entre parteiras, afetos e museus: uma narrativa …
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ENTRE PARTEIRAS, AFETOS E MUSEUS: UMA NARRATIVA ACERCA
DA EXPERIÊNCIA COM O MUSEU DA PARTEIRA
Elaine Müller1
Júlia Morim2
Resumo: Neste trabalho, relatamos nossa experiência com o processo de
patrimonialização/musealização do ofício de parteira tradicional no Brasil. Desde 2008, estamos
envolvidas em atividades de pesquisa e de promoção da salvaguarda dos saberes e práticas das
parteiras tradicionais de Pernambuco, promovendo a aproximação entre parteiras e as políticas
públicas culturais, a exemplo do uso do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) e o
pedido de reconhecimento do ofício como Patrimônio Cultural do Brasil. Também estão em curso
ações de documentação e valorização de suas histórias, como a produção da biografia de três
parteiras mestras do Estado e de um curta documentário acerca da constante construção de saberes
de D. Prazeres. Destacamos as dificuldades na percepção, pelo poder público, do lugar ocupado
pelas parteiras tradicionais (entre saúde e cultura); o processo criativo sugerido pelas parteiras para
valorização de seu ofício, como a realização de um Museu da Parteira; a recepção dessa proposta
por agentes do campo museal e as desconstruções promovidas por este projeto (tanto com relação a
gênero quanto em questões técnicas de expografia); os afetos envolvidos em todas as atividades,
que necessitam de uma adequada abordagem teórica. A experiência com a exposição “Museu da
Parteira: acolhimento, resistência, visibilidade”, cujo conceito contempla várias destas questões,
será acionada neste trabalho como o fio condutor de uma narrativa intimista de uma experiência
coletiva.
Palavras-chave: Parteiras Tradicionais. Museu da Parteira. Musealização e Patrimonialização.
Gênero. Afetos.
Introdução
Na montagem da exposição Museu da Parteira: acolhimento, resistência, visibilidade,
Zefinha, parteira de Caruaru (PE), escolhe e enlaça as fitas que seguram a cortina rendada. No
vídeo-convite para a abertura da exposição, ela revela animada: “Nós, parteiras, não temos medo de
nada”. Ao encontrar a comadre Prazeres, parteira de Jaboatão dos Guararapes (PE), elas se abraçam
alegres e contam como se conheceram: nos encontros de parteiras tradicionais de Pernambuco, nos
anos 1990. As duas percorrem a exposição, sugerindo mudanças ou incorporação de objetos:
1 Doutora em Antropologia. Professora Adjunta do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Líder do Grupo de Pesquisa Narrativas do Nascer (DAM/UFPE). Integra a equipe que
vem desenvolvendo o projeto Museu da Parteira. Recife, Pernambuco, Brasil. 2 Mestre em Antropologia pela UFPE. Colaboradora do Instituto Nômades. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa
Narrativas do Nascer (DAM/UFPE). Integra a equipe que vem desenvolvendo o projeto Museu da Parteira.Recife,
Pernambuco, Brasil.
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Prazeres diz que falta a colônia e outras ervas, as quais ela trará no dia da abertura; Zefinha
recomenda a marca de manteiga que deveríamos comprar para deixar perto do café e nos explica
como usa cada objeto, em meio a histórias de seus atendimentos, se mostrando uma excelente
mediadora de um espaço museal.
A dupla nos conta como surgiu a ideia do Museu da Parteira: “Ô Prazeres, Luiz Gonzaga é
mais novo que as parteiras e tem um museu. Por que as parteiras não têm um museu?”. “As
parteiras precisam de um museu” foi a ideia que tiveram após uma conversa no final de 2011 ou
início de 2012. A exposição nos era muito estimada por nos rememorar vários momentos
vivenciados pela equipe curatorial com as parteiras. Havia muito de cada um de nós ou de nossa
relação com as parteiras, seja em nossos acervos, seja em nossas memórias. Estávamos, e estamos,
vivenciando um processo participativo de valorização cultural a partir do ideário de políticas
públicas patrimoniais, um processo de patrimonialização e musealização, mas, também, ou
primeiramente, vivenciando processos afetivos importantes em nossas trajetórias que foram
valorizados na exposição.
Neste trabalho, iremos contar um pouco deste processo e da forma como o temos
vivenciado, enquanto antropólogas, mulheres, mães que pariram seus filhos com parteiras e
profissionais que redimensionaram seus interesses de trabalho após este contato com o universo da
parturição. Acreditamos que o projeto ao qual estamos vinculadas, o Museu da Parteira, promove
importantes desconstruções para os campos da Antropologia e da Museologia, entre ativismo e
pesquisa, (re)construindo novas narrativas etnográficas, expográficas e imagéticas. Nosso convite é
o mesmo de Zefinha, no vídeo lançado antes da abertura da exposição: “Venha conhecer o Museu
da Parteira”, pois se as parteiras precisam de um museu, acreditamos que os museus também
precisam do que temos aprendido com elas.
Acolhimento, resistência, visibilidade: nós e as parteiras
Um trabalho amplo de documentação, valorização e salvaguarda do ofício da Parteira
Tradicional teve início com a realização de dois Inventarios Nacionais de Referencias Culturais
(INRC) - metodologia de pesquisa do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
para produção de conhecimento sobre o patrimônio imaterial - sobre saberes e praticas das parteiras
tradicionais e das parteiras indigenas de Pernambuco. Os inventários foram realizados em 6 (seis)
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municípios e 3 (três) etnias indígenas do estado de Pernambuco, durante os anos 2008 e 2010,
período que em foram localizadas e entrevistadas 225 (duzentas e vinte e cinco) parteiras
(INSTITUTO NÔMADES, 2010; INSTITUTO NÔMADES, 2011). O mote para o início de um
inventário sobre o ofício de parteira partiu de um pedido de Maria Prazeres de Souza, uma “mestra”
reconhecida e renomada em seu meio, ao Instituto Nômades para que escrevesse um livro sobre a
sua vida. A ideia foi amadurecida pela organização, que optou por tentar conhecer o universo das
parteiras tradicionais do estado, ou seja, identificar quem são, onde vivem e como realizam o seu
ofício.
Durante os INRCs, como apoio e complemento ao registro escrito e oral, foi realizado o
registro fotográfico do cotidiano das parteiras: sua casa, sua vizinhança, seus caminhos, seus
animais, sua religiosidade, suas práticas. Comum na realização deste tipo de pesquisa, o registro
fotográfico realizado nestes dois inventários se constituiu como um trabalho autoral e meticuloso,
no qual o fotógrafo Eduardo Queiroga não se limitou a registrar o que as pesquisadoras
consideravam importante ser documentado. Queiroga faz uma pesquisa fotográfica, que diz muito
sobre o universo das parteiras tradicionais.
Estes elementos - os dados coletados e produzidos durante os inventários, o trabalho
fotográfico e o processo criativo trazido pelas parteiras - foram fundamentais para o início de um
processo de patrimonialização e de musealização do ofício de parteira tradicional no Brasil.
Sabemos do impacto de instrumentos de politicas culturais como o INRC. Em comparacao com
metodologias historicamente utilizadas para a preservacao do patrimonio cultural de pedra e cal,
quando trabalhamos com o patrimonio imaterial buscamos o contato direto com os chamados
“detentores” destes “bens culturais”. Uma vez realizado um INRC, o contexto deste bem cultural
nao sera mais o mesmo. Neste caso, as parteiras foram identificadas, entrevistadas, fotografadas,
iniciando-se um processo de patrimonialização do ofício. Por um lado, o simples fato de conceder
uma entrevista a pesquisadoras que se interessam sobre seus saberes e suas praticas ja levanta uma
serie de expectativas de melhoria de suas condicoes de vida e de trabalho. Por outro, faz com que
elas percebam seu lugar e sua importancia para a sociedade, fomentando, além dos seus saberes e de
suas práticas, um processo criativo a eles relacionado.
Por se mostrar um bem cultural tão vivo e relacionado a tantas práticas que estão no nosso
cotidiano, e ao mesmo tempo por ser um saber em situação de fragilidade, dada a idade da maioria
das parteiras e a parca transmissão dos saberes para as novas gerações, foi encaminhado ao Iphan o
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pedido de Registro dos Saberes e Praticas das Parteiras Tradicionais do Brasil como Patrimonio
Cultural do Brasil - principal instrumento de reconhecimento do valor patrimonial dos bens
culturais de natureza imaterial. A solicitação foi assinada pelas Associação de Parteiras Tradicionais
de Caruaru, Associação de Parteiras Tradicionais e Hospitalares de Jaboatão dos Guararapes,
Instituto Nômades e Grupo Curumim. Apesar do vasto material levantado e apresentando pelo
Instituto Nômades e o atendimento aos critérios estabelecidos para o Registro, o pedido foi
indeferido em primeira instância, ou seja, a Câmara de Patrimônio Imaterial do Conselho de
Patrimônio considerou impertinente o reconhecimento deste bem por meio do Registro. A
deliberação foi a seguinte:
“Deliberação: Tendo em vista a grande interface com a área da saúde pública e as práticas
médicas, considerou-se que o Registro não é o instrumento mais adequado para
salvaguardar essa prática e esses saberes. Contudo, devido à importância desse saber, seu
enraizamento em diversas comunidades brasileiras e continuidade histórica, recomenda-se
que sejam realizados inventários em outras regiões do país para adensar as documentações
sobre esse conhecimento e se realize articulações institucionais como forma de valorizar
esse saber. Recomenda-se ainda que sejam realizados estudos juntamente com a área
médica sobre exercício profissional das parteiras e para levantamento de dados a fim de
subsidiar propostas de políticas públicas conjuntas.” ( IPHAN. Nota Técnica no 15/2016
COREG/CGIR/DPI).
Trazemos a resposta dada pelo Iphan pois ela nos fala muito sobre o lugar da parteria
tradicional nas políticas públicas brasileiras. Embora exista já há algumas décadas, no âmbito do
Ministério da Saúde, um programa voltado para atuação junto a parteiras tradicionais, hoje
denominado de Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais, não conseguimos identificar
ações de valorização de seus saberes em seus próprios termos. Existem trabalhos, muito sérios e
comprometidos, certamente, que levam conhecimentos da biomedicina para as parteiras
tradicionais, principalmente no que concerne a assepsia e a identificação de possíveis riscos inerente
ao parir e nascer, muitas vezes diferentes daqueles partilhados entre as parteiras. O modelo ainda
parte da perspectiva de que as parteiras são um “mal necessário”, o qual é necessário disciplinar,
observar e capacitar para a redução de danos. Não temos conhecimento de ações consolidadas que
façam o trajeto contrário, de levar os saberes das parteiras tradicionais para equipes de assistência
obstétrica - salvo casos de sensibilização desses profissionais e raros convites pontuais para
participação em capacitações de parteria urbana, ou seja, no âmbito de uma assistência dentro do
paradigma da humanização do parto -, como foco principal.
Em outra oportunidade (MORIM, MÜLLER e GAYOSO, 2013), identificamos aqui o
caráter de resistência do ofício de parteira tradicional no Brasil. Por um lado, são percebidas de
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maneira por demais folclorizada para que possam integrar o sistema de saúde. Por outro lado, por
possuírem “grande interface com a área da saúde pública e as práticas médicas”, não acessam
plenamente as políticas culturais.
Em abril de 2016 o pedido de Registro foi novamente analisado e reconhecido como
pertinente, dando início, assim, ao processo de instrução. A revisão do requerimento se deu por
meio de pressão política, notadamente por parte da Deputada Federal Janete Capiberibe que
encaminhou ao Ministério da Cultura a Indicacao nº 1.149/2015 sugerindo o reconhecimento desses
saberes. Em nova avaliação, a Coordenação de Registro, do Departamento do Patrimônio Imaterial
(DPI), responsável por este tipo de processo, emitiu novamente uma Nota Técnica favorável (Nota
Tecnica no 15/2016 COREG/CGIR/DPI) ao Registro, desta vez reforçando que
"cabe ao Iphan avaliar os saberes e praticas das parteiras tradicionais a partir de uma
perspectiva horizontal e se ater a suas caracteristicas culturais e de eficacia simbolica (para
usar outro conceito de Levi-Strauss), pois sao nestes aspectos que residem os valores
patrimoniais. Discordamos do posicionamento que a questao das parteiras e eminentemente
de saude publica, pois se trata tambem de sistema de valores, visao de mundo e praticas
culturais dessas comunidades brasileiras tao disseminadas por todo o territorio nacional.”
A relação entre os campos da biomedicina e da tradição, na assistência ao parto, continua
sendo fator importante e frequente nas atividades realizadas com as parteiras. É evidente como a
leitura mais comum que se faz sobre os eventos do parto e do nascimento é moldada pela
perspectiva biomédica (o parto torna-se, em nossa sociedade, um ato médico, e é importante refletir
sobre as possibilidades de diversidade relacionadas a estes eventos). Quando questionadas sobre
seus saberes e suas práticas, as parteiras relatam a assistência que prestam às mulheres, muitas
vezes sendo elas as cuidadoras principais das mulheres no pré e no pós parto, complementando ou
resolvendo demandas não atendidas pelo sistema oficial de saúde. As parteiras percebem-se como
tendo importância e acreditamos que este fortalecimento de sua auto-estima e que fez com que nos
procurassem, após a realização dos INRCs, para falar em um Museu da Parteira. Afinal, quem e
digno de estar num museu, se nao quem tem alguma importancia?
Isso foi o que nos impulsionou a apresentar, no ano de 2012, uma proposta de ação no edital
do Programa de Extensao Universitaria – Proext Mec/Sesu 2012/2013. O Programa de Extensão
Museu da Parteira3 foi aprovado, porém uma série de dificuldades de ordem burocrática para as
3 A equipe principal era múltipla compreendendo integrantes universidade (Elaine Müller), organizações não
governamentais (Daniella Gayoso, Júlia Morim e Paula Viana), associações de parteiras (Maria dos Prazeres de Souza
e Josefa Alves de Carvalho) e pesquisadores (Eduardo Queiroga).
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contratações, e, por fim, a morosidade na aprovação dos processos licitatórios pela Procuradoria
Federal da UFPE, não permitiu que fosse implementado como o planejado. O Museu da Parteira se
alinha às politicas publicas culturais para salvaguarda do patrimonio imaterial e propõe ser um
centro de referencia e de convergencia de inumeros projetos para salvaguardar este bem cultural,
concebidos a partir de ideias das parteiras e gerido por elas quando implementado4. A ideia era
também articular o dialogo entre saberes tradicionais e academicos, propondo uma dinamizacao do
ensino e da pesquisa na universidade, incorporando saberes tradicionais que são significativos para
muitos processos culturais. Ou seja, assumíamos que a maneira mais adequada de salvaguardar
estes saberes e praticas precisa ser encontrada nas falas e anseios das proprias parteiras. Quando
elas nos falam da criacao de um museu, estao nos apontando para um caminho possivel.
Embora não tenhamos realizado os seminários e vivências previstos no projeto inicial do
Programa de Extensão Museu da Parteira, foi na realização parcial de suas atividades que alguns
aspectos ficaram mais nítidos para a equipe: a busca de referenciais teóricos e metodológicos a
partir das discussões sobre museus comunitários; a importância de se valorizar as trajetórias de vida
de parteiras mestras, para que repassassem seu ofício para novas gerações; a necessidade de
comunicar sobre como trabalham as parteiras e como outros países tem valorizado o trabalho de
parteiras tradicionais são alguns exemplos. Iniciávamos, assim, um processo de musealização, que
ampliava a perspectiva colocada pela patrimonialização, uma vez que se tratam de processos de
difícil separação. A entrada de uma discussão sobre museu, no entanto, refletiria mais tarde em
importantes desconstruções e abertura para uma série de atividades comunicativas e educativas
possíveis de serem realizadas junto às parteiras.
Muitos desdobramentos destes INRCs ocorreram nestes processos de patrimonialização e
musealização, incluindo o interesse, por parteiras tradicionais de Pernambuco, pelo edital de
Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco, formalizando suas inscrições em pelo menos duas
ocasiões. O material e as informações provenientes da realização dos INRCs foram retornados às
4 A proposta do Programa de Extensão Museu da Parteira envolvia várias ações de fomento ao ofício, através do
fortalecimento das redes de parteiras, a difusão dos saberes com a realização de um vídeo documentário e atividades no
âmbito da academia. Quanto ao museu propriamente dito, a proposta era a construção de um projeto participativo, com
a realização de rodas de diálogos sobre temas como patrimônio imaterial, acervos, documentação, exposições, o que
permitiria a construção de um plano museológico a partir das proposições das parteiras. Ou seja, não havia a proposição
de uma tipologia específica de museu e sua implementação seria uma etapa seguinte.
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parteiras e parcialmente difundido para a sociedade por meio de um site5. Como uma ação de
valorização, bem como de devolução, uma exposição fotográfica itinerante intitulada Parteiras, um
mundo pelas mãos6, retornou aos locais onde a pesquisa foi feita, passando por sete localidades de
Pernambuco entre os anos de 2013 e 2016. Na exposição buscou-se a valorização de elementos da
estética própria das casas das parteiras. Todo o projeto fotográfico deixa bem evidente o uso de
“panos” tanto no ofício quanto nas casas das parteiras. Assim, foi montado um varal em praça
pública com grandes fotos impressas em tecido, que se destacaram nos locais públicos de exibição,
chamando a atenção dos transeuntes, que paravam e se envolviam de maneira inesperada com as
fotografias, superando as expectativas iniciais. A exposição alcançou desde estudantes do ensino
fundamental e do ensino médio até públicos mais especializados em encontros de fotografia e
conferências universitárias.
Outro desdobramento está sendo a escrita das biografias de três parteiras bastante
referenciadas por seus pares e com trajetórias bastante inspiradoras. O projeto Mães de Umbigo é
uma pesquisa biográfica com as parteiras Maria dos Prazeres de Souza (Prazeres), Josefa Alves de
Carvalho (Zefinha) e Maria das Dores da Silva (Dora), cujo resultado será publicado em livro. Mais
uma vez, foi dos anseios das próprias parteiras que se partiu para uma proposição de valorização de
seu ofício, pois o embrião do projeto vem do desejo das parteiras de ter suas histórias registradas.
Ainda em torno de biografias de "mestras" parteiras, foi lançado o curta documentário
Simbiose sobre a parteira Maria dos Prazeres de Souza, personagem que, como pode ser percebido,
tem sido a principal interlocutora e inspiradora das ações que constituem o Museu da Parteira.
Ao longo destas ações, percebemos que o Museu da Parteira já estava acontecendo. Não
como um projeto datado, com final previsto e produtos (o plano museológico e novos projetos) a
serem entregues junto com a formalização de relatórios técnicos, mas como uma relação
compartilhada com as parteiras, que as envolve nos processos de patrimonialização e musealização,
as informa sobre os sentidos e possibilidades das políticas públicas culturais e, com elas, prepara os
passos seguintes a serem dados.
Uma marca foi criada para o Museu da Parteira, formada com a imagem de duas mãos, algo
muito significativo para estes saberes femininos: parteiras tem “olhos” nas mãos, as utilizam para
5 Disponível em www.institutonomades.org.br/parteiras 6 Disponível em www.institutonomades.org.be/expo_parteiras
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conhecer e apoiar as mulheres em seus ciclos reprodutivos. Apontamos que as parteiras tradicionais
tem uma história de resistência, que podemos perceber também nas trajetórias particulares de
mulheres fortes que são referências em suas comunidades não apenas pelo ofício de partejar, mas,
para usar a expressão trazida por Prazeres, por uma simbiose entre diversos papéis (são mães,
agentes comunitárias/de saúde, rezadeiras, mediadoras de conflitos, cuidadoras…). A lógica que
embasa o ofício destas mulheres nos parece ser a do acolhimento e da dádiva. Parteiras “ajudam”
mulheres a terem seus filhos e o fazem por eleição divina através de um dom que trazem consigo,
não por uma relação monetária. Parteiras acolhem não apenas no momento de parto, mas sempre
que podem auxiliar quem procura por ajuda. Estes aspectos nortearam a curadoria de uma
exposição que comunica sobre o trabalho das parteiras e conta um pouco sobre os processos de
musealização e patrimonialização do ofício.
O Museu da Parteira no Museu do Homem do Nordeste: os museus precisam das parteiras!
Entre novembro de 2016 e abril de 2017, o Museu do Homem do Nordeste (MuHNE)
recebeu a exposição temporária “Museu da Parteira: acolhimento, resistência, visibilidade”. Esta foi
uma oportunidade muito especial para a equipe de curadoria7 apresentar e discutir os inventários, as
exposições, o processo de Registro do ofício de parteira tradicional como Patrimônio Cultural do
Brasil, os objetos e as práticas das parteiras e suas relações com as políticas públicas. Além disso,
cada curador mantém um tipo de relação com as parteiras, são comadres, pesquisadoras, fotógrafo.
Pensamos num conceito que sintetizasse um pouco do que temos aprendido e vivenciado com as
parteiras, conforme pontuamos no texto curatorial:
Acolhimento, Resistência e Visibilidade dizem respeito ao universo do partejar como
percebido pelas parteiras tradicionais, pautado na dádiva, seja enquanto dom divino, seja
enquanto algo que se dá e se recebe. Também diz respeito ao que lhes tem sido negado, a
despeito de sua relevância, e ao que buscamos revelar sobre as parteiras tradicionais.
A expografia remetia à casa de uma parteira, com um sofá coberto por lençol, flores, santos,
certificados, fotografias, ervas (que exalavam cheiros). Os objetos de trabalho foram expostos em
uma vitrine de vidro. Nas paredes haviam as fotografias de Eduardo Queiroga, bolsas de cursos de
capacitação, frases das parteiras, a oração de Santa Margarida. No exterior da exposição, em frente
7 A curadoria foi compartilhada entre Elaine Müller, Júlia Morim, Dan Gayoso, Paula Viana e Eduardo Queiroga.
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a uma parede de vidro, foi montado um jardim da parteira, com plantas medicinais e ornamentais
comuns nos quintais de Pernambuco. O processo curatorial representou uma oportunidade de lidar
com narrativas e significados, e, tal qual em nossos trabalhos como antropólogas e fotógrafo, criar
novas narrativas e significados. Diferentemente de algumas expectativas que percebemos serem
geradas quanto a nossa atuação como antropólogas que estudam o campo do parto e do nascimento,
no entanto, nossa atuação junto ao Museu da Parteira se dá de um lugar no qual não existe
neutralidade. Estamos imersas em ações feitas em conjunto, por vezes nos sentimos como
facilitadoras, por outras como tradutoras (quando temos que sistematizar tardes inteiras de
conversas que parecem ser pouco pragmáticas).
Foi nesta perspectiva que tentamos construir, no projeto expográfico, também um pouco da
estética comum às casas das parteiras, o que não deixou de ser percebido como a “desconstrução”
de algumas “regras de ouro” da expografia, como o rebaixamento da altura das fotografias, o
desalinhamento de quadros que compunham uma sala de estar de uma casa popular.
Mas as desconstruções promovidas, as que levamos intencionalmente, eram, antes, de outra
ordem: o Museu do Homem do Nordeste é um museu tradicional, herdeiro do legado de Gilberto
Freyre no pensamento sobre a formação de uma identidade nordestina. E se trata, de fato, de um
Museu do Homem, no qual as mulheres aparecem de maneira secundária, subentendidas ou mesmo
invisibilizadas. A presença das parteiras no MuHNE, as suas narrativas, contadas tanto na exposição
como nas ações educativas e no seminário promovido ao final da mostra, por si só, representavam
uma abertura muito significativa para o universo feminino e discussões de gênero. Gostaríamos de
ressaltar ainda o potencial de um Museu da Parteira enquanto iniciativa museológica genderizada,
que dinamiza os sujeitos que se representam e são representados, no caso, um museu que revela
processos historicamente construídos como sendo do universo das mulheres e que são geralmente
deixados em segundo plano nos museus. Não se trata de pensar apenas na entrada das mulheres em
museus, mas de construir perspectivas que incorporem os processos femininos enquanto relevantes
para contar nossa história, para estimular novos olhares sobre as trajetórias individuais e processos
histórico-culturais.
A presença das parteiras no MuHNE também é significativa pelas mudanças e reflexões que
podem promover na percepção acerca do parto e do nascimento, ou seja, para além dos saberes
biomédicos. A explicação dada por Zefinha, em sua fala no Seminário, quando explica com leveza e
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descomplicação como se atende um parto pélvico8, é um exemplo disto, mas também as
recomendações sobre a alimentação saudável para a mulher gestante, feita por Edileuza, e várias
narrativas contadas quando as parteiras mediaram a exposição.
Vale ressaltar que os museus possuem um potencial para a informação e comunicação, e
consequentemente a construção de novos olhares sobre o ofício da parteira (PALHARINI, 2015). O
museu é um espaço de construção de proximidade com o público, que permite o reconhecimento de
elementos compartilhados com as parteiras tradicionais. Neste sentido, foi importante a exposição
dos objetos que compõem a bolsa da parteira, que comunicavam sobre práticas que existem e
resistem no tempo, que não são memória de um tempo passado. Boa parte do público entrava na
exposição julgando se tratar de um retrato de como as parteiras atuavam na assistência ao parto, e
saíam conhecendo um pouco de políticas públicas, de saberes, de práticas, e, não raro, pedindo o
número do telefone de alguma parteira.
Ao final do período de visitação da exposição, o MuHNE, no âmbito do Seminário
Memória, Museologia e Patrimônio, organizou o Seminário "Parteiras tradicionais em
Pernambuco: patrimônio, memória, salvaguarda e o papel dos museus", aberto ao público, com a
participação de parteiras, as autoras deste trabalho, uma representante do Iphan, que falou sobre o
processo de registro, e de uma pesquisadora com tese de doutorado sobre o potencial dos museus na
educação e comunicação sobre o parto e o nascimento. Também foi realizada uma roda de conversa
com as parteiras, na qual discutimos a criação de um Grupo de Trabalho permanente do Museu da
Parteira e a montagem seguinte da exposição, no Museu da Abolição.
A montagem da exposição no Museu da Abolição pode ser feita de maneira ainda mais
inclusiva, com a realização de uma oficina de expografia participativa, na qual se decidiu o conceito
e o projeto expográfico da mostra. A exposição “Museu da Parteira: saberes e práticas”, aberta em 4
de maio de 2017, está em curso e contou com a realização de atividades na Semana Nacional dos
Museus, que trazia como tema “Dizer o indizível nos museus”. Parteiras que não haviam sido
apresentadas adequadamente no Muhne puderam ter suas fotografias expostas e são interlocutoras
preferenciais em atividades educativas, levando, por exemplo, seus saberes e práticas relacionados
ao uso de ervas e de rezas na promoção da saúde. A metodologia foi aprovada pelas pessoas
8 Quando o bebê está sentado e nasce pelos pés ou pelas nádegas.
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envolvidas, e a ideia atual é replicá-la em Caruaru, levando o Museu da Parteira para a cidade de
Zefinha.
Considerações finais
Tentamos brevemente relatar nossa inserção num projeto que permeia os campos da
Antropologia, da Museologia, da Fotografia e do Audiovisual, no qual estamos imersas num
processo criativo que parte, em boa medida, de ideias trazidas pelas parteiras com as quais
trabalhamos.
Destacamos, neste breve trabalho, as dificuldades na percepção, pelo poder público, do lugar
ocupado pelas parteiras tradicionais (entre saúde e cultura); o processo criativo sugerido pelas
parteiras para valorização de seu ofício, como a realização de um Museu da Parteira; a recepção
dessa proposta por agentes do campo museal e as desconstruções promovidas por este projeto (tanto
com relação a gênero quanto em questões técnicas de expografia); e os afetos envolvidos em todas
as atividades que vêm sendo realizadas no âmbito do Museu da Parteira.
Gostaríamos de encerrar enfatizando a dimensão dos afetos. Ela está presente no
intercruzamento de nossas memórias com as das parteiras (com nossas experiências de partos
domiciliares, com atividades profissionais que realizamos tendo as parteiras como interlocutoras ou
parceiras). Os afetos se relacionam aos objetos pessoais que levamos para a exposição, às plantas
que cultivamos para a montagem do jardim (com plantas que já nos foram recomendadas ou doadas
pelas parteiras para que as cultivássemos em nossos quintais). Os afetos estão envolvidos no
tratamento por “comadre”, que se concretizou em algum momento deste processo.
Acreditamos que reside aqui outro potencial do processo: o de construção de um referencial
teórico que reflita sobre os afetos e suas implicações nos saberes e técnicas museológicas.
"Finalmente, chegamos a uma nova declaracao, a “Declaracao do Rio”, aprovada na XV
Conferencia Internacional do MINOM, em 2013, que defende uma nova museologia com
base nos afetos, na formacao de narrativas construidas pelos protagonistas, nos museus
como processos politicos, poeticos e pedagogicos que sejam simultaneamente protagonistas
e cenarios de construcao de memorias e de sonhos que levam a reconstrucao da realidade. "
(LEITE, 2014:205).
Referências
INSTITUTO NOMADES. Relatorio Final do Inventario dos Saberes e Praticas das Parteiras
Indigenas de Pernambuco. Recife, 2010.
12
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_____________________. Relatorio Final do Inventario dos Saberes e Praticas das Parteiras
Tradicionais de Pernambuco. Recife, 2011.
_____________________. Parteiras - um mundo pelas mãos. Catálogo de Exposição. Recife, 2013.
IPHAN. Patrimônio Cultural Imaterial: para saber mais. 3 ed. Brasília: Iphan, 2012.
______> Nota Técnica no 15/2016 COREG/CGIR/DPI. Assunto: Registro dos Saberes e Práticas
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Between midwives, affections and museums: a narrative about the experience of the Midwife
Museum
Astract: In this work, we present what we have experienced in the process of
patrimonialization/museolisation of the traditional midwife profession in Brazil. Since 2008 we
have been involved in research activities as well as in promoting the safeguard of traditional
midwives’ or midwife’s knowledge and practice in Pernambuco, establishing a dialog between
midwives and cultural public policies by adopting the methodology of the National Inventory
Cultural References (INRC) and by requesting recognition of the occupation as a Brazilian Cultural
Heritage. Also in progress projects which aim at documenting their stories as women who help
other women: a biography of three midwives from Pernambuco and a short documentary about
Prazeres, a midwife from Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco and her on going knowledge. We
highlight the difficulty public agencies have in taking notice of the position these midwives occupy
in society (between Health and Culture); further more, suggested by the midwives to promote their
trade, a creation of a “Midwife Museum"; the way this suggestion has been seen by people in
museum field and the deconstruction involved (regarding gender and technical matters of
expography); the affections involved in all activities which need an adequate theoretical approach.
The experience with the exposition “Midwife Museum: acceptance, resistance, visibility”, whose
concept embraces many of theses issues, will be used in this work to guide an intimist narrative of a
collective experience.
Keywords: Midwife Museum. Traditional Midwife. Patrimonialization e Museolisation. Gender.
Affections.