elementos apolíneos e dionisíacos no pensamento de cornelius castoriadis

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Elementos apolíneos e dionisíacos no pensamento de Cornelius Castoriadis. Luiz Roberto Zanotti O objetivo desse trabalho é o de relacionar a importância do pensamento de Cornelius Castoriadis, tendo como contraponto os pressupostos do que chamaremos de uma filosofia “ante-racional”, uma filosofia que está baseada principalmente nas profundas mudanças que ocorreram com o abandono daquilo que se classificava como uma filosofia da consciência e da unidade do indivíduo que está presente tanto no pensamento, quanto no de René Descartes. A contrapartida à esse excesso de “racionalidade” vai aparecer através de uma meta-estética e ética elaborada principalmente por uma nova geração de franceses (Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Serres, Jean-Luc Nancy, Michael Focaut e Jean-François Lyotard, entre outros) que vão ampliar e deslocar a exploração para uma linha de uma outra “consciência” onde aparece a voz do ante-racional, do ante- predicativo de Merleau-Ponty e Sartre, mas sobretudo a forte influência de Nietzsche. A partir principalmente de Nietzsche, os pensadores franceses vão elaborar uma filosofia do sentido, do corpo, dos fenômenos indissociavelmente ontológico-estéticos, esvaziando os rastros da filosofia da consciência e 1

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Page 1: Elementos apolíneos e dionisíacos no pensamento de Cornelius Castoriadis

Elementos apolíneos e dionisíacos no pensamento de Cornelius Castoriadis.

Luiz Roberto Zanotti

O objetivo desse trabalho é o de relacionar a importância do pensamento de

Cornelius Castoriadis, tendo como contraponto os pressupostos do que chamaremos de uma

filosofia “ante-racional”, uma filosofia que está baseada principalmente nas profundas

mudanças que ocorreram com o abandono daquilo que se classificava como uma filosofia

da consciência e da unidade do indivíduo que está presente tanto no pensamento, quanto no

de René Descartes.

A contrapartida à esse excesso de “racionalidade” vai aparecer através de uma meta-

estética e ética elaborada principalmente por uma nova geração de franceses (Jacques

Derrida, Gilles Deleuze, Michel Serres, Jean-Luc Nancy, Michael Focaut e Jean-François

Lyotard, entre outros) que vão ampliar e deslocar a exploração para uma linha de uma outra

“consciência” onde aparece a voz do ante-racional, do ante-predicativo de Merleau-Ponty e

Sartre, mas sobretudo a forte influência de Nietzsche.

A partir principalmente de Nietzsche, os pensadores franceses vão elaborar uma

filosofia do sentido, do corpo, dos fenômenos indissociavelmente ontológico-estéticos,

esvaziando os rastros da filosofia da consciência e estabelecer os termos complexos de uma

forma de geologia conceitual. Essa filosofia fundamentada no pensamento na experiência e

na tese do cogito, numa filosofia que Nietzsche no Livro do filosofo, sublinha que nunca

pode escapar de seus fundamentos no ser sensível.

Derrida termina o seu ensaio “Força e Significação”, presente em A escritura e a

diferença, afirmando que a história só pode encontrar alguma abertura com a eliminação

das “oposições” estruturalistas, e pela adoção das pulsões apolíneas e dionisíacas que se

articulam em O Nascimento da Tragédia. Para ele, é nessa articulação entre Forma

(Gestalt) e Força (da energia, da dissolução), energeia versus egon, que encontramos a

possibilidade de obtermos uma nova abertura para o sentido da história, porque o fenômeno

da formatação e da consolidação nocional é sempre-já condicionado por e condicionador de

um fluxo vital que o atravessa inelutavelmente. A tarefa da desconstrução das simples

“oposições” estruturalistas é fazer com que se elimine a possibilidade de uma “verdade

prévia” do significado. Parece que Castoriadis ao negar a possibilidade de significados pré-

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determinados, vai, de uma forma semelhante à Derrida, realizar uma desconstrução do

pensamento herdado.

Assim, para lançar algumas questões e reflexões a respeito desse movimento que

percebe que a excessiva racionalidade acaba por obstruir e velar a existência humana e que,

de certa maneira, parece também estar presente na obra de Castoriadis, focaremos a obra O

nascimento da tragédia, onde Nietzsche firma a sua posição frente à excessiva

racionalidade, designando como doença, uma filosofia “romântica” que está ligada ao hiper

desenvolvimento da consciência, um sofrimento que busca ter controle sobre a vida: “(...)

os que sofrem de empobrecimento da vida, que procuram por repouso, quietude, mar liso,

redenção de si mesmo (...)1”

Mas, o filósofo alemão mostra em O Nascimento da Tragédia, que não somos donos

da vida, e esta busca de uma cura que elimine a dor é impossível porque a vida dói porque

não está em nossas mãos, porque não temos domínio, nem mesmo sobre os significados. A

realidade vai sempre aparecer reduzida a formas passiveis de um “domínio”, que como

observamos é de impossível consecução, uma vez que a vida é “movimento” e não coisa.

Castoriadis em sua busca por reintroduzir os valores históricos, políticos e sociais na

teoria psicanalítica, ao desacreditar num signo pré-determinado e na inexistência da

essência, vai ao encontro a esse “colocar” a vida em movimento pressuposto por Nietzsche,

e nesse movimento de vida e de dor que preconiza a filosofia dionisíaca e sua compreensão

trágica da vida. Nesse sentido, a essência não é mais a coisa atrás das aparências, mas o

nada, ele está no risco da morte, só tem forma não tem mais nada por traz.

Ainda, podemos ver certas similaridades, no que tange ao pensamento de

Castoriadis a respeito da importância da sociedade e o combate de Nietzsche à filosofia

romântica, pois enquanto Castoriadis vai postular uma filosofia magmática, onde a psique,

a sociedade e a história são produtos da existência de um imaginário radical, Nietzsche vai

declarar a sua firme convicção de que a arte e principalmente a música é a atividade

propriamente metafísica da vida, ela seria o caminho para nos desembaraçarmos dos

preconceitos da alma, de toda uma racionalidade trazida pela linguagem. A arte, e

1 Nietzshe em A Gaia Ciência, p.247

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privilegiadamente a música, é uma forma privilegiada para superar uma filosofia tradicional

com suas raízes no Platonismo e seu dualismo que separa o eu e o corpo2 (Zanotti, p. 36).

Assim, é necessário eliminar esta metafísica que nega e desvaloriza o sensível e o

corpo, através da música e da dança, bem como eliminar uma divisão entre o sujeito e o

mundo, entre a psique e a história. A psique tem que ser entendida como a pluralidade do

sujeito, como uma estrutura social de impulsos e afetos, os vários modos do ser,

eliminando-se o conceito da unidade do sujeito dada por uma consciência “gramatical”. A

partir daí esta claro que o “cogito, ergo sum” como unidade essencial de todo ser existente

é nada mais que uma interpretação fundada na estrutura da sentença gramatical, ou seja,

tudo se passa como se a unidade verbal correspondesse a uma unidade ontológica real. “A

razão na linguagem: que enganadora personagem feminina (verfuhren - seduzir)! Temo que

não nos desembaraçaremos de Deus, porque ainda cremos na gramática (...)3”.

A forma de romper esta consciência “gramatical seria o re-despertar da

consideração trágica; o espírito da música como princípio da vontade, sendo a vontade não

apenas sentimento e pensamento, mas, sobretudo um afeto que tem como uma das raízes

etimológicas “affectus” que significa mover, ser movido. Esse re-despertar poderia oferecer

uma nova perspectiva da existência a partir da estética presente na arte e na música:

Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à

intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão de que o continuo

desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da

mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é

incessante e onde intervém periódicas reconciliações4.

A duplicidade Apolo- Dionísio se apresenta numa forma que se interpenetra, com o

poder apolíneo na arte do configurador plástico, aquele que está sempre produzindo alguma

configuração, apegado a uma forma, em contraposição ao poder dionisíaco com a sua

música, com a sua verdade ameaçadora porque não tem forma. Uma luta estética entre os

dois poderes antagônicos, numa tensão entre a configuração e a sua dissolução. Essa

2 Conforme Luiz Zanotti em O nascimento da tragédia e a música de Wagner em www.jecakerouac.com.br

3 Nietzsche citado em Oswaldo Giacoia, Nietzsche como Psicólogo, p.60. 4 Nietzsche em O Nascimento da tragédia, p. 37.

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dualidade se apresenta no pensamento de Castoriadis, na sua forma, que é, ao mesmo

tempo, um questionamento do pensamento herdado, pensamento da determinação e da

lógica formal, da chamada ciência positiva, e é uma passagem ao ato do que Castoriadis

denominou como lógica dos magmas: uma lógica que articula em uma relação não

excludente a determinação e a indeterminação, o apolíneo e o dionisíaco, o pensamento e a

imaginação.

A utilização metafísica da musica dionisíaca como a metafísica abriu os caminhos

da colocação da questão do ser sob o signo da linguagem e do fenômeno estético. Assim,

como em Nietzsche, a tradição literária sempre suscitou a ressonância especulativa que a

filosofia criou para ela. Basta lembrar Georges Bataille e Pierre Klossowski a respeito de

Sade, de Lacaux, de Manet; Sartre a respeito de Mallarmé, Saint Genet e outras tantas

Situações literaris; Maurice Blanchot e o Romantismo alemão, Gilles Deleuze e Felix

Guatari com Kafka, Nietzsche, etc... Muito sintomático é o fato de tantos livros de filosofia

acabarem ou suspenderem sua marcha numa verdadeira ontologia da arte. Não há filosofo

que não afirme que o fenômeno estético é um momento privilegiado da estrutura, da

estatura e do estatuto do ser. É possível dizer que o teatro, e a literatura de um a forma

geral, ofereceu aos pensadores o lugar de manifestação de uma ficção ontológica que,

enquanto modalidade privilegiada do ser ao mundo, é um ser-aos-fenômenos pelo corpo.

Talvez, possamos dizer que a imaginação radical para Castoriadis tem uma forte

relação com essa música “dionisíaca” de Nietzsche, uma música que traz consigo uma

afecção e que não é simplesmente um fenômeno sonoro, mas sim a própria expressão do

conceito de vontade de poder, que sustenta a concepção de mundo onde a corrente  da vida

é expressão dessa vontade e a existência  não  é senão  um magma movente de forças que

pugnam pela supremacia5.  

A música não é uma transposição metafórica qualquer do fenômeno em linguagem

perceptiva, ela é muito mais a imagem do ânimo das transposições. No instante em que esta

transposição metafórica em linguagem perceptiva se dá, o que temos não é apenas uma

configuração possível da totalidade. Ao contrário, esta transposição também traz consigo o

estabelecimento de uma disposição de toda a sensibilidade, de uma certa afecção de todo

ânimo. Assim, para Nietzsche, uma ação é sempre apresentada a partir de uma pré-

5 conforme Francisco Rugider in http://members.fortunecity.com/franrudiger/Mat1.htm

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disposição, que tem forte raiz, não só no psíquico, mas também no social; que marca tanto

o caráter originário da ação, mas também a identidade própria a cada transposição

metafórica. Então, para cada instante em que a realidade se apresenta, ela descobre a si

mesmo enquanto vontade. No entanto, isto não significa uma total separação entre os dois

mundos, como numa mera dicotomia entre ser e aparência, ou mundo das idéias e das

coisas, e sim numa articulação entre os dois a partir da “amarração” do poder apolíneo da

individuação com a vontade trazida pela musica dionisíaca que resultam no modo do

aparecimento da realidade.

Todas as possíveis aspirações, excitações e exteriorizações da vontade, todos

aqueles processos no interior do ser humano, que a razão atira no amplo conceito

negativo do sentimento(...), mas sempre na universalidade da mera forma, sem a

matéria, sempre unicamente segundo o em si, e não segundo o fenômeno, tal como a

alma mais intima deste, em corpo6.

Essa volta para a arte pode ser analisada como a necessidade de trazer os elementos

histórico-político-sociais para o debate da constituição do “sujeito” e que fazem com que

Castoriadis vá buscar no entrelaçamento da psicanálise, da filosofia e da política, uma nova

forma de reflexão sobre o modo de ser do histórico-social, da psique, e do pensamento.

Esse novo modo de pensamento, essa nova reflexão sobre a subjetividade, aborda um novo

projeto para a sociedade. A psicanálise que tinha excluído o social e o histórico é

retroalimentada com a sua reintrodução.

As encruzilhadas do labirinto do método de Castoriadis apresentam uma

perplexidade pois: “Pensar não é substituir a incerteza das sombras pelos perfis bem

definidos, é entrar no labirinto, nas galerias que nos mesmos escavamos, abrindo fissuras

no muro”. Assim, os elementos que foram excluídos da psicanálise, o social, o histórico, a

imaginação e o pensamento, são reintroduzidos pelo método das encruzilhadas, onde essas

galerias (a política, a filosofia, a psicanálise, e em nossa analise; principalmente a arte) são

irradiadas por princípios – idéias - conceitos que orientam a autonomia, a verdade, a

imaginação criadora, a lógica dos magmas, etc.

6 conforme Nietzsche em O Nascimento da tragédia, p. 98.

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Dessa forma, por esses entrecruzamentos, a política vai ser pensada desde uma

visada da psicanálise, a filosofia através não só da psicanálise, mas também pela política, e

todas essas serão submetidas a um viés trazido pela arte, e vice-versa. É também importante

notar que por sua vez, os princípios – idéias - conceitos que passam através das galerias

desse labirinto imaginado/criado por Castoriadis, serão postas a prova, sofrerão

transformações, questionamentos, enriquecimentos.

Ainda é importante para Castoriadis, o fato do pensamento contemporâneo - aqui

ele parece se referir especificamente a Lacan - ser portador de uma ideologia da morte do

sujeito, e por outra como parte da obliteração do social, mediante a apelação às “redes” ou

“estruturas”, com o intento de quebrar a união e a tensão existente entre o indivíduo e o

grupo, de fazer desaparecer a um mediante o outro, de reduzir um ao ouro. Castoriadis,

assim como preconiza a relação Apolo-Dionísio em sua interpenetração, através de sua

filosofia dos magmas acaba com esse viés estruturalista que busca romper simultaneamente

a alteridade, a autonomia e a responsabilidade do individuo e seu laço substancial com os

outros.

Dessa forma, na sua lógica dos magmas, podemos dizer que o conceito da

confluência entre a lógica formal e conceitos da física (indeterminação, o caótico, não

linear, o inconsciente, sua legalidade, seu modo de ser) podem muito bem ser analisado a

luz das pulsões apolíneas e dionisíacas; uma reflexão sobre a subjetividade (determinações

inconscientes e social-históricas), uma subjetividade reflexiva que pode romper tanto com o

cartesianismo como com o estruturalismo. O que para Cristina Oliveira7 significa que:

“Dionísio retrataria as forças de dissolução da personalidade: às forças caóticas e

primordiais da vida, provocadas pela orgia e a submersão da consciência no magma do

inconsciente”.  

Assim, nem um ser psíquico da consciência, nem um puro reflexo de determinações

inconscientes ou histórico-sociais. O pensamento sobre a sociedade (projeto de

autonomia): o que a psicanálise permite entender sobre o modo de ser da psique e a

sociedade. A psicanálise pode fazer a política.

Com relação à significação, o pensamento de Castoriadis promove um projeto que

se opõe à significação do capitalismo, e suas tarefas depredadoras, que aparecem através

7 http://www.filosofiavirtual.pro.br/apolineonietzsche.htm    

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da crise dos modos de identificação, da aceleração constante da temporalidade através da

criação constante de novas necessidades e de objetos para satisfazê-las, e de uma febre de

acumulação, de enriquecimento, que produz uma lógica de empobrecimento e exclusão.

Esse excesso de significação faz com que Nietzsche (apesar da distancia temporal

entre os dois) já se preocupasse com este fato, a ponto de declarar que:

o homem inventor de signos é ao mesmo tempo o homem cada vez mais

agudamente consciente de si mesmo; somente como animal social o homem

aprendeu a tomar consciência de si mesmo - ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais.

Meu pensamento é, como se vê: que a consciência não faz parte propriamente da

existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é natureza de

comunidade e de rebanho8

Para Castoriadis esse excesso de significação produz uma crise de sentido,

denominada “avanço da insignificância”, uma crise do mundo da significação. Avanço da

insignificância que produz por sua vez uma crise dos tipos antropológicos que uma

sociedade necessita para existir e reproduzir-se (educadores, os juízes, os trabalhadores, os

estudantes, o ser homem ou mulher, a função dos pais, etc.), ninguém sabe o sentido de sua

função. A idéia de “nós mesmos” tende a desvanecer-se em uma sociedade fragmentada, na

qual os conflitos são cada vez mais setorizados. O capitalismo entra nesta fase abertamente

depredatória pois seu projeto contrário (que o limitava) entrou num ocaso.

Uma das formas de combater este avanço da insignificância está numa crítica

“magmática” ao “pensamento herdado” através de uma radical tarefa da desmontagem

desse pensamento herdado, determinista, teleológico, ancorado na lógica aristotélica e

cartesiana, com a criação do radicalmente novo, algo como Susan Sontag9:

(...) precisaríamos de um erotismo da arte [“erotics of art”], em vez de uma

hermenêutica, deveria ser estendida à reivindicação por uma arte do não-

compreender, que somente num primeiro momento pareceria paradoxal. Essa atitude

8 Conforme Nietzsche em A Gaia Ciência, p. 201.9 Conforme Susan Sontag em Against Interpretation, p. 154.

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constituiria a arte e a técnica consciente da não-compreensão, tal qual existe uma

arte da compreensão (SONTAG APUD ).

Ou ainda, segundo Castoriadis, a criação de novas determinações, daquilo que não

pode voltar a suas condições de origem, que não se encontram contidas nas mesmas, que

não existe em potência. Isto permite elaborar um projeto de autonomia, para a sociedade, a

psique, o pensamento que seja radicalmente novo e que de lugar a novas formas. Essas

formas parecem ter em sua origem a imaginação radical ou criadora, como modo de pensar

o ser, e exige que nem tudo no ser deve estar determinado, para que o novo possa emergir.

Esse elemento imaginário (vontade de poder?) produz o magma de significações

imaginárias sociais que mantém unida a sociedade.

A partir destes pressupostos, pode sustentar-se que a sociedade não é

produzida por leis da história ou pelo desenvolvimento das forças produtivas, ou que a

história não pode reduzir-se a ser a história da luta de classes, para passar a ser por um

lado um magma de sentido criado pelo imaginário coletivo e pelo outro no devir da

história na história da criação de significações imaginárias sociais.

Isto rompe com a idéia de determinação do ser e assim, mais uma vez como a

dualidade Apolo-Dionísio, onde, como vimos Apolo cria a forma para em seguida ser

aniquilada por Dionísio, e em seguida criar uma nova forma, que será destruída e

assim sucetivamente; não se pode dizer que não existe a determinação e sim que existe

também uma dimensão de indeterminação, mais notória quanto mais se afasta das

ciências “duras”, e que esta indeterminação é posição de surgimento de novas

determinações. Castoriads em A instituição imaginaria da sociedade apresenta a idéia

de que:

O que parecia pleno e determinado se torna um agulheiro do ser, enigma

indeterminado que se nos escapa por todas partes, fascinação, absorção,

significação filosófica, poema, o ponto de partida de uma cadeia interminável

de explorações científicas não necessariamente concordantes10

10 Castoriadis, Cornelius. Ob. cit., pág. 255

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A imaginação radical pode ser vista como o modo da representação do ser na

forma como Freud descreve na interpretação dos sonhos. Despojamos a representação

de sua capa de lógica e de organização conjunta e de identidade, e nos voltamos para a

associação livre, no sonho, nos sintomas, na criação artística, na transgressão, o que se

desvanece e desestrutura é a visão canônica que a sociedade impõe só apresentando

uma perspectiva aspecto da representação.

Nesse ponto é importante lembrar as diversas formas de descrição do fenômeno

em sua aparição que depende de uma perspectiva, a partir da leitura da filosofia de

Nietzsche, Gilvan Fogel nos fornece o exemplo das diversas perspectivas pelos quais

pode ser comunicado o fenômeno de aparecimento de uma laranja, ou seja, na

perspectiva de um agricultor que está preocupado com o aspecto econômico do seu

plantio, esta laranja com certeza não é a mesma que a perspectiva de um consumidor

interessado em seu sabor e aspecto, ou o de uma criança brincando com a laranja

como se fosse uma bola. Ou seja, qualquer das descrições não consegue se confundir

simplesmente com o próprio fenômeno “laranja”, ou ainda:

A partir de uma constatação tardia de uma imagem, pressupomos estes entes

como causas exteriores e não nos damos conta que este objeto exterior já é

resultado de um processo metafórico de constituição. Em outras palavras, a

percepção não abarca tudo que o fenômeno pode ser, mas somente um de seus

possíveis modos de mostração num claro encurtamento de suas possibilidades

de ser, e uma vez que o fenômeno não possui o mesmo plano que a linguagem

que é dada como, por exemplo, um impulso sonoro, o único meio de fazer a

transposição de um plano de realidade para a outra é a metáfora11.

Castoriadis, assim como Nietzsche, busca uma nova lógica que não esteja

arraigada numa lógica identitária (lógica aristotélica e cartesiana), nem como uma

generalização ou superação desta, e muito menos como um sistema de essências. O que

‘é’, apesar de se apresentar como as várias faces de ente no ser-ai12, não pode ser caos

absolutamente desordenado. Para Castoriadis:

11 Gilvan Fogel em Conhecer é criar, p.2012 Conforme conceito de Martin Heidegger em Ser e Tempo

9

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A representação põe sobre o tapete, leva à ruína a tese do ser como

determinação (e suas consequências), como uno e o mesmo para todos (…)

representação considerada em si mesma como reação aos esquemas lógicos

mais elementares … mais que a ordem moral da sociedade, a psicanálise

questiona sua ordem lógica e ontológica 13

Nessa parte final de nosso questionamento, é de suam importância mencionar que

ao re-introduzir o social-histórico na psicanálise, Castoriadis lembra que Freud tinha uma

grande preocupação pela sociedade e cultura de sua época, como aparece claramente em O

mal estar da civilização, ou ainda, na origem social do superego. Em sua atitude crítica

frente a essa sociedade, Freud desenvolveu conceitos como o complexo de Édipo, o papel

da sexualidade, seu modo de considerar a religião, a pulsão de morte, suas idéias sobre a

guerra, parecem não estar muito longe da lógica magmática, pois essas noções estão na

encruzilhada de instituições da sua época, como a família, a moral sexual, o Estado, a

religião, o poder, a idéia que imperava sobre o sujeito, etc.

Freud manifestava abertamente seu desejo de outro tipo de sociedade, sendo que

esta atitude de Freud permitiu que a psicanálise não houvesse sido reabsorvida pela cultura

dominante, uma atitude que depois de Freud (salvo algumas exceções) sofreram uma

descontinuidade, e parece ter condenado a psicanálise a ser comportar como um simples

tratamento terapêutico

Assim, Castoriadis traz a possibilidade da recuperação da psicanálise como um todo

em sua capacidade instituidora mediante a liberação da imaginação radical e o trabalho

reflexivo e deliberativo sobre seus produtos. Recuperação que se dará através de distintas

práticas tanto no sujeito (como expressão da imaginação radical da psique), como nas

instituições e a sociedade (como expressão do imaginário social instituidor).

Finalmente, não custa relembrar que Castoriadis ao apresentar a lógica de dos

magmas, de uma forma que elimina o dualismo, no qual elementos são colocados de uma

forma binária de oposições (homem e mulher, razão e paixão, razão e imaginação) com

13 Castoriadis, Cornelius. Ob. cit., pág. 265

10

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uma forte carga ideologia que não apenas são criações imaginárias do Ocidente, mas

também são muitas vezes instrumentos de dominação, busca através de uma reflexão

deliberada, construir um pensamento autônomo que possa estabelecer uma outra relação e

produzir um discurso próprio que, através da instituição imaginária da sociedade, possa

oferecer uma sociedade melhor.

11