entre tumbas e senzalas: os direitos remanescidos de santana dos pretos - edmeire exaltação
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Este trabalho tem o objetivo de entender os processos de construção e preservação da identidade negra, assim como os elementos sociopolíticos constitutivos do cotidiano de uma comunidade negra rural fluminense. Com esta finalidade, foi escolhida para estudo a comunidade negra de Santana, localizada no médio Paraíba do Estado do Rio de Janeiro. Interessa a este trabalho, analisar os “quadros” persistentes da memória coletiva da comunidade e fazer uma avaliação das estratégias que seus membros têm utilizado para exigir e garantir os seus direitos conforme prenunciados pela Constituição de 1988. This thesis aims to understand the processes of construction and preservation of black identity and the sociopolitical elements that constitute the daily life of a rural black community in Rio de Janeiro. For this purpose, was chosen the black community of Santana, located in the middle of Paraiba, Rio de Janeiro. Our interest is to analyze the persistent memories frames and make an assessment of the strategies that the community members have used to ensure and to demand citizenship rights as foretold by the 1988 Constitution.TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAS
ENTRE TUMBAS E SENZALAS:
Os Direitos ‘Remanescidos’ do Quilombo
Santana dos Pretos.
Edmeire Oliveira Exaltação
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
UERJ, como requisito à obtenção do grau de
Mestre em Ciências Sociais.
ORIENTADORA
Profa. Dra. CléIa Schiavo Weyrauch.
Rio de Janeiro
2002
Exaltação, Edmeire Oliveira
ENTRE TUMBAS E SENZALAS: Os Direitos
‘Remanescidos’ de Santana dos Pretos.
Rio de Janeiro – UERJ, 2002-09-09
Dissertação: Mestrado em Ciências Sociais, UERJ
I . Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
II. Quilombos, Memória, Identidade Étnica.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
CLÉIA SCHIAVO WEYRAUCH
________________________________________________________
JACQUES D’ADESKY
_______________________________________________________
HERIS ARDNT
Para os meus filhos:
Eduardo Sol, Pietro Terra e Isis Natureza.
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de entender os processos de construção e
preservação da identidade negra, assim como os elementos sociopolíticos
constitutivos do cotidiano de uma comunidade negra rural fluminense. Com
esta finalidade, foi escolhida para estudo a comunidade negra de Santana,
localizada no médio Paraíba do Estado do Rio de Janeiro. Interessa a este
trabalho, analisar os “quadros” persistentes da memória coletiva da
comunidade e fazer uma avaliação das estratégias que seus membros têm
utilizado para exigir e garantir os seus direitos conforme prenunciados pela
Constituição de 1988.
Cabe aqui situar a discussão sobre comunidades negras rurais dentro de
uma estrutura conceitual chamada política de identidades. Será assim chamada
por entendermos que os movimentos de identidades específicas têm utilizado
imagens, concepções, memórias, representações e práticas culturais como
cenário para as suas ações e demandas políticas. Assim tem sido em Santana:
a identidade étnica, memória e cidadania são temas constantes nas vozes dos
seus moradores.
Será observado neste trabalho como a conquista do direito à cidadania
pelas comunidades negras rurais, está ligada a um processo que se completa
pela preservação da sua memória coletiva. A partir da análise estruturada pela
tríade memória, etnicidade e cidadania, procuraremos entender como estes
conceitos são enunciados e definidos pela comunidade negra de Santana de
Quatis.
ABSTRACT
This thesis aims to understand the processes of construction and preservation of
black identity and the sociopolitical elements that constitute the daily life of a
rural black community in Rio de Janeiro. For this purpose, was chosen the black
community of Santana, located in the middle of Paraiba. Our interest is to
analyze the persistent memories frames and make an assessment of the strategies
that the community members have used to ensure and to demand citizenship
rights as foretold by the 1988 Constitution.
We will focus the discussion on the quilombo black communities within a
conceptual framework called identity politics. We believe that the movements of
specific identities have used images, concepts, memories, representations and
cultural practices as the setting for their actions and political demands. So it has
been in Santana: ethnic identity, memory, and citizenship are a constant theme in
the voices of the residents.
It will be observed how the right to citizenship for the traditional black
communities are linked to a process that is completed by the preservation of
collective memory. From a structured analysis through the triad memory,
ethnicity and citizenship, we will look to understand how these concepts are
listed and defined by the black Santana community.
ÍNDICE
Pag.
Introdução
Sobreviventes Quilombolas: Memória como Poder de Organização........ 01
Capítulo 1
Um Olhar Esguio sobre Sant’Ana dos Pretos......................................... 14
Capítulo 2
Entre Tumbas e Senzalas: As Ruínas de um Significado....................... 31
Capítulo 3
Do Tamanho do Mapa à Cor do Título: Traçados e Pontilhados na
Linha da História............................................................................... 49
Capítulo 4
Os Direitos Remanescidos dos Sobreviventes da Memória............... 65
Capítulo 5
Perfil Sócio-Econômico de Santana..................................................... 84
Considerações Finais............................................................................. 100
Bibliografia............................................................................................ 108
Anexos..................................................................................................... 114
1
Foto: Creuza Flores
INTRODUÇÃO
Sobreviventes Quilombolas:
Memória como Forma de Organização
Morador de Santana e seus filhos
Estou ouvindo um lamento
Que não sei de onde vem
Sei que é lamento do Homem
Talvez do fundo do mundo
O fundo do mundo onde é
Quem sabe pra me dizer
Este lamento é do homem
De deuses é que ele não é
Que cor esse homem tem
Sei que é lamento do Homem
Mas não sei de onde vem
Vem ó Maria Santana
Lamento do Homem escutar!
Lamento, de Solano Trindade.
O Poeta do Povo, pg. 103.
2
Esta pesquisa tem o objetivo de entender os processos de construção e
manutenção da identidade negra e os elementos sociopoliticos constitutivos do
cotidiano de uma comunidade1 negra tradicional. Com esta finalidade, foi
escolhida para estudo de caso a comunidade negra de Santana, localizada no
médio Paraíba do Estado do Rio de Janeiro, „provisoriamente‟ titulada em
julho de 20002. Interessa também a este trabalho analisar os “quadros”
persistentes da memória coletiva da comunidade3 e fazer uma avaliação das
estratégias que seus membros têm utilizado para exigir e garantir os seus
direitos conforme prenunciados pela Constituição de 1988.
Com a Constituição de 1988 as comunidades negras rurais começaram a
atrair certa visibilidade graças ao Artigo 68O
dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias - ADCT que assegura, “aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras” o
reconhecimento da propriedade definitiva, “devendo ao Estado emitir-lhes os
títulos respectivos”4 . Desta forma, este dispositivo constitucional abriu um
espaço legal através do qual centenas de comunidades negras puderam
efetivamente reivindicar a regularização de suas terras.
Também com o artigo 68o, tenta-se reparar uma injustiça que vem
desde o período escravistas quando, com a Lei de Terra de 1850, os
1 A idéia de comunidade neste trabalho será utilizada conforme sugerido por Weyrauch, isto é,
“comunidade subentendida como um pacto de igualdade entre seus membros”. WEYRAUCH, Cléia.
Pioneiros Alemães de Nova Filadélfia. Educs, R.G. do Sul, 1997, pg. 165.
3 Conforme Halbwachs, é por meio dos quadros sociais - sobrepostos - da memória que as lembranças
vão e voltam transportando eventos do passado que não existem por si só, mas em relação às idéias e
percepções do presente. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. pg. 52
4 Constituição da República Federativa do Brasil, COAD, Centro de Estudos Superiores, São Paulo,
1988, pg. 60.
3
descendentes de escravos ficaram impedidos de ter acesso a terra5. O novo
preceito constitucional reconhece não só o direito de posse dos quilombolas
como também o status histórico destas comunidades enquanto patrimônio
cultural brasileiro.
O trabalho aqui proposto é oportuno por trazer uma discussão muito
recente nos debates políticos e acadêmicos no Brasil: a utilização de direitos
constituídos a partir da condição étnica da pessoa. Temos como exemplo mais
recente as legislações baseadas em ações afirmativas que se institucionalizam
em instrumentos de cidadania e de direitos reparadores dos traumas e prejuízos
causados à população negra pela escravidão e pela prática do racismo.
Enquanto o século XX foi exaustivo na produção das grandes teorias
relacionadas à diferença de classes, à opressão política e outros paradigmas de
caráter universalista, a era contemporânea parece preferir o particularismo
através da celebração da diferença e da heterogeneidade cultural expressas
pelos variados grupos étnicos que compõem as sociedades multiculturais6.
Porém, só muito recentemente - com a Constituição Federal de 1988 - o Brasil
começou a fazer parte de forma mais cômoda deste cenário de reivindicações
baseadas nas diferenças étnicas.
O reconhecimento da pluralidade e das diferenças étnicas existentes em
nosso país veio assim reverter uma antiga crença de que a identidade racial não
teria relevância no contexto da sociedade brasileira7. Entretanto, com todas as
considerações à diversidade étnica do país encontradas na Constituição Federal
5 Ver no Capítulo 2 deste trabalho maiores referências à Lei de Terra de 1850. 6 KILIMCKA, Will . Multicultural Citizenship, 1995, Clarendom Press, Oxford, pg. 2 7 DADESKY, Jacques. Pluralismo Étnico e Multiculturalismo, Rio de Janeiro, Pallas, 2001, pg 12.
4
de 1988, ainda observa-se um certo incômodo nos debates sobre as diferenças
e as pluralidades étnicas e culturais existentes na nossa sociedade. Qualquer
manifestação legítima de demarcação de fronteiras étnicas neste país é vista
como uma atitude ameaçadora e seccionista à „harmonia racial‟ existente no
país. Esta atitude pode ser traduzida como uma ação de controle por parte do
pensamento dominante. Controle este que tem trazido irreparáveis prejuízos à
comunidade negra que se viu muitas vezes impedida de administrar a
manutenção das suas tradições e das suas singularidades enquanto um grupo
étnico detentor de uma origem e herança culturais específicas.
Cabe aqui situar a discussão sobre as comunidades negras rurais dentro
de uma estrutura conceitual chamada política de identidade. É assim chamada
por entender que os movimentos de interesses específicos utilizam imagens,
concepções, representações e práticas culturais como cenário para as suas ações
e demandas políticas8. Nesta direção, o movimento negro, onde incluem-se
também as comunidades rurais negras, o movimento indígena, o movimento
feminista, o movimento homossexual, entre outros, utilizam demandas que
realçam a identidade e a diferença, ou mesmo a intersecção entre estas, como
táticas de garantias de direitos da pessoa humana e de cidadãos(ãs).
A conquista do direito à cidadania pelas comunidades negras rurais está
intrinsecamente ligada a um processo que se completa pela preservação da sua
memória. Daí porque não termos como não associar a tríade utilizada neste
trabalho: memória, etnicidade e cidadania. A partir da análise articulada desta
8 KILIMCKA, op. Cit. Pg. 35.
5
tríade, procuro entender como estes conceitos são enunciados e definidos em
diferentes estratégias utilizadas pelas comunidades negras rurais.
No sentido clássico, cidadania tinha um significado abstrato e estava
associada a uma imagem de atendimento mais amplo, mais universal de
demandas. Atualmente, porém, a concepção de cidadania tem a sua imagem
recortada pelo interesse dos grupos organizados em torno das suas múltiplas
identidades específicas. Assim, a cidadania étnica, cidadania de gênero, de
orientação sexual, da condição etária, etc., substituíram a outrora imagem
unificada de identidade nacional, de unidade cultural de uma nação9.
Sob este ponto de vista, podemos entender a cidadania reclamada pelas
comunidades negras rurais não apenas como aquela restrita ao atendimento de
seus direitos fundiários ou ao atendimento das suas necessidades materiais. Os
moradores de Santana também reclamam por uma cidadania onde tenham as
suas tradições culturais e suas crenças preservadas ou resgatadas. É aquela a
qual podemos chamar de cidadania étnica onde as práticas culturais, simbólicas
e econômicas do grupo não podem ser vistas desvinculadas dos seus direitos
civis, políticos e sociais.
Em atenção ao que diz o artigo constitucional (68º) , muitas
comunidades negras começaram a perceber que - se era importante antes -
agora, mais do que nunca, a condição étnica tornar-se-ia um instrumento
imprescindível, na cobrança e conquistas de políticas de direitos humanos.
9 KILIMCKA, op. cit. pg. 58.
6
Desta forma, o Artigo 68o legitima e associa juridicamente, o reconhecimento
da diferença etnocultural como um direito estabelecido por inclusão e igualdade
social.
O conhecimento da origem e o sentimento coletivo de pertencimento
étnico são peças cruciais na comprovação dos direitos especiais destas
comunidades. Por isto, é de fundamental importância para a comunidade o
resgate e a “preservação” da memória coletiva acompanhados dos artefatos
arqueológicos e culturais herdados dos seus antepassados. Em vista disto, é
oportuna a preocupação de Miguel, presidente da Associação dos Moradores de
Santana com a constituição de um capital mnemônico que garanta assim, a
transmissão da história da comunidade às gerações vindouras10
.
Comunidades Negras Rurais: números e significados.
Apesar de ter obtido ordenamento jurídico com a Constituição Federal
de 1988, os direitos especiais dos remanescentes de quilombos só começaram a
entrar no debate político nacional na metade da década de 90 por ocasião das
comemorações de 300 anos de morte de Zumbi de Palmares. Desde então, o
Artigo 68O tem sido objeto de interesse acadêmico e político. O debate
suscitado, além de dar visibilidade a estes novos atores sociais, trouxe também
uma situação nova ao quadro político nacional11
: o Estado foi obrigado a
10 Assim, este capital mnemônico garantiria um estoque de informações herdadas, que devem ser
armazenadas na memória coletiva e serem transmitidas de geração para geração.
11 Mesmo tendo um sentido de reparação de uma dívida histórica, é bom não confundir os direitos
especiais conquistados pelos remanescentes de quilombos com as políticas de ação afirmativa também
tão discutidas atualmente. As políticas de ação afirmativa são planejadas para um tempo limitado. Ou
seja, espera-se que à medida que as desigualdades sociais e étnicas diminuam, tais políticas percam,
gradativamente, o seu sentido de aplicação. Por sua vez, os direitos especiais dirigidos aos quilombolas
7
reconhecer e a atender a novas demandas vindas da área rural.
Há uma estimativa de que exista em todo o país cerca de 900
comunidades rurais negras acolhendo por volta de dois milhões de habitantes.
Somente no Estado do Rio de Janeiro já foram “reconhecidas”12
14
comunidades negras com características que atendem a aplicabilidade do Art.
68O13
.
Mas, afinal, à luz da realidade atual o que vem a ser uma comunidade
negra rural ou comunidade remanescente de quilombos? Como se define um
remanescente ou quilombola? Quais foram os processos sociais e estratégias
utilizados por estes moradores, de forma a persistirem enquanto um grupo até
os dias de hoje? Como esses grupos mantiveram características específicas
vivendo em condições sociais tão adversas?
Costuma-se associar a história de quilombos no Brasil apenas ao
período escravista. Pouco se conhece sobre as comunidades negras rurais que
sobreviveram a este período e procuraram levar suas vidas dentro de práticas
simples e cotidianas até hoje. Por causa deste “esquecimento” há pouca
consonância entre o imaginário popular - mesmo o dos militantes negros - sobre
quilombos e a realidade concreta destas comunidades. Muitos acreditam que há
nestas comunidades uma realidade sócio-cultural contígua e inalterada do
tal como a titulação definitiva de suas terras ou os projetos de desenvolvimento básico dentro dos seus
territórios, são direitos permanentes que visam o desenvolvimento contínuo da comunidade.
12 “Reconhecer” a comunidade é uma das etapas dos processos de elaboração do laudo pericial
antropológico. Estes processos estão expostos com maior detalhe no Capítulo 3.
13 Segundo informações da Fundação Cultural Palmares encontradas no site da internete
www.minc.org.br
8
passado, pronta, onde poder-se-á até encontrar pedaços intactos da África14
.
Esta é uma imagem que ignora a dinâmica própria de cada comunidade,
fixando-as em um passado que não mais existe. Por outro lado esta imagem tem
impedido o exercício de pensar estas comunidades a partir das suas realidades
atuais, trazendo desta forma, sérias implicações para a criação e adoção de
políticas públicas dirigidas a estas comunidades.
É no campo da história escravista que vamos encontrar muitos autores
preocupados em narrar a saga dos quilombos15
. Porém, nas ciências sociais,
apesar de ser imenso o volume de estudos e pesquisas sobre as condições de
vida da população negra urbana, muito pouco até agora foi pesquisado sobre
comunidades negras rurais. Temos alguns trabalhos pioneiros da década de 80,
mas é somente a partir de 1995, por volta da comemoração da morte de Zumbi
dos Palmares, que a atenção para este tema é aumentada.
É possível, que a tradição político-ideológica de negar a existência de
uma alteridade racial e cultural entre brancos e negros na sociedade brasileira,
tenha refletido na produção das ciências sociais. Esta omissão fez com que
ficassem pouco conhecidos as condições de existência e os processos de
inserção social vivenciados pelos ex-escravos após 1888.
Através de um intenso trabalho de campo procedeu-se à observação da
comunidade de Santana, com a realização de entrevistas abertas e aplicação de
questionários fechados. Com a utilização desses instrumentos procuramos:
14
REIS, José Reis e Flávio Gomes. "Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil", São
Paulo, Cia. das Letras, 1996, pg. 11.
15 Vale aqui ressaltar o extenso e rico trabalho feito por historiadores sobre negros escravos e libertos
durante o período escravista,
9
1. Entender como estes novos atores sociais têm utilizado a
memória coletiva, o território e a identidade étnica como
elementos normativos de autopreservação e garantia de
direitos especiais.
2. Observar como uma comunidade quilombola manifesta juízos
em relação a questões de diferenças étnicas, racismo,
desigualdade social e justiça distributiva.
3. Mapear e analisar as estratégias de articulação e de ação dos
moradores de quilombos no atendimento às suas demandas
por políticas de promoção e de desenvolvimento social.
Conforme já dito, muitos acreditam encontrar nos quilombos um
autêntico repertório cultural da tradição africana. Será Através do
levantamento de elementos de natureza etnográfica – constituição familiar,
práticas culturais, redes sociais, uso comum do território, lideranças e
articulação entre as esferas individuais e coletivas, histórias de vida, etc. –
procurei entender o papel da memória coletiva e histórica no processo de
constituição das identidades culturais e sociais dos moradores de Santana.
No Capítulo 1, sob a inspiração das teses halbwachianas, é mostrado
como estas comunidades têm tentado redimensionar o presente voltando sempre
ao passado. Assim, é discutido como através da evocação ao passado, o espaço
e o lugar formam um cenário essencial para a (re)constituição da identidade
quilombola. A memória de Santana é reconstruída a partir de imagens
históricas, relatos e lugares que brotam do estoque mnemônico dos seus velhos
e novos habitantes, numa interessante organização de imagens retidas no
discurso cotidiano e nos lugares.
10
No Capítulo 2 argumento que tanto a definição do termo
“remanescente” quanto as políticas pensadas para os povos destas comunidades
se fundamentam em duas referências concretas: território e etnicidade. Para
atender à definição “ressemantizada” de quilombo, os moradores destas
comunidades começam a visualizar a origem histórica e o espaço territorial
como um cenário que vai ser usado para preencher uma agenda política de
legitimação de direitos e de reconhecimento da diferença entre o de dentro e o
de fora, entre o Eu e o Outro16
. Entendemos então que a definição de
comunidade negra rural ou e de remanescente tal como profetiza o art. 68o está
atrelada a elementos fixos, tais como a uma fronteira, a um tempo e a um lugar,
sem os quais esta não teria a representação que lhe foi atribuída.
As origens de uma comunidade podem ser várias: desde terras herdadas
de escravos fugidos do regime escravocrata; doações de senhores ou ordens
religiosas a ex-escravos até terras compradas por escravos libertos e herdadas
pelos seus descendentes; ou ainda, terras conseguidas do Estado em troca de
participação em guerras17
.
No Capítulo 3 são descritos os procedimentos técnicos utilizados
durante todo o processo de titulação de uma terra remanescente de quilombos.
Obedecendo às etapas de mapeamento, identificação, reconhecimento e
titulação, todo o ritual empregado para a regularização fundiária destas
comunidades tem um sentido evocativo tanto à origem socioétnica da
16 Canclini analisa como através da evocação e dramatização do passado, muitas culturas têm assegurado
os seus direitos. CANCLINI, Nestor Garcia.Culturas Híbridas. São Paulo, Edusp, 1997, pg. 42. 17 GOMES, Flavio e Richard Price em “Reinventando a história dos quilombos: rasuras e
confabulações” , Revista Afro-Ásia, 1998-1999, pg.252.
11
comunidade quanto à essência do espaço geográfico no qual estas estão
assentadas. O primeiro passo para a titulação é a busca e identificação
“arqueológica” de traços sobreviventes da cultura negra concentrados em um
espaço geográfico definido, cujos habitantes de maioria negra mantenham
práticas culturais e regras sociais autônomas. Aqui é demonstrado como uma
equipe de profissionais juntamente com a comunidade, traçam limites e
fronteiras, descrevem e reconstroem uma memória e observam as redes de
relação existentes entre os quilombolas e o mundo. É também observada neste
capítulo a contradição de uma legislação que enquanto concede direitos
especiais a estas comunidades, tira-lhes ao mesmo tempo a tranqüilidade. A
partir do momento em que estas comunidades reivindicam os seus direitos
históricos de donos da terra, tornam-se alvos de atenção dos fazendeiros locais
e são assim incluídos numa questão fundiária que muitas vezes nega-lhes o
direito de propriedade á terra.
Ressalto também que as reivindicações por titulação de terras vindas dos
remanescentes de quilombos, apesar de alguma semelhança, são diferentes
daquelas demandadas pelo Movimento dos Sem Terra. As reivindicações das
comunidades negras, além da questão fundiária, incluem também condições
para a preservação do patrimônio cultural herdado de seus antepassados. Neste
sentido, uma comunidade negra remanescente não tem prioritariamente a
obrigação de demonstrar vocação pelo cultivo da terra conforme é requerido do
Movimento dos Sem Terra. Para a jurisdição destinada a atender aos
quilombolas, o importante é a comprovação da associação histórica entre as
suas identidades e o território ocupado.
12
A partir do que institui a Constituição de 1988, o Capítulo 4 busca
examinar os pontos de convergência entre etnicidade e cidadania. Aqui é
demonstrado como a comunidade de Santana está entre as expressões mais
extremas dos limites da pobreza rural. As opiniões dos moradores do quilombo
de Santana foram colhidas com vistas a formar um retrato da comunidade que
revelasse elementos constitutivos da sua realidade atual. A análise do perfil
socioeconômico da comunidade de Santana é feita com o objetivo de mostrar
que para além de serem vistos como portadores de uma cultura, eles querem ser
vistos também como cidadãos com direito aos bens simbólicos e materiais
produzidos por esta sociedade que se diz global.
Por fim, vale aqui lembrar Canclini que sugere que a pós-modernidade
não é uma etapa evolutiva de eras anteriores, mas sim, uma revisão destas.
Assim, no lugar em que alguns estudos vêem as mudanças atuais como uma
ruptura, Canclini as entende como uma releitura de experiências históricas18
.
Desta maneira, procurei entender Santana de Quatis como uma comunidade
étnica que está tentando reler e reescrever a sua experiência histórica.
Espero com este trabalho contribuir para uma melhor compreensão sobre
as diversas comunidades negras rurais espalhadas pelo Brasil.
18 CANCLINI, NESTOR. Consumidores e Cidadãos: Conflitos Multiculturais da Globalização. Rio de
Janeiro, Ed. UERJ, 1996, pg. 149.
14
Foto: Creuza Flores
CAPÍTULO 1
Um Olhar Esguio sobre Sant’Ana dos Pretos
“ Que você pode observar aqui em Sant‟Ana,
que você não acha um branco... Todo mundo
aqui é negro. Muita gente vem aqui, pode até
pensar: „gente mas só tem preto aqui ? É só
preto mesmo, e no tempo da escravidão, não
tinha branco aqui, só tinha negro. Aí foi onde
que ficou Sant‟Ana dos Negros, mas nós somos
felizes com isso, graças a Deus. Somos pretos
e somos felizes.
Olga Maria de Jesus Moreira, moradora de Santana,
depoimento retirado do Laudo Historiográfico de Santana,
Iterj/Minc, 1998, pg. 20.
15
Este capítulo analisará os processos de transmissão de herança e de
preservação do patrimônio cultural, material e imaterial da comunidade negra de
Santana. Entende-se aqui que as variáveis explicativas tanto da origem quanto da
montagem social da comunidade são encontradas nesses processos. Este capítulo
mostrará também como funcionam os códigos que regulam a estrutura cultural e
existencial de Santana.
A identidade negra da comunidade de Santana, além da memória
coletiva, é contornada pela presença e posse de um patrimônio herdado dos seus
antepassados: o território e os monumentos1. Os bens herdados de Santana
constituem assim numa propriedade especial visto que estes não se limitam
apenas ao seu valor histórico ou material. Os poucos monumentos restantes em
Santana têm a capacidade não somente de lembrar o passado, mas também, de
estabelecer uma ligação entre passado, presente e futuro da comunidade2.
De fato, os monumentos antigos, principalmente de cidades pequenas,
tornam-se especiais “lugares da memória” por serem espaços onde geralmente as
pessoas da comunidade lembram da sua infância, lembram dos encontros com
amigos, dos conflitos, dos amores, namoros e festas3. Mas, como bem lembra
Bosi, estas recordações não são passivamente armazenadas nas memórias das
pessoas4. Monumentos, como qualquer outro artefato arqueológico, levam as
1 O significado de monumento neste trabalho restringe-se simplesmente ao aspecto físico da construção,
ou artefato arqueológico encontrados na comunidade. 2 De acordo com Hobsbawn, a idéia de passado ou memória, como relevante na construção das identidades
pessoais e coletivas é uma invenção moderna do século XVIII. HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (orgs.).
1984. "Introdução". In: A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra. pp. 9-24 3 NORA, Pierre.” Entre memória e história”. Projeto História: Revista do Programa de
Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. SãoPaulo: PUC. 1981 4 BOSI, Ecléia. "Memória e sociedade: lembranças de velhos" - 3. ed. - São Paulo: Compainha das
Letras, 1994, pg. 232.
16
pessoas a criar recordações ativas dentro do contexto social no qual elas vivem.
Tais recordações podem ser de grande importância na definição das identidades
tanto individual quanto coletiva. Assim posto, pergunta-se, de que maneira a
comunidade de Santana vive as suas recordações
Espaço e Tempo em Santana dos Pretos
O espaço e o tempo são conceitos construídos pelas representações
coletivas. Considerando que o espaço e o tempo são categorias fundamentais
nas construções sociais, acredita-se que estes só têm sentido quando fruto de
uma construção social. Aqui supõe-se também que cada sociedade tem um
tempo e um espaço próprios que garantem a vida social5. Para Halbwachs,
espaço e tempo unificam e dão ritmo à vida social. Como fiel discípulo de
Durkheim, Halbwachs não poderia deixar de relevar o tempo e o espaço como
construções imprescindíveis à manutenção da memória coletiva6.
Seguindo a abordagem durkheimiana, Halbwachs acreditava que os
processos sociais vivenciados por qualquer grupo social são determinantes para
a manutenção das memórias tanto pessoal quanto coletiva do grupo. Além
disso, tais processos influenciariam sobremaneira a construção da identidade
coletiva e das suas variações tais como a relação de parentesco, sistema de
crenças e religião, ou mesmo de classe dentro do grupo7.
5Durkheim, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa”, Editora Paulinas, SP, 1988. 6 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990. pg.25
7 HALBWACHS, idem. pg.25
17
Estrada de barro que dá acesso a Santana.
Acima, a estrada de ferro que segue para
Minas.
Halbwachs afirma ainda que a memória coletiva é resultado de
diferentes memórias individuais. Ou seja, a memória tem sempre um caráter
social. Para este autor, qualquer memória, mesmo que seja muito pessoal, esta
existe em relação a um conjunto de percepções de vida que nos dominam mais
que outros. Lembrança de pessoas, grupos, lugares, datas, palavras e mesmo
idioma formam, até mesmo através de raciocínios e idéias, toda a vida
material e moral das sociedades da qual nós temos sido parte. Cada grupo
social tem uma história que é reconhecida por testemunhos, olhares pessoais,
versões distintas e referências do cotidiano. Além disto, cada grupo ou cultura
específica tem o seu ritmo e o seu olhar sobre si e seu mundo a partir de uma
espacialidade própria, particular. É isto que veremos a partir de agora: a
maneira como Santana vê a si mesma dentro da sua própria dinâmica espacial.
***
Viajei a Santana por várias
vezes com dois objetivos. O primeiro,
para atender a uma obrigação de
trabalho. Fui contratada pelo Instituto
de Tecnologia Social, o qual, em
convênio com o Instituto de Terras do
Rio de Janeiro, tinha naquele momento
a incumbência de mapear as terras de quilombos existentes no estado do Rio de
Janeiro.
18
Foto: Creuza Flores
O segundo objetivo, embora não deixasse de ser também por razões
profissionais, fui especialmente observar a comunidade para completar a
minha análise etnográfica sobre aquele grupo que dizia ter uma única origem: a
de descendentes diretos de escravos.
Santana é um lugarejo composto
por 20 famílias negras localizado no
município de Quatis, que está distante
cerca de 130 km da capital do estado, Rio
de Janeiro. Antes de ser Quatis, a área foi
habitada pelos povos indígenas Acaris e
Puris que desapareceram com a
devastação dos fazendeiros locais. Muitos
dos fazendeiros que ali chegaram vinham
fugindo da derrocada do ouro em Minas, à procura de terras para plantar café.
Atrás deles vieram também colonos, trabalhadores rurais livres e escravos.
Dessa movimentação migratória, resultaram duas grandes fazendas que
se destacaram economicamente:a de Faustino Pinheiro e a do Barão de Cajuru,
que veio a tornar-se personagem importante na história de Sant‟Ana dos
Pretos8.
Santana é uma comunidade de características eminentemente rurais e
está situada a uma altitude média de 600 metros. É uma região adornada por
8 Informações obtidas em documentação da Secretaria Municipal de Cultura de Quatis.
Vista do Alto de Santana
19
pequenas cordilheiras de montanhas, o que dá à área uma beleza verde
singular. Os 15 km de estrada de barro que ligam Santana a Quatis9, foram
construídos na metade da década de 80. Este é o único caminho que a
comunidade dispõe para sair ou chegar ao local. A eletricidade chegou com a
inauguração da escola em 1997 e somente foram beneficiados por este serviço
aqueles moradores que moram no entorno da escola e da igreja. Cerca de 30%
dos moradores de Santana ainda não sabem o que é ter luz elétrica dentro de
casa. A única escola local, construída sobre as ruínas da senzala só ensina até a
4a série.
Contam os moradores mais velhos que aos escravos da Fazenda da
Grama, ficou a incumbência de enterrar os últimos membros da família do
Barão do Cajuru. Em troca deste cuidado, receberiam como recompensa a
fazenda. O último membro da família, Maria Isabel de Carvalho, filha do
Barão do Cajuru, morreu em 1903 sem descuidar-se da promessa feita aos
escravos10
. Embora as folhas do livro de registro de doação tenham
desaparecido do cartório de Barra Mansa, não desapareceu da memória
coletiva a lembrança de que a doação foi feita e registrada em cartório pela
própria Maria Isabel de Carvalho no mesmo ano em que veio a falecer, 1903.
9 O município de Quatis localiza-se ao sul do Estado do Rio de Janeiro, mais especificamente no Vale do
Rio Paraíba do Sul. Faz divisa com Resende, Barra Mansa e Valença no Estado do Rio de Janeiro e
Passa Vinte no Estado de Minas Gerais. Distando 127 Km da capital e 270 Km da cidade de São Paulo.
O Rio Paríba do Sul é o principal rio da região. A estrutura hidrográfica caracteriza-se pela grande
quantidade de riachos e córregos perpendiculares ao Rio Paraíba do Sul. Destacam-se os Rios Ribeirão das Pedras, Ribeirão Vermelho e Rio Preto.
10 O‟Dwyer, Laudo Antropológico da Comunidade Negra Rural de Santana. Fundação Cultural
Palmares; Instituto de Terras, op. cit. pg. 10.
20
A capela, construída pelos escravos em 1867, além de se configurar
como o principal ícone fundante da comunidade é também uma testemunha
silenciosa dos fatos e histórias ali ocorridos.
Para não perder a ligação com o passado, a comunidade utiliza o
recurso estratégico de teatralizar constantemente a sua história11
. A D. Ana
Maria Gouvêa ao narrar a origem de Sant‟Ana ilustra a importância da capela
na vida da comunidade:
“(...) Maria Isabel de Carvalho tinha uma menina e o nome dela era
Elisabete. E essa menina ia naquela padiola, né? Um escravo pegava
numa ponta o outro na outra e ia aquela menininha sentadinha no
meio ali, estudar lá no Areal, que é essa fazenda do falecido George
Salgado. E todo dia ela vinha de lá da casa dele e chegava ali onde é
a igreja de Nossa Senhora de Sant‟Ana. Tinha uma moita grande de
árvore, de mata. Então chegava ali ela pedia para os escravos deixar
ela descer que ela tinha que ir lá atrás da moita para conversar com
uma moça muito bonita que tinha lá. Então ela descia e corria lá.
Conversava com a moça lá, voltava, entrava na padiola outra vez e ia
embora pra a escola. De tarde, os escravos iam lá e buscavam ela
outra vez. Quando chegava ali, tinha que parar para a menina
conversar com a moça. Aí, um dia, um escravo chegou e falou pra
sinhá Maria Isabel: „Ôh sinhá, a sinhazinha vai com a gente, todo dia
a gente tem que parar e ela vai lá atrás daquela moita pra conversar
com uma moça. Diz que tem uma moça muito bonita que conversa com
ela, mas a gente vai lá e não vê nada. A sinhá pegou e disse: mas não
é possível. Eu vou junto então pra eu ver. Vou a cavalo junto com os
escravos. Chegou ali, a meninha desceu e foi lá ver. Aí a sinhá Maria
foi lá ver e não viu nada. Aí perguntou pra menina: minha filha
porque você faz isso ? Todo dia você faz os escravos parar pra você ir
lá atrás dessa moita conversar com essa moça. Que moça é essa?
Você está ficando maluca! A gente vai lá e não vê nada. Aí ela falou:
11
Ver Canclini, op. cit. pg. 136. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio
de Janeiro: DP&A, 1999, pg. 40.
21
Foto: Creuza Flores
„Não mãe! Lá tem uma moça muito bonita. Ela falou pra mim que
chama Ana‟. Aí chegou em casa a sinhazinha entrou no quarto, ficou
doente, passado um tempo, morreu. Então Maria Isabel pegou e
mandou construir aquela igreja ali, naquele lugar, por causa disso. E
colocou o nome de Sant‟Ana por causa da menina que via essa santa
lá”12
Ana Maria Gouvêa.
A lírica descrição de D. Ana nos permite entender o papel da herança
da capela de Santana. Além disto, nos permite também entender o significado
do „passado‟ da comunidade tanto no seu passado quanto no presente. A sua
narrativa mostra também como os membros da comunidade socializam as suas
recordações dentro de um espaço territorial, utilizando o mesmo cenário da
história de sua origem.
Por conseguinte, a organização
social de Santana é (re)inventada a
partir de uma história particular que
dá o sentido de existência e de um
passado comum ao grupo. Dessa
história particular, vinculada à construção de uma identidade coletiva, emergem
lembranças com base uma singular experiência histórica que se revela no plano
social e cultural.
É através da lembrança da capela que Santana assegura a sua
continuidade. Preservando mnemomicamente o conhecimento coletivo da sua
origem, eles têm a segurança de que as gerações posteriores irão reconstruir a
sua identidade etnocultural.
12
Laudo Historiográfico de Santana, op. cit. pg. 13.
Portal da Capela de Sant’Ana.
22
A capela de Santana, situada numa pequena colina na entrada da
comunidade, mesmo em ruínas é uma hostess elegante e acolhedora. Com
inscrições em romano, ainda é legível a data da sua construção – 1867 –
cravada acima do portal principal da capela. Além disto, há no seu interior, os
túmulos do Barão do Cajuru e da sua família, conforme desejo deles. Apesar
do péssimo estado de conservação, a capela é ainda hoje a referência central do
espaço público de Santana. Tanto a capela quanto os túmulos já foram violados
por pessoas vindas de fora, atrás de supostos tesouros ali enterrados.
Quando algum monumento da comunidade é violado, conforme relato de
D. Nair e a nora Matilde, responsáveis pela limpeza e manutenção da igreja,
É como se tivesse tirado um pedaço da casa da gente. Aqui a gente não
tem prefeito nem polícia porque não precisa. Todo mundo toma conta de
tudo, mas mesmo assim essas coisas acontece (Matilde).
Santana tem bem estruturada uma memória socioétnica, onde, as lembranças,
mesmo aquelas narradas em caráter íntimo ou pessoal transformam-se em
narrativas sociais13
. Estas muitas vezes são contadas repetidamente na cozinha,
na sala, na mesa, na praça na igreja ou em qualquer lugar onde as pessoas se
reúnam. Como nos lembra Halbwachs, estas histórias são contadas ora em
meio a muita emoção, ora em meio a gargalhadas, ora em meio a lágrimas,
ressentimentos ou por meio de qualquer outra expressão emocional. Estas
narrativas apontam para o que Halbwachs chamou de os “quadros sociais da
memória”, que na leitura de Bosi, podem ser também traduzidos como
13 HALBWACHS, op. cit. pg. 52.
23
“realidade interpessoal das instituições sociais”
14. Esses quadros, cruciais na
evocação e localização das lembranças, ao
mesmo tempo que possibilitam a extração
das informações sobre o passado,
configuram uma base a partir da qual se
pode discutir o futuro da comunidade15
.
Paisagem, Símbolos e Ruínas
As lembranças do passado não
permanecem apenas na memória dos velhos moradores de Santana mas
também no solo que estes ocupam16
. O solo, as árvores, o rio, as crianças e os
velhos narradores de história, tudo e todos impregnam os recantos seculares de
Santana. Pela narrativa de D. Ana, observa-se que Santana dispõe de uma
coleção de imagens, símbolos e mitos – incluindo os próprios moradores – que
narram a sua origem em meio a ruínas e miséria, tristeza e nostalgia, mas sem
contudo perder a dimensão política do território-história que lhes pertence17
.
Impossível falar de Santana sem realçar a sua paisagem porque o
passado da comunidade está colado nela. De fato, estudos geográficos têm
feito a observação de que as paisagens não são somente naturais, mas também,
14
Ecléa Bosi, op. cit. pg. 17. 15
Halbwachs, op. cit. pg. 51. 16
Halbwachs, op. cit. pg. 52. 17
Canclini, op. cit. pg. 60
D. Nair, atual responsável pela capela
Foto: Creuza Flores
24
culturais
18 Sendo assim, em Santana o natural e o cultural, formam uma
unidade com o ambiente no qual se vive amoldando à paisagem as
experiências coletivas e individuais da comunidade. Conforme assinalado por
Halbwachs, as memórias coletivas contêm uma forte dimensão de espaço e
estas normalmente estão ligadas a certos lugares da paisagem local19
.
Para entender a relação da comunidade com os seus monumentos é
necessário entender as atitudes das pessoas diante destes, porque não é só o
que está diante dos olhos que tem valor para a comunidade mas principalmente
o que está dentro das suas mentes e memórias. É assim que monumentos do
porte da capela de Santana ganham importância por carregar muitos
significados para a comunidade.
Além da capela, há também um cemitério onde eram enterrados os
escravos e um alambique antigo. Ambos não são mais utilizados pelos
moradores. D. Nair e a nora Matilde, zeladoras da igreja ao serem perguntadas
por que a comunidade não enterrava mais os seus mortos no cemitério local ou
porque não ativava a produção de aguardente ela responde:
Ah minha filha, aqui não tem padre todo dia. O padre daqui nem brasileiro é
e só vem aqui uma vez no mês. Todo mundo aqui gosta de rezar os parentes
morto, né Então, só em Quatis mesmo pra rezar. Ta tudo lá cheinho de mato,
nem dá mais pra ver nada mais. Também ninguém liga mais, né, nem pro
alambique nem pro cemitério. O alambique eu acho é bom não ter. Ninguém
planta mais cana aqui. É bom „que aí não tem bebedeira, né Aqueles que
18 LOWENTHAL , David. The Past is a Foreign Country, Cambridge University Press, 1985, pg. 192. 19 Halbwachs, op. cit. pg. 80.
25
quer beber tem que beber ou nas fazenda dos patrão ou lá em Quatis. Eu acho
é bom isto.D. Nair.
Os santos mais venerados na comunidade são Sant'Ana, a padroeira, e
São Joaquim. Sant'Ana, padroeira da comunidade, é o grande ícone sacro da
comunidade. Por conta disso, é comemorada com festas e procissões durante
todo o mês de julho20
.
Os cânticos e danças, muito freqüentes no passado da comunidade de
Sant'Ana já não são mais comuns hoje, principalmente entre os jovens. Poucos
deles sabem que canções de jongo eram cantadas por seus antepassados “por
mato e noites adentro”. Danças como o calango e o jongo, balançaram os
corpos alegres e apaixonados de muitos que hoje vivem apenas na lembrança
da comunidade como o Seu Candinho e Seu Carreiro, já falecidos.
A trajetória histórica imprimiu em tudo que há em Santana um
significado especial. Uma capela em ruínas...! uma escola construída sobre os
escombros de uma senzala...! uma cisterna sempre cheia de água de
nascente...! uma estrada de barro...! e um campo improvisado de futebol!
Memória, Religião e Família.
Tudo vira símbolo em Santana. Símbolos que muitas vezes não
explicam o seu significado, mas emitem referenciais que ajudam a definir a
identidade negra de Santana. São por estes referenciais que circulam as 20
20 Como demonstra o historiador Robson Martins, cultuar e festejar o dia de Sant‟Anna em 27 de julho
tornou-se uma tradição cultural entre os negros escravos e livres a partir do século XIX. MARTINS,
Robson L. “Em Louvor a „Sant‟Anna‟: Notas sobre um plano de revolta escrava em São Matheus, norte
do Espírito Santo, Brasil, em 1884”. In Estudos Afro-Asiáticos, no. 38, Rio de Janeiro, Universidade
Cândido Mendes, Dezembro 2000.
26
famílias negras moradoras de Santana. Dividindo um forte sentimento de
parentesco, vizinhança e compadrio, os Ricardino, os Francisco da Silva, os
Carreiro, Serafim, Gouveia e Felício são nomes patriarcais das famílias mais
antigas do lugar. A forma como as 20 famílias se distribuem pelos 800 ha de
vales verdes, revelam as normas de convivência da comunidade.
FAMÍLIAS MAIS
ANTIGAS DE
SANTANA
Ricardino
Moreira
Paixão
Silva
Serafim
Carreiro
Gouvêa
Felicíssimo
As famílias de Santana moram na sua maioria em casas muito pobres
de pau-a-pique. A grande extensão de terras herdadas e a gradativa diminuição
de famílias fazem com que os vizinhos distem muitas vezes quilômetros um
dos outros. Por outro lado, um único lote pode comportar até 10 famílias onde
filhos, sobrinhos, parentes próximos dividem-se em pequenas casas.
Difíceis condições econômicas em comunidades tradicionais podem
ocasionar profundas transformações nos padrões de organização social e
familiar. Isto foi observado em Santana. A escassez de trabalho nas fazendas
27
tem forçado muitas famílias a migrarem para os municípios mais próximos de
Santana. Há por exemplo em Quatis um bairro negro chamado São Benedito,
cujos moradores vêm em grande parte de Santana.
Nota-se que a forte rede social outrora existente entre as memórias
familiares de Santana está se fragmentando. É fácil perceber pelas narrativas
dos seus moradores que Santana está se
transformando numa comunidade muito triste.
Não era assim no passado. Segundo os velhos
moradores, Santana era uma comunidade muito
alegre e animada, onde aconteciam jogos,
encontros e festas regularmente.
Santana há 50 anos atrás tinha muita festa! Era
S. João, Santo Antônio, N. Sra. De Santana no
dia 26 de julho, Dia de Santa Aninha, S. Sebastião... aqui era mesmo
uma festa! Acabava uma vinha outra. Era dança do Calango, era
forró... E o jongo! Era uma coisa! Era botequim para todo o lado e
não tinha briga, não tinha nada...! Aqui morava mais pessoas do que
hoje... bastante gente. Aí foi indo..., muita gente foi imbora , acabou!
D. Nair Conceição, 79.
Estas lembranças de d. Nair afloram rapidamente, sem um mínimo de
esforço. São lembranças que ela diz, estarem sempre presentes „na minha
mente‟. A nora Matilde reclama, dizendo que ela repete as mesmas histórias
sempre, quase todos os dias, mas, mesmo assim ela não se cansa de ouvi-las.
"A partir da idade madura, a pobreza dos acontecimentos, a monótona
As crianças desta família já
fazem parte da 4a geração dos
primeiro herdeiros da fazenda.
Foto: Creuza Flores
28
sucessão das horas, a estagnação da narrativa no sempre igual pode fazer-nos
pensar num remanso da correnteza. Mas, não: é o tempo que se precipita, que
gira sobre si mesmo em círculos iguais e cada vez mais rápidos sobre o
sorvedouro."
Percebe-se que Santana é uma comunidade fortemente marcada pelo
sentimento étnico e que vem, solitariamente, construindo a sua própria
representação de territorialidade e cidadania.
D. Nair em frente à Capela de Sant‟Ana
Foto: Creuza Flores
29
D. Nair e Matilde, responsáveis pela manutenção da Capela. A santa que aparece nas fotos, é
de N.Sra. Aparecida. Como medida de prevenção contra roubo, os moradores substituem, nos
dias ordinários a imagem de N.Sra. de Sant‟Ana pela de N.Sra. Aparecida. A imagem
original da santa fica bem guardada na casa de um morador, onde, poucos têm conhecimento.
Pôde ser notado, que tanto cuidado não é só pelo valor histórico, mas principalmente pelo
valor simbólico, afetivo e emocional que a comunidade tem com Sant‟Ana.
Foto: Creuza Flores
Foto: Creuza Flores
30
Localização aproximada de Santana
A comunidade de Santana não existe em mapas oficiais. Este é um esforço da autora em
situar o leitor sobre a localização de Santana, no Médio Paraíba do Estado do Rio de Janeiro.
Quilombo de Sant’Ana
31
31
CAPITULO 2
Entre a Senzala e as Tumbas: As Ruínas de um
Significado.
“As denominadas terras de preto
compreendem aqueles domínios doados, entregues
ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica,
a famílias de escravos a partir da desagregação de
grandes propriedades monocultoras. Os
descendentes de tais famílias permanecem nessas
terras há várias gerações sem proceder ao formal
de partilhas e sem delas se apoderarem”.
Alfredo W. Berno de Almeida, 1988:451.
1 BERNO DE ALMEIDA, Alfredo W. “ Terras de Preto, Terras de Santo, Terras de Índio: Posse
Comunal e Conflito. In Humanidades, Ano IV, no. 15, 1988.
32
32
Desde o século XVIII que vários países das Américas já têm
incorporado nas suas constituições, políticas fundiárias recortadas por
interesses raciais. O Brasil, entretanto, só começa a fazê-lo em 1988, por
ocasião das comemorações dos cem anos da abolição da escravatura. Através
de artigos constitucionais, os quilombolas tanto teriam os seus direitos de
propriedade sobre as terras que ocupam reconhecidos quanto ganhariam o
status de “patrimônio cultural” da nação2.
Como poderíamos definir um cidadão santanense É Santana uma
comunidade remanescente de quilombo ou uma comunidade negra rural
tradicional? São estas terminologias adequadas para identificar estas
comunidades atualmente? O que a academia, movimento negro e os
representantes do Estado têm pensado sobre estas “ressurgidas” terras de
negros? Qual o significado que estas comunidades têm para o aparelho
jurídico?
Pode-se primariamente definir uma comunidade remanescente como
aquela que carrega formas específicas de existência material e cultural,
expressas pela organização social, pela sua representação de mundo, e,
principalmente pelos elementos fundantes da identidade. Os moradores de tais
comunidades têm na sua maioria origem comum, se autopercebem enquanto
2 Os artigos referidos são os 215o. e 216o. da Constituição Federal e o Art. 68º dos Atos Constitucionais
das Disposições Transitórias - ADCT. Este último só foi regulamentado em 1995.
33
33
um grupo de identidade distinta dos vizinhos e tentam construir
compartilhadamente o destino da comunidade3.
O sentimento de pertencimento étnico, se não procede necessariamente
de uma referência territorial física, claramente definida e delimitada, supõe,
entretanto, que tal grupo pode definir-se por um elo material ou por
representações coletivas que tomam forma em um espaço onde estão em jogo
interesses econômicos ou ainda atividades sociais, culturais e políticas,
representações coletivas que permitem aos membros de uma comunidade dar
às características de seu espaço significados reconhecidos por todos4.
A definição de quilombos hoje é ainda influenciada sobremaneira pela
definição colonial. No entanto, além de serem originadas a partir das fugas de
escravos, muitas terras de negros foram constituídas a partir de outras
circunstâncias que não apenas a da fuga5. Pela estrita interpretação jurídica,
somente são considerados quilombolas aqueles descendentes de escravos
fugidos. Entretanto, como aponta Flávio Gomes, várias foram as formas de
ocupação da terra por estes descendentes de escravos6:
3 BARTH, Fredrik. “Grupos Étnicos e suas Fronteiras”. In POUTIGNAT P. E STREIFF-FENART J.
Teorias da Etnicidade, Unesp, 1997, pg. 201. MUNANGA, Kabengele. “A Importância da Memória e
do Imaginário na Conceituação da Identidade Social Afro-Brasileira”, , FFLCH/USP mímeo, 1988, pg. 3. 4 Cf. D'Adesky, op.cit. pg. 38.
5 Eliane Cantharino destacar que o termo terra de quilombo e/ou remanescente de quilombo tem sido
atualmente usado pelos próprios membros das comunidades negras rurais, organizações de mobilização e
defesa dos movimentos sociais e agências governamentais para designar o pertencimento étnico dos
grupos que são caracterizados como de exclusividade negra, originários da escravidão e da resistência
nos chamados quilombos ou mocambos. Para a autora, ainda que tenha um conteúdo histórico o termo
quilombo vem sendo utilizado para designar a situação presente de segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil. Boletim ABA-Ford, no. 30, 1995.
6 Flávio Gomes utiliza a metáfora da Hidra de Lerna para informar sobre a existência de inúmeros
quilombos existentes no século XIX na região de Iguaçu, então província do Rio de Janeiro. A Hidra de
Lerna, Serpente de sete cabeças, que renasciam assim que eram cortadas, morta por Hércules. Ainda,
34
34
falência da fazenda (os donos voltaram para Portugal; deixando
as terras com os escravos);
doações por parte dos senhores a ex-escravos;
terras compradas por escravos alforriados;
doações de terras por parte do exército como recompensa aos
escravos que participaram de guerras;
Doações por parte de ordens religiosas.
Frente a essas variadas origens surge uma dificuldade de interpretação
jurídica para aquelas comunidades negras que reivindicam a titulação das suas
terras com base no Artigo 68O. Esta dificuldade advém de uma interpretação
herdada da legislação colonial que restringia a interpretação de quilombos a
apenas um grupo de negros fugidos e rebeldes7. Palmares foi o quilombo de
maior visibilidade na história e por causa disto, parte da literatura histórica
ficou presa ao seu ícone.
As primeiras definições de quilombos apareceram no Brasil Colônia.
Os donos de fazendas, preocupados com o aumento do número escravos que
fugiam do regime escravo conseguiram criar um recurso legal de condenação
aos negros que fugiam. As definições variaram de lugar para lugar.
quanto à existência de comunidades negras no século passado, segundo Flávio, “ No Brasil, muitos
mocambos e quilombos acabaram se transformando, ao terminar a escravidão, em vilas camponesas. É
possível sugerir também, considerando a escassez de pesquisas conclusivas sobre este tema, que
provavelmente as estratégias em busca de autonomia e a integração das práticas econômicas e sociais dos
quilombos, dos escravos nas plantações e da população livre de cor tenha ajudado a forjar uma das faces
dos campos negros. GOMES, Flávio. Para matar a Hidra: uma história de quilombolas no recôncavo da
Guanabara, séc. XIX. Texto de História, Brasília, v.2, no. 3, 1994. 7 SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs: à luz da noção de quilombos. Afro-Ásia, n. 23, 1999. Segundo
este autor: “ Conceber a noção de quilombo tendo como parâmetro apenas as fontes documentais oficiais
é insuficiente, também, porque a partir dessas fontes deduz-se que o acesso às terras quilombolas se
verificou apenas pela ocupação das mesmas pelos escravos que se evadiram das fazendas para se
amocambar, como querem os principais textos sobre quilombos no Brasil”. (pg. 276).
35
35
Em 1733 em São Paulo, por exemplo, quilombo foi definido pelas
autoridades competentes como um grupo formado por "mais de quatro
escravos vindos em matos para viver neles, e fazerem roubos e homicídios" .
Já no Rio de Janeiro em 1757, entendia-se por quilombo grupos de escravos
que "estivessem arranchados e fortificados com ânimo a defender-se [para]
que não sejam apanhados" . Mas foi por iniciativa do governador das Minas
Gerais que a repressão aos quilombos adquiriu uma dimensão legislativa
nacionalmente aplicada8.
O Artigo 68o. falha ao não considerar no seu texto aquelas
comunidades negras que surgiram ou sobreviveram a partir do estabelecimento
de um sistema de relação orgânica baseada no parentesco e na vizinhança.
Santana é um bom exemplo. A partir de um evento próprio – o ganho da
fazenda em troca do zelo pelos restos mortais dos últimos donos - a
comunidade negra de Santana criou formas independentes de organização que
são referendadas pelas identidades etnocultural e geográficas.
Pelo Artigo 68o uma comunidade rural negra tradicional ou
comunidade quilombola é caracterizada pelos seguintes traços:
a) Pela composição étnica da comunidade e ancianidade da
ocupação em conjunto com a manutenção da memória
coletiva, tudo isto circunscritos no espaço que deu origem à
história da comunidade;
b) Pela ritualização da cultura, tradições e costumes específicos que lhes
dão um caráter distintivo em relação às demais comunidades do seu
8 LARA, Silvia H. “Do Singular ao Plural: Palmares, Capitães-do-mato e o Governo dos Escravos. In
Liberdade por um fio... op.cit. pg. 97.
36
36
entorno;
c) Pela ligação com a terra utilizando a agricultura de subsistência e a
preservação do ambiente como elementos de sobrevivência.
Contudo, o entendimento do que seja uma comunidade quilombola requer
ainda que reflitamos sobre algumas associações teóricas como por exemplo,
terra, etnia, cidadania, grupos étnicos e direitos civis.
Barth propõe que ao se estudar um grupo étnico leve-se em consideração
as variações culturais destes grupos que são locais e descontínuas. Sob o ponto
de vista de Barth seria um erro pensar as comunidades negras como iguais.
Para o autor , não se deve "considerar como característica primária dos grupos
étnicos seu aspecto de unidades portadoras de cultura"9.
Em vista das teses de Barth, percebe-se que há um equívoco de
interpretação por parte do artigo quanto insinua que os quilombos falam do
lugar original dos seus antepassados10
. A crença de que estas vivem isoladas e
sem interação com o seu entorno também é um falso mito criado em torno
destas comunidades. Diferente do que alguns estudiosos supunham, tanto os
quilombos quanto as comunidades rurais negras não viveram e nem vivem
isoladas do seu entorno.
Mesmo no período escravista, conforme documentado por Santos, os
quilombos estabeleceram redes de trocas comerciais e afetivas entre as
9 Neste sentido, Barth aponta que o significado destas comunidades passa pelo entendimento do que seja
um grupo étnico, no sentido de que estas comunidades se autopercebem vivendo de maneira
interdependente dentro de uma fronteira geográfica e cultural, onde seus membros dividem o mesmo
estilo de vida. Op. Cit. pg. 203. 10 Idem, pg. 221.
37
37
senzalas e centros urbanos11
. De acordo com Santos “as revisões conceituais
têm aberto caminhos para novas leituras de como os negros – escravizados e
livres – utilizaram-se de múltiplas formas políticas para ocupar a terra”12
.
São inúmeros os autores brasileiros que estudaram quilombos a partir
da perspectiva histórica de serem estes originários de uma resistência ao
regime escravista. De Nina Rodrigues, passando por Arthur Ramos, Edison
Carneiro nos anos 30 até Roger Bastide e Clóvis Moura nos anos 60 e 70, a
literatura sobre quilombos vai ocupar um espaço marcado por variadas
correntes interpretativas13
.
Gomes e Reis identificam, entre os historiadores, estas correntes
dentro de dois vieses: uma culturalista/ restauracionista e o outro marxista14
.
Aculturalistas ou restauracionistas seriam aqueles autores que definiram os
quilombos como organizações negras de resistência à cultura européia do
senhor. Esta corrente tende a perceber os quilombos como comunidades que
viveram isoladas do seu entorno, numa tentativa de recriar a África dentro dos
seus espaços de domínio.
Esta lógica interpretativa ainda orienta não somente muitos estudos
etnográficos atuais como também as políticas públicas pensadas pelo
11 GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de Quilombolas: Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio
de Janeiro, século XIX. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1993. _____________"Em torno dos
Bumerangues: Outras Histórias de Mocambos na Amazônia Colonial". Revista USP. 12 Flávio Gomes. Histórias de Quilombolas... op. Cit. pg. 189. 13 RODRIGUES, Raimundo Nina. Os Africanos no Brasil, 5a. Edição, São Paulo Editora nacional, 1977,
cap. 3; RAMOs, Arthur. O negro brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1935. CARNEIRO,
Edison. O quilombo de Palmares, 4a. Edição, São Paulo, Editora nacional, 1988. BASTIDE, Roger. As
Américas Negras, São Paulo, Difel/Edusp, 1974; MOURA, Clovis. Rebeliões da Senzala, São Paulo,
Edições Zumbi, 1959; __________. Quilombos, Resistência ao escravismo, Série Princípios, 3a. Edição,
São Paulo, 1993. 14 GOMES, Flávio. “Quilombos do Rio de Janeiro no Século XIX”. In Liberdade por um fio... op.cit. pg.
273.
38
38
movimento negro para estas comunidades como o é o Artigo 68. Ou seja, as
pistas investigativas são traçadas seguindo-se apenas a sinalização dos
achados/resíduos africanos. Gomes e Reis sugerem que seria mais
enriquecedor sobrelevar-se nessas investigações a forma como os arranjos
sociais foram recriados e estabelecidos pelos escravos desde o período anterior
à escravidão na África até o pós-senzala15
.
O crescimento dos movimentos de esquerda na década de 50, vieram a
influenciar sobremaneira parte dos historiadores que trabalhavam com
escravidão no Brasil. Daí o aparecimento de algumas interpretações marxistas
que viam a organização dos quilombos como um enfrentamento ao regime
escravocrata na tentativa de estabelecerem uma sociedade livre16
.
Nas décadas de 70/80 surgem alguns trabalhos provindos da militância
intelectual negra. Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento, Helena
Theodoro, para citar alguns, vêm sugerir que para além de uma manifestação
de resistência ao período escravista o quilombismo seria também uma filosofia
política a ser adotada pelo movimento negro no sentido de enfrentar o racismo
e a opressão racial vigentes17
. As primeiras definições de quilombos vêm do
tempo do Brasil Colônia. Com o crescimento de negros que fugiam das
fazendas para os quilombos, buscou-se um recurso legal de condenação no
qual quilombos foram definidos como: “ Toda habitação de negros fugidos,
15 Idem, pg. 22. 16 Entre Edson Carneiro (1988) e Clóvis Moura (1959) oportunamente citados, podemos lembrar os
estudos de Décio Freitas, Palmares, A guerra dos escravos, 5a. edição, Porto Alegre, Mercado Aberto,
1984; Luiz Luna, O negro na luta contra a escravidão, Rio de Janeiro, Leitura, 1968 e Ivan Alves Filho,
Memorial de Palmares, Rio de Janeiro, Editora Xenon, 1988. 17 Ver NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: Documento de uma militância pan-africanista. Editoa
Vozes, Petrópolis, 1980. NASCIMENTO, Beatriz. “O Conceito de Quilombo e a resistência cultural
afro-brasileira. In NASCIMENTO, Elisa Larkin. Sankofa, Seafro, v.1, 1994, pp. 142-158.
39
39
que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos
levantados e nes se achem pilões neles”18
Essa é uma discussão que traz algumas dificuldades de entendimento.
Uma destas dificuldades é com o próprio significado do termo. Afinal, o quer
dizer quilombos hoje ?
O trabalho de Edson Carneiro19
foi o primeiro a tratar do tema dentro
dos padrões acadêmicos’ influenciando assim toda uma bibliografia vindoura.
Embora ignorado pela academia, Abdias do Nascimento20
tem sua importância
e lugar na história do pensamento racial brasileiro, ao trabalhar com questões
polêmicas já naquele período (décadas de 50, 60 e 70) dentro da temática
racial. Abdias define quilombismo como um “movimento social de resistência
física e cultural da população negra que se estruturou não só na forma dos
grupos fugidos para o interior das matas na época da escravidão, mas também,
na forma de todo e qualquer grupo tolerado pela ordem dominante em função
de suas declaradas finalidades religiosas, recreativas, beneficentes, esportivas,
etc”21
. Percebe-se já aí uma tentativa de ressemantização do termo,
deslocando-o do significado estritamente histórico para significado político.
No entendimento de Abdias quilombo significa além de um grupo de escravos
fugidos um movimento revolucionário com objetivos políticos definidos, entre
os quais criar o Estado Nacional Quilombista22
”.
18 Conselho Ultramarino de Portugal, 1740, cf. Citado por Silvia Lara em Liberdade por um fio... op. Cit.
Pg. 96. 19
Edson Carneiro, op. Cit.1940 20
Nascimento em O Quilombismo, op. Cit. 1980 21
Idem, pg. 256. 22
Idem Nascimento, pg. 263
40
40
Foi somente a partir da década de 80 que alguns estudos etnográficos
começaram a aparecer trazendo alguma informação sobre comunidades negras
rurais nas suas condições atuais de existência. A Universidade de São Paulo
foi uma das primeiras instituições acadêmicas a demonstrar interesse pelo
estudo de quilombos. Apesar de focalizarem estas comunidades como
populações institucionalmente isoladas, os trabalhos de Fry e Vogt23
foram, e
ainda são, referências obrigatórias para estudiosos de comunidades negras
tradicionais.
Em decorrência do dispositivo constitucional, a produção cresce nos
anos 90 e vai se preocupar principalmente com o conceito de quilombos, com
o formato político de regularização de seus direitos e com os novos conflitos
fundiários que a regularização destas terras têm trazido para o cenário rural do
Brasil.
Esta pesquisa, problematiza o fato de que há uma imagem idealizada de
quilombos na qual se fundamenta o art. 68o, aqui referido. Esta imagem faz
pensar que há nestas comunidades uma realidade sócio-cultural pronta, onde
poder-se-ia até encontrar pedaços intactos da África. A orientação desta
imagem figurada do passado tem impedido o exercício de pensar estas
comunidades a partir das suas realidades empíricas atuais. Com base em
trabalhos de campo já realizados em quilombos do Rio, esta pesquisa tentará
23 VOGT, Carlos e FRY, Peter. 1981. “ Ditos e Feitos da Falange Africana do Cafundó e da Calunga”
Revista de Antropologia, 26:65-92.______1982. Cuiapar e Cueandar para Conjenga: A Morte e a Morte
no Cafundó. A Morte e a Morte dos Outros na Sociedade Brasileira. _______1982.” A Descoberta de
Cafundó: Alianças e Conflitos no Cenário da Cultura Negra Brasileira. Religião e Sociedade., 8:45-52.
Antes de Fry, porém ainda podem ser encontrados os trabalhos de Brandão, Peões, Pretos e Congos:
Trabalho e Identidade Étnica em Goiás, Unb, 1977; Gusmão, Campinho da Independência: Um caso de
Proletarização Caiçara, 1979, Mestrado, PUC/SP, entre outros.
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41
mostrar que há pouca consonância entre o imaginário criado e a realidade
concreta destas comunidades.
Cabe aqui adiantar que é a hereditariedade histórica daquela
comunidade que vai explicar a diferença entre o quilombola e seus vizinhos.
Ainda que o entorno aparentemente tenha as mesmas características
socioeconômicas e raciais da comunidade quilombola, estas ainda se diferem
pela construção e manutenção da memória individual e coletiva.
Contrariando as proposições de Arruti24
, Santana porta uma visível
distinção entre a comunidade e o seu entorno. Os monumentos históricos
localizados dentre da comunidade e a concentração étnica – todos os
moradores são negros – fazem-no diferenciar do restante da vizinhança
próxima.
Ainda recorrendo a Barth, este autor sugere que as fronteiras de um
grupo étnico não sejam vistas apenas a partir daquilo que se define como
semelhança ou diferença. Para Barth, a percepção de sinais diacríticos não
pode ser estabelecida por um observador de fora. São as experiências comuns
vivenciadas pelos próprios membros da comunidade que lhes dão
legitimamente o direito de considerar o que difere “eles” dos “outros”25
. Barth
enfatiza "que grupos étnicos são categorias atributivas e identificadoras,
empregadas pelos próprios atores”. Portanto, neste sentido, não cabe a
observação de Arruti.
A estrutura conceitual de quilombo utiliza-se tanto dos suportes do
24 ARRUTI, J. A. “A emergência dos "remanescentes": notas para o diálogo entre indígenas e
quilombolas”. Mana vol.3 n.2 Rio de Janeiro Oct. 1997, pg. 28. 25 Barth, op. Cit. 223.
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42
discurso histórico quanto do discurso jurídico-formal. Entretanto, é no sistema
de representações sociais dos seus agentes que o novo conceito de quilombo,
redefine as suas dimensões abstratas - identidade e cultura) e materiais -
território e monumentos.
Eliane Cantharino, por outro lado, sugere que se pense na adoção de
uma definição de quilombos menos mítica e mais operacional. Neste sentido
Cantharino sugere que se evite interpretar as comunidades remanescentes
apenas como herdeiros de cultura. Para a autora deve-se considerar também a
experiência local destas comunidades que termina por influenciar a construção
das suas identidades26
.
Além do imaginário acadêmico há ainda o imaginário da militância
negra atuante. Este divide-se em duas correntes. Há uma parte da militância,
que poderíamos chamar de tradicionalistas que defende o quilombo como um
objeto histórico. Para estes, as comunidades negras devem ser interpretadas e
vistas como importantes resíduos da cultural africana sobrevivente. São estes
militantes que se sentem frustrados se por acaso visitam um quilombo e não
vêm, casas de sapê, uma casa de farinha funcionando, primos casados com
primos, um terreiro de candomblé ou um espetáculo de jongo. Há ainda os
militantes progressistas que defendem políticas sociais modernas para os
quilombos como por exemplo, asfalto na comunidade, programas integrados
com o meio urbano, capacitação das lideranças, etc.
26 O’Dwyer, 1998, op. Cit.
43
43
Conforme sugerido por Valdélio, mais importante do que enfatizar um
aspecto jurídico do passado, o art. 68O deveria ter focalizado os processo de
formação de uma comunidade negra juntamente com os seus esforços de
coesão, sobrevivência e manutenção da cultura27
. Santos acredita que esta
interpretação pode ser alterada a partir do próprio desvendamento da história
destas comunidades.
Pela metodologia estabelecida pela Fundação Cultural Palmares, todo o
ritual empregado para a titulação destas comunidades tem um sentido
evocativo da origem, da pureza étnica e da essência do espaço geográfico no
qual estas comunidades estão localizadas. Além disto, este procedimento é
sustentado por dois pilares básicos:
1. pela comprovação da origem de ocupação da terra e
2. pelos mitos sobreviventes da memória da escravidão.
Assim sendo, o Art. 68º foi pensado dentro da concepção histórica que
implica obrigatoriamente seguir um caminho jurídico que remete à legislação
colonial-escravista na qual a oposição moderno x tradicional está presente. Isto
faz com que estas comunidades sejam vistas a partir de uma imagem
mitificadora do passado, reforçando a crença de que estas vivem isoladas da
sociedade moderna, ou de que não teriam interesse em vivê-la.
Um elemento básico para esta reflexão, e que aqui será tomado como
ponto de partida, é a noção de poder estabelecida pelo tripé natureza, cultura e
27 SILVA, Valdélio. “ Os Novos Desafios dos Quilombos Contemporâneos” , Centro de Estudos das
Populações Afro-Indoamericanas, ano I, v. 1, no. 1, Dezembro de 2001, pg. 65
44
44
“raça”28
, na qual está implícita a ordem valorativa da oposição primitivo x
civilizado e/ou tradicional x moderno. Parece que esta noção faz com que estas
comunidades sejam vistas a partir de uma imagem iconoclasta do passado, a
qual as representa como parte isolada da sociedade moderna. A estas
comunidades parece não estar associado o desejo maior das sociedades
modernas: consumir a produção de seus bens materiais e simbólicos. Um
problema presente tanto no discurso do movimento negro quanto da academia
está relacionado a uma percepção reducionista sobre quilombos. Uma
percepção que as associa ora a uma fixidez, ora a um atraso cultural.
O conceito de quilombo não foi pensado, portanto, sob a coerência da
vida prática destas comunidades. O que fazer por exemplo, com as
comunidades que não conseguem comprovar à sociedade moderna os vestígios
da sua tradição ? De fato, o essencialismo espacial e etno-cultural no qual está
baseado o Art.68 deixa de fora inúmeras comunidades rurais que não
conseguem mostrar ao mundo “moderno” a sua exótica “tradição”.
Temos que considerar que a dinâmica racial da sociedade brasileira não
permitiu que inúmeras comunidades quilombolas organizadas durante o
período escravista, sobrevivessem ou dessem continuidade à sua consciência
histórica de organização política. A destruição de toda esta memória foi
imperativa e na maioria destas comunidades, qualquer vestígio documental que
pudesse comprovar a sua “tradição” foi totalmente destruído. Porém, é
28 Aqui utiliza-se “raça” entre aspas para a realçar o entendimento de que raça é uma construção social ,
não existindo, assim, no seu sentido biológico-natural, diferença “racial” entre os povos, conforme se
acreditava até meados do século passado.
45
45
acreditado por muitos que os sinais da escravidão se mantiveram intactos até
os dias de hoje.
Para além dos procedimentos antropológicos que enfatizem a procura
das “essências” geográficas e africanas no âmbito destas comunidades, que se
dê relevância primeiramente à razão e aos meios pelos quais aquela
comunidade tomou posse de determinadas áreas29
. O entendimento jurídico
voltado para este sentido - independente da comprovação documental que os
remeta a um passado histórico – poderia ser elemento suficiente para que estas
comunidades já tivessem os seus instrumentos de defesa jurídica garantidos.
Porém, antes mesmo desta dificuldade, apresenta-se outra, de
expressão política, que é a discussão que ocupa parte certamente significativa
dos recursos que poderiam estar mais bem investidos nesse pleito, que é a
discussão no interior dos movimentos sociais negros e destes com o Estado
sobre o que deve ser preservado.
Um impedimento à aplicação da lei é o fato do significado desta está
presa ao conceito de quilombo tal como este era compreendido pela legislação
colonial30
. É neste ponto que se encontra a maior dificuldade para se efetivar a
titulação final dos remanescentes de quilombos.
Porém, um dos mais sérios impedimentos do Art. 68o. é o fato deste
congelar a identidade dos remanescentes de quilombos. Ou seja, o art. 68o.
celebra o que os negros destas comunidades foram. Enquanto isto, eles estão
29 Cf. Gomes e Reis, op. Cit. Pg. 23. 30 SILVA, Valdélio Santos, “ Rio das Rãs:Á luz da noção de quilombos” Afro-Ásia, 23(267-295),1999
46
46
preocupados em que tipo de cidadãos eles podem vir a ser a partir do que
determina as leis constitutivas.
Para além dos procedimentos técnicos que têm direcionado a ação do
Estado este trabalho, compartilhando as sugestões de outros estudiosos de
comunidades rurais negras31
, chama atenção para a necessidade de, em
paralelo à valorização destas comunidades enquanto patrimônio histórico e
cultural da nação, que se priorize, sobretudo, o direito destas comunidades
sobre as terras que ocupam por gerações e gerações. Estas terras ocupadas
secularmente por gerações e gerações já poderiam por si só ser um
instrumental suficiente de garantia jurídica da posse das suas terras.
Quando se analisa não apenas o que determina a lei, mas também as
condições e os possíveis procedimentos para a sua aplicabilidade, obtém-se a
chave para alguns dos problemas que uma equivocada interpretação pode
causar. É desta forma que este trabalho ao seu final propõe:
a) Criação de um estatuto jurídico e etnográfico no qual se releve
fundamentalmente a razão e os meios pelos quais estas
comunidades tomaram posse das áreas ocupadas, sem prejuízo do
estudo e análise de qualquer dos aspectos que permitam enriquecer
o conhecimento sobre a sua continuidade histórica e cultural;
b) Estabelecimento de diretrizes para a utilização de outros recursos
jurídicos, baseados em outras leis de terras existentes, além do Art.
68º do ADTC/CF-88, que possibilitem agilizar e tornar mais
realistas os processos legais para a titulação, sem desconsiderar,
no entanto, a especificidade cultural das comunidades negras;
31 Notificados na bibliografia deste trabalhos.
47
47
c) Execução de uma política de inclusão destas comunidades na
modernidade, nas terras que atualmente ocupam, sem que estas
estejam baseadas tão-somente em um essencialismo biológico,
cultural ougeográfico.
O artigo 68o. vem assim atrelar o status de cidadão à identidade
quilombola que condicionalmente, se institui dentro de uma base legal ou
jurídica. Assim, a questão de direitos dos remanescentes de quilombos não está
restrita apenas ao direito à propriedade da terra. É também, e com a mesma
intensidade do direito às suas terras, uma medida que permite a preservação da
distinção étnica associada ao direito de cidadania.
Desde os tempos mais remotos que a existência humana tem sido
representada pelas formas como o homem imagina o mundo. Portanto, por
mais racionais que pareçam ser os nossos modelos de organização social, tudo
o que os antecede é primeiramente fruto da imaginação. As formulações
conceituais que os estudiosos dos fenômenos sociais legam à sociedade são,
antes de tudo, produtos da imaginação científica. Sendo assim, examinar o
contexto das relações de poder que deu base imaginativa à criação dos
conceitos pode ajudar a compreender as dificuldades e objeções à sua
aplicabilidade. Isto é válido também para reexaminar o conceito de
quilombos.
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48
Foto: Creuza Flores
Morador de Santana carregando água proveniente de fonte
natural do local .
49
CAPÍTULO 3
Do Tamanho do Mapa à Cor do Título: Traçados e
Pontilhados na Linha da História.
A noite é bonita
O batuque começou
Parece negro chorando
Porque negro está apanhando
Não sei bem de que feitor
Sei que negro está chorando
Porque negro sente dor
Porque negro inda se esconde
Pra adorar seu Senhor
Porque inda é pecado
Negro adorar seu Senhor
Porque a polícia prende
Negro que adora o Senhor
Branco adora o Deus que quer
Mas o negro não pode não
Tem que adorar Deus de branco
Ou sinão vai pra prisão.
Batucada, Solano Trindade.
A discussão que envolve a associação entre a propriedade da terra
e a exclusão socioeconômica a que foi relegada a população negra do
Brasil tem sido palco de muitas controvérsias. Neste capítulo, serão feitas
50
algumas considerações sobre a forma como os órgãos governamentais
competentes procedem a titulação de terras dos quilombolas. O nosso
objetivo é apontar como as leis de acesso à terra no Brasil nunca
consideraram a ocupação de terras pelos “pretos quilombolas” como uma
importante discussão nacional e como esta ausência de pauta política tem
repercutido na situação das comunidades negras remanescentes. Para tal
utilizaremos como ponto de partida, a promulgação da Lei 601, de 18 de
setembro de 1850 - a Lei de Terras - e seu regulamento - Dec. 1318
de 30 de junho 1854. Para, portanto, desenvolver este argumento, é
indispensável uma breve contextualização da situação fundiária do Brasil
do século XIX.
Até 1822, as sesmarias eram o instituto que regulava as relações
fundiárias na Colônia. Estas eram doadas a pessoas indicadas - os
sesmeiros - com o fim expresso de ocupação. O sentido patrimonial da
política de doação de sesmarias vinha sempre reforçado, em termos
legais, pelo direito da Coroa de fazer as terras voltarem a seu domínio
quando não cumpridas as condições de efetiva ocupação.
A partir de 1822, as Ordenações Filipinas consagraram a posse
efetiva como recurso legal para obtenção da propriedade. Após a
emancipação política e a revogação do Instituto das Sesmarias, a posse
se tornaria, por algumas décadas, a forma predominante da constituição
da propriedade fundiária no Império. Naquele contexto, desde a
51
vigência da política de doações de sesmarias, até a sua revogação, a
efetiva ocupação constituiu-se em eixo central da apropriação fundiária
no Brasil. Logo, o que se supõe é que no período referido - 1822 a
1850 – ainda um período escravista, abre-se a possibilidade para que
pequenos e médios lavradores pudessem adquirir a propriedade fundiária
a partir da ocupação de terras que não fossem de propriedade
determinada - as terras devolutas. Em 1850, foi promulgada a Lei de
Terras do Império. Tal lei, foi “patrocinada” pela classe política dirigente,
que a formulou, debateu e a aprovou.
A Lei de Terras instituiu vários mecanismos de distinção entre
terras públicas e terras privadas. Além disto, esta lei também proibiu o
acesso à terra pelo mero apossamento, prática muito utilizada no Brasil
colonial e imperial, principalmente após o fim do sistema de sesmarias,
em 1822. Assim, a partir de 1850, o acesso às terras devolutas só
poderia se dar por via de compra. Este período também coincide com o
declínio da escravidão, e com o patrocínio da vinda de imigrantes
europeus para o Brasil.
A Lei de Terras estabeleceu, ainda que não diretamente
mencionados, mecanismos de controle e de exclusão da população negra
ao acesso à terra. Disto resultou que um grande contingente de ex-
52
escravos, com experiências e tradições ligadas ao uso da terra , ficassem
sem qualquer direito sobre este produto1.
Frente a esses longínquos impedimentos, que percurso é utilizado
atualmente por estas comunidades até conseguirem a titulação definitiva
das suas terras? Em quais contextos políticos a demanda por titulação é
criada e como a comunidade vivencia isto? Qual é a trama judicial
encontrada por estas comunidades?
Cabe à Fundação Cultural Palmares a responsabilidade
administrativa de mapear, identificar, reconhecer e titular as comunidades
rurais negras ou remanescentes de quilombos. Com este procedimento, os
quilombolas só recebem o título definitivo após ser reconhecida,
identificada e titulada enquanto uma comunidade negra remanescente
através de estudo antropológico que inclui análise etnográfica,
levantamento cartográfico e a demarcação da terra.
Além disto, até chegar à titulação definitiva das suas terras, a
comunidade quilombola tem que comprovar que é detentora dos seguintes
traços socioculturais2:
a) Ancianidade da ocupação e preservação da memória coletiva
circunscrita ao espaço que deu origem à história da comunidade;
b) Ritualização da cultura, tradições e costumes específicos que lhes
dão um caráter distintivo em relação às demais comunidades do seu
entorno;
1 MOTTA, Márcia. "Terra, Nação e Tradição Inventada - Uma outra abordagem sobre a Lei de
Terras de 1850", In: Nação e Poder: As Dimensões da História, org. Sônia Mendonça, Niterói,
EdUFF, 1998. MARTINS,José de Souza. O cativeiro da terra, Editora Hucitec, 4a. edição, São
Paulo, 1990.
53
c) Sentimento de pertencimento étnico e ligação com a terra.
Para identificar estes traços na comunidade a Fundação Palmares
utiliza “pontos de referência3” entre os quais os principais são:
a) A ascendência genealógica
b) Os monumentos
c) Os lugares da memória4;
d) As datas comemorativas
e) As festas
f) Dança e música;
g) Tradição culinária e medicinal.
Embora a cultura negra se manifeste de alguma forma nos quatro
cantos do país, pode-se observar que entre os „silêncios‟ que envolvem a
questão étnica no Brasil, um deles refere-se à diferença quantitativa sobre
a notificação patrimonial dos acervos identificados à cultura negra,
principalmente o acervo religioso, daqueles identificados com a cultura
das elites brancas. Isto pode ser observado nos livros de Tombo do
IPHAN. É possível analisar as relações de poder entre grupos étnicos de
um país observando-se também a maneira como é tratado no presente, o
passado histórico e cultural destes grupos.
2 Rodrigues, Geisa de Assis. “Procedimentos Judiciais”, Revista Palmares, no. 5, Ministério da
Cultura, 2000, pg. 189. 3 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos N°3. São Paulo,
Revista dos Tribunais. 1988a. ____. Memória e identidade social. In, Estudos Históricos, Vol. 05,
N°10. Rio de Janeiro,1988b 4 Pierre Nora editou um trabalho monumental de sete volumes sobre a memória de lugares da
França, intitulado Les Lieux des mémoire". Para Nora, lugar de memória é qualquer espaço ou
monumento significante para a comunidade, o qual, por meio de testamento material ou não
material, se transformou num importante elemento simbólico herdado pela comunidade. NORA,
Pierre. Entre memória e história. In, Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-
graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo: PUC. 1981. Ainda
de acordo com Nora, locais de memória não são comuns em todas as culturas. Locais de memória
existem para ajudar a comunidade a lembrar do passado.
54
Com o aumento das demandas destes grupos por respeito às suas
diferenças étnicas, surge a necessidade de se considerar novas práticas,
tanto no campo das investigações arqueológicas quanto do registro
patrimonial dos acervos culturais do país. Estas novas práticas têm sido
cruciais para as comunidades negras tradicionais, visto que, com o artigo
constitucional, o passado tornou-se a maior fonte de fortalecimento das
suas identidades coletivas e de legitimação dos seus direitos de cidadãos
plenos.
Para ser considerada uma comunidade tradicional, esta tem que
portar sinais culturais de grande visibilidade e significado coletivos, como
monumentos, santuários, cemitérios, entre outros. Estes sinais culturais
visíveis, conforme comprova-se em Santana, aumentam o sentimento de
coletividade e de identidade do grupo.
Tais sinais utilizam três dimensões fundamentais para o registro da
memória coletiva: o estético, o político e o cognitivo. Estas três dimensões
associadas respectivamente aos princípios de beleza, poder e identidade
devem ser compreendidos como parte de uma cultura própria mas com
dimensões significativas iguais a todas as outras culturas
A visão de uma origem compartilhada e de antepassados comuns,
de tradições antigas, e de monumentos que lembrem o passado, dão
unidade e dignidade ao grupo5.
55
Procedimentos para Titulação de uma Comunidade rural
negra
Os processos de concessão de título variam de comunidade para
comunidade. Tudo é mais fácil e simples quando as terras ocupadas são
devolutas, ou seja, pertencem ao Estado. Porém, quando a ocupação é
fruto de disputa com posseiros ou fazendeiros, o processo é demorado,
muitas vezes ameaçador para as lideranças locais, podendo às vezes durar
anos. Nessas disputas, o que tem se configurado como uma das maiores
dificuldades encontradas pelos membros da comunidade é conseguir, com
base no artigo 68o., instrumentos comprobatórios do direito ao título de
posse.
Esta é uma dificuldade encontrada pelos moradores de Santana.
Embora a doação de suas terras tenha sido lavrada em cartório, estes não
têm como comprovar o recebimento das terras porque as páginas do livro
onde estava registrada a doação foram arrancadas. Segundo os moradores,
os funcionários não sabem explicar como isto ocorreu e atribuem o fato a
alguma pessoa que tinha acesso aos livros e arrancaram-nas para
beneficiar o fazendeiro vizinho.
Tradicionalmente, a memória humana é vista como um arquivo do
qual podem ser guardados acontecimentos importantes ocorridos na vida das
pessoas, no lugar onde moram ou moraram, no país, e assim por diante. Para
não esquecê-los, as pessoas criam - o que Francis Yates chamou de “arte da
5 Ver Pollack, M. Op. Cit.
56
memória” - mecanismos mnemotécnicos. Conforme já dito em capítulos
anteriores, esta busca do que já aconteceu não significa que os fatos sejam
lembrados exatamente da forma como estes ocorreram no passado. Em cada
relembrança há uma recriação daquilo que foi vivido. Sob a influência de
uma série de fatores, o passado pode ser reinventado, sem contudo perder a
legitimidade da ocorrência dos fatos.
É isto que a Fundação Palmares faz ao iniciar o processo de titulação
em uma comunidade quilombola: estimula através de mecanismo
mnemotécnicos a recriação do passado. Todo esse processo tem como
principal objetivo constituir provas jurídicas que contribuam no sentido de
convencer juízes de que aquela comunidade faz jus aos direitos atribuídos
pelo dispositivo constitucional.
Procurando obter informações sobre a memória social, herança
cultural, padrão material e expectativas que a comunidade quilombola tem
em relação as suas vidas individual e coletiva, a FCP procura criar guias de
orientação para a formulação – junto com a comunidade - de diagnósticos e
de programas de ação no sentido de melhorar as condições de vida desta
população. Dentro deste planejamento de titulação das terras quilombolas, a
FCP analisa os seguintes aspectos da comunidade:
1. Delimitação geográfica da comunidade;
2. Caracterização ecológica e fisiográfica da região
3. Padrão socioeconômico e político da comunidade;
4. Desenvolvimento de atividades agrícolas;
5. Liderança e organização política local;
6. Pertencimento Étnico
57
1. Mapeamento - As comunidades mapeadas são aquelas que fazem parte
do cadastro de informação da Fundação mas que ainda não foram visitadas
por seus técnicos. Assim, nesse processo a FCP apenas atualiza e enumera a
distribuição destas comunidades pelo território brasileiro.
Muitas das comunidades mapeadas só tomam conhecimento dos
direitos que têm depois da visita de profissionais das instituições
governamentais. Foi assim em Santana. Segundo o presidente da
associação de moradores local, eles foram pegos de surpresa com a
chegada da equipe da Fundação Palmares dizendo que pelo fato deles
serem descendentes diretos de escravos teriam direito à regularização das
suas terras sem nenhum custo.
“ Foi uma notícia boa essa! Só que tem gente aqui que
não quer nem ouvir falar em titular o quilombo. A minha
irmã é uma. Ela tem medo dos fazendeiros. Ela é amiga
de um deles daqui que ajuda muito nós aqui. Quando cai
um doente é só ir lá chamar que ele leva pra Quatis. Mas
ele vive botando coisa na cabeça da Olga. Eu vivo
dizendo pra ela que ele faz favor porque quer. Aliás, nem
é favor porque meus sobrinhos trabalha lá na fazenda
deles quase de graça. Desde que ele soube que eu tava
envolvido com esse negócio de Fundação Palmares, ele
não me chama mais pra trabalhar. Esse foi o problema
que eu tive depois que voltei de Brasília, daquele
encontro lá de quilombos. Eles pensa que fui lá para
tirar a terra deles. Eu tenho andado escabreado porque
já apareceram dois carros aqui em Santana - só que
ficaram lá embaixo – perguntando por mim. Tenho medo
de ser baleado ou mesmo morto por aí. Qume vai saber
que fez isso... Ninguém. Mas eu não vou desistir não.
Vou continuar. Se a senhora perguntar ao meu pai e à
58
minha irmã sobre esse negócio de titulação, eles fica
morrendo de medo e não fala nada não. Eu não. Eu
quero morrer com a certeza de isso aqui vai ficar pros
meus filhos. Miguel, Presidente da Associação.
De fato, a notícia de que estas comunidades têm direitos à titulação
definitiva de suas terras, tem desencadeado uma série de conflitos entre
elas e seus invasores, como é o caso de Santana em Quatis, de São José da
Serra em Valença, de Caveiras em Cabo Frio e de Marambaia em Angra
dos Reis. Com as repetidas experiência de fracasso nos processos de
disputas das terras quilombolas, tem-se percebido que falta ao Artigo 68o.
um complemento que dê eficiência e definição jurídica capazes de resolver
as diversas situações de conflito fundiário a que tem sido submetidas as
comunidades negras rurais.
2) Identificação - Depois de mapeada começa-se um segundo processo
que é o de identificar a comunidade enquanto uma comunidade negra
remanescente. Comunidades identificadas são aquelas nas quais a FCP e
os institutos de terras regionais realizam vistoria técnica habilitando a
comunidade como passível de enquadramento no preceito constitucional.
Nessa fase, a FCP tem como meta reunir elementos da história oral e
material dos habitantes que dêem indícios de que é possível classificar
estas comunidades a partir do artigo 68o. das ADCT e dos artigos 215
o. e
216o. da Constituição Federal. É neste momento que a memória da
comunidade é revolvida em busca de resíduos históricos visíveis ou não.
59
3) Reconhecimento - Após o mapeamento e a identificação, segue-se ao
reconhecimento da comunidade. As preocupações nesta fase concentram-
se principalmente na construção da cadeia dominial, na delimitação
topográfica e na elaboração do laudo antropológico.
Através da elaboração de um laudo antropológico de caráter
pericial, verifica-se por meio da história oral, as linhas de descendência da
comunidade assim como outras marcas identitárias existentes no local.
Dois elementos são primordiais para o reconhecimento da
comunidade enquanto remanescente de quilombos: primeiro, a
comprovação da ancianidade da ocupação e segundo, a ascendência e o
sentimento de pertencimento étnico do grupo6.
É assim que, apesar de muitas vezes, não se perceba diferença
sócio-cultural entre aqueles que estão fora ou dentro da área mapeada, os
próprios membros da comunidade estabelecem uma demarcação de
fronteiras de forma a distinguir o Eu do Outro. Além da auto-atribuição de
identidade e pertencimento étnico feito pelos próprios moradores, a
memória social , o conhecimento e a integração com o meio-ambiente, e a
existência de uma regulação social autônoma do grupo são determinantes
para a construção de argumentos positivos no processo de titulação das
terras enquanto remanescentes de quilombos.
6 Ver por exemplo os trabalhos de PRICE, Richard. “Executing ethnicity: the killings in Suriname”
, Cultural Antrhpology, 10 (1995), pp. 437-471 _______. Maroon societies: rebel slave
communities in the Americas. Baltimore, John Hopkins University, 1996.______“Quilombolas e
direitos humanos no Suriname”, Horizontes Antropológicos, 1999.
60
4)Titulação - Comunidades tituladas são aquelas cujo rito processual
para este fim foi concluído. São comunidades que, seguindo o que institui
o Art. 68, constituem-se em prioridade para potenciais investimentos de
políticas públicas.
O processo de titulação de um quilombo é totalmente diferente
daquele seguido por outras comunidades rurais, como os do Movimento
Sem-Terra, por exemplo. A titulação é coletiva e ninguém pode desfazer
do seu lote sem que haja um consenso da maioria da comunidade.
Obedecendo-se ao estatuto da associação de moradores, é esta quem
recebe os registros imobiliários em nome da comunidade.
Como estratégia de proteção à propriedade, a FCP instituiu que a
titulação é coletiva. Através de um estatuto da associação de moradores,
elaborado com a aprovação dos representantes da comunidade, constitui-se
uma entidade jurídica, geralmente a própria associação de moradores,
como a responsável por responder e receber o título de terras em nome dos
moradores.
Confecção de Laudos Antropológicos
O objetivo dos laudos periciais é desenvolver um estudo sobre a
representação que estas comunidades fazem de si mesmas. Assim, através
da história da comunidade, da sua organização sócio-cultural, do seu modo
de vida e tradições, o pesquisador irá verificar se há espaço para atribuição
dos direitos reivindicados pela comunidade.
61
A prática arqueológica em busca de indícios materiais que sirvam
para a classificação, distinção e identificação cultural destas comunidades,
é fundamental na confecção dos laudos antropológicos. Estes são
elementos que irão determinar as conclusões da pesquisa etnográfica
exigida pelos requisitos jurídicos. Assim, quanto maior for o número de
sítios arqueológicos que estas comunidades apresentem maiores serão as
oportunidades de convencimento de que ali existem „reminiscências‟ e
„remanescências‟ deixadas pelos antepassados escravos.
Apenas a elaboração de laudos antropológicos não tem sido
suficientes para convencer os juízes a darem pareceres favoráveis aos
quilombolas. Tem sido mais fácil para os órgãos competentes titular as
terras públicas ocupadas pelos quilombolas pois estas não significam
problemas de disputa. Em contrapartida, as terras supostamente
particulares onde estão assentadas estas comunidades têm significado uma
série de problemas jurídicos para a fundação Palmares e outros órgãos
como os institutos estaduais de terras e Incra.
Embora o artigo 68º seja auto-aplicável, este não tem tido força
suficiente para resolver os conflitos e as invasões das terras de quilombos.
Que soluções podem ser pensadas para solucionar estes obstáculos
jurídicos
Alguns estudiosos acreditam que só a desapropriação pode dar
conta de algumas deficiências deixadas pelo Artigo 68O. Tal como
62
acontece com as terras indígenas, a desapropriação seria um recurso
justificado por se considerar os territórios quilombolas de interesse social
ou de utilidade pública7.
A titulação não se esgota com registro da propriedade coletiva do
quilombo no cartório. Dita a legislação que a partir daí, iniciem-se
parcerias com governos, com universidades, com instituições de defesa de
direitos humanos e com agências de financiamento no sentido de atender
a estas comunidades nos seus projetos de restauração e de conservação
patrimonial, autodesenvolvimento sustentável, suprindo as suas
necessidades básicas como água, luz, escola, programas de geração de
renda e trabalho, entre outros.
Para entender um pouco a dificuldade que estas comunidades têm
enfrentado ao longo da existência para firmar os seus direitos fundiários é
necessário voltar um pouco na história e ver uma das razões que podem
explicar a origem de tudo isto.
O negro está historicamente associado a uma situação de servidão
aos donos de terras, geralmente brancos e pertencente à elite econômica.
Conforme já dito anteriormente, a dificuldade de acesso à terra por negros
aumentou em 1850 com a Lei 601. Esta lei que regulamentou a cessão de
terras públicas aos imigrantes estrangeiros fez parte do pacote de
incentivos à vinda de imigrantes europeus para o Brasil. Neste mesmo
7 SILVA, Dimas Salustiano. “A Concretização do Artigo 68” In Revista Palmares, no. 5, 2000, pg.
95. Uma das propostas do Incra é “comprar, desapropriar e incorporar estas terras ao patrimônio de
63
período já era grande o número de escravos livres. Estes estavam fora dos
benefícios da lei de Terras. Justificava-se dizendo, que diferente da
habilidade demonstrada pelos estrangeiros, os ex-escravos não tinham
capacidade de gerenciar pequenas propriedades de terras8.
Por ironia política, estas conclusões a respeito da incapacidade da
massa escrava livre eram tiradas paralelamente ao debate que condenava a
escravidão. Ramos analisa a política de assentamento do Império dizendo
que,
Ao direcionar os imigrantes para assentamentos em terras devolutas no sul do
país, o governo imperial acabou promovendo o estabelecimento de colônias
racialmente homogêneas – principalmente alemães e italianos... Caboclos,
negros, mestiços em geral e até imigrantes portugueses eram considerados
apenas como coadjuvantes de um progresso a ser introduzido por uma
agricultura racional. Estes serviam para o trabalho pesado de desbravamento e
desmatamento9.
A Lei de Terras de 1850 complementava o grande projeto de
embraquecimento do país ao definir como dono de terras ideal, o
fazendeiro branco e civilizado.
estado, para então repô-las a quem realmente tem direito sobre elas”. Pg. 95. 8 RAMOS, Jair de Souza . “Dos males que vêm com o sangue: As representações raciais e a
categoria do imigrante indesejável nas concepções sobre imigração da década de 20”em CHOR
MAIO, Marcos e SANTOS Ricardo Ventura (orgs). Raça, Ciência e Sociedade, Editora Fiocruz,
pg. 46. 9 Idem, pg. 48.
64
Fotos: Creuza Flores
Crianças de Santana
65
CAPÍTULO 4
Os Direitos Remanescidos dos
Sobreviventes da Memória
“Para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é
preciso desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto
de encontro de vários caminhos, é um ponto complexo de
convergência dos muitos planos do nosso passado."
Ecléa Bosi (Op. Cit. pg. 413)
D. Nair.
66
Uma série de entrevistas nos permitiu seguir as rotinas individuais,
alguns hábitos, constrangimentos, e estratégias inventivas da vida diária dos
quilombolas de Santana de Quatis. Entre experiências e vozes, este capitulo
descreverá as invenções efêmeras que preenchem, alegram ou entristecem o
cotidiano de Santana. Atenção especial foi dada à tentativa de organização
política da comunidade, à utilização do espaço e do corpo como locais onde as
práticas cotidianas são exercidas1.
Toda comunidade tem seus marcos culturais que geralmente têm
grande visibilidade e significado coletivo como monumentos, santuários,
cemitério, entre outros. Estes sinais culturais visíveis, conforme é comprovado
em Santana, aumentam o sentimento de coletividade e de identidade do grupo2.
Tais memórias utilizam as três dimensões fundamentais : o estético, o político
e o cognitivo. Estas três dimensões associadas respectivamente aos princípios
de beleza, poder e identidade devem ser compreendidos como parte de uma
cultura própria mas com dimensões significativas iguais a todas as outras
culturas.
Seu Sebastião Francisco, por exemplo, 84 anos, é um dos 19 chefes de
famílias que moram em Santana. Ele acha que a comunidade ficou triste ao
longo das últimas décadas:
Eu acho que os tempos mais atrás era melhor porque todo
mundo fazia tudo. Todo mundo plantava. Tinha uma cana, uma
1 CERTEAU, Michel de. The Practice of Everyday Life. Berkeley: UCP, 1988
2 DADESKY, op. Cit. 25.
67
mandioca, uma banana pra dar pra uma criança... uma batata! Os
de agora não faz força! Tudo tem que ser da venda, comprado. Aí
tem que fazer muita compra porque tem muita criança! Cadê
dinheiro Cadê trabalho Naquele tempo tudo era de casa! Hoje,
mesmo aqueles que trabalha, ainda fica devendo ao patrão porque
traz tudo da venda dele. Um dia é um leite, outro dia é feijão.
Quando chega no final de semana pra receber o pagamento, já foi
tudo na compra, né Aqui eu planto meu café, minha mandioca,
laranja, banana, feijão. Nunca passo fome, nem eu nem meus filho.
Meu filho Miguel, ta desempregado mas nem eles nem os filhos dele
passa fome não.
Seu Sebastião Francisco mostra a estreita relação outrora existente em
Santana entre espaço e representações coletivas. O espaço onde se plantava,
também abrigava uma coleção de formas que refletiam o bem-estar, a fartura e
as representações que os moradores faziam de si mesmos. Como demonstra D.
Nair, plantar e ter comida farta eram fatores que indicavam além de bem-estar,
dignidade.
“ Criei 16 filhos aqui sem ir no médico. Quando chegavam a
chorar era só de fome. Eu plantava arroz, feijão, mandioca, batata,
cenoura. Eu ficava trabalhando na lavoura e meus filhos tava pra lá,
brincando. De repente paravam de brincar e sentavam tudo no batente
e começavam a chorar. Aí eu dizia, ´peraí seus filhos da puta, vocês
tão é com fome´. Aí eu subia com mandioca, batata, cana pra moer...
eu tinha um engenho de pau... botava o engenho pra tocar e botava a
batata, a mandioca no fogo... eu tinha umas baciinhas pra cada um e
aí o filho que gostava de batata comia batata, o que gostava de inhame
comia inhame, o que gostava de mandioca comia mandioca... eu
punha tudo separados naquelas baciinhas...! eu fazia o gosto de cada
68
um. Nós não comprava quase nada. Plantava só para o gasto da casa.
Nós não comprava pó de café, açúcar... tudo era da casa, só comprava
sal e querosene”. (D. Nair, 78).
Segundo pesquisadores da sociologia rural é comum encontrar
comunidades rurais com mudanças drásticas no cultivo do humor e lazer ao
longo da sua história de vida. Ollen e Cliford, por exemplo, apontam inúmeros
fatores que podem tornar uma comunidade apática e triste. Entre os mais
comuns eles enumeram3:
1. Desproporção entre a população que produz e
a que consome;
2. Problemas de saúde graves atingindo toda a
população;
3. Baixa capacitação profissional e desemprego;
4. Grandes desigualdades socioeconômicas
entre a comunidade e o seu entorno;
5. Situação irregular da terra;
6. Deficiência na educação formal.
Dos seis itens mencionados acima, todos foram, em maior ou menor
grau, constatados em Santana: a) as péssimas condições de vida e a falta de
assistência à saúde estão fazendo com que as pessoas mais velhas morram
mais rapidamente; b) Pais de famílias sem nenhum rendimento porque não
encontram empregos nas fazendas locais criam uma desproporção entre quem
produz e quem consome c) Extrema pobreza da comunidade; d) Incerteza
quanto ao futuro.Apesar do processo iniciado pela Fundação Palmares os
3 OLEN, Leonard E. e CLIFFORD, Roy. A Sociologia Rural para os Programas de Ação. Livraria
Pioneira, SP, 1971.
69
santanenses não têm como provar que são donos daquelas terras; e)
Analfabetismo e baixa escolaridade porque a escola só vai até a 4a. Série.
Toda a construção social de Santana é marcada por recortes memoriais
ainda muito presentes entre os moradores mais velhos. Por causa das péssimas
condições de vida os moradores mais velhos estão morrendo rapidamente. Daí
surge a preocupação de Miguel, presidente da Associação de Moradores de
Santana:
Olha senhora,, os velhos daqui tá tudo morrendo. Dois meses
atrás morreu o Seu Candinho que era a pessoa mais velha do
quilombo. Ele tinha 93 anos. Tem meu pai com 84 mas não é
nascido aqui. Seu Candinho nasceu aqui e sabia muitas
estórias daqui. Agora, tem poucos velhos vivos daquele tempo
aqui. Só tem uns quatro ou cinco. Vai chegar um tempo que
ninguém vai saber como foi isto aqui. Isto vai prejudicar a
gente porque aí vai ser mais fácil os fazendeiros chegar e tirar
a gente daqui. Já falei com a diretora da escola. Ela não mora
aqui. Mora lá em Quatis. Vem aqui de vem em quando. Acho
que é por isso que a professora daqui não se interessa. Tinha
que ter alguém aqui, falando. Mas parece que ela acha que isso
é bobagem. A senhora não acha que é importante pros meninos
saber como foi a estória da sua cidade Eu acho que é
importante. Falar com orgulho do seu lugar. Miguel, 37 anos.
A preocupação de Miguel faz sentido se levarmos em consideração os
estudos de Assman e Vansina. De acordo com Jan Assmann4 o hiato entre
uma lembrança mais recente e aquela mais distante dentro de uma
comunidade, dura aproximadamente 80 anos, ou seja, atingindo cerca de 3 a 4
4 ASSMAN, Jan. Moses, the Egyptian: The Memory of Egypt in Western Monotheism. Havard
University Press, Cambridge, 1997. pg. 48-56.
70
gerações. Em um outro estudo sobre tradição oral na África, Jan Vansina5
sugere uma divisão semelhante entre a lembrança dos eventos de um passado
mais recente e daqueles mais distantes. Ainda, de acordo com Vansina a
consciência coletiva trabalha apenas com dois registros referenciais do tempo:
o tempo de origem e o tempo mais recente. Desta forma, segundo este autor há
um limite sobre aqueles acontecimentos a que uma geração pode alcançar e
guardar como relevantes. Para este autor, a importância memorial de um
acontecimento ou pessoa, pode mudar com a passagem de gerações6.
Nesse contexto, a memória de Santana é pensada como algo a ser
preservado e transmitida de geração a geração. O discurso de Miguel revela
que aos jovens é atribuída a responsabilidade de preservar as reminiscências
ancestrais e a memória coletiva do lugar. Mas, não são somente os jovens que
têm essa responsabilidade. Com a continuidade da narrativa, Miguel também
nos faz perceber o quanto os velhos da comunidade têm um papel fundamental
na transmissão e preservação do patrimônio cultural e social da comunidade.
Como legítimos proprietários da memória, eles guardam o capital mnemônico
que define e mantém a estrutura da identidade cultural e social do grupo7.
Miguel e Isael, presidente e vice da Associação de Moradores de
Santana, contam como se sentiram ofendidos quando na época do
reconhecimento pela Fundação Palmares, a advogada responsável pelo
5 VANSINA, Jan. Oral Tradition as History, 1985, Currey, London, 1985, pg. 168.
6 Idem, pg. 168.
7 Quanto ao papel dos velhos na construção da memória social de determinados grupo Ecléia Bosi faz
importantes considerações. De acordo com Bosi, "a memória é a faculdade épica por excelência. Não se
pode perder, no deserto dos tempos, uma só gota da água irisada que, nômades, passamos do côncavo de
uma para outra mão, a história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cujos fios se
cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos.". Op. cit. pg..90.
71
processo fez-lhes a seguinte advertência: Olha, vocês vão receber o título da
terra mas cuidado para não deixarem isto aqui virar uma favela! (Miguel e
Isael).
Mesmo entendendo o cuidado que há na orientação da funcionária do
governo, tem-se aqui uma visão do patrimônio de ordem preconceituosa e
disciplinadora muito bem assimilado por Miguel:
Aqui nós somos tudo pobre. Casa de tijolo só tem duas ou três.
Mas nós é muito organizado. Temos muito cuidado com isso aqui.
Lixo a gente queima e não tem sujeira não. Aqui nunca vai virar
favela. Quando a Benedita da Silva teve aqui, ela prometeu pra
gente material de construção. Pra minha mãe ela prometeu
diretamente. Mas cadê Eu vi falar que ela foi pra Brasília. Só se
invadirem e a gente não puder reagir que aqui vai virar favela. A
gente não pode reagir nem com os fazendeiros! Ta vendo aquela
montanha toda ali, do lado da minha casa É nosso. Mas nós não
pode plantar porque o fazendeiro vizinho bota as vacas e os
cavalos dele para comer capim aí. Qualquer coisa que a gente
plante os bichos vem e come.
Não somente a história, mas cada parte do artefato arqueológico de Santana
forma o conjunto identitário dos moradores.
Os elos perdidos da memória
Há um mito criado pelos outsiders em torno das comunidades
quilombolas quanto à preservação de certas tradições culturais. O uso de ervas
medicinais, o jongo, o candomblé, o modo de viver ou morrer são traços
culturais que muitos supõem – principalmente os militantes tradicionalistas –
estejam ainda presentes em algum lugar da comunidade. Não em Santana.
72
Com exceção do catolicismo, muitos dos traços culturais outrora existentes,
não são visíveis mais hoje.
Os moradores de Santana
não sabem ao certo o quanto lhes
resta dos 800 hectares herdados.
Muitos dos herdeiros venderam as
suas terras ou trocaram-nas por
favores com os fazendeiros locais.
Aliás, a prática oportunista dos
grileiros de trocar simples favores por terras ainda é muito presente em
Santana.
Houve fazendeiros que avançaram suas cercas para dentro dessas
terras de descendentes de ex-escravos apropriando-se delas... Existem
vários descendentes desses ex-escravos morando na cidade de Quatis e
em fazendas vizinhas onde trabalham, que sempre reclamam a perda de
suas terras e que gostariam de voltar a viver nelas...”
(Laudo Antropológico de Santana, pg. 11).
Os conflitos com os fazendeiros invasores das terras de Santana nunca
foram explícitos até à mobilização da comunidade em torno da titulação. A
partir de então, estes passaram a ser hostilizados pelos fazendeiros vizinhos.
De acordo com Miguel, antes da titulação, a relação dos fazendeiros com a
comunidade:
Era legal. Eles não perturbavam. Não tinha muito serviço mas a
gente era bem recebido. A gente chegava na fazenda e eles davam serviços
pra gente. Hoje em dia eles não querem dar mais porque acham que nós
estamos tomando a terra deles. Porque eu fui a Brasília falar com a
73
Fundação Palmares, eu estou sendo ameaçado... tem um carro andando
por aí, um Santana bege, perguntando por mim e dizendo que vem me
pegar aqui para eu dar uma volta.
De fato, constatamos que grandes extensões de terras originariamente
pertencentes à fazenda do Barão Cajuru estavam ocupadas por fazendeiros
vizinhos e os moradores mais velhos estavam temerosos sobre possíveis
represálias que o Quilombo de Santana pudesse sofer por parte dos seus
incomodados “vizinhos”.
Esse negócio de mexer com terra dá muita confusão, muito
problema..., briga! Pra mim um pedacinho que sobrou pra gente, a gente
devia ficar satisfeito. Antes um pouco com muito do que um muito sem
nada. É só cuidar, roçar, trabalhar que dá muito lucro (D. Nair).
Sebastião Francisco, 84 anos, um dos moradores mais antigos, também
expressa o mesmo medo e resignação da D. Nair.
Nós não pode de falar que a terra é nossa! A gente pode até falar
pra eles... mas é falar e eles vem agredir. Vão botar como se fosse
nós que tivesse tirando... como se fosse o pessoal daqui que tivesse
tirando a terra deles. Nós não temos força pra isso. Eles tão
jogando... Esse menino que taí (o presidente da associação)... tão
culpando ele, dizendo que é ele que tá botando na cabeça do
pessoal pra tomar a terra deles. Agora... a senhora acha que
temos poder para isso? Sr. Sebastião Francisco, 84.
A maior preocupação dos santanenses no momento tem sido a
expropriação das suas terras por parte dos fazendeiros vizinhos. Eles têm
testemunhado impotentes o rápido avanço dos fazendeiros sobre as suas
terras.
74
Por mais contraditório que pareça, a obtenção do título de terras por
parte dos santanenses, ao mesmo tempo que tem sido motivo de alegria, tem
também sido motivo de temor.
A euforia e esperança de ter uma vida melhor com a regularização de
suas terras foram substituídas por um misto de medo e constrangimento. Com
a notícia da titulação espalhada pelos arredores da comunidade, os donos de
fazendas vizinhas e grileiros que têm ocupado as terras pertencentes aos
santanenses, começaram a ameaçar o líder da comunidade de morte e a punir
a comunidade com a diminuição de oferta de trabalho. Lamentando a perda de
5 reais por dia por um trabalho árduo na lavoura, aqueles que perderam os
seus empregos têm apontado a recusa dos fazendeiros da área em contratar os
seus serviços, como represália ao fato deles estarem lutando por seus direitos.
Muitos dos moradores de Santana perderam as suas terras, trocando-as por
favores concedidos pelos fazendeiros locais ou como pagamento de dívidas
contraídas com estes.
Gráfico 1 – A quem procura para resolver os conflitos de terra?
75
Racismo, mobilização política e associativismo
Os dados coletados em Santana permitem não somente inferências
sobre a construção e afirmação da identidade étnica do grupo como também
sobre a percepção que a comunidade tem sobre os padrões das relações raciais
vigentes na sociedade brasileira. Quanto a isto, mais de 80% dos moradores de
Santana disseram acreditar na existência de racismo no Brasil (Gráfico 2).
Inclusive, relatam casos de discriminação ocorridos dentro da própria
comunidade. O caso mais marcante, é contado com muita mágoa por Miguel.
Uma professora, que vinha à escola para dar aulas às crianças, proibiu os
alunos de chamarem-na de “ tia” porque ela não tinha “sobrinhos pretos”.
Gráfico 2 – Você acha que existe discriminação racial no Brasil
Àqueles que disseram acreditar na existência de racismo, foi
perguntado se já foram alguma vez discriminados. Conforme mostra o Gráfico
3, parece ser a escola um espaço potencial para a prática do racismo nas
comunidades negras rurais. É intrigante perceber que 50% daqueles que
observaram ou sofreram discriminação racial dentro da comunidade, a
76
experimentaram no ambiente escolar, sendo esta praticada por professores que
vêm de fora8.
Gráfico 3 – Onde ocorreu
Fora da Comunidade
25.0%
Em festas da Comunidade
25.0%
Na escola da Comunidade
50.0%
Foi também perguntado aos entrevistados se estes tinham
conhecimento ou contato com organizações do Movimento Negro. Cerca de
90% disseram não conhecer nada do movimento negro. Os 10% que
responderam positivamente coincidiram com as lideranças da comunidade. Por
outro lado, à pergunta se o entrevistado conhecia alguma pessoa negra de
grande importância na história do país, 95% mencionaram o nome de Benedita
da Silva9 (Tabela 1).
8 Conforme já mencionado em capítulo anterior, os professores da escola são designados pela prefeitura
municipal local e vêm de outros municípios vizinhos. Uma das reivindicações de quase todas as
comunidades quilombolas diz respeito ao aproveitamento de pessoas da própria comunidade para darem
aula aos seus filhos. 9 Como mencionado anteriormente por um dos entrevistados, por ocasião das comemorações dos 300
anos da morte de Zumbi, Benedita da Silva esteve visitando a comunidade.
77
Tabela 1
A maioria dos moradores de Santana não acredita nem em políticos
nem em instituições partidárias (Gráfico 4). Muitos se queixam que durante as
eleições municipais aparecem pela comunidade alguns candidatos prometendo
aumentar a rede de luz, pôr telefones públicos, uma linha de ônibus ligando a
comunidade aos municípios mais próximos, mas os anos passam e nada
acontece.
Gráfico - 4
Você tem simpatia por algum partido político Qual
Conhece alguma organização do Movimento Negro
Sim 10%
Não 90%
Conhece alguma pessoa negra de grande importância
para a história do povo negro no Brasil Quem
Benedita da Silva 95%
Não conhece/Não lembra 5%
78
Entre as instituições que têm contribuído para a melhoria da
comunidade, a associação de moradores local foi a mais reconhecida pela
opinião de 40.8%. Em ordem de preferência estão as igrejas (15.2%) e a
instituições governamentais (14%). Porém, 30% dos entrevistados disseram
que nenhuma instituição contribui para a melhoria de Santana.(Gráfico 5).
Gráfico 5 - Quais as instituições que têm contribuído para a melhoria da
comunidade
Quando há conflitos entre membros da comunidade, os próprios moradores
fazem os seus arranjos para agir e tomar soluções. Por exemplo, se há um
desentendimento muito sério, com riscos de violência física, os moradores chamam a
polícia de São Joaquim ou Quatis, municípios mais próximos. Em épocas de festas
populares, como medida de prevenção, eles pagam a policiais destes municípios para
fazerem o policiamento (Tabela 2).
Tabela - 2
O que a comunidade faz para resolver os
conflitos entre os seus membros ?
1. “Quando tem briga a
gente separa”
85.7%
2. “A gente paga a polícia
para vir aqui e fazer o
policiamento (em época
de festas)
7.1%
3. Não se mete em briga
nenhuma
7.2%
Total 100.0%
79
A religião é uma referência de identidade muito forte entre os
moradores de Santana. Todas as pessoas que entrevistamos nasceram e
cresceram na religião católica. Isto é fácil de entender pela própria história
fundante da comunidade. Entretanto, já é possível perceber certa penetração
das religiões evangélicas na comunidade. Dona Olga, filha do S. Sebastião
Francisco ao se converter à Assembléia de Deus resolveu fazer da sua casa um
local de encontro religioso dos novos adeptos. Alguns moradores sentiram-se
traídos por esta decisão de D Olga. A D. Nair, por exemplo, desabafa:
Eu sei que tudo é cristão. Mas aqui é nossa igreja é forte. Agora
veja „fia‟!, todo domingo vem esse povo que a gente não conhece
lá de Quatis pra rezar , rezar não, eles fala orar, na casa dela. E
ficam chamando a gente pra ir lá. Mas ninguém vai. É só ela e os
„fios‟ dela, lá. Sabe aquela cantoria chata. Eu não gosto. Acho
que ninguém aqui gosta.
Gráfico 6 - Religião de Origem e Atual
0
20
40
60
80
100
Religião de Nascimento Religião Atual
Católica
Evangélica
Não sabe
Mesmo com a preocupação da . Nair, a religião católica é predominante
entre os descendentes de escravos de Santana. Do total dos entrevistados,
90.3% dos entrevistados revelaram ter nascido na religião católica. Nota-se no
gráfico 6, a adesão de alguns moradores à igreja evangélica. Por outro lado,
enquanto a religião evangélica é uma novidade e a religião católica manteve a
80
sua predominância, as religiões de origem africana parecem nunca ter tido
preferência entre os santanenses. Se houve em Santana, em algum tempo, uma
prática marcante de religião africana, os dados aqui colhidos mostram que na
atualidade estas não atraem os membros da comunidade.
Os santos católicos mais venerados na comunidade são Santa Ana, a
padroeira, N. Sra. Aparecida e São Joaquim. Sant'Ana, a padroeira da
comunidade, é o grande ícone sacro da comunidade. Por conta disso, é
comemorada com festas e procissões durante todo o mês de julho10
.
Os cânticos e danças, muito freqüentes no passado da comunidade já
não são mais comuns hoje, principalmente entre os jovens. Poucos deles
sabem que canções de jongo eram cantadas por seus antepassados “por mato e
noites a dentro”. Danças como o calango e o jongo, balançaram os corpos
alegres e apaixonados de muitos que hoje vivem apenas na lembrança da
comunidade como o Seu Candinho e Seu Carreiro.
Gráfico 7 – Você está Satisfeito ou Insatisfeito com :
64%
73%
62%
43%
25%
50%
30%
36%
27%
38%
57%
75%
50%
70%
R enda /Sa lá rio
Tra ba lho
Bens Ma teria is A dquirido s
Sa úde
Educa çã o do s Filho s
C a sa o nde Mo ra
Lug a r o nde Mo ra
0 20 40 60 80 100 120
Sa tisfeito
Insa tisfeito
10 Como demonstra o historiador Robson Martins, cultuar e festejar o dia de Sant‟Anna em 27 de julho
tornou-se uma tradição cultural entre os negros escravos e livres a partir do século XIX. MARTINS,
Robson L. “Em Louvor a „Sant‟Anna‟: Notas sobre um plano de revolta escrava em São Matheus, norte
do Espírito Santo, Brasil, em 1884”. In Estudos Afro-Asiáticos, no. 38, Rio de Janeiro, Universidade
Cândido Mendes, Dezembro 2000.
81
É pertinente pensar que a extrema pobreza em que vivem hoje as
famílias de Santana justifique o „descuido‟ com a preservação das tradições
culturais da comunidade. Com exceção da educação recebida pelos filhos e
com o lugar onde mora, o gráfico 7, mostra que os entrevistados estão
insatisfeitos com aspectos da vida determinantes na indicação da qualidade de
vida e auto-realização.
O status cultural adquirido com os dispositivos constitucionais
permite que a dimensão das ações simbólicas – assumir uma identidade e ter
uma cultura própria – determine também a dimensão das ações políticas -
organização e poder de demanda. Desta forma, ficou evidente aqui que as
lideranças da comunidade, tentam utilizar o conhecimento da história como um
código de regulação necessário tanto para os mecanismos de autopreservação,
quanto para negociações e trunfos para a comunidade.
Gráfico 8 – O que você faz para se divertir
25%
25%
8,3%
8,3%
33,3%
Joga Futebol
V ai a Quatis
Assiste Televisão
Assiste Tv e escuta r ádio
Não faz nada
0 5 10 15 20 25 30 35
*****
82
A plantação de aipim do S. Sebastião José Francisco
A criação de porco do S. Sebastião Francisco da Silva
84
CAPITULO 5
Perfil Socioeconômico dos Moradores de Santana
Quando eu tiver bastante pão
Para meus filhos,
Para minha amada,
Pros meus amigos,
E pros meus vizinhos,
Quando eu tiver
Livros pra ler,
Então eu comprarei
Uma gravata colorida
Larga,
Bonita,
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada.
Gravata Colorida, Solano Trindade
Parte do texto apresentado neste capítulo foi fruto de relatório apresentado ao Instituto de Tecnologia
Social, sob a coordenação de Márcia Maria Borja, em maio de 2001. Aqui cabem agradecimentos à
equipe de campo formada pelos então estagiários Robson Wander Barbosa, Raquel Barreto e Patrícia
Silva.
85
A pobreza é produzida e reproduzida através da exclusão social e
econômica, de maneira que a distribuição de bens educacionais, sociais e
simbólicos seja estruturalmente desigual e diferenciada. Assim, a pobreza é
moldada pela diferença na aquisição material entre pessoas e grupos, pela
distribuição desigual da propriedade e valorização social1. Discutiremos neste
capítulo a organização socioeconômica encontrada no interior da comunidade
de Santana.
Apesar da riqueza cultural, a comunidade de Santana é extremamente
pobre no que se refere ao acesso a bens materiais e a bens de serviços. Não há
em Santana infraestrutura para nenhum atendimento aos bens de serviços
básicos. Esgotamento sanitário, rede geral de água, telefonia, iluminação
pública satisfatória, pavimentação, transporte, creche, saúde, entre outros,
todos esses são serviços demandados pela comunidade, porém totalmente
ausentes na comunidade. Esta é uma situação que nos força a pensar num
debate difícil, mas de fundamental importância para a comunidade negra, que é
a relação entre etnicidade e cidadania.
Cidadania e Etnicidade
Os termos exclusão social e cidadania passaram a ser utilizados com
mais freqüência pela cultura política a partir da década de 80. Freqüentes em
debates políticos e projetos acadêmicos, estes conceitos agora designavam as
1 ARZABE, Patrícia H. Massa. Pobreza, Exclusão Social e Direitos Humanos: O Papel do Estado,
USP, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2000, mímeo.
86
novas orientações de demandas sociais e de políticas públicas no sentido de
diminuir o distanciamento existente entre uma grande parcela da sociedade
civil e seus direitos, especialmente direitos humanos.
Entre muitas teorias, existem aquelas que preferem acreditar que
pobreza e a exclusão são resultado do modo de relação entre pessoas e grupos2.
Desta forma a situação de desvantagem econômica experimentada por
determinados grupos ocorre por causa do tipo de relações racionalmente
estabelecidas. Estas relações são orientadas por práticas discriminatórias e
mecanismos de exploração econômica, social e cultural. Tais mecanismos se
acham entranhados na sociedade a ponto de serem considerados padrões
normais de relacionamento entre os grupos, dificultando a transformação
social e a emancipação pessoal e coletiva dos grupos submetidos ou
excluídos3.
Os recursos utilizados hoje na sociedade brasileira como a adoção de
ações afirmativas e de políticas compensatórias são necessários como um
paliativo momentâneo, porém, mais importante do que isto, é pensar num
conjunto de políticas públicas que possibilitem a transformação das relações de
poder que têm estruturado a disposição dos diversos grupos étnicos deste país.
Porém, Delmas-Marty bem observa que cidadania não significa “assistência”,
mas “integração à sociedade, com o estatuto de cidadão”. Ou seja, cidadania
não se limita à garantia de meios de sobrevivência, mas sim, cidadania
2 Idem, pg. 15.
3 Idem, pg. 18.
87
significa uma vivência plenamente com todos os outros de forma igual e
democrática4”.
Dentro do exposto, cabe aqui considerar que a situação de extrema
miséria em se encontram os moradores de Santana aponta para o fato de que a
questão das terras remanescentes não passa simplesmente pela titulação e
preservação de identidade étnica. Esta é também em um desafio à prática de
cidadania e à diminuição da discriminação racial e social porque passam estas
comunidades. Conforme será visto daqui por diante, os remanescentes de
Santana não querem apenas garantir a sua propriedade e guardar a memória do
seu passado. Isto para eles é importante, mas, além disto, eles também
querem ser incluídos nos processos de modernização e de igualdade social
através de melhorias na educação de seus membros, assistência à saúde, e
implantação de projetos de desenvolvimento sustentável e de geração de
emprego dentro da comunidade.
Dentro das características gerais do meio rural brasileiro, estas
comunidades vivem situações tão extremas de limitação das oportunidades
sócio-econômicas as quais, sem resistir a tal situação, muitas comunidades têm
desaparecido, senão pelo extermínio físico de seus membros, pela extrema
pobreza e opressão da cultura dominante5.
4 DELMAS-MARTY, Mireille Trois défis pour un droit mondial. Seuil. Paris, 1998. pg. 45. 5 Segundo Flávio Gomes, “no Brasil, muitos mocambos e quilombos acabaram se transformando, ao
terminar a escravidão, em vilas de camponeses. É possível sugerir também, considerando a escassez de
pesquisas conclusivas sobre este tema, que provavelmente as estratégias em busca de autonomia e a
integração das práticas econômicas e sociais dos quilombos dos escravos nas plantações e da população
livre de cor, tenha ajudado a forjar uma das faces dos campos negros”. “Para matar a Hidra... Op. cit. pg.
23.
88
Do universo de 20 famílias que compreendem a comunidade de
Santana, 14 foram entrevistadas (74%). Deste total, 43% foram homens e 57%
mulheres (Gráfico 9).
Gráfico 9 – Participação por Sexo Gráfico 10 – Nasceu na comunidade ?
Mulheres são mais incorporadas enquanto novos membros às famílias
de Santana do que homens. Enquanto os homens perfazem 85% daqueles que
nasceram na comunidade, as mulheres respondem por 50%. A maioria das
mulheres é incorporada às famílias de Santana através da relação de casamento
(Gráfico 10). Quanto à idade, esta variou de um mínimo de 18 anos a um
máximo de 75, apresentando uma média de 36 anos para os entrevistados
(Gráfico 11).
Gráfico 11 – Distribuição por Idade
21.4%
14.3%
35.7%
7.1%
21.4%
15 - 19 anos 20 - 29 anos 30 - 49 anos 50 - 64 anos + de 70 anos0
10
20
30
40
Média de idade: 36 anos
89
Apesar da pergunta sobre cor ter sido feita com base nas categorias
estabelecidas pelo IBGE, uma proporção significativa dos entrevistados fugiu
das alternativas preta e negra, preferindo parda (27%), mulata (22%), e
morena (28.6%) - Gráfico 12.
Gráfico 12 - Qual a sua cor
Porém, percebe-se que os membros de Santana, apesar da visível
uniformidade da cor de pele, estes repetem o mesmo padrão de
autoclassificação dos negros urbanos, utilizando uma gradação de cor com
uma inclinação pela preferência do uso de tons de pele mais claros.
Aqueles(as) que disseram ter a cor parda e morena somam 55.6% dos
entrevistados.
Em relação ao desempenho de atividades econômicas, Sant‟Ana se
caracteriza por ser uma comunidade mista com os entrevistados
economicamente ativos divididos em atividades agrícolas (41.7%) e em
atividades de serviços (58.3%).
90
Tabela 3 – Ocupação por Gênero
Com papéis marcadamente definidos por sexo, as mulheres em sua
maioria, trabalham como babás, domésticas, e cozinheiras, enquanto os
homens são lavradores (Tabela 3). No momento da realização deste trabalho,
dos 50% que disseram ser lavradores, cerca de 33.3% estavam empregados.
Dos 38,5% dos entrevistados que já moraram fora da comunidade,
60% saíram atrás de empregos nas cidades mais próximas como Quatis e Barra
Mansa. Voltaram porque não se adaptaram ao lugar ou sentiram muitas
saudades da família6 (Tabela 4).
Tabela 4
6 "De onde vem, ao grupo familiar, tal força de coesão? Em nenhum outro espaço social o lugar do
indivíduo é tão fortemente destinado. Um homem pode mudar de país; se brasileiro, naturalizar-se
finlandês; se leigo, pode tornar-se padre; se solteiro, tornar-se casado; se filho, tornar-se pai; se patrão, tornar-se criado. Mas o vínculo que o ata à sua família é irreversível; será sempre o filho da Antônia, o
João do Pedro, o "meu Francisco" para a mãe. Apesar dessa fixidez de destino nas relações de
parentesco, não há lugar onde a personalidade tenha maior relevo. Se, como dizem, a comunidade
diferencia o indivíduo, nenhuma comunidade consegue como a família valorizar tanto a diferença de
pessoa a pessoa." Ecléa Bosi, op. Cit. Pg. p. 425.
Ocupação Homem
%
Mulher
%
Total
%
Lavrador 41.7 8.3 50.0
Babá ----- 10.3 10.3
Doméstica ---- 24.1 24.1
Cozinheira ------ 15.6 15.6
Total 41.7 58.3 100.0
91
Com um traço típico das áreas rurais pobres, a mobilidade social de
Santana é extremamente lenta. Ao se verificar a herança ocupacional
intergeracional, é nítida a rigidez existente no movimento ascensional entre
pais e filhos. Do total da amostra, 92,3% e 84,6% de pais e mães
respectivamente que eram ou são lavradores, passaram a herança ocupacional
para 50% dos filhos. (Gráfico 13).
Gráfico 13 - Lavradores em Santana
Herança Intergeracional
92,3%84,6%
50%
Pai Mãe Entrevistado0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
A maior fonte de renda dos entrevistados provém basicamente do
trabalho autônomo (50%). Por outro lado, apenas 14% trabalham com carteira
assinada. Em relação a questões relacionadas a trabalho, a situação de Santana
Por que saiu da comunidade
Para procurar trabalho 60%
Para seguir a família 40%
Por que voltou à comunidade
Por falta de adaptação ao local 60%
Porque perdeu o emprego 20%
Por saudades da família 20%
92
é preocupante: a proporção de desempregado é de aproximadamente 2 pessoas
por família, na qual um dos desempregados ocupa sempre a função de
provedor econômico (Gráfico 14).
Gráfico 14 – Fonte de Renda
Tr abalhador c/ CTP S
14.0%
Autônom o s/ INS S
58.0%
Aposentados
14.0%
P ensionistas
7.0%
Diar istas
7.0%
A maior parte dos chefes de famílias em Santana (43%) ganha menos
de 1 salário mínimo. Cerca de 14% estavam sem nenhuma renda na época
desta pesquisa e 7% estavam ganhando entre 2 e 3 salários mínimos (Gráfico
15). Um dado preocupante em Santana está relacionado ao trabalho infantil.
Por menos de 1 salário mínimo, adolescentes de 13, 14 e 15 anos já trabalham
nas fazendas vizinhas.
Gráfico 15 – Faixa Salarial
93
Conforme já dito em capítulo anterior, a única escola existente em Santana só
vai até a 4a. Série do ensino fundamental. Assim, o nível de escolaridade dos
santanenses é muito baixo. Em vista disto, conforme mostrado no Gráfico 16 é
grande o índice de analfabetismo na comunidade.
Gráfico 16 – Nível de Escolaridade
Apesar da precariedade do
ensino, a escola é ainda um
centro de referência
importante na comunidade
de Santana. Reuniões,
encontros e festas
comunitárias são realizados
no prédio escolar. Aliás, esta
é uma característica de quase todas comunidades rurais: a escola torna-se o
centro da comunidade. Por causa disto, alguns planejadores de comunidades
rurais sugerem que a extensão de prestação de serviços públicos em
Analfabeto35,7%
Sem escolaridade14,3%
1º Grau incompleto50,0%
94
comunidades rurais - postos de saúde, bibliotecas e prédios correlatos - sejam
construídos próximos à escola7.
A alfabetização funcional, segundo critérios da UNESCO, é definida como “o
domínio de habilidades em leitura, escrita, cálculos e ciências, em
correspondência a uma escolaridade mínima de quatro séries completas (antigo
ensino primário)”. Este tem sido o padrão médio de alcance educacional
apresentado pela população brasileira. Em Santana não é diferente. O Gráfico
16 mostra que a comunidade de Santana apresenta graus de escolaridade
significativamente baixos.
Padrão de vida material
É prática do IBGE usar, além dos níveis de renda, a oportunidade de
aquisição material como indicador de alcance social e de satisfação
socioeconômica. Embora saibamos que a simples notificação de posse de bens
materiais duráveis não seja suficiente para medir graus de qualidade e de
satisfação de vida, procuramos seguir este critério do IBGE e verificar os
desejos de consumo e os níveis de acesso a alguns bens materiais, pelos
moradores de Santana. Assim, foi citada uma lista de bens aos entrevistados, e
estes mencionavam aqueles bens que já possuíam ou aqueles que gostariam
de possuir conforme listagem apresentada no Gráfico 17.
7 CARNEIRO, Diniz e Marina Menezes. Organização da Comunidade e Planejamento. Livraria Agir, 3ª
edição, 1974.
95
Gráfico 17 – Acesso a bens materiais duráveis
4 2 .9 %
7 .2 %
3 8 .5 %
8 4 .6 %
1 0 0 %
1 0 0 %
5 7 .1 %
9 2 .8 %
3 0 .8 %
1 5 .8 %
Rá dio
Fogã o
Te le v is ã o
Ge la de ira
Fre e z e r
Te le fone
0 20 40 60 80 100 120
Pos s u i Nã o Pos s u , m a s gos ta ria de pos s u ir
Conforme Certeau8, com os processos globalizantes dos meios de
informação e comunicação, é possível que atualmente não haja uma
comunidade onde não se encontre uma pessoa que tenha reinventado o seu
cotidiano a partir do consumo de certos bens materiais. Pelo gráfico acima,
percebe-se as variáveis relativas à posse de bens materiais ou ao desejo de
possuí-los. Dos 69,2% que não possuem televisão, 38,5% gostariam de ter um
aparelho enquanto 30,7% disseram não achar importante tê-la em casa.
Evidente que o ideal de alcance material é muito subjetivo, porém, pode-se
diagnosticar os padrões de alcance material e de direitos ao consumo por um
mínimo de acesso possível.
D. Olga, uma das lideranças locais é considerada a pessoa melhor
informada da comunidade: tudo o que a comunidade quer saber sobre notícias
da cidade, novelas, entre outras, procura a D. Olga:
8 Op. Cit. Pg. 205, vol1.
96
“ Olha, pra mim a televisão é a melhor coisa que esses homens já
inventou. Eu tive uma preta e branca por muito tempo. Agora eu
tenho uma colorida. Juntei, juntei uns trocados, e aí comprei de
uma conhecida lá de Quatis. É usada, mas serve.
Problemas e demandas da Comunidade
Paralelamente à preocupação com os aspectos físicos e culturais das
comunidades tradicionais negras, procuramos com este trabalho perceber
outras questões transversais relacionados ao exercício pleno do direito de
cidadania.
A partir de uma escala utilizando as categorias, Muito Grave, Grave,
Pouco Grave e Sem Gravidade, procuramos, além de identificar, hierarquizar
os problemas apontados pela comunidade de Santana.
Gráfico 18 – Educação
Falta de professores adequados
Falta de material escolar
Falta de ensino fundamental
Falta de ensino médio
Falta de pré-escolar
Falta de creche
Falta de ensino profissionalizante
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Muito Grave Grave Pouco Grave Sem Gravidade
97
Mais de 80% dos entrevistados disseram que apenas o ensino fundamental
incompleto – a escola só ensina até à 4ª série - não atende aos anseios das famílias
que querem preparar os seus filhos para um futuro melhor. Assim, ter os cursos
fundamental e médio oferecidos a todos da comunidade e professores adequados à
cultura local são as principais reivindicações relacionadas à educação (Gráfico
18).
Gráfico 19 - Lazer
Falta de praças c/brinquedos
Falta de quadras de esportes
Falta de campo de futebol
Falta de locais p/ bailes
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Muito Grave Grave Pouco Grave Sem Gravidade
Quanto ao lazer, a comunidade sente necessidade de ter principalmente um
campo de futebol bem equipado (90%), um local para a realização de festas, bailes
e shows (80%), seguidos de uma praça com brinquedos para crianças e uma
quadra de esporte para os adolescentes (Gráfico 19).
Gráfico 20 – Saúde da Comunidade
Distância de hospitais
Falta de medicamentos
Falta de médicos na comunidade
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Muito Grave Grave
98
Segundo 90% dos entrevistados a distância dos hospitais e a absoluta
ausência de médicos constituem um problema muito grave na comunidade. A falta de
medicamentos é lembrada por 79,2% dos entrevistados como muito grave e por 6,3%
como grave (Gráfico 20). Se alguém adoece e necessita de cuidados médicos de
urgência só terá pronto-atendimento indo ao centro de Quatis ou Barra Mansa,
municípios que ficam distantes cerca de 1 hora de Santana.
Gráfico 21 – Doenças mais freqüentes:
Vermes entre crianças
Anemia
Doenças cardiacas
Diabetes
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Muito Grave Grave Pouco Grave Sem Gravidade
Penumonia e verme entre crianças, assim como anemia e doenças
cardíacas entre os adultos foram as doenças citadas como as mais freqüentes
na comunidade de Santana (Gráfico 21).
O entendimento do significado de justiça deve ir muito além do seu
sentido judicial. Desta forma, direitos iguais de acesso a oportunidades
socioeconômicas e melhores condições de vida fazem também parte da
dimensão ética do quw é justo e humano.
99
Os remanescentes de Santana não querem apenas garantir a sua propriedade e
guardar a memória do seu passado. Isto para eles é muito importante, mas, para além
disto, eles também querem ser incluídos nos processos de modernização e de
igualdade social através de melhorias da educação de seus membros, assistência à
saúde, e implantação de projetos de desenvolvimento sustentável e de geração de
renda e emprego dentro da comunidade.
Por outro lado, direitos humanos não significam simplesmente „assistência
social‟, mas, inclusão à sociedade com o estatuto de cidadão para todos.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As „remanescentes‟ comunidades negras no Brasil são reveladoras de uma
importante experiência da diáspora africana. Assim, comunidades negras como
Santana, têm engendrados no seu cotidiano pontos particulares da sua constituição
histórica que vão além da experiência escravista. A realidade destas comunidades
deve ser compreendida, então, a partir dos mecanismos de constituição e preservação
das suas existências, utilizados por seus membros. De que maneira o status de
patrimônio cultural tem afetado o dia-a-dia destas comunidades? Quais vantagens
elas têm tido com a medida constitucional de titulação?
A textura da vida cotidiana de Santana é ao mesmo tempo densa e leve. As
suas práticas coletivas diárias definem a densidade do cotidiano. Michel Certeau
distingue bem os significados entre estratégias e táticas1. Neste sentido, estratégias
são institucionais e necessitam de espaço. Já as táticas, são temporais e individuais;
podem operar livres de ideologias. Em Sant'Ana, práticas e táticas se confundem.
O contato com a comunidade nos permitiu observar as rotinas individuais e
coletivas, assim como as práticas e estratégias empregadas na arte da sobrevivência.
Hábitos, (des)esperança, alegrias, tristezas, e estratégias inventivas do dia-a-dia,
revelaram como os entrevistados negociam a vida cotidiana. Entre falas e atitudes, as
invenções efêmeras do cotidiano quilombola, revelam como as estratégias de
sobrevivência podem se transformar em arte de viver.
1 Op. Cit. Pg. 182. vol. 1
101
É na volta ao passado que estas comunidades têm tentado redimensionar o seu
futuro. Para isto, seus membros utilizam a origem histórica e o espaço territorial
como cenários de uma tradição cultural usada para atender a uma agenda política de
legitimação de direitos2.
Foi observado nesse trabalho que as lideranças de Santana têm consciência
de que as injustiças sofridas por seus antepassados não serão reparadas apenas pela
providência de uma igual distribuição do capital social e econômico, mas também,
pelo reconhecimento do capital cultural e simbólico que a distingue das demais
comunidades.
Como foi atestado por vários autores aqui apresentados, o conceito de
quilombo, preso a um entendimento jurídico do passado, não tem atendido
adequadamente à diversidade histórica de formação e organização das comunidades
negras rurais, congelando assim a identidade destas em um único conceito. Um
impedimento à aplicação da lei é o fato do significado desta está preso ao conceito de
quilombo tal como este era compreendido pela legislação colonial. É neste ponto que
encontramos a fragilidade da lei e a maior dificuldade para se efetivar a titulação
final de muitos territórios negros. Vale aqui lembrar Hall, quando este conclui que as
identidades são reconstruídas constantemente. Estas não são estáveis nem singulares.
Pelo contrário são múltiplas, fragmentadas, e se intercedem nos discursos, práticas e
posturas antagônicas3.
Um olhar sobre Santana, nos permitiu descobrir questões muito
interessantes. Uma delas foi perceber que o estudo sobre comunidades negras pode
2 Em Culturas Híbridas, Nestor Canclini analisa como através da evocação e dramatização do passado, muitas
culturas têm assegurado os seus direitos. SILVA, Valdélio Santos. “Rio das Rãs à luz da noção de quilombo”. Revista Afro-Ásia, 23(1999), pp.267-295.
3 (Hall, Gilroy,1993))
102
quebrar um tabu do imaginário político-social brasileiro de não admitir a
constituição de fronteiras étnicas negras na nossa sociedade. Santana, assim como
outras comunidades negras, mostram essa existente realidade.
Castells faz uma diferença entre o que ele classifica de identidade de
resistência e identidade de projeto. A primeira seria um tipo de identidade criada por
atores sociais para fazerem frente a condições de desvantagem em relação à cultura
dominante. A identidade de projeto por outro lado, seria aquela identidade criada por
atores sociais que utilizam qualquer material cultural para redefinir a sua posição na
sociedade. Pode-se dizer que a identidade quilombola atende às duas definições dadas
por Castells4. Motivadas por uma vontade política, essas comunidades têm
reconfigurado a dimensão dos estudos étnicos, permitindo assim novas compreensões
sociológicas do negro no Brasil.
4 CASTELLS, Castells, volII. O Poder da Identidade, Paz e Terra, 1997. pg. 189.
103
E N T R E V I S T A D O S
104
D. NAIR, 78.
“Essas histórias de quilombo quem sabia muito era
Candinho1. Eu não sei nada, o que eu falei é pouco. Só
ouvia muito ele contar. Mas o Candinho se foi. Mas
tem morrido é muita gente antiga daqui, sabe? Daqui
um dia sou eu. Mas eu gosto muito de viver aqui, sabe
„fia‟. Sou muito feliz aqui” (gargalhadas).
“Eu casei com 16 anos e nunca saí daqui. Eu boto fé
que aqui ainda vai voltar pro tempos de antigamente.
Muita comida, muita alegria! Quem sabe né, com esse negocio aí de terra, de
quilombo, a gente não volta ao que era antes. Alguém tem que pedir pra esses
fazendeiros tirar os bois do quintal da gente. Aí a gente pode plantar sossegado. Mas
quem vai falar...?! Eu queria mesmo era ver essa igreja bem bonita, pintada. Acho que
esse telhado vai cair daqui um dia na cabeça da gente. Onde nós vai rezar? Embaixo
da árvore né? (gargalhadas). Eu sou muito feliz aqui!
1 Marido falecido da D. Nair.
105
S. FRANCISCO, 80.
“Eu sou de Minas. Vim pra essas bandas de
cá em 20. Eu tinha 17 anos. A fazenda onde
eu trabalhava faliu e aí fiquei desempregado
lá em Minas. Eu tinha uns amigos que veio
pra cá plantar café e cana e diziam que aqui
era muito bom, que tinha uma terras de
escravos que era muito boa. Desde lá de
Minas que escutava falar disso aqui. Mas
nunca pensei que um dia eu ia ganhar um
pedaço de terra aqui. Tinha uma menina que
eu gostava. Ela tinha 13 anos, eu 17. Aí
resolvi vim pra cá trabalhar com meus
amigos. Falei com o pai dela, nos casemos e viemos pra Quatis, trabalhar na
fazenda do Ermo. Foi minha única mulher. Mas aqui era muito alegre! Era festa de
Santana, São João, Santo Antônio e a gente cantava e dançava jongo, cana verde,
calango a noite inteira. Eu trabalhava e morava na fazenda vizinha mas eu gostava
muito de vim aqui na terra dos escravos. Só foi lá em 1960 que eu vim aqui e pedi
um pedaço de terra pro padre Inácio e fiquei morando. Eu plantava muito. Ainda
planto hoje. Ttoda safra eu dava um saco de cada coisa que colhia pro padre. Era
café, laranja, banana, aipim. Eu plantava muito. Mas hoje só tem a festa de Santana
e a procissão de 1o. De Maio. Os mais velhos foi morrendo e os mais novo não têm
gosto com nada que foi da gente”.
106
MIGUEL, 37 (presidente da Assoc.Moradores).
“Cê sabe por que eu tô nessa luta
de titular as terras dos
quilombos? Só pensando nas
crianças daqui, nas minhas filhas.
Tenho 3. Essas terras é deles ,
ninguém é de tomar! Assim que
eu tiver oportunidade, eu vou
falar com alguém importante que
possa fazer algo por nós aqui. Eu
tenho vontade de arranjar um dinheiro, um bom dinheiro e comprar
dois trator aqui pra todo mundo. Adubo, semente. Essa terra é boa
pra café e feijão. É só plantar que cresce. Ninguém ia precisar mais
trabalhar na fazenda dos outros. Era cercar e plantar. Mas isso
inda vai acontecer, se Deus quiser!
107
ISAEL, 30, Vice-presidente da Associação.
“ Eu queira passar uns tempos fora daqui.
Já morei no Rio, lá em S. Gonçalo e gostei
muito. Foi lá que aprendi a ler. Chegava
do trabalho e ia pra uma escola de adultos.
Como eu gostava! Sei ler e sei escrever.
Aqui as crianças aprendem mais do que os
adultos por que têm escola. Se no tempo
de criança tivesse escola aqui, com certeza
hoje eu não estava desempregado. A minha
mulher me chama de preguiçoso porque eu
não quero trabalhar capinando aí nessas fazendas. Mas eu não quero mesm!
Eu queria ser auxiliar de escritório. Sentar numa mesa, escrever, fazer
cartas. Deve ser um trabalho muito bom! Eu gosto daqui, mas acho que sou
mesmo é gente de cidade grande. Gosto de ver aquela gente toda andando
pra lá e pra cá!”
108
D. OLGA, 49.
“Eu não gosto dessa briga por causa de
terra! Dá sempre confusão feia. Tenho
muito medo porque meu irmão tá metido
nisso aí. Que adiant? Fica todo mundo
desempregado. Na minha casa meus filhos
tá tudo trabalhando. Sabe por que?. Eu
considero todo mundo aqui. O Walter aqui
da fazenda vizinha, se tiver alguém doente
aqui e eu chamar a qualquer hora da noite
ele vem e leva pra Quatis. Por isso que eu não quero arrumar confusão. Quem
sai perdendo é nós mesmos. O Miguel não arranja nem pra capinar... tem
mulher e filho!. O Isael também. Eu pra mim cada um ficava com seu lote e
deixava o resto pra lá. Eu não quero briga porque quando a gente precisa, não
aparece ninguem da cidade não, são os vizinhos daqui mesmo que ajuda a
gente”.
109
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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