justa retribuição do
comportamento humano vai sendo verificada a partir da sedentarização da sociedade
israelita, ou seja, com o passar dos anos e das gerações, é possível verificar uma nova
realidade cultural e social que vai se configurando na sociedade israelita. Embora, em
meio aos escritos situados no período pré-exílico seja possível encontrar vestígios de um
pensamento que contraponha a noção originária criada a partir do “pecado dos pais” como
justificativa para o sofrimento, esse pensamento consolidar-se-á num período posterior,
1 Cf. Gn 3
18
concomitante ao surgimento da teologia profética emergente ao período daquela
sedentarização da sociedade.
Um aspecto importante a ser considerado é a relação do contexto cultural e social
com o pensamento sobre o sofrimento. Devido a esta forte relação o sofrimento assume
uma caraterística coletiva e social:
Consciente do seu forte vínculo de pertença a um grupo, o crente bíblico sente
que o sofrimento é um componente dessa sua pertença, da sua vida coletiva e
da sua inserção comunitária, e por isso, ele assume o sofrimento não apenas
como consequência do seus atos, mas também como algo que resulta do
comportamento de outros membros do seu povo, mormente daqueles que são
considerados como ímpios ou mesmo dos seus ascendentes e dos próprios
governantes2. (LOURENÇO, 2006, p. 22)
Essa configuração do pensamento sobre o sofrimento a partir de uma coletividade,
vai sendo reforçada e notada no período exílico e pós exílico, marcada por uma forte
transformação cultural e social que marcou também o pensamento bíblico a respeito do
sofrimento, abrindo novas perspectivas a fim de encontrar um sentido ou solução para
este problema. Esse desenvolvimento de pensamento é notável a partir dos escritos da
literatura deuteronomista, redigidos no período supracitado.
1.2.1.2 O Sofrimento na literatura deuteronomista
Ao debruçarmos sobre o estudo do sofrimento na literatura deuteronomista
encontraremos alguns vestígios daquela concepção encontrada nas tradições pré-exílicas,
ou seja, o sofrimento apresentado como uma consequência do pecado. Conforme
apresentado, o desenvolvimento da compreensão do sofrimento dá-se concomitante aos
fatores sociais, culturais entre outros, que marcam a sociedade nas diferentes épocas. É
neste ponto que encontramos a contribuição da reflexão sobre o sofrimento na literatura
deuteronomista, uma vez que tais escritos foram escritos durante o exílio ou no período
pós-exílico, segundo Lourenço (2006, p. 22) “Será em boa parte, a experiência do exílio
que ajudará o pensamento bíblico a alargar as suas perspectivas e a procurar outras
motivações ou causas para uma solução deste problema”.
Segundo o autor, e experiência do exílio desperta a busca de novas respostas para
aqueles questionamentos existentes na sociedade, como encontrar respostas para o
2 Cf. Ex 20,5; 1Sam 22,18; 2 Re 21,10-11.
19
sofrimento vivido no exílio, uma realidade em que a própria identidade vai se
desfigurando como podemos notar no seguinte salmo:
“Às margens dos rios de Babilônia, nos assentávamos chorando, lembrando-
nos de Sião. Nos salgueiros daquela terra, pendurávamos, então, as nossas
harpas, porque aqueles que nos tinham deportado pediam-nos um cântico.
Nossos opressores exigiam de nós um hino de alegria: Cantai-nos um dos
cânticos de Sião. Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor em terra
estranha? ” (Salmos 137:1-4)
A identidade de um povo é marcada por sua história, por sua pertença a um espaço
geográfico. Durante o exílio o povo de Israel se vê envolto por novas realidades sociais,
culturais, religiosas entre outros; é nos textos redigidos nesse período e, posteriormente,
que identificamos a intenção do autor de ressaltar a importância da fidelidade a Deus. Na
literatura deuteronomista, esta fidelidade a Deus é marcadamente centrada no
cumprimento da Lei e o sofrimento decorre do não cumprimento dela:
É por isso que a questão do sofrimento, mormente a trágica experiência do
exílio enquanto realidade sentida e vivida pelo crente, assuma aqui uma forte
relação com a vivência e a prática da Lei enquanto tal. No entanto, estando
essencialmente orientada para a vida prática e para a definição de normas
orientadoras do comportamento, a teologia deuteronomista não se preocupa
com a procura das causas, nem se detém em considerandos de natureza
abstrata; pelo contrário ela aponta exemplos de como o sofrimento decorre do
fato do não cumprimento da Lei, estabelecendo assim uma espécie de
correlação direta e automática entre esta e aquele. (LOURENÇO, 2006, p. 23)
Com base nessa afirmação do autor, podemos verificar que o sofrimento na
literatura deuteronomista tem como referência a Lei. Se na tradição pré-exílica o
sofrimento tinha como referencial a culpabilidade do “pecado dos pais”, na literatura
deuteronomista o referencial é a Lei, e o cumprimento ou descumprimento dela tem um
caráter mais pessoal, embora infira na realidade coletiva. Podemos constatar essa
perspectiva na seguinte afirmação:
A culpabilidade não é já transferida para um passado distante e anônimo, mas,
antes, é o resultado de uma escolha, de uma opção feita por cada um, sendo
essa opção posta a reflexão de cada crente através da centralidade que a Lei
assume na orientação do comportamento tanto coletivo como individual.
(LOURENÇO, 2006, p. 23)
Essa dimensão da compreensão do sofrimento a partir do descumprimento da Lei,
tanto individual como coletivamente, propicia a ideia de culpabilidade e orienta o povo
para o seu mau proceder, despertando-o para uma conversão a Deus; o sofrimento é tido
como resultado da desobediência à Lei. Nessa compreensão fica implícito no coração do
povo a mensagem: cumpra e ponha em prática a Lei.
20
Se por um lado, a Lei se tornara o referencial na vida do povo de Israel, e dentro
da literatura deuteronomista isso nos fica bem claro, por outro, não bastou para que o
povo permanecesse sempre fiel à Lei, ou que a Lei assumisse no decorrer da história um
papel diferente daquele de fidelidade da Aliança, tornando instrumento de abusos por
parte daqueles que detinham o conhecimento da Lei.3
Diante da realidade do povo de Israel foram surgindo no decorrer da história, no
Antigo Testamento realidades sociais, culturais e religiosas que confrontavam a
mensagem de fidelidade à Deus, principalmente no risco de o povo adequar-se a uma
religião politeísta, e quanto à marginalização e opressão daqueles mais necessitados entre
o povo, mesmo no período do exílio. Nesse contexto, encontramos o surgimento do
profetismo em Israel, que delineou profundamente a história bíblica do Antigo
Testamento.
1.2.1.3 O sofrimento na literatura profética.
A teologia do Antigo Testamento é profundamente marcada pela literatura
profética, e dentre os temas que esta literatura contempla, encontramos também o
sofrimento, desta vez permitindo-nos uma visão singular da mensagem bíblica face ao
espaço cultural e social circunvizinho. (LOURENÇO, 2006)
Segundo Lourenço (2006) se compararmos a compreensão do sofrimento da
literatura profética com aquela noção empregada pela tradição pré-exílica e literatura
deuteronomista, encontraremos uma contraposição, pois a primeira difere diretamente do
legalismo tão caraterístico das outras duas correntes, ainda que a primeira tenha como
plano de fundo a própria experiência do exílio da Babilónia, experiência esta que marcará
para sempre a história do povo de Israel no que concerne à sua experiência de sofrimento.
Segundo Schwantes (2007, p.80) “no exílio as pessoas tinham passado pela
experiência dolorosa de terem suas terras invadidas e destroçadas pelos babilônios”. Se
voltarmos nossa reflexão para os textos pré-exílicos, encontraremos o valor da terra, como
propriedade da promessa de Deus ao seu povo, portanto, o período exílico no que tange
a compreensão do sofrimento por via da literatura profética, está profundamente ligado
ao sentido da bondade de Deus para com seu povo eleito e seu projeto de salvação:
3 No Novo Testamento podemos constatar esses abusos claramente na repreensão que Jesus faz aos escribas
e fariseus. Cf. Mt 23, 1-39.
21
Ao pôr em causa a doutrina tradicional no que concerne às causas do
sofrimento, os profetas fazem-no, antes de mais, em nome da bondade de
Yahwé e do seu projeto de salvação, projeto este que não se confina aos limites
geográficos da terra de Israel nem se restringe à identidade étnica do seu povo,
mas antes de tudo assume uma universalidade sem confins que passa, acima
de tudo, pela adesão do coração a esse projeto. (LOURENÇO, 2006, p.24)
Encontramos no estudo da literatura profética, os denominados “profetas maiores”
e “profetas menores”, diferenciação não motivada por grau de importância, mas
primeiramente pelo volume de textos atribuídos a determinados profetas. Nestes textos
encontramos o sofrimento perpassando a literatura profética nas diferentes épocas da
história do povo de Israel.
Dentro da literatura profética, no estudo sobre o sofrimento podemos destacar
alguns profetas cujo sofrimento fica evidenciado tanto em sua mensagem quanto no
sofrimento do próprio profeta, como no caso do profeta Jeremias, pois sua abordagem
traz luz a uma nova maneira de interpretar o sofrimento:
Jeremias não faz do sofrimento uma tragédia, embora se lamente dele. Para
este profeta, o sofrimento não é imputado a Deus, nem assume qualquer
componente retributivo. Ao contrário, é imputado ao homem, ao poder mal
exercido e à falta de fidelidade e de atenção à palavra de Deus. Por isso o
sofrimento que Jeremias deve suportar é, acima de tudo, algo que resulta da
sua opção pessoal, da sua fidelidade e da sua paixão por Deus e pela Sua
Palavra” (LOURENÇO, 2006, p. 27)
Segundo o autor o testemunho de Jeremias marcará profundamente todo o
pensamento bíblico subsequente. O testemunho de vida de Jeremias contrapõe aquela
concepção legalista da literatura deuteronomista, sua vocação profética vivida com amor
e fidelidade à Deus, demonstra categoricamente não haver qualquer relação retributiva
entre pecado e sofrimento de que ele mesmo é vítima. Pelo seu testemunho demonstra o
contrário daquela concepção tradicional, que ele “homem de dores” não é pecador e que
seu sofrimento não é resultado de seu pecado.
Um outro profeta, cujo livro se destaca ao abordar o sofrimento no Antigo
Testamento é Isaías, e dentre seus textos podemos ressaltar o capitulo 53, que se refere
ao Servo Sofredor. Nesse texto é possível encontrar uma conjugação das abordagens
apresentadas: por um lado encontramos a posição tradicional na interpretação que os
interlocutores do Servo fazem de seu sofrimento, e por outro lado a novidade que consiste
na visão de que o sofrimento do Servo não é um castigo, nem mesmo por um pecado, mas
sim um momento de graça e intercessão em benefício de outros. (Lourenço 2006, p. 25)
22
Nos textos de Isaías, encontramos a dimensão do perdão, embora se verifique o
sofrimento com resquícios da concepção tradicional. Para o profeta o amor e o perdão se
sobrepõem ao pecado, apresentando uma nova abordagem:
Para nosso profeta, a deportação não é fatalidade, mas castigo, resultado da
culpa dos exilados. Culpa e castigo são passíveis de perdão. O mesmo não pode
ocorrer com o acaso. Dêutero-Isaías anuncia perdão a deportados. Refuta a
ideia de que o exílio seria acidente histórico. E com este anúncio do perdão
começa o novo, o coração de seus anúncios. (SCHWANTES, 2007, p.121)
Segundo Schwantes (2007, p.120) “perdão significa que o passado deixou de ser
determinante. Já não continua a ser uma amarra”. Essa noção apresentada pelo autor nos
permite compreender como o desenvolvimento da compreensão sobre o sofrimento passa
por profundas mudanças, principalmente na literatura profética distanciando – se cada
vez mais daquela concepção inicial tradicional.
Outros profetas possuem igual relevância no estudo sobre o sofrimento, podemos
citar como exemplo o profeta Ezequiel, cuja mensagem profética nos apresenta outra
perspectiva, a saber:
Trata-se do sentido da responsabilidade pessoal. A consciência da dignidade
individual de cada crente pelos seus atos face a Deus assume aqui um valor
que poderemos chamar de ‘sagrado’, tornando assim cada um como um crente
de pleno direito. Desta forma, a tradicional concepção de uma retribuição
coletiva ou transferida de uma geração a outra é incompatível com a fé de Israel
e com a bondade de Yahwé. (LOURENÇO, 2006, p.28)
Basta-nos a apresentação, ainda que de forma superficial, sobre a mensagem
profética de Jeremias, Isaías e Ezequiel no que tange ao sofrimento, para verificarmos as
mudanças significativas na compreensão sobre o sofrimento no contexto histórico do
povo de Israel.
Essa compreensão, na perspectiva da relação individual com Deus, inferirá
profundamente na teologia do sofrimento, e terá suas repercussões marcantes nos escritos
sapienciais.
23
1.2.1.4 O sofrimento na literatura sapiencial
Tendo compreendido o desenvolvimento do pensamento sobre o sofrimento na
história do povo de Israel por meio da tradição pré-exílica, pela literatura deuteronomista
e literatura profética, resta-nos abordar sua compreensão na literatura sapiencial, e
teremos um quadro geral do desenvolvimento do pensamento sobre o sofrimento nos
escritos do Antigo Testamento.
A compreensão sobre o sofrimento na literatura sapiencial não se distancia no que
tange ao contexto das abordagens anteriores, mas esta por sua vez, traz uma grande e
enriquecedora contribuição na compreensão do sofrimento “trata-se de algo inovador e
que naturalmente assume alguns contornos de influências recebidas da cultura grega: o
sofrimento visto como um elemento educativo e pedagógico na vida dos crentes”
(LOURENÇO, 2006, p. 28)
Segundo Lourenço (2006), o texto da literatura sapiencial tem grande valor
pedagógico, sua gênese é a experiência de vida, herdada e transmitida de geração em
geração, e tem como finalidade a preparação das novas gerações para saberem enfrentar
a vida em todas suas realidades. Dentre as literaturas já apresentadas, a literatura
sapiencial, segundo o autor, é a que melhor traduz as próprias limitações da existência
humana, entre as quais está presente o sofrimento e a experiência da dor.
Ainda que esta literatura tenha recebido influências da cultura grega, sua
finalidade se diferencia do pensamento helenístico:
Todavia, e ao contrário da literatura grega, a interpretação que os escritos
bíblicos dão acerca do sofrimento como um instrumento pedagógico não tem
uma orientação de caráter antropológico, ético ou filosófico e muito menos
fatalista, como acontecia na tragédia grega; pelo contrário, o seu enfoque é
mais teológico, soteriológico e religioso. O seu objetivo situa-se mais no
âmbito de uma formação de matriz espiritual e religiosa do que propriamente
numa formação cultural e intelectual como sucedia na cultura helenista.
(LOURENÇO, 2006, p.29)
O grande enfoque, da literatura sapiencial é a instrução, para Lourenço (2006), ao
contrário da literatura deuteronomista e profética, as tradições sapienciais reforçam como
método não tanto a punição ou castigo, mas o conhecimento, a aprendizagem daquele que
suporta o sofrimento a fim de permanecer fiel a Deus vivendo conforme aos Seus
preceitos. Segundo o autor, o sofrimento na literatura sapiencial não é um meio ou
instrumento, mas uma condição em que o crente que sofre pode por meio do sofrimento
24
atingir um bem superior ou um fim tido como primordial no caminho de ordem e
aperfeiçoamento que se pôs a trilhar.
Para melhor exemplificar uma forma de pensamento sapiencial sobre o
sofrimento, podemos partir da compreensão dada por Lourenço:
Portanto a ideia de um sofrimento educativo a que tanto se alude na literatura
sapiencial, mais do que um método pedagógico em si, é a condição existencial
daquele que faz a experiência do ‘caminho da sabedoria’ e que quer atingir o
conhecimento de Deus, mesmo que isso implique sacrifício pessoal, sacrifício
esse que muitas vezes resulta na necessidade pessoal de alterar atitudes e
formas de vida e não tanto da imposição exterior de formas punitivas. Por outro
lado, esse sofrimento pode também traduzir uma profunda atitude de confiança
e entrega nas mãos de Deus, já que o homem que busca sabedoria confia a sua
vida a Deus e coloca n’Ele toda a sua confiança. (LOURENÇO, 2006, p. 31)
A partir da noção apresentada acima, podemos trazer à luz a experiência narrada
no livro de Jó. Sem margem de dúvidas, ao abordar a questão do sofrimento na
perspectiva bíblica do Antigo Testamento, sobressai no livro de Jó a sua experiência como
um servo sofredor e fiel, e sua perseverança e confiança em Deus mesmo diante das
situações que lhe foram infligidas. Podemos verificar, que mesmo confiante e fiel a Deus,
encontramos no livro de Jó seu lamento:
Enfim, Jó abriu a boca e amaldiçoou o dia do seu nascimento. Jó tomou a
palavra e disse: Pereça o dia que me viu nascer, a noite que disse: “um menino
foi concebido! ” Esse dia, que se torne trevas, que Deus do alto não se ocupe
dele, que sobre ele não brilhe a luz! Que o reclamem as trevas e sombra
espessa, que uma nuvem pouse sobre ele, que um eclipse o aterrorize! Sim, que
dele se apodere a escuridão, que não se some aos dias do ano, que não entre na
conta dos meses! [...] Para mim, nem tranquilidade, nem paz, nem repouso:
nada além de tormento! (Jó 3, 1-26)
Esse lamento que encontramos no livro de Jó, não diminui aquela noção de
fidelidade e confiança em Deus, é preciso ter consciência de que no Antigo Testamento
o lamento constitui uma forma de literatura própria:
No Antigo Testamento, e não só lá, a lamentação é a linguagem do sofrimento.
A reação do homem diante do sofrimento, da dor, da decepção, da humilhação
e da ofensa criou, na lamentação, a sua forma literária própria. Encontra uma
variada e rica forma nos Salmos de lamentações ou queixa. (WESTERMANN,
1970, p.23)
A compreensão do sofrimento a partir da literatura sapiencial, dando grande
relevância ao livro de Jó, nos permite compreender um pensamento mais próximo ao
pensamento que posteriormente será adotado nos escritos neotestamentários.
25
A menção do livro de Jó, dentro dos livros sapienciais é apenas para aludir de
como tal literatura apresentou-nos um pensamento sobre o sofrimento, considerando que
em outros livros sapienciais o tema do sofrimento também aparece, como citado por
Westermann (1970) os próprios Salmos de lamentações.
No livro de Jó, o sofrimento é o tema central, e nos possibilita verificar claramente
o desenvolvimento do pensamento sobre sofrimento e justiça. Para Kinet (1970, p. 50) “a
essência do Livro de Jó é, sobretudo, a teologia conscientemente pluralista sobre o
sofrimento e a justiça [...] o livro inteiro é um testemunho vivo da fragilidade das imagens
tradicionais da fé e de Deus e mostra com ênfase os novos começos teológicos aqui
introduzidos”.
A compreensão do sofrimento na literatura sapiencial, juntamente com as
abordagens anteriores a saber: tradições pré-exílicas, literatura deuteronomista e literatura
profética, nos permite uma visão ampla do desenvolvimento da compreensão do tema nos
textos do Antigo Testamento. Esses pensamentos não se dão por encerrados na
perspectiva em que se desenvolvem no decorrer dos séculos, sendo possível verificar que
no tempo de Jesus Cristo encontramos resquícios das antigas formas de pensamento sobre
o sofrimento. No entanto os textos neotestamentários apresentam uma nova abordagem
centrada na pessoa de Jesus Cristo, n’Ele o sofrimento ganha uma nova compreensão.
1.2.2 A compreensão do sofrimento a partir de Jesus Cristo na perspectiva do
Novo Testamento
Se partimos da compreensão que o pensamento bíblico do Antigo Testamento foi
sendo construído num longo período da história do povo de Israel e a mensagem central
está centrada na Revelação de Deus, manifestada por meio da Aliança feita com Abraão
e nas experiências históricas que esse povo fez nos diferentes âmbitos, como social,
cultural, religioso entre outros, perceberemos no Novo Testamento uma relevante
transformação sobre a Revelação de Deus por meio da Encarnação de seu Filho, Jesus
Cristo. Porém, é importante ressaltar que há uma inteira ligação entre o Novo e Antigo
Testamento: “Foi por isso que Deus, inspirador e autor dos livros dos dois Testamentos,
dispôs sabiamente que o Novo Testamento estivesse escondido no Antigo, e o Antigo se
tornasse claro no Novo”. (DEI VERBUM, n.16)
26
A Constituição Dogmática Dei Verbum, nos afirma que há uma excelência do
Novo Testamento, onde a Palavra de Deus apresenta-se de maneira especial manifestando
seu vigor. O período do Novo Testamento é apresentado por Paulo como o momento
ápice da Revelação de Deus. Na Carta aos Gálatas escreve: “Quando, porém, chegou a
plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei, para
resgatar os que estavam sob a Lei, a fim de que recebessem a adoção filial” (Gl 4, 4-5).
A mensagem central do Novo Testamento está na Salvação dos homens por meio
da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. É em Jesus Cristo que se configura os
pensamentos que decorrem dos textos neotestamentários, de forma primordial os
Evangelhos e subsequentemente as Epístolas Paulinas e outros escritos apostólicos:
O cânone do Novo Testamento encerra além dos quatros Evangelhos, as
Epístolas de São Paulo e outros escritos apostólicos redigidos por inspiração
do Espírito Santo. Segundo o plano da sabedoria divina, confirmam o que diz
respeito a Cristo Senhor, explicam mais ainda a sua genuína doutrina, são a
conhecer o poder salvífico da obra divina de Cristo, narram os começos da
Igreja e a sua admirável difusão, e anunciam a sua consumação gloriosa. (DEI
VERBUM, n. 20)
Com essa breve noção da configuração do Novo Testamento, podemos nos
perguntar: Em linhas gerais, que mensagem sobre o sofrimento encontramos no Novo
Testamento? A reflexão a partir desse questionamento, nos permite pontuar alguns
aspectos importantes sobre o sofrimento na perspectiva dos textos neotestamentários. Tal
reflexão, pode então seguir a seguinte lógica estrutural: a partir dos Evangelhos, da
Teologia Paulina e a 1ª Carta de Pedro. Outros livros que compõem o Novo Testamento
também apresentam alguns aspectos sobre o sofrimento, porém para uma orientação
geral, podemos nos restringir aos livros supracitados, a fim de poder entender a
compreensão sobre o sofrimento de modo mais sucinto.
1.2.2.1 O Sofrimento na perspectiva dos Evangelhos.
Ao abordar o sofrimento na perspectiva dos Evangelhos nesse tópico, não se trata
de fazer uma análise exegética dos textos dos evangelistas, ou um quadro de comparação
entre os quatros Evangelhos. Num estudo aprofundado nos depararíamos com diversas
particularidades além do quadro Sinóptico entre Mateus, Marcos e Lucas, bem como uma
teologia bem marcante em João, entre outros.
27
Para início da reflexão, podemos considerar que o contexto histórico, geográfico,
social, cultural entre outros, em que se encontram os personagens presentes nos
evangelhos está inserido naquela linha histórica apontada na reflexão sobre o Antigo
Testamento, ou seja, Jesus, os apóstolos e todos os personagens que aparecem nos
evangelhos, de certo modo, inserem-se na continuação da histórica narrativa do povo de
Israel. Nesse contexto, encontramos o pensamento a respeito de diversas realidades,
herdadas de seus antepassados e que ganha novos significados em Jesus Cristo.
A sociedade judaica é fortemente marcada pela Lei, a vida do povo é centrada no
cumprimento da Lei, por isso a Lei vai ser o pano de fundo do desenvolvimento das novas
formas de pensamento no Novo Testamento. Jesus mesmo afirmou: “Não penseis que
vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento
porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem
um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado”. (Mt 5, 17-18).
Vimos que na literatura deuteronomista, a fim de reforçar o cumprimento da Lei,
o sofrimento foi compreendido como castigo, culpa de um pecado cometido
individualmente ou coletivamente do não cumprimento da Lei. No Evangelho de João,
encontramos Jesus sendo confrontado com esse pensamento:
“Ao passar, ele viu um homem, cego de nascença. Seus discípulos lhe
perguntaram: Rabi, quem pecou ele ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus
respondeu “Nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele sejam
manifestadas as obras de Deus” (Jo 9, 1-3).
A afirmação de Jesus, ao apontar a finalidade do sofrimento do cego de nascença,
rompendo com aquele pensamento deuteronomista, revela seu cumprimento na sua
própria pessoa: “Tendo dito isso, cuspiu na terra, fez lama com a saliva, aplicou-a sobre
os olhos do cego e lhe disse: “Vai lavar-te na piscina de Siloé – que quer dizer “Enviado”.
O cego foi, lavou-se e voltou vendo claro” (Jo 9, 6-7).
Jesus como enviado do Pai, realiza suas obras, o sofrimento daquele cego de
nascença teve sua finalidade na glorificação de Deus, por meio da obra realizada por
Cristo: “Brilhe do mesmo modo a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas
boas obras, eles glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5, 16). “Quem me vê, vê o
Pai. Como podes dizer: Mostra-nos o Pai? Não crês que estou no Pai e o Pai está em mim?
As palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo, mas o Pai, que permanece em
mim, realiza suas obras” (Jo 14, 9-10).
28
A narração da cura do cego de nascença é apenas um exemplo das inúmeras
narrativas de obras que Jesus realizou. Os quatros evangelhos nos apresentam a obra
redentora de Cristo, por meio de sua morte na Cruz, nessa perspectiva podemos entender
que:
Já que Jesus, encarregado por Deus de pôr fim a todo sofrimento, tornou-se o
sofredor por excelência, não é de admirar que no Novo Testamento ocupem
um lugar amplo e central os textos sobre o sofrimento do Messias e sobre o
sofrimento “por causa de Jesus”. Esse caráter específico da teologia do
sofrimento no Novo Testamento não deve fazer esquecer que o Novo
Testamento mantém em sua memória a experiência do Antigo Testamento em
toda sua amplitude e dela lança mão na interpretação do sofrimento de Cristo.
(BAUER, 2004, p.417)
Nos evangelhos podemos verificar que o sofrimento, não somente tem relação
com a mensagem salvífica de Cristo, mas também com sua própria experiência no
cumprimento de sua missão ao morrer crucificado. Certo é que, de forma geral o
sofrimento segundo os evangelhos ganha nova perspectiva, no sentido de redenção,
encontra na Cruz sua maior significação:
O Evangelho mostra que Jesus não poupou esforços com o fim de preparar os
discípulos para o choque de sua paixão e morte, tão contrárias a todas as suas
crenças messiânicas. Mas como as preparou? Ele não apresentou uma filosofia
ou uma teologia do sofrimento, que o tornaria racional e inteligível, ou mesmo
tolerável. Simplesmente afirmou sua necessidade. Sua morte próxima não foi
apresentada como uma fuga do sofrimento e ensinou aos discípulos que não
lhes oferecia fuga do sofrimento através de sua associação com ele. Identificar-
se com Jesus era identificar-se com o Servo Padecente e quem não negasse a
si mesmo e carregasse sua cruz não seria digno de ser seu discípulo.
(MCKENZIE, 1972, p.114)
Abordar o sofrimento na perspectiva dos evangelhos é um desafio que demanda
profundos estudos. Para fins dessa reflexão, podemos nos contentar com a noção do
sofrimento a partir de Jesus Cristo, tanto em sua doutrina como em seu testemunho de
vida, considerando nesse contexto o que afirma Lourenço:
Ao falarmos da questão do sofrimento no Novo Testamento não a podemos
reduzir apenas aos parâmetros que enquadram a vida de Jesus, quer eles
tenham a sua génese na autocompreensão que o Mestre configura de Si mesmo
quer eles assentem numa epistemologia da primitiva comunidade cristã em
ordem a conferir sentido a essa mesma vida. O problema é mais amplo e tem
a ver com a proposta de valores que a Sua mensagem comporta e que
configuram a identidade dessa mesma mensagem. Neste sentido o NT oferece-
nos um amplo campo de estudo sobre a questão do sofrimento nas suas
múltiplas vertentes. (LOURENÇO, 2006, p. 126)
Com base na afirmação supracitada, podemos afirmar que o estudo sobre o
sofrimento nos evangelhos não se encerra em si mesmo, pois faz parte de um conjunto de
29
fatores que unidos configuram toda uma teologia da Revelação da Nova Aliança. Para
fins dessa reflexão, tomemos como base que nos evangelhos encontra-se a vida de Cristo,
sua mensagem e seu testemunho configuram uma nova abordagem sobre o sofrimento,
mantendo certamente um elo, com alguns aspectos daquelas abordagens do sofrimento
que encontramos no Antigo Testamento. Em síntese, o sofrimento de Cristo é fonte de
toda reflexão e abordagem do sofrimento no Novo Testamento, sua morte na cruz é o
evento central que marca o sofrimento nos Evangelhos, todo contexto de sua morte,
conforme nos afirma Lourenço (2006, p.126) “ [...] tem a ver com a proposta de valores
que a Sua mensagem comporta e que configuram a identidade dessa mesma mensagem”.
Ao falar do sofrimento na perspectiva cristocêntrica, não podemos deixar de
ressaltar em unidade com a literatura profética do Antigo Testamento, o texto de Isaías
que se refere ao servo sofredor. Segundo Lourenço (2006, p.126) “o Novo Testamento se
apossou da teologia do sofrimento do “Servo de Yahwé” e a aplicou a Jesus, servindo-se
dela como instrumento de compreensão da Sua vida e de leitura de Sua paixão e do Seu
mistério pascal”. O texto de Isaías 53 que se refere ao Servo de Yahwé, encontra fortes
alusões nos Evangelhos:
As alusões a Is 53 estão presentes e amplamente documentadas em todos os
textos dos Evangelhos, tanto na tradição sinóptica, incluindo os Atos, como
nos escritos joaninos. É particularmente nas referências à paixão quer nos
anúncios colocados na boca de Jesus, quer na sua interpretação por parte da
comunidade apostólica, que o recurso a essas alusões mais se faz sentir.
(LOURENÇO, 2006, p.133)
A alusão do sofrimento de Cristo ao canto do servo sofredor de Isaías, nos
possibilita compreender o significado profundo da missão de Cristo ao entregar-se à
morte para a salvação da humanidade. Sua entrega voluntária: “Por isso o Pai me ama,
porque dou minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou livremente”
(João 10, 17-18), e todo seu sofrimento nos permite encontrar em Cristo as mesmas
atribuições do servo sofredor da profecia de Isaías:
O Canto do Servo sofredor contém uma descrição na qual se pode, de certo
modo, identificar os momentos da paixão de Cristo com vários pormenores dos
mesmos: a prisão, a humilhação, as bofetadas, os escarros, o rebaixamento da
própria dignidade do prisioneiro, o juízo injusto; e, a seguir, a flagelação, a
coroação de espinhos e o escárnio, a caminhada com a cruz, a crucificação e a
agonia. Mais do que esta descrição da paixão, impressiona-nos ainda nas
palavras do profeta a profundidade do sacrifício de Cristo. (SALVIFICI
DOLORIS, n. 17)
30
Essa leitura da missão salvífica de Cristo por meio do sofrimento, à luz do texto
de Isaías sobre o servo sofredor, vai iluminar não somente os evangelhos, mas também
outros escritos do Novo Testamento4.
Podemos verificar a partir da contribuição do texto de Isaías, que o sofrimento de
Cristo tem um profundo significado soteriológico. Ao refletirmos o sofrimento na
perspectiva dos Evangelhos, encontramos a partir de Cristo uma nova compreensão, não
somente pelo seu próprio sofrimento, mas também como Cristo se posicionou diante do
sofrimento de seus contemporâneos.
1.2.2.2 Jesus Cristo diante do sofrimento.
Os Evangelhos narram a vida de Jesus Cristo, da qual procuramos ressaltar que
pela sua paixão e morte, o sofrimento adquire uma nova compreensão. Porém é
importante considerar como Jesus Cristo durante sua vida se posicionou diante do
sofrimento de seus contemporâneos. Essa reflexão permite verificar que durante sua vida,
Jesus Cristo colocou-se diante de tantos homens e mulheres que sofriam oferecendo-lhes
a cura, esperança e acima de tudo a salvação.
De acordo com o Evangelho segundo Marcos, existiu, originalmente, uma
relação especialmente estreita entre Jesus e o povo. Enquanto, de acordo com
Mc. 3,34, o povo é sua verdadeira “família” Mt 12,46 colocou “os discípulos”
no lugar do povo. Para onde quer que Jesus vá na Galiléia, em todas as partes
junta-se ao seu redor o pobre e miserável povo. Ele os ensina, eles lhe trazem
seus doentes, ele os cura, eles o acompanham. A miséria do povo desperta nele
a misericórdia divina (Mc 6,34). (MOLTMANN, 2014, p. 230)
Jesus Cristo não somente sofreu, mas esteve com os sofredores e seu modo de agir
diante do sofrimento foi configurando uma nova compreensão do sofrimento no
pensamento bíblico, que culminará na sua própria experiência de sofrimento:
De qualquer modo, Cristo aproximou-se do mundo do sofrimento humano,
sobretudo pelo fato de ter ele próprio assumido sobre si este sofrimento.
Durante a sua atividade pública, ele experimentou não só o cansaço, a falta de
uma casa, a incompreensão mesmo da parte dos que viviam mais perto dele,
mas também e acima de tudo foi cada vez mais acantoado por um círculo
hermético de hostilidade, ao mesmo tempo em que se iam tornando cada dia
mais manifestos os preparativos para o eliminar do mundo dos vivos.
(SALVIFICI DOLORIS, n. 16)
4 Ao apontar para a influência que o texto de Isaías sobre o Servo Sofredor teve sobre os escritos
neotestamentários, é importante considerar que estes mesmos textos possuem interpretações distintas no
que refere ao estudo exegético. O mesmo texto é atribuído por outra abordagem ao próprio povo de Israel,
o que nos permite compreender a grande relevância deste texto tanto para a tradição judaica como a tradição
cristã. O que podemos considerar de suma importância é que para ambas abordagens, o texto de Isaias é
um grande referencial sobre o sofrimento.
31
Durante sua vida Jesus se familiarizou com os sofredores, aproximou-se daqueles
que viviam a margem da sociedade, deixou-se ser tocado, Ele moveu-se de compaixão
pelo povo que o seguia: “Assim que ele desembarcou, viu uma grande multidão e ficou
tomado de compaixão por eles, pois estavam como ovelhas sem pastor” (Marcos 6, 34).
Com uma leitura atenta sobre o sofrimento na leitura dos Evangelhos, é possível
verificar o quanto Jesus se tornara um referencial para os que sofriam:
Na sua atividade messiânica no meio de Israel, Cristo tornou-se
incessantemente próximo do mundo do sofrimento humano. “Passou fazendo
o bem”; e adotava este seu modo de proceder em primeiro lugar para com os
que sofriam e os que esperavam ajuda. Curava os doentes, consolava os aflitos,
dava de comer aos famintos, libertava os homens da surdez, da cegueira, da
lepra, do demônio e de diversas deficiências físicas; por três vezes restituiu a
vida aos mortos. Era sensível a toda espécie de sofrimento humano, tanto do
corpo como da alma. (SALVIFICI DOLORIS, n. 16)
Os Evangelhos, portanto, nos apresentam de modo pleno como em Jesus Cristo se
configurou uma nova compreensão sobre o sofrimento, quer seja como durante sua vida
lidou com os sofredores, quer seja na sua própria experiência de sofrimento que culminou
em sua morte na cruz.
Essa experiência de Cristo com os sofredores, atinge as várias dimensões de sua
mensagem. Ele denunciou o poder que explorava o povo, a violência, a hipocrisia dos
fariseus e doutores da Lei, entre outros; mas não o fez sem oferecer a possibilidade de
conversão, demonstrando a misericórdia de Deus, pois Ele acolheu a todos:
Por meio da aceitação dos “pecadores” e “publicanos” e das prostitutas, Jesus
não justifica o pecado, a corrupção ou a prostituição, mas rompe o círculo
vicioso de sua discriminação no sistema de valores dos justos. Com isso
também liberta potencialmente os “justos” da coerção da justiça própria, e os
“bons” da posse do bem. No entanto, volta-se unilateralmente aos pobres,
tomando partido. Ao fazer isso em sua própria pessoa, revela a eles e a seus
opressores a justiça messiânica de Deus que, pelo direito da graça, torna
injustos justos, maus bons, feios bonitos. Isso é um ataque violento à moral
religiosa e burguesa. (MOLTMANN, 2014, p. 181)
Esse testemunho de Cristo, diante do sofrimento narrado nos Evangelhos, tornou-
se já nos primeiros séculos fonte de profundas reflexões, constituindo-se na mensagem
central da Revelação de Deus em meio à humanidade sofredora. Jesus aproximou-se
daqueles cujos sofrimentos lhes impusera além da dor física a desumanização, a
indiferença e o isolamento:
32
Os enfermos dos quais Jesus se aproxima padecem de doenças próprias de um
país pobre e subdesenvolvido: entre eles há cegos, paralíticos, surdos-mudos,
gente com doenças da pele, transtornados. Muitos são enfermos incuráveis,
abandonados à própria sorte e incapacitados para ganhar o sustento; vivem
arrastando sua vida numa situação de mendicância que beira a miséria e a fome.
Jesus encontra-os jogados pelos caminhos, na entrada dos povoados ou nas
sinagogas, procurando comover o coração das pessoas. (PAGOLA, 2010,
p.192-193)
Essa proximidade de Jesus diante do ser humano sofredor, despertava a mente e o
coração das pessoas e fortalecia sua pregação, voltada para o amor e misericórdia, por
isso as pessoas acorriam até ele, porque sua presença era sanadora:
O certo é que Jesus transmite como que por contágio saúde e vida. As pessoas
da Galileia o sentem como alguém que cura porque está habituado pelo
Espírito e pela força sanadora de Deus. Embora ao que parece, Jesus utilize
algumas vezes técnicas populares, como a saliva, o importante não é o
procedimento que ele possa empregar em alguns casos, mas ele mesmo: a força
curadora que sua pessoa irradia. As pessoas não acorrem a ela em busca de
remédios ou receitas, mas para encontrar-se com ele. (PAGOLA, 2010, p. 202)
Jesus se posicionava com tanto amor diante do ser humano sofredor que toda sua
ação transmitia a vida contida em sua mensagem. Ele curava e fazia o anúncio da
salvação: “tua fé te salvou”. Em síntese podemos verificar como Jesus se posicionava
diante do sofrimento na afirmação de Pagola:
A terapia que Jesus põe em funcionamento é sua própria pessoa: seu amor
apaixonado pela vida, sua acolhida afetuosa a cada enfermo ou enferma, sua
força para regenerar a pessoa a partir de suas raízes, sua capacidade de
transmitir sua fé na bondade de Deus. Seu poder de despertar energia
desconhecidas no ser humano criava as condições que tornavam possível a
recuperação da saúde. Na raiz desta força curadora e inspirando toda a sua
atuação está sempre seu amor compassivo. Jesus sofre ao ver a enorme
distância que há entre o sofrimento destes homens, mulheres e crianças
mergulhados na enfermidade, e a vida que Deus quer para seus filhos e filhas.
O que move é seu amor aos que sofrem e sua vontade de que experimentem já
em sua própria carne a misericórdia de Deus que os liberte do mal. Para Jesus,
curar é sua forma de amar. (PAGOLA, 2010, p.202-203)
A afirmação de Pagola, “Para Jesus, curar é sua forma de amar”, nos faz
compreender todo ministério de Jesus narrado nos evangelhos, Ele cura porque ama, Jesus
é movido pelo amor, é pela força do amor que Ele aceita seu próprio sofrimento até a
morte na cruz.
Nos textos neotestamentários encontramos além dos Evangelhos, o livro dos Atos
dos Apóstolos, que narram os acontecimentos da Igreja primitiva após a Ascensão de
Cristo, e as diversas Cartas atribuídas aos Apóstolos e o livro do Apocalipse. Nesse
33
conjunto de livros, destacam-se a figura de Pedro e Paulo, na contribuição doutrinal que
se configurou na teologia cristã no decorrer da história.
O estudo do sofrimento a partir da teologia paulina e da 1ª Carta de Pedro nos
possibilitam compreender de forma sucinta o pensamento sobre o sofrimento que vai se
configurando na teologia cristã a partir da Igreja primitiva.
1.2.2.3 O Sofrimento na Teologia Paulina
Ao abordar o sofrimento na Teologia Paulina, seria uma errônea presunção
acreditar resumir toda mensagem paulina sobre esse tema. O que podemos tomar por
referência são algumas direções a respeito do pensamento paulino que nos permitam
compreender que a teologia do sofrimento possui uma conotação semelhante àquela da
literatura sapiencial do Antigo Testamento, porém iluminada e plenificada na pessoa de
Cristo. Nesta perspectiva, poderemos compreender que a interpretação do sofrimento a
partir de Cristo, tornara já nos escritos primitivos o tema central da mensagem
soteriológica.
Para obtermos uma noção paulina sobre o sofrimento, podemos partir nossa
reflexão da palavra que o apóstolo escreve na Carta aos Colossenses: “Agora regozijo-
me nos meus sofrimentos por vós, e completo o que falta às tribulações de Cristo em
minha carne pelo seu Corpo, que é a Igreja”. (Cl 1,24) Paulo nos fala de um regozijar-se
nos sofrimentos, numa dimensão Cristocêntrica em unidade com a Igreja. Essas palavras
de Paulo, nos permitem perceber aquela compreensão do sofrimento que vai se
aperfeiçoando no decorrer da história do povo de Israel, e que conforme já citado, para
Paulo encontra seu significado pleno no sofrimento de Cristo:
Estas palavras parecem encontrar-se no termo do longo caminho que se
desenrola através do sofrimento inserido na história do homem e iluminado
pela Palavra de Deus. Elas têm o valor de uma como que descoberta definitiva,
que é acompanhada pela alegria: « Alegro-me nos sofrimentos suportados por
vossa causa ». Esta alegria provém da descoberta do sentido do sofrimento; e
muito embora Paulo de Tarso, que escreve estas palavras, participe de um
modo personalíssimo nessa descoberta, ela é válida ao mesmo tempo para os
outros. O Apóstolo comunica a sua própria descoberta e alegra- se por todos
aqueles a quem ela pode servir de ajuda — como o ajudou a ele — para
penetrar no sentido salvífico do sofrimento. (SALVIFICI DOLORIS, n.1)
Podemos verificar pela citação supracitada, que Paulo aborda o sofrimento a partir
de sua própria experiência, iluminada pela dimensão salvífica do sofrimento de Cristo.
34
Compreendendo o processo de Salvação em Cristo, Paulo apresenta uma teologia do
sofrimento baseada em uma perspectiva soteriológica:
Esta compreensão do processo de salvação também fornece a base para uma
profunda teologia do sofrimento. O próprio Paulo sofreu assombrosas
necessidades e mesmo ferimentos. Sua teologia do sofrimento não foi
construção elaborada numa torre de marfim. Era a maneira de ver seu
sofrimento como parte integrante do processo de salvação. (DUNN, 2003,
p.562)
Foi a partir de sua conversão que Paulo pôde fazer uma experiência de sofrimento,
a partir da qual, depois, vai orientar sua mensagem, tendo o sofrimento como participação
da vida em Cristo. Essa dimensão de sofrimento na mensagem paulina está correlacionada
a outras dimensões nas quais podemos destacar a dimensão escatológica, a tensão entre
carne e espírito tão presente no pensamento paulino. Podemos compreender essa
dimensão nas palavras de Dunn:
Paulo considerava o sofrimento como aspecto integrante da tensão
escatológica. Em 2 Coríntios Paulo pensava principalmente no seu próprio
sofrimento no decorrer do seu ministério apostólico. Mas as descrições mais
generalizadas de 4,16-5,5 indicam com suficiente clareza que Paulo via o
sofrimento como parte do já-ainda não para todos os que assim estão presos na
tensão escatológica. (DUNN, 2003, p. 548)
O autor continua seu pensamento, reforçando a noção paulina de tensão, de
dualidade entre espírito e carne, vida e morte, e essa tensão vivida pelo crente conota
também uma manifestação de sofrimento. Segundo Dunn (2003, p. 548) “Tanto a morte
como a vida a serem experimentadas pelo crente são de Cristo. A tensão, o sofrimento, a
morte e a vida que Paulo experimenta ele as experimentava como consequência da morte
e da vida ressuscitada de Cristo”.
Essa experiência de sofrimento de Paulo está profundamente relacionada ao seu
ministério apostólico, ele vê sua missão como uma continuação do ministério de Cristo,
como podemos verificar nas palavras de Cerfaux:
A seguir aparece um aprofundamento cristológico. Os sofrimentos que Paulo
suporta são os de Cristo (2Co 1,5) em outras palavras, ele completa as
tribulações de Cristo na sua própria carne (Cl 1,24). Sua vida apostólica
continua a obra de Jesus e ele se vê na situação de “Servo Sofredor”. A paixão
de Cristo pesa sobre ele, para que a ressurreição aja sobre os cristãos: “somos
entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus apareça
em nossa carne mortal. Em nós opera a morte, e em vós a vida” (2 Co 4, 10-
12) (CERFAUX, 2012, p. 177)
35
Segundo o autor, Paulo ao sofrer por motivo de seu ministério projeta essa sua
experiência de sofrimento para todos os cristãos, onde sua participação nos sofrimentos
e na ressurreição de Cristo é um exemplo; imitando Paulo os fiéis alcançarão a Cristo.
As citações apresentadas referentes à compreensão do sofrimento na perspectiva
da teologia paulina, nos direcionam para uma abordagem Cristocêntrica: é a luz da
experiência do sofrimento de Cristo que Paulo enfatiza sua compreensão sobre o
sofrimento. Esse sofrimento na mensagem paulina tem um caráter soteriológico, está
profundamente unido ao sofrimento de Cristo. Nesse aspecto Paulo apresenta um sentido
para o sofrimento. Lourenço ao abordar os escritos paulinos escreve:
Em todas estas fórmulas, numa espécie de seleção de muitas outras, podemos
facilmente constatar o sentido mediador e soteriológico da morte de Cristo [...].
Neste aspecto, a teologia paulina reforça apenas a componente do sofrimento
aplicando-a a Jesus de uma forma direta e explicita: a Sua paixão e morte.
(LOURENÇO, 2006, p. 131)
Podemos verificar esse sentido cristocêntrico, que fundamenta uma mensagem
soteriológica sobre o sofrimento na teologia paulina, e que apresenta traços marcantes
daquelas abordagens anteriores inseridas no contexto histórico do povo de Israel,
principalmente pela literatura profética de Isaías e literatura sapiencial que vemos no livro
de Jó, e uma ruptura com aquele pensamento deuteronomista fundamentalmente marcado
pela observância da Lei.
1.2.2.4 O Sofrimento na 1ª Carta de Pedro.
No estudo sobre o sofrimento a partir da Teologia Paulina, verificamos que Paulo
compreende o sofrimento a partir de sua própria experiência de conversão em Cristo. No
estudo sobre o sofrimento na 1ª Carta de Pedro, encontramos essa mesma perspectiva de
uma experiência pessoal que Pedro teve junto a Cristo.
Num primeiro momento narrado nos Evangelhos, Jesus precisou repreender Pedro
por ele não compreender o caminho de sofrimento que Cristo anunciava para si mesmo:
A partir dessa época, Jesus começou a mostrar aos seus discípulos ser
necessário que fosse a Jerusalém e sofresse muito por parte dos anciãos, dos
chefes dos sacerdotes e dos escribas, e que fosse morte e ressurgisse ao terceiro
dia. Pedro, tomando-o à parte, começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus não
permita, Senhor! Isso jamais te acontecerá! ” Ele, porém, voltando-se para
Pedro, disse: “Afasta-te de mim, Satanás! Tu me serves de pedra de tropeço,
porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens! ”. (Mt 16, 21-23)
36
Porém, a experiência que Pedro vai fazendo no decorrer de sua história junto a
Cristo, vai configurando-se em uma profunda conversão e entrega de si mesmo a exemplo
de Cristo, assumindo o sofrimento como caminho de salvação. Segundo Brown:
Uma vez que Cristo mostrou que o sofrimento era a vereda para a glória, os
cristãos não devem surpreender-se se experimentarem “um incêndio
purificador” e grandes sofrimentos (1Pd 4,12-19). [...] Pedro, que foi
testemunha dos sofrimentos de Cristo e partícipe da glória a ser revelada,
encoraja os presbíteros da comunidade a cuidar do rebanho (1Pd 5,1-4).
(BROWN, 2004, p. 927)
Para entender a mensagem da 1ª Carta de Pedro sobre o sofrimento é importante
levar em consideração o contexto social que os destinatários da Carta estavam vivendo
naquele período. Nessa perspectiva podemos elucidar alguns pontos:
Por exemplo, se se pensa que Pedro escreveu a carta, podem-se interpretar as
indicações como se os leitores estivessem experimentando ou tivessem
experimentado algum tipo de tribulação (1Pd 1,6), e estivessem sendo tratados
como malfeitores pelos gentios (1Pd 2,12), referindo-se às lutas em Roma,
entre judeus que acreditaram em Cristo e judeus que não acreditaram – regras
que levaram o imperador Cláudio a expulsar os judeus de Roma por volta de
49 d.C. A provação por meio do fogo que estava para sobreviver aos
destinatários (1Pd 4,12) e os sofrimentos previstos, prestes a atingir os cristãos
em todo o mundo (1Pd 5,9), podem indicar perseguição em Roma no tempo de
Nero. (BROWN, 2004, p. 928)
Os estudos dos exegetas, nos aproximam de uma compreensão mais profunda dos
textos bíblicos, podendo apontar novas tendências sobre os mesmos textos, são
contribuições verdadeiramente importantes para podermos buscar a raiz da mensagem
textual, nesse sentido, voltado para a 1ª Carta de Pedro, Brown afirma:
Uma nova tendência mais recente tem buscado relacionar o texto de 1 Pedro
sobre tribulação/sofrimento não à perseguição imperial, mas à hostilidade local
na qual não-cristãos difamavam os cristãos, tratando-os como malfeitores (1Pd
2,12), detratando-lhes a conduta (1Pd 3,16), aviltando-os (1Pd 4,4) e
insultando-os por causa de sua fé em Cristo (1Pd 4,14). (BROWN, 2004, p.
929)
Por meio dessas citações, podemos observar que a mensagem de Pedro sobre o
sofrimento está diretamente ligada à uma realidade concreta em que os cristãos primitivos
estavam inseridos e esta realidade concreta afligia-lhes sofrimentos por causa de sua
adesão a Cristo.5 Verificamos portanto, que a mensagem teológica da 1ª Carta de Pedro
sobre o sofrimento é Cristocêntrica, e não se distingue de outros textos neotestamentários
nesse aspecto, em que o sofrimento tem uma conotação salvífica, como nos afirma
5 Vemos nesse sentido, uma aproximação à compreensão paulina, do sofrimento decorrente da adesão a
Cristo, o sofrimento como participação dos sofrimentos de Cristo.
37
Lourenço ao comentar o texto de 1ª Pedro 2, 21-25 (Hino soteriológico) em menção ao
texto de Isaías sobre o servo sofredor em Isaías 53 (Poema):
Trata-se, portanto, de uma releitura da paixão que não tem em conta as
interpretações da componente gloriosa da condição messiânica, [...]. Isto,
mostra-nos, de forma evidente, como a comunidade cristã primitiva, incluindo
a de origem judaica e de acordo com os testemunhos dos escritos de Pedro,
assumiu o sentido do sofrimento e lhe conferiu uma dimensão soteriológica.
[...]. Este hino confere ao sofrimento de Cristo um sentido novo que o do
poema não tinha, conferindo-lhe uma nova perspectiva teológica. Ou seja, em
1ª Pedro 2, 21-25, o sofrimento de Cristo é redentor e torna-se para os crentes
‘remédio de salvação’. (LOURENÇO, 2006, p.133)
Podemos concluir nossa abordagem sobre o sofrimento na 1ª Carta de Pedro, com
as palavras do próprio apóstolo:
Nisso deveis alegrar-vos, ainda que agora, por algum tempo, sejais contristados
por diversas provações a fim de que a autenticidade comprovada da vossa fé,
mais preciosa do que ouro que perece, cuja genuinidade é comprovada pelo
fogo, alcance louvor, glória e honra por ocasião da Revelação de Jesus Cristo.
(1Pd 1, 6-7)
Esta Revelação de Jesus Cristo, que Pedro afirma, que nos possibilita
compreender o desenvolvimento do sofrimento a partir de um novo sentido, diferente
daquele descrito no Antigo Testamento. Jesus Cristo é, portanto, a fonte de compreensão
do sofrimento na perspectiva do Novo Testamento.
Podemos verificar que a compreensão do sofrimento na Sagrada Escritura passou
por grandes transformações durante toda narrativa da história do povo de Israel.
No Antigo Testamento fundamentada na experiência com o Deus único, o
sofrimento foi sendo apresentado segundo as experiências que o povo vivenciou
comunitariamente, e o sofrimento foi sendo compreendido por esse caráter social, em
vista de uma ordem comunitária, que se fundamentou na observância da Lei, e que aos
poucos foi ganhando nova dimensão através da abordagem sapiencial.
No Novo Testamento embora podemos encontrar o caráter social do sofrimento,
há uma mudança significativa em comparação com o Antigo Testamento pois a
compreensão do sofrimento é significada na pessoa de Jesus Cristo, do modo com que ele
encarou o sofrimento presente no contexto social, bem como, sua própria experiência de
sofrimento com sua paixão e morte na cruz. A partir dos Evangelhos, os escritos contidos
na Sagrada Escritura conotam o sofrimento dentro de uma dimensão redentora,
centralizando sua abordagem na salvação oferecida por Jesus Cristo.
38
2. SOFRIMENTO, RESILIÊNCIA E SENTIDO
No estudo sobre o sofrimento, encontraremos sua multidimensionalidade na vida
do ser humano e nos depararemos com diversos conceitos que se correlacionam com o
conceito de sofrimento. À medida que o ser humano se esforça para encontrar respostas
sobre seu sofrimento, a fim de resistir e buscar um alívio; ao mesmo tempo se vê capaz
de suportar o sofrimento e encontrar um sentido para compreendê-lo e vivê-lo durante
esta busca. A individualidade de cada ser humano torna-se um fator importante no que
corresponde à maneira de se confrontar com o sofrimento, mas é possível verificar que a
busca por respostas e por um sentido, é um fator comum à grande parcela daqueles que
sofrem.
Diante das possíveis abordagens que procuram dar uma resposta para o
sofrimento, ou que procuram compreendê-lo a fim de auxiliar o ser humano na busca de
uma resposta, podemos encontrar dois conceitos importantes que colaboram na
construção de uma resposta: o conceito de Resiliência e Sentido.
A partir da compreensão do conceito de resiliência podemos verificar a
capacidade do ser humano de lidar com o sofrimento, encontrando forças a fim de resistir
às suas diversas manifestações.
Podendo resistir, suportar, empregar suas forças a fim de acabar com o seu
sofrimento, o ser humano procura simultaneamente encontrar um sentido que o direcione
e que o motive nesse processo de resiliência. A busca de sentido, caracteriza a busca de
uma resposta, portanto, resiliência e sentido se conjugam no processo de experiência do
sofrimento.
2.1 RESILIÊNCIA
A compreensão do termo resiliência aplicada ao comportamento humano é recente
se comparada a outros termos que se aproximam do processo de resiliência, tais como:
superação, resistência, recuperação, fortaleza entre outros. O termo resiliência atualmente
vem sendo empregado numa perspectiva antropológica por diversas áreas, como a
administração, a psicologia, sociologia, entre outras áreas que estudam o comportamento
humano. No entanto é importante salientar que o termo “resiliência” não tem sua origem
39
no campo da abordagem comportamental do ser humano, e sim no estudo da física, como
nos afirma Sabbag:
Estranha a muitos que o conceito de resiliência não seja oriundo da psicologia,
e sim da engenharia, dos primeiros estudos em 1620 sobre a elasticidade de
materiais. Contudo, essa origem nos possibilita fazer uma interessante
metáfora sobre a resiliência. Resiliência deriva do latim, do verbo resilio (re +
salio) que significa “saltar para trás”, recuperar-se, voltar ao “normal”. Na
física, a resiliência é propriedade de corpos elásticos, que se deformam na
aplicação da força, absorvem energia e, quando cessa a força aplicada,
retornam à forma original usando a energia armazenada. (SABBAG, 2017,
p.24)
Ao abordar o termo resiliência, Sabbag (2017) discorre sobre a maneira com que
o termo foi sendo apropriado por outras áreas da ciência: na psicologia onde inicialmente
o termo passou a referir-se “à habilidade de recuperação após eventos estressantes,
traumas potenciais ou crises danosas” (SABBAG, 2017, p.25), posteriormente pela
sociologia onde o foco foi voltado para o estudo da resiliência em grupos ou comunidades
carentes inseridas num contexto de vulnerabilidade, e mais recentemente pela
administração onde o termo resiliência inicialmente esteve ligado às mudanças
significativas que ocorrem nas organizações e da capacidade de assimilação por parte da
organizações que lidam com essas mudanças.
Dentre essas áreas que abordam o conceito de resiliência, a abordagem da
psicologia é a que melhor nos insere numa abordagem comportamental do ser humano
frente ao sofrimento. É no campo da psicologia que sofrimento e resiliência encontram
um estudo significativo do comportamento humano, uma vez que o processo de
resiliência estará voltado para a capacidade do indivíduo de lidar com situações adversas
que podem afetá-lo integralmente. Nessa perspectiva, encontramos algumas definições
de resiliência aplicada ao indivíduo:
Resiliência é a competência de indivíduos ou organizações que fortalece,
permite enfrentar e até aprender com adversidades e desafios. É uma
competência porque pode ser aprimorada: reúne consciência, atitudes e
habilidades ativadas nos processos de enfrentamento de situações em todos os
campos da vida. (SABBAG, 2017, p.26)
Ou:
A definição que podemos propor para resiliência é simples: o processo
intersubjetivo que se organiza como uma das possíveis respostas após um
traumatismo, mas com peculiaridade de levar a retomada a algum tipo de
desenvolvimento. Contudo, compreende-se que o mais difícil a se descobrir
são as condições que permitem essa retomada. (CYRULNIK; CABRAL, 2015,
p.19)
Ou:
40
Quando falamos de resiliência referimo-nos, principalmente à capacidade de
enfrentamento dos obstáculos, sem se deixar abater ou se corromper. O
indivíduo resiliente absorve o impacto do ambiente e desenvolve estratégias de
adaptação e de superação. (JUBRAM, 2017, p. 184)
É possível notar uma similaridade na conceituação do termo resiliência nos
autores apresentados, porém ao desenvolver sua abordagem sobre resiliência, cada autor
vê-se diante de um campo aberto para reflexão, tais como: A resiliência é uma
competência que pode ser desenvolvida? Ser resiliente, significa não sofrer? Resiliência
tem a ver com a personalidade do indivíduo? Uma vez resiliente, sempre resiliente? Estas
e tantas outras questões nos colocam diante de uma complexidade do termo resiliência,
que sendo objetiva e definida, enquanto no estudo da física, assume um papel subjetivo e
aberto a definições quando aplicado ao comportamento humano.
Ao conjugar resiliência e sofrimento, podemos encontrar algumas respostas que
nos auxiliam na compreensão da importância de entender o que é resiliência, e como ela
tem um papel fundamental na busca de sentido. Algumas respostas referem-se aqueles
questionamentos feitos no parágrafo anterior, por meio destas respostas podemos
construir uma compreensão da resiliência no processo de busca de sentido no sofrimento.
Na busca de sentido para o sofrimento, a resiliência contribui para que o indivíduo
encontre sua capacidade de lidar como o sofrimento, porém esse processo tem um caráter
pessoal, subjetivo, além dos fatores exteriores que colaboram com cada indivíduo na
busca de sentido. O estudo do comportamento pessoal e coletivo possibilita criar
ferramentas que possam ajudar o ser humano nas mais diversas áreas. Ao tratarmos sobre
resiliência, podemos afirmar que sua abordagem permite criar um conhecimento
necessário, que contribui para que cada indivíduo possa descobrir intrinsecamente sua
capacidade resiliente. Essa capacidade intrínseca de resiliência está presente em todos
indivíduos, porém “capacidade” não quer dizer propriamente realização, por isso,
resiliência é um processo, que cada indivíduo deve esforçar-se em colocar em prática,
mesmo com ajuda de fatores externos, porém sempre a partir de sua própria interioridade.
Nessa perspectiva, é importante compreender resiliência, como um processo, no
qual todo ser humano é capaz de desenvolver, como nos afirma Sabbag:
Assim, prefiro adotar a resiliência como processo (e não como atributo da
personalidade). Com essa premissa, resiliência é aptidão que pode ser
compreendida, praticada e, portanto, desenvolvida. Ela agrega estratégias que
podem ser aprendidas, dado o seu conteúdo cognitivo, e pode ser reforçada,
dado o conteúdo emocional envolvido. (SABBAG, 2017, p.14)
41
Ou ainda:
A resiliência tem pouco a ver com a personalidade do indivíduo, prefiro julgar
que é uma competência que pode ser desenvolvida em qualquer um de nós.
Não depende de inteligência, nível educacional, classe social, idade, gênero ou
nacionalidade. Está ao alcance de todos e de quem quiser. (SABBAG, 2017,
p.6)
Essa compreensão de resiliência como processo afirmada por Sabbag, enriquece
a abordagem da busca de sentido para o sofrimento, pois nessa perspectiva, resiliência
torna-se um fator motivador, impulsionador para o ser humano colocar-se na busca de
respostas diante do sofrimento. Um indivíduo que esteja sofrendo, a priori sem uma
perspectiva resiliente, pode então na busca de sentido, descobrir sua capacidade resiliente,
e mesmo essa busca podemos entender como um início do processo de resiliência, pois é
uma reação diante do sofrimento. Ser resiliente, não significa ausência de sofrimento ou
adversidades e obstáculos, mas sim como lidar com elas sem ficar estagnado, sem reação.
Essa correlação de resiliência e sofrimento pode ser compreendida nas palavras de
Jubram:
A “habilidade de superar adversidades” – termo adorado por muitos autores
para nomear a resiliência – não significa que o indivíduo passe pelo processo
sem que haja desgaste ou sofrimento. E quando falamos em sofrimento,
estamos considerando tanto o sofrimento físico, quanto o psicológico, tristeza,
angústia, ansiedade e até mesmo momentos de desespero ou depressão podem
ser experimentados por um indivíduo considerado resiliente. Assim como os
sintomas físicos: insônia, dores causadas por tensões musculares, inapetência,
cansaço, sudorese e as somatizações em geral, causadas pelo impacto sofrido
– até o momento no qual o indivíduo retorna à condição anterior ao impacto.
(JUBRAM, 2017, p.170)
Por se tratar de fatores também subjetivos de cada indivíduo, o processo de
resiliência é complexo, e exige uma busca pessoal de cada indivíduo, pois a própria
história, experiências, assimilações, entre outros, vão colaborar no processo de
desenvolvimento da resiliência, segundo Jubram:
Nesse espaço de tempo, que é subjetivo e indefinido, ocorrem uma série de
desconfortos que não podem ser negados e uma intensidade que também não
pode ser mensurada, a não ser pelo próprio sujeito. Em síntese, estamos
falando, portanto da notável capacidade de se refazer do sofrimento, e não da
“impossível” capacidade de não sofrer, quando o ambiente nos apresenta as
mais terríveis condições. (JUBRAM, 2017, p. 171)
Podemos verificar que a abordagem da resiliência é complexa, tal como podemos
afirmar sobre o sofrimento, por se tratarem de fatores que afetam o ser humano
subjetivamente. O importante é ter a compreensão básica que nos permite entender o
processo humano de lidar com o sofrimento por meio da resiliência, e como já abordado
42
pela busca de sentido. O ser humano capaz de suportar, de superar, lidar, enfrentar,
resistir, às adversidades e ao sofrimento, encontra nesse processo a busca de sentido.
Nesse contexto, resiliência, sofrimento e sentido se conjugam num processo importante
para o ser humano.
2.1.1 Resiliência e a Virtude da Fortaleza
Embora o termo resiliência, conforme apresentado, seja um termo recentemente
aplicado ao comportamento do ser humano, podemos inferir a partir de sua compreensão
sua aproximação com a virtude da Fortaleza. Nessa perspectiva o termo resiliência ganha,
no campo da abordagem teológica, um significado mais profundo em diálogo com o
sofrimento.
Podemos iniciar, a reflexão a partir da compreensão da virtude da Fortaleza:
A fortaleza é a virtude moral que dá segurança nas dificuldades, firmeza e
constância na procura do bem. Ela firma a resolução de resistir às tentações e
superar os obstáculos na vida moral. A virtude da fortaleza nos torna capazes
de vencer o medo, inclusive da morte, de suportar a provação e as perseguições.
Dispõe a pessoa a aceitar até a renúncia e o sacrifício de sua vida para defender
uma causa justa. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n. 1808)
Do mesmo modo que a resiliência pode ser compreendida como uma competência
e pode ser desenvolvida pelo indivíduo, a virtude fortaleza é compreendida como:
Uma disposição habitual e firme para fazer o bem. Permite à pessoa não só
praticar atos bons mas dar o melhor de si. Com todas as suas forças sensíveis
e espirituais, a pessoa virtuosa tende ao bem, procura-o e escolhe-o na prática
[...] são atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da
inteligência e da vontade que regulam nossos atos, ordenando nossas paixões
e guiando-nos segundo a razão e a fé. Propiciam, assim, facilidade, domínio e
alegria para levar uma vida moralmente boa. Pessoa virtuosa é aquela que
livremente pratica o bem. As virtudes morais são adquiridas humanamente.
São os frutos e o germes de atos moralmente bons; dispõem todas as forças do
ser humano para entrar em comunhão com o amor divino. ” (CATECISMO
DA IGREJA CATÓLICA, n. 1803-1804)
Compreender a resiliência na ótica da virtude da fortaleza, enriquece a reflexão da
busca de sentido para o sofrimento na abordagem teológica, pois se une à dimensão da fé
e alcança outras dimensões da própria experiência espiritual do indivíduo.
Como na resiliência, a virtude da fortaleza conduz o ser humano a uma superação
das dificuldades diante do sofrimento, de seus limites na busca de um bem maior:
43
A virtude da fortaleza requer sempre alguma superação da fraqueza humana e
sobretudo do medo. O homem, de facto, por natureza teme espontaneamente o
perigo, os dissabores e os sofrimentos. Preciso, por isso, procurar os homens
corajosos não só nos campos de batalha, mas também nas salas dum hospital
ou num leito de dor. Tais homens podiam-se encontrar muitas vezes nos
campos de concentração e nos locais de deportação. Eram autênticos heróis.
O medo tira, às vezes, a coragem cívica aos homens que vivem num clima de
ameaça, de opressão ou de perseguição. Especial valor tem então os homens
que são capazes de transpor a chamada barreira do medo, com o fim de
testemunhar a verdade e a justiça. Para chegar a tal fortaleza, o homem deve
em certo modo "ultrapassar" os próprios limites e "superar-se" a si mesmo,
correndo "o risco" de uma situação desconhecida, o risco de ser mal visto, o
risco de expor-se a consequências desagradáveis, injúrias, degradações, perdas
materiais, talvez a prisão ou as perseguições. Para conseguir tal fortaleza, o
homem precisa ser sustentado por grande amor pela verdade e pelo bem, a que
se dedica. A virtude da fortaleza anda a par com a capacidade de cada um a
sacrificar-se. Esta virtude tinha já para os antigos um perfil bem definido. Com
Cristo adquiriu um perfil evangélico, cristão. O Evangelho dirige-se aos
homens fracos, pobres, mansos e humildes, mensageiros de paz,
misericordiosos e, ao mesmo tempo, contém em si constante apelo à fortaleza.
Repete muitas vezes: Não tenhais medo (Mt 14, 27). Ensina ao homem que,
por uma justa causa, pela verdade, pela justiça, é preciso saber dar a
vida (Jo 15, 13). (JOÃO PAULO II, 1978)
As palavras de João Paulo II demostram a capacidade do ser humano de lidar com
o sofrimento, tendo em vista uma causa maior, “sustentado por grande amor pela verdade
e pelo bem” pela vivência da virtude da fortaleza. Os termos que conotam a virtude da
fortaleza em suas palavras, nos remetem ao processo de resiliência apresentado
anteriormente: “ultrapassar os próprios limites”, “superar-se a si mesmo”, “ser sustentado
por...”, “capacidade de sacrificar-se”, “por uma justa causa”. Dentro dessa vivência da
virtude da fortaleza, continua:
Temos necessidade de fortaleza para ser homens. De fato, só é homem
verdadeiramente prudente aquele que possui a virtude da fortaleza; assim como
também só é homem verdadeiramente justo aquele que tem a virtude da
fortaleza. Peçamos este dom do Espírito Santo que se chama o "dom da
fortaleza". Quando ao homem faltam as forças para "superar-se" a si mesmo
em vista de valores superiores — como a verdade, a justiça, a vocação e a
fidelidade matrimonial — é necessário que este "dom do alto" faça de cada um
de nós um homem forte e, no devido momento, nos diga "no íntimo": coragem!
(JOÃO PAULO II, 1978)
Nessas palavras de João Paulo II, encontramos um elemento de suma importância
para nossa reflexão, ele nos fala de “dom da fortaleza” que deve ser pedido ao Espírito
Santo. Essa dimensão da fortaleza como dom do Espírito Santo, enriquece profundamente
nossa compreensão de resiliência na busca de sentido pelo viés da fé. Nessa perspectiva
no processo de resiliência o ser humano pode contar com o auxílio do Espírito Santo; é
uma ação de Deus junto ao ser humano.
44
O Papa Francisco, em uma de suas catequeses, ao refletir sobre o dom da fortaleza
nos afirma:
Mas, pensemos naqueles homens, naquelas mulheres, que enfrentam uma vida
difícil, lutam para sustentar a família, educar os filhos: fazem tudo isto porque
há o espírito de fortaleza que os ajuda. Quantos homens e mulheres — nós não
conhecemos os seus nomes — honram o nosso povo, honram a nossa Igreja,
porque são fortes: fortes ao levar em frente a própria vida, a própria família, o
seu trabalho, a sua fé. Estes nossos irmãos e irmãs são santos, santos no dia-a-
dia, santos escondidos no meio de nós: têm precisamente o dom da fortaleza
para cumprir o seu dever de pessoas, pais, mães, irmãos, irmãs, cidadãos.
Temos muitos! Agradecemos ao Senhor por estes cristãos que têm uma
santidade escondida: é o Espírito Santo que têm dentro que os leva em frente!
E far-nos-á bem pensar nestas pessoas: se eles têm tudo isto, se eles o podem
fazer, por que nós não? E far-nos-á bem também pedir ao Senhor que nos dê o
dom da fortaleza. (FRANCISCO, 2014)
Podemos verificar nesse contexto, que o dom da fortaleza é dado ao ser humano
pelo Espírito Santo, para vivência da virtude da fortaleza, é um auxílio de Deus que
coopera com o ser humano na busca do bem. Podemos simplificar essa compreensão na
seguinte afirmação:
A virtude da Fortaleza habilita-nos a perseguir o difícil bem na jornada
espiritual. O Dom da Fortaleza, entretanto, leva-nos muito mais longe. Ele dá
energia para superar os principais obstáculos no caminho do crescimento
espiritual; é um reforço enorme da natural e inspirada virtude da fortaleza.
(KEATING, 2010, p.47)
O processo de resiliência pode, na perspectiva da busca de sentido pela fé, ser
visto nesta aproximação da virtude da fortaleza, sustentada pelo Espírito Santo, como
dom concedido ao ser humano para que alcance o bem, colocando-o diante da sua
capacidade de superação, como nos afirma o Papa Francisco:
Queridos amigos, por vezes, podemos ser tentados a deixar-nos levar pela
inércia ou pior pelo desconforto, sobretudo diante das dificuldades e das
provações da vida. Nestes casos, não desanimemos, invoquemos o Espírito
Santo, para que com o dom da fortaleza possa aliviar o nosso coração e
comunicar nova força e entusiasmo à nossa vida e à nossa sequela de Jesus.
(FRANCISCO, 2014).
Esse “bem”, que caracteriza a busca do ser humano na vivência das virtudes, é
também o fator que motiva o processo de resiliência, é a busca do sentido que caracteriza
essa capacidade do ser humano em vista de uma causa maior.
45
2.2 SENTIDO
O termo “sentido” pode ser considerado de modo bem amplo, desde uma
abordagem psicofisiológica que o aponta como sendo: “cada uma das funções
psicofisiológica pelas quais um organismo recebe informações do meio externo, de
natureza física (visão, audição, sensibilidade à pressão, ao tato) ou química (gosto,
olfato)” (LAROUSSE, 2008, p. 728), a uma abordagem existencial, filosófica: “Sentido
compreende tanto a capacidade de receber sensações quanto à consciência que se tem das
sensações, e em geral, das próprias ações: capacidade que na filosofia moderna é chamada
mais frequentemente de sentido interno ou reflexão” (ABBAGNANO, 1992, p. 1039).
Dentro da amplitude de abordagem sobre o sentido, podemos encontrar a
abordagem existencial, mais ligada à concepção que encontramos na descrição de
Abbagnano (1992, p. 1039) “quanto à consciência que se tem das sensações”. O sentido
na perspectiva da “consciência” ganha profundo significado, pois coloca o ser humano
dentro daquilo que o distingue dentre todos os outros seres vivos; a capacidade racional
e que eleva o sentido para uma esfera de interioridade, em termos filosóficos Abbagnano
(1992, p.217) nos afirma “é só por existir uma esfera de interioridade, que é uma realidade
privilegiada, de natureza superior ou, de qualquer forma, acessível ou mais indubitável
para o ser humano, que a consciência constitui um instrumento importante de
conhecimento e de orientação prática”.
O sentido pode ser visto como um processo reflexivo próprio do ser humano, e
que possui um caráter pessoal, ainda que processos coletivos exteriores possam
corroborar nesse caráter pessoal de reflexão. Esse caráter pessoal do sentido, torna-se um
campo vasto para o estudo do termo, pois embora seja de caráter pessoal suas
manifestações ganharão relevo no campo social.
A complexidade da abordagem sobre o sentido, nos coloca diante de várias
vertentes: psicofisiológica, filosófica, teológica, sociológica entre outras. Dentre essas
variáveis encontramos a busca do ser humano de dar sentido às realidades naturais e
existenciais que por vezes ultrapassam o campo concreto da experiência e atinge seu
campo metafísico.6 Na busca dessas respostas encontramos dois grandes questionamentos
6 Apontar para um “campo metafisico” no estudo do sentido, tem por objetivo ressaltar que a busca de
sentido ultrapassa o campo da ciência experimental e alcança o nível da capacidade de reflexão a partir de
realidades transcendentais.
46
feitos pelo ser humano no decorrer de sua existência: Qual o sentido da vida? e Qual é o
sentido do sofrimento?.7
A própria complexidade da reflexão sobre a vida e o sofrimento em suas possíveis
abordagens nos colocam diante dessa busca de sentido, ou seja, cada ciência ao seu modo
procurará dar uma resposta à vida e ao sofrimento segundo seu método próprio.
Para fins de uma reflexão existencial, no que tange à busca de respostas a
realidades que transcendem o ser humano, como algumas dimensões do sofrimento8,
podemos refletir na perspectiva teológica o sentido da vida e do sofrimento, sendo
necessário porém, compreender o próprio significado de sentido.
2.2.1 A compreensão de “sentido”.
Para realizar o estudo sobre o sentido da vida e do sofrimento, é imprescindível
primeiramente compreender o significado de sentido, para melhor direcionar a
abordagem do estudo.
Segundo Boff (2014), essa busca de compreender o significado de sentido, antes
de empreender-se na busca do sentido da vida, ou outra dimensão é de suma importância,
pois como método é preciso saber o que se busca para então poder empreender a busca:
Antes, pois, de discutir teoricamente a questão do sentido, é preciso proceder
a esta operação elementar: fazer um esclarecimento semântico do termo
“sentido”. Esse é um trabalho fundamentalmente conceitual. Ele busca afinar
os instrumentos linguísticos e ordená-los de modo que contribuam a produzir
clareza, especialmente nessa questão, que hoje se mostra bastante confusa.
(BOFF, 2014, p. 12)
Segundo o autor, podemos compreender o sentido em três perspectivas: sentido
como finalidade, sentido como valor e sentido como direção:
2.2.1.1 Sentido como finalidade.
Para compreender o sentido como finalidade, Boff (2014), faz uma comparação
entre o termo fim e finalidade, que aparentemente parecem conotar o mesmo conteúdo,
porém segundo o autor: “fim é um termo equívoco: pode significar, positivamente,
7 Sofrimento visto naquela compreensão citada por Giglio (2006) no capítulo anterior, que transcende a
ordem física a saber: psicológico, espiritual existencial. (Podemos acrescentar também: moral). 8 Importante considerar nesse aspecto o sofrimento além de suas manifestações físicas, como apresentado
no capítulo anterior.
47
“objetivo”, mas também, negativamente, “extinção”. [...] temos, pois aí, duas acepções
diversas, se não contrárias” (BOFF, 2014, p. 13). Porém ressalta que o termo fim é mais
consagrado, e ao usar o termo fim, aplica-lhe essa conotação de finalidade enquanto
objetivo e não como extinção.
O próprio conceito de fim/finalidade foi sendo estudado no decorrer da história
principalmente pela filosofia, e foi encontrando sua compreensão nas diferentes correntes
de pensamento, e definições dos grandes filósofos. Dentro do pensamento filosófico o
conceito de fim, está ligado a outros termos que articulam a ideia de sua própria
compreensão. Na perspectiva aristotélica encontramos o fim, como o “ que põe em
movimento todas as outras causas, inclusive a eficiente, de sorte que, sem ele, nada se
move. É como dizer sem sentido, tudo para, e é a morte”. (BOFF, 2014, p. 14).
Sentido, compreendido como finalidade, tem em vista o que está à frente, o que
estar por vir, ou que se espera como resultado, finalidade. Sobre essa ótica, Boff (2014)
afirma que não somente as filosofias, mas também as religiões orientaram a questão do
sentido em termos de fim ou finalidade, ao colocar sobre suas questões o uso do “para
que”, (Para que fomos criados? Para que Deus nos criou?), mesmo que em outros casos
as perguntas sejam formúlas com o uso de “por que? ”, este por sua vez tem valor de
“para que? ”, o que importa é considerar que dentro desses questionamentos está a busca
de sentido.
Nessa compreensão de sentido enquanto finalidade, Boff (2014, p. 14) afirma, “é
pois, a intenção da mente, enquanto visa um fim, que põe em movimento as coisas,
conferindo-lhes, assim um sentido.”.
Podemos concluir, que sentido como finalidade, tem em vista a causa final, “mas
é um olhar para frente, visando o “fim”, como aquilo que motiva o viver, aquilo que atrai
a vida para frente e para cima”. (BOFF, 2014, p. 17)
2.2.1.2 Sentido como valor.
Sentido pode ser compreendido também como valor, para Boff (2014) a
dimensão de valor é correlacionada à finalidade, falar em valor é falar em finalidade e,
portanto, falar de sentido. A compreensão de valor como sentido, deriva também do
pensamento filosófico, no qual o termo “valor” é tido como o “bem”, para Aristóteles
48
esse “ bem é o que cada coisa busca”, nestes termos o “bem” constitui o “fim” do que se
busca.
Essa compreensão de “valor” como “bem”, aplica um sentido imanente ao ser,
aponta que o ser, a coisa, é boa em si mesma. Valor está ligado a algo mais profundo do
que finalidade, é um valor em si do ser, podemos entender melhor essa distinção quando
falarmos de valor da vida, ou finalidade da vida por exemplo, segundo Boff:
De fato, dizer “ a vida tem valor” sublinha que ela é boa em si mesma, que seu
sentido lhe é imanente. É a experiência da vida enquanto ela “flui”, ou seja,
quando “as coisas vão bem”. Já dizer “ a vida tem uma finalidade” destaca que
ela vai dar num termo bom, apesar de, no momento atual, “as coisas
atravessarem”. (BOFF, 2014, p.19)
Essa noção de bem, quanto ao ser, aquilo que é bem em si mesmo, nos coloca
diante do sentido, pois “quanto mais ser e bem tem uma coisa, tanto mais valor possui”
(Boff, 2014, p.20), a questão de valor tem uma dimensão mais profunda do que aquela
usualmente conhecida, nas palavras de Boff:
A constituição “valoral” das coisas é uma propriedade ontológica delas, e não
uma qualidade meramente subjetiva, nelas projetada por via lógica ou
psicológica. Quanto mais densidade ontológica tem um ser, mais valor tem e,
portanto, mais sentido. Se é assim, Deus, portanto, sendo Ser subsistente, não
“tem” propriamente sentido: ele “é” eminentemente o Sentido” (BOFF, 2014,
p.20)
Podemos verificar, que ao falar de sentido como valor, temos uma relação também
com finalidade, mas o valor enquanto um bem, de propriedade ontológica nos coloca
diante de uma realidade transcendental do próprio ser. O Sentido nesse caso, atribui um
valor ontológico, transcendental, que está em todas as coisas, e esse sentido encontra
maior ou menor valor na capacidade do “ser”, por exemplo “um ser ínfimo, como um
grão de pó, contém pouco ser e, por isso, tem um valor reduzido e, daí também, um sentido
pobre” (BOFF, 2014, p.20).
Embora, essa compreensão do sentido como valor, nos coloque diante de uma
compreensão mais filosófica e exigiria um estudo mais aprofundado, podemos nos deter
na compreensão sucinta de que o sentido pode ser considerado na dimensão própria “de
valor” que se tem em si mesmo, um valor, o bem em si mesmo, na capacidade do “ser”.
49
2.2.1.3 Sentido como direção.
Uma terceira e última dimensão de sentido que podemos apresentar é a de sentido
como direção, segundo Boff (2014) ao falar de sentido no ponto de vista estritamente
semântico, a primeira acepção não é de fim, mas de direção, orientação, rumo:
Portanto, na base de “sentido” temos a ideia de relação a outra coisa, de
referência a uma alteridade, de remissão a algo que está fora ou além. Uma
representação formal dessa ideia poderia ser um vetor, ou, mais concretamente,
uma seta. Essa ideia de “para” é o fundo comum presente em todas as acepções
de “sentido”, não importa o plano em que se situem” (BOFF, 2014, p.23)
O sentido como direção, tem uma conotação de algo exterior que indica, que
aponta; mas esse sentido está ligado àqueles sentidos anteriores, de finalidade e valor. Se
sentido como finalidade e valor, estão voltados para um fim e para o bem em si mesmo;
o sentido como direção está ligado também a uma expressão exterior de ser, tomando
como exemplo a reflexão do sentido da vida, Boff afirma:
“Passando do plano semântico para o existencial, “ter um sentido na vida” é
ter uma direção de vida. Isso significa concretamente ter um caminho ético e
espiritual. Assim, o sentido da vida consiste em ter uma regra de ação, uma
conduta interior e exterior, um projeto fundamental de vida, uma posição de
existência. (BOFF, 2014, p.24)
O sentido como direção, segundo o autor, está intimamente ligado ao sentido de
finalidade, pois direção supõe um fim, um destino, um alvo; ter um “por onde” andar,
supõe ter um “para onde” ir.
Na abordagem do sentido, podemos verificar uma compreensão mais profunda
apresentada por Boff, em síntese:
“Sentido” é fundamentalmente “fim”. “Fim” é sempre um “valor” ou um
“bem” que o ser humano e as coisas em geral buscam. Portanto, falar em
“sentido da vida” é falar na “finalidade da vida” ou no “valor da vida”, real ou
potencial que seja. Ademais, o fim é uma potência extremamente ativa. É uma
causa: a “causa final”. Tal causa tem o primado sobre todas as outras. É ela
que confere à vida: direção ética e espiritual, razão de ser ou inteligibilidade,
motivação ou estímulo para viver, esperança de chegar à própria realização,
centralidade e harmonia de viver e, ainda, alegria de estar no caminho certo e
encantamento ou graça em tudo o que se vive e se faz. ” (BOFF, 2014, p.35)
Essa compreensão foi apresentada aqui de modo superficial, porém suficiente
para nos permitir entender as três dimensões de sentido, que se correlacionam e que nos
permitirá apontar uma melhor abordagem sobre o sentido do sofrimento mais adiante na
perspectiva da Fé.
50
2.2.2 O sentido da Vida
Ao refletirmos sobre o sentido da vida, podemos fazer menção às duas citações já
feitas anteriormente, a ideia de Callia (2005), no qual afirma que com o advento da
consciência a morte passou a ocupar uma posição básica na existência da humanidade,
reforçando que o ser humano é o único ser vivo que pensa a sua existência, e a definição
de Abbagnano (1992) que aponta para a consciência que o ser humano tem de suas
sensações e das próprias ações. Partindo dessas duas afirmações, podemos verificar a
capacidade que o ser humano tem no uso de sua razão, de refletir sobre sua existência e
poder direcionar por meio de sua reflexão suas ações em vista de dar um sentido à sua
vida. Essa ideia pode ser melhor compreendida na seguinte definição:
Desde os primitivos gráficos da pré-história até às multíplices expressões
artísticas e literárias, bem como às incessantes inovações tecnológicas, deseja
o homem comunicar a inteligência adquirida acerca do real, acerca da sua
expressão e da sua interpretação. Em toda a comunicação humana está sempre
presente, de modo mais ou menos patente, a proposta de um significado para a
existência. [...] Ele exprime, assim a concepção que tem a realidade, manifesta
a intuição e a consciência alcançada acerca do mistério da sua origem e do seu
destino último. E isto ele realiza com a linguagem cotidiana, com a ciência,
com a filosofia, com a arte, com a oração. (SCHLESINGER e PORTO, 1995,
p. 2345).
Podemos verificar, segundo Schlesinger e Porto (1995), que o ser humano em toda
sua história buscou um significado para sua existência, ou seja, a reflexão e a busca sobre
o sentido da vida sempre estiveram presentes na realidade humana.
A reflexão sobre o sentido da vida nos coloca diante inúmeras possibilidades de
abordagens, nesse aspecto, podemos ver a complexidade do tema. Para fins desse
trabalho, importante é considerar essa busca do ser humano de refletir, de conhecer suas
realidades, e buscar respostas frente a seus questionamentos. Concomitante a busca do
sentido da vida, o ser humano depara-se com as variadas realidades que essa mesma vida
se apresenta diante de sua reflexão, surge então, a busca de compreensão sobre a
felicidade, o sofrimento, o amor, as angústias, etc.
Buscar compreender o sentido do sofrimento, é buscar ao mesmo tempo, dar uma
resposta ao sentido da vida daquele que sofre. Podemos verificar, que há indivíduos que
diante do sofrimento, afirmam perder o sentido da vida. Possibilitar uma compreensão do
sentido sobre o sofrimento, é ampliar a compreensão do sentido da própria vida.
51
A busca de compreensão sobre o sentido da vida, pode ser vista a partir da
compreensão sobre sentido apresentado por Boff (2014) em que sentido tem suas
dimensões de finalidade, valor e direção. Sem aprofundar-se nessas dimensões, por sua
profunda complexidade, fica-nos a ideia central, dessa busca do ser humano de
compreender o sentido da vida, que perpassou toda a história humana, como afirma Boff:
Qual é o sentido da vida? É uma pergunta recorrente, nunca totalmente
aquietada. É a questão decisiva de todo ser humano. Ela não diz respeito a isso
ou àquilo, mas à existência como um todo e ao mundo em geral. E não é uma
questão de ontem ou de hoje, mas de sempre, porque humana, existencial.
(BOFF, 2014, p. 7)
A busca da compreensão do sentido da vida, é o eixo principal da busca de sentido,
porque “vida”, conota a totalidade do ser humano. Toda busca de sentido, culminará na
compreensão do próprio ser humano, pois como já apresentado, o ser humano é o único
ser que pode pensar sua existência. (CALLIA 2005).
2.2.3 O sentido do Sofrimento
Após uma abordagem sobre o sofrimento, resiliência, e sentido, nos aproximamos
da grande questão em torno do sofrimento, a busca de uma resposta que possa
corresponder aos anseios interiores daqueles que buscam o sentido no sofrimento.
Para uma abordagem que conjugue sentido e sofrimento, devemos primeiramente
elaborar bem o caminho de reflexão, para não correr o risco de nos perdermos na
interpretação da resposta. Podemos falar de “buscar o sentido do sofrimento” ou “buscar
sentido no sofrimento”. A primeira abordagem nos remeteria ao sentido como razão,
consequência, por meio das causas do sofrimento, a questão seria por exemplo “Por quê
sofremos? ” e nos indicaria um caminho talvez, mais antropológico, enquanto a segunda
abordagem nos coloca diante do sentido como direção, tendo conhecimento do sofrimento
busca-se fatores para dar uma finalidade, na segunda abordagem a questão seria “Para
que sofremos?”.
As duas questões o “por que?” e “para quê?” se relacionam, pois as duas
constituem-se da mesma realidade, porém o sentido de “para” transcende os dados
antropológicos e coloca o ser humano diante de sua capacidade transcendental de acordo
com sua escolha na busca de sentido. Podemos verificar que:
52
No fundo de cada sofrimento experimentado pelo homem, como também na
base de todo o mundo dos sofrimentos, aparece inevitavelmente a pergunta:
por quê? É uma pergunta acerca da causa, da razão e também acerca da
finalidade (para quê?); trata-se sempre, afinal de uma pergunta acerca do
sentido. (SALVIFICI DOLORIS, n.9)
Podemos nos questionar de que maneira então, encontramos uma resposta para
estas questões que remetem à busca de sentido do/no sofrimento? Que caminho devemos
empreender para alcançar um sentido que responda aos anseios de cada ser humano diante
do sofrimento? Estes e muitos outros questionamentos que podem surgir, nos colocam
diante de uma necessidade objetiva de exposição dos meios que possam ser empregados
a fim de alcançar uma resposta. Certo é que:
O sofrimento constitui um espaço singular de busca de sentido. É diante do
sofrimento que o ser humano prova para si mesmo sua capacidade de resistir,
de fazer frente às situações mais duras e adversas da vida, de atribuir um
sentido à realidade que vive e que o cerca, de avaliar o valor do próprio
sofrimento no concreto da vida. O sentido torna-se possibilidade de significar
a situação de sofrimento e transformá-lo em espaço privilegiado de
aprendizado na construção de si mesmo e dos próprios ideais de vida. [...] o
sofrimento tem sentido quando se tem um motivo par tal, ou quando se atribui
um motivo. (SELLI, 2008, p. 122)
Nessa mesma perspectiva Kovács nos afirma que:
O sofrimento pode ser a possibilidade de buscar sentido, rever situações,
chacoalhar a apatia. Observamos que, atualmente , há uma tendência de logo
eliminar o sofrimento, como uma anestesia, impedindo um processo tão
importante implicado na expressão e elaboração da tristeza, na compreensão
do que pode ser levado à situação em questão. (KOVÁSCS, 2008, p.149)
É importante considerar que devido à multidimensionalidade do sofrimento, a
busca de sentido, embora possa ter elementos comuns exteriores, haverá sempre uma
dimensão interior, própria de cada indivíduo que pode contribuir distintamente nessa
busca de sentido.
A complexidade da abordagem sobre o sentido do sofrimento, que permitiu surgir
as diferentes possibilidades de reflexões a fim de dar uma resposta; certo é que, as
reflexões que buscam dar uma resposta ao sentido do sofrimento não podem ser dadas
por encerradas, uma vez que, como já dito anteriormente cada ser humano responderá
também por fatores intrínsecos próprios a essas reflexões.
A reflexão em torno do sentido do sofrimento vai perpassar os diferentes campos
do conhecimento: da filosofia, da teologia, da medicina, da psicologia, entre outros.
53
Dentro da reflexão sobre o sentido do sofrimento, encontramos a ênfase dado pelas
religiões, que pode ser abordada de forma mais cientifica por meio da Teologia.
No estudo da teologia, que caminho de reflexão nos permite encontrar uma
resposta sobre o sentido do sofrimento? Para tentarmos chegar a uma resposta a essa
questão, podemos refletir por meio da Sagrada Escritura, e como apresentado no primeiro
Capítulo deste trabalho, o sentido pleno da Revelação de Deus, deu-se na pessoa de seu
Filho, Jesus Cristo.
Na perspectiva teológica, podemos afirmar que o cristianismo possibilitou ao ser
humano encontrar um sentido no sofrimento, e para encontrar esse sentido o ser humano
deve abrir-se à sua dimensão transcendental, pois o sentido do sofrimento no cristianismo
envolve o ser humano integralmente. Essa abertura do ser humano ao transcendental dá-
se por meio da fé, processo de adesão pessoal do homem a Deus, e vai alimentar sua busca
de sentido no sofrimento. Segundo Sanches (2008, p.39) “aqueles que aceitam a
existência do Transcendente, e que possivelmente vivem esta aceitação numa crença
religiosa bem específica, articulam um sentido para o mundo e para sua vida no mundo
com muito mais facilidade”.
A fé em Jesus Cristo, como instrumento na busca de sentido no sofrimento,
permite ao ser humano trilhar um caminho de descoberta do sentido da própria vida, pois
no sentido do sofrimento, pela fé em Cristo, encontrará uma dimensão mais profunda e
substancial, que é a própria participação da vida em Cristo, onde o sofrimento por sua vez
encontrará um sentido.
54
3. FÉ E O SENTIDO PARA O SOFRIMENTO
Na busca de sentido para o sofrimento é imprescindível ao ser humano, reconhecer
que, seja qual for o caminho que colocar-se a trilhar, exigirá de si, uma resposta subjetiva,
interior, pessoal. São seus questionamentos, diante da multidimensionalidade de seu
próprio ser, enquanto corpo e razão. Nessa busca, a partir de sua capacidade resiliente,
podemos encontrar vários fatores que colaboram para que o ser humano encontre uma
resposta satisfatoriamente aceitável: é o amor pela família, sua autoestima, seu trabalho,
sua fé, entre muitos outros. Nessa resposta encontra-se o sentido, que por sua vez é
pessoal e ligado a cada momento que o indivíduo se situa, segundo afirma Victor Frankl:
Sentido é, por conseguinte, o sentido concreto em uma situação concreta. É
sempre “a exigência do momento”. Esta, por seu turno, encontra-se sempre
direcionada a uma pessoa concreta. E assim como cada situação tem sua
singularidade, de igual modo cada pessoa tem algo de singular. Cada dia, cada
hora, atende, pois com um novo sentido, e a cada homem espera um sentido
distinto. Existe, portanto, um sentido para cada um, e para cada um existe um
sentido especial. De tudo isso resulta o fato de que o sentido, de que aqui se
trata, deve mudar de situação para situação e de pessoa para pessoa. Ele é,
contudo, onipresente. Não há nenhuma situação na qual a vida cesse de
oferecer possibilidade de sentido e não há nenhuma pessoa para quem a vida
não coloque à disposição um dever. (FRANKL, 2015, p.26)
A fé, aparece como um instrumento que auxilia o ser humano na busca de uma
resposta diante de seu sofrimento, podemos dizer que conduz para aquele “sentido
especial”. A fé, no campo teológico, situa-se na relação do ser humano com o Ser
Transcendente, e o insere numa dinâmica de imanência (Deus se revela ao ser humano) e
de transcendência (o ser humano faz a experiência de Deus).
No estudo da Teologia, podemos encontrar o sofrimento de forma marcante na
relação do ser humano com Deus, no campo Bíblico – Teológico, essa relação de fé e
sofrimento vai ganhando um sentido que culmina na pessoa de Jesus Cristo. Podemos
então, falar do sofrimento a partir do Cristianismo, no caminho daquela busca de sentido
em que o ser humano se coloca diante do sofrimento. A resposta dessa busca de sentido
a partir do Cristianismo, só será possível de ser alcançada mediante a experiência de fé,
que não é um fator estático, mas dinâmico, vivo, multiforme.
Para compreender a fé, como meio de auxílio na busca de sentido para o
sofrimento, devemos primeiramente buscar compreender a própria fé, e a partir de sua
compreensão refletir como ela nos coloca diante do sentido para o sofrimento.
55
3.1 FÉ
Para compreendermos a fé, podemos fazer um caminho de reflexão que nos
possibilite abranger seu conteúdo de forma sistêmica. Partindo do conceito encontrado
no dicionário podemos dizer que fé é uma “adesão total a um ideal, fidelidade em honrar
compromisso, lealdade, confiança em alguém ou alguma coisa, crença nos dogmas de
uma religião” (LAROUSSE, 2005. p.347).
Essa definição nos permite afirmar que a fé, é um elemento no qual o indivíduo
tem um papel ativo, ou seja, ele desempenha sua autonomia ao exercer sua fé, porém é
importante considerar que a fé, no campo teológico tem um significado bem mais
profundo. Na perspectiva de compreender fé no campo teológico, pelo viés do
Cristianismo, obrigatoriamente nos debruçamos sobre a Revelação Divina: é nesse
contexto de interação do ser humano com Deus, que a fé vai sendo vivenciada. Essa fé,
exclui aquelas concepções limitadas de definir fé, como simples ato de confiança a
alguém ou coisa, pois a fé na experiência da Revelação tem seu caráter transcendente e
imanente, o ser humano tem fé em Deus que se Revelou à humanidade:
A fé é primeiramente uma adesão pessoal do homem a Deus; é, ao mesmo
tempo e inseparavelmente, o assentimento livre à toda verdade que Deus
revelou. Como adesão pessoal a Deus e assentimento à verdade que ele
revelou, a fé cristã é diferente da fé em uma pessoa. É justo e bom entregar-se
totalmente a Deus e crer absolutamente no que ele diz. Seria vão e falso pôr tal
fé em uma criatura. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n.150)
Segundo essa definição dada pelo Catecismo da Igreja Católica, a fé, tem por
fundamento a “verdade que Deus revelou”. Ora, a revelação Divina tem sua plenitude na
pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus, que se se fez homem para salvação da
humanidade9. De forma sucinta, podemos afirmar que o conjunto de verdades que
compõe a fé cristã, tem sua fonte e fim na pessoa de Jesus Cristo. Esse conjunto de
verdades, é em si, uma grande e profunda sistematização da Revelação de Deus, pois
compõe- se desde o Antigo Testamento, até culminar em Jesus Cristo, sendo Ele mesmo
a Verdade Revelada.10
9 Cf. Gálatas 4,4. 10 Cf. João 14,6.
56
Do conjunto de verdades que compõe a fé cristã, deriva toda experiência da Igreja,
denominada “Tradição”; É da Revelação de Deus contida na Sagrada Escritura e na
Tradição da Igreja, que encontramos o depósito da nossa fé: “Portanto, esta Sagrada
Tradição, e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos, são como que um espelho no qual
a Igreja, peregrina na terra, contempla a Deus, de quem tudo recebe, até chegar a vê-Lo
face a face qual ele é (cf. 1Jo 3,2) ”. (DEI VERBUM, n.7).
A compreensão da fé perpassa todos os campos da Teologia, é o fio condutor do
estudo teológico, é o pensar científico com a oração e exercício da fé, é fazer a Teologia
de joelhos:
Por isso, há um só modo de fazer teologia: de joelhos. Para nós, pensar a
teologia não se trata apenas de um ato piedoso de oração. Trata-se de uma
realidade dinâmica entre pensamento e oração. Uma teologia de joelhos é ousar
pensar rezando e rezar pensando. Implica um jogo, entre o passado e o
presente, entre o presente e o futuro. Entre o já e o ainda não. É uma
reciprocidade entre a Páscoa e tantas vidas não realizadas que nos perguntam:
onde está Deus? É santidade de pensamento e lucidez de amor. É, sobretudo,
humildade que nos permite colocar o nosso coração, a nossa mente em sintonia
com o «Deus sempre maior» Não devemos ter medo de nos pôr de joelhos
diante do altar da reflexão e de o fazer com «as alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de quantos
sofrem» (Gaudium et spes, 1), diante do olhar d’Aquele que move todas as
coisas. (FRANCISCO, 2015)
A teologia nos coloca diante das várias possibilidades de abordagem sobre a fé,
podemos frisar essa experiência do ser humano com Deus, pela afirmação: “Deus, o
Totalmente-Outro, vem a nós e encontra-se em nosso caminho: eis o acontecimento a que
vai responder ao evento do ato de fé. Trata-se agora de saber onde, como, de que forma,
se realiza este acontecimento da “vinda” de Deus ao nosso encontro” (GIBIN, JUNIOR,
1979, p.20).
Esse encontro com o Totalmente-Outro, dá-se nas realidades da vida humana, mas
tem seu caráter transcendental, pois:
A fé cristã não surge da observação das estruturas e processos do mundo, e
neste sentido transcende tudo o que a razão pode descobrir por si mesma. Mas
este transcender não é um contradizer, mas um abranger. A partir da fé é
possível entender de maneira nova o mundo, mas a partir do mundo não é
possível mostrar a fé. (GONZALEZ, 2009, p.222)
Ao refletir a fé, na perspectiva da busca de sentido para o sofrimento, podemos a
partir da afirmação de Gibin e Junior (1979) ter no sofrimento esta “vinda” de Deus ao
encontro do ser humano. É justamente desse encontro, que o ser humano encontrará
sentido e na perspectiva de Gonzalez (2009) uma nova maneira de ver o mundo.
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Pela complexidade da compreensão da fé, na multidisciplinaridade da Teologia,
podemos nos restringir a abordar e compreender a fé a partir da busca do sentido para o
sofrimento.
3.1.1 A fé na busca de sentido para o sofrimento.
Pela compreensão que o estudo da fé é amplo e profundo no campo da Teologia,
podemos nos deter em alguns pontos relevantes para a compreensão da fé na busca de
sentido para o sofrimento. Podemos situar a fé, no contexto do indivíduo que sofre, e em
meio ao seu sofrimento busca um sentido para significá-lo. Perguntamo-nos como a fé
pode contribuir para essa busca de sentido? E como o indivíduo experimenta a fé?
Tomamos por base, um indivíduo que não se insere nesse contexto de uma adesão
à pessoa de Jesus Cristo, não fez uma experiência capaz de introduzi-lo na dinâmica da
fé e que se depara com o sofrimento, como poderá fazer uma experiência de fé? Tratamos
aqui, da fé que brota da experiência do sofrimento, onde o sofrimento é como que um
despertar para fé, é o caminho da busca de sentido, onde o ser humano sofredor encontra-
se com o Deus Amor, e a partir de sua experiência vai significando não somente seu
sofrimento, mas por meio deste, também sua vida. Nesse contexto, podemos compreender
que Deus não está a parte do sofrimento do ser humano. Já no Antigo Testamento uma
demonstração importante está no chamamento de Moisés para libertar o povo de Israel da
escravidão do Egito; libertação esta, central na vida do povo Judeu e de grande
significância na compreensão da História da Salvação no contexto cristão:
Iahweh disse: “Eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu grito
por causa dos seus opressores: pois eu conheço as suas angústias, Por isso desci
a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir desta terra para
uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel ... Agora o grito dos israelitas
chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão
oprimindo. Vai, pois, e eu te enviarei a Faraó, para fazer sair do Egito o meu
povo, os israelitas. ” (Exôdo 3, 7-12)
A libertação do povo de Israel da escravidão egípcia é unida a uma promessa de
vida, mas uma promessa na qual o povo se põe a caminho e durante esse caminho o povo
vai conhecendo suas próprias limitações, e desafios, concomitante com a experiência de
Deus que se revela nessa caminhada.
Esse contexto que encontramos no Antigo Testamento, nos coloca diante da
possibilidade de reflexão na busca de sentido para o sofrimento, onde o indivíduo que
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sofre coloca-se a caminho da descoberta de sentido na medida em que se abrir à
possibilidade da promessa de Vida que Cristo oferece: “Eu vim para que tenham vida, e
a tenham em abundância” (João 10,10).
Fato similar nesse caminho de experiência de Deus no sofrimento, é a experiência
humana, que em meio ao sofrimento abre-se à sua dimensão transcendental, o povo no
deserto clamou por Iahweh; da mesma forma o ser humano que hoje sofre, pode buscar
sua resposta em Deus. Esse povo que liberto da escravidão egípcia, coloca-se a caminho
de uma promessa, vai defrontar-se com exigências necessárias para esse caminho, e estará
ligado necessariamente ao seu compromisso com Deus que os libertou. Nesse contexto
encontramos a Lei, dada a Moisés no Monte Sinai11, e podemos fazer menção à reflexão
feita no primeiro capítulo sobre a literatura deuteronomista, sobre a importância da Lei
na vida do povo de Israel.
Em suma, todo ser humano é capaz de Deus, e há fatores existenciais que são
como as chaves para sua experiência de fé:
O caráter compromissivo da fé, consiste em seus laços com a experiência: ter
fé significa existir de certo modo: “Para ter fé é preciso que haja uma situação
que dever ser produzida com um passo existencial do indivíduo”. Esse passo
marca a ruptura com o mundo e seu ideal de inteligibilidade. O que é crer? É
querer (o que se deve e por que se deve), em obediência reverente e absoluta,
defender-se do vão pensamento de querer compreender e da vã imaginação de
poder compreender”. Desse ponto de vista, a fé não é feita de certezas, mas de
decisão e risco. (ABBAGNANO,2012, p. 503)
Com base na afirmação de Abbagnano (2012), podemos ver nessa “situação que
deve ser produzida com um passo existencial do indivíduo” dentre outras, a experiência
do sofrimento. Essa situação, desperta no ser humano sua abertura ao transcendental, e
então coloca-o a caminho de uma experiência profunda da fé. Podemo-nos questionar,
sobre a fé em Iahweh no contexto da libertação apresentado, pois aquele povo naquela
experiência de sofrimento, já tinha seus fundamentos de fé no Deus que se revelou a
Abraão12. E quanto ao indivíduo que atualmente não se vê inserido na dinâmica da fé?
Não tem as bases, para compreensão da busca de Deus diante do seu sofrimento?
Para respondermos a essas questões podemos partir da ideia de que, sendo o
sofrimento essa “situação que deve ser produzida com um passo existencial do
indivíduo”, ela coloca o indivíduo a empreender-se em busca de uma resposta É nessa
11 Cf. Êxodo 34. 12 Cf. Gênesis, 17.
59
busca que situamos a experiência de fé. E nessa experiência o indivíduo abre-se ao
transcendente, faz a adesão, passa a crer, e esse processo como citado por Abbagnano
(2012) exige “defender-se do vão pensamento de querer compreender e da vã imaginação
de poder compreender”. Com essa definição enquadramo-nos diante da afirmação
paulina: “A fé é a garantia dos bens que se esperam, a prova das realidades que não se
veem “ (Hebreus, 11,1).
Encontrar Deus, na busca de sentido para o sofrimento é no fundo, um despertar
da fé ao ser humano que se vê indiferente da existência de Deus. A fé dinamiza a busca
de sentido, e passa a assumir valores que condicionam a vida do ser humano. Deus não
inflige o sofrimento ao ser humano. O sofrimento insere-se na realidade humana própria
de matéria corruptível e demais dimensões de seu ser, “Ninguém, ao ser provado, deve
dizer. “É Deus que me prova”, pois Deus não pode ser provado pelo mal e a ninguém
prova. Antes, cada qual é provado pela própria concupiscência, que o arrasta e seduz. ”
(Tiago, 113-14). Mas diante do sofrimento, o ser humano pode despertar-se para
existência de Deus, segundo Lewis (1986, p.46) “Mas o sofrimento insiste em ser notado.
Deus sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nosso
sofrimento: ele é o seu megafone para despertar um mundo surdo”.
Na experiência do sofrimento, Deus se revela ao ser humano; o ser humano é
capaz de reconhecê-lo, pois seu chamado para comunhão com Deus, não se dá somente
pelo sofrimento, mas sim desde sua origem. O sofrimento é apenas uma realidade que
desperta o ser humano para essa comunhão já pré-existente ao seu sofrimento:
A razão mais sublime da dignidade do homem consiste na sua vocação à união
com Deus. É desde o começo da sua existência que o homem é convidado a
dialogar com Deus: pois, se existe, é só porque, criado por Deus por amor, e
por ele, por amor, constantemente conservado; nem pode viver plenamente
segundo a verdade, se não reconhecer livremente esse amor e entregar ao seu
Criador. (GAUDIUM ET SPES, n.19)
Em meio às realidades humanas, Deus se manifesta, em sua interação de amor.
Na dinamicidade da vida o ser humano depara-se com a possiblidade de reconhecer a
manifestação de Deus, tende a aceitá-lo livremente, ou a fechar-se em si mesmo,
rejeitando-O. O sofrimento coloca o ser humano diante dessas possiblidades, conforme
nos afirma o Catecismo da Igreja Católica:
60
A enfermidade e o sofrimento sempre estiveram entre os problemas mais
graves da vida humana. Na doença, o homem experimenta sua impotência,
seus limites e sua finitude. Toda doença pode fazer-nos entrever a morte. A
enfermidade pode levar a pessoa à angústia, a fechar-se sobre si mesma, e às
vezes, ao desespero e à revolta contra Deus. Mas também pode tornar a pessoa
mais madura, ajudá-la a discernir em sua vida o que não é essencial, para
voltar-se àquilo que é essencial. Não raro, a doença provoca uma busca de
Deus, um retorno a Ele. (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n.1500-
1501)
Essa dimensão do sofrimento na perspectiva da fé que aproxima o ser humano de
Deus, traz consigo aquela concepção da literatura sapiencial, e que no Novo Testamento
encontra sua plenitude em Jesus Cristo, onde pelo sofrimento o ser humano pode tornar-
se participante de seu sofrimento “à medida que participais dos sofrimentos de Cristo,
alegrai-vos, para que também na revelação da sua glória possais ter alegria transbordante”
(I Pedro, 414). Esse caminho de fé na busca de sentido do sofrimento, desperta o ser
humano para suas realidades, como já afirmado neste trabalho, dar um sentido para o
sofrimento é ao mesmo tempo encontrar um sentido para vida, como nos afirma Faus:
A Cruz, o sofrimento, purifica-nos, o sofrimento abre-nos os olhos para
panoramas de vida maiores, mais verdadeiros e mais belos. O sofrimento
ajuda-nos a escalar os cumes do amor a Deus e do amor ao próximo. São
inúmeras as histórias de homens e mulheres que sacudidos pelo sofrimento,
acordaram: adquiriram uma nova visão – que antes era impedida pela vaidade,
pela cobiça e pelas futilidades – e perceberam, com olhos mais puros, que o
que vale a pena de verdade na vida é Deus que nunca morre, nem trai, nem
quebra, descobriram que nEle se acha o verdadeiro amor pelo qual todos
ansiamos e que nenhuma outra coisa consegue satisfazer... perceberam, enfim
que os outros também sofrem, e por isso decidiram-se a esquecer-se de si
mesmo e dedicar-se a aliviá-los e ajudá-los a bem sofrer. (2001, p. 39)
A experiência de fé tem suas variadas manifestações, de modo sucinto na
perspectiva da busca de sentido para o sofrimento, podemos verificar a participação do
ser humano na experiência de fé, e de Deus que se revela na pessoa de seu Filho Jesus
Cristo que assumiu o sofrimento por obediência.13
Uma última consideração a ser feita é, como já abordado anteriormente, que a fé,
na perspectiva do cristianismo tem sua fonte e fim em Jesus Cristo, em quem encontramos
a plenitude da Revelação de Deus. Portanto, fazer uma experiência de fé, é fazer uma
experiência com a pessoa de Jesus Cristo, “com os olhos fixos naquele que é o iniciador
e consumador da fé, Jesus” (Hebreus 12,2) e o seu testemunho de Paixão nos insere por
excelência no sentido do sofrimento.
13 Cf. Filipenses 2,8.
61
Na experiência do sofrimento, a adesão a Jesus Cristo, insere o cristão em uma
experiência profunda de fé, a dinamicidade de sua experiência o condiciona a uma
profunda compreensão do sentido. Podemos a partir da fé em Jesus Cristo, encontrar o
sentido para o sofrimento, esse caminho de reflexão nos coloca diante de três grandes
áreas da Teologia a saber: escatológica, soteriológica e eclesiológica, entre outras áreas,
porém detemo-nos nessas três citadas para podermos situar a fé no contexto de sentido
apresentado por Boff (2014).
A reflexão a seguir, insere a experiência da fé, como busca de sentido para o
sofrimento; esse sentido encontra-se nas dimensões teológicas apresentadas, não visa
fazer um estudo aprofundado sobre tais dimensões, apenas conjugar a ideia básica de cada
dimensão elevando a experiência do sofrimento na perspectiva da fé em Jesus Cristo
naquela compreensão de sentido apresentada por Boff (2014) refletida no capítulo
anterior.
3.1.1.1 Fé na dimensão escatológica e o sentido como finalidade.
Podemos fazer algumas referências à compreensão da escatologia, para podermos
situar a fé na busca de sentido. Uma definição básica de escatologia no dicionário
Larousse (2005, p. 306) é apresentada como “conjunto de doutrinas e crenças sobre o
destino último do ser humano e do Universo”. No campo teológico, encontramos tratados
sobre escatologia, como já afirmado, de modo básico para a contextualização na busca de
sentido para o sofrimento, podemos partir da afirmação de Tamayo:
A escatologia não se centra nos hipotéticos acontecimentos do final dos
tempos, mas no destino da humanidade em seu conjunto e do ser humano em
seu peregrinar pelo mundo, no sentido último e na finalidade da história, e
definitivamente no éschaton. Este remete, no cristianismo, a uma pessoa, Jesus
Cristo, e a um acontecimento, sua ressurreição por obra de Deus,
experimentada no âmbito da fé pelos homens e mulheres que haviam vivido
com ele. (TAMAYO, 2009, p.169)
Nessa definição, encontramos nas palavras do autor que a escatologia se centra
“... no sentido último e na finalidade da história”, tal definição nos coloca diante daquela
dimensão de sentido como fim/finalidade apresentada por Boff (2014). E como afirma
Tamayo (2009), no cristianismo esse sentido remete à pessoa de Jesus Cristo. Na busca
de sentido para o sofrimento, encontramos na dimensão escatológica, a finalidade, um
62
fim último para o sofrimento, que está na participação dos sofrimentos de Cristo “e a um
acontecimento, sua ressurreição por obra de Deus” (TAMAYO, 2009).
A ressurreição de Cristo, é o acontecimento que nos permite compreender pela
experiência da fé, uma vivência do Reino de Deus em parte aqui no tempo presente14,
daquilo que Cristo prometeu à humanidade no reino de Deus definitivo: “Na casa de meu
Pai há muitas moradas. Se não fosse assim eu vos teria dito, pois vou preparar-vos um
lugar, virei novamente e vos levarei comigo, a fim de que, onde eu estiver, estejais vós
também. (João 14, 2-3).
O fundamento escatológico para o sofrimento presente, é que aderindo à fé em
Cristo, aquele que sofre com Cristo pela fé, torna-se participante de seu sofrimento, mas
também se torna participante de sua Glória que será revelada. Essa experiência só é
possível viver por meio da fé: “Contudo, alegrai-vos por serdes participantes dos
sofrimentos de Cristo, para que também vos alegreis e exulteis na revelação da sua
glória.” (I Pedro 4,13); Paulo nos atesta a participação na vida de Cristo nas seguintes
palavras:
Mas se morremos com Cristo, temos fé que também viveremos com ele,
sabendo que Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a
morte não tem mais domínio sobre ele. Porque, morrendo, ele morreu para o
pecado uma vez por todas; vivendo, ele vive para Deus. Assim também vós,
considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus.
(Romanos 6, 8-11)
A morte compreendida como fim/finitude da vida, enquanto no mundo presente,
tem uma dimensão escatológica, quando assumimos a fé em Jesus Cristo; pois tendo
ressuscitado dentro os mortos, Cristo nos insere numa dinâmica do Reino de Deus
presente em parte neste mundo como já citado. Essa morte, citada por Paulo não se refere
à morte tal como compreendemos usualmente, mas sim a uma mudança de vida, uma
conversão por meio da fé em Cristo, a vivência dos valores dessa vida em Cristo nos
insere na vivência do reino de Deus, em parte no tempo presente, e que será plenificada
no reino definitivo. Nessa perspectiva a vida tem um valor pós morte, que dá sentido vivê-
lo já, no presente, nas palavras de Boff:
Mas também Platão, depois de constatar que a vida terrena não vale as penas
que comporta, agregou a cláusula condicional decisiva: isso só é verdade se
não existe uma “esperança sublime”, a imortalidade feliz. Mas se esta existe,
então fica claro que ela não tem seu fim-extinção na morte, mas tem seu fim-
realização no post mortem. Com isso a vida temporal ganha um novo sentido
14 Cf. I Cor 13, 12; Rm 8,18.
63
e um novo encanto: passa a valer fundamentalmente como primeira etapa para
a vida plena e bem-aventurada. (BOFF, 2014, p. 50)
Essa afirmação de Boff (2014), resume o pensamento escatológico sobre a
vivência da vida bem-aventurada já no tempo presente, pois possui a dimensão
escatológica da fé, num sentido de finalidade. Todo ser humano possui essa capacidade
de encontrar esse sentido como finalidade, através da experiência de fé:
Há ainda a transcendência vertical da vida. Pois a vida não para na
horizontalidade da espera, mas se ergue para verticalidade da esperança
escatológica. Todo ser humano, embora incrédulo carrega em seu íntimo, de
modo explícito ou implícito, a esperança da permanência eterna de seu ser. É
o “instinto da eternidade”. (BOFF, 2014, p.51)
Colocamo-nos diante da realidade do sofrimento: como essa fé vivenciada na
perspectiva escatológica pode ser uma resposta na busca de sentido? Afinal,
empreendemo-nos na busca de um sentido para o sofrimento a partir da capacidade
resiliente e da adesão à fé em Cristo, que o ser humano assume em sua vida.
Se partimos da noção que a vivência do Reino de Deus está na prática da fé por
meio das obras de misericórdia15 e das virtudes, podemos afirmar que o sofrimento nos
insere nessa dinâmica:
No programa messiânico de Cristo, que é ao mesmo tempo o programa do
reino de Deus, o sofrimento está presente no mundo para desencadear o amor,
para fazer nascer obras de amor para com o próximo, para transformar toda a
civilização humana na “civilização do amor”. Com este amor é que o
significado salvífico do sofrimento se realiza totalmente e atinge sua dimensão
definitiva. (SALVIFICI DOLORIS, n.30)
O sentido do sofrimento pela fé na dimensão escatológica antecipa a “finalidade”
do reino de Deus para o tempo presente, é a certeza de participar da Glória de Cristo,
aquele que participa de seus sofrimentos:
À perspectiva do reino de Deus está unida também a esperança daquela glória,
cujo início se encontra na Cruz de Cristo. A Ressurreição revelou esta glória –
a glória escatológica – que na Cruz de Cristo era ofuscada pela imensidão do
sofrimento. Aqueles que participam dos sofrimentos de Cristo, estão também
chamados, mediante os seus próprios sofrimentos, para tomar parte da glória.
(SALVIFICI DOLORIS, n.22)
Essa participação nos sofrimentos e na glória de Cristo mediante a fé, coloca o ser
humano que sofre diante de uma resposta na busca de sentido. Esta primeira dimensão
que apresentamos insere-se numa visão escatológica da fé, e como visto na abordagem
15 Cf. Mateus 25, 31-46.
64
de sentido segundo Boff (2014) essa dimensão de fim/finalidade de sentido, se une à
dimensão de valor e de direção, nessa reflexão teológica aplicamos como soteriológica e
eclesiológica.
Em síntese, a fé na dimensão escatológica na abordagem do sofrimento, encontra
o sentido de finalidade, uma antecipação daquele fim que se espera e que é a participação
do Reino de Deus, de sua Glória. O ser humano sofre, mas seu sofrimento o eleva a
experiência do fim desejado que é a participação no reino definitivo, o sentido do
sofrimento está nessa experiência escatológica; que só lhe é permitido por meio da sua fé
em Jesus Cristo.
3.1.1.2 Fé na dimensão soteriológica e o sentido como valor.
Para empreendermos na compreensão da fé da dimensão soteriológica e
apresentar o sentido como valor do sofrimento, torna-se necessário entender basicamente
o conceito de soteriologia.
Soteriologia é o “tratado teológico que tem como objeto a redenção do homem. A
salvação opera-se numa autocomunicação de Deus em Cristo, pela qual se redime e
liberta” (SCHLESINGER e PORTO, 1995, p.2418). A soteriologia, é o tratado da
redenção do ser humano por meio de Jesus Cristo, ou seja, a Salvação oferecida ao ser
humano por meio da paixão, morte e ressurreição de Cristo.
Se o sofrimento na dimensão escatológica eleva o ser humano à participação
antecipada do Reino de Deus, onde encontramos o sentido como finalidade, e se dá por
meio da participação dos sofrimentos de Cristo, a dimensão soteriológica nos coloca
diante do valor que esse sofrimento tem em si mesmo, pois ainda que se viva na esperança
do reino definitivo, sofre-se no presente. Esse sofrer tem um valor em si mesmo e é
significado no agora, no tempo presente.
Como apresentado anteriormente segundo Boff (2014), vimos que “valor” é tido
como “bem” e citando Aristóteles afirma que “bem é o que cada coisa busca” e que o
bem constitui o fim do que se busca. Podemos aplicar essa concepção a partir da fé na
dimensão soteriológica, a fim de apresentar o sentido como valor para o sofrimento.
Como “finalidade” está para “valor”, assim “escatologia” está para “soteriologia”,
pois em ambas afirmações há uma convergência conceitual à luz da fé. Pela escatologia,
65
o fim que se busca é a participação do Reino de Deus, essa participação se faz presente
porque Cristo morreu e tornou-nos participantes de sua morte, como o apóstolo Paulo nos
afirma:
Porque se nos tornamos uma coisa só com ele por morte semelhante à sua,
seremos uma coisa só com ele também por ressurreição semelhante à sua,
sabendo que nosso velho homem foi crucificado com ele para que fosse
destruído este corpo de pecado, e assim não sirvamos mais ao pecado.
(Romanos 6, 5-6)
A adesão a Cristo, por meio da fé, na vivência do sofrimento eleva o ser humano
a filiação adotiva de Deus, “Mas a todos que o receberam deu o poder de se tornarem
filhos de Deus: aos que creem em seu nome, eles, que não foram gerados nem do sangue,
nem de uma vontade da carne, nem de uma vontade do homem, mas de Deus” (João, 1,
12-13)
A fé em Cristo, tem a dimensão da salvação da humanidade, sua morte é redentora.
A redenção da humanidade encontra-se na morte de Cristo na Cruz, foi sua morte que
resgatou a humanidade do pecado, o apóstolo Pedro nos afirma:
E se chamais Pai aquele que com imparcialidade julga a cada um de acordo
com suas obras, comportai-vos com temor durante o tempo do vosso exílio.
Pois sabeis que não foi com coisas perecíveis, isto é, com prata ou com ouro,
que fostes resgatados da vida fútil que herdastes de vossos pais, mas por sangue
precioso, como de cordeiro sem defeitos e sem mácula, Cristo, conhecido antes
da fundação do mundo, mas manifestado, no fim dos tempos, por causa de vós.
Por ele, vós crestes em Deus, que o ressuscitou dos mortos e lhe deu a glória,
de modo que a vossa fé e a vossa esperança estivessem postas em Deus. (I
Pedro 1, 17-21)
Por meio da fé, e esperança depositada em Deus, que o ser humano tem a
possibilidade de fazer a experiência de sentido para sua vida, e o sofrimento torna essa
possibilidade mais próxima, pois:
Nesta concepção, sofrer significa tornar-se particularmente receptivo,
particularmente aberto à ação das forças salvíficas de Deus, oferecidas em
Cristo à humanidade. Nele, Deus confirmou que quer operar de modo especial
por meio do sofrimento, que é a fraqueza e o despojamento do homem e ainda,
que é precisamente nesta fraqueza e neste despojamento que ele quer
manifestar o seu poder. (SALVIFICI DOLORIS, n. 23)
O sofrimento concomitante à participação escatológica do Reino de Deus, tem seu
valor salvífico. É essa dimensão salvífica que introduzirá o ser humano no reino
definitivo; é o ponto de convergência conceitual onde crer no Reino de Deus viver o Reino
de Deus pela fé, no sofrimento se convergem.
66
O sofrimento do ser humano tem seu valor salvífico se iluminado pelo sofrimento
de Cristo, em outras palavras o sentido como valor para o sofrimento tem seu fundamento
na salvação oferecida por Cristo em sua morte de Cruz; “A Cruz de Cristo projeta a luz
salvífica de um modo assim tão penetrante sobre a vida do homem e em particular, sobre
o seu sofrimento, porque, mediante a fé, chega até ele juntamente com a Ressurreição: o
mistério da paixão está contido no mistério pascal”. (SALVIFICI DOLORIS, n.21).
Podemos concluir que na busca de sentido para o sofrimento, encontramos na
experiência da fé a resposta do sentido como valor, é a fé numa dimensão soteriológica,
o ser humano que sofre, pode significar seu sofrimento unindo-o ao sofrimento de Cristo,
e encontrando o valor da redenção mediante a participação de seu sofrimento ao
sofrimento de Cristo, conforme nos afirma Faus:
Tenhamos presente que – como ensina a Igreja – “o Filho de Deus, pela sua
Encarnação, se uniu de certo modo a cada homem”, a cada um de nós. Dizer
isto não é exagero nem retórica; pelo contrário, nós os cristãos, podemos
afirmar, com alegre convicção, que Cristo está unido aos nossos sofrimentos
como se fossem seus. Ele sofre conosco, une a nossa dor à sua dor na Cruz, e
quer ajudar-nos a transformar os nossos padecimentos – dando-lhes o mesmo
sentido que aos dEle – num tesouro de amor, de graça, de salvação, de gozo.
(FAUS, 2001, p.30)
Nessa afirmação de Faus (2001), Cristo ao participar de nosso sofrimento dá-lhe
o mesmo sentido que ao sofrimento dEle, ou seja, uma dimensão soteriológica ao
sofrimento, cujo sentido de valor está na salvação do ser humano oferecida por Cristo.
Essa salvação do ser humano é o centro da missão da Igreja de Cristo, todo aquele
que adere a Cristo, insere-se por meio do Batismo ao seu Corpo Místico que é a Igreja.
“Agora regozijo-me nos meus sofrimentos por vós, e completo o que falta às tribulações
de Cristo em minha carne pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Colossenses 1,24). A fé,
vivenciada na comunidade eclesial, que possibilitará encontrar o sentido como direção
para o sofrimento.
3.1.1.3 Fé na dimensão eclesiológica e o sentido como direção.
Uma terceira e última dimensão da fé que abordaremos é a dimensão
eclesiológica, na qual nos permite encontrar um sentido de direção para o sofrimento.
Seguindo o método aplicado anteriormente podemos partir da compreensão básica de que
67
eclesiologia é “o tratado sobre a Igreja. Parte da teologia cristã que versa sobre a origem,
natureza e a atividade da Igreja na história e no mundo”. (SCHLESINGER e PORTO,
1995, p. 897), por esta definição podemos verificar a complexidade e profundidade do
estudo da eclesiologia.
Para a reflexão da fé na dimensão eclesiológica, a fim de apresentar o sentido
como direção do sofrimento, retomemos a abordagem de Boff (2014) sobre o sentido
como direção. Segundo o autor, o sentido como finalidade, valor e direção se
complementam entre si, tendo visto o sentido de finalidade e valor, ressaltamos que o
sentido como direção indica aquele fim último no qual o sentido de finalidade e valor de
fundamentam.
Sentido como direção, segundo Boff (2014, p.23) aponta para algo, para aquela
realidade última, “Essa ideia de “para” é o fundo comum presente em todas as acepções
de “sentido”, não importa o plano em que se situem”. O sentido como direção tem
profunda relação com o sentido de finalidade no qual encontra-se a causa final, e esta tem
sua primazia sobre todas as outras causas, portanto é ela que confere o sentido de direção.
Simplificando essa compreensão do sentido como direção, podemos afirmar que
aquela realidade escatológica do Reino de Deus, tem sua causa no próprio Deus, ou seja,
o sentido pleno baseia-se na participação definitiva com Deus, mas que só pode ser vivida
de forma parcial aqui neste mundo, Deus então exerce sua primazia sobre todas as coisas
atraindo e orientando o ser humano para Si, diante de suas realidades presentes, no
fundamento dessas realidades presentes encontra-se o sentido como direção, e na
dimensão da fé esse sentido é exercido na Igreja de Cristo.
O sofrimento humano vivenciado à luz da fé insere o ser humano na vida eclesial,
onde seu sofrimento colabora na obra redentora que a Igreja exerce junto à obra redentora
de Cristo:
Deste modo, com tal abertura a todos os sofrimentos humanos, Cristo operou
com o seu próprio sofrimento a Redenção do mundo. Esta Redenção, no
entanto, embora tenha sido realizada em toda a sua plenitude pelo sofrimento
de Cristo, à sua maneira vive e desenvolve-se ao mesmo tempo na história dos
homens. Vive e desenvolve-se como Corpo de Cristo que é a Igreja; e nesta
dimensão todo sofrimento humano, em razão da sua união com Cristo no amor,
completa o sofrimento de Cristo. Completa-o como a Igreja completa a obra
redentora de Cristo. (SALVIFICI DOLORIS, n. 24)
Essa dimensão eclesiológica da fé insere o ser humano na vida em comunidade,
na Igreja de Cristo, o ser humano que sofre, não se vê sozinho, mas inserido numa
68
multidão que constitui o Povo de Deus, que também tem seus sofrimentos. Esse Povo de
Deus, que constitui a Igreja de Cristo, caminha rumo à promessa do reino definitivo:
Do mesmo modo que Israel segundo a carne, peregrinou no deserto, é já
chamado Igreja de Deus, assim também o novo Israel do tempo atual, que anda
em busca da cidade futura e permanente, se chama Igreja de Cristo, porque ele
a conquistou com seu sangue, a encheu do seu Espírito e a dotou com meios
aptos para uma união visível e social. (LUMEM GENTIUM, n. 114)
Essa Igreja de Cristo que caminha em direção à cidade futura e permanente, acolhe
em seu seio todo aquele que sofre, “De igual modo, a Igreja abraça com amor todos os
afligidos pela enfermidade humana; mais ainda, reconhece nos pobres e nos que sofrem
a imagem do seu fundador pobre e sofredor, procura aliviar as suas necessidades, e intenta
servir neles a Cristo” (LUMEN GENTIUM, n.8).
O sentido como direção para o sofrimento na dimensão da fé, fundamenta-se na
vivência eclesial do sofredor, onde a Igreja o acolhe e o eleva junto de si, à sua missão
salvífica:
A igreja, precisamente, que sem cessar vai haurir nos infinitos recursos da
Redenção, introduzindo esta na vida da humanidade, é a dimensão na qual o
sofrimento redentor de Cristo pode ser constantemente completado pelo
sofrimento do homem. Nisto é posta também em relevo a natureza divino-
humana da Igreja. O sofrimento parece participar, de certo modo, das
características desta natureza; e, por isso, reveste-se também deum valor
especial aos olhos da Igreja. É um bem diante do qual a Igreja se inclina com
veneração, com toda a profundidade da sua fé na Redenção. Inclina-se também
diante dele com toda a profundidade daquela fé com que acolhe em si mesma
o inexprimível mistério do Corpo de Cristo. (SALVIFICI DOLORIS, n.24).
O sofrimento na perspectiva da fé, encontra seu sentido no campo eclesiológico
na medida em que aquele que sofre, deixa-se abraçar pela missão salvífica da Igreja, e
participa com ela dos mistérios de Cristo.
A fé como busca de sentido para o sofrimento, encontra sua resposta na dimensão
eclesial o sentido de direção, em vista daquela causa final que constitui o próprio Deus,
no qual toda Igreja, Povo de Deus coloca-se a caminho de seu reino definitivo.
A Igreja, direciona, caminha rumo à “cidade futura e permanente” (LUMEN
GENTIUM, n.114), por meio da fé o ser humano adere a esse caminho, e vai participando
da vida e missão da Igreja, e nesse contexto seu sofrimento tem profunda participação ao
mistério salvífico de Cristo exercido na Igreja.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na sociedade atual, onde o desenvolvimento científico e tecnológico apresenta
seu grande expoente, ecoa uma necessidade cada vez mais emergente: a busca de sentido.
Cada vez mais, grandes pensadores alertam para uma crise de sentido na sociedade atual,
no eixo central na busca de sentido está o sentido da vida. Ao passo que as tecnologias
permitem uma maior acessibilidade à informação e melhor qualidade de vida para aqueles
que podem obtê-las, o ser humano depara-se com um crescente sentimento de vazio
existencial:
Nossa sociedade vivencia profundas transformações e ruptura de valores.
Estamos sob a ênfase do mais; mais riqueza, prazer, juventude; ganhar e
vencer, enfim, materialismo, consumismo, aparências e prazer. “Ao magnífico
desenvolvimento científico e tecnológico de nossa época correspondeu uma
assustadora carência de sabedoria e introspecção” (Jung. Oc., v. 11/1).
Vivemos voltados para o mundo externo, com todos os riscos da massificação
e, com isso, um profundo vazio existencial se apossa de nossas vidas.
(PESSINI, 2008, p,66)
Esse vazio existencial, apontado por Pessini (2008), desperta o ser humano para a
busca de sentido, um olhar para si, a fim de descobrir o significado de sua existência.
Nessa busca de sentido, o ser humano vai defrontar-se com as dimensões próprias de sua
existência, a felicidade, o sofrimento, a morte, entre outros.
Atualmente, nos deparamos com diversas realidades de sofrimento presentes na
sociedade, algumas delas perceptíveis aos nossos olhos, outras, no entanto são vividas
nos sombrios recônditos da existência de cada indivíduo. Essa realidade nos apresenta a
multidimensionalidade do sofrimento, que foi apresentado no início deste trabalho a fim
de criarmos uma visão ampla da complexidade que o sofrimento coloca em questão.
Não basta identificar as manifestações do sofrimento, é preciso oferecer
possibilidades de superá-los, buscando meios para erradicá-los ou ao menos aliviá-los
para aqueles que sofrem. É o papel das ciências, cada qual a seu modo, apresentar
respostas, alternativas para ajudar o ser humano diante do sofrimento. Essa busca de
respostas, alternativas, entre outros, apontam para diversas abordagens sobre o sofrimento
e em meio a todas elas, fica-nos a grande questão: qual o sentido do sofrimento?
A resposta do sentido para o sofrimento encontra uma profunda fundamentação
por meio da Teologia. Neste trabalho foi possível, por meio do método teológico, verificar
70
o desenvolvimento da compreensão do sofrimento em diferentes épocas, e a partir dessa
compreensão construir uma reflexão que apresentasse uma resposta diante da busca de
sentido.
Por meio do método teológico, a compreensão do sofrimento vai sendo
fundamentada na experiência que o ser humano faz a partir de sua capacidade
transcendental. Nesse contexto, o sofrimento e os demais conceitos com que se
correlaciona, é estudado a partir dos conhecimentos teológicos em diálogo com outras
formas de conhecimento. Sendo assim, neste trabalho, a capacidade de superação que o
ser humano tem diante do sofrimento, entre outras competências conhecidas como
resiliência, são apresentadas em suas aproximações com a virtude da fortaleza, própria do
pensamento teológico. Esse diálogo da teologia com outras ciências foi fundamental na
construção de uma reflexão que pretende apresentar uma resposta na busca de sentido
para o sofrimento.
Nessa mesma perspectiva, a compreensão de sentido na linha filosófica,
possibilitando uma reflexão teológica do sentido do sofrimento, abriu espaço para uma
resposta coerente diante do sofrimento. Imprescindível, em todo esse contexto foi
considerar o papel que a fé exerce no processo de superação do sofrimento, bem como,
na sua busca de sentido. A fé, categoricamente é fundamental para se encontrar uma
resposta:
Portanto, nossas crenças e valores alteram nossa realidade somática. A questão
espiritual pode nos articular em direção a uma profunda crença intrínseca, à fé.
A fé nos permite acreditar que sempre há uma margem dentro da qual a vida
tem um significado, pois se tudo é possível para Deus, também será para o ser
humano; isto permite uma emancipação absoluta de toda lei natural. (PESSINI,
2008, p.79-80)
Este trabalho ao apresentar o papel da fé na busca de resposta para o sofrimento,
teve sua centralidade na pessoa de Jesus Cristo. A partir de como Jesus Cristo lidou com
o sofrimento, bem como sua paixão e morte, significou o sentido do sofrimento. Tal
compreensão do sofrimento de Cristo que dá sentido ao sofrimento do ser humano é
expresso por Lorda:
Não é concebível que Cristo, nosso irmão, nosso caminho, nossa verdade e
nossa vida, tenha sofrido, e nós não. Ele não pode desejar para nós que
passemos por este mundo sem experimentar a Cruz que Ele experimentou, sem
ver, ao menos um pouco, que gosto tem, sem termos sido abençoados com esse
sinal. Não pode ser que seja algo bom para Ele, e não a queira para nós. Na dor
encontramo-lo mais que em nenhum outro lugar. Fazemo-nos como Ele e nos
71
preparamos para ressuscitar com Ele. São as dores de parto da criatura imortal
que há em nós. (LORDA, 2003,89)
A fé possibilita significar o sofrimento, encontrar um sentido: “Então, essa nossa
fé – dom precioso de Deus que não queremos extinguir – permite-nos o paradoxo inefável
de sofrer e ter paz, de sofrer e manter no íntimo da alma uma misteriosa e fortíssima
alegria, uma imorredoura esperança. ” (FAUS, 2002, p.38).
Apontar para fé no processo de busca de sentido para o sofrimento, na sociedade
atual voltada ao cientificismo pode parecer arriscado, se não ousado e inadequado; mas é
possível verificar que pela fé, pessoas encontram respostas diante de seus sofrimentos:
Todo o cartesianismo e o ceticismo de muitos cientistas ficou extremamente
abalado com os acontecimentos que ocorreram nos santuários marianos do
mundo inteiro. Incapazes de provar eventuais fraudes, foram obrigados a
admitir os fatos, embora não conseguissem explicá-los. Isso ocorreu em
Lourdes, pequena cidade nos Pirineus franceses, onde anualmente acontecem
milhares de curas inexplicáveis pela ciência, mas atribuídas a resultado das
orações por comitê internacional de médicos. (SAVIOLI, 2008, p.125)
A experiência da fé pode alcançar resultados comprováveis de curas, é a
capacidade do ser humano de abrir-se à dimensão transcendental, que pode ajudá-lo
também na busca de sentido.
A partir da compreensão do sofrimento, da resiliência, do sentido e da fé foi
possível construir um caminho de reflexão que eleva o sentido para a dimensão teológica.
O terceiro capítulo deste trabalho é o resultado dessa reflexão, que possibilitou propor
uma resposta na busca de sentido para o sofrimento.
É certo que a reflexão proposta em todo trabalho não encerra a busca de sentido
para o sofrimento, sendo possível aprofundar-se cada vez mais sobre essa reflexão. A
própria compreensão do sofrimento neste trabalho baseou-se no contexto bíblico, mas os
primeiros séculos da Igreja nos abrem um caminho para novas reflexões, a partir das
perseguições dos cristãos e os martírios que lhes foram infligidos. A história é esse campo
fértil de reflexão, no contexto teológico é possível debruçar-se ainda, nos textos dos
Padres da Igreja, e na dimensão sacramental sobre a penitência e a unção dos enfermos
tidos como sacramentos de cura, entre outros, e no campo da história podemos abordar o
sofrimento instrumentalizado, como ocorreu durantes as Guerras, ou mesmo durante o
nazismo.
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Certo é que este trabalho é apenas uma abertura, uma pequena parcela de
colaboração para aqueles que desejam buscar um sentido para o sofrimento, um pequeno
facho de luz diante das incertezas do sofrimento ainda tão presente na nossa sociedade.
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