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Cristiano Cezarino Rodrigues O espaço do jogo: Espaço cênico teatro contemporâneo Dissertação apresentada ao Núcleo de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Área de concentração: Teoria, produção e experiência do espaço. Orientador: Prof. Doutor Stéphane Huchet Universidade Federal de Minas Gerais Escola de Arquitetura Belo Horizonte Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG 2008

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Page 1: Espaço cênico teatro contemporâneo20...teatro de palco, o teatro de rua não possui tantos estudos e sua prática ainda é pouco investigada se comparado àquele. Predominantemente,

Cristiano Cezarino Rodrigues

O espaço do jogo: Espaço cênico teatro contemporâneo

Dissertação apresentada ao Núcleo de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Área de concentração: Teoria, produção e experiência do espaço. Orientador: Prof. Doutor Stéphane Huchet Universidade Federal de Minas Gerais Escola de Arquitetura

Belo Horizonte Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFMG

2008

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AGRADECIMENTOS Ao meu orientador Stéphane Huchet, por ter aceitado o desafio de navegar por estes mares tempestuosos. Á FAPEMIG, pela bolsa concedida para a elaboração deste trabalho. Aos professores Carlos Antônio Leite Brandão e Fernando Mencarelli por terem dado um rumo e um fôlego definitivo para o percurso. À Flavia, esposa amiga, pelas intensas revisões, críticas e dúvidas no processo. Ao meu pai, Tomaz, por revisar e tornar tudo mais compreensível para todos. A todos os que acompanharam e participaram do processo direta e indiretamente promovendo o incremento generalizado do trabalho.

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RESUMO O presente estudo busca compreender a produção do espaço cênico contemporâneo através da análise das formas de apropriação do espaço urbano por artistas e grupos que tem como característica fundamental de seu trabalho a não utilização de espaços institucionalizados e convencionais. A partir da noção de um teatro urbano, pretende-se verificar se o evento teatral, na construção do seu espaço cênico, ressemantiza o espaço urbano e se esse processo contribui para a requalificação do mesmo. Além disso, analisa-se se o espaço urbano é apropriado como um espaço neutro, onde um cenário funciona apenas como decoração, como um fundo decorativo para o desenrolar do espetáculo, ou como um elemento cuja carga semântica é levada em consideração ao se estabelecer a local do evento. A partir da investigação da produção artística do grupo brasileiro Teatro da Vertigem procura-se compreender como se estabelecem as relações entre o espaço urbano e o espaço cênico e como, a partir deste diálogo, proposições diferenciadas de arquitetura teatral e de cenografia podem emergir.

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ABSTRACT

This study seeks to understand the production of contemporary scenic space by analysing forms of appropriation of urban space by artists and groups that have as a fundamental characteristic of their works not to use conventional spaces or institutionalized ones. Based on the concept of an urban theatre, it is the intention here to verify whether the theatrical event, in the construction of its scenic space, ends up building a new meaning in urban space and also whether this process contributes to its enhacement or not. It also examines whether the urban space is occupied as a neutral space, where a scenario only works as decoration, in other words, as a decorative background for the running of the show, or as an element whose semantic load is taken into account when establishing the location of the event. By means of researching the artistic production of the Brazilian group Teatro da Vertigem, this study seeks to understand how it is established the relation between the urban space and the scenic space, and how, drawing from this dialogue, differentiated propositions of architecture and theatre stage design can emerge.

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LISTA DE FIGURAS FIGURA 01 Cena do espetáculo A morte de Danton, dirigido por Aderbal Freire Filho 28 FIGURA 02 Cena do espetáculo Hysteria, do grupo XIX de teatro 28

FIGURA 03 Cena do espetáculo Invento Para Leonardo, do grupo Armatrux 28

FIGURA 04 Galpão Cine Horto, sede do Grupo Galpão, de Belo Horizonte 28

FIGURA 05 Cartocherie de Vincennes, sede do Theatre du Soleil, na França 28

FIGURA 06 Cena do espetáculo do Performance Group, dirigido por Richard Schecher 28

FIGURA 07 Cena do espetáculo do Teatro da Vertigem 28

FIGURA 08 Teatro Total, projeto de Walter Gropius e Erwin Piscator 73 FIGURA 09 Cena do espetáculo dirigido por Bertolt Brecht 73

FIGURA 10 Teatro Oficina, sede do grupo homônimo dirigido por José Celso Martinez Correa, em São Paulo

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FIGURA 11 Fun Palace, projeto do arquiteto britânico Cedric Price 73

FIGURA 12 Cena do espetáculo Paraíso Perdido, do Teatro da Vertigem 93 FIGURA 13 Cena do espetáculo O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem 93

FIGURA 14 Cena do espetáculo Apocalipse 1, 11, do Teatro da Vertigem 93

FIGURA 15 Cena do espetáculo BR-3, do Teatro da Vertigem 93

FIGURA 16 Cena do espetáculo O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem – Jó debate com seus amigos

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FIGURA 17 Cena do espetáculo O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem – Primeira cena da peça

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FIGURA 18 Cena do espetáculo O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem – O personagem contrasta com o ambiente

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................ 7 2. A AMPLIAÇÃO DO LUGAR TEATRAL .............................................................. 13 2.1. Teatro urbano........................................................................................... 16 2.2. Diálogos entre o site e a cena ..................................................................... 23 2.3. Algumas hipóteses.................................................................................... 26 3. A DIMENSÃO IRREDUTÍVEL DA TRADIÇÃO...................................................... 30 3.1. Pluralidade de linguagens .......................................................................... 35 3.2. Teatro total............................................................................................... 38 3.3. A crueldade e o distanciamento .................................................................. 41 3.4. O espaço como participante do jogo ............................................................ 50 3.5. Teatro oficina ........................................................................................... 59 3.6. Fun palace ............................................................................................... 62 3.7. A produção do espaço cênico contemporâneo .............................................. 65 4. O TEATRO DA VERTIGEM E A CENOGRAFIA DO CAMPO EXPANDIDO ................ 75 4.1. O livro de jó.............................................................................................. 80 4.2. O site specific........................................................................................... 82 4.3. O espaço cênico do teatro da vertigem......................................................... 84 4.4. Jogo e vertigem ........................................................................................ 88 5. TEATRO E ESPAÇO URBANO ........................................................................ 95 5.1. A apropriação do espaço urbano............................................................... 100 5.2. O jogo político do espaço......................................................................... 104 6. CONCLUSÃO ............................................................................................. 114 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 120

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1. INTRODUÇÃO A motivação inicial para o desenvolvimento deste estudo nasce de experiências práticas, primárias, com alguns grupos de teatro contemporâneo que apresentavam na época, e ainda apresentam, em suas mais recentes produções, formas diferenciadas de trabalho da cenografia e da arquitetura teatral na constituição do espaço cênico de seus espetáculos. Este contato mais íntimo com tal produção motivou um maior aprofundamento sobre o trabalho destes grupos de artistas, o que abriu as portas para um universo novo do que poderia ser encarado como teatro e, principalmente, como o espaço cênico poderia ser constituído no contexto das artes cênicas nos dias atuais. Coincidentemente, as experiências motivadoras deste estudo ocorreram na 7ª edição, em 2004, do Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte – o FIT BH. Este é um dos grandes eventos de artes cênicas no circuito nacional que, bienalmente, presenteia a capital do Estado de Minas Gerais com uma variada amostragem da produção teatral nacional e estrangeira. Nesta ocasião foram selecionados alguns candidatos para trabalhar na produção e montagem dos espetáculos do grupo paulista Teatro da Vertigem. Os três espetáculos que constituíam a Trilogia Bíblica – Paraíso Perdido, O Livro de Jó e Apocalipse 1, 11 – seriam montados em diferentes espaços de Belo Horizonte. A esta altura, o trabalho do Vertigem já era reconhecido e aclamado mundialmente e sua marca, uma de suas principais características já era bastante conhecida: o uso de espaços alternativos ao teatro convencional na construção de sua cenografia. Em Belo Horizonte, Paraíso Perdido, cuja site specific era uma igreja, foi montado na igreja de Nossa Senhora do Carmo. O Livro de Jó, cuja site specific era um hospital, em Belo Horizonte foi montado no Hospital Júlia Kubitschek. Por fim, Apocalipse 1, 11, cuja site

specific era uma cadeia, foi montada na antiga sede da delegacia seccional centro. Tais experiências associadas a uma prática de pelo menos sete anos com cenografia motivaram o surgimento de inúmeros questionamentos acerca do que era produzido e quais os rumos que a cenografia tomava diante das práticas do teatro contemporâneo. Em contrapartida, outras dúvidas surgiam ao se buscar uma compreensão sobre a idéia de arquitetura teatral que era apresentada e ao mesmo tempo questionada por estes grupos. Delimitava-se, neste ponto, a

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questão problema norteadora deste estudo uma vez que se percebia que a produção do espaço cênico contemporâneo encontra limitações impostas pela arquitetura teatral recorrente. No decorrer do processo de desenvolvimento deste estudo várias mudanças de rumo e de estratégias foram realizadas. Praticamente todas se deram em virtude do amadurecimento das questões e da contaminação por práticas das mais diversas ordens. Em um primeiro momento, os questionamentos focalizaram a discussão sobre a migração de grupos e artistas da arquitetura teatral tradicional rumo aos espaços alternativos, uma vez que se presumia que a construção do espaço cênico contemporâneo pressupunha uma outra tipologia de arquitetura teatral. Já em um segundo momento, o estudo partia de questões eminentemente ligadas à arquitetura teatral que giravam em torno de discussões sobre como o edifício poderia determinar a experiência do público na recepção do espetáculo e, também, como a arquitetura influiria na concepção da cenografia contemporânea. O aprofundamento sobre a história do Teatro, a leitura de textos e tratados de pensadores, teóricos e de encenadores das artes cênicas e, principalmente, a melhor compreensão dos processos que configuram o fazer teatral revelaram as limitações de uma abordagem do problema estabelecida somente via arquitetura teatral. Neste nível, a discussão restringir-se-ia a uma análise de tipologias arquitetônicas e cenográficas. Percebe-se que várias questões problematizadas já possuíam um bom aprofundamento e o seu esclarecimento apontava para outros pontos de discussão. Não que as questões estivessem plenamente resolvidas, mas pouco se avançaria na produção do conhecimento do assunto. Dada esta constatação, percebe-se que o processo de migração não se dá, essencialmente, de uma tipologia de arquitetura tradicional para uma alternativa, dá-se, sim, de uma abordagem mais ampla, da emancipação do teatro de um determinado edifício para alcançar o tecido urbano que constitui a cidade. Segundo esta ótica, as artes cênicas envolvem-se, como as artes visuais1, na problematização de sua incursão no espaço urbano, público em

1Principalmente, nas artes plásticas, a partir da década de 60, como a Environmental Art, Site-Specific, In Situ, performances etc. Entende-se a Environmental Art como uma arte que “coloca tanto o observador como o artista diante do trabalho e do mundo em uma atitude de humildade a fim de encontrarem reciprocidades entre cada um deles e a obra”. (MARQUEZ, 2000, p. 135). Já a arte Site Specific “objetiva mudar a percepção que se tem do local. Lida com os componentes ambientais, a topografia e as definições funcionais do sítio para determinar sua escala, tamanho, forma e localização. O trabalho torna-se parte do local e reestrutura conceitual e perceptivamente a sua organização. Uma vez que é dependente e inseparável da sua localização, a obra apresenta um enfoque crítico sobre o conteúdo e o contexto do local”. (MARQUEZ, 2000, p. 136).

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essência, saindo do espaço institucionalizado que, nas artes plásticas, consistia na caixa branca da galeria e do museu e, no caso das cênicas, na caixa preta do edifício teatro. No caso do teatro, quando a discussão avança para o espaço urbano, é importante inserir na discussão toda a problemática do teatro de rua. Este sempre existiu e, de alguma forma, sofre interferências e modificações ao tomar contato com as práticas diferenciadas das artes cênicas (e também das artes plásticas) que se deslocaram do edifício institucionalizado. Ao contrário do teatro de palco, o teatro de rua não possui tantos estudos e sua prática ainda é pouco investigada se comparado àquele. Predominantemente, a discussão do teatro de rua orbita sobre o seu caráter público e como este se constitui em uma manifestação artística mais democrática, em termos políticos. Nesse sentido, pensa-se muito como o uso de espaços da cidade pelo teatro de rua contribui para a democratização destes e, de certa forma, restitui a relação dos cidadãos com lugares que, em certa medida, passam por processos de abandono. Mas, de forma mais recorrente nos estudos sobre o teatro de rua, encontra-se um discurso de democratização da arte, processo que torna mais acessível uma manifestação artística para um maior número de cidadãos. Esta discussão desloca o foco do teatro para os âmbitos próximos às ciências sociais e políticas, afastando-se do fazer teatral propriamente dito. Diante deste panorama em que as artes cênicas no espaço da cidade eram discutidas do ponto de vista de sua maior acessibilidade por parte da recepção, mapeou-se outros caminhos para o aprofundamento da discussão. Um possível caminho, e que ao enveredar-se por ele revelou-se bastante frutífero, é a compreensão dos processos que constituem o espaço cênico e como estes repercutem e são repercutidos na relação entre a cena e o público. Uma hipótese que emerge daí é que ao se investigar as relações entre a cena e o público no edifício tradicional, comparando-as segundo operadores comuns, com as que se configuram nos espaços alternativos e/ou na rua, torna-se possível compreender os fundamentos essenciais da constituição do espaço cênico. Bem como a sua repercussão no pensamento que concebe tanto a cenografia, quanto a arquitetura teatral. O presente estudo parte das questões relativas à essência do espaço cênico rumo à sua repercussão na configuração da relação entre a cena e o público, ou seja, na configuração do lugar teatral. Propõe-se analisar as formas de concepção e produção do espaço destinado ao

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acontecimento do evento cênico, buscando um campo de interseção entre o espaço cênico, o espaço arquitetônico e o espaço artístico. Este último torna-se relevante à medida que se percebe uma correlação entre a cenografia e a arquitetura teatral contemporâneos com as práticas desenvolvidas nas artes plásticas ao sair do campo pictórico para o campo espacial. Ambas sofreram e exerceram influências dessas práticas artísticas, definindo uma espacialidade diferenciada no Teatro, principalmente no produzido na atualidade e também por se entender que a origem da cenografia2 não se dá na arquitetura e, sim, nas artes visuais. Esta necessidade de uma abordagem mais ampla, que vai além dos conhecimentos inerentes à disciplina arquitetônica e engloba conceitos e idéias oriundos das artes cênicas e das artes plásticas consolida o caráter do presente estudo. As conexões existentes entre estas áreas do saber e do fazer são orgânicas ao se investigar de maneira mais aprofundada e complexa a questão do espaço cênico, principalmente o contemporâneo. Conforme afirmado anteriormente, o conhecimento do fazer teatral e as implicações do movimento das artes do edifício institucionalizado rumo ao espaço urbano, por exemplo, revelaram as limitações de uma análise arquitetônica puramente tipológica e fundamentalmente pragmática. Esta reduziria o problema da arquitetura teatral e da cenografia a questões de forma e funcionalidade. Portanto, o aprofundamento das análises e o incremento de operadores pertinentes para uma abordagem mais aprofundada do evento cênico e sua relação com os indivíduos envolvidos, com a cidade e com a arquitetura demanda uma aproximação por vários pontos de vista simultâneos. Esta se revela uma estratégia diferenciada para abordar campos complexos que são a Arquitetura, a Cenografia e, principalmente, o Teatro. A harmonização necessária para um mínimo equilíbrio entre estas áreas do conhecimento requer um denominador comum, ou seja, um campo de interseção conceitual que fundamente a abordagem e delimite um ponto inicial para as análises. O conceito que melhor abriga estas características é o de espaço, justamente por ser complexo e, em sua heterogeneidade, articular os diferentes campos de análise. Em um primeiro momento, o espaço pode ser compreendido como uma área que pode ser experimentada por um ou mais indivíduos que, posteriormente, ao aprofundar-se na sua investigação, revela-se como uma categoria ontológica, ou seja, relacionada diretamente à constituição do ser.

2 O termo cenografia vem de skenografie, que é composto de skené, cena e graphein, escrever, desenhar, que pode ser compreendido como uma forma de embelezamento da skené; ou, literalmente, como escrita (ou desenho) da cena.

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A discussão sobre o tema do espaço cênico no teatro contemporâneo é freqüente no universo teatral. Entretanto é ainda dispersa e este estudo pretende sistematizar conhecimentos, introduzindo conceitos e operadores pertinentes no intuito de organizar os argumentos existentes e apontar um possível caminho no incremento das análises, aprofundando os aspectos teóricos a um patamar de fundamentação científica. Esta dispersão de discursos e teorias faz com que muitas idéias se repitam, principalmente quando se muda o contexto cultural em discussão. Desta forma, é necessário acessar atentamente o que já foi pensado e produzido sobre o assunto buscando denominadores comuns que evitem a repetição já apontada, mas respeitando as sutis diferenças contextuais de cada experiência.

“Deixar o teatro para ir aonde?” À igreja? Alguns curiosos nos seguiriam. Não os crentes. À fábrica? Ao palácio dos novos-ricos? À casa do povo? À praça pública? Pouco importa o lugar desde que os que aí se juntam tenham a necessidade de nos ouvir, e que nós tenhamos algo a lhes dizer ou a lhes mostrar, e desde que este lugar seja animado pela força da vida dramática que está em nós. Se não sabemos para onde ir, vamos para a rua. Que nós tenhamos a coragem de mostrar que nossa arte não tem asilo, que não conhecemos mais nossa razão de ser e não sabemos mais de quem esperá-la. Para a aventura até que não tivermos encontrado, para aí fincarmos nossa barraca, o lugar do qual poderemos dizer: aqui está nosso deus e nosso país (CRUCIANI, 1999, p. 21).

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No presente capítulo, faz-se uma problematização sobre as formas de constituição do espaço cênico contemporâneo e suas relações com a arquitetura teatral. Além disso, busca-se, também, uma melhor compreensão dos processos de migração do teatro do edifício tradicional para os diferentes espaços da cidade, delimitando-se a noção de teatro urbano, em contraposição à idéia de teatro de palco e de rua. Posteriormente, pretende-se enumerar e justificar as hipóteses que emergem do aprofundamento da questão problema, e que serão discutidas ao longo do trabalho.

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2. A AMPLIAÇÃO DO LUGAR TEATRAL Percebe-se claramente que uma das formas possíveis de buscar uma melhor compreensão da linguagem da encenação teatral contemporânea é através dos processos de concepção do espaço onde ocorre a relação cena/público. As propostas mais notáveis do Teatro buscam formas inovadoras de concepção espacial, repensando ou abolindo cânones e tradições, instaurando novos processos. A linguagem da encenação teatral contemporânea é extremamente diversificada e complexa. Não existe uma regra fixa que estabeleça as características do espetáculo. A diversidade e a transdiciplinaridade são a tônica do teatro contemporâneo. Desta forma, o conceito de cenário dilui-se, expandindo-se em possibilidades e, em certos casos, deixa de ter uma definição clara. O universo de possibilidades e de lugares para a apresentação de um espetáculo teatral é quase infinito nos dias atuais, por isso, faz-se necessário um conceito que se adeqüe melhor a esta realidade. Mantovani (1989) em sua obra Cenografia define o conceito de lugar teatral. O lugar teatral é onde se estabelece a relação cena/público, que não se limita somente ao edifício teatro, mas a qualquer lugar onde se possa estabelecer esta relação. “O lugar teatral é composto pelo lugar do espectador e pelo lugar cênico – onde atua o ator e acontece a cena” (MANTOVANI, 1989, p. 7). O conceito de lugar teatral, do ponto de vista da produção das artes cênicas contemporâneas, introduz uma associação, em certa medida, orgânica entre a cenografia e a arquitetura teatral tornando-as indissociáveis, uma vez que são manifestações de questões do homem no espaço. A cenografia é concebida e definida tendo como um dos seus pontos de partida a arquitetura na qual está inserida. Pode-se afirmar, também, que a arquitetura teatral é definida a partir das concepções espaciais próprias da cenografia. Constata-se, então, que a idéia de lugar teatral, por abranger uma noção de espaço que vai além do edifício teatro institucionalizado, é extremamente útil tanto para o entendimento da produção da cenografia contemporânea, quanto para o estudo da cenografia através dos tempos, bem como na evolução da arquitetura teatral. Desta forma, amplia-se o horizonte de análise à medida que não se busca apenas o décor do espaço. Ao se observar, e mesmo participar, de algumas montagens de eventos cênicos produzidos, principalmente, da segunda metade do século XX até os dias atuais. Mesmo ao se analisar as teorias do teatro, da performance e de happenings desenvolvidas e aprofundadas no século XX,

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e principalmente, ao assistir eventos produzidos neste período, constata-se que as questões ligadas à constituição do espaço cênico conformam-se como fundamentais na caracterização do que vem a ser o teatro contemporâneo. Quando se pensa em espaço cênico, duas variáveis, dois elementos constituintes precisam ser levados em conta. O primeiro é a cenografia, a “escrita da cena”, os elementos que auxiliarão na caracterização do espaço onde esta ocorrerá. O segundo é a arquitetura teatral, ou seja, o espaço concebido para abrigar o evento e a platéia, o público que experimenta o evento. A separação destes dois elementos torna-se cada vez mais complexa à medida que conformam instâncias cada vez mais indistinguíveis, contudo as sutilezas que as determinam, estabelecem nuances que possibilitam a sua mínima distinção. Cabe aqui, antes mesmo de iniciar-se a empreitada deste trabalho, esclarecer um conceito que se apresentará durante todo o percurso – a idéia de evento. Na tradição teatral costuma-se utilizar o termo espetáculo para definir a exibição de uma peça, de uma representação teatral. Contudo, as vanguardas artísticas do início do século XX e, a partir daí, uma imensa gama de artistas, passou a usar uma outra forma de arte como meio de expressão, uma espécie de híbrido entre as artes cênicas e as artes plásticas e visuais que seria anos mais tarde cognominada performance. Uma vasta nomenclatura surge principalmente pelos idos da década de 1960 para definir formas artísticas semelhantes à performance como a live art, os happenings etc. De certa forma, o presente trabalho, abordará direta e indiretamente este vasto campo que se encontra no espectro entre o teatro ortodoxo e as formas de arte que buscam uma aproximação maior entre arte e vida, ou melhor, no intervalo compreendido entre o ritual e a vida cotidiana. Tornou-se mais inteligível do ponto de vista teórico-metodológico a utilização de um conceito que pudesse abarcar uma idéia mais ampla. Neste sentido, aportou-se na idéia de evento. Este é compreendido como qualquer acontecimento promovido por um artista, grupo ou coletivo de artistas que gere um especial interesse capaz de conglomerar um determinado público. A discussão acerca do espaço cênico ligado aos eventos que povoaram o século XX tornou-se mais elaborada e complexa à medida que o foco ampliou-se, abrangendo não somente a cenografia, mas a arquitetura teatral também. Isto se dá quando as estruturas arquitetônicas e

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cenográficas são veementemente contestadas, o que será aprofundado mais a frente neste trabalho. Interessa, neste momento, a constatação de que vários artistas migram de edifícios e estruturas tradicionais para espaços não convencionais, alternativos, para empreenderem suas produções. Estes espaços não convencionais abrangerão desde galpões abandonados, a igrejas, hospitais, presídios, enfim, qualquer lugar que se consiga utilizar a imaginação e se possa concretizar uma idéia de evento. Além da migração para espaços alternativos por alguns artistas, percebe-se também a utilização da rua como espaço cênico. Neste caso, não se trata de uma mera transposição de uma estrutura tradicional presente no edifício teatro para a rua, com o arranjo de palco e platéia, iluminação e sonorização tal qual no teatro recorrente, nem de uma representação teatral ao ar livre simplesmente. Trata-se da utilização da rua como espaço cênico, como um dos fundamentos do evento, tirando-se partido de sua carga semântica na criação de elementos cênicos e promovendo outras relações entre cena e público.

O problema central desta delimitação é que ainda que as características do espaço cênico sejam determinantes para definir as características da teatralidade da rua, se considerarmos apenas o fato do espaço cênico da representação “ser a rua” como parâmetro, estaremos colocando em uma mesma categoria espetacular manifestações tão distintas como uma encenação na esquina de uma cidade, um desfile de carnaval, um ato público, uma feira, ou qualquer representação em um anfiteatro ao ar livre. (CARREIRA, 2005, p.23)

Neste sentido é fundamental distinguir as propostas de uma tradição renovada do teatro de rua com as do referido teatro urbano. Este tem como principal característica o vínculo com o contexto da cidade em que o evento insere-se, propondo, assim, uma espécie de releitura dos espaços da cidade. A relação entre o espaço cênico e o espaço urbano é indissociável. Já no teatro de rua não existe tal requisito e a cidade torna-se um pano de fundo para o evento cênico que se constitui por si só. Além disso, o teatro urbano busca outras formas de relação entre a cena e o público. Enquanto o teatro de rua, mesmo em suas propostas mais atuais, baseia-se, predominantemente, em relações mais tradicionais entre o público e o espetáculo que se caracterizam por certa passividade e uma experiência predominantemente visual do evento.

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2.1. Teatro urbano Esta saída do evento do edifício teatro para espaços diversos da cidade constitui o que se cognominará, neste estudo, de teatro urbano. A estrutura que comporta o evento amplia-se e se complexifica. Incorpora elementos inusitados e diferenciados nos processos de produção tanto do espaço cênico quanto de todos os elementos que caracterizam e compõem um determinado evento inserido no tecido urbano da cidade. Isto se dá no sentido de um outro território, com outra dinâmica, outra topologia e, principalmente, uma outra escala. Portanto, o teatro urbano é aquele que constrói seus trabalhos utilizando a força simbólica dos espaços no contexto da cidade e da cultura em que estão inseridos. Este vínculo com o contexto em que se insere diferencia o teatro urbano do teatro tradicional já que o espaço é incluído como elemento dramatúrgico e os diálogos efetivos entre o espaço e o evento abrem outras possibilidades de relação com o público e deste com estes espaços. Michel Foucalt (1994) coloca que o espaço não é uma espécie de vácuo onde se inserem indivíduos e coisas. Vive-se em um espaço onde inúmeras relações conformam diferentes lugares. Dentre todos os lugares possíveis, existem aqueles que se relacionam uns com os outros de uma forma que “suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que se encontram por eles designadas, refletidas ou pensadas” (FOUCAULT, 1994, p. 414). Dentre estes espaços que se encadeiam uns com outros e que, no entanto, contradizem todos os demais, existem aqueles efetivos, reais, operando como uma espécie de utopia realizada onde todos os lugares reais de uma dada cultura são encontrados e “estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente localizáveis” (FOUCAULT, 1994, p. 415). Estes espaços diferentes, lugares outros que se conformam como uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço em que se vive são cognominados por Foucault como heterotopias. O Teatro cria heterotopias ao superpor no espaço real vários outros espaços que por si só seriam incompatíveis. No caso específico do teatro urbano, apresenta-se uma série sucessiva de lugares que podem ser estranhos uns aos outros simultaneamente, já que o espaço cênico constitui-se a partir do espaço urbano. Ao mesmo tempo a heterotopia do teatro urbano lida com um determinado recorte temporal, uma heterocronia, cujo funcionamento pleno dá-se com certo

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grau de ruptura do indivíduo com sua tradição temporal. Neste caso, o tempo é tomado por esta heterotopia em sua vertente efêmera que se orienta para o crônico, o passageiro. Portanto, a heterotopia criada pelo teatro urbano superpõe diferentes lugares e tempos ao dialogar seu espaço cênico com o espaço urbano da cidade. Os espaços que caracterizam este teatro urbano apresentam-se das mais variadas maneiras, seja com artistas que trabalham nesta vertente como fundamento de sua obra, seja com artistas que utilizam o urbano como uma possibilidade diferente para uma montagem específica em seu repertório. Para exemplificar esta corrente têm-se peças como A morte de Danton (FIG 01), encenada por Aderbal Freire Filho no canteiro de obras de uma das estações do metrô no Rio de Janeiro (ricamente analisada por Kosovski (2000)); Hysteria (FIG 02), montagem do grupo XIX de teatro que durante o 8° Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte – FIT BH – foi apresentada no Museu Mineiro; Invento para Leonardo (FIG 03), peça do grupo mineiro de teatro Armatrux encenada nas palafitas dos prédios do bairro Buritis, em Belo Horizonte, assim como vários outros que, em algumas oportunidades, migram do espaço tradicional e institucionalizado para aventurar-se em lugares inusitados. Outros artistas, coletivos e grupos trabalham em espaços alternativos de forma permanente adaptando estes às necessidades de cada evento, inscrevendo novos vetores no circuito teatral das cidades. O antigo cinema que, adaptado, transforma-se no Galpão Cine Horto (FIG 04), sede do Grupo Galpão, ou a Cartocherie de Vincennes (FIG 05), sede do Theatre du Soleil, ou os galpões utilizados pelo New Orleans Group, pelo Performance Group dirigidos por Richard Schechner (FIG 06), constituem notáveis exemplos, cada qual em sua particularidade. Contudo, alguns artistas exploram as relações com os espaços vividos inscritos no tecido urbano da cidade de forma mais incisiva e complexa, ultrapassando o limite físico e temporal, em busca de um diálogo permanente com os vetores dinâmicos da cidade. Dentre estes se tem um sem número de performers, como os futuristas e dadaístas dos primórdios do século XX, bem como os trabalhos de Renato Cohen no Brasil etc. No teatro, destaca-se o trabalho do grupo brasileiro Teatro da Vertigem (FIG 07), que será o estudo de caso do presente trabalho. Neste caso, o espaço urbano estabelece um diálogo com o eixo conceitual da peça e do trabalho do grupo, mais especificamente, para a construção do espaço cênico.

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A ampliação do lugar teatral promovida pela migração de artistas, coletivos e grupos dos espaços tradicionais para os espaços poligonais e múltiplos da cidade, abre possibilidades para formas diferenciadas de apropriação do espaço urbano. Esta apropriação possibilita uma experimentação dos espaços em busca de sentidos outros a serem suscitados. De forma recorrente, alguns estudos afirmam a existência de um processo de ressemantização dos espaços da cidade a serem utilizados na constituição do espaço cênico. Contudo, boa parte das análises parte do princípio de que a constituição do sentido do espaço cênico na cidade é semelhante ao processo de elaboração da cenografia em um edifício teatro tradicional, ou seja, inserido dentro da caixa preta do palco. Os operadores enumerados neste estudo buscam auxiliar na compreensão deste processo de ressemantização (se é que, de fato, este exista), já que à medida que a cena estabelece um diálogo como o espaço urbano estabelece-se uma realidade diferenciada de uma cenografia pensada em moldes tradicionais. Na forma recorrente da tradição, busca-se a criação de um cenário que sirva de suporte para o acontecimento e que se baseia na representação de uma dada realidade. Utiliza-se os recursos técnicos disponíveis para criar os mais diversos efeitos que complementam a construção da ambiência cênica. Ao dialogar a cena com o tecido urbano que constitui a cidade, introduz-se novas variáveis que estabelecem uma dinâmica diferenciada ao evento. Os elementos urbanos, carregados de seu sentido habitual contaminam a cena e inserem outros sentidos no espaço que se configura. Retirá-los de cena é difícil e a estratégia de tirar partido destes elementos torna-se a mais viável, mesmo por que ao migrar-se para a rua deve-se assumir todos os riscos de tal decisão. A forma com que estes elementos contaminantes e (re)qualificantes da espacialidade da cena serão abordados, ou melhor, como se estabelecerá o diálogo entre o espaço urbano e o espaço cênico, relacionar-se-á através da relação entre o público e este espaço que caracteriza a cena. Bem como entre esta e o seu site. Este diálogo não se dá somente na ordem direta e concreta da presença dos elementos envolvidos – a saber: público, atores, cena e cidade – ele avança rumo a um foco mais ampliado que demanda a participação ativa destes agentes. Uma postura passiva de qualquer um restitui uma determinada ordem estabelecida que reduz a experiência deste teatro inserido na cidade a uma superficialidade tal que torna quase desnecessária sua saída do edifício institucionalizado. A cidade, neste caso, torna-se uma casualidade que não se relaciona efetivamente com o

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acontecimento. O público torna-se um espectador que assiste ao espetáculo em condições, às vezes, até desfavoráveis e desconfortáveis. A cena requer uma infra-estrutura por vezes complexa para acontecer. Os atores pouco acrescentam ao seu trabalho ao compor a cena em um lugar fora do palco. Enquanto isso, uma postura mais ativa motiva a participação dos agentes envolvidos no diálogo de forma que o seu resultado não se constitui um produto fechado, pelo contrário, cria uma espécie de processo, aberto, em que o imponderável e a incerteza configuram-se como variáveis. A cidade interfere na cena e esta incorpora os elementos da cidade para a constituição do seu espaço, enquanto os atores têm de assumir uma outra postura frente ao público que se envolve, engaja-se e participa do evento. Além disso, a idéia de público abre-se para além dos seus limites tradicionais e passa a englobar um maior número de indivíduos. No contexto desta participação ativa surge a noção de jogo, a que se refere o título deste trabalho. Jogo não deve ser entendido somente como o jogo teatral, cênico, que compreende o conjunto orgânico das marcações e trabalho dos atores, diálogos, luz, cenografia que define o ritmo e a atmosfera da cena. Também não deve ser lido como o jogo dramático muito menos como uma espécie de competição. A noção de jogo pode ser compreendida como “uma atividade temporária com finalidade autônoma”; “improdutiva por excelência” (GALLO, 2007, p. 31), pois não produz nenhum bem nem obra. Constitui-se uma atividade que possui um espaço-tempo próprio, onde o jogador possui consciência de suspensão do tempo e do espaço do cotidiano habitual, tornando-se paralelo à vida. Pode-se notar que o jogo possui tempo e espaços bem delimitados onde para o jogador é possível inserir-se e sair, ou seja, transitar com liberdade e autonomia. Estas ilhas de suspensão do cotidiano promovidas pelo jogo possuem, em seu interior, regras precisas fundamentais para a manutenção do todo do jogo, por mais arbitrárias que possam parecer.

Ao criar um mundo próprio, suspenso e autônomo, e considerando também a consciência do sujeito diante do jogo e da possibilidade do jogador poder abandonar a qualquer momento este mundo, cria-se uma espécie de alteridade, uma dualidade entre sujeito-jogador. O jogador enquanto Outro do sujeito ou o sujeito enquanto Outro do jogador (GALLO, 2007, p. 33).

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Para que este trânsito na relação entre o sujeito e o jogador possa realizar-se de forma adequada, as regras devem ser claras e conhecidas pelos jogadores. “A regra não é e não precisa ser imposta à força no jogo. A única coisa que impõe a regra é a própria vontade de jogar”. (GALLO, 2007, p. 39). As regras são como uma legislação subliminar que serve ao estabelecimento de certa ordem no jogo conformando um conjunto de permissões e restrições que devem ser aceitos para se adentrar neste universo que é o jogar.

Muitos jogos não implicam regras fixas, como nas atividades que chamamos de brincar (brincadeiras), que pressupõem uma improvisação mais livre. Nesses casos, o prazer está em desempenhar um papel, cujo sentido e sentimento acabam substituindo a função das regras (GALLO, 2007, p. 39).

Estes jogos de improvisação aproximam-se mais da idéia de jogo no teatro. As regras determinam um limite que pode ser explorado com total liberdade, o que torna o jogo uma atividade imprevisível, já que seus rumos não podem ser precisamente estabelecidos, muito menos seus resultados.

Essa liberdade proporcionada pelo jogo e sua imprevisibilidade decorrente da própria dinâmica inerente ao jogar garantem que uma mesma pessoa jamais, ou muito pouco provavelmente, conseguirá jogar o mesmo jogado duas ou mais vezes. Da mesma forma, garante também que nenhum jogador jogará exatamente da mesma forma, um jogo já jogado por outro jogador. Cada jogo em sua existência, isto é, em sua manifestação do jogar, é um fenômeno único. Pertence, portanto, aos processos de semiose inerentes ao signo, pois o jogo existe basicamente, assim como o sentido das coisas em si, para um eterno ressignificar (GALLO, 2007, p. 40).

Portanto o jogo é, essencialmente, dinâmico. Este dinamismo inerente a ele revela que não é o jogador que joga o jogo, e sim, de forma mais ampla, o jogo que o joga. Gadamer (1997, p. 188), neste sentido, afirma que o jogo promove uma transformação em configuração. “A transformação, ao contrário, significa que algo, de uma só vez e no seu conjunto, se torna uma outra coisa, de maneira que essa outra coisa, que é enquanto transformada passa a ser seu verdadeiro ser, em face do qual seu anterior é nulo” (GADAMER, 1997, p.188). O espaço do jogo, portanto, constitui-se no espaço cênico em cujos aspectos lúdicos são ativados. O teatro que migra para o corpo da cidade, abandonando o edifício institucionalizado,

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negocia com o espaço urbano e dialoga com os seus elementos constituintes. O espaço urbano, em sua essência, público, potencializa a participação dos indivíduos uma vez que estes desfrutam de uma condição de certo anonimato. Enquanto, ao mesmo tempo, os elementos constituintes do espaço urbano participam ativamente da cena, ampliando sua gama de sentidos. Esta ativa participação dos agentes do diálogo é fundamentalmente subversiva por que a rua não é, em princípio, o espaço para o teatro se for pensada em seus aspectos funcionais e utilitários de forma pragmática, principalmente quando se pensa no design das cidades nos dias atuais. O jogo já acontece antes do teatro caracterizar-se como urbano. Mas o teatro urbano é também um jogo em que o espaço é tomado como um de seus elementos. A imprevisibilidade torna-se notória uma vez que os elementos do espaço urbano participam da dinâmica do evento. Este contraponto existente entre o que está institucionalizado como habitual no espaço urbano, e o que o espaço cênico deste teatro urbano apresenta introduz uma discussão que pretende ser uma das contribuições deste presente trabalho. A tensão que surge desta contraposição entre elementos concretos e elementos poéticos expõe possíveis caminhos para uma discussão acerca da arquitetura teatral contemporânea, bem como da cenografia, apresentando argumentos diferenciados dos discursos recorrentes. A busca da essência da constituição do espaço cênico baseado no diálogo com o espaço urbano pode trazer à tona outras variáveis que auxiliem na compreensão do papel da arquitetura e da cenografia e seus respectivos artífices (o arquiteto e o cenógrafo) no dias atuais, múltiplos em práticas e em abordagens. Percebe-se que cada vez mais os artistas aproximam-se da cidade. Observando os trabalhos, analisando os discursos, constata-se que isto se dá por uma necessidade de adequação de linguagens ao contexto sócio-cultural em que se inserem. Uma constatação inusitada, pois a migração do espaço destinado às artes cênicas para espaços “inadequados” em busca de uma maior aproximação das demandas colocadas no mundo contemporâneo faz emergir uma situação-problema – as formas de produção do espaço cênico contemporâneo encontram limitações impostas pela arquitetura teatral recorrente. Tal constatação configura-se como o eixo norteador do presente estudo. Os desdobramentos inerentes a esta investigação constituir-se-ão os pontos de aprofundamento das questões mais relevantes. Propõe-se investigar os modos de concepção e produção do espaço destinado à

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apresentação dos eventos teatrais, buscando um ponto de interseção entre o espaço cênico, o arquitetônico e o artístico. Assim como elucidar como a cenografia e a arquitetura teatral contemporâneas sofreram e exerceram influência das e nas práticas desenvolvidas nas artes cênicas em seu processo de concepção e como esta contaminação define uma espacialidade diferenciada no Teatro produzido na atualidade. Nota-se que o processo que provoca a migração dos artistas do edifício teatro para o teatro urbano coincide com os processos que empreendem a expansão da arte rumo ao espaço. Rompe-se com as estruturas dos suportes tradicionais e amplia-se significativamente o campo de ação, alterando as condições de concepção dos trabalhos, bem como a relação destes com o público e suas formas de recepção e percepção. Neste sentido a presença constante das artes plásticas e visuais faz-se necessária no intuito de melhor compreender e elucidar os processos inerentes às artes cênicas principalmente porque no século XX as contaminações destas esferas artísticas são constantes e fundamentalmente enriquecedoras. Uma das formas de arte contemporânea que lida com as questões do espaço é a Site Specific

Art. O termo site specific refere-se a obras criadas segundo um vínculo estreito e de acordo com um determinado espaço ou ambiente. Geralmente são trabalhos planejados e desenvolvidos para certo local, em que os dispositivos artísticos estabelecem um diálogo profundo com o meio em que estão inseridos. Cria-se uma relação de interdependência entre a obra e o seu site, onde a leitura do trabalho depende da compreensão do diálogo que estes estabelecem. A site specific

art indica uma tendência da arte contemporânea de se voltar para o espaço no intuito de incorporá-lo às obras e transformá-lo, seja ele uma galeria, um ambiente natural ou o próprio espaço urbano da cidade. A modificação da paisagem que caracteriza cada ambiente pode realizar-se de modo definitivo ou temporário. As obras são concebidas, então, para um lugar específico, em relação com um contexto determinado e por este contexto são catalisadas. O teatro urbano pode ser encarado como um evento site specific já que possui este vínculo com o espaço da cidade em que se insere. As experimentações cênicas que tomaram forma no século XX, especialmente a partir da sua segunda metade, em certa medida fundamentaram-se na problemática das relações entre a cena e o local onde ela acontecia. Tal qual nas propostas de encenadores como Artaud, Brecht,

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Schechner e outros, buscava-se novas formas de relação entre a cena e o público que refletiam na conformação de espaços diferenciados. A abordagem das formas de construção do espaço cênico pode ser realizada de várias formas, cujas principais seriam através de propostas de ocupação de espaços alternativos ou de apropriação de espaços públicos, principalmente a rua. Segundo uma estratégia mais ampla, a combinação destas duas abordagens caracteriza uma forma mais abrangente de análise. Este par combinado caracteriza o que se entende por teatro urbano. Ou seja, uma síntese de maneiras de se apropriar e desenvolver um trabalho junto a espaços intrinsecamente ligados à cidade. Estes espaços, de caráter eminentemente público e que abrigam uma quantidade razoável de experiências do viver cotidiano, tornam-se capazes de suscitar sentidos diferenciados e relevantes para os artistas ao estabelecer o lugar de inscrição de um evento, bem como o seu raio de ação, sua zona de abrangência.

2.2. Diálogos entre o site e a cena Como se verificará mais adiante, um dos fundamentos que provoca esta mudança na elaboração do espaço cênico é uma intensa procura por relações diferenciadas entre a cena e o público. A aproximação e o afastamento, ou melhor, o diálogo permanente entre as esferas da arte e da vida exerce forte influência na concepção espacial, na determinação da estética do espetáculo e na forma com que o espectador se relacionará com o evento durante sua ocupação espaço-temporal. Esta outra forma de relação entre a cena e o público influi diretamente na arquitetura teatral na medida em que apresenta novas demandas que repercutem no espaço. Contudo, ao verificar-se a produção arquitetônica no que tange ao edifício teatro, em um primeiro momento, e mesmo ao planejamento urbano, em um segundo momento, percebe-se a predominância de tipologias e de soluções tidas como clássicas. Em sua maioria, formas que se encontram em certa medida distanciadas do âmago da discussão sobre o espaço destinado a abrigar os eventos cênicos. Reside nesta constatação uma primeira questão: por que os arquitetos, profissionais responsáveis pela concepção dos espaços e edifícios, projetam o teatro segundo soluções tradicionais? Ou talvez, ainda, por que a demanda por espaços e edifícios diferenciados para as artes cênicas não chegam aos arquitetos?

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A transformação do edifício tradicional rumo a uma aproximação junto à cidade faz emergir outra maneira de se pensar a ocupação do espaço. A cenografia deixa de ser apenas um elemento a ser construído e passa a ser entendida também como uma espécie de sítio de inserção do evento. A idéia de site specific torna-se adequada a este teatro urbano no que tange a sua cenografia, quanto mais à arquitetura cênica já que esta lida com espaços existentes e sua possibilidade semântica no evento. O diálogo que se estabelecerá entre a cena e o seu site na configuração do espaço cênico caracterizar-se-á de inúmeras formas de nuances variados e, às vezes, muito sutis na sua determinação. Assim torna-se mais produtivo deter-se sobre duas variáveis, de alguma maneira opostas. Na primeira, a ação estabelece um diálogo ativo com seu sítio de inserção. Os elementos que compõem o espaço cênico relacionam-se intimamente com o evento e do urbano é extraído seu sentido enquanto elemento componente de uma realidade. O eixo conceitual do espetáculo fundamenta-se, também, nos elementos constituintes do real que, em sua concretude, denotam possibilidades diferenciadas de apropriação. O urbano não só dialoga ativa e criticamente com a ação, como introduz outras possibilidades de relação entre a cena e o público. Do outro lado, a segunda forma de relação entre a cena e o espaço caracteriza-se por uma ausência de diálogo. Não se busca fazer pulsar a tensão do espaço, extraindo dos seus elementos semânticos ingredientes fundamentais tanto para a configuração e consolidação do espaço cênico, quanto para o estabelecimento de uma outra forma de relação entre a cena e o público. Neste caso, o urbano é tido mais como um elemento de decoração, um ornamento. Destas duas variáveis surge outra questão importante ao se analisar as formas de apropriação do espaço urbano pelos eventos: a ação dialoga ativa ou passivamente com o seu site? O incremento da utilização do espaço urbano nos eventos cênicos suscita outras indagações. Se, de fato, a migração dos artistas de espaços institucionalizados para os alternativos é constatada, as formas de apropriação dos espaços podem sugerir indícios de diferentes maneiras de constituição do espaço cênico. Isto se dá seja na cenografia, seja na arquitetura do edifício teatral, tanto na relação estabelecida entre o espaço e a cena, quanto desta com o público. Os artistas que enveredam pelos rumos do teatro urbano de forma aprofundada provavelmente proporão modificações nestas relações estruturais básicas do evento já que formas diferenciadas pressupõem estratégias idem. Quais poderiam ser alguns dos vetores

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constituintes da arquitetura teatral apontadas pela apropriação do espaço urbano é uma questão a ser discutida no presente estudo. Para se ter uma clara noção da formação e da existência de formas ímpares do espaço cênico no teatro urbano é essencial compreender-se como se caracterizam as formas de concepção e produção deste espaço no período mais recente da história. Período que coincide com a efervescência de propostas confluídas nesta área. A partir deste ponto pode-se distinguir melhor as diferenças entre o teatro urbano e o teatro tradicional. Sem esta diferenciação básica, a empreitada rumo à constituição do espaço cênico contemporâneo torna-se praticamente impossível. Estabelecida esta distinção e compreendido como o espaço cênico contemporâneo se configura, torna-se possível aprofundar-se nas relações entre a cenografia e a arquitetura teatral. Quando se refere ao espaço cênico, dois eixos fundamentais são erigidos, a saber: cenário e arquitetura. As relações entre estes são estabelecidas mediante equação de inúmeras variáveis das quais se destacam a relação entre a cena e o espaço, mais especificamente o trabalho do artista e o diálogo que este estabelece com o espaço em que acontece. Além desta, destaca-se a relação entre a cena e o público espectador, que se inscreve através de um outro diálogo que também pode ser ativo ou passivo. Dependendo de onde se entra nesta equação, as relações de causa e conseqüência podem gerar resultados endógenos ou exógenos, ou seja, uma contaminação de duplo revés que tenciona o espaço de interseção entre cena, artista e público, produzindo efeitos ora em um sentido, ora em outro. Busca-se compreender se a cenografia relaciona mais intimamente com a arquitetura, e vice versa, ou se ambas são independentes, trabalhando de forma acessória e adjunta. Partindo-se da análise das formas de apropriação do espaço urbano por artistas, coletivos e grupos ligados às artes cênicas busca-se compreender os processos de constituição de uma espacialidade que ofereça uma gama de sentidos e significados interdependentes ao que é proposto na ação cênica. Procura-se, também, entender o estabelecimento de uma forma diferenciada de relação entre cena, público e espaço, repercutindo diretamente nos processos que definem a concepção e a produção tanto da cenografia, quanto da arquitetura teatral.

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2.3. Algumas hipóteses Diante deste panorama apresentado permite-se vislumbrar em que estágio encontra-se a discussão a respeito das relações entre espaço cênico e arquitetura teatral e, em que medida esta determina limitações na produção daquele. O edifício teatro ainda é projetado segundo um modelo tradicional e institucionalizado e este, como visto, traz consigo condicionantes que minimizam potencialidades capazes de inserir o evento em uma esfera mais sintonizada com as demandas dos tempos atuais. Percebe-se a migração de espaços tradicionais, institucionalizados, para espaços alternativos, ligados à esfera cotidiana do urbano, por artistas para a concepção de seus eventos. Esta migração constitui um sintoma de alguma mudança que se procede no âmbito das artes e que repercute diretamente na elaboração dos conceitos acerca do espaço em que acontecem. A partir deste sintoma, pode-se elaborar inúmeras hipóteses que permitem apontar para possíveis caminhos para a compreensão deste horizonte outro que emerge aos olhos que constitui a produção das artes cênicas contemporâneas e sua relação com o espaço. A primeira hipótese é que a constituição do espaço cênico, na produção artística contemporânea, pressupõe uma outra tipologia de arquitetura teatral. Na maioria das vezes, esta arquitetura não se relaciona, de forma imediata, a novos edifícios, pelo contrário, instala-se no que já existe, seja ele um edifício ou a própria rua, resgatando um aspecto público e dialógico com o espaço urbano que remonta às origens do teatro. A arquitetura é a mais pública das artes, ela qualifica o espaço urbano enquanto as demais artes atuam como adjuntos. Compreender esta dimensão da arquitetura é fundamental para buscar evidências latentes da hipótese colocada. Esta apropriação do espaço urbano para a constituição do espaço cênico evidencia o dito processo de ampliação do lugar teatral no teatro, nas artes cênicas contemporâneas, ou seja, as práticas cênicas que seguem tal vertente proporcionam relações entre a cena e o público diferenciadas. Apesar de idéias complementares, pode-se encarar as duas afirmações como duas hipóteses distintas, pois são independentes de alguma forma.

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Outra hipótese suscitada pelo aprofundamento das questões colocadas anteriormente diz respeito, mais especificamente, às relações entre evento e cidade. As ações cênicas (teatro, performances, happenings etc.), na construção do seu espaço cênico, ressemantizam o espaço urbano e esse processo contribui para a requalificação do mesmo. Por fim, não menos importante, uma outra hipótese é que o espaço urbano não se constitui um espaço neutro, decorativo, como suporte para o desenrolar de um determinado evento, mas, sim, como um elemento cuja carga semântica é levada em consideração ao se estabelecer onde será o site da ação cênica. No presente estudo buscar-se-á investigar as duas últimas hipóteses apresentadas. De alguma forma as demais poderão ser contempladas, contudo não tão profundamente para não comprometer o formato e o fôlego do trabalho, que possui seus limites específicos. Como estratégia para o estudo de tais hipóteses trabalhar-se-á com estudo de caso que além de constituir experiência prática real, ilustra bem o que está colocado em discussão e suscita questões pertinentes ao aprofundamento dos estudos. Nos capítulos que seguem analisar-se-á um exemplo que ilustra uma das vertentes da produção das artes cênicas contemporâneas e que, de certa forma possibilita discutir as questões propostas. O caso é do grupo paulista Teatro da Vertigem que possui um repertório capaz de ilustrar bem o que está em jogo, mas de onde se investigará mais detalhadamente a peça O Livro de Jó, segunda montagem do grupo, encenada na 7ª edição do FIT BH no ano de 2004. Privilegiou-se um espetáculo em que se teve uma participação, contato e experiência direta, tendo acesso, assim, a registros primários e secundários do evento.

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FIGURA1: Cena do espetáculo A morte de Danton, dirigido por Aderbal Freire FilhoFonte: Itaú Cultural, [200-].

FIGURA 2: Cena do espetáculo Hysteria, do grupo XIX de teatroFonte: Google Images, [200-]

FIGURA 3: Cena do espetáculo Invento Para Leonardo, do grupo ArmatruxFonte: Google Images, [200-].

Figura 4: Galpão Cine Horto, sede do Grupo Galpão, de Belo HorizonteFonte: Rodrigo Borges Online, [200-].

FIGURA 5: Cartocherie de Vincennes, sede do Theatre du Soleil, na FrançaFonte: Tomaz Toporisic, [200-].

FIGURA 6: Cena do espetáculo do Performance Group, dirigido por Richard SchecherFonte: University of Califórnia, San Diego, [200-].

FIGURA 7: Cena do espetáculo Apocalipse 1,11, do Teatro da VertigemFonte: Casa da Foto, [200-].

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Um maior aprofundamento da questão problema que norteia este estudo faz-se necessário. Desta forma, enumera-se as diversas hipóteses já levantadas sobre o problema e compreende-se as demonstrações argumentativas que as sustentam. O recorte temporal transpassa desde os primórdios do século XX, onde se discutiu e se propôs outras possibilidades de construção do espaço cênico e do evento como um todo. Aportando no múltiplo atual, busca-se acentuar o enfoque sobre a discussão acerca das relações entre a arquitetura teatral e a constituição do lugar teatral, ou seja, o lugar em que acontece o contato entre a cena e o público.

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3. A DIMENSÃO IRREDUTÍVEL DA TRADIÇÃO O século XIX, considerado por muitos o século das revoluções, trouxe consigo mudanças no modo de vida do homem e na sociedade em geral. A aceleração do cotidiano, a constante busca pelo novo, as pesquisas históricas, as mudanças na estrutura da sociedade, os grandes descobrimentos científicos e sua aplicação prática mais intensa, a ruptura com o passado, as idéias de Marx, Freud e Nietzche são alguns exemplos de catalisadores dos processos de mudança da sociedade. O homem amplia seus horizontes e, conseqüentemente, sua perspectiva, inaugurando novas maneiras de encarar o mundo. O artista conscientiza-se de seu potencial como intelectual e, cada vez mais, suas propostas artísticas refletem estas mudanças. O século XX continua na esteira de descobertas do XIX. O progresso tecnológico da sociedade alcança proporções consideráveis e a crença neste progresso gera a exaltação da máquina, da técnica. No plano da arte, a fotografia evolui, aperfeiçoa-se e adquire status de linguagem artística. O cinema cresce e torna-se indústria. Os meios de comunicação tornam-se corriqueiros fazendo, gradativamente, parte do cotidiano. A arte caminha, a passos largos, rumo à abstração, abandonando o figurativo e, com isso, introduzindo um fértil campo de desenvolvimento e aprimoramento de linguagens. A complexidade do mundo real atinge níveis inimagináveis e os avanços científicos e tecnológicos mudam consideravelmente as formas de compreender o mundo. As noções de espaço, tempo e presença alteram-se e os conceitos de real e ficcional confundem-se. Diante desta realidade a arte, no intuito de atender as novas demandas, caracteriza-se pela diversidade e pela interdisciplinaridade. A estrutura de percepção básica das artes, que permanecera a mesma por aproximadamente cinco séculos, apoiada fundamentalmente na natureza como paradigma de representação, é contestada, repensada e muda nos primórdios do século XX. Neste panorama de rupturas, o Teatro, então calcado no realismo científico, cuja corrente mais evidente é a naturalista, choca-se com o cinema pela eficiência deste em desenvolver narrativas mais adequadas às novas formas de percepção e sensibilidade do individuo. Desta forma, o Teatro, como todas as manifestações artísticas, não fica alheio a todo este contexto de mudanças e novos questionamentos que brotam do fervilhar de mentes, o que predomina nos primórdios do século

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XX. Várias teorias e práticas teatrais passam a buscar uma maneira nova, um teatro que “representasse” de forma mais adequada o mundo em que se vivia. Buscava-se um Teatro mais contemporâneo que comportasse a nova realidade. Os avanços no campo artístico, principalmente na Fotografia e no Cinema colocavam o Teatro em xeque e seu repensar fazia-se essencial. O advento de novas tecnologias, o repensar do fazer teatral, as novas possibilidades de desenvolvimento do drama, a evolução do público e das condições de representação empreendem uma relação de causa/conseqüência de mão dupla na definição, na configuração do lugar teatral. Ou seja, as mudanças constatadas no fazer teatral contemporâneo provocam mudanças no espaço onde ocorre a relação cena/público e vice-versa. Diante desta realidade, pesquisas são motivadas, principalmente, no intuito de investigar as relações que se estabelecem entre as várias esferas que compõem a totalidade do que é o Teatro. Pesquisas estas principalmente no que concerne às conseqüências que as mudanças de paradigmas espaciais causam, bem como suas influências no fazer teatral, seja na dramaturgia, no trabalho do ator etc. Praticamente todos os elementos do espetáculo teatral são questionados, do dramaturgo ao ator, passando pela música, a luz etc. Entretanto se algo teve questionamento digno de distinção, este foi o espaço. Jean-Jacques Roubine em sua obra A linguagem da encenação teatral (1998), dedica um capítulo às questões ligadas ao espaço cênico. Tendo como ponto de partida o contexto histórico-cultural francês, o autor tece uma análise histórico-crítica da arquitetura teatral e da cenografia produzidos na Europa, especialmente na França, dos primórdios do século XX aos dias atuais. A experiência francesa, apesar de possuir características particulares, muito se assemelha ao que acontece de forma geral em boa parte do mundo. A estrutura preponderante de arquitetura teatral era o palco italiano. A contestação a tal estrutura residia na restrição aos aspectos democráticos do espetáculo, ou seja, não oferecia uma experiência semelhante a todos os espectadores, onde uns eram beneficiados em favor de outros e isso era um reflexo do contexto social que impunha certa hierarquia entre os indivíduos. Outro aspecto que era contestado, e

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talvez o mais relevante, era a forma com que a arquitetura teatral definia a experiência do público.

Democratizar o teatro seria, portanto, democratizar antes de mais nada a relação mútua dos espectadores, assim como a relação com o palco. Já em 1903, Romain Rolland sugere um caminho que será efetivamente adotado um pouco mais tarde: tirar o teatro da sala italiana, cujas possibilidades de arrumação e adaptação são limitadas, e instalá-lo em outros locais mais adequados. A uma nova prática do teatro precisa corresponder uma nova arquitetura (ROUBINE, 1998, p.83-84).

Seria simplista, como afirma Roubine, pensar que o mundo do teatro estaria dividido entre os partidários a favor do palco italiano e os contra. Muitos encenadores e teóricos buscaram uma nova estrutura arquitetônica capaz de materializar suas concepções acerca do espaço cênico de uma outra maneira que não a tradicional, contudo esta tarefa não se apresentava tão simples e muitos não conseguiram atingir seus objetivos. As primeiras iniciativas de elaboração de um novo palco e/ou um novo espetáculo procuraram eliminar as possíveis barreiras físicas entre palco e platéia, como por exemplo, a ribalta. Entretanto, na prática poucos vão muito além disso. Percebe-se que as pesquisas desenvolvidas davam conta de que a estrutura do palco italiano era limitadora. De alguma forma, devia-se buscar uma alternativa uma vez que o evento começava a ser pensado de uma outra maneira e isto repercutiria no espaço cênico. Mesmo alguns encenadores que, aparentemente, parecem conformados com a estrutura tradicional, não mais hesitam em transformá-la no que for necessário para a realização de suas montagens.

Percebe-se que as pesquisas teóricas e às vezes as experiências práticas, nesse início de século XX, desembocaram, passando por cima de sua diversidade, num questionamento, total ou parcial, do espetáculo em palco italiano, seja através de tentativas de modificar o espaço interno dos teatros construídos dentro dessa convenção, seja procurando descaracterizar a prática tradicional de modo a explorar esse ou aquele elemento do espetáculo à italiana sem deixar-se escravizar pelo conjunto de suas limitações (ROUBINE, 1998, p.94).

Roubine destaca a importância do Festival de Avignon, concebido em 1946 por Jean Vilar, para as mudanças no teatro francês. O festival foi uma tentativa empreendida por Vilar de resolver problemas oriundos da estrutura tradicional do palco italiano. Um destes é a desigualdade social proporcionada tanto pela arquitetura da sala, quanto da geografia do circuito cultural de Paris. Os teatros inseriam-se dentro de um perímetro da cidade que privilegiava determinadas classes

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sociais. A escolha de Vilar por Avignon é estratégica, pois o lugar é longe de Paris, ao ar livre e as características físicas do Palácio dos Papas, por exemplo, promoveriam certo grau de rompimento com os dogmas impostos pela arquitetura teatral tradicional. As especificidades do lugar impõem novas demandas e, conseqüentemente, soluções outras para a concepção do lugar teatral. O êxito alcançado por Vilar no festival de Avignon foi decisivo para as novas iniciativas do teatro francês que buscaram outros espaços para ocupação e que, em certa medida, descentralizaram a cultura em Paris. Vilar consegue paulatinamente utilizar estruturas que não são habitualmente destinadas às artes cênicas para constituir espaços diferenciados que incrementam a relação entre público e evento.

Já em Avignon – o pátio do Palácio dos Papas não sendo um teatro, e estando localizado no coração da cidade, perto dos pontos habituais de encontro, praças públicas, botequins – a relação entre o teatro, o público e a cidade colocava-se espontaneamente num plano de familiaridade completamente diferente dos costumes parisienses e, na medida em que possamos imaginar, bastante próximo do convívio que existia nas cidades da Antiguidade ou nas vilas medievais por ocasião das manifestações teatrais (ROUBINE, 1998, p. 99)

Para Roubine (1998, p. 81): “Se quiséssemos reunir numa fórmula sintética a questão do espaço no teatro do século XX, teríamos poucas alternativas para uma simplificação do tipo: ‘palco italiano – sim ou não? ’”. Boa parte dos elementos distintos que constituem a encenação teatral já vinham sendo criticados e novas maneiras de manifestá-los surgiam ou sofriam evolução. Muitas vezes é usado o termo “casa” para cognominar o edifício teatro. Este termo denota certo grau de liberdade para aquele que a adentra, contudo, no teatro, é o que justamente não acontece. Os espectadores estabelecem-se em lugares fixos e desaparecem durante a peça. A hierarquia preconizada através desta estrutura passa a ser questionada por alguns encenadores, mais veementemente nos primórdios do século XX, que propõem uma democratização do teatro, sugerindo modificações estruturais no intuito de minimizar tais diferenças que já não condiziam com as concepções acerca do Teatro defendidas por eles. Novas possibilidades são pensadas e experimentadas. A relação estática e predominantemente frontal entre espectador e espetáculo também se constitui outro ponto de discussão acerca da estrutura à italiana uma vez que o homem do século XX está condicionado de maneira bem diversa daquele que vivia a época do nascimento do palco italiano. Para aqueles que buscam uma outra estrutura para o teatro, o

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espectador, estático e passivo diante do palco, tende a ser absorvido mais facilmente pelo espetáculo, chegando a perder a consciência de que é um espectador. Busca-se um espetáculo mais dinâmico, mais próximo do público e que possa, constantemente, mudar os pontos de vista, eliminando a estaticidade do espectador e sua relação unilateral com o espetáculo. Roubine (1998, p. 86-87) resume bem todo o conjunto de questionamentos acerca da estrutura preconizada pelo palco italiano:

Os partidários da democratização do teatro opõem-se à desigualdade perpetuada pela organização da sala. Os que sonham com uma nova estética do palco contestam a posição que ela impõe ao espectador: uma relação com o espetáculo fundamentalmente estática, na medida em que ele fica sentado num mesmo lugar do início ao fim da representação, condenado a uma percepção que se faz num ângulo e a uma distância invariáveis; e basicamente passiva, uma vez que em momento algum o espectador pode intervir no desenrolar do espetáculo. O palco fechado, em outras palavras, tornou-se uma caixinha de mágicas. O espectador foi condicionado por mais de três séculos de tradição ilusionista, que o habituaram a confundir esse tipo de espetáculo com a encarnação de uma essência do teatro.

A criação de uma nova maneira de conceber o espetáculo, mais adequada às demandas de seu tempo, passava pelas mudanças na relação entre espectador e espetáculo. A caixa preta do palco italiano poderia ser considerada o “cubo branco” do Teatro, ou mesmo poderia ser considerado o equivalente à moldura na pintura. Enfim, no início do século XX vem à tona uma série de contestações sobre o palco italiano e várias propostas de superação desta estrutura. No entanto, toda essa “revolução” espacial permanece mais no discurso que, efetivamente, na prática, e o palco italiano ainda é plenamente usado e melhorado. Contudo, é digno de destaque que três séculos depois de seu surgimento, o palco italiano deixava de ser encarado como estrutura inerente à própria idéia de teatro, sendo este mais um passo no caminho evolutivo da espacialidade teatral. Deixa de ser um cânone e sua evolução, ou mesmo superação é natural, uma vez que a linguagem da encenação teatral deve estar em dia com as demandas do indivíduo de sua época. Inúmeros diretores, encenadores e pensadores do teatro empreenderão pesquisas e experiências em busca de novas possibilidades para o palco italiano e da estrutura tradicional que configura o espaço cênico. Seja em busca de uma nova estética para o espetáculo, seja no estabelecimento de relações outras entre cena e público, as pesquisas tentavam atualizar os

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usos do palco tradicional de forma que este respondesse às demandas insurgentes. Dentre estes vários pensadores destacam-se o diretor russo Vsevolod Meyerhold, o suíço Adolphe Appia e o inglês Edward Gordon Craig, assim como muitos outros. Por fim, Roubine expõe que as iniciativas em busca da explosão do espaço cênico tradicional ainda eram poucas no contexto francês e que o palco italiano ainda era uma estrutura preponderante. Entretanto os avanços eram significativos no intuito de romper com a tradição. Tanto a arquitetura teatral tradicional era explorada com mais liberdade, quanto novos locais são apropriados para os eventos. O autor revela que as mudanças na concepção do espaço cênico são fundamentais para a mudança desejada no teatro contemporâneo, associada a mudanças em outros elementos do evento tais como o trabalho do performer, a direção, a dramaturgia etc. A mudança no espaço é por demais complicada, pois está vinculada a uma série de elementos que compõem uma superestrutura que não é de simples modificação. No cerne das propostas que buscam constituir um outro espaço cênico está o estabelecimento de formas diferenciadas de relação entre a cena e o público, o que torna tais empreendimentos rumo a uma modificação mais ampla dificultados. Se existia, nos primórdios do século XX, uma estrutura que poderia ser considerada tradicional no teatro, esta era o palco italiano. Entretanto esta estrutura já não conseguia mais atender as novas demandas que emergiam na época. É da discussão acerca da utilização ou não do palco italiano e sua estrutura que surgem novas propostas para a cenografia contemporânea e, de um ponto de vista mais abrangente, para a própria arquitetura teatral de nossos dias.

3.1. Pluralidade de linguagens A pluralidade de correntes artísticas e de diferentes linguagens, que caracteriza a produção artística do século XX, dificulta a definição de uma fórmula, de um estilo característico para a cenografia, mesmo esta se caracterizando pela presença marcante da imagem, ou imagens, relacionadas entre si. Mais complicado ainda é estabelecer uma correlação direta entre a cenografia e a arte moderna. Entretanto, é notável como o palco italiano é capaz, como afirma Kosovski (2000), de “subjugar qualquer coisa nele inserida e assumir uma aparência mais ou

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menos homogênea”. “Num palco italiano, um cenário é sempre um cenário”, afirma Arnold Aronson3 (apud KOSOVSKI, 2000). Para ter o fôlego necessário para incorporar os novos conceitos insurgentes, o Teatro deve ter o distanciamento crítico necessário da tradição. A abertura criada pela ampliação do lugar teatral é um caminho frutífero para tal realização, partindo-se deste ponto rumo aos limites que esta maneira de abordagem da espacialização pode apresentar. Para tanto, os avanços preconizados pelas vanguardas do início do século XX, principalmente no que tange as artes cênicas, seriam fundamentais para que o Teatro trilhasse novos rumos e se aproximasse das demandas mais urgentes do homem de sua época. Os primórdios do século XX são marcados por uma imensa gama de experiências e investigações acerca do espaço cênico que promoveram novos rumos para o teatro, ampliando seus horizontes de possibilidades de trabalho na cena, explorando-a das mais variadas formas. As vanguardas artísticas do início do século XX, notadamente Futurismo, Construtivismo Russo, Dadaísmo e Surrealismo, buscaram introduzir novas formas de concepção artística, rompendo radicalmente com a tradição no intuito de criar uma arte mais sintonizada com as demandas do homem da época. Para tanto, utilizou-se as artes cênicas, principalmente a performance4, como um meio de expressão inovador e fora do convencional para as novas idéias. A performance tornou-se um meio adequado de exploração dos limites de uma idéia e foi frequentemente usada pelas vanguardas. As questões mais complicadas eram apresentadas e discutidas por meio da performance. A definição mais simples e abrangente para performance, segundo Goldberg (2006), seria a de uma arte feita ao vivo pelos artistas. Esta aproximação entre artista, obra e espectador será reconhecida no Teatro. Os artistas e a produção da arte deixar-se-ão atrair pelo Teatro na mesma medida que este contaminará aquela e vice versa.

[...] as invenções de Jarry e de Satie tinham mudado radicalmente o curso do desenvolvimento “teatral”, além de fornecer o nascedouro do Novo Espírito, pontuado ao longo dos anos para Roussel, Apollinaire, Cocteau e dos dadaístas e surrealistas “importados” e locais, para citar apenas algumas

3 ARONSON, Arnold. The history and theory of environmental scenography. Michigan: UMI books and demand, 1981. 4 Ainda que não seja a intenção deste trabalho esgotar as implicações das influências da performance nas artes cênicas, elas servem para destacar algumas reflexões acerca do teatro contemporâneo, sobretudo o teatro urbano.

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dessas extraordinárias figuras [...]. O Surrealismo havia introduzido os estudos psicológicos na arte, de modo que os vastos domínios da mente se tornaram, literalmente, material para novas explorações da performance. Na verdade, com sua concentração na linguagem, a performance surrealista afetaria mais fortemente o mundo do teatro do que as subseqüentes expressões de arte performática. Por que foi para os princípios básicos do dadaísmo e do futurismo – acaso, simultaneidade e surpresa – que os artistas se voltaram, indireta ou mesmo diretamente, depois da II Guerra Mundial (GOLDBERG, 2006, p. 86).

É notável constatar que as vanguardas contribuíram principalmente para a preocupação com a relação essencial que existe entre o lugar da performance e as formas de percepção, assimilação e recepção do público. A tradicional estaticidade desaparece e o público adentra a obra para vivenciá-la, experimentá-la de outra forma. Certamente esta forma diferenciada de relação entre público e obra demanda uma outra relação espacial e uma nova configuração arquitetônica. Toda a contaminação que o Teatro recebe das artes visuais e demais artes cênicas provocará uma desestabilização dos fundamentos tradicionais desta arte, o que afetará diretamente o lugar teatral uma vez que este é o espaço onde ocorre a relação entre a cena e o público. As vanguardas do início do século XX abriram caminhos para que o teatro contemporâneo empreendesse uma jornada rumo a novos espaços, mais próximos da esfera da vida cotidiana, para constituição do espaço cênico. O edifício, projetado com o palco italiano, que impõe regras, limita soluções e disciplina a representação é questionado e amplia-se o panorama de ruptura com o que era considerado estabelecido. O espaço, especialmente o palco, como afirma Roubine (1998), é explodido. Esta explosão lança fragmentos por todas as partes e o teatro envereda por outros rumos, sediando-se em outras arquiteturas, na rua, na cidade, enfim, mais próximo da realidade. O palco atinge uma proporção inimaginável, ele pode ser do tamanho do mundo, como afirma Aderbal Freire Filho5 (apud KOSOVSKI, 2000). Por mais que iniciativas anteriores tenham proposto, as vanguardas artísticas conformaram de maneira mais consolidada o movimento das artes cênicas rumo à cidade. Este diálogo que é iniciado aponta mais clara e consistentemente para o que virá a ser compreendido como teatro urbano.

5 FREIRE FILHO, Aderbal. A mise-en-scène de Senhora dos Afogados (duas cenas). Cadernos de Espetáculos: Revista do teatro Carlos Gomes da secretaria municipal de cultura da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, n°1, p. 71, 1995.

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3.2. Teatro Total Como se pode constatar através das análises dos estudos apresentados a constituição do espaço cênico contemporâneo trabalha com operadores diferenciados que demandam uma série de modificações nas formas tradicionais de concepção espacial para que se realizem em plenitude. A arquitetura teatral, que trata da elaboração do edifício teatro, será veementemente afetada, como visto, e formas outras, soluções diferentes surgirão. Tentativas das mais variadas apresentar-se-ão, algumas bem sucedidas, outras nem tanto, algumas permanecerão somente no projeto enquanto outras se tornarão realidade. Uma destas experiências de arquitetura teatral, que busca um edifício condizente com as propostas contemporâneas de construção do espaço cênico e que, à sua maneira, é capaz de ilustrar os possíveis caminhos que podem ser percorridos rumo a uma nova síntese é o Teatro Total, de Walter Gropius e Erwin Piscator. A escola alemã Bauhaus tinha como princípio norteador a síntese entre arte e tecnologia. Diante de uma Alemanha dividida e empobrecida do pós-guerra, a Bauhaus pretendia desenvolver artes aplicadas que pudessem refletir o espírito da época e atender a demanda da população por uma melhor qualidade de vida. A falta de recursos era um limitador, dessa forma este virou um catalisador de uma proposta mais ousada e abrangente, onde o figurativo, por exemplo, era tido como um excesso que deveria ser evitado e quanto mais sintético for o design, mais eficiente poderia ser. O teatro não escapa desta filosofia, tanto que, ao assumir a direção do Teatro da Bauhaus, após a demissão de Schreyer, Oskar Schlemmer implementou estas idéias nas suas performances que acabaram por tornar-se o exemplo mais claro dos conceitos da escola alemã.

A capacidade de Schlemmer de converter seu talento pictórico (o projeto dos figurinos já se insinuava em suas pinturas) em performances inovadoras foi muito apreciada numa escola que aspirava precisamente atrair artistas capazes de trabalhar para além dos limites de suas próprias disciplinas (GOLDBERG, 2006, p. 89).

O teatro, as performances da Bauhaus constituíam uma reação, uma alternativa ao teatro produzido na época. Por sua vez, a arquitetura teatral também teve um amplo espaço de discussão na Bauhaus. A estrutura do edifício segundo palco tradicional era considerada restritiva e algumas propostas foram empreendidas no intuito de modificar as formas de relação entre a cena e o público. Desde propostas que se adaptavam às novas montagens do teatro da

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Bauhaus até outras, mais ousadas, que buscavam uma nova relação psíquica, óptica e acústica, foram apresentadas, contudo praticamente nada se concretizou. De certa forma, as propostas de arquitetura teatral da Bauhaus eram norteadas pelo conceito de “Teatro Total” concebido por Moholy-Nagy: “Nada impede a utilização de MECANISMOS complexos como o cinema, o automóvel, o elevador, o avião e outros maquinários, bem como de produzir um tipo de atividade cênica que não mais coloque as massas como espectadores impassíveis, e que [...] lhes permitirá fundir-se com a ação do palco” (GOLDBERG, 2006, p. 106-107). O exemplo mais famoso de demonstração das pesquisas em arquitetura teatral desenvolvidas na Bauhaus é o projeto de Walter Gropius para o Teatro Total (Total-Theatre) de 1927 (FIG 08). Este surge do encontro entre o arquiteto alemão com o diretor teatral Erwin Piscator, considerado por alguns um dos pioneiros do que se chama “arte multimídia”. O teatro proposto por Piscator possuía forte influência das idéias do encenador russo Meyerhold e a idéia principal era de um teatro de ação com um palco suficientemente flexível para abrigar o ator acrobata, tipo ideal para tal teatro, permitindo a utilização de inúmeros recursos para o incremento do espetáculo. Piscator foi um dos primeiros a utilizar projeções cinematográficas, fotomontagens e esteiras rolantes na cena. Vários elementos combinados utilizando todos os recursos – cor, luz, som, maquinaria – disponíveis em um espaço flexível, preferencialmente integrando-se à platéia, produziram um teatro diferenciado, onde o dinamismo de seu ritmo torna-se característico. Este teatro busca expressar preocupações comuns a todos os homens, tornando-se um instrumento de consciência de classe e que inseriria o indivíduo em pé de igualdade com outros meios de informação no conjunto de elementos do espetáculo. Gropius desenvolve uma proposta de edifício extremamente flexível. Ligeiramente ovalado, possuía auditório capaz de converter-se em três diferentes formas “clássicas”: palco italiano, arena e palco projetado. Propôs-se também uma espécie de palco periférico onde a ação poderia ocorrer envolvendo o público. Segundo Gropius:

Uma transformação completa do edifício é obtida ao se fazer a plataforma do palco e parte da orquestra girar cento e oitenta graus. Em seguida, o palco italiano anterior transforma-se numa arena central totalmente cercada por fileiras de espectadores! Isto pode ser feito inclusive durante a representação. (...) Esse ‘ataque’ ao espectador, alterando sua posição quando a peça está sendo encenada e mudando inesperadamente a área do palco, transforma a escala de valores vigente, colocando o espectador diante

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de uma nova consciência do espaço e fazendo com que ele participe da ação (GROPIUS apud FRAMPTON 1997, p. 167-168).

Os múltiplos espaços que se integravam, a reversibilidade e a possibilidade de deslocamentos da cena, tornando-a cinética, além do uso de tecnologias inovadoras funcionariam como recursos para a criação do evento, bem como proporcionariam uma experiência diferenciada tanto para atores quanto para o público. Combinados, elementos e efeitos transformariam o espaço cênico em algo de fato tridimensional, onde o público por vezes encontra-se dentro ou fora da cena. Com isso Gropius pretendia eliminar o efeito de bidimensionalidade que o teatro tradicional produzia ao emoldurar a cena na caixa do palco. “O atual palco em profundidade, que leva o espectador a olhar para o outro mundo representado no palco como se olhasse através de uma janela, ou que separa dele por uma cortina, praticamente eliminou a arena central que havia no passado” (GOLDBERG 2006, p.104) afirma Gropius. Para ele, esta arena promovia uma integração entre cena e público, estabelecendo uma unidade entre as esferas distintas. A arquitetura do Teatro Total possibilitaria ao diretor um sem número de usos do espaço, reduzindo as limitações impostas pelo edifício. As mudanças poderiam acontecer durante o evento, dependendo do desejo do encenador, sem comprometer o espetáculo. Tanto espetáculos convencionais quanto experimentais poderiam ser encenados no Teatro Total, segundo Gropius. O dinamismo rítmico promovido por este espaço conversível estimularia o público a sair do estado passivo que geralmente encontra-se no edifício tradicional. As mais diversas concepções artísticas poderiam ser expressas neste projeto de Gropius em parceria com Piscator, contudo, não conseguiu sair do papel. O Teatro Total revela um profundo estudo sobre os possíveis efeitos de elementos como movimento, cor e luz, dentre outros, no evento. Estas pesquisas abrangem tanto o campo da arquitetura teatral, quanto da produção das performances da Bauhaus. A performance certamente foi um dos mais bem sucedidos seguimentos da escola alemã. Esta forma de obra de arte viva conseguiu expandir os horizontes da obra de arte total preconizada pela Bauhaus e concretizou uma série de princípios defendidos e/ou desenvolvidos pela mesma. Menos politizada e provocativa que as performances futuristas, dadaístas e surrealistas, a Bauhaus reforçou a importância da performance como meio de expressão artística independente.

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Segundo Kosovski (2000, p.68), “a partir desta intensa investigação de técnicas ópticas, de expedientes cinéticos e de novos materiais para o palco, a Bauhaus tornou-se um dos primeiros núcleos de estudos a perceber a cidade como campo de aplicação dos recursos utilizados na cena, sobretudo no uso da luz como linguagem”. De fato, o Teatro Total e, de alguma forma, o teatro da Bauhaus propõe formas diferenciadas de arquitetura teatral e mesmo maneiras de se conceber o evento. O espaço cênico, conseqüentemente, é repensado. Contudo a aproximação entre cena e público e, desta forma, a sua relação, apesar de apontar para outras possibilidades, amadurece de forma um pouco tímida, se comparada ao que era proposto por alguns artistas contemporâneos ao projeto. O Teatro Total é como que um dos pais das atuais arenas multiuso tão evidentes na paisagem urbana atual. Isso revela, de certa maneira, que para promover a mudança diagnosticada por muitos na arquitetura teatral tradicional e a ampliação do lugar teatral, a problemática demanda outras abordagens.

3.3. A crueldade e o distanciamento Notadamente, pode-se sugerir três momentos distintos neste processo de busca pela ampliação do conceito de lugar teatral no teatro contemporâneo. O primeiro, predominantemente teórico, nos primórdios do século XX, onde se encontram as primeiras idéias que fomentam as discussões acerca do lugar teatral, do papel do espectador e do próprio fazer e conceber o Teatro. Pode-se destacar dois nomes: Antonin Artaud e Bertolt Brecht.

Artaud é, certamente, um dos nomes mais importantes do Teatro, principalmente no séc. XX. Sua obra é extremamente complexa e rica, contudo não tem o reconhecimento merecido, talvez por ser pouco compreendida. Em sua obra “O Teatro e seu duplo” (ARTAUD, 1999), ele expõe sua concepção sobre o seu Teatro da Crueldade e sua relação com a sociedade. Suas idéias permanecem e permanecerão atuais por um bom tempo ainda. Ele propõe uma nova relação entre cena e público e a estrutura do palco tradicional é abolida dadas as suas limitações para a concepção do seu espetáculo.

Suprimimos o palco e a sala, substituídos por uma espécie de lugar único, sem divisões nem barreiras de qualquer tipo, e que se tornará o próprio

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teatro da ação. Será restabelecida uma comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, entre o ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar envolvido e marcado por ela. Esse envolvimento provém da própria configuração da sala (ARTAUD, 1999, p. 110).

Artaud quer acabar com a idéia de imitação da arte, com a estética de Aristóteles em que a metafísica ocidental da arte se fundamentou. O teatro seria o território ideal e primordial para esta destruição da imitação. Como a representação abrange uma estrutura que vai além da arte – na religião, filosofia, política, etc – ela pode designar outros tipos de construção teatral. Desta forma, esta questão é abordada de forma mais ampla que sendo somente uma tipologia de tecnologia teatral. Busca-se eliminar a estrutura básica que caracteriza o teatro ocidental tradicional, que pode ser encarado como teológico. Esta estrutura é composta pelo autor-criador, os representantes – diretor, atores, intérpretes – que se subjugam ao texto e representam aquilo que é colocado. Por fim, é composta pelo público passivo, consumidores, que usufruem o que é representado. Este palco teológico é dominado pela palavra, por uma vontade de palavra que governa o teatro à distância uma vez que não pertence ao lugar teatral. O texto fonético que assegura a manutenção da estrutura da representação, tornando-se o eixo condutor central norteador das formas musicais, pictóricas, espaciais e gestuais que servem como ilustração do que é posto pelo texto. Esta ênfase dada à palavra e como ela destrói a cena constitui-se o fato primeiro que fundamenta o combate de Artaud. Pôr fim a tirania do texto, promovendo a cena pura é o seu objetivo. Ele não compreende o teatro ocidental baseado no texto como esquecimento do que seja o teatro, e sim, a sua perversão. Artaud, em sua obra O Teatro e seu duplo concebida no período compreendido entre 1931 e 1936, denuncia uma ruptura entre as coisas e as palavras, as idéias que representam estas coisas na civilização ocidental. Para ele, as ações correspondem aos pensamentos e, nesse sentido, cultura e civilização significam a mesma coisa. Perde-se muito ao contemplar-se os atos e tentar extrair-se deles considerações. À medida que o pensamento identifica-se com o ato, deve-se ser impulsionado por ele e viver-se. O grande problema, do ponto de vista de Artaud, da arte no Ocidente é a equivocada cisão entre arte e cultura, a arte e o proveito que dela extrai-se. Considera-se um equívoco pensar que um objeto, artefato artístico, seja tido como uma

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expressão última do artista e de sua arte. Pensar a arte como esta espécie de expressão final é reduzir a arte. Para Artaud, o teatro ainda é capaz de criar sombras que rompem com suas limitações, ou seja, que ainda é possível de resistir ao reducionismo e tornar-se um dispositivo capaz de potencializar a relação entre o homem e a vida. É fundamental, para Artaud, que haja um rompimento com a linguagem para que, novamente, a vida seja tocada. A linguagem inadequada limita e impõe caminhos superficiais que não formam sombras. A liberdade da forma, ou sua completa aniquilação como ente estabelecido, amplia as possibilidades de desenvolvimento de algo capaz de aderir à vida. Quando analisa a peste como um duplo do teatro, Artaud busca evidenciar a potência da poesia da linguagem teatral. “Enquanto as imagens da peste em relação com um poderoso estado de desorganização física são como os derradeiros jorros de uma força espiritual que se esgota, as imagens da poesia no teatro são uma força espiritual que começa sua trajetória no sensível e dispensa a realidade” (ARTAUD 1999, p.21). A força do teatro reside neste moto-continuum que a torna permanentemente intensa e que não busca esgotar-se no jorro do momento do evento. O evento constitui-se um instante em que uma tensão permanente expõe-se e que desconecta da realidade imediata, abrindo-se para a vida em sua plenitude. A redução promovida pela linguagem só diminui a força poética do evento. O teatro preconizado por Artaud pode ser considerado um jogo com requinte e sofisticação, em que se busca uma maior liberdade para a improvisação e, consequentemente, minimiza-se a influência das regras, que neste caso coincidem com a idéia de texto. O evento cria uma realidade paralela à vida, tal qual o jogo e inscreve seu tempo próprio, sua heterocronia. Todos os elementos que compõem o teatro (e em sua maioria são relegados ao segundo plano para a predominância do texto no teatro Ocidental tradicional) combinados, formando uma trama complexa, fazem emergir a poesia no espaço característica do teatro que se resolverá no domínio que não pertence estritamente às palavras. A palavra fecha, encerra o universo da encenação, reduzindo o teatro a um argumento. Artaud propõe um teatro cujo campo de atuação seja infinito, aberto e diga e toque, fundamentalmente, os sentidos. Uma idéia clara, esclarecida pelo texto ou pela literalidade, é uma idéia morta e acabada.

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A encenação é compreendida como uma realização aberta, em que o texto não se constitui o elemento principal, muito menos gerador do evento teatral. “A idéia de uma peça feita diretamente em cena, impõe a descoberta de uma linguagem ativa, ativa e anárquica, em que sejam abandonadas as delimitações habituais entre os sentimentos e as palavras” (ARTAUD, 1999, p.40). O teatro centrado no texto, segundo Artaud, tende a ser psicológico, não atingindo os sentidos e passando por processos de racionalização que reduzem o efeito da tensão gerada pelo envolvimento do espectador com o que está em cena. A linguagem teatral apresenta uma série de impressões por meio de dispositivos de difícil determinação. É algo exterior a linguagem falada que potencializa a experiência cênica ao ponto de reduzir o diálogo dramatúrgico a uma ínfima partícula do evento. A cena é rica em possibilidades de expressão. O texto reduz a cena ao argumento psicológico de abrangência moral. Literalizar a cena é reduzi-la e tornar o teatro por demais figurativo. O teatro que Artaud defende é mais abstrato e distancia-se deste drama moral. Busca, muito antes, a tensão que existe antes da palavra. O teatro deve ser capaz de expressar algo além das palavras, que tenha alcance mais amplo no ser humano. Quando uma palavra é dita, ou um texto redigido, ou uma pintura concluída, a tensão existente entre o ímpeto gerador do gesto artístico e a vida se esgota, ou seja, a definição de uma forma determina o fim da própria coisa. A idéia de uma obra prima constitui-se uma obra terminada que encerra um gesto que se relaciona com seu tempo e que a partir daí perde seu sentido. Contudo, como denuncia Artaud, a obra prima é reservada a uma elite e é afastada da massa, que em geral não a compreende. Não existe, para Artaud, uma zona reservada no espírito. Os discursos devem ser atualizados e inovados de forma que condigam com o seu tempo. Deve ser permitido dizer o que foi dito, só que da forma de dizer de cada tempo, de cada indivíduo, não com a forma de dizer dos antepassados. O teatro preconizado por Artaud segue uma vertente não-literária, onde o teatral é tudo o que não está inserido nos diálogos do texto. A ação humana cria uma experiência de cunho visual instantânea que repercute diretamente no espaço. Artaud é contra a prática ilusionista que busca iludir o público, ele compreende que o teatro deve reativar a experiência sensível e afirmar seu caráter de acontecimento, estimulando a imaginação. O teatro deve ser esvaziado de seus aspectos psicológicos, simbólicos e ilusionísticos para que se aproxime da sensibilidade do

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indivíduo. O espaço tridimensional abriga o evento proposto por Artaud e todos os seus elementos apresentam plasticidade, contudo nunca representando um espaço-tempo específico como no teatro tradicional. O Teatro da Crueldade fecha o espaço da representação e cria, segundo Artaud, um espaço da representação original. Ele elimina tudo o que não é teatral, em essência, do teatro. Um dos principais alvos é o texto, que submete o teatro a uma redução. O teatro deve libertar o homem e conduzi-lo ao tempo e espaço originais. A crueldade deve ser compreendida como necessidade e rigor. Contudo na origem desta necessidade denominada crueldade existe um assassínio: o da palavra dominadora que representa o texto. O teatro ocidental confunde a linguagem do teatro com o texto, à linguagem da palavra articulada. Artaud é veementemente contra esta visão e a combate. Ressalta-se, porém, que a palavra não desaparece por completo no Teatro da Crueldade. Ela ganha uma outra função, mais restrita e menos despótica. Ela torna a ser gesto. Artaud propõe um teatro que gere uma tensão permanente entre este e a realidade habitual, onde se compreende que o “ presente só se dá como tal, só aparece a si, só se apresenta, só abre a cena do tempo ou o tempo da cena acolhendo a sua própria diferença intestina, na dobra interna da sua repetição originária, na representação. Na dialética”. (DERRIDA, 1995, p. 173). O fechamento proporcionado pela representação delimita o espaço e diminui as possibilidades de aprofundamento das relações entre o público e a realidade trazida pela cena. Quanto menos a realidade emerge, menos potente é o espetáculo.

Porque ela sempre já começou, a representação não tem portanto fim. Mas pode-se pensar o fechamento daquilo que não tem fim. O fechamento é o limite circular no interior do qual a repetição da diferença se repete indefinidamente. Isto é, o seu espaço de jogo. Este movimento é o movimento do mundo como jogo. ‘E para o absoluto a própria vida é um jogo’ [...]. Este jogo é a crueldade como unidade da necessidade e do acaso. É o acaso que é infinito, não deus”. Este jogo da vida é artista (DERRIDA, 1995, p. 176).

“Espaçamento”, isto é, produção de um espaço que nenhuma palavra poderia resumir ou compreender, em primeiro lugar supondo-o a ele próprio e fazendo assim apelo a um tempo que já não é o da dita linearidade fônica; apelo a uma “nova noção de espaço” e a “uma idéia particular do tempo”:

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Contamos basear o teatro antes de mais nada no seu espetáculo e no espetáculo introduziremos uma noção nova do espaço utilizando em todos os planos possíveis e em todos os graus da perspectiva em profundidade e em altura, e a essa noção virá acrescentar-se uma idéia particular do tempo ligada à noção do movimento. [...] Assim o espaço teatral será utilizado não apenas nas suas dimensões e no seu volume, mas, se nos é permitido dizê-lo, nos seus interiores (DERRIDA, 1995, p. 157-158).

A força do teatro reside na sua capacidade de poder acontecer no plano real, definindo sua própria realidade e seu espectro de alcance de geração de tensão com a vida. A encenação deixa de ser vista como mero reflexo de um texto na cena. O espetáculo utiliza a linguagem teatral em plenitude, subjugando elementos acessórios a sua demanda. Os elementos que compõem a linguagem da cena deixam de ser literalizados. Assim, a palavra é usada com um recurso cênico e não em sentido conotativo. Gestos, sons, palavras, voz, tudo contribui para a ampliação do aprofundamento do sentido da cena, à medida que se cria uma trama complexa de signos que funcionam como que hieróglifos. Instrumentos musicais, aparelhos luminosos também devem ser revistos e adaptados no intuito de produzirem efeitos de som e luz inovadores. Deve-se buscar outros efeitos que explorem novas possibilidades dos instrumentos e aparelhos. Da mesma forma o espaço, no Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, deixa de ser encarado com um elemento acessório, e como tal, literalizado. Propõe-se a abolição da cenografia principalmente se esta opera como elemento de reprodução de alguma realidade outra. O espaço cênico é constituído a partir dos dados concretos e reais seja da sala, seja de um site, extraindo deles aquilo que é eminentemente teatral e que acrescente maior densidade à trama de sentidos que se conforma no espetáculo, no evento teatral. A delimitação deste espaço cênico é conseqüência da ação, do acontecimento que se relaciona com o público participador. Ele é envolvido da mesma forma que a configuração da sala ou do site specific estabelece certas relações que determinam este envolvimento, estabelecendo um processo dinâmico e aberto de constituição do espaço cênico e ampliando as possibilidades do lugar teatral.

Não haverá cenário. Para essa função bastarão personagens-hieróglifos, roupas rituais, bonecos de dez metros da altura representando a barba do Rei Lear na tempestade, instrumentos musicais da altura de um homem, objetos com formas e destinação desconhecidas (ARTAUD, 1999, p.112).

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No entanto, boa parte das propostas de Artaud ficou, praticamente, na teoria, pois as realizações do seu Teatro da Crueldade predominaram na tradicional estrutura à italiana. Seus argumentos e inquietações seriam aplicados mais tarde, quando foram descobertos por uma geração mais receptiva às suas idéias. Muito se atribui a Artaud quando se trata do rompimento com o palco italiano. Por sua vez, Brecht, por ter sido um grande realizador, tendo colocado em prática boa parte de sua teoria, deve ser revisto e sua influência neste processo deve ser reconsiderada. As contribuições do teatro brechtiano nas formas de conceber o espaço onde se estabelece a relação cena/público são fundamentais para o processo de emancipação do teatro da estrutura à italiana. Apesar de ter utilizado o palco italiano, Brecht propõe uma ressemantização do edifício, estabelecendo uma nova ordem. Isto abre caminhos novos para a utilização do palco italiano, bem como para a sua emancipação que já era tido como inerente ao próprio teatro. Nesse sentido, um distanciamento crítico é promovido e novas interpretações vêm à tona, ampliando horizontes e revelando novas demandas que, conseqüentemente, vão requerer maneiras outras de serem atendidas. Coerentemente com suas propostas sobre Teatro e, principalmente, sobre as relações entre espetáculo e público, Brecht condena a hierarquia estabelecida na sala italiana. A desigualdade estabelecida na sociedade, que era repercutida, enfatizada e perpetuada no teatro, sofria profunda rejeição de Brecht. Os avanços tecnológicos que iam sendo introduzidos no teatro na mesma época proporcionavam um incremento na qualidade do espetáculo considerável. Muitos dos encenadores da época tiram partido desta nova situação no intuito de ampliar o caráter ilusionista do espetáculo. Ampliam-se as possibilidades do palco fechado. Segundo Roubine (1998, p. 90), Brecht “condena o ilusionismo e a relação alucinatória que o espetáculo tradicional instaura”. Entretanto, o teatro de Bertolt Brecht não romperá radicalmente com o palco italiano e toda sua estrutura. Roubine (1998) afirma que Brecht apoderar-se-á de todos os recursos disponíveis para utilização em prol do seu espetáculo, conservando características básicas deste tipo de estrutura tais como a relação frontal e estática com o público e os recursos técnicos da sala. Como que naturalmente, Brecht toma para si o teatro

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italiano e elimina tudo que possa ser, para ele, inútil e comprometedor, introduzindo aquilo que julga enriquecedor, essencial e proveitoso para os seus propósitos. A arquitetura teatral tradicional em sua época não o prende, muito menos o limita sendo que, como coloca Roubine (1998, p. 90), Brecht está “pronto a fazer explodir o palco italiano”:

Conforme o caso, o arquiteto teatral substituirá o piso do palco por tapetes rolantes, a parede de fundo por uma tela de cinema, os bastidores laterais por um poço de orquestra. Transformará o urdimento fixo em varas com polias e cogitará até de transportar a área de representação para o centro da sala. Sua tarefa consiste em mostrar o mundo.

Abstraindo do fato de que só existem na sala alguns lugares onde o quadro cênico produz plenamente o seu efeito, enquanto de todos os outros ele aparece mais ou menos deformado, a área cênica composta à maneira de um quadro não possui nem as qualidades de uma obra de artes plásticas, nem as de um terreno, por mais que tenha a ambição de ser uma e outra coisa ao mesmo tempo. Só a representação dos personagens que ali se movimentam fará de um espaço uma boa área de representação (ROUBINE, 1998, p. 90-91).

As premissas fundamentais do teatro brechtiano pressupõem uma maneira outra de relação entre o espetáculo e o espectador. Na forma dramática tradicional do teatro o espectador é envolvido em uma ação cênica, é colocado dentro de algo que suscite uma identificação, convivendo e emocionando-se com o que lhe é apresentado no espetáculo de forma predominantemente linear. Por outro lado, no teatro épico de Brecht busca-se tornar o espectador um observador ativo cuja observação lhe desperta o agir. Ele é colocado em face de algo que o obriga a estudar e analisar os argumentos forçando-o a tomar decisões diante de um espetáculo apresentado em narrativa de forma não-linear, como que em curvas do tempo. O público precisa manter a lucidez em face da cena no intuito de compreender o que o espetáculo revela. O teatro de Brecht, cujo fundamento é científico-sociológico, propõe um público consciente (ou conscientizado), capaz de refletir e discernir objetivamente, em certa medida, como no teatro grego. Bertolt Brecht opõe-se ao teatro aristotélico por este apresentar relações inter-humanas individuais. Para Brecht, o homem concreto só pode ser compreendido com base nos processos dentro e através dos quais existe. Além disso, o teatro épico brechtiano possui um fundamento didático capaz de elevar a emoção ao raciocínio. A peça é pensada de forma tal que possa atuar como transformadora do indivíduo, enquanto a catarse aristotélica busca a purificação e

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satisfação do público. Brecht propõe certo incômodo para que o público pense e reflita sobre o que é apresentado na cena. Uma das maneiras para que isto ocorra efetivamente é combatendo o ilusionismo, que contribui de sobremaneira para o hipnotismo e entorpecimento do público. Opor-se à ilusão é a forma com que Brecht consegue evitar a catarse do público, a identificação com os personagens e situações tão perniciosas para seus objetivos. Seguindo este raciocínio toda a estrutura épica da peça e, principalmente, o “efeito de distanciamento” (Verfremdungseffekt) contribuem para a redução da ilusão. Uma vez que apresenta situações e acontecimentos que por força do hábito são tidos como familiares de forma tal que provocam estranheza no espectador, convencendo-o da possibilidade de uma ação transformadora na sua vida. Torna-se estranho, anula-se a familiaridade da situação habitual do indivíduo, elevando-a de nível e tornando-a conhecida pela via do não-reconhecimento, ou seja, através de um recurso dialético. Os recursos teatrais, no caso deste estudo, especificamente os cênicos, utilizados por Brecht consistiam em títulos, cartazes, projeções de textos os quais comentavam epicamente uma ação e esboçavam o pano de fundo social. A cena era literalizada. A máscara também era utilizada como recurso principalmente na melhor caracterização dos personagens. O cenário era anti-ilusionista, apenas comentava a ação, sendo reduzido ao indispensável e estilizado podendo, certas vezes, entrar em conflito com a ação e parodiá-la. Enfim, Brecht retira do palco todo o aparato ilusionístico que possa escamotear a realidade, reassumindo a teatralidade inerente ao Teatro (FIG 09). Deixa-se de camuflar a maquinaria e vêm à tona refletores e gambiarras, o público é capaz de ver como os efeitos acontecem perdendo, assim, a “magia” e tudo se converte em um mero trabalho executado pelo homem. O espectador tem então, plena consciência de como são concebidos os efeitos e que estes são frutos de maquinarias. A eliminação da ilusão e conseqüente resgate da teatralidade provocam, ou melhor, colaboram com o efeito de distanciamento, recurso essencial para o teatro brechtiano. Ou seja, para alcançar seus objetivos, Brecht não necessita de um rompimento com a estrutura à italiana, ele a rebate contra si própria, esvaziando-a de sentido, desfigurando-a e trabalhando-a como uma antítese. A teatralidade exibe-se assumidamente. Conclui Roubine (1998, p. 92):

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Enfim, a relação frontal, a distância e a imobilidade do espectador diante do palco, que na perspectiva de uma arte de participação e de ilusão apareceriam como obstáculos a serem contornados (de onde a preocupação de fazer com que o espectador perca a consciência de sua situação), tudo isso se torna própria base do teatro épico: o espectador brechtiano deve ver a distância.

3.4. O espaço como participante do jogo

No segundo momento, em meados do século XX, destacam-se inúmeras iniciativas práticas, que buscam novas alternativas à estrutura preconizada pelo palco italiano. Grupos como Living Theatre, Théâtre du Soleil e nomes como Luca Ronconi e Grotowski concebem espetáculos segundo uma nova maneira de se estabelecer as relações entre cena e público no espaço. Nas propostas do Teatro-laboratório, fundado pelo diretor polonês Jerzy Grotowski, a pesquisa consistia no eixo condutor que orientava toda a prática. Esta era compreendida desde o treinamento do ator até os demais elementos que compõem a complexidade que é o Teatro. Na esteira do pensamento de Artaud, Grotowski busca o significado do que é Teatro, quer compreender o que vem a ser o teatral em sua essência, distinguindo-o das demais categorias do espetáculo. Sua pesquisa o conduz à premissa de que a essência do teatro está em algo que se localiza entre o ator e o espectador, no seu encontro. Assim sendo, o trabalho de Grotowski será norteado pela intensa busca de novas formas de relação entre o público e a cena. O caminho traçado pelo diretor polonês para o amadurecimento do trabalho do ator não se constituía uma combinação de várias técnicas conhecidas, pelo contrário, o conhecimento de diferentes técnicas serviria como ferramenta útil para a erradicação de bloqueios que limitavam o trabalho do ator. As formas de comportamento “natural” e “comum” obscureceriam a verdade, segundo Grotowski. O ator, então, deve dirigir seu trabalho no intuito de revelar o que está por trás da máscara do comum. Nos momentos extremos da vida, o homem não se comporta naturalmente, ele usa símbolos articulados ritmicamente, canta e dança. Nestes momentos extraordinários o gesto não é o comum, é o gesto significativo que Grotowski entende como unidade elementar da expressão.

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Dentro desta perspectiva, o teatro proposto por Grotowski requer uma sensível redução da distância que separa o ator do público. O trabalho bem realizado do artista que atua é percebido e age diretamente sobre os indivíduos que compõem a platéia. A relação entre o ator e o espectador aproxima-se de uma relação fisiológica, onde cada pequeno detalhe como a respiração, o olhar, o movimento, o som e o silêncio, por exemplo, participam ativamente e o expectador conscientiza-se da presença e da própria materialidade do ator. A estrutura arquitetônica teatral tradicional promove um isolamento e o afastamento da cena, tornando-se um obstáculo ao que propunha Grotowski. Desta forma, a estrutura arquitetônica tradicional é rejeitada e a dicotomia espacial entre cena e público é renunciada, promovendo uma aproximação de fato entre os dois. Para que esta comunhão de fato aconteça, as dimensões do lugar teatral reduzem-se consideravelmente e este deixa de ser compreendido como um espaço fixo. Assim, a pesquisa empreendida na preparação do evento encontra possibilidade de estender-se para durante o acontecimento da cena. Se a essência do teatro está no que ocorre no encontro entre ator e expectador e o espaço destinado a este encontro é reduzido, os demais elementos da cena, que teoricamente a comporiam, tais como luz, cenário, figurino etc, tornam-se, nos termos de Grotowski, suplementares, acessórios e, por vezes, até desnecessários.

Pela eliminação gradual de tudo que se mostrou supérfluo, percebemos que o teatro pode existir sem maquilagem, sem figurino especial e sem cenografia, sem um espaço isolado para representação (palco), sem efeitos sonoros e luminosos, etc. Só não pode existir sem o relacionamento ator-espectador, de comunhão perceptiva, direta, viva. (GROTOWSKI, 1992, p. 5)

O teatro de Grotowski, que busca aprofundar na relação entre ator e espectador e rejeita demais elementos que comporiam a cena em uma proposta tradicional, é definido como teatro pobre. Ele é contra o teatro que opera como uma síntese de disciplinas criativas diversas – literatura, arquitetura, iluminação, representação etc – que constrói espetáculos híbridos que, embora não possuam uma espinha dorsal ou uma integridade, são apresentados como um trabalho artístico orgânico. Tenta escapar do impasse colocado pelo Cinema e pela TV, que dispõem de meios técnicos que são muito mais avançados, e que o Teatro não teria como competir. No teatro pobre, a potencialidade do trabalho do ator é suficiente para que a cena aconteça. Os elementos

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plásticos do evento podem ser construídos pelo próprio ator utilizando seu corpo, assim como os efeitos sonoros podem ser conseguidos através da voz. Apesar de muito comparado a Artaud, Grotowski desenvolveu um trabalho distinto, e em um primeiro momento sem influências explícitas das propostas do encenador francês. Contudo é inegável que o êxito do trabalho de Grotowski é fruto de um processo que Artaud foi um dos pioneiros e em cujo contexto as idéias já eram mais bem compreendidas que nos primórdios do século XX. Esta autonomia revela distinções relevantes nos trabalhos de ambos. Enquanto no Teatro da Crueldade os recursos externos eram pensados e utilizados para a valorização da experiência da cena, o teatro pobre os compreende como suplementares que só entram em cena, necessariamente, para se confrontarem com o trabalho do ator, incrementando a experiência da constituição do personagem. Em outro aspecto, os arquétipos que emergem do trabalho de Grotowski provém de “tabus” interiores, enquanto os de Artaud são mais universais. Analisar as relações entre o teatro proposto por Artaud e o trabalho de Grotowski consiste em uma tarefa complexa e que não se resume em uma relação de que um colocou em prática as premissas do outro. No entanto, é importante deixar aberta a porta do diálogo entre os dois, pois em alguns momentos as concepções tornam-se complementares. Mesmo que distintos, o trabalho dos dois articula-se principalmente por se fundarem em um fecundo repensar do fazer teatral que se firma como uma tendência de um teatro transformador. A pesquisa empreendida por Grotowski em busca de formas diferenciadas de relação entre público e atores repercute no espaço e abre possibilidades para arranjos espaciais e disposições físicas das mais variadas formas. Gradativamente, durante a evolução dos seus trabalhos, Grotowski vai aproximando a cena do público, ou seja, ele não rompe bruscamente com a estrutura tradicional. Em seus primeiros espetáculos, a separação entre a cena e o público ainda era bastante evidente. Com o passar do tempo, ambas aproximam-se e integram-se, como em Os antepassados, em 1961, e Kordian, no ano seguinte, onde os espectadores ocupavam espaços em toda a área da apresentação. Em alguns momentos, como em O príncipe constante (1965-68). Os elementos que compõem o espaço cênico modificam as formas de percepção do evento, gerando um efeito de consciência de si mesmo no espectador. Esta cenografia, que é radicalmente oposta à noção de decoração, torna-se um elemento ativo e essencial para que o ator constitua a personagem no trabalho teatral. De alguma forma, para o cenógrafo, no trabalho

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sob o viés tradicional, segundo a ótica de Grotowski, o teatro não deixa de ser uma arte plástica. Isso pode ter aspectos positivos se o espaço cênico for construído de forma que potencialize o surgimento dos aspectos plásticos da ação do ator em cena, bem como o estabelecimento de uma tensão entre os elementos suplementares do evento.

Não há dúvida de que falar das experiências de Grotowski concentrando-se apenas nas técnicas postas em ação e isolando a revolução do espaço teatral por ele empreendida do seu contexto teórico e ideológico comporta o risco de dar uma visão limitada de uma das tentativas mais originais e bem-sucedidas que o teatro contemporâneo tenha produzido. Nem por isso deixa de ser verdade que como Grotowski o espetáculo consegue libertar-se completamente das pressões que a arquitetura do teatro italiano, bem como as práticas dela decorrentes, lhe vinham impondo. Abrindo mão de toda maquinaria e tecnologia de que o ator não seja mestre e usuário, Grotowski não precisa senão de um espaço nu, suscetível de ser livremente arrumado, quer se trate de uma granja, de um galpão, de uma quadra ao ar livre etc. Essa libertação, a que Artaud e Brecht no fundo aspiravam sem poder realizá-la verdadeiramente, acaba acontecendo com Grotowski. Em prejuízo, segundo foi dito às vezes, da popularização do espetáculo. Mas, vale a pena repeti-lo, é esse o preço que custa a eficiência, e, portanto, a razão de ser, do “espetáculo” grotowskiano (ROUBINE, 1998, p. 104).

Os princípios fundamentais que norteiam as estratégias de apropriação dos espaços não institucionalizados no trabalho de Grotowski, quanto no de grupos contemporâneos como o Teatro da Vertigem, assemelham-se às práticas propostas por Richard Schechner (1994), para a produção do espaço cênico no seu environmental theatre6. O teatro de Schechner, outro importante pensador e encenador das artes cênicas, assim se cognomina justamente por que um dos principais elementos que o caracteriza é o espaço e as formas como ele pode ser apropriado tanto por artistas quanto pelo público. O evento teatral é determinado por um complexo intercâmbio de estímulos que constituem a sua raiz, definindo-o como um espaço relacional de esferas afins – dentre elas, essencialmente, inclui-se trocas entre atores, entre espectadores e entre atores e espectadores. Em um nível secundário, identificam-se outras relações que complementam os vetores de determinação das interações primárias. Algumas seriam entre os elementos do evento. Outras entre estes e o artista (atores, performers, etc). Além destas, entre os elementos e os espectadores. Por fim, entre todo o evento e o espaço onde ele acontece. Para que esta trama complexa tenha consistência é necessário que todo o espaço seja usado na performance. Uma convenção do teatro ocidental que vem desde os

6Teatro ambiental (tradução nossa)

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gregos é a separação de espaços entre o evento e o lugar dos espectadores. A separação é clara. Já nos rituais não existe esta separação, pois os espectadores participam tornando-se, na verdade, participadores, mais além talvez, todos são performers, deixando de existir o espectador propriamente dito. O local, então, não precisa ser limitado e distinto. Quem não pode participar – os não iniciados – não adentra o lugar do ritual. Uma vez derrubados os limites impostos por esta convenção, novas possibilidades de relação entre cena e público emergem. O contato físico entre atores e espectadores torna-se permitido. A intensidade da voz, da atuação pode variar radicalmente, assim como um senso de experiência compartilhada engendra-se. Cada cena pode criar seu próprio espaço, incorporando as mais diversas áreas e os mais inusitados lugares. “A ação ‘respira’ e o público torna-se um grande elemento cênico” (SCHECHNER, 1994, p. XXIX). Esta troca constante de lugar entre artistas e público, tornando opaco o limite de separação entre ambos como categorias, bem como a apropriação do espaço de forma mais ampla, total, por ambos os grupos tem influência direta do uso e das relações que se estabelecem na rua, berço da vida cotidiana. Este é marcado pelo intercâmbio e migração de espaços e pelo movimento constante. O teatro ambiental rejeita o uso do espaço como no teatro clássico, buscando definições mais orgânicas e dinâmicas do espaço. Todo o espaço do teatro é incluído, não somente o palco. É a completude e a infinitude dos espaços que constituem a base do design do teatro ambiental. Segundo Schechner:

The first scenic principle of environmental theater is to create and use whole spaces. Literally spheres of spaces, spaces within spaces, spaces which contain, or envelop, or relate, or touch all the areas where the audience is and/or the performers perform. All spaces are actively involved in all the aspects of the performance. If some spaces are used just for performing, this is not due to a predetermination of convention or architecture but because the particular production being worked on needs space organized that way. And the theater itself is part of larger environments outside the theater. These larger out-of-the-theater spaces are the life of the city; and also temporal-historical spaces – modalities of time/space (1994, p.2)7.

7“O primeiro princípio cênico do teatro ambiental é criar e usar espaços completos. Literalmente esferas de espaços, espaços dentro de espaços, espaços que contam, que evoluem ou relacionam ou tocam todas as áreas em que estão o público e ou que os atores interpretam. Todos os espaços estão envolvidos ativamente em todos os aspectos da representação. Se alguns espaços são utilizados exclusivamente para a representação, não se deve a uma pré-determinação convencional ou arquitetônica, mas sim no sentido que a produção específica em que se está trabalhando necessita que o espaço esteja organizado desta maneira. E o teatro mesmo é parte de outros ambientes maiores que estão fora do teatro. Esses espaços maiores fora-do-teatro são a vida da cidade, e também espaços temporal-históricos – modalidades de espaço tempo” (Tradução nossa)

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Para Donald M. Kaplan8 (apud SCHECHNER, 1994, p.18), a arquitetura do edifício teatro é como uma boca que mastiga e envia o alimento para o estômago digerir. A boca seria o palco e a platéia este estômago ávido por alimento. Ao colocar todos no palco, o teatro ambiental subverte esta dicotomia. Os espectadores têm de buscar sua satisfação por conta própria, assim como os atores. Esta redução de limites não conduz a um envolvimento mais profundo, nem a uma fagocitose do espectador, mas a uma espécie de experiência de dentro-e-fora permanente. O teatro clássico atrai todas as atenções para o palco e o espectador desaparece, a quarta parede isola o ator das possíveis reações da platéia que se ratifica como espectadora, que vê à distância. No teatro ambiental é difícil um espectador assistir a uma cena sem deixar de ver outros espectadores, que acabam tornando-se parte da ação. Desta forma, o espectador passa a assumir uma postura mais ativa diante do espetáculo. A relação entre cena e público no teatro praticado por Schechner é dinâmica, às vezes o público aproxima-se da cena e nela mergulha, enquanto em determinados momentos está distante. Esta dinâmica imprime um ritmo diferente à peça e causa certo estranhamento naqueles acostumados ao teatro clássico tradicional. Além disso, o teatro ambiental não busca criar espaços ilusórios, busca, sim, espaços funcionais que serão utilizados por diferentes indivíduos que não se limitam aos atores. A preocupação com os efeitos de ilusão é mínima, deve-se atentar mais com a estrutura e o uso do espaço, mais com o que funciona do que com o que parece. A cenografia tradicional tem fundamento bidimensional, enquanto o design do teatro ambiental é estritamente tridimensional. Se algo existe, deve funcionar correta e adequadamente. Segundo as relações estabelecidas entre os atores, espectadores, texto e espaço, Schechner caracteriza o teatro ambiental como um momento em que público e performers se misturam e os estímulos são constantemente provocados por todas as partes. As relações estáticas e predominantemente visuais reduzem-se e o dinamismo torna-se a tônica. O espaço é considerado de forma mais ampla. “O uso ambiental do espaço é fundamentalmente colaborativo, a ação flui em várias direções sustentada apenas pela cooperação entre performers e espectadores” (SCHECHNER, 1994, p.39). Ao analisar alguns exemplos do teatro de diferentes culturas e épocas históricas da civilização, como por exemplo, o egípcio, o grego, o balinês, o mexicano e o de Nova Guiné, Richard Schechner, em sua obra Environmental Theater (1994), apresenta uma concepção ampliada do que constitui o espaço cênico. Por mais que este possa ser compreendido como um determinado

8 KAPLAN, Donald M. Theatre architecture: a derivation of the primal cavity. TDR, [S.l.], v. 12, n. 3, p. 105 – 116.

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lugar onde a representação se dá, alguns condicionantes fundamentais impedem que esta definição aparentemente simples possa ser não menos complexa. Quando define os seis axiomas do teatro ambiental, Schechner (1994, XX) propõe uma demarcação teórica que estabelece claramente as relações entre o teatro e a vida. A tensão existente na aproximação entre essas duas instâncias define aspectos que caracterizam várias das artes performáticas. Os deslocamentos de tempo e de espaço dentro desta relação entre o ordinário da vida cotidiana e o extraordinário do teatro constituem operadores chave para compreensão da concepção do espaço cênico. Outro elemento fundamental apontado por Schechner (1994, 19-20) é o corpo. Este promove relações com o espaço as quais definem o sentido do mesmo. O corpo estabelece a escala do evento e se consolida como um eixo gerador da apropriação espacial. Associado a fundamentos históricos e culturais, o corpo, para Schechner (1994,19-20) esclarece qual é o campo de ação espacial de um determinado evento. O teatro ambiental de Schechner (1994) apresenta o conceito de found-place – lugar encontrado ou descoberto. O lugar encontrado difere-se do transformado uma vez que este considera a neutralidade do espaço como fundamento para o seu processo de transformação. O lugar encontrado tangencia a concepção de teatralidade do espaço que remete à experiência poética, pois no encontro com o lugar faz-se necessária uma negociação com os elementos que compõem o ambiente, no intuito de potencializá-los em suas características para contribuírem com o incremento da cena. Grande parte dos lugares encontrados é outdoor, em ruas, em edifícios públicos, onde o desafio é reconhecer o ambiente e tratá-lo criativamente. O que diferencia o teatro ambiental do proposto pelo teatro urbano é que este se funda em um contexto específico - a cidade. Por outro lado, o teatro proposto por Schechner apresenta outras proposições além do urbano. Os sites são tomados de forma não necessariamente específica como no teatro urbano. Tanto as propostas de Schechner, como as de Grotowski e outros encenadores destacam a importância do espaço na concepção das suas idéias de teatro, entretanto, a forma com que este espaço é abordado pode não ser tão específica quanto ao que o teatro urbano o faz. Este introduz a carga semântica do site como um dos elementos do jogo, tornando-o participante ativo.

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O conceito de teatralidade apresenta variações. Pode ser entendido como sendo uma transcendência artística ou como algo do cotidiano, do modo de vida banal. Aquela vertente situa a expressão humana como um recorte da vida, como compreensão e suspensão desta, ainda que com a vida se misture. Enquanto a outra busca introduzir na vida conceitos teatrais no intuito de se estabelecer um bojo teórico e conceitual para a compreensão da vida social. A escolha de um site para o acontecimento de um evento e, por conseguinte, o estabelecimento do que vem a ser a teatralidade de um determinado espaço urbano revela-se como um processo de aprofundamento nos aspectos semânticos do espaço. Ao estabelecer uma relação com o público, este site specific amplia e potencializa sua condição existencial, definindo a experiência do indivíduo como “descoberta das invisibilidades, como potencialização radical da atividade simbólica” (KOSOVSKI, 2000, p.92). Conforme afirmado anteriormente, a busca pelo espaço urbano como site specific do evento cênico parte do princípio da existência de um sentido próprio daquele determinado espaço, afastando qualquer possibilidade de existência de uma condição de neutralidade e isonomia deste. O sentido emanado do espaço é o ponto nevrálgico de aproximação entre os elementos que constituirão o evento em questão. Na implantação do site de um evento utiliza-se o sentido que emerge do espaço urbano para a produção do espaço cênico, que enriquecerá a experiência do jogo que o teatro urbano propõe. À medida que se dá o acontecimento e os elementos em jogo estabelecem diálogo, o espaço é experimentado das mais variadas maneiras. Dentro do jogo que é o evento cênico no teatro urbano, este espaço vivido, carregado de sentidos e significações, de alguma forma referenciado e vinculado a uma heterocronia torna-se um lugar. A teatralidade pode ser entendida como uma espécie de estranhamento quando é fruto de um deslocamento de sentido capaz de gerar uma tensão sobre a experiência anterior do espaço em questão. Este deslocamento produz uma abertura no real que é subvertido pela inserção de aspectos diferenciados que geram o inusitado ou mesmo o duvidoso. A partir da experiência habitual e ordinária do indivíduo em um determinado espaço, a teatralidade como este estranhamento opera como um produto do diálogo entre o que é verossímil e o que é falso. O fundamento do conceito do que vem a ser a teatralidade como estranhamento aproxima-se da idéia do “efeito de distanciamento” proposto por Brecht, contudo, às avessas rebatida contra si

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mesma gerando um efeito contrário ao que propusera o encenador alemão. Por outro lado, a teatralidade pode ser entendida do ponto de vista do espetacular, onde o teatral é algo extraordinário. O ambiente urbano pode ser percebido por dois ângulos. Um deles seria através de uma teatralidade espetacular, capaz de elevar o fantástico do real, explorando o monumental, os movimentos da cidade e o discurso unilateral da sedução. Enquanto o outro ângulo seria através de uma teatralidade como estranhamento, que parte de uma fricção da realidade, capaz de alterar o foco da experiência que se sustenta através de um diálogo entre indivíduo e espaço, introduzindo um processo reflexivo. Percebe-se que o espetacular induz a uma escala de ordem tal que minimiza o humano, enquanto o estranhamento equivale-se à escala humana para estabelecer uma condição de existência. Portanto, a compreensão e a busca por maneiras inovadoras de estabelecimento das relações entre o indivíduo e o espaço caracterizam a produção e o pensamento sobre o teatro no pós 2ª Guerra, principalmente a partir da década de 60. Busca-se o entendimento do que vem a ser o teatro para cada encenador e não mais uma idéia universal de que ele pode ser. Tanto Grotowski quanto Schechner, nesta busca, perceberam a relevância do espaço como elemento essencial para a construção da personagem, cada qual à sua maneira. O espaço cênico deixa de ser um suporte e um elemento acessório, predominantemente vinculado à contemplação e torna-se um espaço da ação. Um espaço que acontece juntamente com o evento, que dialoga com os atores e com o público durante um determinado período de tempo. Na trilha aberta por artistas como Artaud e Brecht, consolidada por figuras como Grotowski, Schechner e outros, o teatro abre para outras possibilidades e envereda por novos caminhos. Pensar a cenografia e a arquitetura teatral torna-se uma tarefa cada vez mais complexa, porém rica. Neste momento, em meados do século XX, assiste-se as mais variadas experiências de concepção do lugar teatral. O palco italiano é questionado total ou parcialmente, seja por modificações no espaço interno do edifício teatro, seja descaracterizando a prática tradicional, sem prender-se às limitações ou mesmo promovendo a explosão deste tipo de estrutura. O espetáculo consegue desprender-se das amarras que o teatro à italiana bem como suas práticas impunham. Isto contribui, de sobremaneira, para que a estrutura tradicional pudesse atualizar-se

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e continuar sendo utilizada, convivendo com as novas propostas que emergiam e se consolidavam, tais como o teatro urbano e o teatro de rua renovado. Pensar o espaço cênico tornava-se um exercício cada vez mais complexo à medida que as novas propostas de arquitetura teatral e cenografia surgiam. Os paradigmas que norteavam a produção do espaço teatral e o arquitetônico atualizaram-se e deixava-se de pensá-los como um lugar da contemplação. Assim como Artaud, Brecht, Grotowski e outros propuseram, o espaço passa por uma reconfiguração no intuito de trabalhar de forma mais íntima e profunda a relação entre cena e público. Dois exemplos de possíveis rumos que essas propostas e discussões podem tomar são os projetos para o Teatro Oficina e para o Fun Palace.

3.5. Teatro Oficina O Teatro Oficina (FIG 10), sede do homônimo grupo dirigido por José Celso Martinez Correa, constitui um outro exemplo de arquitetura teatral que busca uma consonância com as concepções de espaço cênico contemporâneas e, neste caso, promovidas pelo grupo. Pelos idos de 1958, um grupo de estudantes universitários aluga um antigo teatro para instalar sua companhia teatral. A primeira reforma seguiu o projeto do engenheiro arquiteto Joaquim Guedes que dispunha duas platéias frente a frente, separadas pelo palco central, configurando um layout tipo “sanduíche”. Esta primeira fase perdurou até que um incêndio destruiu o prédio. O projeto de reconstrução do teatro ficou a cargo dos arquitetos Flávio Império e Rodrigo Lefevre que dispuseram a platéia em uma arquibancada de concreto com acessos laterais e o palco, de tipo italiano, possuía um circulo central giratório, criando uma nova configuração para o teatro, bastante distinta da original. A situação político-econômica do país, ocupações irregulares e uma disputa legal levou o edifício às ruínas. Com a solução dos problemas e o tombamento do edifício pelo Patrimônio Público do Estado de São Paulo, deu-se início ao reerguimento do Teatro Oficina. Desta vez o projeto ficara a cargo da arquiteta Lina Bo Bardi e equipe. O conceito norteador do projeto era a idéia de rua. A forma definitiva compõe-se de um palco longitudinal, uma grande passarela, com trechos em rampa, que atravessa todo o prédio, margeado pela platéia, que se dispõe em andares de galerias construídas com tubos desmontáveis, semelhantes a andaimes. Nesta “avenida” encontram-se os quatro elementos, considerados imprescindíveis por José Celso, representados por uma bica de fogo abastecida com gás no

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centro geométrico do teatro; uma cascata alimentada por sete tubos aparentes remetia ao elemento água; enquanto uma clarabóia retrátil contemplava o elemento ar; por fim, um jardim embaixo da clarabóia dava cabo dos demais elementos, segundo descrição de Elito (2000, p. 14). A metáfora da rua demonstra um processo de concepção de projeto arquitetônico extremamente próximo das idéias de espaço cênico propostas pelo Oficina. O trabalho do teatro Oficina possui fundamento dionisíaco e tem fortes influências das idéias do encenador francês Antonin Artaud, isto se torna ainda mais enfático depois do contato com o trabalho do grupo inglês Living Theatre. Busca-se uma transformação do ser humano através do mítico do teatro, onde se aborda o indivíduo pela psiché, pela “possessão”, segundo José Celso (KOSOVSKI, 2000, p.171) e não pelas vias da razão, tão somente. Para tal incorporação é fundamental a aproximação entre cena e público, um contato real entre ambos. No ritual, todos participam do evento e não existe uma separação entre os que assistem e os que tomam contato com as entidades, pois todos são participadores, ativos. Certamente o espaço, fora do contexto sagrado do ritual, em que todos se relacionam e participam ativamente é a rua. A rua promove aproximações, a dinâmica espaço-temporal torna-se o meio no qual as relações entre homens acontece. O Oficina funda seu teatro neste simbolismo, nesta emoção e no desejo de contato físico com o outro, buscando uma linguagem que aproxima as raízes da cultura brasileira com as informações provenientes do mundo, rompendo cânones e derrubando dogmas, uma atitude bem própria de seu tempo. No caso do Teatro Oficina constata-se uma combinação orgânica entre o espaço cênico e a arquitetura teatral, capaz de proporcionar uma experiência renovada no que tange a relação entre cena e público e que, em certa medida, modifica a própria concepção do evento. Uma tensão dialógica permanente assume o espaço e determina novos vetores de apropriação dos espaços e abre possibilidades para experiências diferenciadas entre indivíduos, lugares e temporalidades. José Celso Martinez Correa compreende bem qual a relação que o teatro do Oficina estabelece com a cidade, neste caso, a metrópole que é a capital paulista:

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O projeto de Teatro Oficina é uma pequena parte de um projeto maior [...] o objetivo é criar uma praça cultural no centro da cidade, é a agora, do nome das assembléias e dos mercados gregos. O nosso objetivo é explodir a consciência da cidade, e também do público, que tem poder para interferir sobre os que têm poder na cidade (KOSOVSKI, 2000, p.172-173).

Apesar de conformado em um edifício, o Teatro Oficina é muito mais próximo da rua e isso repercute na arquitetura de sua sede. A rua como experiência ontológica onde o evento, com inscrição do extraordinário no ordinário do cotidiano, promove uma nova dinâmica na vida extraindo do seu próprio substrato a matéria prima para a reflexão, para a incorporação e para a transformação dos sentidos e das sensibilidades do espaço e do próprio indivíduo. Ao se usar a rua como metáfora norteadora do projeto arquitetônico para o teatro Oficina, muda-se o paradigma fundamental para a concepção do espaço. Este deixa de ser calcado em uma experiência predominantemente visual, onde o que se enfatiza é a contemplação, para adentrar-se na esfera da ação. A rua é o espaço onde é possível encontrar-se o Outro e este encontro é essencial para a construção do sujeito, do eu. Somente no diálogo dinâmico entre o eu e o Outro que é possível realizar-se como este sujeito. Se esta existência dá-se no diálogo, ela não pode ser considerada estática, é um processo. Processo este que amadurece a medida que se estabelecem mais diálogos. O edifício, então, deixa de ser apenas um invólucro, um abrigo para as pessoas e torna-se, efetivamente, um espaço promotor de encontros. Seja o encontro com os outros indivíduos, seja o encontro do ator com a personagem. O espaço arquitetônico do teatro, que se tornará o espaço cênico no evento, proporcionará uma vivência diferenciada da ocasião. Neste caso, tanto a arquitetura quanto o teatro tornam-se espaços ao redor de um sujeito. A experiência dá-se em um acontecimento e não simplesmente no fato de se estar naquele espaço. Sem o deslocamento, sem os encontros e desencontros o espaço não se torna um lugar, o lugar teatral, nem contribui para que o indivíduo torne-se um sujeito e o ator o personagem. A arquitetura do Oficina não é mutante e polivalente, mas contribui fundamentalmente para a montagem da cena e para a experiência do público. Define as formas de relação entre a cena e o público bem aos moldes dos espaços pensados por encenadores como Grotowski e

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Schechner. Além disso, estabelece um diálogo particular com o urbano a partir do momento em que transpõe uma das experiências da rua para o lugar teatral.

3.6. Fun Palace O projeto do Fun Palace (FIG 11), desenvolvido pelo arquiteto britânico Cedric Price, constitui um outro exemplo de arquitetura teatral que investiga possibilidades diferenciadas de relação entre a cena, o espaço e o público. O projeto é fruto de uma parceria entre o arquiteto e a encenadora Joan Littlewood cuja obra buscava uma postura de vanguarda, desenvolvendo propostas de caráter investigativo que agregassem outros pontos de vista na produção cênica de sua época. A demanda de Littlewood era por um edifício teatro diferente, que não fosse compartimentado em áreas distintas destinadas especificamente ao público, à cena e aos atores. A proposta consistia em um espaço de pura ação e fluidez, onde o público pudesse experimentar as transformações dinâmicas do espaço não somente como espectador passivo, mas como ator das mesmas. O edifício, desta forma, torna-se um espaço de improviso cuja dinamicidade potencializava a participação real de todos envolvidos em um determinado evento. Para atender a tal solicitação, Price propôs um edifício cujo programa de atividades era aberto e a forma indeterminada. A arquitetura não imporia um uso e uma postura, pelo contrário, seria processual e adquiriria a configuração física e função necessárias a cada momento específico. Portanto, o Fun Palace caracterizar-se-ia por uma prática não convencional de concepção e desenvolvimento do projeto arquitetônico. Sua influência direta reside em muitas das correntes de pensamento de sua época que se baseavam nas noções de incerteza, de modelagem espontânea, indeterminação e randomização de códigos, tão presentes nas ciências e nas artes de maneira geral e nas artes cênicas especificamente. Price propôs um edifício em estrutura metálica cujas partes constituintes – paredes, teto, escadas, plataformas etc – seriam estruturas pré-fabricadas que seriam montadas com o auxílio de guindastes, possibilitando que todas as partes fossem variáveis. A estrutura seria capaz de abrigar os mais diferentes usos com as mais inusitadas formas, seja um teatro, um restaurante ou um cinema, oficinas, arena, desde que deslocadas e rearranjadas as partes. O Fun Palace, desta forma, não era somente um teatro, era um complexo de entretenimento cujo objetivo era o

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acesso de boa parte da população para desfrute do espaço. Entretanto, tal edifício permaneceu no projeto. O projeto do Fun Palace pode ser analisado por várias áreas do conhecimento, segundo vários pontos de vista, pois sua complexidade é fruto de um pensamento que aborda múltiplas esferas cognitivas, conjugando cibernética, computação, mecânica, sociologia, física, dentre outras áreas em um objeto arquitetônico. Contudo, para este estudo, o mais relevante é a abordagem que diz respeito ao espaço e, em certa medida, às relações estabelecidas entre a forma e função do edifício. A arquitetura teatral do Fun Palace trabalha segundo um paradigma diferenciado do que normalmente se concebe entorno da idéia de edifício e isso repercute sensivelmente na constituição do espaço cênico que com ele se relacionará. A noção de público ativo, participador ultrapassa o espaço-tempo do evento em si e amplia-se para o edifício elevando exponencialmente o diálogo que se estabelece entre cena e público. A indeterminação da configuração espacial arquitetônica abre para possibilidades inusitadas de apropriação do espaço pelo artista e, conseqüentemente, de múltiplas relações entre o evento e o espectador que, conforme referido anteriormente, deixa de ser passivo. A participação do público ocorre nos mais variados níveis, pois se ele não faz algo, verá alguém fazendo e estabelecendo uma dinâmica diferenciada no espaço, a flexibilidade da arquitetura reduz o determinismo da experiência do indivíduo no espaço. O edifício torna-se uma espécie de interface que dialoga constante e simultaneamente com o artista e com o público na definição de um espaço para o evento, sendo que este alterará a própria arquitetura à medida que se fizer necessária. O Fun Palace não é um edifício de forma fechada, é um processo que amplia as formas de se lidar com o espaço seja do ponto de vista funcional, como mesmo do ponto de vista estético e por que não do poético. Se comparado ao Teatro Total de Gropius, o Fun Palace não determina a forma como o espectador experimentará o evento. No projeto de Gropius, por mais que os arranjos da platéia mudem, a maneira com que o espectador experimenta o evento continua a mesma. No Fun Palace não existe uma indicação clara deste tipo de determinação. A princípio, pode-se pensar em diversas formas de relação entre a cena e o público e a participação deste não depende

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exclusivamente do artista como é o caso do Teatro Oficina. Este parte de uma forma de relação entre espectador e espetáculo que é fixa com uma abertura para a mudança, mas que depende da iniciativa do público. Ao poder definir o espaço no Fun Palace, o público tem liberdade para estabelecer as mais variadas formas de relação com a cena. Entretanto, vale ressaltar, que o projeto de Cedric Price de fato funciona se o público compreender as regras do jogo e se dispuser a jogá-lo. Do contrário, o potencial não explorado torna-se um grande entrave. Tudo ficará dependendo da posição assumida pelo artista, que poderá impor alguma solução e aproximar-se do que é colocado no teatro tradicional, ou explorar possibilidades impares, que desencadeiem um diálogo mais aprofundado com o público na produção do espaço cênico. Conforme colocado anteriormente, a discussão sobre as relações entre o espaço urbano e o espaço cênico, baseadas nas limitações impostas pela arquitetura teatral recorrente na constituição do espaço cênico por artistas contemporâneos, ainda é dispersa. Apesar disso, reunindo-se os fragmentos, é possível vislumbrar em que estágio a discussão encontra-se. As questões históricas de superação da estrutura do palco italiano, bem como seus aspectos conceituais e estéticos já foram abordados de forma ampla. A compreensão dos caminhos de migração do edifício institucionalizado para outros lugares tem sido encarada como um dos principais focos dos estudos, carecendo ainda de um maior aprofundamento em conceitos que emergem da investigação pormenorizada de exemplos práticos desta abordagem. A arquitetura teatral fruto de uma concepção contemporânea de espaço cênico ainda é pouco investigada no plano teórico, contudo apresenta exemplos singulares bastante ilustrativos e que abrem uma perspectiva interessante de pesquisa. As relações entre o espaço urbano e o espaço cênico na constituição deste constituem um vasto campo a ser investigado já que as abordagens são inúmeras e a compreensão destas na constituição de paisagens urbanas tem se mostrado um frutífero eixo de reflexão e criação. Estas experiências inovadoras resgataram a flexibilidade do espaço e consolidaram a ampliação do lugar teatral, que se incrementa em um sem número de variações, os limites passam a ser determinados pela imaginação de quem concebe estes espaços. Este caminho consolidado continua a ser trilhado nos dias atuais, que se configuram como um terceiro momento desta busca pela ampliação do lugar teatral e do (re)pensar e (re)articular o espaço cênico como um elemento ativo no fazer teatral. Neste momento, nos dias atuais, o que ainda era alternativo e

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pouco conhecido torna-se uma linguagem bem mais compreendida e acabada, onde a experimentação predomina e se busca os limites do processo, havendo, conseqüentemente, um considerável incremento na qualidade dos produtos finais. A Opera Transatlântica, Robert Wilson, os trabalhos do Teatro da Vertigem, bem como todos os experimentadores da vertente do Work in Progress constituem ótimos exemplos deste momento.

3.7. A produção do espaço cênico contemporâneo Hans-Thies Lehmann, em Postdramatic Theatre9 (2006), investiga novas formas teatrais que se desenvolveram principalmente a partir da década de 1960. Formas estas caracterizadas pela diversidade, mas que possuem em comum a criação de um evento em que o texto dramático não se constitui o seu elemento principal. Lehmann considera que as novas relações estabelecidas entre a dramaturgia e o evento advêm de uma resposta aos estímulos provocados pelas novas tecnologias que deslocam a cultura de um modelo calcado no texto para outro baseado nas novas mídias da imagem e do som. Partindo de uma abordagem teórica fundada em nomes como Aristóteles, Hegel, Brecht a Barthes, Lyotard a Schechner, Lehmann analisa o trabalho de vários artistas contemporâneos cuja tônica é a experimentação em busca de uma linguagem mais adequada aos novos tempos. Ao estabelecer as características do espaço cênico pós-dramático, Lehmann afirma que o teatro clássico (no seu caso, teatro dramático) prefere um espaço de dimensões medianas. Os espaços de grandes dimensões e os espaços menores, mais íntimos, comprometem a estrutura fundamental do teatro clássico. Este se baseia na empatia e reconhecimento do público com aquilo que se passa na cena. Para tanto a escala empreendida na constituição do espaço cênico deve referir-se à escala da vida e do mundo cotidiano real para que se estabeleça uma coerência e uma correspondência exatas para que a transmissão simbólica e semântica ocorra. Um teatro que não se baseie nestes princípios e onde a proximidade física dos entes envolvidos é o fundamento da percepção buscará reduzir as distâncias e implementará uma linguagem mais abstrata. À medida que se reduz a distância entre o espectador e o artista tanto na ordem física

9 A caracterização do que vem a ser o teatro contemporâneo receberá os mais diversos títulos. Lehmann cognominará Teatro Pós-Dramático, enquanto outros contestarão tal termo, uma vez que faz uma referência a uma superação. Josette Féral, por exemplo, afirma que o teatro contemporâneo não supera alguma coisa, ele é outra coisa, neste sentido ela utiliza o termo teatro performativo. Apesar de a discussão ser interessante, não se configura no objetivo deste trabalho. Faz-se a referência no intuito de constatar a sua existência e a necessidade de relevá-la.

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quanto psicológica, tornando opacos os significados figurativos imediatos, o teatro, para Lehmann adquire uma nova conotação. Do espaço emerge uma tensão de dinâmica centrípeta e a experiência do evento assume um caráter de compartilhamento de “energias”. No outro extremo, espaços de dimensões amplas, empreende-se uma dinâmica centrífuga em que a percepção do todo é indeterminada pelas enormes proporções dos elementos ou pela presença de ações simultâneas que acontecem em diferentes pontos. O espectador assumirá diferentes graus de participação no evento, tornando-se mais ou menos ativo dependendo do estímulo provocado. Segundo Lehmann, o espaço cênico deixa de ser metafórico, que se fundamenta em uma relação de semelhança entre o sentido do espaço real e o do figurativo do espaço cênico, para apresentar-se como metonímico:

The rethorical figure of metonymy creates the relationship and equivalence between two givens by means of letting one part stand in for the whole (pars pro toto: he’s a bright mind) or by using an external connection (e.g. Washington denies…). In this sense of a relationship of metonymy or contiguity, we can call a scenic space metonymic if it is not primarily definied as symbolically standing in for another fictive world but is instead highlighted as a part and continuation of the real theatre space (LEHMANN, 2006, p.151)10.

O teatro pós-dramático que acontece no edifício teatro busca trabalhar o espaço de maneiras diferenciadas baseando-se nesta idéia de metonímia que se refere a algo, mas, em certa medida, tem um elemento real como ponto de partida. Lehmann busca nas artes visuais o termo que caracteriza os eventos que ocorrem fora do teatro convencional, estes são cognominados site specific theatre. Neste caso, busca-se para o evento uma arquitetura diferente, ou melhor, um site specific que se constitua um espaço que remeta a alguma idéia.

When a factory floor, an electric power station or a junkyard is being performed in, a new ‘aesthetic gaze’ is cast onto them. The space presents itself. It becomes a co-player without having a definite significance. It is not

10 “A figura retórica da metonímia cria o relacionamento e a equivalência entre dois sentidos substituindo uma parte pelo todo (pars pro toto: ele é uma mente brilhante) ou usando uma conexão externa (por exemplo, Washington nega…). Neste sentido de uma relação metonímica ou de contigüidade, que podemos chamar um espaço cênico de metonímico se não for primariamente definido como substituído simbolicamente por um outro mundo ficcional, mas é ao contrário destacado como uma parte e continuação do espaço real do teatro”. (Tradução nossa).

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dressed up but made visible. The spectators, too, however, are co-players in such a situation. What is namely staged through site specific theatre is also a level of commonality between performers and spectators (LEHMANN, 2006 p. 152)11

Para Lehmann, no site specific theatre, artistas e público comungam de uma situação similar: ambos são como convidados do mesmo espaço. Todos são estranhos ao universo de uma fábrica, por exemplo, e não existe intimidade entre os que se apropriam do espaço muito menos dos que assistem ao evento. O autor coloca que um razoável contingente de artistas trabalha na “reativação de espaços públicos”, que pode ser realizada de diferentes formas. O teatro desloca-se de seu centro exclusivo no edifício clássico e abre-se a espaços heterogêneos, espaços cotidianos que definem um espectro que vai desde a caixa preta, o palco emoldurado à realidade “não emoldurada” do dia-a-dia que de certa forma definem, acentuam, alienam ou redefinem cenicamente um espaço. Com um discurso boa parte coincidente com o de Hans-Thies Lehmann, Renato Cohen, em sua obra Work in Progress na cena contemporânea (2004), apresenta alguns dos princípios fundamentais da produção cênica atual, a partir da idéia de uma cena em processo que é articulada por inúmeros operadores. Para Cohen, a formalização, a concretização da encenação é a etapa de “fechamento” do processo. Esta, em certa medida, perpassa por questões de representação e, principalmente, de convenção. Tradicionalmente ter-se-ia neste momento uma separação clara entre os contextos da arte e da vida com a criação de universos distintos. No entanto, na produção contemporânea, uma das premissas é a busca pela supressão destes limites, subvertendo a ordem estabelecida e inserindo ambigüidade de contextos, superpondo esferas. Esta aproximação entre real e ficcional introduz uma outra variável – o imprevisto, o acaso – que abre ainda mais a obra e aprofunda o aspecto processual, tornando as relações de interdependência entre as esferas ainda maior, gerando um híbrido que só possui um sentido pleno se conjugadas as partes componentes. A encenação funda-se na justaposição de elementos atuantes diversos e na sua

11 “Quando uma fábrica piso, uma central elétrica ou de um junkyard está sendo realizada, um novo ‘olhar estético’ é moldado para eles. O espaço apresenta-se. Torna-se um co-jogador sem ter um significado concreto. Não é vestir-se, mas tornado visível. Os espectadores, também, no entanto, são co-jogadores em tal situação. O que é especificamente encenado através do teatro site specific é também um nível de comunhão entre atores e espectadores”. (Tradução nossa).

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espacialização, constituindo uma topologia própria onde os processos de constituição das tramas de sentidos e significados destes elementos acontecem, conformando um espaço cênico polissêmico. A experimentação dos sentidos presentes no espaço ocorre das mais variadas maneiras, pois está permanentemente vinculada à relação estabelecida entre o espectador e o evento, de certa forma não deixa de ser intencional, contudo é essencialmente arbitrária e em alguns casos ambígua.

Pavis destaca o fluxo, a dinâmica e a mutabilidade das significações na operação cênica, a partir de operações de condensação (metáfora) e deslocamento (metonímia) de signos, introduzindo o receptor numa cognição ambivalente que extrapola o nível do discurso verbal ou da Gestalt das imagens aparentes ( COHEN, 2004, p. 99).

Para Cohen, a cena contemporânea eleva o efeito de estranhamento a níveis inimagináveis que, ao invés de eliminar a teatralidade, produz um efeito em sentido contrário, ampliando as possibilidades de introdução de elementos outros que tornam complexas as noções de determinação do que vem a ser real e teatral. Partindo do princípio de que a realidade do mundo contemporâneo encontra-se profundamente contaminada pelo ficcional e espetacular e, com isso, confundem-se as suas definições, Renato Cohen (2004), na trilha de Baudrillard constata que o caráter de representação do teatro abrevia-se. Baseado em experimentações das artes plásticas e em conceitos da arquitetura moderna de uso do espaço público, propõe-se uma cena do deslocamento dos espaços tradicionais à objetividade artística para a apropriação de contextos cotidianos e do espaço urbano. Partindo-se do “efeito de espetacularidade do mundo e do espelhamento da artisticidade enquanto olhar estetizante”, define-se o que Cohen chama de “teatro do environment”. Os artistas que migram do edifício teatro para espaços poligonais “alternativos” alteram contextos e introduzem novas possibilidades de experimentação, leitura e participação do público nestes espaços. As relações clássicas de representação são subvertidas e a separação entre cena e público, antes estática, dinamiza-se, por vezes desaparece, inserindo o espectador dentro da quarta parede e aumentando sensivelmente os aspectos da teatralidade. Abandona-se a contemplação distanciada como fundamento da recepção e o público torna-se participador (co-autor) do evento na medida em que assume uma postura mais ativa, experimentando e, em alguns casos, confrontando-se com a cena.

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Nessa reterritorialização, o teatro do environment, justapondo “pedaços de realidade” com metáforas sígnicas, persegue outras transposições (numa luta com o paradoxo da representação) e propõe outras aproximações no limiar arte/vida (COHEN, 2004, p.103).

A cena work in progress (que coincide com a pós-dramática de Lehmann) apresenta várias opções de uso dos espaços na constituição de uma ambiência cênica, uma delas, como afirmado anteriormente, é a apropriação de espaços públicos, da vida cotidiana. Lidar com estes espaços no processo de definição da cena exige um intenso exercício semântico no intuito de definir como o espaço apropriado atuará no todo do evento. Pode apresentar-se como um personagem, ativo e emanando um significado intrínseco ao discurso do evento, ou passivo, como um suporte que abriga a ação, tornando-se um adjunto que incrementa substancialmente o acontecimento. Difícil, ao decidir-se por um site specific, é abordá-lo na tentativa de busca por uma neutralidade. O sentido preexistente de um determinado lugar torna-o potencialmente um agente contaminador daquilo que se pretende introduzir como novo. A tensão que emerge deste debate é substrato concentrado para operações semânticas dialógicas entre espaço, artista, público e evento. Ao migrar-se para espaços poligonais, o artista deveria levar em consideração o acaso, o imprevisto, como elemento de potencialidade a ser investigada e como recurso relevante de caracterização do construto do espaço cênico. A complexidade do mundo real atinge níveis inimagináveis, os avanços científicos e tecnológicos mudam consideravelmente as formas de compreender o mundo. As noções de espaço, tempo e presença alteram-se e os conceitos de real e ficcional confundem-se. Diante desta realidade e no intuito de atender as novas demandas, a arte, a arquitetura, bem como o teatro caracterizam-se pela diversidade e pela interdisciplinaridade. Como já fora afirmando anteriormente, o Teatro deve distanciar-se criticamente da tradição para que consiga incorporar os novos conceitos que emergem nos novos tempos. Neste caso, a ampliação do lugar teatral torna-se um terreno fértil para exploração de outros limites que incrementem a investigação do espaço cênico.

Em relação à localização, fisicalização do espaço-tempo da encenação, podemos nomear uma cena do deslocamento – o teatro do environment – apropriação do espaço urbano, dos contextos cotidianos, a partir do efeito da espetacularidade do mundo e do espalhamento da artisticidade enquanto olhar estetizante (COHEN, 2004, p. 101).

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Os artistas e grupos que buscam esta nova relação entre o espaço e o evento não utilizam os espaços institucionais, buscam espaços alternativos, ou mesmo a rua para a montagem dos eventos. O teatro dialoga com a cidade, onde se estabelece uma relação mais íntima com o espaço urbano, e deixa de ser somente ao ar livre, onde apenas se transpõe uma estrutura tradicional para fora do edifício carregando consigo todas as estruturas e demandas. O espaço urbano estabelece um diálogo com o eixo conceitual do espetáculo para a construção do espaço cênico. Compreende-se que a relação estabelecida entre o homem e a natureza havia sofrido profundas mudanças e que a concepção da cena deveria revelar consonância com esta realidade. A efemeridade do tempo na qual estava mergulhado pressupunha um cenário dinâmico. Como afirma Bornheim (1992, p. 296): “A um mundo que se transforma de modo tão rápido e radical como o nosso, deve corresponder também uma nova concepção da cenografia”. Para a realização de tamanho empreendimento, o papel do cenógrafo tem de ser revisto e uma nova dimensão deste trabalho deve ser proposta. O cenógrafo deixa de ser o decorador, subordinado às solicitações de seus superiores, não é mais somente um técnico que executa uma idéia. Além disso, deixa de ser o materializador da visão do artista, o criador de um espaço que sirva de condutor de uma situação, de sugestão de uma idéia. Emerge o conceito de construtor de cena, o arquiteto cênico (Buhnenbauer em Brecht), cuja tarefa, segundo Bornheim (1992, p. 294) é a “construção em profundidade”. O arquiteto cênico trabalhará não só o cenário, ou o palco, mas o lugar teatral que, pode ser a sala, bem como o edifício teatro como um todo, a praça, a rua. O arquiteto cênico vai gozar de uma grande parcela de individualidade no conjunto das artes que definem o teatro. Tal liberdade propicia o incremento do discurso e das idéias que propõe o teatro contemporâneo, uma vez que o arquiteto cênico pode tomar partido face ao tema que é sugerido. Materiais, marcações, tipologias, enfim, todas as características que o cenário virá a ter são escolhas do próprio arquiteto cênico, são feitas com muito cuidado, e são fruto de um amplo e profundo estudo. O seu objetivo principal é colaborar e incrementar a representação, oferecendo

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a melhor solução possível para o bom desempenho dos atores que estarão em contato com seu cenário. Deixa de ser o cenógrafo e passa a ser considerado um arquiteto cênico principalmente por que não constrói apenas fundos ou molduras, mas ambientes onde as personagens “vivem” a peça. O arquiteto cênico pode contentar-se com alusões, ou seja, sugestões de algo que não aparece na cena. Esta prática vai de encontro ao mais comum no teatro dramático tradicional, que era a fábrica de ilusões. Seus cenários narram, não só ilustram a cena, podendo ser considerados um personagem contribuindo, de maneira particular e de suma importância, para o todo do evento. Em meio a todas essas mudanças na espacialidade do Teatro é importante notar que, fundamentalmente, outras mudanças são empreendidas. Uma, como já exposto anteriormente, consiste no papel do cenógrafo ou daquele que concebe o espaço onde se estabelece a relação cena/público. Já a outra mudança diz respeito à forma como se caracteriza o papel do espectador. Este deixa de ser uma figura passiva, estática e categorizada, cujo máximo que se solicita é a atenção e o silêncio, para ser inserido dentro do espetáculo, reduzindo ao máximo à distância em relação à cena, tornando-o mais participativo e voltando a existir dentro do espetáculo. As vanguardas têm um papel fundamental neste processo, pois apontam para novos caminhos que até então eram indefinidos. Fica mais evidente o fato de que as mudanças na relação entre cena e público, ou seja, alterações no conteúdo pressupunham outras formas de concepção do espaço cênico, ou seja, uma outra forma. A aproximação entre as esferas da arte e da vida abre caminho para a inserção de novos contextos no bojo que configura o espaço cênico, definindo limitações na arquitetura tida como institucionalizada e possibilitando a migração para outros lugares até então pouco ou nada explorados. A contaminação sofrida pelas artes cênicas das idéias oriundas das artes visuais introduzirá novos operadores que logo se tornarão relevantes para a concepção do espaço cênico. Esta contaminação é fundamental para compreender as propostas de boa parte das idéias dos grandes encenadores como Artaud e Brecht, assim como Grotowski, Schechner, Renato Cohen e outros. O Teatro deixa de ter o caráter de espetáculo visual como fundamento predominante e cada vez mais uma experiência mais profunda dos sentidos e da consciência (ou da inconsciência, segundo algumas opiniões) assumem papel de destaque. O espaço cênico modifica-se, abandona a bidimensionalidade e torna-se cada vez

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mais profundo, aproxima a cena do público e promove uma integração ainda maior entre estes contextos. O caráter que as artes cênicas assumirão no início do século XX, mesmo que ainda de forma difusa e teórica, vai aos poucos sendo mais bem compreendido e incorporado às novas práticas teatrais até alcançar o patamar dos dias atuais. O germe que contaminou o Teatro e seu espaço tornou-se resistente e infestou o corpo de seu hospedeiro lenta e gradativamente, consolidando-se de forma irreversível, eliminando qualquer possibilidade de extinção. Sobre estas novas bases é possível compreender melhor a expansão do lugar teatral no teatro contemporâneo. A apropriação de espaços alternativos, da rua, enfim, da cidade para a constituição do espaço cênico, por artistas variados, que não se limitam aos espaços institucionalizados e tradicionais, revelam uma das mais singulares características do teatro contemporâneo. O edifício teatro esvazia-se de sentido e tanto a arquitetura teatral como a cenografia assumirão uma outra postura. O espaço urbano passa a estabelecer um diálogo com o eixo conceitual do espetáculo para a construção do espaço cênico. Inúmeros grupos que trabalham com esta concepção expandida do espaço cênico, tendo isto como marca, bem como espetáculos e eventos isolados que abarcam estas características podem ser citados. Contudo, o aprofundamento desta investigação, no presente estudo, far-se-á através do estudo de caso que certamente é elucidativo e distingue uma das possíveis linhas de trabalho.

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FIGURA 8: Teatro Total, projeto de Walter Gropius e Erwin PiscatorFonte: Google Images, [200-].

FIGURA 9: Cena do espetáculo dirigido por Bertolt Brecht

Fonte: Google Images, [200-].

FIGURA 10: Teatro Oficina, sede do grupo homônimo dirigido por José Celso Martinez Correa, em São PauloFonte: Google Images, [200-].

FIGURA 11: Fun Palace, projeto do arquiteto britânico Cedric PriceFonte: Google Images, [200-].

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O capítulo dedica-se ao estudo de caso – o espetáculo O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem – onde é feita uma descrição do mesmo, seguido de análises e busca da compreensão dos conceitos que emergem destas. O fato de não serem muito disponíveis relatos, documentos e descrições de espetáculos, seja por dificuldade de acesso a registros, seja pela simples inexistência de tal material, dificultaria de sobremaneira o desenvolvimento das análises dos estudos de caso. Desta forma optou-se por espetáculos cuja experiência fora direta e, assim, não se dependeria tanto de se recorrer a tais registros e arquivos. Ao mesmo tempo, ao ter-se participado dos eventos, as análises são mais verossímeis.

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4. O TEATRO DA VERTIGEM E A CENOGRAFIA DO CAMPO EXPANDIDO

Em grandes cidades como São Paulo, onde a decomposição do corpo urbano reflete, em grau apavorante, o esgarçamento do tecido social, espaços públicos como a igreja, o hospital e o presídio ainda funcionam como marcos efetivos de localização física e imaginária. Quem trabalha com história do teatro, como é o meu caso, sempre sente uma certa nostalgia desses lugares fortes, impregnados de memória coletiva, em certo sentido sagrados, pois neles a cena funciona como núcleo emocional e imaginário da comunidade. Esses lugares lembram um pouco o anfiteatro da polis grega, incorporando a vida cívica e religiosa da cidade, destinado à discussão de leis e crenças comuns e, por isso mesmo, aberto ao redor do altar e rodeado por cidadãos. O desenho semicircular de sua arquitetura e o lugar que ocupa na geografia urbana refletem um padrão de solidariedade. Trata-se de uma “cenografia sociométrica”, como lembrou Richard Schechner, que mapeia a cultura e a estrutura social da cidade, além de preservar sua memória (TRILOGIA..., 2002, p. 40).

Somente na segunda metade do século XX as experimentações práticas ganham fôlego e alguns grupos obtêm sucesso nessa empreitada rumo a uma nova forma de espacialização do espetáculo. Um dos melhores e mais ilustrativos exemplares no que concerne a essa nova maneira de se estabelecer a relação entre cena/público, bem como de configurar o espaço cênico e a arquitetura teatral, é a produção do grupo de teatro paulista Teatro da Vertigem12. Este se constitui um dos grandes expoentes do teatro brasileiro contemporâneo. Surgiu na década de noventa com propostas alternativas ao teatro comercial e possui em seu currículo quatro montagens – Paraíso Perdido (1992) (FIG 12), O Livro de Jó (1995) (FIG 13), Apocalipse

1,11 (2000) (FIG 14), que compõem a Trilogia Bíblica e, a mais recente, BR-3 (2005/2006) (FIG 15). Com uma linguagem inconfundível, a produção do Vertigem conquistou, rapidamente, o respeito da crítica e do público. Uma de suas principais características é o fato de se apresentar em espaços ditos “alternativos” tais como uma igreja, um hospital e um presídio. O Teatro da Vertigem busca um espaço que dialogue com o eixo conceitual proposto pelo diretor e trabalhado com o grupo, tirando partido de sua carga semântica, que deve apresentar fisicamente o conceito da proposta. A escrita cênica não é apenas um adjunto, um ponto de

12 É importante ressaltar que, em muitos momentos do texto, quando se refere ao Vertigem, lê-se Marcos Pedroso, o cenógrafo do grupo durante as montagens das peças que configuram a Trilogia Bíblica, responsável pela concepção espacial. Porém optou-se por usar o nome do grupo por se tratar de um coletivo construtor das montagens, apesar de existirem papéis bem definidos. O produto final consegue ser coeso de tal forma que a organicidade impede compartimentações.

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apoio, não se limita a um dado visual, é verbo, é conceito. Segundo Marcos Pedroso (TRILOGIA..., 2002, p.69), o cenógrafo do Vertigem nas peças que compõem a Trilogia Bíblica:

Pensar a cenografia como elemento colaborador no desenho espacial da encenação, a partir de um lócus estabelecido; buscar a carga semântica do espaço, enfatizando-a ou transformando-a conforme a necessidade conceitual e estética da montagem; fazer a reestruturação física do espaço eleito através de pesquisa e experimentação empírica e coletiva e sua adequação ao conceito e necessidades práticas na atuação; procurar a mutabilidade e a recriação pela adaptação a cada deslocamento geográfico da encenação; ter o público como elemento presente e ativo – são características do trabalho da cenografia nas montagens do Teatro da Vertigem. Um processo que tangencia a noção de instalação das artes plásticas e a locação do cinema, mas tendo como eixo a história e as técnicas da cenografia na representação teatral.

Em geral caracteriza-se a cenografia do Vertigem como sendo de locação, conceito este extraído do Cinema. Contudo, a idéia mais adequada para a compreensão do que é o lugar teatral proposto pelo grupo paulista é a de site specific. Como visto, um conceito que marca a produção do espaço cênico no teatro contemporâneo.

[...] a organização espacial por territórios literais e imaginários substitui a organização tradicional – de narrativas temporais e causalidades. Opera-se, dessa forma, o paradigma contemporâneo de substituir o tempo pelo espaço como dimensão encadeadora. Com privilégio da sincronia, em detrimento da tradição diacrônica, há o deslocamento da organização logotemporal para a construção mitológica, espacial (COHEN, 2004, p. 26).

A constituição do lugar teatral no trabalho do Vertigem não se baseia em recriar espaços, como no Cinema, mas, sim, em aproveitar os já existentes, mantendo sua carga semântica e, ao mesmo tempo, transformando-os. O espaço é “vestido” com as referências de domínio público no intuito de se revelar as relações entre a peça e o espaço, ampliando, consideravelmente, o lugar onde se estabelece a relação cena/público. Desta forma, o público não estabelece uma relação estática em relação à cena, pelo contrário, percorre os inúmeros caminhos definidos pela geografia da peça, definindo um ponto de vista particular e consolidando uma experiência única de diálogo com a cena. O público torna-se um elemento ativo e presente no espetáculo.

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Assim, quando é dada ao espaço uma nova função, sua carga simbólica original já apreendida pelos usuários deverá ser adaptada para que se possa cumprir essa nova função. Mesmo que se queira tirar partido de sua função original, esse espaço terá que ser re-significado, não apenas antes do acontecimento, mas também durante, pois as experiências vão aí conviver e se transformar em novos traços culturais a partir dos já estabelecidos sobre esse espaço (OLIVEIRA, 2005, p.63).

O templo nunca deixa de ser templo, a igreja nunca deixa de ser igreja, porém durante a encenação, amplia-se em significado e, por vezes, ressemantiza-se o próprio edifício. A primeira montagem do Vertigem – Paraíso Perdido (1992) – tem como fio condutor principal o poema homônimo de John Milton. A peça fala de Deus, de queda, do sentimento de perda do Paraíso, constitui-se em uma espécie de relato, de (re)vivência do mito da queda e do sentimento de nostalgia de um outro tempo, de harmonias mais plenas. Em Paraíso Perdido, o Vertigem busca oferecer um momento, fundado em uma temporalidade outra, em que o espectador vivencie uma experiência concreta, material, de reencantamento com o mundo, qualquer que seja seu grau de fé; além disso, a peça fala sobre a religação com o sagrado - um tempo mítico, e simultaneamente mundano é trabalhado pela encenação. A inscrição do homem no profano e sua consciência do sagrado são, permanentemente, apresentadas durante o percurso de um dos personagens, o Anjo Caído, apontando para a idéia de que a consciência da queda é o caminho para a própria redenção. Para conseguir traduzir todos os conceitos no espaço, para que certo efeito de maravilhamento do público fosse provocado, a montagem foi realizada em um templo, uma igreja. Esta escolha é bem sucedida. Retoma-se a idéia de percurso teatral e religioso, conduzindo o público, por meio dos olhos do Anjo, a experimentar a descoberta de um momento magicamente único. Este é condensado no templo religioso tanto pelo peso de sua idade física quanto por sua memória cultural, por aquilo que representa para a própria idéia de existência do homem.

Em Paraíso Perdido13, a carga semântica do espaço é expandida de forma literal, enfática; o templo, que é essencialmente, um caminho, torna-se, em alguns momentos o próprio objetivo, o

13 Primeira montagem do Teatro da Vertigem, livremente inspirado no poema barroco de John Milton – Paradise Lost. A estréia deu-se em 1992, na Igreja de Santa Efigênia, em São Paulo.

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destino. O lugar teatral expande-se, configurando a cena onde o espaço cênico torna-se o espaço arquitetônico e vice-versa. A separação entre a cena e o público reduz-se a um limite tênue, quase inexistente e o próprio edifício torna-se cenário. A construção mitológico-espacial do lugar teatral é organizada por um amálgama de territórios literais e imaginários, substituindo as narrativas temporais e as causalidades. O Vertigem, com Paraíso Perdido, rompe com toda estrutura de palco tradicional e ocupa espaços poligonais, de possíveis ações simultâneas, retirando o ponto focal da seqüência e narrativa única e provoca a possibilidade de recepções múltiplas, de interpretações particulares. A peça, a obra, deixa de ser algo para uma observação distante (e não distanciada) para tornar-se um espaço a ser adentrado e experimentado de modo pleno, fisicamente. A terceira montagem do Vertigem, que completa a chamada trilogia bíblica, é intitulada Apocalipse 1,1114. O texto inspira-se no profético último livro da Bíblia escrito por João – O Apocalipse – que descreve, com linguagem hermética, grandiloqüente e repleta de simbologias o final dos tempos. A montagem do Vertigem não tira partido desta linguagem utilizada na Bíblia, pelo contrário, traz para o que há de mais real, mais cotidiano, o contexto da cena. Torna-se uma clara demonstração de que a realidade atual nada tem de divino e maravilhoso como é colocado pela mídia de massa. As revelações do Apocalipse são contadas a um João que pouco tem a ver com o evangelista bíblico. Este mais se assemelha a um retirante que chega, praticamente sem passado nem futuro, na selva de pedra que constitui a metrópole, a Babilônia moderna. O uso do espaço cênico, que já se tornou uma marca registrada do grupo, é novamente um elemento essencial para a montagem. Apocalipse 1,11 acontece em um presídio, o lugar da punição, da culpa. É o lugar que se determinou para confinar o mal, portanto o melhor espaço para examinar as vísceras da sociedade, para evidenciar e comparar como o que está dentro é semelhante ao que está fora, na epiderme, no mais superficial. O presídio é real, concreto e por isso é frio, literal e direto ao emitir sua mensagem. Certamente é uma metáfora, bem adequada, da Babilônia moderna e do fim dos tempos.

14 Terceira montagem do Teatro da Vertigem. A estréia deu-se em 2000, no presídio do Hipódromo, em São Paulo.

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A utilização do espaço arquitetônico do presídio como espaço cênico é feita em vários níveis, o que possibilita usos diferenciados e inesperados do lugar teatral. O público desloca-se por este inextrincável labirinto em espaços completamente distintos onde experimenta as mais variadas sensações. A primeira cena acontece com o público ainda fora da cadeia; em seguida, ao entrar ele se amontoa para presenciar a anunciação do fim dos tempos pelo Anjo. Em outra seqüência, o espectador é levado a uma grande boate – a New Jerusalém – onde acontece um grande espetáculo de horrores cujo conteúdo é repleto de referencias a programas de TV, recheado de violência e crimes de todas as espécies. Em outra seqüência, o público se vê em um apertado corredor escuro onde testemunha uma chacina perante seus olhos. Estas rápidas descrições evidenciam um dos vários níveis da utilização do espaço arquitetônico pela encenação. A trama arquitetônica do presídio cria diferentes dimensões e escalas do espaço. Da forma como são combinadas no percurso da apresentação, evocam sensações diferentes, pontos de vista e posicionamentos inusitados do público, criando uma sensação vertiginosa ao experimentar os impulsos de compressão e dilatação do espaço, de proximidade e distanciamento da cena. Em Apocalipse 1,11, fica claro o limite que é colocado na separação entre cena e público e, ao mesmo tempo, é evidente que a sua relação não é mais a mesma durante todo o espetáculo. Outra forma de utilização do espaço arquitetônico diz respeito ao ambiente em que acontece a cena. O presídio carrega uma carga semântica enorme por si só, seja na degradação física do edifício, no seu odor, na própria forma de propagação do som, na presença das grades e, principalmente, na memória que o edifício evoca e emana. Esta simbologia extremamente complexa e impactante, combinada à forma e conteúdo da encenação, afetam a recepção do espectador. A experiência do público ao vivenciar a cena é singular dentro do presídio.

Vertiginoso... Espaços não-convencionais que pedem atores não-convencionais que pedem um público não-convencional. Ensaiar numa igreja à meia-noite, num hospital cheirando a éter, num presídio úmido e frio. Céu/Purgatório/Inferno. O corpo do ator inseminando o corpo arquitetônico. A memória passada do espaço impregnando o tempo presente da cena. A história a ser contada por meio de personagens, em tensão com a história das paredes concretas daqueles edifícios. A carnalidade do lugar, a ossatura dos objetos, as vísceras dos alicerces se fundem com volumes corporais, arquiteturas ficcionais e construções emocionais. Não à bizarrice ou ao banal ineditismo novidadeiro do espaço. O lugar escolhido é o único possível para aquela encenação. A necessidade do sentido do espaço para a construção

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dos sentidos do espetáculo... E novamente então o Verbo se fará carne (SILVA, 2002 apud OLIVEIRA, 2005, p. 66)15.

4.1. O Livro de Jó

A segunda montagem realizada pelo Teatro da Vertigem, que compõe a Trilogia Bíblica, é a adaptação do homônimo texto bíblico O Livro de Jó (1995). Considerado um dos livros sapienciais do Antigo Testamento, o Livro de Jó é tido como um dos mais filosóficos de toda a Bíblia. O principal tema em discussão é a questão da vulnerabilidade e injustiça inerentes à condição do ser humano. Narra a história de Jó, um homem abastado, que tinha uma grande e feliz família e que era temente e fiel a Deus; tinha plena consciência de que sua sorte era eventual, por mais que durasse, por isso não se vangloriava de sua fortuna, pelo contrário, agradecia a seu Deus por tudo que possuía. Um dia, Deus reúne-se com seus anjos e chama-lhes a atenção para a conduta fiel e reta de Jó, exemplar entre os homens vivos. Esta riqueza interior de um homem leva um dos anjos, o Satanás, a propor um desafio a Deus – que tirasse de Jó tudo e observasse que o seu temor devia-se ao fato de ter sido tão bom para com ele, que sem nada, o homem O amaldiçoaria. O desafio é aceito, com a condição de que o corpo de Jó não fosse tocado. Contudo, mesmo perdendo os filhos, o gado, as riquezas, Jó não amaldiçoa seu Deus. Eis que o Satanás volta e solicita a permissão para que toque o homem, que assim ele amaldiçoará Deus e este, então, permite. Jó então é acometido de uma grave doença que infesta seu corpo de chagas. Naquela época acreditava-se que os infortúnios eram castigos divinos, contudo o que teria feito Jó para receber tal punição? Conta-se que três amigos, sabendo o que se sucedera com Jó, foram visitá-lo. Depois de sete dias de silêncio absoluto entre eles, Jó quebra-o e inicia um debate entre ele e os amigos mais um quarto participante, onde se discute a justiça e a injustiça da existência (FIG 16). Os amigos – Elifaz, Baldad e Sofar – assim como a esposa de Jó estão convencidos de que tudo é castigo divino e que Jó havia pecado. Entretanto este se defende insistindo veementemente em sua inocência, acabando por zangar-se com os amigos e causando a revolta destes consigo. Discutem e tentam entender por que as pessoas boas sofrem com maus acontecimentos; onde

15 SILVA, Antônio Carlos de Araújo. A gênese da vertigem. 2002, 192f. Mestrado (Dissertação) – Universidade de São Paulo, Escola de Comunicação e Artes, São Paulo, 2002.

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está a justiça divina e qual seria então o benefício de ser bom. Depois do longo e intenso debate o quarto elemento – Eliú – intervém e coloca as coisas em seus devidos lugares. Contesta os amigos e o próprio Jó, rebatendo e esclarecendo os argumentos, situando-lhes quão distantes encontravam-se dos corretos caminhos da doutrina e revelando onde residiam os seus pecados. Enfim, o próprio Deus fala a Jó, propondo uma série de questões que revelam em si a pequenez do homem em relação à grandeza divina. Humilhado, Jó reconhece sua posição, retratando-se e se arrependendo. Por fim, o texto bíblico original mostra que Deus exigiu a penitência dos amigos de Jó, por terem dito coisas inverídicas sobre Ele. A condição de Jó foi revertida, curando-se da doença, recebendo o dobro da riqueza que detinha e de filhos e sua vida é milagrosamente prolongada de modo que consegue ver quatro gerações de sua descendência. Neste ponto reside uma das grandes diferenças entre o texto original e a adaptação do Vertigem. O texto final da peça propõe uma outra leitura, ou melhor, outras leituras do desfecho, que de alguma forma, apresenta um ponto de vista mais crítico em relação ao fato que é narrado e tudo o que pode significar. Inserida em um contexto contemporâneo, onde a AIDS tornava-se uma realidade tangível e atingia segmentos da sociedade que, de certa forma, não “se imaginava” que pudessem contrair tal doença e que povoavam o universo próximo ao Vertigem, a doença de Jó funcionava como uma metáfora não fortuita. Desta forma, crer e ter fé não são tão fáceis diante da moléstia humana. Assim, no último trecho da peça, os personagens Mestre e Contramestre (Deus e Satanás, respectivamente, no original Bíblico) encerram seu diálogo com a platéia:

Mestre – E para os que crêem Deus aqui se manifestou, desceu e habitou o homem. Contramestre – E para os que não crêem a doença enlouqueceu Jó desde o

princípio de nossa narração. E Jó viveu sonho e delírio sem, até a morte, recuperar a razão.

Mestre – E para os que crêem, depois desses acontecimentos, Jó ainda viveu. Contramestre – E para os que não crêem a história acabou.

E a mulher de Jó peregrinou Por revolto mar E fez de si própria seu porto Até naufragar.

(TRILOGIA..., 2002, p.177-178,grifo do autor).

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4.2. O site specific O cenário onde ocorrem os acontecimentos narrados no Livro de Jó é uma terra deserta, pois se deduz que a terra de Uz, onde Jó morava, existia onde hoje se localiza o deserto arábico. O fundamento do sofrimento do homem no Livro de Jó é a percepção de sua condição transitória, de sua finitude imposta por sua situação humana. O tempo é aquele que dura o processo de aceitação do protagonista de sua dimensão perecível. O debate entre o sagrado e o profano e as suas condições de eterno e efêmero constitui um dos panos de fundo da história contada no livro bíblico. Para abrigar todos estes conflitos, o Teatro da Vertigem optou por utilizar como site specific da peça um hospital. Na estréia, em São Paulo, em 1995, o Hospital Humberto Primo que se encontrava desativado, foi o escolhido. Em Belo Horizonte, durante o 7° FIT BH, em 2006, o escolhido foi o Hospital Júlia Kubitschek. O hospital funciona como um terreno asséptico, de onde ninguém sai ileso, sejam mortais, feridos e mesmo curados e sãos. A doença e, principalmente, a cura são um processo de aprofundamento e amadurecimento da condição humana e da consciência de que a inscrição do indivíduo no mundo é transitória, podendo ou não ser prolongada por algum tempo. A montagem do Vertigem possui uma narrativa clássica, apresentando a história de forma linear, bem próxima do original bíblico que serve de referência. As cenas acontecem em diferentes espaços e em pavimentos distintos do edifício, obrigando o público a migrar, seguindo as cenas, configurando um percurso que lembra os antigos Autos em que os espectadores deslocavam para acompanhar cada Estação. No caso da montagem do grupo paulista o tempo é retilíneo, enquanto os deslocamentos não. O migrar impõe uma constante adaptação do indivíduo a orientação espacial nova de cada cena, aproximando-o ou distanciando-o dependendo do fluxo e do tempo do movimento. A percepção espaço-temporal modifica-se permanentemente. Nesta peça, o texto ganha mais importância se comparado ao espetáculo anterior – O Paraíso Perdido – com isso a temporalidade vincula-se mais intimamente à narrativa oralizada, entretanto a potência das imagens criadas, sobretudo as que emergem do próprio texto ainda continuam de sobremaneira relevantes. Na primeira cena (FIG 17), quando se adentra o hospital, depara-se com uma parede de vidro repleta de corpos em exposição, denotando de que forma o humano será abordado no espetáculo. O corpo maculado pelo sangue de Jó contrasta permanentemente com o ambiente branco e asséptico do hospital

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(FIG 18). O contato do ator com o piso, parede, mobiliário mancha-o, contamina-o, dando a sensação de perda da pureza, ratificando a condição humana. Este conflito entre o sagrado e o profano fica evidenciado no debate entre o corpo do ator e o espaço que o inscreve e, de fato, o hospital revela-se um espaço adequado a tal experiência. Ao contrário do que ocorreu em São Paulo, no Humberto Primo, que se encontrava desativado, em Belo Horizonte, o Júlia Kubitschek estava em funcionamento, o que obrigou a equipe de produção a providenciar algumas mudanças e adaptações no espaço do hospital no intuito de poder fazer a peça acontecer. De certa forma criou-se um lugar dentro de outro uma vez que as atividades cotidianas do hospital não poderiam ser interrompidas por causa do espetáculo teatral e toda a mobilização que este impunha. Da mesma forma, a própria peça sofreu adaptações para inserir-se na nova topologia que o espaço, do ponto de vista arquitetônico, apresentava. Este é um procedimento constante no trabalho do Vertigem já que constitui o cerne de sua proposta a utilização de espaços não convencionais para a site specific de suas peças. A arquitetura do hospital da estréia paulista apresenta-se bastante distinta da do hospital belo-horizontino, este possui dimensões e proporções mais amplas e sua característica principal são as longas rampas que interligam ambientes, blocos e pavimentos. Fez-se necessária uma adequação das relações temporais entre as cenas, principalmente durante os deslocamentos no intuito de não se perder a unidade espaço-temporal do espetáculo. A opção pela utilização dos longos corredores como elementos de transição colaborou para a ênfase no caráter de procissão, que constitui um dos elementos fundamentais da apresentação. Outra estratégia do grupo que auxiliou a dar ênfase ao caráter do site é a utilização do mobiliário hospitalar como elemento de cenografia e como dispositivos de iluminação. A luz do espetáculo partia predominantemente destes objetos, integrando-se mais naturalmente ao espaço físico. O uso de macas, cadeiras, radiografias, recipientes de soro e outros objetos além de enfatizar o fato do público estar em um hospital, ampliou em dramaticidade a cena uma vez que os efeitos e sensações conseguidos com este uso combinaram organicamente o espaço físico com o espaço dramático.

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4.3. O espaço cênico do Teatro da Vertigem Em O Livro de Jó, o Vertigem trabalha com um texto mais elaborado e o grupo já se encontra mais amadurecido no que tange aos seus questionamentos e propostas. Para que a metáfora que se pretendia construir - a da grande moléstia humana - pudesse ser representada (ou apresentada) de forma mais enfática, utilizou-se como lugar cênico um hospital. Este é um dos melhores lugares para que se tenha e se reforce a idéia de finitude humana. O espaço não é utilizado como um cenário vazio, muito pelo contrário, é explorado em seus mais variados e infinitesimais recantos, buscando sempre evidenciar as memórias, acentuando os significados que carregam o hospital. A utilização e manipulação de equipamentos próprios do lugar como objetos de cena, como micro-cenografias contribui para o enriquecimento dos signos que fragmentam o espaço cênico e estabelecem as múltiplas possibilidades de experimentação da cena pelo público. O público expectador acompanha Jó em seu caminho seguindo uma trajetória ascensional, que marca claramente as etapas do amadurecimento do homem no seu existir no mundo, principalmente no penoso existir de Jó. Não existe um olhar interlocutor entre a cena e público, aquela acontece no aqui agora e esta consciência de proximidade com o drama abala os sentidos. Tudo vai (ou pretende ir) direto ao fundo da alma, sem nenhum artifício para alentar e sedar os sentidos e a inteligência. O espectador é colocado diante da obra em um ponto onde não existe uma possibilidade de contemplação, a experimentação estimulada é de tal proporção que restam poucas opções – ou aceitar e entregar-se ou rejeitá-la integralmente. A idéia é que ninguém saia ileso emocionalmente de O Livro de Jó. Nesta segunda empreitada, O Vertigem acentua a ampliação do lugar teatral, o espaço cênico e o arquitetônico fundem-se e a montagem consegue estabelecer ainda mais fragmentos que permitem as múltiplas leituras e experimentações do público. Isto se dá, principalmente, pela proximidade física entre a cena e o público e pela materialização de uma espécie de campo mítico no espaço cênico do hospital. Estabelece-se uma temporalidade própria dentro do espaço arquitetônico em que o vivenciar passa a responder a estímulos outros, bastante distintos do cotidiano, mas que, uma vez experimentados, possuem uma grande reverberação. Em O Livro

de Jó fica clara que a intenção do Vertigem, ao buscar espaços “alternativos” - como, neste

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caso, um hospital , em Paraíso Perdido, uma igreja e em Apocalipse 1,11, um presídio - para o seu teatro, não é a realização de uma pesquisa arquitetônica ou mesmo de certa estética espacial. O que norteia o trabalho de expansão do lugar teatral, de configuração da cena é a pesquisa de novas formas de interferência na percepção do espectador, de recepção do público, de concepção de um teatro que seja capaz de dialogar com as novas demandas do mundo contemporâneo. Ao reduzir a distância entre a cena e o público, o nível de entropia da relação amplia-se, o campo de possibilidades de intervenção expande-se e investir neste processo configura-se como um risco, contudo, calculado. Risco por que trabalha com conceitos próximos aos da Teoria do Caos, onde o aleatório e o imprevisível aparecem, são variáveis presentes, onde a ordem é outra e a previsibilidade da resultante produzida (ou provocada) pela relação entre a cena e o espectador é indeterminada. A relação direta que era estabelecida entre a cena e o público espectador desaparece, a intensidade da relação deriva para o ponto de vista de cada indivíduo. Este tipo de relação, de recepção linear era (e ainda é) percebida em uma encenação segundo um sistema tradicional, seja espacialmente ou dramaticamente, o espectador é colocado à margem da cena, tornando-se um observador que está separado dos atores pelo que se convencionou nomear de quarta parede. Em termos concretos, a quarta parede ergue-se na boca de cena e enclausura os acontecimentos no palco, assim os atores ignoram o público e este assume uma posição “analítica e independente”, distanciando-o do fluxo físico da ação que acontece no palco. O deslocamento da cena do edifício-teatro para os espaços “alternativos”, poligonais, cria novas variáveis nas formas clássicas de representação. Fundam-se outras formas de configuração e revelação dos signos que alteram as maneiras com que a recepção desloca, dialoga e compreende a obra. Estas têm gênese, certamente, nas experimentações das artes plásticas como experiência concreta, realizada. Pode-se identificar, também, na história da arquitetura, que alguns dos conceitos do movimento moderno pressupunham uma apropriação do espaço público para a ocupação do espaço artístico. Isso é encarado como um outro mote ao deslocamento para espaços não-convencionais à objetivação artística. Apesar de boa parte dos aspectos teóricos serem percebidos nos encenadores teatrais nos primórdios do século XX, a concretização e materialização destes conceitos só acontecerá no Teatro mais à frente. Sua contaminação nas outras áreas dá-se mais rapidamente, o que, de certa forma, contribuiu muito para o amadurecimento destes quando realmente eclodem na prática teatral.

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A forma com que o Vertigem estabelece a passagem do processo de criação para o produto, para a apresentação ao público, elemento externo até este determinado instante, busca subverter a ordem convencional, estabelecendo uma ambigüidade entre o contexto ficcional e o da vida, entre o espaço arquitetônico e o espaço cênico que lança o público em uma situação para além da vivência comum. É como se a quarta parede (derrubada em Brecht) se reerguesse englobando também o público. Uma vez inserido no contexto, no espaço de atuação e encenação, o espectador co-participa da peça, dialoga com o processo com uma intensidade diferenciada, estabelecendo um novo espaço, onde sua consciência é ampliada e sua experimentação aproxima-se dos seus limites. A relação que se estabelece está, consideravelmente, ligada ao despertar do indivíduo e não à sua hipnose. Neste espaço proposto pelo Vertigem, onde a entropia é elevada e onde o todo já não pode ser percebido em totalidade, mas, sim, como um conjunto de fragmentos, o público espectador torna-se livre de um reconhecimento, de um sentimento de empatia e identificação com a cena. Com isso, tem liberdade para desfrutar com bem lhe convier a partir da combinação dos textos e subtextos para a leitura do seu todo. O efeito de distanciamento de Brecht é usado quase às avessas, pois é ele o dispositivo que inseminará o público no espaço cênico, no lugar teatral rico de possibilidades novas. A percepção tem de ampliar-se e, ao mesmo tempo, tem de se tornar capaz de visualizar os pequenos detalhes, pois, na cena do Vertigem, cada um pode vir a ser um elemento de ampliação do entendimento da cena, bem como de sua experimentação. Walter Benjamin (1994), em seu clássico texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade

técnica”, apresenta duas formas de percepção da obra de arte – a recepção tátil e a recepção ótica – cujos fundamentos estão relacionados às idéias de distração e recolhimento. Quem se recolhe diante de uma obra de arte estabelece uma relação tão íntima que, praticamente, dissolve-se e adentra a obra. Esta intimidade baseia-se em um componente ligado à contemplação que, por sua vez, possui um fundamento ótico. Por outro lado, na distração, a obra de arte mergulha no observador que a envolve, molda-a e a absorve. Nesse sentido, a obra é percebida de uma forma mais geral e, em parte, dispersa; a relação entre o observador e a obra acontece muito mais pelo que Benjamin classificou por hábito que, necessariamente pela atenção. A recepção passa menos pela componente predominantemente ótica e abrange um

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campo mais sinestésico, que é categorizado como tátil. Esta via de mão dupla entre distração e recolhimento, entre tátil e ótico constitui-se um operador interessante para a análise dos modos pelos quais é concebido o espaço das representações teatrais.

Os edifícios comportam uma dupla forma de recepção: pelo uso e pela percepção. Em outras palavras: por meios táteis e óticos. Não poderemos compreender a especificidade dessa recepção se a imaginarmos segundo o modelo do recolhimento, a atitude habitual do viajante diante de edifícios célebres. Pois não existe nada na recepção tátil que corresponda ao que a contemplação representa na recepção ótica. A recepção tátil se efetua menos pela atenção que pelo hábito. No que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande medida a própria recepção ótica. Também ela, de início, se realiza mais sob a forma de uma observação casual que de uma atenção concentrada. Essa recepção, concebida segundo o modelo da arquitetura, tem em certas circunstâncias um valor canônico. Pois as tarefas impostas ao aparelho perceptivo do homem, em momentos históricos decisivos, são insolúveis na perspectiva puramente ótica: pela contemplação. Elas se tornam realizáveis gradualmente, pela recepção tátil, através do hábito (BENJAMIN, 1994, p. 193).

Ao adentrar o universo proposto pelo Vertigem, o diálogo entre o tátil e o ótico estabelece-se durante todo o tempo. Um diálogo que por vezes é conflituoso e, em inúmeros momentos, é harmonioso, equilibrado. Apesar de o pressuposto inicial ser de recolhimento, de adentrar a obra, o lócus estabelecido, ou seja, o espaço “não-convencional” de uso público e, nesse sentido, carregado de certo hábito e significado, mergulha para dentro do espectador. Desta forma, a experimentação abrange todos os sentidos, é sinestésica, instaurando um diálogo permanente que modifica o papel tanto da obra quanto do espectador. A forma com que se estabelece a relação entre a cena e o público, na produção do Teatro da Vertigem, é diferenciada e pode ser considerada como de vanguarda, entretanto seria um equívoco considerá-la limite. Ela se insere em um contexto onde suas propostas podem ser verificadas com maior intensidade. Revela claramente as suas influências e a sua trajetória dentro de um processo de investigação de formas inovadoras, e mais adaptadas à realidade, do teatro contemporâneo. O trabalho do Vertigem encontra-se na linha de interseção de várias correntes das artes visuais – dentre elas os happenings, site specific, environment art – tomando delas o que julga útil e moldando uma linguagem própria para a sua esfera artística em particular – o Teatro.

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A linguagem da encenação teatral do Vertigem não é naturalista e não recorre aos recursos do ilusionismo, comuns ao universo do palco, principalmente do “italiano”. A forma com que se configura o lugar teatral modifica as maneiras com que o público se relaciona com a cena possibilitando inovações no que concerne à recepção do espetáculo. Ao aproximar-se da cena, percorrendo diferentes caminhos durante a peça, adentrando ambientes diversos, a posição do público deixa de ser estática e meramente contemplativa, de observação passiva. Observação esta que proporcionaria uma leitura linear e que pressuporia uma mensagem direta. O público está diante de uma cena de campo expandido, onde os deslocamentos físico e logotemporal são portas de entrada, pontos de vista de sentidos diversos. A cena do Vertigem, que reúne em uma mesma superestrutura simultaneamente o espaço arquitetônico, o espaço cênico e o espaço artístico, superpõe várias camadas de sentido, criando leituras subliminares que ampliam seu próprio sentido, tornando-a mais flexível e livre para o seu vivenciar. Para que isso ocorra é fundamental que a transposição da estrutura tradicional para o espaço não convencional realize-se de forma orgânica e completa. Esta certamente é uma das razões do êxito do Vertigem, já que ao buscar um outro espaço arquitetônico não se aplicou, nele, uma forma tradicional de espaço cênico assim como uma montagem em moldes corriqueiramente usuais. Investigou-se uma forma outra de encenação em todos os aspectos, que pudesse ser coerente com a proposta do grupo e o resultado final do processo é uma cena onde a idéia e a experiência encontram-se em equilíbrio dinâmico. A percepção espacial combinada a um estímulo sinestésico fragmentado produzido pela cena não só configuram este novo lugar teatral, como estabelecem esta nova forma de diálogo entre a cena e o público.

4.4. Jogo e vertigem Schechner (1994) coloca que o diálogo estabelecido com o espaço baseia-se em uma ação colaborativa, onde o acontecimento dá-se segundo vários vetores e se sustenta na relação entre atores e espectadores. Esta afirmação de Schechner constitui uma das chaves de análise das formas de apropriação do espaço urbano na constituição do espaço cênico no teatro contemporâneo, como no caso do Teatro da Vertigem. A idéia de espaços vivos que não se limitam ao palco, muito menos ao edifício teatro, amplia o foco de estratégias de construção do espaço cênico. Para que, de fato, o espaço cênico o seja em plenitude, entra outro conceito apresentado por Schechner, o de negociação.

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O evento cênico pode localizar-se tanto em um espaço totalmente concebido, construído e/ou transformado quanto no que Schechner denomina found place16, que se aproxima do conceito de site specific utilizado nas práticas cênicas contemporâneas. O lugar encontrado difere-se do transformado na medida em que este opera com a neutralidade do espaço como fundamento de seu processo de apropriação e transformação de um determinado lugar em outro que abrigará a cena. O lugar encontrado tangencia a concepção de teatralidade do espaço que remete à experiência poética. No encontro com o lugar faz-se necessária uma abordagem diferenciada com os elementos que compõem o ambiente no intuito de potencializá-los em suas características para contribuírem com o incremento da dimensão semântica e sensível da cena. Schechner não define o processo de encontro do lugar somente através da sua identificação, mas leva em conta também as potencialidades de apropriação do público na ordenação do espaço. Isto inscreve uma variável dinâmica na relação entre o público e o espaço que interfere diretamente no trabalho do performer, inserindo o inesperado como um dos componentes elementares do evento cênico. Na descrição dos espaços do teatro ambiental e de seus usos, fica clara a flexibilidade dos mesmos e a liberdade dada aos espectadores para apropriar-se dos espaços. Da mesma forma, fica evidente que tais ambientes trabalham na vertente mais abstrata da construção dos elementos, operando mais no campo da sugestão que no da ilustração. Em sua maioria, os lugares encontrados são fora dos espaços institucionalizados, são elementos do espaço urbano tais como ruas, edifícios públicos, como o hospital na montagem de O Livro de Jó do Teatro da Vertigem. Eles demandam um esforço no sentido de identificar o espaço mais adequado e definir as estratégias mais apropriadas de ocupação do mesmo. A site specific, este lugar encontrado, tem como fundamentos tanto a percepção dos aspectos físicos, espaciais e culturais do lugar, como a negociação com estes elementos. Ao se estabelecer o espaço cênico em uma determinada site é necessária uma negociação com o ambiente no intuito de inserir nele uma espécie de diálogo com a cena, emergindo daí um espaço mais fluido e dinâmico. Para que o hospital usado como site em O Livro de Jó seja compreendido e experimentado como algo a mais, além do que é no imediato perceptivo, é necessário que se estabeleça uma

16 lugar encontrado (Tradução nossa).

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relação dialógica segundo diferentes níveis de aprofundamento. Ao encontrar e definir um lugar para abrigar um evento torna-se necessária uma negociação com o espaço no intuito de que este se consolide com espaço cênico, ou seja, para que denote um sentido outro ou além para que se realize como mais uma ou uma outra atividade. Schechner enfatiza a idéia de negociação para que o espaço cênico o seja em plenitude principalmente por que encara os espaços em sua vitalidade. Negocia-se com as potencialidades imanentes do hospital, por exemplo, para que se possa constituir o espaço cênico que apresentará o universo de Jó. Contudo a apropriação não tem como desconsiderar a realidade semântica do espaço e permanentemente experimenta-se a tensão entre o que realmente é e o que acontece. Assim, o espaço não é encarado como uma entidade neutra, nem como mero suporte, é, sim, um elemento vivo, ativo, que muda, desenvolve-se, transforma-se e amadurece ao aprofundar sua relação com a cena. O conceito de negociação de Schechner tem origem na tradição anglo-saxônica do termo que estabelece um limite de compreensão do mesmo. Aprofundando-se na experiência teatral contemporânea, especialmente nos estudos de caso do presente estudo, verifica-se que a idéia de negociação compreendida e exposta perpassa mais a noção de diálogo, mas em termos teatrais o conceito mais adequado é o de jogo. A negociação caracteriza-se pela apresentação das regras do jogo. Compreender-se a apropriação de ambientes que não foram concebidos para constituir-se lugares de representação teatral demanda uma outra relação onde pensar o espaço é revelá-lo em sua essência, constituição, ritmos, características físicas, estabelecendo um diálogo com os elementos que o constituem. A apropriação dos lugares encontrados demanda um aprofundamento dos sentidos para a compreensão do espaço das mais variadas formas possíveis. Este site specific, entendido não somente em suas características, mas também em seu contexto constituem parte do conteúdo do evento. É um participante ativo cujo sentido não é compreendido pelo que o trabalho contém, mas pelo diálogo estabelecido, o debate entre as partes integrantes da cena e o público em uma determinada situação. Esta sofre contaminação do sítio de inserção e seu entorno, bem como da experiência prévia e arcabouço cultural do espectador. O grau de maturidade das relações estabelecidas entre o espaço, o performer e o público define a complexidade do jogo, que se caracteriza por ser, justamente, a tensão gerada pelo processo dialético entre o que realmente é e o que se apresenta.

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Por sua vez, em um outro determinado instante do processo de constituição do evento e sua espacialidade, o diálogo próprio do espaço cênico com o público potencializa a complexidade do jogo. À medida que, no teatro, a cenografia reorienta-se do campo pictórico para o espacial, surge uma categoria de experimentação espaço-temporal onde o indivíduo deixa de ser um mero espectador e torna-se um participador. Um sujeito atuante que interage com o espaço dados os seus estímulos sem uma pré-determinação preconcebida. Se o diálogo entre o espaço e o indivíduo espectador não se estabelece, provavelmente não se inicia o jogo. O hospital continuará sendo um hospital e não o deserto de Uz, daí não se avançará para a compreensão da metáfora da moléstia humana. O espaço, neste ponto, opera com um mediador que amplifica e abre possibilidades para experiências e maneiras diferenciadas de relação entre a cena, o público e o site. Segundo Ferreira (2007, p.25):

Cada novo espaço oferece múltiplas possibilidades e potencializa novas relações. A decifração de signos, sentidos e a criação de mundos dependem desses espaços existentes. (...) Mais do que criar uma instalação autônoma, cada montagem em um novo local se apropria e habita o lugar. O novo local é ocupado e experimentado através de práticas que consideram a presença dos materiais do espaço escolhido e recriam a relação entre os elementos inseridos e encontrados.

Ao se buscar diferentes locações em espaços não convencionais, utilizando de sua realidade concreta existente e promovendo a imersão de experiências e relações diferenciadas estabelece-se o jogo. Inscreve-se um diálogo dinâmico entre a cena, o público e o ator em um espaço onde os preconceitos e determinações minimizam sua relevância e o inesperado do processual se potencializa. A forma com que o Vertigem apropria-se e ordena o espaço pode ser compreendida como uma prática de investigação das questões ligadas às relações entre o evento e o seu site, o seu sítio de inserção. Esta outra lógica dialógica entre cena e espaço afeta, significativamente, a estrutura dramática e repercute, também, na relação entre o espaço cênico e a platéia, potencializando uma cena do deslocamento, nômade e fluida que se desloca da condição fixa e estática do palco tradicional para os espaços poligonais do cotidiano. Segundo Kosovski (2000), o mundo real, uma vez fundido à cena, transforma a clássica concepção de representação espacial e cenográfica como simulacro de um outro, ausente. Em

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certas cenas fundidas ao cotidiano urbano, surge uma confusão entre a identificação do que vem a ser representação e apresentação. Aquela se refere a uma dimensão de um objeto que representa algo além de si mesmo – signo – o que não cabe a esta. “A carga semiótica do espaço estaria enraizada nessa espécie de apresentação. O espaço e seus objetos, neste caso, não existem porque são signos de outra coisa, mas como realidade significante, condição que muitas vezes amplia o efeito de teatralidade da cena” (KOSOVSKI 2000, p. 79). Um cenário construído no teatro segundo os moldes clássicos é uma cópia de outro, um simulacro, é uma representação. Quando o mundo real, o cotidiano urbano funde-se a cena esta idéia clássica de representação é transformada. Os possíveis sentidos do espaço estariam calcados nesta noção de apresentação. O espaço e seus objetos, neste caso, não existem como aquilo que representa algo além de si mesmo, mas como realidade de significante, condição que muitas vezes amplia o efeito de teatralidade da cena. Neste espaço fundido ao real, as possibilidades de apropriação são as mais variadas e o lugar teatral torna-se elástico e fluido. Este horizonte de indeterminação encontra um centro no corpo do ator que condiciona e define o espaço, daí chega-se a uma unidade mínima do evento cênico: ator, espaço e espectador. Esta espacialização como prática do lugar compreende a mais relevante medida na relação homem-espaço. O espaço cênico, por conseguinte, configura-se como lugar praticado – seja uma rua, um galpão etc. – ultrapassando “a condição de neutralidade, de vazio preenchido por outro lugar como referência, como restrita representação de uma ausência” (KOSOVSKI 2000, p. 81). A idéia de teatralizar remete a uma origem inventiva, a de poetizar, de conformar uma situação em um determinado conjunto de dimensões. A teatralidade do espaço, associada à componente real do lugar, apresenta um espectro de significação que ultrapassa o próprio sentido dos elementos dados, lançando-se a uma esfera poética distinta. Através de uma negociação com o lugar, baseada no conceito de “praticar” de Certeau, o espaço cênico é capaz de empreender esta conotação poética ao lugar.

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FIGURA 12: Cena do espetáculo Paraíso Perdido, do Teatro da VertigemFonte: Casa da Foto, [200-].

FIGURA 13: Cena do espetáculo O Livro de Jó, do Teatro da VertigemFonte: Casa da Foto, [200-].

FIGURA 14: Cena do espetáculo Apocalipse 1,11, do Teatro da VertigemFonte: Casa da Foto, [200-].

FIGURA 15: Cena do espetáculo BR3, do Teatro da VertigemFonte: Teatro da Vertigem, [200-].

FIGURA 16: Cena do espetáculo O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem – Jó debate com seus amigosFonte: TRILOGIA..., 2002, p. 157.

FIGURA17: Cena do espetáculo O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem – Primeira cena da peçaFonte: TRILOGIA..., 2002, p. 112.

FIGURA 18: Cena do espetáculo O Livro de Jó, do Teatro da Vertigem – O personagem contrasta com o ambienteFonte: TRILOGIA..., 2002, p. 141.

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A partir de algumas questões ilustradas e suscitadas pelo estudo de caso, busca-se, neste capítulo, aprofundar-se nas análises no intuito de se verificar a validade das hipóteses colocadas através do esclarecimento dos argumentos que sustentam a discussão.

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5. TEATRO E ESPAÇO URBANO As formas de organização do espaço cênico são variadas. Este pode ser organizado como uma seqüência temporal, de forma que a progressão espacial seja uma equivalente no decorrer do tempo, como no teatro do Egito Antigo. Pode ser incorporado à vida cotidiana de forma tal que não exista um espaço e um tempo especial, como no teatro de Bali. Por outro lado, nada de especial pode ser concebido para o espaço, mas o evento transforma o lugar, inserindo-o em uma temporalidade diferenciada, como nos povos do oeste mexicano, ou no carnaval brasileiro. Ou, como para os gregos, o teatro deveria ser concebido para um lugar especial e para um tempo também especial. Observando alguns destes exemplos de diferentes culturas é possível afirmar que o espaço-tempo da ação teatral, do evento, é variável e assume inúmeras características. Desde uma formalização absoluta, que separa o evento da vida cotidiana, até vidas extremamente formalizadas, ritualizadas, onde os limites entre arte e vida são ultrapassados. Desde a criação de figurinos e cenários à utilização do que há de mais usual e corriqueiro, passando pela definição de locações e de cenários e paisagens naturais. Lídia Kosovski, em seu estudo Comunicação e Espaço Cênico. Do cubo teatral à cidade

escavada (2000), busca compreender as maneiras com as quais se constrói o espaço cênico teatral, a partir das relações que se estabelecem entre o teatro e o espaço urbano. Traça-se um panorama histórico capaz de ilustrar como as mudanças nos aspectos da natureza da encenação relacionam-se com espaço em que o evento acontece e em que medida isto se dá. Inicialmente compreende-se em que contexto o edifício teatro insere-se na história e quais influências ele exerce na constituição do espaço cênico e na encenação como um todo. Isto posto, busca-se compreender os movimentos de migração do edifício rumo ao espaço urbano e como esta experiência relaciona-se com as modificações nos aspectos do evento. Para Kosovski, as experiências cênicas que tomaram forma no século XX, especialmente a partir da segunda metade, em certa medida fundamentaram-se na problemática estabelecida nas relações entre a cena e o espaço, o local onde ela acontecia. Tal qual nas propostas de Artaud, Grotowski, Schechner e outros, buscava-se novas formas de relação entre a cena e o público que refletiam diretamente na conformação de espaços diferenciados.

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A transformação da idéia de lugar dá-se no curso deste século afetando significativamente a estrutura dramática, e nesta mudança do sentido de lugar deparamos com uma despedida do palco onde se estabeleceu o ‘estado sólido’ do naturalismo e a lógica de visibilidade por ele imposta. O espaço teatral passa a ser uma proposta, onde se constroem poéticas e estéticas, e também uma crítica a representação. Em contrapartida ao ‘estado sólido’, buscou-se a fluidez do ‘novo’, novos espaços que transformassem as relações internas da cena teatral e seu contato com a platéia, entre as quais valoriza-se o nomadismo da cena (KOSOVSKI, 2000, p. 78).

Um cenário construído no teatro nos moldes tradicionais é uma espécie de cópia de uma determinada realidade, um simulacro, uma representação, ao passo que quando o mundo real, o cotidiano urbano funde-se à cena esta idéia de representação é transformada. Isto se dá uma vez que esta inscreve uma dimensão de signo nos elementos de composição que dizem respeito à outra coisa. O que de fato ocorre quando o mundo cotidiano funde-se à cena na constituição do espaço cênico é que os elementos que a compõem adquirem uma carga de sentidos por si só, por existirem na cena. Neste caso, as possibilidades de apropriação do espaço são as mais variadas e o lugar teatral torna-se elástico e fluido. Este horizonte de indeterminação encontra um centro, uma unidade de referência no corpo do ator que condiciona e define o espaço, estabelecendo a escala do evento. Define-se, então, uma unidade mínima do que vem a ser a idéia de evento cênico - a combinação entre ator, espaço e espectador. Kosovski afirma que o teatro moderno e, principalmente, os eventos cênicos contemporâneos ampliam o espectro de opções do que pode vir a ser espaço cênico e isto pode ser abordado por inúmeras categorias de análise recentes, tais como limites, territorialidades, lugar e não lugar, nomadismo, espaço versus lugar etc. Partindo dos conceitos lingüísticos de Michael de Certeau, associados à ordem espacial, a autora analisa aspectos relevantes sobre a relação entre teatro e espaço urbano.

Para Certeau, o lugar é uma ordem estabelecida, segundo a qual se distribuem os elementos nas relações de coexistência e impera, portanto, a lei do ‘próprio’: cada elemento desta ordem se situa num lugar ‘próprio’ e distinto, definindo-se como configuração de posições e implicando uma indicação de estabilidade. Já o espaço considera vetores de direção, quantidades de velocidades e variáveis do tempo: espaço entendido como cruzamento de móveis, o espaço como o efeito produzido pelas operações que o orientam, o qual, diversamente do lugar, não tem a univocidade nem a estabilidade de um próprio. O espaço é visto por Certeau como um lugar praticado (KOSOVSKI, 2000, p. 81).

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Esta espacialização como prática do lugar compreende a mais relevante medida na relação homem-espaço. O espaço cênico, por conseguinte, configura-se como lugar praticado (seja uma rua, um galpão etc.) ultrapassando “a condição de neutralidade, de vazio preenchido por outro lugar como referência, como restrita representação de uma ausência”. (KOSOVSKI, 2000, p. 81). A idéia de teatralização remete a uma origem inventiva, a de poetizar, de conformar uma situação em um determinado conjunto de dimensões. A teatralidade do espaço, associada à componente real do lugar, apresenta um espectro de significação que ultrapassa o próprio sentido dos elementos dados, lançando-se a uma esfera poética distinta. Através da negociação com o lugar, baseada na idéia de praticar de Certeau, o espaço cênico é capaz de empreender esta conotação poética ao lugar.

A rua, como espaço multifuncional – que contém desde a atividade cotidiana e repetitiva até os movimentos mais violentos e transformadores da sociedade – potencializa as manifestações culturais de tipo político e lúdico. E, enquanto espaço de convivência, permite que o cidadão desfrute de um anonimato que o libera do peso do compromisso pessoal. No espaço aberto e em comunidade, o homem urbano se sente mais capaz de atuar. Este é um comportamento que facilita que na rua exista uma predisposição para a participação e o jogo (CARREIRA, 2005, p. 28).

A quantidade de informação que a rua traz consigo é enorme. Inscrever um evento no tecido urbano requer cuidados para que este grande número de informações não comprometa o espetáculo. O conjunto de sentidos e significados que se pode extrair do espaço habitual é consideravelmente complexo e a introdução de novos sentidos oriundos do habitat criado pelo evento pode tornar o todo um emaranhado confuso em aspectos semânticos. O público, principalmente no teatro de rua, tende a comportar-se de maneira natural, ou seja, da mesma forma com que se comportaria em um espetáculo teatral tradicional, almejando observar e compreender o espetáculo. Por outro lado, quem habita o site specific habitualmente também apresenta um comportamento tido como comum. Entretanto, este tipo de comportamento, seja do cidadão comum, seja do público, tende a ser contaminado por uma série de códigos acessórios que definem padrões de inscrição destes em sua situação social.

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O teatro urbano contemporâneo inscreve, através do evento, um espaço-tempo extraordinário que leva a vida cotidiana para além do seu extremo. O acontecimento retira os indivíduos espectadores da esfera do habitual, do ordinário, deslocando-os para este momento distinto, incitando-os a participarem ativamente do evento. Para tanto, desenvolve-se a estratégia mais adequada para o incremento da relação entre atores e público. Esta relação constitui a essência do teatro, sua espinha dorsal, e demanda o mais intenso trabalho de pesquisa e de amadurecimento, pois sem ela o evento deixa de existir. A linguagem da encenação, portanto, deve ser essencial, abolindo elementos supérfluos e se concentrando no fundamental. Nos momentos extraordinários que o evento configura, o gesto deixa de ser o comum, passa a constituir-se um gesto significativo e este pode ser compreendido como a unidade elementar da expressão, conforme defendia Grotowski. Portanto, um evento cênico do teatro urbano contemporâneo é concebido segundo seus elementos essenciais já que o site onde se insere traz no seu bojo um amplo espectro semântico a ser incorporado, contaminado e trabalhado. Ao mesmo tempo estabelece-se uma relação diferenciada com o público e esta se caracteriza por um maior envolvimento deste, ultrapassando o papel de espectador e constituindo-se participador ativo do evento. A negociação com o espaço estipula as regras que definem o jogo que se inicia, onde o espectador passa a ser um dos seus elementos. Por maior que seja a escala do evento, para que ele consiga realizar-se e alcançar sucesso, deve-se ter em mente, sempre, a unidade mínima, essencial, que o constitui – a relação entre o ator e o espectador. Isto é uma das principais características do teatro urbano, como, por exemplo, a produção do Vertigem. O deslocamento do foco central do evento de sua linguagem de encenação e dos procedimentos técnicos a serem usados na realização da cena, para uma concentração nas relações entre o trabalho dos atores e o público. Propõe-se operar em uma escala bem diferente do tradicional. Ao migrar para o urbano, o evento tem de lidar com elementos ligados ao tecido que compõe a cidade. As dimensões impostas ao espetáculo por seu meio circundante, seu sítio de inserção, necessitam ser repensadas para que se insiram adequadamente de forma a não desaparecerem no momento do acontecimento e, assim, perderem seu foco e objetivo iniciais. Quando se trabalha em um edifício tradicionalmente destinado ao teatro, ou mesmo, em vários casos, em espaços

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alternativos, tem-se a medida exata para a definição do que vem a ser a escala do espetáculo e das relações entre o espaço da cena. A arquitetura teatral torna-se mensurável, assim como a medida do homem que se constituirá o espectador, que pode ser encarado, neste caso, como um indivíduo acostumado e preparado para aquilo que venha a acontecer naquele espaço, como uma espécie de predisposição. Na rua, a situação é bem distinta e para se ter sucesso na empreitada são necessários muitos cuidados e uma apurada observação. Dentro do edifício teatro é possível, através da técnica, uma compreensão mais fácil do espetáculo, mesmo porque, na maioria dos casos, o espectador encontra-se estático, ocupando o mesmo lugar do mesmo modo, aumentando a sua predisposição ao entendimento do que está diante de si. Ao migrar-se para a rua, faz-se necessária muito mais intensidade em todos os aspectos do evento. Demanda-se maior concentração no que se realiza e cada elemento deve ser bem focado, realizado e produzido para que seja compreendido. Ao mesmo tempo, em um evento inserido no espaço urbano, por exemplo, não se tem como imaginar uma categoria específica de indivíduo espectador, muito menos utilizar uma referência estática. Estabelece-se contato com indivíduos distintos e que, em alguns casos, não tem absolutamente nada a ver com aquilo que ocorre. Desta forma, deve-se pensar no teatro para as pessoas de uma maneira geral e não para a clientela tradicionalmente acostumada. Nesse sentido, como afirmou Peter Schumann, fundador do grupo teatral Bread & Puppet Theatre “na rua o espetáculo tem de ser bobo. Tem de ser tremendamente concentrado” (CRUCIANI, 1999, p. 95). O teatro urbano sofre interferências das mais diversas formas próprias dos espaços que ocupa, determinando condicionantes ao evento cênico durante o seu acontecimento. Como mostrado no exemplo do espetáculo O Livro de Jó, o fato de este acontecer em um hospital condicionou-o a ser concentrado. Isto se dá por que os ruídos, o trânsito de pessoas e uma série de acontecimentos diversos interferem na cena, potencializando a dispersão da atenção tanto do público quanto dos atores. A proposta que norteia a linguagem cênica do evento deve buscar, então, uma síntese expressiva que se articule com o espaço em que se instala o seu site specific no intuito de não estabelecer uma espécie de disputa com o espaço urbano.

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Enquanto a linguagem cênica tende a ser concentrada, a ocupação do espaço pode ser diluída. Na estrutura tradicional, na maioria das vezes, os acontecimentos ocorrem no palco que tudo concentra. Ao ocupar-se espaços da cidade, de uma forma não tradicional, é possível pulverizar-se o acontecimento em diversos espaços concatenados, provocando deslocamentos das cenas e do público, diluindo o evento em uma ocupação mais ampliada do seu site specific. O teatro urbano é fruto de uma complexa situação. Esta é compreendida a partir da apropriação de espaços cujo uso habitual, ordinário, é distinto do teatro. Depara-se com o próprio significado de seu existir ao chocar-se com uma fração da sociedade inserida em um determinado contexto urbano que nunca havia o procurado e, de certa forma, nunca demandou este teatro. Pelas ruas mistura-se com esta realidade, cruza seu caminho com outros diferentes e, como que por acaso, torna o simples transeunte em espectador, podendo ir além se o envolvimento deste transeunte for grande, tornando-o um participador. O contato com o real conduz o teatro urbano a superar alguns limites pré-estabelecidos ao teatro convencional e ao teatro ao ar livre. A relação entre cena e público que se estabelece passa tanto pela via dita visual quanto pela sinestésica. Por aproximar-se do real, o inusitado e a improvisação surgem com relevância e se abre para experiências inusitadas que possam agregar nuances inovadoras no evento. Para este improviso ser potencialmente explorado, o espetáculo deve manter-se flexível, fundamentado em um eixo simples (o “bobo” que se refere Schumann), para que mesmo densamente contaminado pelo o que ocorre no momento, não perca suas características básicas essenciais. O evento vincula-se, neste caso, ao tempo de seu acontecimento de maneira mais íntima e a experiência aprofunda-se em sua temporalidade à medida que seu caráter provisório evidencia-se. Assume-se uma postura crítica ao participar-se do evento uma vez que este compreende uma subversão da ordem estabelecida colocada em inúmeros aspectos. Certamente um dos pontos de discussão mais ricos que podem ser levantados é a relação entre o evento e o próprio site de inserção, neste caso, a cidade.

5.1. A apropriação do espaço urbano Com a explosão do palco italiano, mais ainda, do edifício teatro e sua estrutura que impunha limites através de sua topologia e geografia determinadas e disciplinadoras, o teatro expande-se

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e, de certa forma, resgata, re-fagocita o espaço urbano da cidade. Com isso torna-se possível escolher qualquer espaço, por mais inusitado que seja, para desenvolver-se um evento cênico das maneiras mais diversas e múltiplas.

Criaram-se assim poéticas de auto-exílio. Um exílio, e não um degredo, sediado na realidade, na cidade e seus arredores, nas ruas ou sob tetos escolhidos e transformados a cada momento, que se armam e se desarmam como uma tenda – uma invenção de espaços, de arquiteturas móveis, voláteis e efêmeras, sem fixidez – a eliminar a política do edifício privado, seus significados simbólicos e condicionamentos prévios; a poética de teatros sem teto, ou de tetos provisórios, a transformação de qualquer lugar em palco. A proposta da aventura nômade, sem asilo, em busca de uma especificidade teatral – por uma magia sem mistérios (KOSOVSKI, 2005, p.11).

A partir da concretude real deste site specific, neste caso a rua, o evento estabelece seus possíveis vetores de atuação. Inscrevendo-se na topologia que se apresenta disponível, o evento define a sua cartografia que conduzirá ao acontecimento. Além disso, determinará um possível raio de alcance no campo de sua atuação, constituindo o seu habitat. Este habitat caracteriza-se por possuir um espaço e um tempo próprios e estes podem ou não coincidir com o espaço e o tempo reais e específicos do site. Mesmo coincidindo, o espaço real, o habitual, e o espaço cênico, o habitat, não dialogam harmoniosamente. O evento promove uma tensão entre ambos e esta gera os aspectos críticos e, ao mesmo tempo, poéticos do espetáculo já que promove uma subversão do que é estabelecido no cotidiano, extrapolando limites e revelando possibilidades inovadoras de relação com o site. A rua não é encarada como uma mera decoração. O Livro de Jó, por exemplo, apresenta, à sua maneira, argumentos e possibilidades diferenciadas de apropriação da rua e até mesmo da própria cidade, ao mesmo tempo em que nela acontece. Apresenta outras formas de habitar o espaço e habita de outras formas o seu site. Uma outra abordagem do que pode ser a relação entre o indivíduo e a rua, o espaço urbano que constitui a cidade, emerge da tensão estabelecida durante o evento em seu acontecimento no espaço e no tempo próprios. O teatro urbano não busca impor uma nova abordagem, procura abrir possibilidades outras de apropriação dos espaços, seja cênico, seja cotidiano. O evento funciona como um procedimento artístico que objetiva estabelecer hipóteses inovadoras de experiências tanto físicas quanto

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mentais no público espectador. Este, ao entrar em contato com o espetáculo, participando do evento, cria seus processos de subjetivação próprios que culminam em uma experiência total, onde a percepção, as sensações e a interação com o site, com o habitat estabelecido, constituem algo único, indivisível. Para que de fato o evento ocorra, faz-se necessário um espaço e um indivíduo, um sujeito para poder existir. Assim ele se caracteriza pelo determinado momento onde o corpo do sujeito estabelece contato com o universo que o cerca. Para que seja um acontecimento, o evento deixa de ser uma espécie de objeto autônomo que é concebido e exibido, como o que se tem em um teatro apresentado em uma arquitetura teatral tradicional. Ele passa a ser concebido em uma abordagem muito mais complexa tanto de constituição quanto de percepção deste evento em um dado espaço tridimensional e socialmente elaborado. Por maior que seja a cidade, quando nela busca-se inscrever certa teatralidade, constituir um espaço cênico, a escala possível para dimensionar o alcance do evento é a escala humana, o limite do olhar humano. Assim, tanto uma pequena cidade quanto uma megalópole serão abordadas de forma semelhante, já que serão tomadas como fragmento, um recorte de um todo que é muito mais amplo, mas terão impactos bastante distintos em cada caso. O espaço urbano, com suas características específicas e seu contexto maior, a cidade, também passa a conformar parte do trabalho, transformando-se em um participante ativo na obra como um todo. O sentido que emerge no evento encontra-se na tensão gerada entre o indivíduo e a realidade concreta em uma situação determinada pelo site e pela experiência prévia do espectador, catalisados pelo evento e seus elementos constituintes. Seguindo uma forte tendência tanto das artes visuais quanto das artes cênicas (como colocado anteriormente neste estudo), apresenta-se uma reorientação do campo pictórico, visual, para o campo espacial ao conceber o espaço cênico. Essa ampliação da espacialização do evento cênico abre possibilidades de experimentação do espaço-tempo que permite uma maior relação entre o indivíduo espectador e o evento, tornando-o um participante ativo e atuante. Um outro espaço implicará em novas possibilidades e novas relações em potencial. A criação de novos aspectos simbólicos bem como a elaboração de sentido está intimamente ligada à presença e análise destes espaços vinculados ao real. A cidade é percebida para além de sua funcionalidade quando se busca inscrever um evento no seu tecido urbano. Faz-se necessária uma abordagem imaginativa, pois sempre existirá algo além do alcance da percepção humana. O evento, ao instalar-se, delimita seu território próprio, imprimindo-lhe significação. O significado,

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o sentido do espaço cênico é produto de uma revelação, de uma acentuação de seu caráter cênico. Assim, não é possível imaginar-se uma rua ideal, criar-se uma idéia geral de rua para conceber o evento e alocar o espaço cênico uma vez que este não é autônomo e estabelece uma relação de interdependência que demanda novas estratégias de apropriação a cada novo site para habitá-lo. Considera-se todas as variáveis que o novo site traz consigo para a definição das estratégias de apropriação do espaço que apontarão os possíveis vetores de relação entre os elementos existentes e os que serão colocados durante o acontecimento do evento. Elimina-se a dicotomia existente entre a arquitetura teatral e a cenografia, entre o evento e o seu sítio de inserção uma vez que os funde em um espaço do evento, o habitat do acontecimento, poético em sua essência. Um determinado lugar da cidade, que poderia servir como um mero suporte ao acontecimento, torna-se o campo ativo de experimentação do evento, integrando-se e transformando-se em mais um dos participantes. Para tanto, é fundamental perceber a carga semântica do lugar para se estabelecer o site da ação. Em uma estrutura arquitetônica teatral tida como tradicional, o palco é um espaço neutro, que funciona como um suporte para o acontecimento. Essa neutralidade torna-o flexível, já que se torna capaz de abrigar os mais variados tipos de eventos. Neste tipo de estrutura, a relação entre a cena e o público é, predominantemente, a mesma, o que também faz a experiência do evento reduzir a possibilidade do inesperado surgir. Ao se introduzir o espaço urbano como um participante ativo do jogo que caracteriza o teatro urbano, ele deixa de ser compreendido como uma mera decoração. No caso do Teatro da Vertigem, a igreja, o hospital, o presídio e o rio Tietê17, não são meros suportes para os acontecimentos. Além de serem espaços cênicos que contribuem para que o ator torne-se um personagem; para que o lugar teatral instale-se; para que a relação entre a cena e o público dê-se de forma diferenciada; a carga semântica dos espaços é tida como relevante. Sua importância reside na possibilidade de introduzir outros sentidos e significados no espaço cênico que estejam vinculados diretamente à proposta do evento. Desta forma, o hospital, no Livro de Jó, é usado como site specific por ser, em nossa cultura, um espaço que representa bem a condição de transitoriedade e finitude do homem, assim como a da precariedade da vida.

17 No mais recente espetáculo do Teatro da Vertigem, BR3, usou-se o rio Tietê como site specific.

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O espaço urbano é apropriado por não ser neutro. Ele contamina a cena e a acresce em sentido. Aprofunda-se a experiência do jogo no teatro urbano justamente por que as experiências prévias dos indivíduos nos espaços habituais, então apropriados de forma extraordinária, aumentam a tensão estabelecida entre todos os elementos envolvidos no jogar. Para uma determinada peça, demanda-se um espaço específico para o acontecimento, que seja capaz de participar do jogo ativamente, contaminando e agregando sentidos e possibilidades diferenciadas de relação entre cena e público. Assim, pode-se concluir que a primeira hipótese colocada como norteadora deste trabalho é verdadeira. O espaço urbano não é neutro, sua carga semântica é considerada ao se buscar onde se estabelecerá o site specific do evento cênico. Torna-se mais que uma mera decoração que abrigará um determinado acontecimento, o espaço urbano assume-se com elemento ativo do jogo. Enfim, o artista, no teatro urbano contemporâneo, busca estabelecer uma tensão entre o sentido habitual de um determinado espaço, que é usado como site specific, e um sentido poético que pode ser extraído daquele mesmo determinado espaço na constituição da cena, para que o público possa habitar o espaço cênico proposto. Esta tensão é gerada ao se estabelecer um diálogo entre o sentido real do espaço, baseado em seu uso cotidiano e ordinário, com o sentido extraordinário do espaço cênico, que altera o que é habitual para constituir um outro habitat.

5.2. O jogo político do espaço O pensamento de Jacques Rancière pode auxiliar na busca por uma compreensão do processo de constituição do espaço cênico no diálogo com o espaço urbano. Em sua obra A Partilha do

Sensível (RANCIÈRE 2005) ele afirma que partilha pode ser entendida tanto com um “comum” quanto um “lugar de disputas” por este comum, sendo que estas disputas definem competências e incompetências para a partilha. Do ponto de vista da estética, a arte tradicional (e que aqui se inclui as artes cênicas) aproxima-se da “vida”. Apresenta-se como um extraordinário frente ao ordinário dos demais trabalhos, ao passo que a arte moderna, tida como um trabalho banal, dela

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se afasta. Cabe colocar que a arte contemporânea, incluindo as artes performáticas, segue o mesmo esteio da arte moderna postulada por Rancière. A partilha determina um comum a ser partilhado, bem como as partes repartidas. A repartição do espaço, tempo e tipo de atividades determina como o comum será partilhado e como os indivíduos tomarão parte na partilha. Assim, emergem possibilidades de existência de modos de sentir e induzir outras formas de subjetividade política. Para Rancière, a política não pode ser compreendida como um estado fixo, pelo contrário, está mais vinculada a uma ação, constituindo-se um ato dinâmico, de caráter performático. Política é definida como uma atividade que provoca o deslocamento de um determinado corpo do lugar que lhe é atribuído, subvertendo sua função. Revela-se o que não havia para ser visto e faz-se entender como discurso o que era percebido como ruído até então. A partir desta definição de política, entendida como uma instância onde o conflito não é somente representado, mas onde esta representação gera, também, uma tensão entre os sistemas existentes, com suas próprias regras, revela-se o potencial de transformação da arte. Bem como possibilita uma distinção entre os seus sistemas de representação. Alguns trabalhos que se denominam politicamente críticos tendem a reduzir-se à sua dimensão puramente estética, em cujo conteúdo crítico colocado em questão é representado, porém o potencial transformador da arte não é ativado. Por outro lado, outros trabalhos ativam este potencial transformador da arte através de seus aspectos dinâmicos, ou seja, performáticos, como, por exemplo, o teatro urbano contemporâneo, em que os trabalhos do Teatro da Vertigem incluem-se. Este tipo de trabalho interfere de forma incisiva e direta na forma como as subjetividades e suas relações se configuram. O espaço cênico configurado pelo Teatro da Vertigem no Livro de Jó, por exemplo, passa a ser encarado como um lugar que não se limita a representar o conjunto social em que se insere, mas que atua diretamente na sua produção, estabelecendo formas diferenciadas de subjetividade política. A desconstrução de convenções do espetáculo tradicional que esta vertente do teatro urbano opera realiza-se em uma tensão que constitui uma instância adequada à atuação desta política ao gerar conflitos com os conceitos que revela ao apresentá-los. Estes níveis distintos de ação política, que atuam tanto nos conteúdos, quanto nos modos de produção da cena e constituição do espaço performático, alteram as maneiras de ver, perceber e experimentar o contexto em que se insere.

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O teatro urbano constitui um exemplo de perda da autonomia da obra de arte, neste caso, o site de inserção atua como parte integrante de um trabalho, gerando interferência direta na sua concepção e percepção. Isto abre portas para uma maior gama de exploração das potencialidades das relações estabelecidas entre lugares, sejam ambientes externos ou internos, bem como das transições possíveis entre o espaço real, concreto e o espaço performático, fundamentalmente poético e lúdico. O site specific em que se cria o habitat que configura o lugar teatral potencializa a rearticulação das ações no espaço-tempo que surgem com o evento. Definições absolutas e estáticas de como o conteúdo e sua expressão relacionam-se são substituídas por outras estruturas de sentido em que a subjetividade do indivíduo espectador, e, a esta altura participador, é evidenciada. O espectador torna-se fundamental para a existência do evento e através dele o trabalho se dispersa, é partilhado, para usar os termos de Rancière. Este encontro entre atores e público determina “a divisão de espaços, de tempos e das relações intersubjetivas dentro de um comum, trazendo a possibilidade de fazer existir novos modos de sentir e induzir a novas formas de subjetividade política” (RANCIÈRE, 2000, p. 7-12). O espaço cênico constituído pelo evento teatral, principalmente no teatro urbano contemporâneo, compõe-se de ações que, de alguma forma, agem mais diretamente sobre o indivíduo em sua corporeidade, distanciando-se da noção de espaço mimético, da imitação de ações. O evento transforma o espaço urbano em um lugar de apresentação, de acontecimentos, que constitui um habitat distinto do lugar habitual, sugerindo ou mesmo tornando-se um outro lugar, uma heterotopia. Este procedimento do evento teatral que sugere estes outros lugares, espaços poéticos, a partir do espaço real do site, habitual, abre um amplo campo para um jogo, onde o público, cena e atores inserem-se sem ter suas relações pré-determinadas, ampliando o desenvolvimento de processos e procedimentos durante o acontecimento. O processo que antes determinava a posição e o papel do público como espectador, do ator como executor e da cena como objeto de observação, é subvertido e se passa a uma constituição em processo, ativa e eminentemente política. O teatro urbano contemporâneo parte do pressuposto que o tecido urbano que configura o espaço da cidade é um possível site de um evento teatral. O espaço urbano é compreendido, então, como um campo de ação do teatro. Os elementos que compõem este espaço da cidade

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como, por exemplo, a rua, são abordados como espaço em fragmentos composto de múltiplas funções e contaminadas de diversos signos e sentidos. A cidade contemporânea abriga as mais variadas atividades e realidades sociais que conformam espaços diversificados que se distribuem de forma complexa e heterogênea pelo tecido urbano.

As cidades atuais conformam espaços urbanos diversos e fragmentários que se encontram estritamente articulados com seus diferentes setores sociais em permanente relação. Este fragmentário está articulado por meio do fluxo de veículos e de pessoas, e tem como principal característica a desigualdade no marco de uma ampla diversidade cultural (CARREIRA, 2005, p.27).

As intervenções urbanas em que se constituem os eventos cênicos característicos do teatro urbano apropriam-se da rua como uma espécie de lugar onde é possível instalar o espetacular. A rua abriga as mais diferentes atividades e funções simultaneamente. Esse seu caráter múltiplo permite uma ampla abertura para a inscrição do evento cênico, englobando, ou não, a sua realidade limítrofe e ordinária imediata. Além de seu caráter funcional, a rua também se constitui um espaço de convivência entre indivíduos e, segundo esta ótica, integra-os, possibilitando uma reunião destes configurando uma comunidade. Inserido nesta comunidade, o indivíduo desfruta de maior liberdade para atuar - uma vez que sua escala de referência deixa de ser o individual e se torna o coletivo - e participar do jogo que é proposto pelo evento cênico que, essencialmente, é lúdico e poético. A rua, portanto, apresenta este caráter dúbio que a caracteriza como um espaço que simultaneamente abriga funções ortodoxas e ordinárias, que impõem uma atitude previsível aos indivíduos, bem como abriga também a liberdade lúdica e a abertura para o jogo. A mudança de caráter depende dos processos atuantes em um determinado espaço e fração de tempo que provocam a mudança deste equilíbrio dinâmico que se estabelece entre estas funções da rua quase que completamente opostas. O teatro urbano contemporâneo vem perturbar a harmonia que conforma os espaços da cidade no seu espaço-tempo habitual. O aspecto lúdico do espaço cênico potencializa a atuação mais livre e criativa do evento sobre o tecido urbano que compõem a cidade e provoca, mais incisivamente, a participação dos indivíduos no evento. O jogo altera a lógica estabelecida no espaço urbano habitual, possibilitando a abertura para as mais variadas abordagens deste espaço, dando-o qualidades diferenciadas e atribuindo outros sentidos aos elementos que compõem a ordem instituída durante o acontecimento. As características

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fundamentais do espaço urbano possuem um sentido próprio que é subvertido pelo evento do teatro urbano segundo variadas intensidades e graus diferenciados de aprofundamento. Neste sentido, então, compreende-se que este jogo proposto pelo evento cênico é eminentemente político, segundo o pensamento de Jacques Rancière. A construção do habitat próprio do evento, cujo fundamento é lúdico, introduz uma tensão entre o real e o espetáculo, entre o ordinário e o extraordinário, capaz de deslocar, criticamente ou não, os sentidos habituais dos elementos que constituem o site do evento. Assim, por exemplo, a rua deixa de ser encarada como um espaço para a circulação e trânsito e torna-se um rio, ou uma passarela, bem como o pedestre torna-se um revolucionário, ou um punk, ao participar do evento, habitando, de fato, o espaço cênico durante o acontecimento do evento. Depois da perturbação momentânea, resta a memória e o registro da experiência. A ordem estabelecida torna a reinar. À medida que o evento estabelece uma comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, a cena esvazia-se de tudo o que não é eminentemente teatral, o espaço cênico abandona o seu caráter representativo. A espacialidade que emerge do espetáculo tende a ser encarada como uma espécie de demonstração experimental da relação e identidade profunda entre a realidade concreta e o abstrato, que remete à idéia de representação original, anterior à palavra, que preconiza Artaud. Enfim, o teatro urbano propõe um espaço que não represente uma realidade. O espaço cênico deve apresentar a realidade eminentemente teatral, criando uma espécie de cosmos próprio do evento e que amplia e aprofunda a inserção do espectador no mesmo, gerando possibilidades para que ele habite este espaço-tempo, participando intensamente do jogo que lhe é apresentado. A encenação constitui-se a parte verdadeira e especificamente teatral do espetáculo, está ligada à realização, ao acontecimento. Ao deslocar-se o teatro de seu vínculo preponderante com o texto, amplia-se a linguagem da cena, incrementando-a. Ao não se basear, primordialmente, no diálogo, o teatro não será uma forma definida a priori. Tudo surge no desenvolvimento da cena e em sua decorrência. Assim, o produto não é finalizado, torna-se mais aberto e,

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conseqüentemente, mais arejado. Os elementos que constituirão a linguagem da cena surgem de movimentos promovidos pelo processo de sua constituição, que se compreenderá como uma composição inscrita, não escrita. O teatro deve agir no homem e não enfeitá-lo. Deve-se atingir algo além do espírito. Pelos sentidos, alcança regiões mais ricas e fecundas da sensibilidade humana. O espetáculo é sinestésico. Profundo em todos os sentidos, eliminando a dicotomia entre o espectador e a cena. Todos estão envolvidos nesta espécie de ritual que estimula o homem nas formas mais infinitesimalmente sutis. Não há lacuna, espaço vazio entre o público e a cena, tudo, enfim, será evento. Ao buscar-se espaços do cotidiano para a constituição do espaço cênico, onde o habitual exerce influência decisiva na percepção do sentido do espaço, abre-se uma gama de possibilidades de apropriação aleatórias, onde o imprevisto torna-se imprescindível e inevitável. Daí pulsa a vida e, por mais que possa ser dirigido, controlado, o evento torna-se único, aproxima-se do original, uma vez que o acaso potencializa a construção individualizada de uma relação entre o indivíduo que compõe o público e o espaço cênico. A partir de uma abordagem inicial, onde se identifica o potencial de um determinado espaço como elemento expressivamente ativo no contexto específico que é o evento, estabelecem-se os vetores que dirigem o acontecimento. A cada incursão verifica-se a experiência do que vem a ser este espaço e aprofunda-se nas suas potencialidades como elemento participativo. Este aprofundamento no estado bruto do espaço amplia as possibilidades de compreensão dos processos que o transformarão em um lugar, ou seja, um espaço vivido. Esta compreensão mais aprofundada é o que transforma este lugar em algo mais que um suporte para um acontecimento, já que, uma vez compreendido e vivenciado, torna-se mais claro como se apropriar, ou melhor, dialogar como este lugar. Definido o espaço e como ele e os elementos que o constituem serão abordados, estabelece-se como o espaço participará do jogo. Busca-se a partir do que compõe o habitual do espaço urbano as referências essenciais para a fundamentação do diálogo entre esta instância ordinária e o acontecimento do evento. A condição de não neutralidade é fundamental para que isto se dê, já que a carga semântica do lugar é condição primordial para que o evento aconteça.

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A construção do espaço cênico, a partir do espaço urbano demanda clareza tanto no elenco de possibilidades de abordagem, quanto no diálogo em si. Isto se dá à medida que a quantidade de informação presente no mesmo espaço pode interferir na experimentação da cena, quanto mais na do evento. Essas práticas que consideram a existência da materialidade do espaço definido como site specific do evento abrem outras possibilidades de relação entre os elementos inseridos e os que podem ser encontrados no espaço. Cada novo espaço escolhido oferece inúmeras possibilidades de diálogo e potencializa relações diferenciadas e inovadoras. A produção do espaço cênico depende destes espaços ordinários que já existem uma vez que deles extrai-se os sentidos, decifra-se os signos e códigos que os tornam habituais. O teatro urbano cria um espaço cênico que não é autônomo, que se apropria e, praticamente, habita o espaço urbano, caracterizando-o como seu site specific. A cenografia amplia-se, funde-se à arquitetura e abre possibilidade de existência de uma experiência no espaço e no tempo próprios do evento em que se permite uma troca e uma interação diferenciadas entre os elementos envolvidos. O indivíduo espectador torna-se participativo e atuante, desta forma, deixa uma situação de inexistência e autonomia em relação ao evento e adquire uma condição de sujeito. O espaço deixa de ser construído por uma prática de adaptação ou ajuste a um lugar pré-existente, autônomo, e passa a ser orientado por uma nova prática. Esta consiste na eliminação da dicotomia que distingue o espaço cênico do evento do seu site de inserção. O espaço cênico passa a ser mais que o lugar da ação, torna-se um lugar de ação. No teatro urbano este lugar da ação é um dos elementos que participam do jogo, que não só auxilia na construção do personagem, mas que dialoga com o espectador participativo. Esta relação diferenciada que se dá entre a ação, o espaço e o tempo através do teatro urbano, que repercute nas formas de participação dos atores, do público e do site specific, introduz outras maneiras de recepção. Esta, por sua vez, funda possibilidades diferenciadas de experimentação do evento que demandam uma outra sensibilidade, principalmente por parte do público. A sensibilidade que funda a forma de relação do espectador com a cena aprofundará, tornando-se mais sinestésica e reflexiva, abrindo-se para o que atinge não só a mente, mas, como afirma Artaud, o espírito. Isto se dá a partir do momento em que se participa engajando-se corporalmente no evento e que o ambiente em que está inserido não abriga o evento, mas é

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parte dele. Além disso, a experimentação do acontecimento em cena vincula-se a uma vivência particular de cada indivíduo para o seu aprofundamento. Esta outra sensibilidade promove uma apropriação dos espaços que ultrapassa uma determinação estabelecida por componentes físicos e territoriais. O teatro urbano lida como o espaço real de uma forma que este possa ser, simultaneamente, um espaço cênico, que é poético e lúdico em sua essência. Extrai-se o extraordinário daquilo que compõe o habitual do espaço urbano e se abre para a transformação deste, bem como para a inserção de novos lugares imaginários e irreais. Ou seja, o teatro urbano apresenta lugares outros e os superpõe ao lugar real do cotidiano, durante um determinado período de tempo em que o evento acontece. Esta superposição gera uma tensão entre o que existe no site specific e o que acontece no evento. A partir de um sentido latente do espaço, ligado ao habitual do cotidiano, acrescenta-se outros sentidos, criando outros lugares e inserindo-os no mesmo espaço, definindo, como nos termos de Michel Foucault, uma heterotopia. A noção de heterotopia perpassa a idéia de uma superposição de espaços, que prescinde a existência de vários outros espaços distintos durante certo período de tempo. A existência simultânea não pressupõe substituição ou eliminação de um espaço como condição de existência do outro. Pelo contrário, permite que vários espaços co-habitem um mesmo site

specific para que gerem a tensão fundamental para a existência do teatro urbano. Desta forma, existe uma operação com vários sentidos e significados dos espaços que habitam o lugar teatral. A segunda hipótese que norteia este presente trabalho afirma que os eventos cênicos vinculados ao teatro urbano ressemantizam o espaço e esse processo contribui para a requalificação do mesmo. O termo ressemantizar (que vem de re-semantizar) denota uma substituição de um sentido anterior existente por um outro distinto. Como visto, o teatro urbano gera uma heterotopia que não necessariamente substitui um sentido por outro. Existe, sim, um acréscimo de sentidos e significados à medida que os espaços outros se superpõem ao real. No Livro de Jó, o hospital continua a ser um hospital durante a peça, pois assim é possível que o espaço cênico participe ativamente como elemento do evento. A tensão gerada no espaço dá-se, justamente, por não ser possível desvincular-se o espaço real do espaço cênico na experiência do evento, por mais que se tente. Nesta ausência de autonomia entre os espaços é que residem

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as operações semânticas que tendem a ser acumulativas e não eliminatórias. O mesmo raciocínio aplica-se à noção de requalificação do espaço. No teatro urbano há mais um acréscimo de outras qualidades ao site specific que uma substituição. Esta operação, assim como o acréscimo de sentidos, acontece durante o evento. Depois, na maioria das vezes, retorna-se a situação original do espaço real. Portanto, pode-se afirmar que os eventos cênicos vinculados ao teatro urbano acrescentam sentidos outros ao espaço real e este processo potencializa o surgimento de outras qualidades do mesmo, possibilitando outras formas de apropriação. Por fim, pode-se verificar que ao estabelecer um diálogo mais íntimo com o espaço urbano, o teatro sofre muito mais que exerce influência na cidade. Ao aproximar-se do urbano para a produção do espaço cênico o teatro modifica-se, recriando estratégias para adaptar-se. Cria-se uma outra linguagem para o teatro, mas não se cria uma outra rua, ou outro espaço urbano. Enquanto as modificações e a contaminação da linguagem acontecem de forma incisiva, estrutural e fundamental no teatro, o espaço urbano abre-se para outras possibilidades de apropriação durante o acontecimento do evento, tornando a ser o que era ao fim deste tempo. O teatro, então depende mais do espaço urbano que este daquele.

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Por fim, o último capítulo é dedicado à demonstração de mudanças que se deram no entendimento do problema e quais foram as contribuições do trabalho para o avanço do conhecimento na área em que abrange. Além disso, busca-se indicar novos problemas que o trabalho suscita, revelando o que ainda permanece em aberto e prospectando um caminho fértil para futuras pesquisas.

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6. CONCLUSÃO Trabalhar na fronteira entre dois campos aparentemente tão distintos quanto o são a arquitetura e o teatro constitui-se uma tarefa árdua, porém prazerosa. Esta distinção é aparente, pois ambas possuem pontos em comum que revelam seu parentesco. Conforme colocado anteriormente, o elemento mínimo comum entre o teatro e a arquitetura é o espaço. Este se apresenta como ponto de interseção através da cenografia. Esta, porém, antes mesmo de constituir-se espaço cênico, serve como um elemento que auxilia o ator na construção do personagem, assim como a arquitetura colabora para que o indivíduo torne-se um sujeito. Esse processo, em ambos os casos funda-se em um jogo que demanda uma participação efetiva dos envolvidos para que de fato aconteça. A cenografia deixa de ser pensada para que o público a contemple, como se fosse uma escultura, e é concebida como um elemento efetivo de construção de uma subjetividade. No caso do teatro, este sujeito é um personagem. O espaço, no mundo contemporâneo, não é mais analisado como uma categoria estanque, que emite um significado e determina um ser e um fazer. Concebe-se o espaço como um processo, capaz de potencializar significados e que é definido por uma ação em um determinado período de tempo. Desta forma, a arquitetura será caracterizada como um espaço da ação, assim como a cenografia se relacionará com um acontecimento. A tríade espaço, tempo e ação configurará os elementos essenciais tanto do teatro, quanto da arquitetura. O foco, então, amplia-se para as relações entre os indivíduos e o espaço, seja aquele que potencializa a relação entre a cena e o público, seja aquele que promove o encontro com o outro. Nesse sentido, o trabalho do arquiteto ou do cenógrafo desloca-se para um outro registro. Antes de se pensar uma arquitetura, seja teatral ou não, segundo um paradigma contemplativo, pragmático e funcional, deve-se pensar no acontecimento. A partir daí é possível compreender algumas pistas que indicam as possibilidades de apropriação concreta dos espaços, assim como as suas potencialidades, ou seja, torna-se possível agregar-se ao espaço uma polivalência e certa flexibilidade que legitimam a sua existência. Não só sua existência, mas a capacidade de atualizar-se no intuito de atender as demandas múltiplas e mutantes dos tempos atuais.

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A arquitetura já pressupõe um diálogo mais íntimo entre o seu espaço e o indivíduo que com ela se relaciona. O uso é uma das condicionantes essenciais para que a arquitetura o seja em si em plenitude, desta forma, ela necessita que haja uma apropriação por parte do indivíduo. A sua recepção, como colocado por Benjamin (1994), tem características táteis, fruto de uma percepção distraída, ligada ao hábito. Este que, em certa medida, define a própria recepção ótica. Existe, então, uma relação de interdependência entre o espaço e aquele que o habita. A forma com que o Teatro da Vertigem apropria-se de determinados espaços da cidade no intuito de agregar o seu significado como elemento do evento, introduz uma crítica a forma com que se pensa e produz a arquitetura nos dias atuais. Cada vez mais os espaços são concebidos segundo uma experiência predominantemente visual, baseada na contemplação. Busca-se conceber um espaço que defina o indivíduo. Cria-se um modelo de indivíduo que se relacionará com o espaço, atribuindo-se características das mais variadas que classificam os que ocuparão o ambiente. A prática arquitetural baseada nesta idéia elimina de seus pressupostos de concepção a experiência do indivíduo no aqui e agora do espaço para, em contrapartida, estabilizar e delimitar a forma. De alguma forma, isso coincide com uma produção de espaços sem significados e que limitam a sua apropriação. A cidade, consequentemente, esvazia-se, tornando-se um conjunto de passarelas e corredores onde os fluxos são cada vez mais intensos. A possibilidade de encontro com os outros de maneira inusitada minimiza-se. A ênfase é dada ao objeto arquitetônico e a sua estética. Como visto, todo o processo que culmina na manifestação artística que é o teatro urbano, baseia-se em um questionamento a estes processos. A intervenção que se constitui o teatro urbano demonstra ser possível existir uma outra maneira de construção de sentido dos espaços que configuram o tecido urbano da cidade. Propicia uma experimentação diferenciada dos espaços, abrindo possibilidades de relações entre indivíduo e espaço, indivíduo e o outro, artes cênicas e espaço e uma outra forma de construção de um sujeito. Uma outra possibilidade para os espaços seria resgatar seu fundamento baseado em uma recepção tátil, menos contemplativa e mais sensorial (e, quem sabe, sensual), onde o indivíduo possa experimentar o espaço de forma mais aprofundada. Tal qual no teatro urbano, por exemplo, o indivíduo integrar-se-ia à espacialidade de forma ativa e mais espontânea. Para

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que isso efetivamente ocorra, a relação entre espaço arquitetônico e indivíduo deve se estabelecer sobre outros parâmetros. A presença e a apropriação do espaço pelo indivíduo passam a ser fundamentais para que a arquitetura aconteça integralmente. Restabelece-se o diálogo com o outro. Essa reaproximação da idéia de existência do outro na concepção do espaço, seja o cênico ou o arquitetônico altera consideravelmente o processo de criação como um todo. Busca-se um espaço que catalise relações. Introduz-se estratégias como a pausa na paisagem urbana, a ruptura com certas imposições, a liberdade, a possibilidade de apropriação diferenciada dos espaços e do encontro com o outro. A tensão gerada por estas heterotopias criadas pelo teatro urbano, baseadas no registro do jogo, faz emergir contrapontos, estranhamentos e distanciamentos que tornam possíveis diferentes maneiras de apropriação da arquitetura e, quiçá, da cidade pelos indivíduos. Nessa direção, a idéia de lugar encontrado de Schechner é interessante, pois propõe uma procura, um deslocar em busca de uma resposta a uma pergunta. Nesse movimento de busca tudo pode acontecer, desde respostas inusitadas a nenhuma resposta. Basta, para isso, aumentar-se a atenção e se abrir para o imponderável. Uma vez encontrado, inicia-se um diálogo com o lugar no intuito de construir um trabalho site specific, característico do teatro urbano, que normalmente revela nuances inusitados dos espaços. Através da participação efetiva de todos os elementos do jogo é possível perceber outras possibilidades de existência destes mesmos elementos. Torna-se difícil desvincular-se o evento de espaço e isso contribui para a concepção de outras relações entre os envolvidos. Como fica claro nas análises do espaço cênico contemporâneo, a forma não é estanque, é, sim, dinâmica, pois muda a cada e durante o contato com o indivíduo. Este dinamismo vivo é o que caracteriza a componente processual da forma, tornando-a indefinível, aberta e em expansão constante. Se a forma então deixa de ser definível, ela perde sua estabilidade e, consequentemente, a arquitetura desloca seu foco do objeto para o processo de concepção do espaço. O objeto deixa de ser o produto final e passa a ser uma etapa do processo, entendido agora como um dispositivo assim como no trabalho do Teatro da Vertigem. Segundo esta ótica, a arquitetura não determinará a forma, uma vez que, dinâmica, já não é tão simples apreende-la. Aponta-se possibilidades e não mais se estabelece regras, tornando-se mais vetorial e menos absoluto. O espaço arquitetônico deixa de dar respostas e se dispõe a enunciar mais perguntas,

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abrindo-se ao diálogo com o indivíduo que irá habitá-lo, durante o evento cênico. Resgata-se o devir e o espaço arquitetônico, segundo esta outra perspectiva, instaura o espaço do jogo. Desta forma, o papel do cenógrafo, bem como do arquiteto, é radicalmente alterado conforme sua reaproximação com aquele que habita faz-se necessária novamente, senão fundamental. O arquiteto cênico passa a ser aquele que propõe, motiva e catalisa processos e idéias, que orienta a criação. Ele passa a ser menos um definidor de formas, bem como um designer de objetos e passa a orientar-se para uma criação coletiva, com participação ativa de outros atores do processo permitindo uma contaminação mais fácil do espaço cênico. Este espaço deixa de ser homogeneizante a priori, ou seja, deixa de tentar estabelecer como será apropriado, para buscar uma maior flexibilidade para que ofereça maiores possibilidades de apropriação. O espaço adere-se aos percursos e (re)valoriza os vestígios, materializando o processo e toda sua temporalidade, configurando-se mais no sentido do estar que, necessariamente no de ser. Enfim, esta outra forma de relação entre o indivíduo e o espaço arquitetônico, percebida na relação entre o espectador e o espaço cênico de no teatro urbano e na arquitetura teatral contemporâneos, revela que a concepção e consolidação deste espaço devem ser pautadas por certo teor de flexibilidade e polivalência. Por outro lado, este diálogo intenso entre o espaço e o evento cênico promovido pelo teatro urbano não afeta somente a arquitetura. Como visto, o teatro muda ao estabelecer contato mais íntimo com o espaço urbano. Outras formas de relação entre a cena e o público, entre o ator e o personagem e entre o evento e o espaço advém deste fazer teatral mais processual. A cena abre-se a novos vetores que potencializam diferentes abordagens e compreensão, substituindo uma leitura estável e única. A forma da cena está em constante formação, e não é definitiva, já que múltiplos pontos de vista são introduzidos. A compreensão torna-se relativa a estes pontos de vista. O recorte realizado sobre o teatro neste estudo mostra como se compreendeu qual poderia ser um novo caminho no intuito de se ratificar a relevância de uma arte frente aos novos desafios que lhe eram impostos. Esta expansão do teatro urbano rumo a outros domínios provocou uma contaminação de tal ordem que promoveu, e ainda promove, uma forma diferente de

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experimentar e operar tanto a arquitetura teatral e a cenografia, por um lado, quanto a arquitetura em si e a própria cidade, por outro. A busca por formas diferenciadas de relação entre a cena e o público que pudessem sintonizar-se com as novas maneiras de experimentação do mundo contemporâneo destaca a relevância do espaço neste processo. O teatro investiga espaços outros, que indicam a limitação de propostas tradicionais e promove um repensar, uma discussão mais aprofundada sobre estes espaços até então hegemônicos. Este estudo revela que o teatro urbano ascende à medida que novas demandas surgem no intuito de se aprofundar as relações entre as artes cênicas e o mundo real. Outras linguagens e princípios de investigação são introduzidos e a compreensão do fazer teatral nos tempos atuais abre-se para outras possibilidades. Diante deste panorama, o teatro encontra na estrutura arquitetônica certos limitadores rumo à aproximação destas outras questões e, então, envereda para espaços muitas vezes impensados ao acontecimento do evento cênico. A migração rumo aos espaços da cidade amplia as possibilidades do teatro e corroboram com sua condição de existência. Assim, compreende-se que o teatro urbano não surge no intuito de substituir o teatro tradicional, mas, sim, para complementá-lo no intuito de aumentar o espectro de ação das artes cênicas. Os hábitos relativos ao uso do lugar, em sua condição cotidiana, estabelecem os parâmetros de definição de estratégias de apropriação dos mesmos no evento cênico e na prática artística. O mesmo ocorre com os espaços institucionalizados que inscrevem uma forma de se relacionar com o que é apresentado. São espaços que possuem um caráter próprio distinto dos demais, mas não menos relevante. Compreender isso é fundamental para esclarecer por que espaços como o cubo branco da galeria e a caixa preta do teatro perduram até os dias atuais. A arte contemporânea amplia o leque de possibilidades de apropriação dos espaços, não eliminando os institucionalizados. Enfim, a jornada insólita que é a análise do teatro urbano, por meio dos processos de produção do seu espaço cênico, abre possibilidades inovadoras nas formas de pensar a arquitetura sob vários ângulos e propor caminhos diferentes para a concepção do espaço arquitetônico mais condizente com os dias atuais.

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Este estudo abre portas para um longo percurso que é trabalhar na fronteira de duas artes que possuem certo grau de parentesco – a arquitetura e o teatro - que se investigado pode ampliar, e muito, as possibilidades de incremento e amadurecimento de seus fazeres. Ficam em aberto algumas hipóteses enumeradas neste trabalho e que não se propôs analisar. A primeira seria que a cenografia contemporânea pressupõe uma outra tipologia de arquitetura teatral. Enquanto a segunda afirma que a apropriação do espaço urbano evidencia a ampliação do conceito de lugar teatral no Teatro contemporâneo. E, por fim, as práticas teatrais que seguem esta vertente proporcionam novas relações entre cena e público. A análise e busca de verificação da validade destas hipóteses podem vir a ser temas de futuros trabalhos. Muito se pode e se deve fazer segundo variadas orientações. Uma delas seria um aprofundamento dos aspectos históricos do processo que culmina no teatro urbano. Outra, a análise mais aprofundada de estudos de caso, tal qual feito com o espetáculo O Livro de Jó neste estudo, que colabora com o surgimento de novos operadores e variáveis que as análises de produções mais generalizantes não conseguem. Mas, sobretudo, investigações práticas, baseadas em experimentos norteados pelos princípios do teatro urbano que este estudo buscou enumerar. Como visto, a contribuição de tais trabalhos desloca-se sobre, pelo menos, dois campos do saber. Além disso, introduz a cenografia como um rico campo de análise e pesquisa que ainda revela-se incipiente na realidade mais imediata.

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