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    Ceclia McCallum

    Revista da FAEEBA Educao e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 87-104, jan./jun. 2010

    ESCRITO NO CORPO: GNERO, EDUCAO E SOCIALIDADE

    NA AMAZNIA NUMA PERSPECTIVA KAXINAW

    Ceclia McCallum *

    RESUMO 1

    Nos anos 1980, a Comisso Pro-ndio do Acre (CPI-Acre) desenvolveu um projetoeducacional que visava treinar professores indgenas, apoi-los na alfabetizao deseus parentes e criar escolas verdadeiramente indgenas. O seu objetivo eraempoderar2 os ndios e pr um fim s relaes de escravido, baseadas noendividamento permanente para com seus patres e comerciantes brasileiros aos

    quais haviam sido submetidos historicamente. Este artigo apresenta uma discussoetnogrfica dos primeiros anos do projeto do CPI-Acre, focando as escolas Kaxinaw.Com poucas excees, todos os professores escolhidos pelos Kaxinaw e todos osalunos eram do sexo masculino. Este artigo discute a relao entre os conceitos degnero, pessoa, socialidade3e educao escolar, entre os Kaxinaw, focalizando aquesto da ausncia das mulheres nas salas de aula, naquela poca. Levanta a questodo risco de desempoderamento das mulheres no dinmico contexto social, poltico eeconmico em que estavam inseridas. A discusso etnogrfica mostra que a educaoescolar feminina no era entendida como empoderamento. Pelo contrrio, as mulheresse preocupavam em fortalecer a sua participao na produo de socialidade,

    procurando aumentar o seu acesso arte de tecer o desenho grfico. O artigo sugereque a grande predominncia de homens entre os professores indgenas no Brasilpode ser explicada como o resultado de lgicas semelhantes, no que diz respeito agnero, epistemologia e socialidade entre outros povos indgenas.

    Palavras-chave: Educao Indgena Gnero Kaxinaw Escrita DesenhoGrfico

    * PhD. Doctorate in Social Anthropology, LSE, Univ. of London. Professor Adjunto na Universidade Federal da Bahia .Endereo: UFBA, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Departamento de Antropologia. Estrada de So Lzaro s/n,Federao 40000-000 Salvador, BA. E-mail: [email protected] reescrita do artigo apresentado no IV Congresso da Associao Portuguesa de Antropologia (APA), Painel Convidado III,Escalas Etnogrficas no Estudo de Gnero, tendo como coordenadoras Sally Cole e Ceclia McCallum, em Lisboa, Portugal, de 9e 11 de setembro, 2009; assim como da palestra proferida no seminrio Bodies, Ethnographic Perspectives from South America,no Centre for Amerindian, Latin American and Caribbean Studies (CAS), Postgraduate Workshop, University of St Andrews, de 14a 15 de setembro, 2009. Quero agradecer, profundamente, aos coordenadores e participantes desses eventos; aos meus colegas naUNEB, onde, como Professora Visitante no Mestrado de Educao e Contemporaneidade, me inspirei em escrever esse artigo; aMarcos Luciano Messeder e Jos Augusto Laranjeiras Sampaio, coordenadores desse nmero 33 da Revista da FAEEBA: educao econtemporaneidade; a Luisa Elvira Belaunde; a Jacques Jules Sonneville, o editor executivo da Revista da FAEEBA; e, sobretudo, aosmeus mestres e mestras Kaxinaw, que me ensinaram a antropologia verdadeira.2 Empoderar = dar poder a, emancipar, incluir. Verbo derivado de empoderamento, traduo do termo ingls empowerment.3 Socialidade um conceito antropolgico referente s formas em que se vive socialmente e se concebe a vida social, que se pe

    em contra-distino com a noo durkheimiana de sociedade. McCallum (2001; 1998) desenvolve a noo de socialidade emrelao etnografia Kaxinaw e de outros povos indgenas das terras baixas da Amrica do sul..

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    ABSTRACT

    WRITTEN IN THE BODY: GENDER, EDUCATION AND SOCIALITY IN

    AMAZONIA FROM THE CASHINAHUA PERSPECTIVE

    In the 1980s, the Pro-Indian Commission of the state of Acre developed an educational

    project aimed at training indigenous teachers, enabling them to teach literacy skills totheir relatives and to create indigenous schools. The object was to empower indigenousto escape debt slavery relations with Brazilian bosses and trades. The article presentsan ethnographic discussion of the first years of this project, focusing on the Cashinahuaschools. With few exceptions, all the teachers chosen by the Cashinahua were maleand so were their pupils. This paper discusses the relationship between gender,personhood, sociality and school education among the Cashinahua, focusing on thequestion of womens absence from the classroom in that period. It asks whetherwomen thereby ran the risk of disempowerment in the context of the social, politicaland economic developments to which they were subject. The ethnographic discussion

    shows that from an indigenous perspective, female school education was not seen asempowerment. Rather, women were preoccupied in strengthening female participationin the production of sociality, seeking to widen their access to the art of weavinggraphic design. The paper suggests that the overwhelming predominance of menamong indigenous schoolteachers in Brazil may be explained as the result of theoperation of similar logics with respect to gender, epistemology and sociality amongother indigenous peoples.

    Keywords: Indigenous Education Gender Cashinahua Writing Graphic Design

    No vero acreano de 1985, eu me encontrei no

    leste deste estado amaznico, caminhando nas prai-as e dentro das guas rasas e cristalinas do rioJordo, durante uma viagem que me levou a trsseringais e a trs escolas recm-criadas no territ-rio indgena dos Kaxinaw. Eu tinha dois motivospor estar l: como antroploga, na fase final depesquisa de campo para um doutoramento sobregnero e organizao social entre os Kaxinaw (umpovo que fala uma lngua Pano)4; e como assesso-ra voluntria para a Comisso Pr-ndio do Acre,

    encarregada de visitar e animar as escolas.Rapidamente constatei que s havia homens e

    jovens rapazes entre os alunos e professores Ka-xinaw do Jordo com exceo de uma alunaadolescente, filha de um chefe indgena. Curiosasobre os motivos da ausncia feminina das escolase preocupada com as suas possveis consequnci-as para o futuro das mulheres indgenas, as quais(me parecia) corriam o risco de sofrer um pro-gressivo desempoderamento, chamei uma reu-

    nio de mulheres para discutir a sua relao com anova instituio escolar.

    A reunio aconteceu durante um fim de sema-

    na de festividades e encontros polticos organiza-dos pelas lideranas de um dos seringais. No erapouca a minha surpresa quando, naquele domingoensolarado na sede do Seringal Alto do Bode, mu-lher aps mulher se levantou para afirmar que notinha interesse em aprender a escrita dos estran-geiros nawan kene mas que queria muito es-tudar nossa escrita nukun kene tambmreferida como escrita verdadeira kene kuinexpresses que se referem aos desenhos pintados

    sobre os corpos das pessoas e alguns artefatos, outecidos nas redes e outros objetos de algodo cria-dos pelas mulheres5.

    Como explicar a postura das mulheres do rioJordo frente s novas escolas? Que explicaodar aos termos em que elas expressaram seu de-sinteresse pela nawan kene? Neste artigo, explo-

    4Tese defendida no London School of Economics and Political

    Science, University of London, em 1989 (MCCALLUM, 1989).5 A lngua utilizada durante a reunio era Kaxinaw.

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    ro o contexto mais amplo em que as mulheres semanifestaram, bem como os significados imedia-tos por trs das respostas dadas s minhas indaga-es durante a reunio. Atravs desta discusso,

    abordo a relao entre gnero, socialidade e edu-cao nessa sociedade indgena, com o intuito deabrir um dilogo sobre o tema em relao a outrospovos amaznicos e sul-americanos.

    Rede Kaxinaw.- Foto Peter Gow

    Kaxinaw do Rio Purus, 1984. - Foto Ceclia McCallum

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    Na literatura etnogrfica sobre os povos ind-genas das terras baixas da Amrica do Sul, o g-nero se destaca como fator estruturante central davida social, econmica e poltica. Embora qualqueretnografia evidencie a sua centralidade, s alguns

    estudos se debruam especificamente sobre asformas culturais atravs das quais o gnero con-cebido e vivido, no intuito de explorar as implica-es estruturais e processuais da categoria6. Noentanto, na literatura sobre educao indgena, quetem crescido de um modo impressionante nas lti-mas duas dcadas, gnero continua ignorado comoquesto. Este artigo faz uma explorao prelimi-nar do tema, focando o caso Kaxinaw, atravsde uma discusso histrica e etnogrfica da situa-

    o que encontrei no rio Jordo, afluente do rioTarauac, em 1985.

    ***

    Na epistemologia Kaxinaw, o saber adquiri-do de um modo processual e gradual, sendo inscri-to no corpo como resultado do trabalho conscientedos parentes de uma criana e, tambm, das suasexperincias corporais no mundo (MCCALLUM,1996, 1999, 2001; KENSINGER, 1995). A apren-dizagem acontece como resultado do encontro en-

    tre aes humanas, tanto das pessoas e dos espritosque criam o corpo que sabe, quanto da ao doprprio aprendiz, que se engaja no mundo de for-ma direcionada7. Quando passa a primeira infn-cia, e a criana troca os dentes, o direcionamentoda aprendizagem se d a partir da distino de g-nero e os corpos so moldados atravs do engaja-mento dos aprendizes em atividades econmicasdistintas. Desse modo, o gnero criado como umaspecto central da pessoa, tomando a forma de

    saberes encorporados que possibilitem a participa-o ativa do nefito nos processos de produo ereproduo (MCCALLUM, 1999; BELANDE,2005). Homens e mulheres dotados de ao hu-mana generizada interagem na produo da vidasocial. O resultado das atividades complementa-res masculinas e femininas a produo da socia-lidade, que emerge na busca diria para viverbem, ideal de vida coletiva de tantos povos ama-znicos (OVERING, 1991). Desse modo, a episte-

    mologia Kaxinaw, como a de outros povosindgenas das Terras Baixas, tambm uma teoria

    social, pois o corpo generizado ou seja, o corpoque sabe masculino ou feminino (portanto dotadode ao humana) fundamenta a constituio dasocialidade. A forma com que homens e mulheresse engajam em relaes sociais deve-se a sua ca-

    pacitao como Gente Verdadeira ouHuni Kuin a auto-denominao Kaxinaw ou melhor,como ainbu kuin (mulheres verdadeiras) e hunikuin (homens verdadeiros).

    Desde a chegada dos exploradores e dos colo-nos brasileiros e peruanos no sculo XIX, as prti-cas sociais que levam formao de pessoasdotadas de saberes e capacidades articulam-se ouconfrontam-se com os processos sociais que en-volvem os Kaxinaw com os estados-naes bra-

    sileiros e peruanos e seus agentes. Apesar dasprevises pessimistas sobre etnocdio e acultura-o, este artigo argumenta que o mundo social in-dgena tem mantido sua autonomia no que dizrespeito s formas de transmisso de saber e, demodo integrado, no que diz respeito criao depessoas verdadeiras e reproduo de uma socia-lidade prpria. Mesmo assim, o mundo indgena estem evidente transformao, frente s pressesexternas e s inovaes trazidas de fora, a exem-plo da educao escolar. Ao focar o tema da edu-cao, necessrio explorar a interface entre asprticas geridas, segundo a lgica da epistemolo-gia e da ontologia indgenas, e aquelas prticas einstituies que surgem nos espaos de interaocom esses outros mundos sociais. Nesse sentido,este artigo procura localizar a chegada da escolano Jordo, com suas distintas implicaes e senti-dos para as mulheres e os homens Kaxinaw, fren-te ao contexto poltico e econmico em que ocorreu.

    Realizei a pesquisa de campo entre 1983 e 1985,

    morando durante esse perodo de quase dois anoscom os Kaxinaw no Acre, sobretudo, na aldeiade Cano Recreio, na rea indgena do alto Purus.Em 1985, estimava-se a populao Kaxinaw, noBrasil, em 2.090 e no lado peruano da fronteira em

    6 Por exemplo, ver Overing (1986, 1988), Gow (1991),McCallum (2001), Belaunde (2005). Na literatura etnolgicabrasileira, ver Lasmar (2005),

    Dossi Mulheres Indgenas (1999), McCallum (1999), Lea (1986,1994).7 Ver Gow (2009) e Belaunde (2009), sobre o papel das plantas

    e dos espritos da floresta e do rio na epistemologia indgena naAmaznia.

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    850 (MCCALLUM, 1989). Desses, em torno de400 moravam na rea do Purus. Havia poucosKaxinaw letrados no Brasil naquela poca, en-quanto no Peru a poltica nacional de educaohavia levado formao de uma gerao de jo-

    vens indgenas letrados (BELAUNDE, 2009). NoBrasil, a situao escolar dos Kaxinaw era se-melhante quela encontrada entre a grande maio-ria dos outros povos indgenas. As poucas escolaspara ndios ensinavam um currculo desenhado, deacordo com um projeto civilizatrio missionrio e/ou nacionalista (SILVA; FERREIRA, 2000). A pro-posta era aculturar os ndios, transform-los emcidados nacionais, segundo um modelo fortemen-te marcado por uma ideologia de gnero e classe,

    no qual os rapazes se tornariam agricultores sim-ples e as moas donas de casa humildes, mas ca-pacitadas como zeladoras da higiene, dentre outrashabilidades (TAUKANE, 1999). Os professoresdessas escolas, que eram para os ndios e nodos ndios, eram no-indgenas.

    Desde ento, a situao tem-se transformadoradicalmente (GRUPIONI, 2006). Os povos ind-genas apropriam-se cada vez mais da escola ind-gena, transformando-a em instituies prprias, emmaior ou menor grau. Um discurso que concebe aeducao como ferramenta de resgate cultural etrata a escola como meio de afirmao de umaidentidade especfica espalha-se8. A poltica naci-onal adotada pelo MEC reconhece a necessidadede adaptar o ano curricular aos calendrios rituaise de trabalho, de modificar os currculos para in-corporar elementos culturais especficos, e de in-centivar a educao bilngue. Adicionalmente,conforme constatado no censo escolar de 2003, amaioria dos professores so ndios. O censo indi-

    cou que 85% dos 7.000 professores, que ensina-vam para 147.000 alunos em 2.079 escolasindgenas no Brasil, eram indgenas (MATOS;MONTE 2006, p. 76-77). Um novo censo, em2005, documentou um crescimento nessas taxas eainda mostrou que a maioria dos professores ind-genas eram homens, em ntido contraste com opadro nacional, no qual a maioria desses profissi-onais so mulheres (MEC/INEP 2007).

    Como explicar essa diferena? Para entender

    a predominncia de homens entre os professoresindgenas, o primeiro passo investigar etnografi-

    camente os conceitos e as prticas relacionados agnero, nas suas formas particulares, ou seja, con-textualizados histrica e geograficamente. Comoj mencionei, quando cheguei rea indgena dorio Jordo, estava concluindo uma pesquisa sobre

    esses temas. J havia constatado o padro bsicodas formas em que o gnero construdo entre osKaxinaw do rio Purus e havia entendido a suacentralidade para o viver bem. Isso tornou poss-vel procurar as diferenas e as continuidades en-tre o Purus e o Jordo, no que diz respeito ao gnero.

    No meu doutorado, explorei os aspectos pro-cessuais e estruturais da relao entre parentesco,casamento e gnero. Kensinger realizou estudospioneiros sobre parentesco nos anos 1960, consta-

    tando que os Kaxinaw do alto Purus, no Peru,usam uma terminologia de parentesco de tipo kari-era, que compatvel com o sistema onomsticode geraes alternadas (KENSINGER, 1984). Asociedade organizada em metades exogmicas,divididas em quatro sees ou grupos de nomea-o (KENSINGER, 1995). Com a diviso de g-nero, so oito sub-sees ou classes matrimonias(DANS, 1983). Ao receber um nome verdadei-ro ou kena kuin, a pessoa ingressa em uma des-sas sub-sees, determinadas pelo sistemaonomstico. H uma preferncia para casamentoentre primos bilateralmente cruzados, que favore-ce a endogamia residencial.

    Kensinger constatou que a residncia aps o ca-samento uxorilocal9, o que leva a uma maior mobi-lidade masculina entre aldeias. Os jovens que, ao secasarem, mudam de casa, comeam a vida matrimo-nial trabalhando para os sogros e, eventualmente,podero se tornar lderes, quando as suas filhas secasam. Cada assentamento ou aldeia depende das

    atividades de um lder principal masculino. O seu cu-nhado ou txai(primo cruzado), em muitos casos, oco-lder da aldeia (KENSINGER, 1995).

    8 A noo de resgate cultural tem instigado duras crticas

    ver Sampaio (2006). No entanto, o uso por grupos e organi-zaes indgenas dessa expresso, bem com a adoo da noode cultura e da identidade atribuda ao ndio brasileiro temsido notada entre diversos grupos, passando a se tornar centralnas suas estratgias para captar recursos e desenvolver e refor-ar a autonomia. Ver Collet (2006), Weber (2006), sobre cultu-ra, e McCallum (1997), sobre a apropriao da identidade do

    ndio entre os Kaxinaw.9 O esposo reside junto com a esposa e a sua famlia.

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    No meu trabalho no alto Purus brasileiro, cons-tatei essas mesmas formas e prticas culturais esociais. No entanto, aplicando uma perspectiva degnero na pesquisa, pude acrescentar novos da-dos e modificar os termos analticos utilizados, para

    dar maior nfase aos aspectos processuais consti-tutivos da socialidade, inclusive o papel da distin-o de gnero nesses processos. Na minha anlise,em vez de dar prioridade relao entre cunhadoscomo eixo da vida poltica alde, mostrei que a re-lao entre irmos de sexos cruzados (irmos eirms) pode ser vista como a relao axial que es-trutura a vida social das aldeias Kaxinaw. Docu-mentei a instituio de liderana feminina, que operaem complementaridade com a liderana masculi-

    na, na organizao da vida cotidiana da aldeia edas relaes com o exterior10. Procurei entenderas relaes entre homens e mulheres luz da et-nografia do gnero e da vida social, para respon-der s inquietaes expressas na antropologiafeminista da poca sobre poder masculino, bemcomo aos debates na etnologia indgena sobre so-ciedades igualitrias11.

    No Jordo, encontrei as mesmas formas cultu-rais e prticas sociais documentadas no Purus, oque no surpreende, dadas as origens histricasem comum da populao Kaxinaw. Ao mesmotempo, pude notar algumas diferenas, sobretudoestruturais. Aqui vou analisar essas diferenas, dis-cutindo a sua implicao para as relaes entrehomens e mulheres, atravs da exposio da etno-grafia do Jordo, realizada durante a primeira fasedo estabelecimento da educao escolar Kaxina-w. Recorro ao trabalho de outros etngrafos darea, que versam sobre o contexto econmico epoltico em que as primeiras escolas, dirigidas por

    professores Huni Kuin, comearam a funcionar.Alm de chamar ateno para a ausncia de uma

    discusso sobre gnero na literatura emergente so-bre educao indgena no Brasil, luz da etnografiatratada aqui, defendo a necessidade de considerar ocontexto social, poltico e econmico da emergn-cia de padres de gnero dentro das escolas e doprocesso de escolarizao dos povos indgenas. Aetnografia mostra que o processo poltico em rela-o aos direitos indgenas terra configurou as re-

    laes de gnero inter-tnicas e, ao mesmo tempo,influenciou as relaes entre homens e mulheres

    Kaxinaw. A ocupao da terra e a organizaodos processos produtivos, junto s mudanas hist-ricas em curso, ou seja, frente economia regionale nacional, contriburam para moldar os padres degnero na educao indgena. O meu estudo tece o

    argumento de que a ausncia relativa das mulheresdo programa de educao escolar, nos primeirosanos, emergiu no contexto desses processos histri-cos e se deve parcialmente a esses. No entanto,mostra tambm que as formas indgenas de viver ede produzir socialidade, centrada na fabricao doscorpos como sujeitos generizados12e impregnadosde saber e de capacidades ou seja como GenteVerdadeira exerceu um papel fundamental nestahistria.

    O estabelecimento da educao es-colar Kaxinaw nos anos 1980

    No comeo de 1984, no havia uma escola emRecreio, aldeia cuja populao cresceu de cerca100 pessoas para 150 naquele ano. Os moradoreseram descendentes do grupo que migrou do rioEnvira para o Peru, no comeo do sculo XX, fu-gindo das invases promovidas pelos seringalistas

    e seus empregados. A maioria dos habitantes deRecreio havia chegada do Peru, durante a dcadaanterior minha pesquisa de campo e, por isso,alguns jovens eram letrados em espanhol e emhantxa huni kuin (Kaxinaw).

    O governo brasileiro promulgava, na poca, umprograma nacional para a reduo do analfabetis-mo, o MOBRAL, e, em abril de 2004, o prefeito daVila Manuel Urbano, a mais prxima aldeia (uns2 ou 3 dias de viagem por canoa motorizada), en-viou um batelo com uma equipe encarregada delocalizar e contratar professores entre os ribeiri-nhos e os seringueiros da zona rural do municpio.A expedio era chefiada pela irm do prefeito. Obarco motorizado, carregando merenda escolar ealguns livros-textos do MOBRAL, navegava nas

    10Desde ento, outros etnlogos documentaram a instituio deliderana feminina entre outros povos amaznicos.11Sobre relaes de poder e gnero nas sociedades amaznicas,ver Overing (1986). Para os debates sobre sociedades igualitri-as, vide Overing (1989).

    12 Do ingls gendered, ou seja, atribudo um gnero masculinoou feminino.

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    guas turvas e cheias de troncos de rvore do rioPurus, no trecho entre Recreio e Fronteira, quan-do eu e alguns companheiros descamos o rio decanoa, voltando de uma visita a outra aldeia Kaxi-naw. Entre os meus companheiros, encontrava-

    se o Paulo Lopes, jovem sobrinho do lder deRecreio, natural do Brasil (nascido no Acre, numseringal do rio Envira), e que, ainda beb, haviamigrado para a aldeia Kaxinaw de Balta no Peru.Ali estudou na escola bilngue criada pelo ILVsob a aprovao doMinisterio de Educacin de

    Peru13. Quando a irm do prefeito nos chamou,subi no batelo onde ela contou os motivos da ex-pedio, me perguntando se eu conhecia algumque fosse alfabetizado e pudesse ser professorentre os ndios. Respondi que conheci vrias pes-

    soas e apontei para Paulo como um exemplo. Ojovem foi contratado na hora, recebeu 18.000 cru-zeiros, uma cartilha do MOBRAL e um breve trei-namento. O batelo prosseguiu at Recreio, ondenos deixou junto com algumas caixas de merendaescolar.

    Jovens Kaxinaw estudando na casa da antroploga, Recreio, Alto Purus, 1984 14

    Nos meses seguintes, Paulo chegou a dar au-las, principalmente para homens adultos e algunsrapazes. O seu tio, Pancho Lopes, o lder, insistiuque eu ensinasse a quatro meninas adolescentes aler e escrever. Quando sugeri que poderiam estu-dar com Paulo, o professor oficial da aldeia, Pan-cho me explicou que seria inadequado, j quedespertaria um interesse sexual entre os jovens.Nessa idade, o importante era canalizar e dirigir asexualidade para se expressar em relaes apro-

    priadas (entre primos cruzados, por exemplo). Umadas minhas alunas, por exemplo, a sobrinha de

    Pancho (filha da sua irm consangnea ZD) esta-va recm-casada com o seu filho. Uma outra alu-na era filha do prprio Pancho. Ela veio a se casarno final do ano com o filho do chefe de uma aldeiaKaxinaw no Peru. O genro mudou para Recreioe para a casa do sogro. A sexualidade dessas jo-vens foi protegida da tentao de namorar um jo-

    13 O ILV, sigla para o Instituto Lingstico de Vero, umaorganizao missionria protestante de origem norteamericana,

    cuja misso principal a traduo da Bblia.14 Foto Ceclia McCallum

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    vem professor (mais atrativo ainda, porque rece-bia um salrio). Obedecendo ao Pancho, comeceia dar aulas para as meninas, mas sem grandes re-sultados.

    Nos anos seguintes, Paulo Lopes se estabele-

    ceu como professor, viajando repetidamente ca-pital do estado, Rio Branco, para os cursos detreinamento oferecidos pela Comisso Pr-ndiodo Acre, uma ONG fundada em 197915. Entre osfundadores da CPI/Acre, se destacaram o antro-plogo acreano Terri Aquino e dois lderes Kaxi-naw Sueiro Sales, do territrio indgena do Jordo,e Vicente Sabia do Humait (AQUINO, 2006).A nova ONG se empenhou em criar um projeto deeducao indgena batizado Uma experincia de

    autoria, para treinar professores selecionadosentre os dez povos indgenas da regio, montarescolas nas aldeias e, ento, administrar as suasatividades. O primeiro curso aconteceu em RioBranco, em 1983, e, depois, o treinamento prosse-guiu em cursos anuais.

    Os objetivos polticos e a ideologia do projetoda CPI-Acre eram radicalmente diferentes dos quehaviam inspirado a educao indgena at entono Brasil. O objetivo imediato era treinar os pro-

    fessores e ento apoiar os seus esforos em alfa-betizar e ensinar matemtica bsica para os seusparentes nas aldeias. O objetivo maior era empo-derar os alunos, dando-lhes a capacidade de en-tender as contas e de administrar o comrcio dosseus produtos, a fim de acabar com a escravidodas dvidas, s quais haviam sido submetidos, des-de a chegada dos seringalistas no Acre e no Terri-trio Kaxinaw, no final do Sculo XIX. Asambies polticas dos fundadores do CPI inclu-

    am a de assegurar os direitos terra: as escolasindgenas eram um dos meios para alcanar essefim. A independncia econmica seria alcanadae, ento, mantida atravs do estabelecimento decooperativas indgenas para a venda dos seus pro-dutos e a compra de mercadorias essenciais, parao transporte e a redistribuio nas reas indgenas.O trabalho acadmico de Aquino (1977) forneceua base analtica para o projeto do CPI-Acre. Tra-ta-se de um estudo de insero Kaxinaw na eco-

    nomia regional, da produo e do comrcio daborracha do Tarauac e do Jordo.

    Essa produo estava estruturada segundo osistema de aviamento, em que grandes casas co-merciais rio abaixo, em Manaus e Belm, adianta-vam mercadorias aos comerciantes intermediriosnos centros urbanos mais prximos aos seringais.

    Esses, por sua vez, as passavam aos seringalistasque distribuam as mercadorias aos seringueiros queviviam na floresta e produziam a borracha. O sis-tema cria uma cadeia de dvidas e resulta, na mai-oria dos casos, no permanente endividamento dosseringueiros, que raramente conseguem pagar ospreos inflacionados, cobrados pelos gerentes dosbarraces dos seringais.

    Aquino descreve o contexto da criao do CPI-Acre assim:

    Minhas pesquisas de campo entre os Kaxinaw doJordo, ndios seringueiros do Acre, haviam me en-sinado que quem controla a esfera da comercializa-o nos seringais tambm domina a floresta e aspopulaes locais. O trabalho, ento, foi o de criaruma alternativa econmica aos patres, rompendocom o monoplio do barraco, permitindo, assim,que os prprios Kaxinaw comercializassem livre-mente suas produes de borracha na cidade e, so-bretudo, se mobilizassem politicamente na luta pelademarcao de suas terras (AQUINO, 2006, p. 18).

    Em 1978, Aquino organizou a ida de duas pro-fessoras no-indgenas para o Jordo e o Humaitpara criar uma escola..., com a finalidade de en-sinar aos ndios como organiza a contabilidade desua Cooperativa e como se relacionar com os co-merciantes da cidade de Tarauac (AQUINO,2006, p. 18). O antroplogo agia como assessor domovimento cooperativista incipiente dos Kaxina-w. Junto com Sueiro, tornou-se uma figura cen-tral na luta desse povo para assegurar os seus

    direitos terra. Os dois amigos visitaram as fam-lias dos Kaxinaw brasileiras que, naquela poca,viviam espalhadas nos seringais, porque os homenstrabalhavam para patres Caris (como so cha-mados os no-indgenas no Acre) na produo deborracha. Durante as suas viagens, encorajaramos Kaxinaw a retornar ao Jordo, onde ainda ha-via uma concentrao de Kaxinaw nos seringaisvizinhos ao seringal de Sueiro, que o havia herdado

    15Paulo Lopes foi contratado por um rgo governamental, oque possibilitou o recebimento regular de um salrio.

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    de uma viva Cari. Como empregado da FUNAInos anos 1970, Aquino fez o levantamento do terri-trio e da populao indgena do estado, necess-rio para ento proceder ao processo legal dedemarcao. Demitido em 1980 por motivos polti-

    cos, continuou a lutar para a independncia econ-mica e tambm cultural desses povos atravs daCPI, obtendo recursos para as cooperativas e oprojeto escolar e focando a questo da terra, porentender que tudo dependia da legalizao de suaposse.

    O impacto dessas atividades sobre os Kaxina-w da rea do Tarauac e do Jordo foi profundo.Muitas famlias que haviam se espalhado nessagrande regio, nos finais da dcada de 1920, retor-

    naram ao Jordo. A populao indgena do rio pu-lou de 383, em 1975, para 774, em 1983 (AQUINO;IGLESIAS, 1994, p. 32). Os comerciantes e pa-tres reagiram contra o movimento para a inde-pendncia econmica. Em 1979, Sueiro levou umacarga de borracha, financiada por uma ONG in-ternacional (Po para o Mundo), para sua comer-cializao na cidade de Tarauac. Os comerciantesinstigaram a polcia a apreender a borracha e man-dar uma delegao atrs de Aquino, que, no entan-to, j estava em outra rea, nas cabeceiras do Juru,quando os policiais chegaram ao Jordo (AQUI-NO, 2006. p. 19).

    Quando cheguei no Jordo, em 1985, seis anosmais tarde, a maior parte da populao Kaxinawda regio do rio Tarauac e suas cabeceiras haviase estabelecido em seis seringais ao longo do rioJordo. A cooperativa lutava para sobreviver fi-nanceiramente. Ainda dependia de recursos exter-nos. As hostilidades com os comerciantes tinhamdiminudo, mas entre os Caris permanecia um fun-

    do de preconceitos e um antagonismo latente con-tra os caboclos, como chamavam os indgenas.Durante a viagem de dez dias de Tarauac at oJordo, eu e a minha colega, na misso de asses-sorar as escolas indgenas, passvamos cada noitena casa de um seringueiro ou um patro Cari.Todas as noites, ouvamos discursos crticos con-tra os caboclos, repletos dos esteretipos e pre-conceitos reportados em Aquino (1977). Nossasanfitris expressaram nojo da comida dos ndios,

    falaram do seu medo de serem assassinadas poreles (mencionando uma histria recente de um ata-

    que contra uma famlia Cari, residente numa reareivindicada pelos Kaxinaw); acusaram os ndiosde serem preguiosos e incapazes de alcanar umaboa produtividade de borracha, sem se submete-rem autoridade de um patro branco16. Os pre-

    conceitos moldavam as suas reaes luta polticados Kaxinaw. No entanto, nossas anfitris expres-saram admirao e at simpatia pelos indivduosque mais conheciam entre os caboclos, Sueiro eo seu filho Getlio, novo lder da rea do Jordo.Esses, sim, eram civilizados e amansados e, noscontaram, verdadeiras excees regra.

    Seis professores do rio Jordo participaram de12 cursos providenciados pela CPI-Acre, para oprojeto Uma experincia de autoria entre 1983 e

    1994 (AQUINO; IGLESIAS, 1994, p. 39). Parachegar ao Rio Branco, os professores tiveram quepassar por esse ambiente de hostilidade e precon-ceito. As emoes e os conceitos que formam suasidentidades so forjados atravs dessas experin-cias de estereotipagem negativa, mesmo havendoinfluncias mais positivas, entre as quais as atitu-des e aes dos assessores, antroplogos e outrosamigos dos ndios.

    No Jordo, entre agosto e outubro 1985, teste-munhei o incio de um renascimento cultural e lin-gstico, que cresceu e floresceu nas subseqentesdcadas (WEBER, 2006; AQUINO; IGLESIAS,1994). As pessoas se comunicavam em hantxakuin e no em portugus e se empenhavam emorganizar atividades rituais e festivas. Conheciamos detentores de saberes e capacidades tradicio-nais e se preocupavam com a transmisso desses.Enquanto a minha companheira, Brbara, subiu orio para visitar as escolas nos ltimos trs serin-gais, eu visitava os trs primeiros, Boa Esperana,

    Alto do Bode e Trs Fazendas. Nesses lugares,passei um tempo com as mulheres, como eu haviafeito no Purus, mas tambm conversei intensamentecom informantes masculinos, entre os quais lde-res de canto, professores, gerentes das cantinasda cooperativa e lideranas. Gravei mitos, obser-vei e participei de rituais e de atividades cotidia-nas, alm de observar as escolas.

    16Aquino e Iglesias (1994, p. 33) afirmam que, aps a re-colo-

    nizao do Jordo, houve um progressivo aumento na produode borracha, chegando a 32 toneladas em 1991.

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    A preocupao principal dos meus informantesmasculinos era a luta pela terra e para assegurar acontinuidade e viabilidade da cooperativa. Meuscadernos de campo esto repletos de notas sobreproblemas no movimento cooperativista, ligados a

    disputas entre os seringueiros e os gerentes dascantinas. Presenciei vrias reunies polticas or-ganizadas para lidar com essas disputas e essesproblemas, no intuito de melhorar o funcionamentoda cooperativa. Na minha interpretao, os Kaxi-naw enfrentavam a contradio entre dois mode-los de organizao de produo e comercializao,um baseado no antigo sistema de aviamento com ainerente explorao de cliente pelo patro, e o ou-tro, um novo modelo da cooperao, visto com uma

    mistura de entusiasmo e suspeita. No primeiromodelo, o barraco do patro, com seu estoque demercadorias com preos inflacionados, era o cen-tro do seringal. Os seringueiros pagavam aluguelpelas estradas das seringueiras, que percorriamdiariamente na luta para pagarem as suas dvidas.No segundo, a cantina substitua o barraco, ofe-recendo objetos com preos razoveis. O alugueldas estradas foi abolido. Na prtica, havia disputassobre os preos nas cantinas; alguns seringueirosprocuravam vender fora e havia dificuldades emobter recursos para comprar novas mercadorias.Muitos seringueiros e at os prprios gerentesdas cantinas sentiam impulsos contraditrios, orano sentido de apoiar as idias do movimento, orade lucrar pessoalmente atravs da comercializa-o da borracha. Por exemplo, um gerente de umacantina me contou Tenho 25 fregus [seringuei-ros] produzindo para mim. Por causa disso, conti-nuou, ele esperou poder visitar Braslia e So Paulo,um dia, como havia feito o lder Sueiro.

    A despeito desse tipo de comentrio, os lderese gerentes, frequentemente, lanaram mo de umdiscurso enaltecendo o valor do compartilhamentoe da igualdade. Defendiam a cooperativa como ummeio de alcanar independncia e de se livrarem,coletiva e individualmente, da explorao branca.Nesse contexto, a escola indgena era vista comoum meio de empoderar os homens. Uma vez ca-paz de ler, escrever e fazer contas, dificilmente umseringueiro seria enganado como acontecia regu-

    larmente no passado. Os seringueiros, no entanto,ouviam com um certo ceticismo essas falas. Se-

    gundo um gerente de cantina, alguns pensavam queno era necessrio pagar as dvidas cooperativa,j que os recursos foram obtidos como presente(de uma ONG internacional); outro criticou as li-deranas do Jordo por agir como patres Cari-

    s. No entanto, esse informante nutria umaanimosidade pessoal para com as lideranas. Emgeral, no Jordo, adotavam um estilo claramenteamaznico, liderando atravs de exemplo e por per-suaso, se opondo aos estilos mais autoritrios que,em alguns casos, os seus colegas e primos no Pu-rus tentavam adotar, mais ao modo Cari (MC-CALLUM, 1990, 1996b). Perguntei a um lder, ZPerreira, se fazia trabalhar os seus fregus Minhatu dayamaikaii? Ele respondeu que no Ya-

    maki! Em vez de mandar, ele lhes perguntava oque seria possvel fazer En hatu yukaikaii, hawanun watidumenkain?

    Desse modo, observei o nascimento de um novosistema econmico e poltico no Jordo, notandoevidncias de tenses, de discursos conflitantes ouambivalentes e prticas contraditrias. Paralela-mente, ficou claro que as ambies das lideranasde alcanar um grau de independncia estavamobtendo sucesso. Os meus dados so limitados e aminha explorao da rea superficial, no sentidode que no me fixei por muito tempo em uma co-munidade. No entanto, foi marcante a continuida-de social, cultural e lingstica na comunidade queconhecia melhor Recreio, no Purus.

    Mesmo assim, a partir de um olhar comparati-vo, cheguei compreenso de que, por baixo dassemelhanas, havia diferenas significantes na or-ganizao social, econmica e poltica local, o quelevava a uma distinta base estrutural para as rela-es sociais, inclusive, de gnero. Isso se relacio-

    nava com a forma em que a produo e a residnciase organizavam.

    Quando, durante a minha estada no Jordo, re-visei as minhas notas sobre o seringal Alto do Bode,comecei a suspeitar de que estava diante de umsistema patriarcal em formao. Um informanteacusou o lder do seringal de explorar os seus 15fregueses, ao cobrar preos altos na cantina. Eume perguntei se isso era evidncia da formao deum sistema baseado em relaes desiguais. J que

    os 15 fregueses eram os filhos e genros do lder,Romo Sales (o irmo de Sueiro), a alegada explo-

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    rao poderia ser evidncia de um sistema patriar-cal incipiente. Mas, nas semanas seguintes, pudeobservar mecanismos para a redistribuio de re-cursos, ao modo Kaxinaw, em acelerada ativida-de. A vida social, no seringal e ao longo do rio, em

    nada parecia com aquela dos seringais Caris,marcada pela distino hierrquica entre patro efregus. Os parentes e afins circulavam entre osassentamentos ou colocaes, visitando e parti-cipando de festividades, rituais e competies defutebol. Trocavam comida, hospitalidade e traba-lho, num ritmo propiciado pela sazo alto vero poca em que se preparam os roados para o plan-tio, frequentemente em mutires.

    Uma diferena observada entre o Purus e o

    Jordo dizia respeito ao papel estruturante do eloentre irmos de sexo oposto e, em seguida, entrecunhados ou txais. A preferncia para casamen-tos entre primos cruzados resulta em assentamen-tos, que unem parentes e afins, e ordena no s ocotidiano de cooperao e trocas restritas entreesses, mas tambm possibilita a co-residncia alongo prazo. No Jordo, onde havia uma nfasediscursiva forte na relao entre txais, como noPurus, na prtica, nem a afinidade masculina, nemos elos entre irmos de sexo cruzado pareciamestruturar o padro de residncia da mesma for-ma. Muitas famlias moravam separadas dos seusafins e irmos. No entanto, havia excees, comoentre os txaisque conviviam da mesma forma queobservei em Recreio e Kensinger, em Balta. Suei-ro, por exemplo, morava com o seu txaiMiguelMacrio, conhecida autoridade em mitologia e ri-tual. Getlio planejava mudar para uma nova colo-cao em Seringal Trs Fazendas com o seu txai,Salve Barbosa.

    Alguns fatores pareciam determinar a diferen-a regional. Em primeiro lugar, a importncia doselos agnticos, em detrimento dos elos afins, resul-tou parcialmente de fatores demogrficos aleat-rios: havia uma predominncia de grupos de irmoshomens e poucas irms. Sueiro e Romo Sales ti-nham quatro irmos Nicolau, Urbo, Aldilas eVitorinho Sales que tiveram filhos. Romo Salesteve dez filhos homens com uma esposa, e a mai-oria desses homens morava em colocaes espa-

    lhadas no seringal Alto do Bode. Sem dvida, essapredominncia de irmos na famlia Sales afetou a

    estruturao das relaes sociais na rea. Em se-gundo lugar, o sistema de produo de borrachaleva a um padro de assentamento que isola osseringueiros um do outro. No compatvel com aformao de aldeias maiores, baseadas em grupos

    de irmos de sexo cruzado, casando entre si e tro-cando esposos. Um homem precisa morar naboca das estradas de seringueiras, geralmente,com a sua esposa e filhos. Quando os filhos ho-mens crescem, ajudam o pai a cortar seringa. Essaconseqncia residencial do sistema no favorecenem uxorilocalidade, nem convivncia de doistxais, a no ser que uma colocao d acesso aum nmero suficiente de estradas para dois ou maishomens. O fato da prtica nem sempre correspon-

    der ao ideal Kaxinaw no uma indicao deque a forma de residncia observada no Purus noseja uma opo ainda viva no Jordo. De fato,Aquino e Iglesias (1994) notam que a residnciaps-marital uxorilocal comum no Jordo, quandoas condies de trabalho permitem.

    Nos meses de vero, o povo do Jordo organi-za atividades coletivas e costuma visitar, intensa-mente, seus vizinhos em outros assentamentos.Esses deslocamentos diminuem a fragmentaoimposta pelo sistema de produo. Segundo Aqui-no e Iglesias (1994), no raro os homens cami-nharem at as colocaes vizinhas, que, muitasvezes, so as moradias dos seus cunhados ou dosseus irmos, para colaborar em atividades de tra-balho masculinas. Os antroplogos citados no fa-lam de atividades de trabalho coletivas femininas,do tipo que documentei no Purus (MCCALLUM,2001).

    No Purus, as visitas entre casas e o comparti-lhamento de comida ocorriam quase diariamente.

    As lideranas feminina e masculina da aldeia exer-ceriam um papel axial em estimular o compartilha-mento e o trabalho coletivo, o que leva, junto comas trocas em nvel menor, criao e ao fortaleci-mento da socialidade17. No Jordo, a distncia ge-ogrfica entre as casas age como impedimento aodesenvolvimento de elos de cooperao e compar-tilhamento mais prximos. Tais elos emergem ape-

    17Sobre a instituio de liderana feminina entre os Kaxinaw,ver McCallum (1990, 1996b, 2001).

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    nas nas pocas em que viajar mais factvel. So-bre a organizao de trabalho e de residncia noJordo, Aquino e Iglesias escrevem:

    Em cada colocao, os grupos familiares extensosconstituem unidades de produo e consumo, nas

    quais seus membros trabalham tanto para atenders necessidades de subsistncia, quanto para ob-teno de produtos comercializveis.

    Em 1992, as 84 colocaes ocupadas nos seringaisdo Jordo eram exploradas por cerca de 140 gruposfamiliares Kaxinaw, que habitavam 132 casas. (...)Cada unidade domstica fica sob o controle de umchefe da casa, que tambm quem possui uma con-ta nas cantinas (...) da Cooperativa (...) e decide so-bre a produo e o consumo dos demais integrantesdo seu grupo domstico. (AQUINO; IGLESIAS,1994, p. 135-136)

    Katxanawafeminina no alto Purus, 1985. Foto Ceclia McCallum

    Os autores no mencionam as mulheres nessadescrio. No entanto, em outro trecho do relat-rio tratam, de um modo breve, do tema de relaes

    de gnero: A diviso social do trabalho entre oshomens e as mulheres complementar e no con-flitiva na sociedade Kaxinaw. (AQUINO; IGLE-SIAS, 1994, p. 56). No elaboram sobre esse ponto,o que vai de encontro situao no Purus, onde,ainda, a complementaridade entre os sexos se es-tende s diversas esferas de ao e permeia o diaa dia. Eu observei que o estilo de interao entrehomens e mulheres no Jordo parecia muito com aamabilidade e a jocosidade, s vezes picante, ca-racterstica dos Kaxinaw do Purus. Mesmo as-sim, havia evidncias de diferenas, as quais se

    relacionavam s particularidades estruturais e re-sidncias ora detalhadas.

    Enquanto a maioria das mulheres em Recreio

    eram keneya com desenho e, portanto, podi-am tecer capangas e redes para venda para acooperativa, no Jordo, s uma minoria de mu-lheres detinham os conhecimentos das tcnicasde tecelagem de desenhos. Desse modo, no dis-punham de uma fonte de renda independente, vin-do a depender dos homens da famlia para teracesso a mercadorias. Mesmo aquelas mulheres,que eram mestras de desenho, dependiam, emambos os casos, dos homens que agiam como in-termedirios na venda e na compra das encomen-das na cidade.

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    No Jordo, no encontrei referncias catego-ria ainbu xanen ibu18. Adquiri a impresso de queas mulheres tinham pouco costume de se expres-sarem em atividades pblicas. Os meus informan-tes me contaram que algumas mulheres mais velhas

    sabiam os cantos femininos do katxanawafemini-no, celebraes cerimoniais que funcionam comoum ritual para provocar o crescimento e a abun-dncia (increase ritual) dos legumes, animais decaa e pessoas (MCCALLUM, 2001). No sereferiram a essas mulheres com a expresso txa-na xanen ibu lder dos cantos rituais e fiqueicom a impresso de que o papel estava sendo pou-co desempenhado na rea, embora no tivesse in-vestigado mais. H outras indicaes de que a

    minha impresso estava correta. Quando Aquino& Iglesias pediram a Agostinho (outro lder do Jor-

    do) uma lista de todos os txana xanen ibu doJordo, ele mencionou uma dezena de homens, masnenhuma mulher (AQUINO; IGLESIAS, 1994, p.96-7). A partir da minha participao em trs pe-quenos katxanawamasculinos, no Jordo, notei a

    grande semelhana nos cantos e nas etapas doprocesso ritual, que tanto um palco para umaconfrontao jocosa entre os sexos, quanto parauma celebrao e reafirmao da complementari-dade e cooperao entre homens e mulheres nosprocessos de produo e reproduo.

    Tambm constatei uma presena fraca dasmulheres nos eventos realizados. Anotei nos meuscadernos de campo que poucas mulheres partici-param das brincadeiras e das danas. A maioria

    olhava dos bastidores ou entrava no crculo dosdanarinos com um ar de timidez.

    Fica evidente que, em 1985, as mulheres Kaxi-naw do Jordo tinham menor conhecimento queas suas primas e tias do alto Purus de certos sabe-res e capacidades tidos como icnicos e constituti-vos da gente verdadeira. A diferena se devia

    aos contatos distintos nas histrias de cada grupo.No caso dos Huni Kuin do Jordo, a sua incor-

    Filha segurando cartilha de alfabetizao e observando me tecendo, Recreio, 1984.Foto Ceclia McCallum

    18 Mulher liderana. Parece-me que no perguntei diretamente

    a respeito do tema, pois no h anotaes sobre isso no cadernode campo.

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    porao na frente de extrao criou condiesestruturais adversas transmisso inter-geracio-nal desses saberes femininos, com a disperso dapopulao nos seringais dos Caris e, aps o re-torno rea indgena, com a continuada disper-

    so em colocaes, embora em grau muito menor. provvel que a dependncia das mulheres di-ante dos homens, para o acesso ao mercado regi-onal, e a reduzida oportunidade delas departiciparem em eventos coletivos ou em inter-cmbios cotidianos de comida e servios tenhamlevado a um maior desempoderamento feminino.No era pouca a influncia negativa da convi-vncia com no-indgenas no processo de desem-poderar as mulheres indgenas. A desvalorizao

    da cultura indgena pelos seus vizinhos Caris,sem dvida, contribuiu enormemente. Ademais,um outro fator, ligado histria demogrfica des-sa populao, parece ter contribudo para as difi-culdades de transmisso dos saberes femininostradicionais. Algumas das mulheres mais velhas,no Jordo, no eram filhas de mulheres Kaxina-w. As suas mes eram Yaminaw, capturadasnos anos 1910 e 1920, no perodo violento de co-lonizao das cabeceiras dos rios regionais19. A

    transmisso do conhecimento especializado femi-nino passa pela linha de filiao materna. Por isso,essas mulheres no podiam ensinar as suas filhase netas, como as suas cunhadas com ascendn-cia feminina Kaxinaw faziam. Assim, as jovenscom mes Yaminaw ficavam sem instruo e osseus descendentes tambm.

    Essas observaes sobre gnero, saber e po-der no Jordo carecem de um maior grau de co-nhecimento sobre a rea; no posso dizer que o

    meu argumento est baseado em evidncias pro-fundas e conclusivas, pois permaneci apenas trsmeses na rea. evidente que h necessidade denovas pesquisas sobre gnero entre os Kaxinaw,bem como entre outros grupos indgenas. Mas, apartir dos dados disponveis, pode-se afirmar quevrios fatores levaram a uma escassez de profes-soras de conhecimentos femininos, sobretudo, mes-tras de desenho, no Jordo, em 1985. Asconseqncias so tratadas na seguinte seo, queretorna ao tema da educao escolar na perspec-tiva indgena.

    Concluso: O Viver Bem e o Empo-deramento das Mulheres no Jordo

    A ausncia das mulheres nas aulas dos novosprofessores Kaxinaw no se devia a uma proibi-

    o masculina. Era voluntria. A atitude dos pro-fessores com os quais eu conversei em 1985 erade que os alunos tm que querer estudar, que nose pode obrig-los a frequentar as aulas20. Duran-te a reunio de mulheres do Seringal Alto do Bode,gravei as respostas das mulheres s minhas inda-gaes, sentada no meio de um crculo de 20 mu-lheres. Para comear, perguntei o porqu delas nofrequentarem as aulas, sugerindo que talvez en-frentassem alguma dificuldade que impedia o aten-dimento. Tem algum problema? indaguei.Perguntei tambm se elas queriam aprender a lere escrever portugus (a lngua utilizada para ensi-no nas escolas criadas pelo CPI-Acre naquela po-ca). Haska min kene estudakatsiskaii? Aindaperguntei o que era que elas queriam estudar.Minhawa aprenderkatsiskaii? Aps minha breve fala,responderam individualmente, uma por uma.

    A maioria das mulheres expressava desinteresseem educao escolar. Eu no quero estudar nemportugus nem nawan kene, diziam. Muitas co-

    mearam as suas falas afirmando que queriammesmo ajudar melhor o seu marido. Ao reler asminhas notas de campo e comparar o resumo dadiscusso na reunio com o contedo das respos-tas gravadas, fica claro que eu dei pouca impor-tncia ou at ignorei essas repetidas afirmaesdo desejo das mulheres de cooperar melhor comos seus maridos. O vis poderia ser explicado comoo efeito da redundncia: depois de 18 meses mo-rando com Kaxinaw, o discurso era to bvio que

    no me parecia merecer destaque. Eu j sabia queos Kaxinaw pensam no casamento como umaparceria em que se ajudam e se dependem mutua-mente. J que a minha maior preocupao era o

    19 Os Kaxinaw pertencem a diversos grupos falantes de lnguaspano como Yaminaw, incluindo dentre esta rubrica Yaunaw,Poyanaw, Xadanaw e outros. Nenhum desses outros grupospraticam a tecelagem com desenho, como os Kaxinaw, nemusam os mesmos desenhos corporais.20Atitude semelhante, reportada por Weber (2006), entre pro-

    fessores Kaxinaw do Humait, cujos alunos, na sua maioriacrianas, eram de ambos os sexos.

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    futuro das mulheres, frente ao potencial desempo-deramento, em decorrncia da ausncia do projetoescolar, prestei mais ateno aos outros aspectosdas suas respostas, sobretudo, clara declaraoque muitas fizeram do tipo de interveno educa-

    cional que desejavam.A maioria das mulheres queria aprender a te-cer kene kuin nos artefatos fabricados de algo-do e nas cestas do tipo txitxan. Queriam seafirmar como ainbukeneya mulheres com de-senho. Apenas uma minoria falava que gostaria deaprender nawan kene, mas no deram uma expli-cao sobre os motivos que levaram a sua ausn-cia das salas de aula. Isso poderia ter acontecidopelos mesmos motivos que me levaram a ser de-

    signada professora de meninas adolescentes noRecreio: o receio de que houvesse tentaes se-xuais demais para os jovens. Houve discusso,durante a reunio, sobre qual mulher poderia serprofessora de portugus das mulheres. Francisca,esposa do professor Isaias, filho de Romo Sales,se props como candidata a professora de portu-gus e de desenho, alegando j ter algum conheci-mento. No entanto, a maior nfase foi sobre anecessidade de se criar uma escola de tecelagem,para capacitar as mulheres para desenhar nos te-cidos. Para professora, propuseram Helena, a es-posa mais velha de Sueiro, ou, ento, uma outramestra que era viva com filhos adultos e semmarido para cuidar. O entusiasmo gerado pela dis-cusso era tanto que dois dias depois duas mulhe-res viajaram para a Colocao Natal, o povoadode Sueiro e Helena, dizendo que iam estudar juntocom ela21. Elas levaram os seus estoques de algo-do fiado nas suas cestas.

    Pode-se entender o entusiasmo das mulheres e

    a sua insistncia na importncia de ajudar os seusmaridos, como sendo uma resposta necessidadede ampliar o leque de produtos oferecidos paravenda no mercado regional e nacional, a fim deaumentar a renda familiar, at este momento todependente das atividades extrativistas dos homens.Entretanto, luz da etnografia sobre aprendizagem,ao humana e a produo de socialidade entre osHuni Kuin, detalhada no comeo deste artigo, pode-se chegar a uma interpretao mais profunda da

    postura das mulheres. Ao exercerem a sua aofeminina, as mulheres dependem de relaes com-

    plementares com os homens, e vice-versa. Estacomplementaridade fundada sobre uma divisode responsabilidades frente aos espaos de produ-o, reproduo e troca. Os homens lidam com oexterior e os entes que o habitam, enquanto as

    mulheres circulam e produzem no interior. Assim,as mulheres trabalham no roado, buscam comidana floresta perto da aldeia, plantam e tratam o al-godo, transformam alimento cru em cozido, flui-dos corporais em bebs, e servem comida paraparentes, afins e visitantes, e, desse modo, os apro-ximam da esfera de socialidade. Os homens, porsua vez, derrubam a floresta para fazer roados,caam, pescam, viajam para fins comerciais e po-lticos e defendem os parentes contra inimigos, to-

    das as atividades que tornam possvel o trabalhodas mulheres.Kene, expresso que se refere tanto a dese-

    nho quanto a escrita, emblemtico da distinoentre o interior e exterior. As mulheres somestras de kene. Em tempos mticos, ganharamessa capacidade da jibia, cuja pele rene todosos desenhos possveis (LAGROU, 2007). Kenekuin uma forma grfica de saber e de poderexternos, originada no passado mtico e nos ou-tros nveis do cosmos contemporneo. SegundoMaria Sampaio, a sogra de Pancho Lopes, o lderde Recreio, kene a linguagem dos espritos(yuxin). Maria explicou keneassim a Els Lagrou,antroploga que fez um estudo detalhado do tpi-co. Ao aplicar kene sobre a superfcie dos cor-pos e de alguns objetos, como certos tipos depanela de cermica, ou ao tec-lo nas redes e emoutros tecidos, as mulheres tornam essas coisase pessoas kuin (verdadeiras). Segundo Lagrou,essa prtica o aplicar da linguagem dos yuxin

    sobre objetos e pessoas, inserindo-a nos tecidos se inscreve como um tipo de cdigo escrito(LAGROU, 2007, p. 126-127). A autora ressalta

    21Helena ensinou para essas duas mulheres, mas em outra oca-sio deixou claro que no pretendia se tornar professora semremunerao. Segundo me contou Osair-Sian, filho de Sueiro,seria necessrio remunerar as professoras. Afirmou que ele mes-mo pagou uma mestra no Seringal Bondoso, usando o seu pr-prio dinheiro. Justificou o fato enfatizando a importncia dossaberes femininos na manuteno da cultura e da identidadeHuni Kuin. Essas idias vieram a florescer nas dcadas seguintes,

    no movimento pr-cultura dos professores indgenas no Acre(WEBER, 2006).

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    Revista da FAEEBA Educao e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 87-104, jan./jun. 2010

    que a inscrio realizada segundo regras estri-tas de composio e execuo. Ela discute a na-tureza desse cdigo, que no um cdigo, nosentido saussuriano, pois a relao entre signifi-cado e significante no arbitrria, mas indexical

    e metonmica22

    . Como cdigo grfico, keneope-ra sobre e por dentro do corpo ou objeto paracoloc-lo em um relacionamento material com alinguagem e com o poder transformador das for-as externas. As foras externas ajudam a refa-zer o corpo ou objeto, porque produzem a absoro

    do conhecimento verdadeiro e, desse modo, faci-litam a produo de ao humana.

    Nawan kene, a escrita ensinada na escola, tam-bm se caracteriza como um saber externo, umcdigo inscrito no corpo do papel, que confere po-

    der sobre quem sabe l-lo, como entre os Piro(GOW, 2010). Sendo os homens que tratam dire-tamente com os Nawa, no de surpreender que,no momento do primeiro contato com a escrita,foram eles, e no as mulheres, os designados comoos mediadores na relao com esse novo saber.

    22 Lagrou (2007, p. 108-137) desenvolve esse argumento em

    detalhe.

    Professores indgenas estudando num curso de formao organizado pelo CPI-Acre emagosto 1991. Paulo Lopes do Purus est de camisa listrada. Foto Ceclia McCallum

    Na etnografia apresentada neste artigo, ficouclaro que, na perspectiva dos moradores do Jor-do, em 1985, ambos os tipos de kenetinham umpapel vital no projeto de viver bem. Ambos po-diam contribuir para a criao de um estado deser onde os parentes so saudveis, a comida abundante, o clima da convivncia de alegria, eo conflito relativamente ausente. Era esse o pro-jeto que dava impulso vida cotidiana. Quandoas mulheres falaram, num estilo formal, do seu

    papel conjugal, estavam se posicionando dentro

    de uma tradio de retrica poltica homiltica queenaltece o viver bem e contribui para constitu-lo (MCCALLUM, 1990, 1996). Na viso delas,no havia motivo para elas ingressarem na esco-la, tarefa delegada aos homens, dentro do quadroda diviso de trabalho, segundo a lgica das aeshumanas complementares. Tornar-se alfabetiza-do se adicionou lista de capacidades masculi-

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    Revista da FAEEBA Educao e Contemporaneidade, Salvador, v. 19, n. 33, p. 87-104, jan./jun. 2010

    nas necessrias, no contexto do novo mundo so-cial, possibilitado pela retirada dos Kaxinaw dasujeio diante dos Caris e pela retomada doterritrio do Jordo. Naquele momento histrico,as mulheres no se sentiram desempoderadas em

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    Recebido em 24.10.09

    Aprovado em 02.11.09