edição 407 - de 16 a 22 de dezembro de 2010

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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 16 a 22 de dezembro de 2010 Ano 8 • Número 407 Leandro Konder Noel Rosa: 100 anos Almirante – a mais alta patente do rádio – pagou o preço de um pioneirismo: se dispunha a publicar um livro só sobre os “sambistas”. Contudo, o livro não teve a ampla difusão que pretendia alcançar. Pág. 7 João Brant Podres poderes Embora o Wikileaks já atuasse com vazamento de correspondências há alguns anos, a mudança na divulgação, somada ao aumento da quantidade de informações, fez os efeitos de agora serem avassaladores. Pág. 3 Igor Fuser Boicote, arma contra Israel O presidente estadunidense Barack Obama deixou claro que abandonará qualquer esforço para bloquear as iniciativas de Israel de expandir os assentamentos judeus em territórios palestinos ocupados. Pág. 3 Reprodução Economia Aceno ao mercado Mantega, Belchior e Tombini prometem medidas de aperto fiscal na economia; especialistas questionam ortodoxia Pág. 8 Conferência do Clima Preocupados com o verde Os acordos celebrados durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada em Cancún, no México, deixam evidente que o objetivo da maioria de seus participantes não é combater o aquecimento global, mas sim propiciar às grandes empresas os lucros que virão com as soluções de mercado para o problema. Por sua vez, movimentos sociais de todo o mundo que realizaram uma conferência paralela à oficial preparam uma consulta à população mundial sobre o tema. Págs. 2 e 9 Polícia no Alemão Roubos, assassinatos e medo Págs. 4 e 5 Comunicação O mundo regula a mídia Págs. 10 e 11 Relatório Barragens e violações Pág. 6 ISSN 1978-5134

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Uma visão popular do Brasil e do mundo

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Page 1: Edição 407 - de 16 a 22 de dezembro de 2010

www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 16 a 22 de dezembro de 2010Ano 8 • Número 407

Leandro Konder

Noel Rosa: 100 anosAlmirante – a mais alta patente do rádio – pagou o preço de um pioneirismo: se dispunha a publicar um livro só sobre os “sambistas”. Contudo, o livro não teve a ampla difusão que pretendia alcançar. Pág. 7

João Brant

Podres poderesEmbora o Wikileaks já atuasse com vazamento de correspondências há alguns anos, a mudança na divulgação, somada ao aumento da quantidade de informações, fez os efeitos de agora serem avassaladores. Pág. 3

Igor Fuser

Boicote, arma contra IsraelO presidente estadunidense Barack Obama deixou claro que abandonará qualquer esforço para bloquear as iniciativas de Israel de expandir os assentamentos judeus em territórios palestinos ocupados. Pág. 3

Reprodução

Economia

Aceno ao mercadoMantega, Belchior e Tombini prometem medidas de aperto fi scal na economia; especialistas questionam ortodoxia Pág. 8

Conferência do Clima

Preocupadoscom o verdeOs acordos celebrados durante a Conferência das Nações Unidas sobre

Mudanças Climáticas, realizada em Cancún, no México, deixam evidente que o objetivo da maioria de seus participantes não é combater o

aquecimento global, mas sim propiciar às grandes empresas os lucros que virão com as soluções de mercado para o problema. Por sua vez,

movimentos sociais de todo o mundo que realizaram uma conferência paralela à oficial preparam uma consulta à

população mundial sobre o tema. Págs. 2 e 9

Polícia no Alemão

Roubos, assassinatos e medoPágs. 4 e 5

Comunicação

O mundo regula a mídiaPágs. 10 e 11

Relatório

Barragens e violaçõesPág. 6

ISSN 1978-5134

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Cancún, a montanha pariu um rato!

NUNCA ANTES NA história des-te país um metalúrgico havia ocu-pado a presidência da República. Quantos temores e terrores a cada vez que você se apresentava como candidato! Diziam que o PT, a fer-ro e fogo, implantaria o socialismo no Brasil.

Quanta esperança refl etida na euforia que contaminou a Espla-nada dos Ministérios no dia de sua posse! Decorridos oito anos, eis que a aprovação de seu governo al-cança o admirável índice de 84% que o consideram ótimo e bom. Apenas 3% o reprovam.

O Brasil mudou para melhor. Cerca de 20 milhões de pessoas, graças ao Bolsa Família e outros programas sociais, saíram da mi-séria, e 30 milhões ingressaram na classe média. Ainda temos outros 30 milhões sobrevivendo sob o es-pectro da fome e quem sabe o Fo-me Zero, com seu caráter eman-cipatório, a tivesse erradicado se o seu governo não o trocasse pelo Bolsa Família, de caráter compen-satório, e que até hoje não encon-trou a porta de saída para as famí-lias benefi ciárias.

Você resgatou o papel do Esta-do como indutor do desenvolvi-mento e, através dos programas so-ciais e da Previdência, promoveu a distribuição de renda que aque-ceu o mercado interno de consu-mo. O BNDES tornou as grandes empresas brasileiras competitivas no mercado internacional. Tomara que no governo Dilma seja possível destinar recursos também a em-preedimentos de pequeno e médio porte e favorecer nossas pesquisas em ciência e tecnologia.

Enquanto os países metropolita-nos, afetados pela crise fi nanceira, enxugam a liquidez do mercado e travam o aumento de salários, vo-cê ampliou o acesso ao crédito (R$ 1 trilhão disponíveis), aumentou o salário mínimo acima da infl ação, manteve sob controle os preços da cesta básica e desonerou eletrodo-mésticos e carros. Hoje, 72% dos domicílios brasileiros possuem ge-ladeira, televisor, fogão, máquina de lavar, embora 52% ainda care-çam de saneamento básico.

Seu governo multiplicou o em-prego formal, sobretudo no Nor-deste, cujo perfi l social sofre subs-tancial mudança para melhor. Ho-je, numa população de 190 mi-lhões, 105 milhões são trabalhado-res, dos quais 59,6% possuem car-teira assinada. É verdade que, a

muitos, falta melhor qualifi cação profi ssional. Contudo, avançou-se: 43,1% completaram o ensino mé-dio e 11,1% o ensino superior.

Na política externa o Brasil afi r-mou-se como soberano e indepen-dente, livrando-se da órbita usa-mericana, rechaçando a Alca pro-posta pela Casa Branca, apoiando a Unasul e empenhando-se na uni-dade latino-americana e caribenha. Graças à sua vontade política, nos-so país mira com simpatia a ascen-são de novos governantes demo-cráticos-populares na América La-tina; condena o bloqueio dos EUA a Cuba e defende a autodetermi-nação deste país; investe em paí-ses da África; estreita relações com o mundo árabe; e denuncia a hipo-crisia de se querer impedir o acesso do Irã ao urânio enriquecido, en-quanto países vizinhos a ele, como Israel, dispõem de artefatos nucle-ares.

Seu governo, Lula, incutiu auto-estima no povo brasileiro e, hoje, é admirado em todo o mundo. Pode-ria ter sido melhor se houvesse rea-lizado reformas estruturais, como a agrária, a política e a tributária; de-terminado a abertura dos arquivos da ditadura em poder das Forças Armadas; duplicado o investimen-to em educação, saúde e cultura.

Nunca antes na história des-te país um governo respaldou sua Polícia Federal para levar à cadeia dois governadores; prender políti-cos e empresários corruptos; com-

bater com rigor o narcotráfi co. Pe-na que o Plano Nacional dos Direi-tos Humanos 3 – quase um plágio dos 1 e 2 do governo FHC –tenha sido escanteado por preconceitos e covardia de ministros que o apro-varam previamente e não tiveram a honradez de defendê-lo quando es-cutaram protestos de vozes conser-vadoras.

Espero que o governo Dilma complemente o que faltou ao seu: a federalização dos crimes contra os direitos humanos; uma agenda mais agressiva em defesa da pre-servação ambiental, em especial da Amazônia; a melhoria do nosso sis-tema de saúde, tão defi ciente que obriga 40 milhões de brasileiros a dependerem de planos de empre-sas privadas; a reforma das redes de ensino público municipais e es-taduais.

Seu governo ousou criar, no en-sino superior, o sistema de cotas; o ProUni e o ENEM; a ampliação do número de escolas técnicas; maior atenção às universidades federais. Mas é preciso que o governo Dil-ma cumpra o preceito constitucio-nal de investir 8% do PIB em edu-cação.

Obrigado, Lula, por jamais cri-minalizar movimentos sociais; pre-servar áreas indígenas como Rapo-sa Serra do Sol; trazer Luz para To-dos. Sim, sei que você não fez mais do que a obrigação. Para isso foi eleito. Mas considerando os demais governantes de nossa história re-publicana, tão reféns da elite e com nojo do “cheiro de povo”, como um deles confessou, há que reconhecer os avanços e méritos de sua admi-nistração.

Deus permita que, o quanto an-tes, você consiga desencarnar-se da presidência e voltar a ser um cida-dão militante em prol do Brasil e de um mundo melhor.

Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco),

entre outros livros.

debate Frei Betto

Obrigado, Lula

análise Rosane Bertotti

DURANTE QUINZE dias, represen-tantes de governos de 140 países se reuniram nos hotéis mais luxuosos do nosso continente, no balneário de Cancún (México), para debater os problemas da crise climática do pla-neta. Terminada a reunião, à parte o conforto nababesco e o isolamen-to que a polícia mexicana impôs pa-ra que nenhuma manifestação po-pular chegasse a menos de 12 km, o fracasso foi evidente. Nenhuma re-solução importante foi tomada pelos governos.

A própria imprensa burguesa, ao longo do evento, relativizou sua im-portância, e não deu a cobertura que havia dado na conferência similar realizada no ano passado em Cope-nhague. E a imensa maioria dos go-vernos enviou representações minis-teriais, com presença insignifi cante de presidentes. Ainda tiveram a pe-tulância de anunciar que, como na-da de importante se decidiu, as con-versações continuarão em dezembro de 2011, na próxima conferência, a realizar-se na África do Sul.

Mas, afi nal, por que essas confe-rências governamentais não conse-guem ter nenhum resultado prático? Certamente, há muitas razões. Mas a principal é que existe uma contra-dição política posta hoje no mun-do, que gerou uma dicotomia entre o poder econômico e o poder políti-co internacional.

O poder econômico é exercido em todo planeta pelas 500 maiores em-presas transnacionais, que contro-lam 53% de toda riqueza produzida, apesar de darem emprego para ape-nas 8% da mão de obra emprega-da no mundo. Essas empresas são as responsáveis pela crise climática, ao se apoderarem da natureza, ao utili-zarem fontes energéticas poluidoras e ao buscarem apenas o lucro máxi-mo – e da forma mais irresponsável possível. Por exemplo, enquanto to-dos os especialistas de saúde pública advertem que a poluição do uso do transporte individual nas grandes cidades é o principal causador de doenças, mortes e péssimas condi-ções do meio ambiente para bilhões de seres humanos que se aglomeram nessas megalópoles, a indústria au-tomobilística mundial, controlada por não mais de 15 empresas, anun-cia novas fábricas, novos créditos, novos veículos!

Temos o poder político exercido por governos nacionais, neoliberais, totalmente servis a esse poder eco-nômico, e que, raramente, represen-tam os verdadeiros interesses de su-as populações. Não querem legislar sobre o poder econômico.

Por outro lado, não existe um po-der político internacional que con-siga ser representativo da huma-nidade e que possa colocar regras e freios ao crescimento insano das

agressões do poder econômico so-bre o meio ambiente.

Mesmo quando temos governos nacionais mais sensíveis, como o ca-so da Bolívia, dos governos da Al-ba (Alternativa Bolivariana para as Américas) ou de pequenos países do Pacífi co, esses governos são insufi -cientes, pois as regras para o meio ambiente devem ser para todo mun-do, o planeta é um só e funciona em equilíbrio global. Assim, uma agres-são ao meio ambiente, no Brasil, na Austrália ou na China, de certa for-ma acaba trazendo consequências para todos os seres vivos que habi-tam esse planeta, em toda parte.

Portanto, em primeiro lugar, se-rá necessário resolver essa contradi-

ção: enquanto não tivermos um po-der político que tenha força sufi cien-te para, em nome da população, im-por condicionantes ao poder econô-mico, essas conferências serão ape-nas teatro para enganar alguns in-cautos.

Em segundo lugar, os analistas e cientistas sérios denunciam que os desequilíbrios ambientais e a crise climática que estamos vivendo têm como causa fundamental o modo de vida imposto pelo consumismo ir-responsável da produção capitalista, que produz incansavelmente merca-dorias para serem vendidas, não im-porta suas consequências. Portanto temos que refl etir sobre o modo de vida que nos é imposto.

Em terceiro lugar, é urgente que hajam campanhas de conscientiza-ção de toda população sobre a gra-vidade dessa crise climática, sobre a vida humana e a vida de todo pla-neta. Em geral, as pessoas sofrem, muitos pagam com a vida, mas há uma alienação geral, provocada pelo monopólio dos meios de comunica-ção da burguesia, que ilude as pes-soas com o consumismo e com prá-ticas agressoras ao meio ambiente.

Daí que movimentos sociais de to-do mundo, ambientalistas, Via Cam-pesina, Marcha Mundial das Mulhe-res estejam empenhados, junto com alguns governos progressistas, a de-senvolver durante 2011 uma grande

consulta mundial sobre a crise cli-mática, que terá como objetivo prin-cipal conscientizar a população em todo mundo sobre a gravidade des-sa crise.

Esse processo de consulta mun-dial se baseará em cinco temas, já acordados numa conferência reali-zada em abril deste ano em Cocha-bamba, na Bolívia, e está relaciona-do com o modelo capitalista de su-perprodução; o uso abusivo de re-cursos humanos e econômicos pa-ra gastos militares, que também afe-tam o meio ambiente; a responsabi-lidade das empresas que agridem o meio ambiente; e a necessidade de constituir-se um tribunal internacio-nal para julgar e punir todos os cri-mes ambientais praticados por em-presas e governos que hoje estão im-punes, pois as legislações nacionais não os controlam.

Teremos ainda um longo cami-nho pela frente para podermos en-frentar os graves problemas de de-sequilíbrios ambientais. Certamen-te não podemos contar com muitos governos, mais preocupados com as empresas que fi nanciaram suas campanhas e/ou com taxas de cres-cimento econômico. Mas é urgen-te estimularmos que todos os movi-mentos sociais e as forças popula-res debatam esses temas, para ge-rar uma consciência mundial das mudanças necessárias.

de 16 a 22 de dezembro de 20102editorial

Vaccarezza e a infâmia A REVISTA VEJA está reduzida a ser um panfl eto político-ideológico-mercadológico, porta-voz dos interesses mais retrógrados de uma ínfi ma minoria, elitista e preconceituosa, contra tudo o que seja nacional e popu-lar.

Para a Veja, direitos são privilégios; o patrimônio público existe para ser privatizado; soberania para ser alienada; a integração latino-america-na é um mal a ser combatido; reformas só devem ser feitas para retroce-der, nunca para avançar no caráter público do Estado e no atendimento à população, na melhoria das suas condições de vida e trabalho. Quem se alinha, de alguma forma, com tais sandices merece total afago, espaço e... páginas amarelas. É a lógica, já explicitada no samba, do “pra subir você desceu, você desceu...”

Então, diante da manutenção dos direitos expressos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que os neoliberais tanto se empenharam em rasgar e mandar para a lata do lixo, em sua entrevista nas amarelas, o de-putado Cândido Vaccarezza, reduz a CLT a uma “selva burocrática e ju-rídica, formada por 183.000 normas legais”, a ser “desbastada”. E mais, defende uma “reforma trabalhista” bem ao gosto da publicação.

Segundo Vaccarezza – transformado em “Toureza” pela Veja -, o pro-blema do país não é o juro alto, que atrai capitais especulativos e compro-mete o setor produtivo nacional com a enxurrada de importados, mas a “folha de pagamento”. “Hoje, a folha de pagamento é onerada por obri-gações que vão da multa de rescisão de contrato de trabalho às contribui-ções para o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). São custos tão altos que as empresas pequenas preferem manter os empregados na informalidade”.

Nenhuma palavra sobre as grandes empresas que usam e abusam de mão de obra escrava, que precarizam direitos com toda sorte de tercei-rizações, quarteirizações e por aí vai. Inconformado com a postura alti-va do movimento sindical – que não vai parar nas páginas amarelas –, o parlamentar protesta: “o tema é um tabu para a CUT, a Força Sindical e as outras centrais que apoiaram Dilma”. Para Vaccarezza, “a pauta sindi-cal tem de mudar”. E “o começo pode estar em questões que não apresen-tem impacto nos direitos trabalhistas”. E cita como exemplo “vários dis-positivos da CLT”. Como deixou claro – sem disfarces – é que este é ape-nas o “começo”.

O entrevistado da Veja defende a reforma da Previdência, propõe em-penho do governo e orienta para fatiá-la, a fi m de diminuir a resistência popular ao saco de maldades. Segundo ele, se “Fernando Henrique Car-doso tivesse enviado ao Congresso um projeto de reforma previdenciária que valesse apenas para quem ainda fosse entrar no mercado de trabalho, talvez ele tivesse sido aprovado”.

Na avaliação do parlamentar, que agride bandeiras históricas dos movi-mentos sindical e social – e do seu próprio partido, o PT –, a manutenção da política de valorização do salário mínimo para 2011 deveria ser adiada, pois propõe zero de aumento real. A “valorização”, para Vaccarezza, “sig-nifi caria um mínimo de 540 reais”. No horizonte do parlamentar, a po-lítica de valorização não diz respeito a um projeto de país que tem como central o papel do Estado, não dialoga com o fortalecimento do mercado interno, não representa a afi rmação do ciclo virtuoso do crescimento, de combate às imensas desigualdades sociais e regionais.

Entre outros despropósitos, um tema abordado de forma vexatória pelo deputado é o da liberdade de imprensa. Ela “é intrínseca à nossa concep-ção política, mesmo com todas as manifestações exageradas de contrarie-dade da parte de alguns de nossos companheiros”. Ou seja, não são os ba-rões da mídia – que mentem, manipulam e desinformam – o grande obs-táculo à liberdade de expressão, mas seus próprios companheiros de par-tido e de jornada.

O “Toureza” da Veja virou Vagareza.

Rosane Bertotti é secretária nacional de comunicação da CUT e da Coorde-nação dos Movimentos Sociais (CMS).

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda, Luís Brasilino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Daniel Cassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio

Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Edilson Dias Moura• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos– CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, Delci MariaFranzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Ivo Lesbaupin, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

Nenhuma resolução importante foi tomada pelos governos

Cândido Vaccarezza reduz a CLT a uma “selva burocrática e jurídica, formada por 183.000 normas legais”, a ser “desbastada”

Obrigado, Lula, por jamais criminalizar movimentos sociais

Reprodução do desenho a nanquim de Cândido Portinari

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de 16 a 22 de dezembro de 2010

presenta mais um passo em direção a uma paz justa no Oriente Médio. Acentua o isolamento israelense (mais de 100 países já reconhecem a Palestina, entre eles a China, a Rússia e a Índia). E aumenta a pressão para o ingresso ofi cial do Estado Palestino na ONU, o que per-mitiria, entre outras coisas, que o organismo interna-cional adotasse medidas de força contra as agressões is-raelenses ao novo país.

No caso do Brasil (e também da Argentina), é impor-tante, para o bem da coerência, que o reconhecimento da Palestina seja sucedido por atitudes concretas que tornem efetiva a solidariedade com a luta heroica dos palestinos contra a ocupação. É preciso que o acordo comercial Israel-Mercosul (que o governo Lula nunca deveria ter assinado) seja desfeito e, mais, que o Brasil suspenda imediatamente a importação de armamentos e equipamentos de segurança de Israel.

O modo mais efetivo e permanente de ajudar a cau-sa palestina é levar adiante a campanha internacional Boicote, Desinvestimento e Sanções, que está mobili-zando a opinião pública em todas as partes do mun-do para cortar as importações de produtos israelen-ses e suspender qualquer cooperação com o Estado sionista. Além da resistência dos próprios palesti-nos, é claro.

Boicote, a arma contra IsraelA POUCOS DIAS DE completar a primeira metade do seu mandato de quatro anos, o presidente estadu-nidense Barack Obama deixou claro que abandonará qualquer esforço para bloquear as iniciativas de Israel de expandir os assentamentos judeus em territórios pa-lestinos ocupados – prática ilegal que visa tornar a ocu-pação um fato consumado e inviabilizar a criação do Es-tado Palestino. Para desencanto de quem esperava mu-danças na política dos EUA para o Oriente Médio, Oba-ma se rendeu às pressões sionista, emitindo um sinal verde para a truculência israelense.

Os sinais positivos no caminho de uma paz justa vie-ram da América do Sul, com a decisão dos governos do Brasil e da Argentina de reconhecer o Estado Palesti-no nas fronteiras de 1967. Ou seja, revertendo a ocupa-ção de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental na Guer-ra dos Seis Dias. A medida deverá se completar com a abertura de embaixadas dos dois países em Ramallah (enquanto a parte árabe de Jerusalém continuar nas mãos dos sionistas) e, possivelmente, com a assinatu-ra de um acordo comercial entre o Mercosul e a Autori-dade Palestina.

Evidentemente, o simples reconhecimento diplomá-tico é insufi ciente para viabilizar uma pátria palesti-na soberana. Mas a iniciativa brasileira e argentina re-

Vítor Silva/Folhapress

instantâneo frases soltas

Igor Fuser

mônica dos movimentos sociais em luta por um outro mundo possível – irá benefi ciar mais com as fugas de informação”.

Os EUA tentam empurrar para o mundo todo uma agenda de combate aos crimes na internet, que na ver-dade serve duplamente a seus próprios interesses: no âmbito político, permite a vigilância e a defesa dos in-teresses de seu governo; no econômico, protege os in-teresses das grandes empresas, especialmente aquelas que ganham rios de dinheiro como intermediárias de direitos autorais.

No Brasil, o embate entre aqueles que dizem comba-ter os crimes na internet e aqueles que defendem a li-berdade e a privacidade na rede tem seu ápice no deba-te do Projeto de lei 84/99, conhecido como “AI-5 Digi-tal”, que alguns deputados ainda tentam aprovar no lus-co-fusco de seus mandatos.

É preciso fi car atento e se organizar para que as forças reacionárias não utilizem esse momento para fazer avan-çar sua agenda conservadora. O Wikileaks abre uma ja-nela, mas depende de nós garantir que por ela não en-trem larápios e fantasmas que andam muito vivos.

Wikileaks e os podres poderesA ENXURRADA DE informações trazidas pelo Wikile-aks desde o fi nal de novembro é um fato incontesta-velmente relevante. Embora o grupo já atuasse com va-zamento de correspondências sigilosas há alguns anos, a mudança de estratégia de divulgação somada ao au-mento da quantidade de informações fez os efeitos de agora serem avassaladores.

A maior parte do que foi relevado não surpreende ne-nhum militante bem informado, mas ajuda a descons-truir o argumento de “teorias da conspiração”. O impé-rio age como império; e ponto fi nal. Mais que isso: tem aliados confi áveis em altas posições do governo brasi-leiro. Tudo aquilo que você sempre leu na ótima cober-tura internacional deste Brasil de Fato soa mais ver-dadeiro do que nunca.

É claro que junto com qualquer ação que afete o im-pério vem a reação conservadora. Aí vale a interroga-ção proposta por Boaventura de Sousa Santos em tex-to recente: “irá o mundo mudar depois destas revela-ções?”. Ele mesmo responde: “a questão é saber qual das globalizações em confronto – a globalização hege-mônica do capitalismo ou a globalização contra-hege-

João Brant

Direito à moradia – Criança descansa a cabeça em sacada de prédio abandonado do INSS, no centro do Rio de Janeiro, ocupado por sem-teto

comentários do leitor

Violência no RioCom certeza, novas fronteiras devem

ser assumidas pela comunidade brasi-leira. Do jeito que está, com assassina-tos a sangue frio de ambos os lados, es-farrapadas legais ainda persistirão nas periferias brasileiras, onde vender dro-gas é um crime previsto com pena capi-tal, ao contrário dos territórios mais ri-cos e abastados, sedentos de ganância e poder.

Fábio Batista, por correio eletrônico

Ação contra coronel UstraSó um homem com um cérebro do-

ente é capaz de torturar, voltar para casa e olhar a mulher e os fi lhos, escutar ain-da os gritos de dor de sua vítima e ver o sangue correr (“Um torturador na mi-ra da Justiça”, edição 406). Tudo acon-teceu por culpa de canalhas existentes nos poderes da República, cruéis e in-diferentes como os torturadores. Ho-

je, que a esquerda desapareceu, pouco resta de esperança de justiça. O dinhei-ro comprou fracos e oportunistas. É só olhar ao redor. Sinto uma revolta sur-da em relação à hipocrisia existente e às mentiras ao redor.

Norma Miglietti, por correio eletrônico

Ação contra coronel Ustra - IIO reconhecimento dos assassinatos e

das torturas durante a ditadura militar é o mínimo que se pode esperar. Os res-ponsáveis pelas violações deveriam res-ponder pelos seus crimes, como qual-quer cidadão. Não pode haver anistia para essa barbaridade. Jamais!

Cristiane Arnold, por correio eletrônico

Entrevista com Tom MorelloParabenizo o Brasil de Fato pela en-

trevista com Tom Morello, um dos mú-sicos mais engajados em questões polí-ticas na atualidade (“Temos orgulho de

prestar solidariedade ao MST”, edição 402). Por várias vezes, já escutei pes-soas comentando sobre a relação entre grandes empresas fonográfi cas e ações políticas como do Rage Against The Ma-chine (RATM), e que, na verdade, se-ria um erro dos movimentos políticos se aliarem ao grande capital para lutar contra ele. O argumento utilizado por Tom ao declarar que fazer parte da Sony é um importante instrumento para ter maior alcance na mobilização através de músicas que ataquem o sistema. Sou um grande admirador dos projetos, das mú-sicas, do engajamento e do que o RATM representa para a geração conturbada, pós-moderna, fragmentada e individu-alista dos nossos tempos.

Jurandir Amaro Junior, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

3

Temos que dizer planeta ou morte, porque ou morre o capitalismo ou morre a Mãe Terra. Senão, teremos um ecocídio ou um genocídio. Frente ao capitalismo, ao colonialismo, ao imperialismo, queremos propor o neossocialismo. Uma nova doutrina pela vida, para viver bem, não viver melhor. Para compartilhar, não para competir

Evo Morales, presidente da Bolívia, em discurso de encerramento do Fórum Global pela Vida, Justiça Ambiental e Social, realizado paralelamente à COP 16 em Cancún, México, na noite do dia 9, de acordo com a Agência Brasil de Fato

Se pensarmos racionalmente, quando um sujeito é preso ele deveria perder o direito de ir e vir, o direito à liberdade, segundo a Constituição. No entanto, junto com isso, ele vai perdendo outros direitos que não estão previstos na pena, mas começam a ser retirados, como o direito à saúde, direito à família

Adriana Eiko, integrante do Tribunal Popular, na Radioagência NP

Vamos consolidar esses dez anos de iniciativa que colocaram o Brasil, internacionalmente, como o país que mais fez pela conservação da biodiversidade. O Brasil é um país campeão de conservação da biodiversidade Izabella Teixeira, ministra do Meio Ambiente, no dia 14, durante evento em comemoração aos dez anos do Sistema Nacional de Unidade de Conservação da Natureza, segundo a Agência Brasil

É uma escolha da presidente. Evidente que a partir de agora ele vai tomar as cautelas verbais que o cargo dele exigirá em face, especialmente, da presidência e da vice-presidência

Michel Temer, vice-presidente eleito, ao se referir à entrada no governo Dilma de Ciro Gomes

(PSB-CE), de acordo com a Folha.com

Vamos enviar o projeto amanhã [dia 14] à Assembleia Nacional. São leis extraordinárias para enfrentar a emergência [causada pelas chuvas na Venezuela] e as causas das emergências, que não são outras do que o sistema econômico capitalista

Hugo Chávez, presidente da Venezuela, referindo-se ao projeto que pede aos congressistas poderes extraordinários ao mandatário para que ele legisle por decreto em temas relacionados às chuvas no país

Chávez sobrevoa área afetada pela chuva

Prensa Mirafl ores

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brasilde 16 a 22 de dezembro de 20106

CondenaçãoA Corte Interamericana da OEA

divulgou o resultado do julgamen-to no qual o Estado brasileiro é responsabilizado pela morte de 70 militantes do PCdoB e camponeses durante a Guerrilha do Araguaia. Ao contrário do Supremo Tribunal Fe-deral, que estendeu a lei da anistia aos torturadores e assassinos, a OEA deixou claro que a anistia não vale para quem não foi condenado. O Brasil precisa se explicar!

Sem NaturaA indústria de cosméticos Natura

promove sua imagem como sendo a de uma empresa política e ambien-talmente correta, mas, na prática, não é bem assim: segundo denún-cias dos trabalhadores, ela demitiu, na última semana de novembro, em Cajamar (SP), 30 empregados com problemas de LER (Lesão por Es-forço Repetitivo) e outras doenças ocupacionais. Primeiro, provoca a doença, depois, manda para a rua! Cadê o Ministério do Trabalho?

Manobra judicialConhecido desde os anos 1970

como o político mais corrupto do Brasil, o empresário Paulo Maluf foi pego pela Lei da Ficha Limpa no início da campanha eleitoral deste ano, mas ainda pode ter seus votos validados e assumir uma cadeira na Câmara dos Deputados. O Tribunal de Justiça de São Paulo revogou de-cisão anterior que o condenava. Só falta agora o TSE o inocentar. Será a desmoralização total da Lei da Fi-cha Limpa!

Bolha crescenteApesar de toda a euforia consu-

mista da “classe média ampliada” e da venda recorde de carros e ou-tros produtos parcelados, o Ibedec e a Serasa-Experian alertam que a inadimplência do consumidor cres-ceu 3,5% em novembro, em relação a outubro, a maior alta mensal re-gistrada desde 2005, e que mais de 60% das famílias estão endividadas, sendo que 9% não conseguirão pagar suas dívidas nos próximos meses. Será mesmo?

Saúde privatistaSetores médicos e da saúde no

estado de São Paulo prometem rea-lizar manifestações até que o Projeto de Lei 45/2010 seja rejeitado pela Assembleia Legislativa. Não é para menos, já que o projeto do gover-nador autoriza a venda de serviços públicos do SUS para planos de saú-de particulares. É uma forma de au-mentar a privatização da saúde utili-zando os recursos e os equipamentos públicos. É muita cara de pau!

Violência urbanaMilhares de famílias que moram

em áreas ocupadas de Belo Horizon-te (MG), a maioria há mais de dez anos, estão em pânico com a nova investida da prefeitura e das autori-dades estaduais. O risco de despejo é iminente, já que existem interes-ses poderosos de olho nessas áreas, tanto para especulação imobiliária quanto para a realização de obras relacionadas com a Copa do Mundo de Futebol. Os pobres que se danem!

Posse imediataDezenas de movimentos sociais e

entidades de direitos humanos en-caminharam ao Governo Federal o pedido para que seja expedido ime-diatamente o Contrato de Concessão do Direito Real de Uso das reservas de Canavieiras (BA), criada em 2006, e do Canto Verde (CE), criada em 2009, para legitimar a posse das co-munidades. Sem a conclusão do pro-cesso, as duas áreas continuam de-gradadas pelos grupos econômicos.

Reparo históricoPor unanimidade, a 7ª Câmara de

Direito Público do Tribunal de Jus-tiça de São Paulo confi rmou a apro-vação das contas da administração da prefeita Luiza Erundina relativas a 1991, que haviam sido contestadas pelo Tribunal de Contas do Muni-cípio e pela Câmara Municipal em processo com “procedimento vicia-do”. Na verdade, Erundina sofreu a mais terrível perseguição política durante anos, e só agora a Justiça está sendo restabelecida.

Império vazadoMuito do conteúdo existente nos

documentos secretos veiculados pelo site Wikileaks não é novidade e nem surpreende, mas serve para confi rmar suspeitas e reafi rmar que é sempre prudente desconfi ar da atuação do governo e das grandes corporações dos Estados Unidos. O maior exemplo disso veio a público no caso do pré-sal, quando o lobby das petroleiras tentou interferir no sistema brasileiro de exploração. Até quando?

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Silvia Alvarezde Campo Grande (MS)

AVATAR NÃO FOI a primeira produção dos Estados Unidos a tratar dos impac-tos da ganância do lucro em comunida-des. Floresta das esmeraldas, fi lme de John Boorman, de 1985, conta a histó-ria de um engenheiro estadunidense que veio construir um megaempreendimen-to na Amazônia, mas é confrontado pe-la tribo “povo invisível”, tendo inclusive seu fi lho sido sequestrado pelos índios e se tornado, posteriormente, um deles. A obra em questão é a Usina Hidrelétrica (UHE) de Tucuruí, construída entre 1976 e 1984 em plena ditadura civil-militar, no rio Tocantins, no Pará.

A história não fi ccional das comunida-des atingidas por Tucuruí – até então po-vos invisíveis aos olhos do Estado – es-tá agora registrada no relatório fi nal da Comissão Especial do Conselho de De-fesa dos Direitos da Pessoa Humana (Cddph), órgão ligado ao Ministério da Justiça. O documento foi aprovado no dia 22 de novembro, em Campo Gran-de (MS), na 202ª reunião extraordiná-ria do Conselho. Além da hidrelétrica do Pará, outros seis projetos foram visitados e analisados pela Comissão – casos esco-lhidos seguindo os critérios de diversida-de regional, tipos de projeto (de geração de energia e de retenção de água), tama-nho e fase (em processo de licitação, im-plantação e já concluído). São eles: UHE Canabrava (GO), UHE Aimorés (MG), UHE Foz do Chapecó (RS e SC), Peque-na Central Hidrelétrica (PCH) Fumaça (MG), PCH Emboque (MG) e Barragem de Acauã (PB).

“Ao fi nal de seus trabalhos, a Comissão Especial considera verídica e verifi cável a denúncia encaminhada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens ao Conse-lho de Defesa dos Direitos da Pessoa Hu-mana”. Essa é a conclusão do relatório. O MAB havia encaminhado, em 2006, de-núncias de violações de direitos huma-nos ao Cddph, que deram origem à cria-ção da Comissão Especial. O objetivo era verifi car as denúncias e apresentar pro-postas para prevenir novas violações e minimizar os impactos sofridos pelas po-pulações atingidas por barragens no Bra-sil. Entre 2007 e 2010, a Comissão reali-zou visitas às regiões dos sete casos esco-lhidos, participando de audiências públi-cas, colhendo depoimentos e requisitan-do documentos aos atingidos, órgãos pú-blicos e empresas.

O presidente do Cddph e Secretário Especial de Direitos Humanos, ministro Paulo Vanucchi, na abertura da reunião, parabenizou o trabalho da Comissão Es-pecial considerando-o muito efi ciente e

Barragens e violaçãodos direitos humanosENERGIA Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana reconhece a existência de um padrão de violações de direitos humanos nas barragens

competente. “Foi um trabalho histórico, que levou cerca de quatro anos. Li aten-tamente o relatório e sugeri que seja fei-to um sumário executivo para facilitar a leitura e a divulgação”, declarou o mi-nistro. De acordo com o representante do Ministério Público Federal (MPF) na Comissão, João Aquira Omoto, a aprova-ção do relatório é de extrema importân-cia, “pois é o reconhecimento do Estado de uma situação que estava se perpetu-ando sem que houvesse, de fato, medidas e propostas para resolvê-la”.

Segundo o relatório, “os estudos de ca-so permitiram concluir que o padrão vi-gente de implantação de barragens tem propiciado, de maneira recorrente, gra-ves violações de direitos humanos, cujas consequências acabam por acentuar as já graves desigualdades sociais, traduzin-do-se em situações de miséria e deses-truturação social, familiar e individual”. A Comissão identifi cou, nos casos anali-sados, um conjunto de 16 direitos huma-nos sistematicamente violados, dentre os quais, merecem destaque o direito à in-formação e participação; direito ao tra-balho e a um padrão digno de vida; direi-to à moradia adequada; direito à melho-ria contínua das condições de vida; e di-reito à plena reparação das perdas.

Para Carlos Vainer, relator e represen-tante do Instituto de Pesquisa e Planeja-mento Urbano e Regional da UFRJ na Comissão, o principal direito violado é o da informação. “As populações não são informadas dos grandes projetos que se abaterão sobre suas regiões. No máximo, são confrontadas com processos de co-municação social, que na verdade cons-tituem um marketing desses projetos, cuja mensagem é a de que eles promo-verão o progresso e a felicidade geral da-quela população. Essa violação se verifi -ca em todos os casos estudados”, afi rmou Vainer durante a reunião do Cddph.

A falta de uma defi nição ampla do con-ceito de atingido é apontada no relatório como uma das principais causas de ocor-rência de violações de direitos humanos em implantações de barragens. Um dos frutos desse estudo é o Decreto nº 7.342 da Presidência da República, de 26 de outubro de 2010, que institui o cadastro socioeconômico para identifi cação, qua-lifi cação e registro público da população atingida por barragens. A instituição do cadastro é uma antiga reivindicação do MAB e uma das recomendações do rela-tório da Comissão Especial.

Para Ricardo Montagner, representan-te do MAB na Comissão, o relatório se-rá mais um instrumento de luta para os atingidos por barragens e, por isso, vai ser amplamente divulgado pelo movi-mento. “A aprovação do relatório legiti-mou as denúncias e a luta histórica feita

pelo MAB. Vamos pressionar os órgãos públicos e as empresas para que apli-quem as medidas de reparação recomen-dadas pela Comissão”, declara.

Parece fi cção...Para Montagner, um dos piores casos

analisados pela Comissão é o de Acauã. O relatório defi niu os reassentamentos em que vivem os atingidos como verda-deiros campos de concentração. “Ali, ti-raram o direito à vida. As terras do reas-sentamento não são próprias para o cul-tivo e as comunidades estão isoladas, sem possibilidades de trabalho próxi-mo”, denuncia.

Tucuruí também é considerado um ca-so desolador. Vinte e seis anos depois de construída a usina, centenas de atingidos ainda não foram reconhecidos e indeni-zados. Ocorreram graves impactos so-ciais e ambientais ainda não mitigados com repercussão negativa sobre a exis-tência material e imaterial das popula-ções e dos povos indígenas Parakanã, Asuriní e Gavião da Montanha. Ao con-trário, esses impactos só tendem a au-mentar com a conclusão das eclusas da barragem, inauguradas no dia 30 de no-vembro.

Em Aimorés, o que chamou mais a atenção da Comissão foi a paisagem dei-xada pela hidrelétrica: onde antes cor-ria um rio, há somente poças que cons-tituem, segundo o relatório, verdadeiros criadouros de vetores. A multiplicação de focos de aedes não traz riscos apenas de epidemias de dengue, uma vez que o mosquito é também o vetor urbano da fe-bre amarela.

Recomendações“Sejam quais forem as opções de de-

senvolvimento econômico e as escolhas que vier a fazer a nação nas áreas de ge-ração e transmissão de energia elétrica e de gestão de recursos hídricos, nada po-de justifi car violações de direitos huma-nos”, constata o relatório. A comissão re-comendou a adoção de mais de 100 me-didas para garantir e preservar os direi-tos humanos dos atingidos por barragens e evitar novas violações.

O advogado Leandro Scalabrim, que também acompanhou a elaboração do relatório, destaca a recomendação de que se constitua uma Comissão Nacio-nal de Reparação dos atingidos por bar-ragens no âmbito da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e com a participa-ção de outros órgãos públicos. “O único caso histórico parecido com este é o da comissão de anistia”, diz.

Além disso, o relatório apontou a ne-cessidade de conceber, formular e imple-mentar políticas de reparação específi cas para grupos, famílias e indivíduos mais vulneráveis como idosos, crianças, do-entes crônicos e portadores de defi ciên-cias físicas.

16direitos humanos são

sistematicamente violados nas barragens

“As populações não são informadas dos grandes projetos que se abaterão sobre suas regiões”, critica Carlos Vainer

Em Aimorés, onde antes corria um rio, há somente poças que constituem, segundo o relatório, verdadeiros criadouros de vetores

Protesto em Tucuruí: história das comunidades atingidas está registrada no relatório da Cddph

MAB

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brasil de 16 a 22 de dezembro de 2010 7

A REPERCUSSÃO DA existência de músicos boêmios dotados de in-discutível talento se limitava a um setor restrito, e em certo sentido isolado da sociedade.

Almirante – a mais alta patente do rádio, como se dizia – pagou o preço de um pioneirismo: se dispu-nha a publicar um livro exclusiva-mente sobre os “sambistas”. E, de fato, publicou. Contudo o livro não teve a ampla difusão que pretendia alcançar.

Depois dele vieram os dois auto-res da biografi a “clássica” de Noel, Carlos Didier e João Máximo. Vá-rios críticos aproveitaram o espa-ço aberto pelos dois biógrafos: meu amigo Sergio Cabral, Hermínio Bello de Carvalho, Jacy Pacheco, Luiz Ricardo Leitão, entre outros, provocaram saudáveis discussões.

Noel chegou a se tornar algo co-mo um nome símbolo da MPB. Su-as canções foram cantadas por gen-te como Aracy de Almeida, Marília Batista, Aurora Miranda, Francis-co Alves e outros.

Ele combinava perfeitamente a disciplina exigida pela arte, a poe-sia e a musicalidade, como também

a boemia, a disponibilidade para o novo, e um ânimo brincalhão sem-pre pronto para ser reativado.

Seus leitores e seus ouvintes gos-tavam das “molecagens” que ele fa-zia. Uma historinha que fazia su-cesso era aquela do bonde: Noel descia do bonde lotado numa esta-ção que era logo ultrapassada pe-los viajantes. E, ao descer, gritava para os outros “viado!”. As pesso-as, naturalmente, se voltavam pa-ra ver quem era aquele que grita-va. Noel as decepcionava, esclare-cendo: “eu chamei um só”.

A unidade dos dois elementos perceptíveis na formação da cons-ciência de Noel é um problema pa-ra nós, pesquisadores, mas não pa-ra ele. O compositor expressava tanto o espírito libertário rebelde das suas canções, como a autodis-ciplina necessária ao trabalho dos artistas.

A credibilidade não era essen-cial. Num de seus primeiros suces-sos, uma moça brasileira é abando-nada por um português que embar-ca no navio “Adamastor, pra Por-tugal”, a fi m de “se casar com uma cachopa”. A solidariedade à mo-

ça leva o compositor a propor que se desse uma sova no galego, reco-nhecendo que ele já tinha uma si-tuação segura em Portugal.

Outra ambiguidade crucial na al-ma do poeta estava na sua visão das mulheres. Lembremo-nos do samba em que ele diz: “Você vai se quiser, pois a mulher/ não se deve obrigar a trabalhar/ mas não vá di-zer depois/ que você não tem vesti-do/ que o jantar não dá pra dois”.

Ao longo de sua obra, em diver-sas ocasiões, Noel soube ser ferino em sua representação da realidade e da malandragem. A proposta de substituir a palavra “malandro” pela expressão “rapaz folgado” te-ve, em Wilson Batista, um efeito devastadoramente irritante, mas não ocasionou um rompimento de relações entre os dois. Para Wilson Batista, para Ismael Silva e o pró-prio Noel, as contradições vinham da vida: “as vezes é um sorriso/que acompanha uma esperança;/outras vezes é um riso/que provo-ca uma vingança/”.

Num samba de 1931, Noel já se encaminha para a busca de uma contradição que pode se tornar

maior do que a razão: “da discus-são sai a razão/mas ás vezes saipancada/A questão é complicada/Quero ver a decisão/”.

A década de 1930 fi cou marcadapela contribuição de Noel à MPB. Eo que se viu foi não aquilo que Noelsublinhava, o espírito brincalhão,o humor, mas a espantosa produ-ção poética. Para compor seus po-emas, o compositor precisou con-viver com os grandes tumultos dacriação artística, sem se deixar ab-sorver por eles.

O poeta sobreviveu a um aciden-te, quando o médico parteiro lhe quebrou o maxilar. Mais tarde, fi el à sua paixão pelas mulheres, sen-tia-se feio. E compensava essa pre-tensa feiúra com o talento que ti-nha na música e nas letras. Agora, transcorridos 100 anos da sua en-trada em cena, nós, os sobreviven-tes, observamos sua produção artís-tica e somos levados a reconhecer a força de sua poesia: “Fazer poema lá na Vila é um brinquedo/ao som do samba dança até o arvoredo/eu já chamei você pra ver/você não viu porque não quis/quem é você que não sabe o que diz/”.

Noel Rosa: 100 anos Leandro Konder

O compositor expressava tanto o espírito libertário rebelde das suas canções, como a autodisciplina necessária ao trabalho dos artistas

Thays Puzzide Brasília (DF)

UM DEBATE PARA discutir os impactos que o povo camponês sofre com o atual modelo de produção e expansão energé-tica adotado pelo Brasil. Este foi o princi-pal objetivo do evento “Matriz Energéti-ca Brasileira: suas potencialidades e de-safi os”. Organizado pelo Brasil de Fato com o apoio da Petrobras, o debate reu-niu, no dia 10, dezenas de trabalhadores rurais sem-terra no auditório da Com-panhia Nacional de Abastecimento (Co-nab), em Brasília (DF).

Mediada pelo professor Juarez Mar-tins Rodrigues, da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto Federal Goiano, a mesa foi composta pelo pro-fessor do Centro de Desenvolvimen-to Sustentável da UnB, João Nildo de Sousa Vianna; pelo diretor de Política Agrícola e Informação da Conab, Sil-vio Porto; e pelo representante da Via Campesina Brasil, por meio do Mo-vimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Joceli Andreoli.

Motivado pela frase “energia para que e para quem”, Andreoli explicou, essen-cialmente, os atuais desafi os enfrenta-dos pela sociedade brasileira no que diz respeito à geração de energia por meio das usinas hidrelétricas que tiveram for-te avanço no país nos últimos anos, prin-cipalmente após o início do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “O Brasil irá investir R$ 1,5 trilhão na área da energia nos próximos anos. Desse di-nheiro, R$ 1 trilhão será para a constru-ção de hidrelétricas”, ressaltou.

Segundo dados de 2006 do Ministério de Minas e Energia, resgatados por An-dreoli, 2,1% da matriz energética mun-dial vêm da hidreletricidade, ou seja, da água. Já no Brasil, essa mesma fon-te é responsável por cerca de 17% da pro-dução de energia. A principal matriz do mundo continua sendo o petróleo, com 35,6%, seguido do carvão e do gás natu-ral, com 24,1% e 20,9%, respectivamen-te. No Brasil, o petróleo também é o prin-cipal gerador de energia, com 38,4%, se-guido da biomassa, com 29,7%. “Mas quando falamos de matriz de energia elé-trica, 85,4% da produção brasileira é hi-dráulica”, comentou.

E por que as transnacionais querem a energia hídrica? Conforme Andreo-li, porque além de apresentar uma alta produtividade, ela tem um baixo custo de produção e isso, consequentemente,

permite maiores taxas de lucros. O Brasil ocupa o terceiro lugar entre as maiores potencialidades em hidreletricidade, fi -cando atrás da Rússia e da China. Devido às difi culdades climáticas da primeira e da alta taxa populacional da segunda, os investidores procuram o Brasil que, além de ter condições favoráveis para a cons-trução de usinas e de impactar um me-nor número de populações, ainda con-tam com o total apoio governamental.

“Se o Brasil tem a fonte mais efi ciente de produção de energia, por que paga-mos tarifas tão caras?”, questionou An-dreoli. Segundo ele, a produção de ener-gia do país está voltada para as grandes empresas que ainda pagam taxas bem menores pelo kilowatt (kW) se compa-rada com as taxas pagas pelos consumi-dores comuns. “Por exemplo, a Vale pa-ga R$ 3,30 por 100 kW, já a tarifa nor-mal para a mesma quantidade é de R$ 46,70”, comparou Andreoli. Ele ainda ressaltou que, além de pagar taxas abu-sivas, os povos do campo sofrem com os impactos das construções das usinas que expulsam populações inteiras de su-as terras. “Hoje existem mais de um mi-lhão de impactados por barragens no Brasil e 70% destes, sem ter outra alter-nativa, vão para as favelas das cidades, inchando os grandes centros que não oferecem nem uma infraestrutura dig-na”, lamenta.

BiodieselDe acordo com Silvio Porto, diretor

de Política Agrícola e Informação da Conab, 42% do biodiesel são produzi-dos na região centro-oeste. Essa fon-te de energia é destinada, na sua maio-ria, para a região sudeste, que consome 42% de toda produção nacional. “Isso já demonstra um desequilíbrio, uma rela-

ção pouco lógica entre produção e con-sumo”, destacou Porto.

O diretor conta que cerca de 90% da produção do biodiesel é oriunda da soja, grão cuja área plantada está explodin-do. Segundo Porto, entre 2005 e 2014, para atender a demanda de 5 bilhões de litros do óleo, a área total de produção do grão irá passar de 1,5 milhão para 8,5 milhões de hectares.

Se levado em consideração que hoje a soja representa, segundo Porto, cerca de 45% da produção nacional de grãos e se a demanda for muito expressiva e se imaginar a ampliação de área para esta produção, “nós poderemos sofrer pres-são sobre a Amazônia, certamente tere-mos mais pressão sobre o Cerrado e te-remos substituição de culturas, como vem acontecendo fortemente nos últi-mos anos, especialmente no centro-oes-te, com o abandono da produção de ar-roz em detrimento da soja, que tem mais rentabilidade.”

Para Porto, o grande desafi o é a to-mada dos territórios no cultivo da soja para a produção do biodiesel, fazendo com que a agricultura familiar, respon-sável por 80% da produção dos alimen-tos, perca ainda mais espaço, colocando em risco a segurança alimentar do país. “A nossa soberania alimentar pode es-

tar efetivamente afetada em função des-te tipo de relação”, salientou.

Mudanças climáticas“As mudanças climáticas são um pro-

blema global e requerem uma respos-ta global. As crises ambientais, fi nancei-ras e sociais decorrentes dessas mudan-ças climáticas não são isoladas da contí-nua perda da biodiversidade e degrada-ção dos ecossistemas.” A fala é do profes-sor da UnB, João Nildo de Sousa Vianna, que destacou as infl uências que o atual modo de produção tem sobre o clima.

De acordo com ele, existem dois cená-rios para o Brasil e para as comunidades internacionais. O primeiro é que se não houver mudanças de hábitos como as al-tas emissões de poluentes na atmosfera, em 2100 a temperatura média no Brasil vai subir 6ºC. Esse aumento trará con-sequências que irão refl etir em prejuí-zos para o meio ambientes, a saúde e a economia. “A previsão que temos é que, com a diminuição das chuvas, em torno de 60% no nordeste, por exemplo, e o au-mento na frequência de dias secos conse-cutivos, toda a Caatinga irá desaparecer”, alertou. Porém, se medidas forem adota-das para a redução drástica dessas emis-sões, no mesmo período de 90 anos, a temperatura subirá 1,5ºC.

2,1%da matriz energética mundial vêm

da hidreletricidade

Matriz energética, desafi o para o paísDEBATE O modo de produção de energia que o país adotou coloca em risco o meio ambiente e as populações camponesas, além de afetar efetivamente a soberania alimentar

“Se o Brasil tem a fonte mais efi ciente de produção de energia, por que pagamos tarifas tão caras?”, questionou Andreoli

“As mudanças climáticas são um problema global e requerem uma resposta global”, alertou João Nildo de Sousa Vianna

Debate discutiu os impactos causados pelo atual modelo de produção energética adotado pelo Brasil

Roni Brandão

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brasilde 16 a 22 de dezembro de 20108

Renato Godoy de Toledoda Redação

OS DEFENSORES de uma política eco-nômica heterodoxa, pró-desenvolvi-mento e menos submissa ao interesse dos banqueiros, viram com bons olhos o anúncio da saída de Henrique Mei-relles do Banco Central. A manuten-ção de Guido Mantega no Ministério da Fazenda também foi vista de forma po-sitiva, já que o favorito para sucedê-lo seria Antonio Palocci, responsável por um forte ajuste fi scal no início do go-verno Lula.

O escolhido por Dilma para suceder Meirelles foi Alexandre Tombini, atual diretor de normas do banco e funcioná-rio de carreira da instituição. Segundo Mantega, o novo presidente do BC não “deve vassalagem ao mercado”. Para al-guns analistas, a indicação de um téc-nico sem expressão política para o car-go pode indicar que o banco responderá mais à Fazenda do que sob o comando de Meirelles, quando este gozou de uma autonomia informal.

Segundo essa versão, Mantega teria ganhado força com o respaldo de Lula e Dilma e poderia ser o principal formu-lador da política econômica no próxi-mo governo. De orientação keynesiana, o ministro, ao lado de José Dirceu e da própria Dilma, sempre foi apontado co-mo membro do time “desenvolvimentis-ta” no governo. Dirigiu o Planejamento (2003-2004) e o BNDES, antes de che-gar à Fazenda, após o escândalo do ca-seiro Francenildo que derrubou Paloc-ci em 2005.

Porém, a atuação de Tombini junto a Meirelles, e ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, indica que a políti-ca de metas de infl ação e superavit al-to deve ser seguida no Banco Central. A indicação do novo presidente do BC foi elogiada por expoentes do mercado, co-mo o presidente do Bradesco, Luiz Car-los Trabuco.

Tombini foi um dos negociadores do empréstimo do Fundo Monetário In-ternacional ao Brasil em 1998 e aju-dou a instituir as metas de infl ação no país, um dos pilares da política econô-mica atual.

Diferentes interpretaçõesPara reverter o ônus fi nanceiro cria-

do no período pré-eleitoral de 2002, que elevou o chamado risco Brasil a um patamar recorde, a equipe econômica chefi ada por Palocci e Meirelles elevou o superavit primário (economia de re-cursos para o pagamento da dívida) do país a 4,25%. Meta mais realista do que o rei, já que o FMI, à época credor do Brasil, recomendava uma economia de 3,75%. O esforço fi scal era tão enfático que chegou a ultrapassar a meta por di-versas vezes, atingindo notáveis 4,85% em 2005.

Outro aceno, esse mais dolorido aos trabalhadores, foi a reforma previden-ciária que determinou a obrigatorieda-de da contribuição também para os tra-balhadores inativos em 2003. No aspec-to monetário, o BC chefi ado por Meirel-les iniciou o governo ampliando os ju-ros. A taxa básica do BC, a Selic, alcan-çou 26,5% em maio de 2003. Hoje, ela é de 10,75%.

Na opinião de Paulo Passarinho, pre-sidente do Conselho Regional de Econo-mia do Rio de Janeiro, a formação des-sa nova equipe econômica não traz no-vidades. “Haverá rigor fi scal, com me-tas de infl ação e superavit primário”, aponta.

Para o economista, o cenário atual não se assemelha com o de 2003. “Naquela época, a deterioração era interna. Ago-ra, a principal preocupação é o cenário externo, que pode refl etir na dinâmica interna. Não são conjunturas compará-veis, embora a hegemonia política conti-nue a mesma”.

Já o economista José Carlos de Assis, presidente do Instituto Desemprego Ze-ro, apresenta uma visão diferente sobre

a saída de Meirelles e a nova composi-ção da equipe econômica. Para ele, há uma sinalização positiva que pode alte-rar a política monetária, que foi a parte “mais fraca dessa gestão”. “Há uma si-nalização de que se pode fl exibilizar um pouco a taxa de juros. E essa talvez seja a medida mais importante para se fazer em termos de macroeconomia”, apon-ta Assis.

Aceno desnecessárioMantega dá sinais de que pretende re-

alizar um aceno ao mercado, o que deve “tranquilizar” investidores. No entanto, mesmo dentro do argumento ortodoxo, não há motivo aparente para um aperto, como promete o ministro. O risco Bra-sil despencou durante o governo Lula e o país foi considerado um porto-seguro para os investidores, atingindo o cha-

mado investment grade – título criado por agências classifi cadoras de risco pa-ra orientar a especulação fi nanceira.

Se havia algum receio de “calote” ou instabilidades, ele foi apaziguado comoito anos de política econômica auste-ra em demasia.

O principal argumento para a manu-tenção da política de juros é o temor dainfl ação. A taxa Selic, atualmente em 10,25%, apresenta um dos menores ín-dices desde o início do governo, masainda é o maior do mundo.

A queda desses juros não foi acom-panhada pelo setor fi nanceiro, que não tem qualquer regulamentação sobre ospread bancário – que consiste na dife-rença das taxas que o banco paga paraadquirir o dinheiro e do índice que ele aplica ao tomador de empréstimo fi nal.

Há diferentes índices de infl ação, mas o BC sinaliza que 2010 e 2011 de-vem apresentar um aumento nos pre-ços maior do que o previsto pelas me-tas, 5,85% e 5,21%, respectivamente. O governo adota com meta 4,5%, com to-lerância de dois pontos para mais ou pa-ra menos. O mercado já prevê que a Se-lic deve aumentar no ano que vem paracombater a pressão infl acionária.

A sinalização de aperto também con-tradiz o discurso muito utilizado por Lu-la e Dilma durante as eleições. Tal linhade raciocínio aponta que o Brasil foi opaís com a política mais acertada para acrise, ampliando o consumo, o gasto pú-blico e a oferta de crédito. De fato, o paísfoi o “último a entrar e o primeiro a sair da crise”, no jargão do presidente atual e da eleita.

O mundo apresenta um cenário reces-sivo, ainda motivado pela crise desenca-deada em 2008. O cenário externo apre-senta diversas “bolas da vez”, como Gré-cia, Espanha e Irlanda. A política restri-tiva torna o Brasil mais próximo de umcrescimento medíocre do que de um vir-tuoso, como deve ser o de 2010. porém, o Brasil tem sido um dos poucos países, entre as dez maiores economias, comboas previsões de crescimento.

Segundo José Carlos de Assis, aindanão dá para saber ao certo se tal ajusteserá concretizado ou se trata-se apenas de um anúncio para “jogar para as gale-rias”. “Talvez seja apenas um aceno para os conservadores e neoliberais. Não há qualquer motivo para um ajuste fi scal. A grande mídia faz uma campanha por umcorte de gastos e ajuste fi scal que chega a ser irritante. Estamos em uma situa-ção em que parte do mundo vive um ce-nário de retração e defl ação. Felizmen-te, o Brasil vive uma conjuntura oposta,graças à política de estímulo fi scal. E a grande mídia ‘esculhamba’ a política de estímulo fi scal e de ampliação do gasto público. Então, o que eles querem? Quetomemos o mesmo caminho da Grécia, da Irlanda? Um caminho de desempre-go brutal?”, questiona Assis.

Mais do mesmo na política econômica?POLÍTICA Mesmo com saída de Meirelles e a ausência de Palocci na equipe econômica, governo Dilma deve ceder a pressão de mercado

Mesmo com crise, pacote para policiais não deve sair

da Redação

As centrais sindicais se reuniram com o ministro Paulo Bernardo, atualmente no Planejamento e futuro chefe das Co-municações, para exigir um maior rea-juste do salário mínimo.

No orçamento de 2011, foi aprovado um salário mínimo de R$ 540, que, se-gundo os cálculos da lei do salário mí-nimo, é refl exo da estagnação da eco-nomia no ano de 2009. A legislação, de 2007, exige que o reajuste anual do mí-nimo seja igual ou maior à infl ação e ao crescimento do PIB do ano anterior.

Os sindicalistas querem que o salário seja de R$ 560 e pressionam o governo. Em documento conjunto, as centrais de-fenderam o valor de R$ 580. O índice é fruto do cálculo da infl ação de 2010, es-timada em 5,85%, e o crescimento do PIB entre 2006 a 2009 (3,8%).

Com a pressão, o ministro do Traba-lho, Carlos Lupi (PDT) – que deve ser

Com a crise da segurança no Rio deJaneiro, os policiais pretendem utilizaro momento para convencer os governos da importância da aprovação da PEC.Mas os governos estaduais são refratá-rios à medida.

“Logo após o anúncio da equipe eco-nômica, já afi rmaram que a PEC não se-ria aprovada. Essa PEC poderia ajudar a recuperar a polícia, sobretudo aquino Rio de Janeiro onde, diga-se, o cen-tro do crime está na corrupção policial, não neste lúmpen-proletariado arma-do”, aponta Paulo Passarinho, do Con-selho Regional de Economia do Rio deJaneiro.

Para José Carlos de Assis, do Insti-tuto Desemprego Zero, a aprovação daPEC 300 não infl ui no cenário macro-econômico do próximo período. “Pre-cisamos parar de tratar todos os pro-blemas trabalhistas, sociais e políticoscomo questões macroeconômicas. Es-sa é uma questão específi ca”, defen-de. (RGT)

PEC 300 que benefi ciaria policiais e membros do Judiciário só será discutida em 2011

R$ 580é o valor do salário mínimo

defendido pelas centrais sindicais para 2011

“Naquela época, a deterioração era interna. Agora, a principal preocupação é o cenário externo”, diz Paulo Passarinho

“Felizmente, o Brasil vive uma conjuntura oposta [à do restante do mundo], graças à política de estímulo fi scal”, observa José Carlos de Assis

mantido na pasta –, já fala em um mí-nimo de R$ 550. Mas a presidente eleita parece insistir no valor de R$ 540.

O governo Lula também rejeita a hi-pótese de aprovar uma PEC que auto-riza o reajuste a servidores públicos da segurança e do Judiciário, que acarreta-ria, segundo os cálculos ofi ciais, em uma “despesa” extra de R$ 8 bilhões. A mí-dia corporativa tratou de considerar o tema como uma “gastança” ou “pacote de bondades”. Paulo Bernardo chegou a afi rmar que não tem medo de greve, já que “surgiu na vida fazendo greve”.

Guido Mantega, Miriam Belchior e Alexandre Tombini

Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

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de 16 a 22 de dezembro de 2010 9internacional

Vinicius Mansurenviado a Cancún (México)

NÃO BASTAM os diversos desastres ambientais registrados mundo afora. O documento elaborado em Cochabamba, Bolívia, durante a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas, na qual estavam mais de 35 mil pesso-as em abril deste ano, tampouco foi su-fi ciente. Não bastaram os mais de 200 protestos realizados em 37 países no marco da jornada de lutas “Milhares de Cancún”. Também não bastaram as du-as marchas puxadas pela Via Campesina e os três fóruns realizados – por distin-tas organizações sociais – paralelamen-te à Conferência do Clima da ONU (COP 16) em Cancún, México.

Nas palavras do equatoriano Luis An-drango, dirigente da Coordenadoria La-tino-Americana de Organizações do Campo (Cloc), “a COP 16 discutiu só soluções de mercado para os efeitos da crise climática que criou, e deixou nas mãos do povo, de novo, o dever de en-frentar as suas causas”.

AcordosPor um lado, a constatação de An-

drango se comprova por um não acordo. Nada foi defi nido na COP 16 sobre a re-novação do Protocolo de Quioto, que ex-pira em 2012. Portanto, nenhuma meta juridicamente vinculante foi estabeleci-da sobre redução das emissões de gases de efeito estufa. O texto de Cancún pre-vê apenas o estabelecimento de metas voluntárias por parte dos países e, ain-da, permite a elevação da temperatu-ra global em 2°C, com previsões de re-visão desse objetivo, entre 2013 e 2015, para 1,5°C.

Por outro lado, os acordos mais im-portantes tirados em Cancún estabe-lecem a operação de um Fundo Verde que deverá “mobilizar” 100 bilhões de dólares por ano, até 2020, para com-bater o aquecimento global em países pobres. O Banco Mundial será seu te-soureiro. Também foi aprovado o pro-grama de Redução de Emissões proce-dentes do Desmatamento e Degradação (REDD), para fi nanciar a “proteção” de fl orestas.

Diante do fracasso da COP 15, em Co-penhague, Dinamarca, os acordos de Cancún foram celebrados pelo comitê organizador mexicano como uma vitó-ria do multilateralismo e foram motivos de aplausos entusiasmados por parte de quase todas as delegações ofi ciais.

A voz da oposiçãoCoube à Bolívia – e, em menor inten-

sidade, aos países da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e às na-ções insulares – manter a posição fi rme pela defi nição de metas obrigatórias e contrária a mecanismos de mercado co-mo solução. Em comunicado ofi cial, o governo boliviano considerou os acor-dos como uma “vitória vazia e falsa, im-posta sem consenso e seu custo será me-dido em vidas humanas”.

Para a Bolívia, houve uma campanha deliberada, pós-COP 15, para reduzir as expectativas de um acordo realmen-te comprometido e, durante a COP 16, uma campanha para isolar o país. Em seu último pronunciamento na confe-rência, o embaixador da Bolívia na ONU (Organização das Nações Unidas), Pa-blo Sólon, exemplifi cou a manobra:

“As propostas de Cochabamba foram incorporadas ao texto de negociação, en-tretanto o texto de Cancún excluiu siste-maticamente essas vozes (...) Em termos de fl orestas, propomos um mecanismo para deter o desmatamento que não nos dirija a lançar um mercado de carbono (...). Mas, como se fosse mágica, só inclu-íram mercados, e os outros mecanismos não são mencionados. Não se menciona diretamente o mercado de carbono, mas

apontam diretamente ao mercado, por-que querem pôr preço nas árvores (...). Quando a Bolívia disse que não estava de acordo com o texto nas últimas horas da conversação, a objeção foi rechaçada.”

Por considerar que o acordo fi nal vio-lou o regulamento da ONU na aprova-ção de documentos, a Bolívia anunciou que recorrerá à Corte Internacional de Justiça de Haia para contestar as reso-luções da COP 16.

Problemas nos acordosSolón também criticou a forma como

se desenhou o Fundo Verde, pois a ge-rência do Banco Mundial nunca foi um

Dinheiro que dá em árvoreCOP 16 Acordos de Cancún ratifi caram a insensibilidade às demandas sociais e o projeto do mercado como solução para as mudanças climáticas

do enviado a Cancún (México)

Foram seis caravanas saídas de dis-tintos pontos do México. Um fórum de seis dias com discursos ilustres, como o de Leonardo Boff e Evo Morales. Duas marchas que reuniram mais de dez mil manifestantes – e, também, milhares de policiais antimotim – pelas ruas de Can-cún. Empunhando o slogan “campone-ses e camponesas esfriamos o planeta”, a Via Campesina buscou disputar, com a COP 16, territórios no México e consci-ências mundo a fora.

“Estava claro que a COP seria uma fraude, nossa meta era denunciar isso e marcar o debate. Defender as propostas que tiramos em Cochabamba, mostrar que os camponeses têm milhares de so-luções para combater a crise climática. Conseguimos ser a voz paralela, junto a países aliados, sobretudo, a Bolívia”, avaliou o assessor técnico da Via Cam-pesina, Peter Rosset.

O próximo passo tirado pela Via Cam-pesina é difundir o debate, centran-do forças na realização de uma consul-

datários e representantes dos gover-nos, levando a uma discussão de cará-ter mundial, porque isso é um desafi ode toda a humanidade”, relatou o diri-gente da Coordenadoria Latino-Ameri-cana de Organizações do Campo (Cloc), Luis Andrengo.

Consulta sobre o climaA consulta internacional sobre o te-

ma é um proposta originada na Confe-rência Mundial dos Povos sobre Mu-danças Climáticas, realizada no últimomês de abril, em Cochabamba, Bolívia.Ainda não há uma data defi nida parasua realização, porém, a Via Campesi-na especula que a entrega dos resulta-dos seja realizada nas vésperas da Con-ferência sobre Desenvolvimento Sus-tentável, conhecida como Rio+20, emmaio de 2012.

Segundo Andrango, também devementrar na agenda de lutas contra a criseclimática um encontro entre governosda Alba, partidos de esquerda e movi-mentos sociais em março de 2011, alémda COP 17, em Durban, África do Sul,também no ano que vem. (VM)

Após intensa ação política em Cancún, Via Campesina quer popularizar debate sobre mudanças climáticas e priorizar consulta mundial

Construir o consenso desde os povos

“A COP 16 discutiu só soluções de mercado para os efeitos da crise climática que criou, e deixou nas mãos do povo, de novo, o dever de enfrentar as suas causas”

consenso e porque não se defi niu a ori-gem dos recursos. O embaixador defen-deu que os países desenvolvidos arcas-sem integralmente com esse fundo, co-mo forma de pagar sua dívida climáti-ca, e que se estabelecesse claramente percentuais, para evitar ou limitar, por exemplo, que os investimentos de em-presas na compra de créditos de carbo-no representem parte considerável do Fundo Verde. Nesse sentido, a Bolívia solicitou que o verbo da expressão “mo-bilizar recursos” fosse substituído por “prover”, mas ela não foi atendida.

A tolerância em relação ao aumento da temperatura global em 2°C também

foi criticada. “Para a Bolívia, isso sig-nifi caria a desaparição de nossas mon-tanhas com neve perene, tomando em conta que nos últimos 20 anos perde-mos um terço delas. Segundo o próprio IPC [instituto de pesquisa da ONU], aelevação de 2°C só dá 50% de probabi-lidade de que não haja um impacto ir-reversível para a vida no planeta”, dis-se Solón.

A Bolívia também denunciou comodescaso da COP 16 o fato de não haveruma menção sobre a criação de um Tri-bunal de Justiça Climática sobre os im-pactos das guerras nas mudanças climá-ticas e sobre o início de um processo ofi -cial de debate da Declaração de Direitosda Mãe Terra.

REDDDe acordo com a pesquisadora Sil-

via Ribeiro, o REDD é o pior ponto des-ses acordos. A ideia do programa é com-pensar economicamente quem deixe dedesmatar. “Por isso dizem ‘desmata-mento evitado’: primeiro, há que se des-matar, para depois vender ou deixar defazê-lo. O REDD premia como ‘desma-tamento evitado’ até aqueles que dei-xam 10% da área original de pé”, expli-ca Ribeiro.

A quantidade de carbono que se dei-xa de emitir ao se evitar as queimadase os cortes se transformam em créditospor compensação de emissões de car-bono, que podem ser vendidos a go-vernos ou empresas dispostas a pagarpor delegar a terceiros sua responsabi-lidade. Ao programa original, agrega-ram-se as versões REDD+ e REDD++– ainda não sacramentadas pela ONU– que incluem pagamentos por acres-centar capacidade de armazenar carbo-no e por conservação e manejo susten-tável da fl oresta.

De acordo com a pesquisadora, no pri-meiro caso, se paga por colocar, no lugarda vegetação devastada, monocultivo deárvores, como o eucalipto, por exem-plo, conhecido por danifi car o ecossis-tema em que está localizado. No segun-do, agentes externos dirão às comunida-des o que se pode fazer ou não com seuterritório, de modo a garantir a capaci-dade de absorção de carbono. Estas, porsua vez, “assinarão ‘voluntariamente’ aalienação do manejo autônomo em tro-ca de alguns ‘pesos’ [dinheiro]. Empre-sas altamente poluentes comprarão essacapacidade para seguir contaminando eainda poderão revender seus créditos decarbono em um mercado secundário,onde se registra o maior volume mone-tário dos mercados de carbono. Ou seja,venda e revenda de, literalmente, ar pu-ro”, concluiu.

Apesar das previsões de Ribeiro, aforma como se fi nanciarão as ações de REDD ainda não foram defi nidas pela ONU. Estão em jogo a possibilidade defi nanciamento exclusivamente por meio de fundos públicos ou a permissão para participação do mercado de créditos de carbono. Entretanto, a COP 16 adiou es-sa decisão para o ano que vem.

ta mundial sobre mudanças climáticas. “Vamos levar a discussão a cada um de nossos países, refl etir, formar as pesso-as. Precisamos também fortalecer nos-sos meios e nossa política de comunica-ção. Mas queremos, sobretudo, levar a cabo uma consulta internacional, popu-lar. Queremos um processo de educação popular, de fortalecimento de alianças e do nível de formação e informação. Isso tiraria a discussão desses poucos man-

“Queremos levar a cabo uma consulta internacional, popular. Queremos um processo de educação popular, de fortalecimento de alianças e do nível de formação e informação”

Protesto em Cancun: camponeses têm milhares de soluções para combater a crise climática

Vinicius Mansur

“O REDD premia como ‘desmatamento evitado’ até aqueles que deixam 10% da área original de pé”, explica Silvia

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internacionalde 16 a 22 de dezembro de 201012

Eva Bartlettde Beit Hanoun (Palestina)

“CULTIVAMOS EM nosso telhado por-que somos agricultores sem-terra”, diz Moatassan Hamad, de 21 anos, morador de Beit Hanoun, localidade do norte da Faixa de Gaza, na Palestina.

“Nossa família é grande e, por sorte, podemos nos alimentar com o que plan-tamos”. Eles cultivam uma variedade de verduras. “Repolho e berinjela no inver-no, e endochriyya [uma planta usada pa-ra fazer sopa], alho e cebola no verão. E, também, outras coisas que podemos ven-der, como fl ores”, explica.

Os Hamad vivem em uma típica casa construída com blocos de cimento, em meio a um acampamento de refugiados palestinos. “Nos acampamentos, não há espaço, nem árvores, nem parques pú-blicos”, afi rma Moatassan. As exuberan-tes vegetações e o colorido de seu jardim contrasta com o cinza que domina sua casa e as vizinhas. Em grandes contêine-res de plástico azul crescem tâmara, la-ranja e palmeiras, salsinha, cactos e pi-mentas. “Nossos amigos gostam de vir se sentar aqui, porque a maioria deles não têm nada parecido”, conta.

O diretor do Centro Palestino para o Desenvolvimento da Juventude, Hus-sein Shabat, orienta as famílias que tra-balham em projetos de hortas no telha-do, às vezes com ajuda de doadores es-trangeiros. “Beit Hanoun é um lugar im-portante para essas hortas. Está perto da fronteira com Israel, e boa parte da terra agrícola foi destruída reiteradamente pe-lo Exército israelense”, afi rma.

DestruiçãoSegundo o Comitê Palestino de Alívio

Agrícola, até 7.500 hectares de terra agrí-cola de qualidade foram destruídos pe-los tratores e bombardeios israelenses. “Também há muitos agricultores que não podem ter acesso às suas terras por causa dos israelenses”, diz Hussein.

A imposição israelense de uma “zona de exclusão” ao longo das fronteiras de Gaza engole pelo menos um terço das terras agrícolas da faixa, tornando letal qualquer área fronteiriça em qual os pro-dutores queiram chegar. Antes, essas ter-ras produziam trigo, cevada e uma varie-dade de frutas. Era o celeiro de Gaza.

Hortas fl orescem em telhados de Gaza

“Muitas pessoas abandonaram suas casas e terras perto das áreas de fronteira por medo dos constantes disparos e ata-ques com explosivos praticados pelos is-raelenses”, conta Hussein. Agora, na pai-sagem de Beit Hanoun, não há água nem árvores.

No telhado achatado e quadrado de ci-mento de outra casa do lugar, Ahed Sha-bat, de 42 anos, cuida das plantas e ver-duras que crescem em cubas e recipien-tes de cimento, em meio à roupa no varal e recipientes com água. “Cultivamos pro-dutos que possamos usar o ano todo, co-mo alho e cebola”, diz. “Mas cultivamos também todas as plantas da estação, co-mo espinafre, salsinha, rabanete, berin-jela e milho. Também plantamos fl ores e ervas para fazer chá, como menta, mer-remea e zaatar”, acrescenta.

As últimas duas ervas, que em geral crescem silvestres nas colinas da ocu-pada Cisjordânia, são ingredientes bási-cos para a maior parte do chá dos palesti-nos, e possuem propriedades medicinais. O telhado ajuda a manter sua família de seis membros, e é uma ilha de calma. “Esta horta se destina mais ao consumo de nossa família, e serve para economi-zarmos dinheiro”, afi rma Ahed. “Minha família desfruta de se sentar aqui entre

as plantas, porque a maior parte da vida vegetal de Beit Hanoun foi destruída”.

Combate à pobrezaProjetos de cultivo doméstico de ali-

mentos, como os desenvolvidos em hor-tas de telhado, bem como a criação de co-elhos e frangos nos tetos, ajudam a com-bater a grave pobreza de 80% da popula-ção de Gaza que dependem da assistên-cia alimentar. Os que vivem em lotados acampamentos de refugiados ou super-povoadas localidades, mas têm acesso a um telhado, podem manter longe a des-nutrição e, ao mesmo tempo, gerar uma pequena renda.

“Gosto de criar aves”, diz Abu Jehad, de 17 anos, no telhado de sua coopera-tiva de apartamentos do centro de Gaza, onde cria cerca de 100 frangos e 20 pom-bas. “Aprendi sobre os frangos olhando como meu amigo trabalhava em sua co-operativa. O único lugar que tinha para criar frango era nosso telhado”.

Seu empreendimento agrícola consiste em uma área de 1,5 por 3 metros de pe-daços de madeira, metal e rede que abre diariamente para deixar os animais cor-rerem e ciscarem por todo o local. “Co-mecei com nove frangos que meu ami-go me deu, e comprei outros dez com di-nheiro que tinha guardado. Minha famí-lia me deu um pouco mais para ajudar, e, assim, comprei outros 30”, explica.

O negócio não é fácil. “Nessa primave-ra [outono, no Brasil], teve vento frio pe-la manhã. Eu só tinha material básico pa-ra uma jaula simples, que estava muito exposta. Alguns frangos morreram por causa do vento e da exposição ao sol in-tenso”, diz. Outros fi caram doentes. “Os remédios são muito caros devido ao cer-

7.500hectares de terra agrícola de

qualidade foram destruídos pelos tratores e bombardeios israelenses

em Beit Hanoun, em Gaza

“Beit Hanoun é um lugar importante para essas hortas. Está perto da fronteira com Israel, e boa parte da terra agrícola foi destruída reiteradamente pelo Exército israelense”

PALESTINA Sem terras e com suas plantações destruídas pelo Exército de Israel, palestinos cultivam alimentos em cima das casas

co [que Israel impõe à Faixa de Gaza], e para mim já era um esforço lhes trazer comida. Mas, agora, comprei os remé-dios, porque, do contrário, todos morre-riam. Agora, tenho 50 casais e diferentes tipos de frango”, acrescenta Abu.

Os ovos e a carne são de melhor qua-lidade do que a dos animais criados em granjas, graças aos alimentos naturais que lhes dá, assegura. “Não uso alimen-to com esteroides nem produtos quími-cos, apenas cascas de verduras, pão seco e sementes e deixo que circulem pelo te-lhado todos os dias”.

Algumas organizações não governa-mentais em Gaza dão ajuda a projetos como esse, mas Abu começou por conta própria. “Gastei muito dinheiro para co-meçar, sem nada ganhar por muito tem-po. Quando tive mais frangos, comecei a ganhar um pouco de dinheiro. Se minha família não precisava do dinheiro da ven-da dos ovos, usava para comprar alimen-to para os frangos”, diz. O que começou como um projeto nascido da fascinação se converteu em meio relativamente lu-crativo de ajudar a satisfazer as necessi-dades familiares. (Envolverde/IPS)

“Aprendi sobre os frangos olhando como meu amigo trabalhava em sua cooperativa. O único lugar que tinha para criar frango era nosso telhado”

Alimentos cultivados em telhados por agricultores sem-terra

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