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E QUANDO EU DECODIFICO: A LEITURA DA ESCOLA, NA ESCOLA Jamile de Andrade Barros, Discente do Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores da Educação Básica/UESC-Bahia, Brasil e-mail: [email protected] Maria Elizabete Souza Couto, Docente do Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores da Educação Básica/UESC- Bahia, Brasil, e-mail:[email protected] Eixo Temático: Alfabetização e formação profissional. RESUMO Este trabalho objetiva compreender as relações dos estudos sobre leitura em sala de aula e as mediações realizadas em situações de trabalho com leitura. Uma pesquisa qualitativa, realizada com uma professora e uma aluna do 1º ano. Para coleta de dados utilizamos ficha de observação e entrevista. Percebemos o movimento vivenciado pela professora e aluna, na atividade de leitura com um livro de imagem, marcado pelo encontro dos conhecimentos prévios e da construção de novos conhecimentos. Palavras chave: Leitura. Formação do leitor. Prática pedagógica. ABSTRACT AND WHEN I DECODE: THE READING OF THE SCHOOL, IN THE SCHOOL This work aims at to understand the relationships of the studies on reading in class room and the mediations accomplished in work situations with reading. A qualitative research, accomplished with a teacher and a the 1st year-old student. For collection of data we used observation record and glimpses. We noticed the movement lived by the teacher and student, in the reading activity with an image book, marked by the encounter of the previous knowledge and of the construction of new knowledge. KEYWORDS: Reading. The reader‟s formation. Pedagogic practice. INTRODUÇÃO O Brasil ocupa o 55º lugar no ranking das médias de leitura entre os participantes do Programa Internacional de Avaliação de Alunos/PISA. Os dados foram divulgados no Relatório Nacional do PISA 2012 – Resultados Brasileiros. Tal

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E QUANDO EU DECODIFICO: A LEITURA DA ESCOLA, NA ESCOLA

Jamile de Andrade Barros, Discente do Programa de Pós-Graduação em Formação de

Professores da Educação Básica/UESC-Bahia, Brasil e-mail: [email protected]

Maria Elizabete Souza Couto, Docente do Programa de Pós-Graduação em Formação

de Professores da Educação Básica/UESC- Bahia, Brasil, e-mail:[email protected] Eixo Temático: Alfabetização e formação profissional.

RESUMO

Este trabalho objetiva compreender as relações dos estudos sobre leitura em sala de aula e as mediações realizadas em situações de trabalho com leitura. Uma pesquisa qualitativa, realizada com uma professora e uma aluna do 1º ano. Para coleta de dados utilizamos ficha de observação e entrevista. Percebemos o movimento vivenciado pela professora e aluna, na atividade de leitura com um livro de imagem, marcado pelo encontro dos conhecimentos prévios e da construção de novos conhecimentos.

Palavras chave: Leitura. Formação do leitor. Prática pedagógica.

ABSTRACT

AND WHEN I DECODE: THE READING OF THE SCHOOL, IN THE

SCHOOL

This work aims at to understand the relationships of the studies on reading in class room and the mediations accomplished in work situations with reading. A qualitative research, accomplished with a teacher and a the 1st year-old student. For collection of data we used observation record and glimpses. We noticed the movement lived by the teacher and student, in the reading activity with an image book, marked by the encounter of the previous knowledge and of the construction of new knowledge.

KEYWORDS: Reading. The reader‟s formation. Pedagogic practice.

INTRODUÇÃO

O Brasil ocupa o 55º lugar no ranking das médias de leitura entre os

participantes do Programa Internacional de Avaliação de Alunos/PISA. Os dados

foram divulgados no Relatório Nacional do PISA 2012 – Resultados Brasileiros. Tal

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fato fere o direito à Educação Básica de qualidade para todos os brasileiros. Direito

este preconizado pela sociedade civil e pela legislação de ensino, especificamente a

Lei 9.394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no inciso

I do Art. 32, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do

cálculo (BRASIL, 1996).

Segundo Soares (2007a, p.31), o termo alfabetização, etimologicamente,

significa levar a aquisição do alfabeto, ou seja, ensinar a ler e a escrever é “a ação

de alfabetizar, de tornar „alfabeto‟". Refere-se ao ato de codificar e decodificar a

língua e se apropriar do sistema de escrita alfabética. Assim, a especificidade da

alfabetização é a aquisição do código alfabético e ortográfico, por meio do

desenvolvimento das habilidades de leitura e de escrita. Ao longo da história, essas

ações foram tornando-se mais complexas e suas definições se ampliaram, passando

a envolver, principalmente a partir da década de 1990, um novo termo: o letramento,

que Soares (1998, p.39) define como “resultado da ação de ensinar e aprender as

práticas sociais de leitura e escrita. O estado ou condição que adquire um grupo

social ou um indivíduo como consequência de ter se apropriado da escrita e de suas

práticas sociais” (grifos da autora).

Assim, letramento está ligado às práticas sociais de leitura e de escrita.

Tornando-se letrado o sujeito que desenvolve as habilidades de ler e escrever, mas

também de utilizar a leitura e a escrita em situações do cotidiano e em contextos

sociais. Para Soares (2012a), alfabetizar, apenas, não garante a formação de

sujeitos letrados, porém um processo não substitui o outro, complementam-se.

No contexto em que vivemos são exigidas práticas e uso social da leitura e da

escrita. Deparamo-nos com imagens, textos, outdoor, panfletos, placas, letreiros,

entre outros, a todo instante. No entanto, muitos brasileiros ainda não conseguem

enfrentar esses desafios, ou por não saberem ler, ou se sabem não compreendem

essa gama de leituras que são impostas no seu cotidiano, pois não fazem leitura

considerando seu uso social.

Diante desse quadro, percebemos a necessidade de fornecer aos educandos

instrumentos necessários para que consigam buscar, analisar, selecionar,

relacionar, organizar as informações complexas do mundo contemporâneo, por meio

da leitura para que possam exercer a cidadania de forma plena, pois a leitura é um

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instrumento de inclusão social e seu uso no cotidiano possibilita melhores condições

de escolhas, autonomia e inserção social.

A experiência desenvolvida com a leitura apresentada tem como objetivo

identificar e compreender como as professoras/alfabetizadoras estabelecem as

relações dos estudos sobre leitura em sala de aula e as mediações realizadas em

situações de trabalho com a leitura, e faz parte de uma pesquisa em andamento. O

lócus da pesquisa é uma escola pública municipal, da cidade de Itabuna/BA na sala

do 1º ano do Ensino Fundamental I.

A AQUISIÇÃO DA LEITURA

Ler e escrever são atividades iniciadas no período da alfabetização que

devem ser organizadas paralelamente, assim como a alfabetização e o letramento.

Conceitos distintos, porém indissociáveis, como nos assegura Soares (2012), que

alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas não inseparáveis, ao contrário: o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado (SOARES, 2012, p. 47 - grifo da autora).

Na proposta de alfabetizar letrando não existe um conceito que seja mais

importante que o da leitura ou o da escrita. O fato de as escolas acreditarem ser

mais fácil avaliar um aluno pelos seus acertos e erros de escrita do que nas

atividades em que o aluno lê, contribui para elevar os índices de crianças que,

apesar de serem consideradas alfabetizadas, não conseguem compreender o que

leem, apenas decodificam sem atribuir sentido ao que ler.

Nessa perspectiva, encontramos respaldo em Kleiman (2011); Silva (2005);

Cafiero (2005) e adotamos o conceito de que ler é construir sentido, utilizar

estratégias, interagir, e não, simplesmente, agrupar letras, palavras e frases ou

conhecer o significado das palavras escritas, decodificar etc. Tais ideias corroboram

com o pensamento de Solé, (1998, p. 52) quando diz que “ler não é decodificar, mas

para ler é preciso saber decodificar”. A decodificação é uma parte importante da

leitura que ajuda o leitor a estabelecer relações, à medida que ele vai decodificando

as informações do texto, entre estas e os seus conhecimentos prévios, construindo

unidades de sentido, ou seja, processando a compreensão do que está sendo lido.

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Isso significa que, desde a educação infantil, quando as crianças ainda não leem

convencionalmente, é essencial estimular uma postura de busca e elaboração de

significados diante dos textos que circulam na escola e no seu cotidiano.

Para a criança que está iniciando o processo de aprendizagem da leitura,

Cafiero adverte que a decodificação é uma operação difícil e não automática, “é o

momento inicial da leitura, no qual executamos, basicamente, o reconhecimento de

palavras e o processamento sintático” (2005, p. 31). As crianças que ainda não têm

segurança na relação som/letra, sílabas não canônicas, que saem do padrão

consoante-vogal, podem, ao tentar ler uma palavra, letra por letra, trocá-las e não

conseguir decodificar corretamente. Palavras ou letras isoladas que não fazem

sentido serão mais difíceis para esse leitor que está iniciando. Ratificando que o

processo sintático faz parte da decodificação, portanto

Um aluno que leia letra por letra a palavra (m+a+c+a+r+r+o+n+a+d+a), por exemplo, não conseguirá dizer que palavra leu, por sobrecarregar a memória. Quando as últimas letras entrarem no processamento, as primeiras já terão sido descartadas (CAFIERO, 2005, p.31).

A escola deve assegurar a vivência de práticas concretas de leitura e

produção de texto, pois só a codificação e decodificação não são suficientes para

que o aluno aprenda a ler e escrever e fazer uso social dessas ferramentas. Dessa

forma, é essencial que

[...] sejam oferecidas condições para que as crianças entrem em contato com uma ampla diversidade de textos, em diferentes contextos de interação, para que possam ampliar capacidades comunicativas e, assim, utilizar a língua, buscando os efeitos de sentido pretendidos (LEAL; MORAIS, 2006, p.7).

É importante que os professores incentivem e trabalhem com a leitura de

forma sistematizada, desde os seus primeiros anos, pois os educandos concluem os

anos iniciais do ensino fundamental sem as habilidades1 de decodificar e da

compreensão leitora, necessárias para se tornar um leitor e, muitas vezes, não

gostam de ler, pois se sentem incapazes.

1 Segundo Solé “para ler é necessário dominar as habilidades de decodificação e aprender as distintas estratégias

que levam a compreensão [...]” (1998, p. 24).

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Para Cafiero (2005) a leitura é uma atividade complexa, pois o leitor produz

sentidos e é capaz de compreender o que leu, a partir das relações que estabelece

entre as informações do texto e seus conhecimentos prévios. Assegura também

que por considerar uma atividade cognitiva e social, a leitura é uma atividade que

pressupõe que, quando as pessoas leem, estão executando uma série de operações mentais que vão além da decodificação e utilizam estratégias, algumas inconscientemente e outras conscientemente. Como atividade social, a leitura pressupõe a interação entre um escritor e um leitor, que estão distantes, mas que querem se comunicar (CAFIERO, 2005, p. 8).

Os conhecimentos prévios que Solé (1998) e Cafiero (2005) consideram

como imprescindíveis para que estabeleçam as relações entre o que está sendo

proposto e o que o aluno já sabe, pois, conforme Solé (1998), durante a vida vão se

acumulando informações e construindo representações da realidade graças às

interações que são realizadas uns com os outros, principalmente aqueles que

exercem a função de educadores, e que a cada momento da história/texto esses

conhecimentos são relativos e ampliáveis, auxiliando as crianças a compreenderem

o texto. Freire nos diz [...] “a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura

do mundo, mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer,

de transformá-lo através de nossa prática consciente” (1989, p.13). Ou seja, ele

amplia nosso entendimento sobre os conhecimentos prévios e diz ainda que este vai

se ampliando à medida que vivenciamos situações em nosso cotidiano em que a

“leitura de mundo” e a “leitura da palavra” se associam e façam sentido, que uma

implica na continuidade da outra para que possamos fazer o uso social da leitura,

ampliando a visão de mundo. Para Freire,

Ler é uma operação inteligente, difícil, exigente, mas gratificante [...] Ler é procurar ou buscar criar a compreensão do lido [...] ler é engajar-se numa experiência criativa em torno da compreensão. Da compreensão e da comunicação. E a experiência da compreensão será tão mais profunda quanto sejamos nela capazes de associar, jamais dicotomizar, os conceitos emergentes na experiência escolar aos que resultam do mundo da cotidianidade (FREIRE, 1997, p.20).

Aprender a ler envolve muito mais que percepções: ouvir, passar os olhos,

ver. Ler é sentir, uma atividade que requer envolvimento por aquele que lê e aquele

que escreveu uma cumplicidade. Para a criança esse envolvimento parece ser maior

ainda, pois no seu imaginário infantil a capacidade de se colocar como autor,

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personagem, vivenciar a história está mais aguçado nesta fase da vida, a infância.

Assim, três aspectos deverão estar simultaneamente, presentes desde o início do

aprendizado da leitura, tais como:

- aprender a ler com textos, não com frases, menos ainda com palavras, jamais com sílabas... - aprende-se a ler lendo textos que não se sabe ler, mas cuja leitura se tem necessidade. Lê-los é procurar as respostas às perguntas que nos fazemos... – e, portanto, aprender a ler – é negociação entre o conhecido, que está na nossa cabeça, e o desconhecido, que está no papel; entre o que está atrás e o que está diante dos olhos. É um trabalho de detetive que utiliza índices (paginação, palavras conhecidas...) para elaborar hipóteses, verificá-las com base em outros índices, voltar aos pontos que permanecem obscuros, com ajudas externas, etc. - as estratégias empregadas nesses atos de leitura serão analisadas e comparadas pelos diferentes atores que refletem sobre sua prática [...] (FOUCAMBERT, 1994, p.37-38).

A partir dos estudos do autor fica evidente que é necessário trabalhar a

leitura, em sala de aula, buscando o seu significado para a criança, para que possa

fazer sentido e compreender o que está sendo lido, rompendo com a utilização da

silabação, a repetição, a fragmentação dos textos, que não fazem sentido para que

as crianças aprendam a ler. É importante, assim, que a leitura esteja sempre

inserida em situações de comunicação significativas, que se leiam textos que

atendem a um objetivo: para se manter informados sobre um evento que interessa

aquela turma, para estudar e adquirir conhecimentos, para obter informações ou por

simples prazer, ou seja, atender as mais diversas finalidades.

Ademais, a leitura que é realizada com texto em sala de aula também será

determinante para a formação de um leitor ativo, crítico e questionador, que se sinta

estimulado e capaz para realizar as leituras que serão impostas no seu cotidiano.

Lembrando ainda que, de acordo com Solé (1998), poder ler é compreender e

interpretar textos escritos de diversos gêneros textuais, com diferentes intenções e

objetivos, contribuindo de forma decisiva para a autonomia das pessoas, na medida

em que a leitura é um instrumento necessário em uma sociedade letrada.

Para os alunos que estão no seu processo inicial da leitura é fundamental que

o professor proporcione momentos de leitura, em que leia para eles sendo modelos

de leitor e proporcionando a experiência de se apropriarem da linguagem escrita,

ainda que não saibam ler convencionalmente. Carvalho nos chama a atenção para o

papel do professor nessa mediação com a leitura quando afirma que

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A maneira pela qual o alfabetizador encara o ato de ler determina, em grande parte, sua maneira de ensinar. [...] Antes mesmo de ensinar a decodificar as letras e sons, é preciso mostrar aos alunos o que se ganha, o que se aprende com a leitura: mas isso só será possível por meio de atividades que façam sentido, que visem à compreensão de leitura desde as etapas iniciais da alfabetização. (2010, p.11).

Sendo assim, na escola, o trabalho com a leitura deverá indicar suas

finalidades e/ou objetivos, propondo diferentes situações onde os alunos possam

aprender a ler, construindo a sua autonomia leitora. A formação do sujeito

leitor/leitura deve possibilitar o diálogo e a reflexão entre teoria e a prática, entre o

leitor (professor) e a sua prática pedagógica, para que possam avançar no seu

processo de formação.

Em se tratando da formação do professor-leitor, e a leitura como objeto de

conhecimento (SOLÉ, 1998), a esta deve está entrelaçada com a experiência de

vida e profissional do professor, o que influencia nas suas escolhas em sala de aula,

pois o que se lê diz também como se é e no que acredita, como ser individual e

social. Não podemos esquecer a história de vida dessas pessoas, o percurso até

chegar ali, o ser professor-leitor, suas vivências e experiências, para que de fato as

informações ali ministradas façam sentido e possam ser transformadas em saberes.

Segundo Freire, (2002, p. 39), “[...] o importante é que a reflexão seja um

instrumento dinamizador entre teoria e prática” na construção do sujeito (professor e

aluno) leitor.

São muitos os desafios a serem superados, tanto no que se refere à formação

do professor, como sujeito da ação pedagógica reflexiva, também como sujeito

aprendente que, à medida que se forma, também forma os alunos, tendo a

consciência do seu papel de formador de leitor, (re)significando seu trabalho em sala

de aula, corroborando com o que diz Macedo (2010, p. 57), “o trabalho de formação

que perspectivamos, requer uma relação com o outro”.

PERCURSO DA PESQUISA

A pesquisa foi de natureza qualitativa, aconteceu numa sala de aula de Ciclo

da Infância, fase I, que corresponde ao 1º ano, e os atores sociais foram a

professora, que terá o nome fictício de Lilás, e a aluna envolvida na atividade será

chamada de Violeta, tem 6 anos de idade.

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Usamos como instrumento para coleta de dados uma ficha de observação

para anotar o desenvolvimento da aula realizada pela professora e a entrevista com

a aluna, que nos possibilitou a compreensão sobre a atividade de leitura

desenvolvida em sala de aula.

DELINEANDO CAMINHOS

A aula selecionada para esta apresentação foi a de número 7, que aconteceu

no dia 03.10.14, no turno matutino, após as atividades de rotina (prece realizada

pelos alunos, a música do “Bom dia” e fazer a chamada), a professora Lilás disse à

turma que naquele dia um aluno iria realizar a leitura deleite.

A leitura deleite é uma estratégia apresentada na formação do Programa

PNAIC - Pacto Nacional da Alfabetização na Idade Certa, que, além de favorecer o

contato do professor com textos literários, indica que é uma leitura sempre de prazer

e reflexão sobre o que é lido, sem [...] “se preocupar com a questão formal da leitura.

É ler para se divertir, sentir prazer, para refletir sobre a vida” (BRASIL/MEC, 2012,

p.27).

O livro selecionado fazia parte do Acervo de Obras Complementares do

MEC/PNAIC (BRASIL) e, mostrando o livro, a professora questionou:

Lilás - Quem gostaria de contar esta história?

Era o livro intitulado “Telefone sem fio”, autoria de Ilan Brenman e Renato

Moriconi, da editora Companhia das Letrinhas. Um livro de imagens que retoma uma

brincadeira tradicional (telefone sem fio), na qual uma palavra, frase, é cochichada

no ouvido de alguém e esse passa adiante. A graça está no final: como chegará a

frase que foi dita inicialmente?

A leitura deleite foi realizada com um livro de imagem ilustrado com

personagens coloridos e com o fundo preto que dava visibilidade e definição às

imagens. Cada personagem faz o mesmo gesto o que aguça a imaginação do leitor

que pode usar sua criatividade e entrar na brincadeira realizando inúmeras leituras,

por exemplo, a de imagem, criando frases e/ou possível mensagem que deveria ser

sussurrada, descrevendo os personagens da história etc.

Violeta (nome fictício), colocando-se de pé, respondeu (gritando

entusiasmada): - Eu, tia... eu...

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A professora Lilás entregou o livro a Violeta e solicitou que começasse a

leitura.

E após analisar a capa do livro a aluna...

- Violeta: „T‟ „E‟ „L‟ „E‟ „F‟ „O‟ „N‟ „E‟ „S‟ „E‟ „M‟ „F‟ „I‟ „O‟ (leu letra por letra em

voz alta).

Lilás – E aí, Violeta, qual o título do livro?

Violeta observando a ilustração da capa

respondeu: Abra Bem os Seus Ouvidos.

Em seguida, abriu o livro e continuou a realizar a leitura das imagens2:

O palhaço do rei sussurrou para o rei.

O rei sussurrou para o seu guarda.

O guarda sussurrou para o nadador.

O nadador sussurrou para o pirata.

O pirata sussurrou para a arara.

A arara sussurrou para o índio.

O índio sussurrou para uma nobre senhora rica.

O turista sussurrou para uma nobre senhora rica.

A senhora sussurrou para uma senhora pobre.

A pobre velhinha sussurrou para o lobo com o capuz de Chapeuzinho

Vermelho.

O lobo vestiu a roupa da vovozinha e sussurrou a mesma coisa para

Chapeuzinho Vermelho.

A Chapeuzinho sussurrou para o caçador.

O caçador sussurrou para o seu cachorro de raça.

O cachorro sussurrou para o palhaço do rei.

Fim

Após a leitura da aluna não houve conversa/intervenção sobre a atividade que

havia sido realizada. A professora solicitou que desenhassem as cenas que mais

2 Segundo Manguel (2001) o que vemos e lemos de uma imagem se dá com base nas nossas experiências, ou

seja, nos nossos conhecimentos prévios o fazemos as relações e identificações e a leitura surge como a ação que

nos permite que explorar/ler a imagem, esta me captura.

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gostaram do livro, entregando papéis em branco, disponibilizando lápis de cor e

hidrocor para colorir a pintura.

Enquanto Violeta se organizava para realizar a atividade solicitada,

aproximamo-nos para fazer algumas perguntas, conhecer melhor a pequena leitora

e as estratégias que utilizou para a realização da leitura.

PESQUISADORA – Violeta, quantos anos você tem?

VIOLETA: Seis anos, tia, faço sete em fevereiro (2015).

PESQUISADORA - Onde você ouviu essa palavra sussurrou? (a aluna repetiu

a palavra (sussurrou) em todas as frases, num total de14 vezes).

VIOLETA: Na televisão.

PESQUISADORA: Você sabe o que é sussurrar?

VIOLETA: Falar baixinho, no ouvido.

PESQUISADORA: Que imagem é essa Violeta?

VIOLETA: Um nadador.

PESQUISADORA: Mostrei a imagem novamente e questionei: Como você

sabe que é um nadador?

VIOLETA: Sim tia, tem no desenho da TV, ele usa um capacete de respirador,

igual a esse aí.

PESQUISADORA: Mostrei a outra imagem: Por que essa senhora é uma

“nobre senhora rica”?

VIOLETA: Ela usa óculos, colar de pérolas e a roupa dela é colorida.

PESQUISADORA: E essa aqui é uma pobre senhora, por quê?

VIOLETA: Essa é toda branca.

PESQUISADORA: Insisti... E por que essa é nobre e rica?

VIOLETA: Ela é toda loira, estilosa e bonita.

PESQUISADORA: E essa aqui?

VIOLETA: É pobre, não tem dinheiro e veste roupa feia, uma roupa sem cor, e

a outra é colorida.

PESQUISADORA: E quem não veste roupa colorida é pobre?

VIOLETA: É, tia, sem cor.

PESQUISADORA: Você acha isso ou alguém falou pra você?

VIOLETA: Minha mãe falou, eu também acho.

PESQUISADORA: Você conhece a história de Chapeuzinho Vermelho?

VIOLETA: Hum rum...

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PESQUISADORA: Onde você ouviu essa história?

VIOLETA: A história de Chapeuzinho Vermelho, minha tia do outro ano me

contava, mas eu já sabia algumas coisas, já vi no desenho que meu primo levou pra

minha casa.

Em seguida, um aluno (aqui vamos apelidá-lo de João), que estava folheando

o livro e ouvindo os questionamentos que fazia a Violeta, falou:

JOÃO: Ela não leu nada, no livro não tem nenhuma palavra. Olha!

PESQUISADORA: Veja João esse é um livro de imagem. Ela leu as imagens.

JOÃO: E pode tia?

PESQUISADORA: Pode sim. Quando não tem palavras, nós fazemos a

leitura da imagem. Nos cartazes é assim, no outdoor nas ruas. Os quadros dos

pintores famosos...

JOÃO: Tia, na minha casa tem um quadro.

PESQUISADORA: Como é o quadro?

JOÃO: De flores, tem flores no vaso, são coloridas.

PESQUISADORA: Olha aí, você está fazendo a descrição do quadro, dizendo

como é, fazendo a leitura.

Nesse momento, mostrei aos alunos a caixa com outros livros que não têm

palavras, apenas imagens. Folheie com eles, que ficaram surpresos. Em seguida, a

atividade foi interrompida e não tivemos a oportunidade de retomar.

Resgatando a situação de leitura com o livro Telefone sem fio, logo na leitura

do título, percebemos que a aluna Violeta ainda não lia convencionalmente, leu letra

por letra identificando-as, porém não conseguiu fazer a relação entre a letra, sílaba e

a palavra. Segundo Cafiero (2005, p. 31), “a medida que vai processando as

informações, o leitor as armazena em sua memória, para que possa ir organizando

as informações em unidades cada vez maiores”. Assim, a aluna não consegue fazer

esse processo da decodificação ainda, lendo o título como se fosse uma única

palavra, sobrecarregando a memória de trabalho3.

A aluna identificou as letras e leu o título segundo o que estava vendo na

imagem. Durante a leitura, que realizou em voz alta para seus colegas, utilizou os

conhecimentos prévios para desenvolver a atividade. O livro selecionado para leitura

3 Segundo Cafiero (2005) a memória de trabalho ou temporária é onde o leitor no seu processo de decodificação

lê letras para formar sílabas, sílabas para formar palavras e assim por diante, na tentativa de processar as

informações ele sobrecarrega a memória e não consegue organizar as informações. Quando começa a processar

as últimas letras, as primeiras já são esquecidas.

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apresentou situações, por meio das imagens, que eram familiares a Violeta, tratava

de temáticas que levava em conta seus conhecimentos prévios e favoreceu a ajuda

necessária para construir o seu significado (SOLÉ, 1988).

Fica claro, na fala de Violeta, ao responder os questionamentos, que sua

leitura é fruto das suas vivências, do que ela vem construindo enquanto experiências

de vida, formativas, por meio dos filmes de desenho que assiste na TV, dos diálogos

com seus familiares, das suas interações e este conjunto de situações, inclusive as

vivenciadas na escola, quando relata que já conhecia a história de Chapeuzinho

Vermelho, pois sua professora do ano anterior havia lido para a turma. Essa

experiência vivenciada pela aluna, somadas a aprendizagem e aquisição da leitura

convencional e autônoma, pode fazer dela uma leitora ainda mais fascinante.

Soares (2012) diz que o letramento pode acontecer antes mesmo da

alfabetização. Tal situação ficou presente na leitura que Violeta traz para a escola. A

leitura realizada na aula foi a do seu cotidiano, de suas vivências, quando expõe que

aprendeu a palavra “sussurrou” e algumas características que ajudaram a identificar

os personagens em programas de TV, assim como que pessoas que se vestem com

roupas coloridas são ricas etc.

O texto que Violeta construiu oralmente é formado de frases soltas, com

vocabulário repetitivo, tendo as características de textos que são produzidos nas

escolas, não apresentando o encadeamento de ideias para criação de uma história,

como inicialmente foi proposto por Lilás. Cafiero (2005) diz que o “escritor dá ao

texto uma organização interna, pensa-o como um todo e não como uma soma de

partes isoladas.” Observamos, então, que Violeta leu as imagens, porém, conseguiu

elaborar frases, não produzindo sentido para quem possivelmente pudesse vir a ler

o seu texto.

Em contrapartida, a professora (Lilás) não realizou nenhuma intervenção ou

orientação no decorrer da atividade, e após o seu término apenas solicitou que os

alunos desenhassem a parte que mais gostaram, deixando o livro a disposição para

quem quisesse folheá-lo. Carvalho (2010) nos diz que é preciso que o professor

mostre aos alunos o que se ganha e se aprende com a leitura e isso só é possível

quando o mesmo realiza questionamentos, analisa as atividades, chamando a

atenção dos alunos para aspectos importantes que fazem parte do processo da

leitura e da compreensão do texto. Podendo, ainda, ser escrita em ocasiões de

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transição entre a oralidade e a escrita, incentivando a participação de todos e

mostrando que o que se diz não é igual ao que se escreve.

CONSIDERAÇÕES

As considerações acerca do trabalho apresentado são parciais, por se tratar

de uma pesquisa em andamento, e pela complexidade que é identificar e

compreender os processos formativos de como as professoras/alfabetizadoras

estabelecem as relações dos estudos sobre leitura em sala de aula e as mediações

realizadas nas situações de trabalho com os alunos.

Os dados analisados deixam evidente a necessidade de um trabalho

sistematizado e planejado voltado para as práticas de leitura na escola, pois, de

modo geral, nos planejamentos com as professoras das classes de alfabetização

dão ênfase as atividades de escrita, por considerarem mais fáceis de avaliar.

Nessa perspectiva, evidenciamos que a diversidade e a qualidade das

práticas de leitura realizadas dentro e fora da escola, exercem papel fundamental na

formação do leitor. Salientamos a necessidade da intervenção realizada pelo

professor durante as atividades com as crianças, antes, durante e depois da leitura

(SOLÉ, 1998), contribuem para que, diante dos textos, sejam eles escritos ou de

imagem, assumam os procedimentos que os ajudem a ler convencionalmente.

Portanto, a prática de diversas atividades com textos diferenciados,

explorando as características dos mesmos, suas finalidades, estimulando a leitura

em variadas situações, tendo o professor como mediador desse processo,

oportunizando a participação, levantamento de hipóteses e os levando a refletirem

acerca da sua aprendizagem, forma leitores autônomos, que se interrogam sobre

sua própria compreensão e estabelecem relações entre o que leem, seus

conhecimentos e experiências.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: Formação do Professor Alfabetizador. Caderno de apresentação. Brasília, MEC, SEB, 2012.

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CARVALHO, Marlene. Guia prático do alfabetizador. 1.ed. São Paulo: Ática, 2010.

CAFIERO, Delaine. Leitura como processo: caderno do formador. (Coleção

Alfabetização e Letramento). Belo Horizonte: UFMG, 2005. FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 24. ed. São Paulo: Loyola, 1997. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.

São Paulo: Cortez, 1989. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. LEAL, Telma Ferraz; MORAIS, Artur Gomes. A argumentação em textos escritos:

a criança e a escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. MACEDO, Roberto Sidnei. A etnopesquisa crítica e multirreferencial. Salvador: EDUFBA, 2010.

MANGUEL, Alberto. A imagem como narrativa. In: Lendo Imagens. Uma história de amor e ódio. Trad. Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg, Cláudia Strauch. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 5ª ed. Belo Horizonte:

Autêntica, 2012.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Tradução Claudia Schilling. Porto Alegre: ArtMed, 1998.