Quem enfrentará o império? Uma discussão acerca do conceito de multidão de Antônio Negri e Michel Hardt, e da configuração
político-social contemporânea.
DIEGO FELIPE DE SOUZA QUEIROZ
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................1
CAPÍTULO 1- IMPÉRIO, GUERRA CIVIL IMPERIAL, CAPITALISMO COGNITIVO E OS DESAFIOS COLOCADOS PARA AS TEORIAS POLÍTICAS DE RESISTÊNICAS.............................................................................................................6
CAPÍTULO 2- A TEÓRIA DA MULTIDÃO, OS ENXAMES E AS
TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS.................................................................................24
CONCLUSÃO..............................................................................................................36
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................42
Esse caos de gente é sinal de que algo está para acontecer.
Raul Seixas
INTRODUÇÃO
O mundo de hoje encontra-se imerso em um grande processo de transformação;
ao mesmo tempo em que as fronteiras nacionais são superadas por um progressivo
movimento de internacionalização do capital, diversas teorias que serviram de base para
a formação dos Estados modernos e entendimento geral da sociedade parecem caducar.
Neste contexto de mutações e crise de paradigmas, o mundo do trabalho não pode
deixar de se reconfigurar e em consequência disto, também o que tradicionalmente
costumávamos entender sobre a composição e delimitação da classe trabalhadora.
Passamos da era industrial para a pós-industrial, do trabalho estável e especializado a
instabilidade e flexibilização, e da organização dos trabalhadores por meio de
promissores sindicatos e partidos centralizados a um cenário de esvaziamento e crise
dos modelos tradicionais de representações.
Diante da notória ineficiência e anacronismo de muitas das antigas teorias
críticas na análise da realidade contemporânea, os discursos falaciosos difundidos pelos
meios de comunicações em massa acerca das transformações do mundo do trabalho,
organização política dos sujeitos e pretensões de transformação social se propagam sem
muita dificuldade. Estes discursos nutrem-se de teorias de diversos tipos de tecnocratas
e pensadores subordinados ao poder constituído, que procuram a todo custo: mascarar o
processo de exploração e o conflito latente entre classes através da propagação da ideia
de redução da importância da categoria do trabalho para o entendimento geral da
sociedade, camuflar as múltiplas estratégias de espoliação promovidas pelo capitalismo
globalizado por meio de uma glorificação do processo vigente de globalização, e
estimular e disseminar a passividade entre os explorados assim como o fatalismo em
relação a suas preensões de transformação social.
No entanto, se fugirmos do ponto de vista do senso comum é fácil perceber que
o processo de globalização e a nova configuração do mundo do trabalho, não puseram
fim a exploração do trabalhador, fizeram do trabalho uma categoria menos importante
para se pensar a sociedade, ou mesmo cessaram a subordinação política e econômica
dos países periféricos. Afinal, todo o desenvolvimento tecnológico conquistado pelo
homem não deteve a exploração do trabalho que continua sendo a força motriz do
mundo capitalista e a fonte maior de desigualdade e miséria no planeta. Hoje o processo
de exploração capitalista ao invés de ser atenuado é expandido a todas as instâncias da
vida do trabalhador, que inserido em um contexto de valoração dos aspectos subjetivos
do trabalho (tais como afetividade e criatividade) e em um processo progressivo de
flexibilização das leis trabalhistas, tem seu trabalho explorado para além dos limites
espaciais e temporais convencionais. No plano político presenciamos a integração
progressiva de diferentes nações a um ordenamento global, integração que não se dá em
“pé de igualdade” tal como alguns setores da sociedade querem fazer parecer, pois ao
mesmo tempo em que o capitalismo global mundial inclui diferentes nações ao
mercado, também estabelece hierarquias que sustentam e promovem a subordinação de
determinados países a outros. Para a frustração de muitos dos entusiastas do sistema
capitalista contemporâneo, também é cada vez mais notório que a história não acabou1.
A queda da União Soviética e a difusão da política e ideologia neoliberal aos moldes do
consenso de Washington não determinam um ponto final nas páginas da história e nem
a sepulta definitiva das lutas políticas e sociais em pró de um mundo melhor. Em um
mundo tão desigual, injusto e desumano, a passividade e morbidez política não podem
prevalecer, tampouco o fatalismo motivado pela derrocada de velhas estratégias e
formas de organização política. Afinal, um outro mundo não é somente possível 2, é
também necessário e urgente. E os movimentos sociais através de diversas formas
novas de se organizar e agir demonstram isso ao promoverem novos acontecimentos
políticos por todo o globo 3.
Hoje, talvez mais do que nunca precisamos afastar qualquer conclusão
despreocupada e pessimista, que considere inevitável um desfecho cataclísmico para a
humanidade, assim como também qualquer colocação idealista e irreal que insista que
no mundo tudo vai bem e que todos os problemas vão se purgar através de boas
intenções e harmonizações impossíveis. O mundo enfrenta problemas alarmantes que
além de dificultar a vida dos homens põem em cheque até mesmo à possibilidade de
existência de nossa espécie na terra. Basta pensar em problemas como as catástrofes
ambientais provocadas por nosso modelo desenfreado de consumo (tais como o
aquecimento global, à chamada “crise de alimentos” e o paradigma de do esgotamento
da água potável) ou ainda nos conflitos bélicos expansivos que se espalham por todo
globo paralelamente a uma perigosa corrida armamentista para perceber os desafios que
hoje nos são colocados. Diante da possibilidade de um futuro tão terrível não devemos
nos contentar com a fatalidade e a barbárie, afinal enquanto houver homem a razão e
humanidade podem prevalecer sobre o irracionalismo e desumanização.
A realidade nos impele a agir, e para agir de forma eficaz é necessário pensar em
formas consistentes de estudar e entender o mundo de hoje. Faz-se urgente a busca por
teorias críticas que se oponham às colocações direitistas do idealismo neoliberal e das
teorias conservadoras acerca da realidade do mundo contemporâneo, que possibilitem
um entendimento crítico e consistente de nossa realidade política e social, que
promovam e facilitem a participação vívida dos indivíduos na esfera política, e que
sejam compatíveis com emergentes e novas formas de resistências e lutas em pró de um
mundo mais justo, humano e igualitário.
A obra recente do Filósofo Antônio Negri pode ser pensada como uma resposta
teórica, crítica e coerente aos problemas colocados pela globalização capitalista e pela
nova configuração do mundo do trabalho e disposição dos trabalhadores no processo
produtivo e esfera política. Utilizando-se de autores como Espinosa, Foucault e Marx,
sem perder de vista o fluxo das movimentações políticas constitutivas dos trabalhadores
organizados e as respostas reativas dos meios de coerção do Capital, Negri elaborou
todo um arcabouço teórico para propiciar uma melhor compreensão das novas relações
de trabalho e composição da “classe trabalhadora”.
Este trabalho monográfico consiste em um estudo do conceito de multidão e das
possíveis contribuições teóricas deste conceito para o melhor entendimento da realidade
política e social contemporânea. É importante ressaltar que este trabalho não é um
apanhado crítico interpretativo das teorias apresentadas pelos pensadores da multidão, e
sim um esforço teórico para identificar no conceito discutido, elementos que possam
favorecer uma compreensão não anacrônica do cenário político e social em que hoje
estamos inseridos. Portanto ao ler o texto não espere encontrar alongadas
problematizações ou contraposições teóricas. É importante ficar claro também, que o
conceito de multidão será o objeto deste estudo, não porque este seja o conceito mais
preciso ou única formulação teórica a respeito das transformações sociais e composição
de novos sujeitos políticos potencialmente revolucionários. Hoje existem diversos
trabalhos teóricos que visam reinterpretar a realidade política de nossa
contemporaneidade4, muitos deles inclusive condizem em diversos aspectos com a
teoria de império global e multidão. Optei por focalizar meus esforços na discussão do
conceito de multidão e sua relevância para o estudo de nossa sociedade atual devido a
algumas características peculiares deste conceito, tais como seu caráter filosófico
diferenciado5, e sua ligação com o pensamento marxista não ortodoxo e ideias
inovadoras sobre formas de luta e militância política.
CAPÍTULO 1 - IMPÉRIO, GUERRA CIVIL GLOBAL, CAPITALISMO COGNITIVO E OS DESAFIOS COLOCADOS PARA AS TEORIAS POLÍTICAS DE RESISTÊNCIAS.
1.1. A nova ordem global.
Todo conteúdo teórico apresentado no livro Multidão, que é a base deste
trabalho monográfico, é indissociável do entendimento peculiar que seus autores têm da
realidade contemporânea. Não é coincidência que este livro inicie com uma discussão
acerca deste entendimento, que por sua vez, já tinha sido exposto mais detalhadamente
em outras obras de Negri e Hardt, sobretudo no livro “Império” que condensa a visão
dos autores sobre a realidade política mundial ao apresentar e discutir as
movimentações da recente e emergente ordem global de poder, denominada por eles de
império.
Para cumprir o objetivo deste trabalho, ou seja, entender o conceito de multidão
e discutir possíveis contribuições deste conceito para uma compreensão teórica
atualizada de nossa realidade política e social é imprescindível retomar alguns pontos
das colocações mais significativas de Negri e Hardt acerca do cenário político e social
do mundo contemporâneo.
Começaremos pelo conceito de império que é central na analise feita pelos
pensadores aqui discutidos da conjuntura e constituição do cenário político e social
contemporâneo. Império aqui, não é entendido como uma metáfora que indique
semelhança entre a atual ordem mundial poder e outros sistemas de poder
historicamente constituídos, tais como o império romano, o império chinês e assim por
diante. O império na obra desses dois autores é uma nova formulação teórica que
descreve uma emergente forma de soberania transnacional do capital, que atua como
um poder político e econômico em forma de rede no todo do globo, e que hoje se
encontra em plena ascensão. Se recorrermos à definição dada pelos próprios autores do
conceito, teremos:
O império faz referência, sobretudo, à nova forma de soberania que veio após do Estado nação, uma forma ilimitada de soberania que não conhece fronteiras ou então conhece apenas fronteiras flexíveis e móveis. (NEGRI, 2003, p. 116).
Em termos Geopolíticos, na era do império6 não é mais a bipolaridade, a
unipolaridade ou mesmo uma multipolaridade simplista que se colocam como
formatação vigente do poder do capital no globo.
Afinal não vivemos mais como no período da guerra fria onde dois blocos
ideológicos e políticos distintos lutavam pelo poder no mundo, cooptando outros países
para compor seu campo político e fortalecer seu poderio no embate pelo controle
mundial. Depois da queda da União Soviética e da derrocada de todos os grandes
projetos de socialismo no globo7, é evidente que uma divisão ideológica dualista entre
um mundo capitalista e modelos nacionais promissores e alternativos ao capitalismo
estaria distante da realidade.
Também não vivemos sob a hegemonia do poder de um só estado-nação, como
apontam algumas teorias que descrevem os Estados Unidos como um único centro
monolítico de um capitalismo imperialista que comandaria de forma verticalizada,
simples e direta todos os outros países e potências globais. Para Negri e Hardt este tipo
de entendimento simplista não captaria todas as nuances e complexidade da forma que o
poder do capital se organiza hoje no mundo, pois deixaria de lado (ou pelo menos
menosprezaria) o desenvolvimento progressivo de um poder transnacional, que ao
mesmo tempo que ratifica uma hierarquia entre os estados-nação, também expõe cada
um deles a uma situação de dependência e enredamento em relação aos outros. Diante
do império, mesmo os Estados Unidos que se posiciona em uma posição superior dentro
da hierarquia do sistema de poder global teria de se submeter e respeitar a lógica de
interdependência estabelecida entre os estados-nação no todo global.
Um cenário político onde diversas forças distintas coexistem sem qualquer tipo
de coesão, seja ele dado na forma de um estado de conflito ou de harmonia plena
conforme algumas concepções insistem em defender, também é descartado. Pois o
entendimento da conjuntura mundial como um “estado de natureza entre estados-nação”
seria bem equivocado. Já que o processo de globalização não poderia funcionar sem a
existência de uma forma de controle eficiente para geri-lo8. Pois, por mais que haja
diferenças entre os estados-nação no tempo presente, é evidente que existe também um
entendimento que se dá na forma de um ordenamento político, jurídico e econômico
que visa manter o fluxo das relações entre esses mesmos estados-nação em plena
atividade, sobretudo das relações comerciais. Enxergar o poder político contemporâneo
como um sistema justo e plenamente harmônico de globalização e integração seria
igualmente errôneo, já que dentro do ordenamento mundial contemporâneo,
permanecem presentes as trocas desiguais entre os países, assim como, toda uma
hierarquia que coloca os estados-nação centrais do capitalismo em posição econômica,
jurídica e política superior aos periféricos. Garantindo aos que se encontram no topo do
poder imperial mais poderes e menos deveres, e aos que se encontram abaixo mais
deveres e menos direitos.
Hoje e cada dia mais, o que vigora na geopolítica mundial é o imperativo do
império. Ou seja, a efetivação de um ordenamento político mundial peculiar que conta
com diversas características singulares.
Uma primeira característica a ser destacada é a dubiedade do poder imperial. Por
um lado ele comporta uma assimetria esmagadora entre os diferentes estados-nação que
o compõem através de um princípio hierárquico de diferenciação que respalda a maioria
das desigualdades e divisões geopolíticas historicamente construídas, conservando e
promovendo as mais variadas relações desequilibradas de trocas comerciais, de direitos
e poderio no cenário mundial. Por outro garante que todos os que estão inseridos
hierarquicamente dentro do capitalismo mundial cooperem para preservar e desenvolver
o ordenamento global imperial graças a um princípio de interdependência.
Esta dubiedade é possível devido outra de suas características, à forma pela qual
o poder imperial efetiva-se, ou seja, pela sua organização em rede policêntrica. Este tipo
de organização consiste em um tipo de arranjo que mantém todos os seus integrantes
conectados entre si por meio de uma rede complexa de múltiplos centros (em forma de
nós) que variam em função e importância de acordo com o patamar hierárquico que
possuem dentro do todo do sistema.
É importante mencionar também o autoritarismo presente na estrutura da ordem
global. No livro “Cinco Lições sobre o Império” Negri expõe bem esta característica,
primeiro ao definir o Império como uma soberania que abriga em si as três formas
clássicas de governo. “O Império é um sujeito soberano único, que compreende em sua
lógica todas as três formas clássicas ou níveis de governo: a monarquia, a aristocracia e
a democracia” (ibidem, p. 117). Ele é monárquico quando atua por meio do poder
militar do pentágono e de instituições econômicas supranacionais, como a OMC, o
Banco mundial e o FMI. Ele é ao mesmo tempo aristocrático, pois:
Poucos Estados-nação dominantes conseguem gerenciar os fluxos econômicos e culturais globais mediante uma espécie de governo aristocrático. Esta aristocracia de nações se mostra claramente, por exemplo, nos encontros de nações do G-8, ou quando o conselho de segurança da ONU exerce sua autoridade. (ibidem, 2003, p 116).
Ele é virtualmente democrático, pois é aparentemente representativo. Ou seja, ele se
apresenta como espaço de representação do povo global. Contudo, esta representação é
apenas ilusória, já que suas instâncias representativas são no máximo representações
formais e abstratas do povo global. E mesmo estas representações ilusórias, quando
necessário são submetidas às deliberações dos braços aristocráticos e monárquicos do
Império. A democracia imperial é apenas uma maneira de iludir o povo global, de suprir
os seus anseios democráticos através da aparência de democracia e não por meio de
uma democracia real.
Uma última característica a ser destacada aqui é a disseminação. O império é um
poder transnacional que se realiza no globo como nunca nenhuma outra força já fez ao
longo da história, em abrangência e eficácia. Seu poder dissemina-se pelo planeta
sobrepondo politicamente e economicamente os mais diversos estados-nação, desde
países centrais e tradicionais do capitalismo, aos países mais remotos e periféricos. O
Império não possui um limite espacial fixo, não possui um exterior. Nos dias de hoje
todos estão inseridos no Império, todos tem uma função dentro dele, todos obedecem a
sua lógica.
Para prosseguir no estudo geopolítico feito até aqui, faz-se importante também
apontar os motivos do surgimento da nova ordem global. Para Negri e Hardt o declínio
do poder dos estados nações e ascensão do império na pós-modernidade se deve a
inúmeros motivos. Sobretudo a um movimento histórico que é duplo: por um lado as
demandas crescentes por um alargamento comercial forçaram o capital a globalizar-se,
fazendo surgir o que conhecemos como fenômeno da globalização ou mais
precisamente o nascimento de um capitalismo verdadeiramente globalizado, por outro a
reação do capital frente aos crescentes ganhos das organizações trabalhistas nacionais
que se fortaleciam politicamente compeliram a transcendência das fronteiras nacionais,
pois a política de globalização possibilitou o ganho de novos mercados, permitindo aos
empresários dos países centrais montarem empresas transnacionais em países
periféricos que possuem leis trabalhistas frágeis, abundante incentivo fiscal, mão de
obra barata e um cenário de desarticulação das organizações nacionais de trabalhadores.
Este movimento de duplo aspecto, aos poucos foi consolidando uma rede de poder
global que se transcendeu o poder dos estados nacionais através de mecanismos
políticos e econômicos globais, de jurisdições e instituições transnacionais9. Desta
maneira, o império concretizou-se como tendência, suprindo as demandas de
alargamento dos espaços de trocas comerciais e consolidando-se como a única
formatação de poder capaz de conservar a atual ordem global estabelecida no decorrer
histórico das lutas entre o poder constituído e suas políticas de contra-insurgência, e o
poder constitutivo e suas demandas por transformações no sistema político mundial.
Resumindo, segundo a teoria do império no mundo pós-moderno existe uma
nova ordem global de poder que foi historicamente construída por meio de processos
econômicos, políticos e sociais. Esta se dá na forma de uma rede disseminada e
policêntrica que transcende as fronteiras dos estados-nação permeando todos os espaços
do planeta. O império não é uma estrutura inflexível e direta de comando, ele abriga
realidades nacionais diferenciadas em seu interior e o desacordo aparece como
problema apenas nas raras exceções políticas que ocorrem quando algum país singular
questiona suas atribuições dentro do sistema hierárquico estabelecido, ou mesmo o
próprio sistema imperial10. Afinal, a desigualdade é necessária para o funcionamento do
da nova ordem mundial, pois é ela que possibilita o controle hierárquico das relações
1 Tal como afirmavam as teses de Fukuyama e sua ideia de que a Hegemonia dos Estados Unidos por si mesma consistia no triunfo da democracia global, o no fim da
história.
2 Acréscimo feito ao lema do fórum social mundial que diz que “outro mundo é possível se agente quiser”.
3 Refere-se aqui aos eventos promovidos pelos movimentos anticapitalistas nas reuniões do G8, os resultados das lutas de movimentos indígenas na América Latina e
tantos outros acontecimentos.
4 “É claro que não somos os únicos que embarcaram neste projeto. É, sobretudo um amplo esforço coletivo inventar (e reinventar) conceitos adequados às necessidades
do pensamento político contemporâneo.” (NICHOLAS BROWN; IMERE SZEMAN. O que é Multidão? Questões para Michael Hardt e Antônio Negri. Novos Estudos. 2006. n.75,
p. 95. ).
5 Respondendo a indagação acerca do caráter filosófico de sua teoria, Negri retoma a definição de Deleuze acerca do que é fazer filosofia para demonstrar que sua obra
é filosófica, porém de uma maneira bem diferente do que se convencionou chamar de filosofia. “É certamente filosofia num sentido bastante amplo, ou seja, buscando produzir
conceitos adequados para a situação contemporânea e investigar valores emergentes do nosso mundo. Mas até mesmo quando se propõem valores e alternativas, quando se descobrem
novos modos de viver, não se devem esquecer as dimensões materiais da vivência de formas de organização política e social, com todos seus desejos e sofrimentos.” (IBID, p94).
6 Denominação utilizada no subtítulo do livro multidão, para se referir a contemporaneidade.
7 Pensa-se aqui não só na da derrocada do socialismo soviético, mas também na transformação do socialismo Chinês em um capitalismo de Estado, além de outras
experiências socialistas que de alguma forma ameaçavam a hegemonia do sistema capitalista no mundo.
8 Não pode existir um mercado global sem um ordenamento jurídico, também não pode existir um ordenamento jurídico sem um poder que garanta sua eficácia.
9 Tais como o Banco Mundial, FMI, ONU, G8, OTAN. E também ao que Negri denomina de lex mercatoria pós-moderna, ou seja, “lei consuetudinária transnacional
fundada em acordos legais compartilhadas por uma comunidade internacional, construída principalmente por empresas comerciais, marítimas, seguradoras e bancárias.” (NEGRI,
Antonio. Cinco lições sobre o Império. 2003, p. 80).
10 Refere-se aqui aos que se colocam contra o império de maneira autêntica. Não aos que questionam o império apenas pelo arranjo hierárquico atual, mas aos que são
contrários a sua existência como ordem global.
estabelecido entre os estados-nação, e é conhecendo e regulando as assimetrias da
ordem global que o império estabelece funções, direitos e deveres, e desta forma se
mantém e se propaga.
Agora que já nos debruçamos sobre a teoria do império que é central nos estudos
de Negri e Hardt sobre a política contemporânea, cabe aqui tentar apontar algumas das
implicações que esta nos trás para o panorama atual das teorias políticas. Negri e Hardt
defendem que com o advento do império conceitos políticos paradigmáticos da
modernidade têm de ser repensados, segundo eles “na ótica do império, precisamos
reconsiderar e repensar todos os conceitos-chave da filosofia e política” (ibidem, 2003,
p. 118). Dois destes conceitos a serem repensados são os de soberania e imperialismo,
ambos considerados por muitos autores essenciais para o estudo da realidade política
mundial. Vamos aqui, tentar entender através destes dois conceitos a abrangência e
radicalidade das implicações teóricas promovidas pela teoria do império.
Atualmente os Estados-nação perderam a centralidade na reprodução social, ou
seja, perderam o controle sob a proporção do relacionamento das forças que o constitui.
Este controle é exercido nos dias de hoje pelo poder transnacional do império. Para
Negri e Hardt soberania é justamente este controle de reprodução social11. Sendo assim,
contemporaneamente vivemos dispostos em uma nova realidade onde os diversos países
do globo se encontram em função de uma mesma ordem que os sobrepõem, temos uma
soberania que não se concretiza nos territórios particulares dos Estados-nação. Hoje a
soberania determinante é a soberania imperial, transcendemos um longo período
histórico onde a soberania dos Estados-nação era determinante e uma espécie de chave
teórica para o entendimento da política mundial.
Outro conceito chave para o entendimento da geopolítica mundial durante a
11 “A soberania é o controle da reprodução do capital, e, portanto, o controle sobre a proporção do relacionamento de forças (trabalhadores e patrões, proletariado e
burguesia, multidões e monarquia imperial) que o constitui.” (ibidem, p. 50).
modernidade é o de imperialismo.
Imperialismo se entende como processo expansionista do poder do estado nação, mediante políticas de exportação capitalista, exportação de força de trabalho e constituição-ocupação de áreas de influencia, assim como instituições coloniais. (ibidem, 2003, p. 51).
Como vimos no cenário político pós-moderno de esvaziamento do poder do Estado-
nação mesmo os Estados mais fortes estão atrelados ao poder do império. Desta forma o
poder global não se efetivar-se puramente e simplesmente através da expansão do poder
de algum país particular, mas sim através de uma rede mundial de poder que é
hierárquica e que comporta todos os Estados-nação em seu interior.
Ter os conceitos de imperialismo e de soberania nacional como elementos
determinantes para entender as relações geopolíticas no mundo é um equivoco. O
conceito apropriado para a análise das relações de poder no globo hoje, que pode ajudar
de forma eficaz a explicar e entender todas as relações desequilibradas de trocas
comerciais e direito é o de império.
1.2. Guerra civil Imperial.
Ainda discutindo a visão geopolítica de Negri e Hardt, resta aqui falar das
colocações dos autores sobre guerra. Segundo esses, o mundo mais uma vez está em
guerra. No entanto, esta é bem diferente do que tradicionalmente costuma-se entender
como tal. Na pós-modernidade a guerra possuí características próprias que são
importantes de serem apontadas neste trabalho, pois o tema guerra essencial para
qualquer debate sobre a nova forma global de poder do capital e as formas de
resistências a ela12.
Uma primeira característica a ser destacada é que hoje, o que determina o estado
de guerra no global não é o conflito entre nações soberanas e imperialistas aos moldes
da primeira e segunda grande guerra, ou mesmo o embate entre grandes blocos políticos
12 A importância do tema guerra é grande, já no título do livro Multidão, podemos observar a presença desta palavra.
e ideológicos distintos e delimitados como no caso da guerra fria. Afinal, como vimos
anteriormente: a soberania dos estados-nação e o conceito de imperialismo não são mais
suficientes para se entender à política global, e qualquer divisão do mundo atual entre
capitalismo e grandes projetos alternativos a este, tal como o embate entre os EUA e a
URSS na época da guerra fria também seria fantasiosa13. Hoje os diversos conflitos
armados contemporâneos não podem ser pensados desassociados do contexto
supranacional colocado pela nova ordem global. Ou seja, conflitos como os do
Afeganistão, Colômbia, Palestina e Iraque, devem ser considerados a expressão de uma
guerra diferenciada. Pois mesmo que estes conflitos sejam regionais ou locais, ocorrem
dentro da ordem global imperial e sobe sua lógica.
Cada guerra local não deve ser encaradas isoladamente devem ser encarados como parte de uma constelação, ligados em grau variados tanto a outras zonas de guerra quanto áreas que atualmente não estão em guerra. (NEGRI; HARDT, 2005, p. 22).
Para Negri e Hardt com o advento do império a guerra deve ser encarada como uma
guerra civil, pois diferente da guerra entre Estados que é entendida pelo direito
internacional como conflito entre nações soberanas, a guerra civil é o conflito armado
entre combatentes soberanos ou não dentro de um mesmo território. E hoje, os conflitos
armados no mundo se desenrolam dentro de um único ambiente e sob a sombra do
poder de uma mesma soberania. O “território” do império, o cenário mundial.
Se agora pertencemos a um mundo no qual existe um único poder soberano, não um Estado-nação mas uma forma global de soberania que não possui exterior, então cada guerra é necessariamente uma guerra civil, no sentido de que é um conflito interno em uma única sociedade que se tornou global. (NEGRI, 2003, p. 82).
Desta forma os conflitos de hoje acontecem em função do poder imperial. São
diretamente ou indiretamente promovidos visando à manutenção ou alteração de
posições hierárquicas dentro da ordem vigente. Posições que como já apontamos na
descrição das características do império, determinam funções, direitos e deveres de cada
13 Negri e Hardt citam aqui a periodização histórica de Subcomandante Marcos para os conflitos bélicos atuais, que defende a ideia de que na atualidade exista uma
quarta guerra mundial. Segundo o filósofo esta periodização pode ser útil se compreender melhor a contemporaneidade, pois ajudaria a reconhecer a continuidade e diferença em
relação aos conflitos globais anteriores.
Estado-nação singular dentro da ordem mundial. É interessante também destacar que a
maioria dos que se enfrentam hoje “estão lutando (…) por um domínio relativo no
interior das hierarquias nos níveis mais altos e mais baixos do sistema global” (NEGRI;
HARDT, 2005, p. 22). E várias das lutas que hoje parecem apontar para um
enfrentamento da ordem vigente do capitalismo global, na verdade se limitam a
demandas de alteração de hierarquias dentro da rede do poder imperial14.
Uma outra característica relevante e peculiar da guerra pós-moderna é a sua
indeterminação temporal, na era do império a guerra é infinita. O conceito de estado de
exceção foi modificado, este que era um artifício conceitual de muitas das teorias
políticas para significar um estado provisório e excepcional de governo e violência
legítima foi reelaborado para fundamentar a política de um estado de conflito sem fim
que é promovida pelo capital. “O estado de exceção virou permanente e generalizado; a
exceção transformou-se em regra, permeando tanto as relações internacionais quanto o
espaço interno.” (ibidem, p. 26). A retórica de necessidade de ações preventivas diante
perigos constantes é o que fundamenta este paradoxal “estado de exceção permanente”.
Nesta guerra infinita os inimigos a serem enfrentados são abstratos15, podem estar em
qualquer lugar e aparecerem há qualquer momento. Pois são alvos conceituais16, são
inimigos que não podem ser vencidos derradeiramente, e ao quais o império deve
enfrentar incessantemente e ferozmente17 em nome do bem e da justiça18 global.
A guerra contemporânea precisa estender-se por período indeterminado devido à
14 “De fato, a maior parte das batalhas conduzidas em nome dos pobres, dos oprimidos, dos justos, são meras lutas para o primado nas hierarquias do poder imperial.
Forças que exigem para si a representação dos interesses dos miseráveis da terra e entram em conflito com outras tantas que pretendem simbolizar justiça e paz para todos; mas estas
guerras civis são apenas lutas complexas para obter o poder nas hierarquias imperiais” (ibidem, p. 83).
15 As drogas como na Colômbia ou terrorismo como no oriente médio, por exemplo.
16 O terrorismo, por exemplo, transformou-se em um conceito político associado ao mal. No entanto, o atual significado da palavra terrorismo é recente e está
relacionado a elementos como violência ilegítima, revolta contra governos legítimos, violação de regras de combate. Elementos dependem de um quem defina o que é violência
legítima, governo legítimo e regaras válidas.
17 Entende-se como a justificação da flexibilização ou negação de direitos legais e/ou humanos. Práticas como as de quebra de privacidade legais ou ilegais, métodos de
tortura considerados permitidos (como as técnicas de afogamento utilizadas por soldados americanos em interrogatórios) e violações diretas a convenção de Genebra (tais como as
vistas no escândalo de Abu Ghraib).
18 Refere-se aqui ao discurso maniqueísta da coalizão de ocupação do Iraque liderada pelos Estados Unidos, que promoveu a ideia de existiria no mundo um “eixo do
mal” que deveria ser enfrentado em nome do bem mundial.
outra de suas características, a guerra se tornou estrutural. “Uma guerra para criar e
manter a ordem social não pode ter fim” (NEGRI, 2003, p. 35). Contrariando as teorias
políticas clássicas, o funcionamento normal do poder na pós-modernidade prevê a
guerra19. Ela é um sistema indispensável de disciplina e controle20, que age de forma
ininterrupta em pró da manutenção e redistribuirão das hierarquias do império de
acordo com as demandas do capital mundial.
A guerra transformou-se na matriz geral de todas as relações de poder e técnicas de dominação (…). A guerra transformou-se num regime de biopoder, (…) destinada não apenas a controlar a população, mas a produzir e reproduzir todos os aspectos da vida social. (NEGRI; HARDT 2005, pg. 34).
Os exércitos que representam os interesses do capital global não visam à pura e simples
destruição do inimigo, e anexação e espoliação imperialista de territórios. Mas sim, a
ação policial constante de enquadramento das forças sociais e políticas que não se
encaixam na ordem de funcionamento do sistema de poder global. Como regime de
biopoder21 a guerra “encarna a missão de produzir e transformar a vida social em seu
nível mais geral e global.” (ibidem, p. 43).
Por fim, é importante destacar esta guerra infinita, sem limites e estrutural não é
um mecanismo de disciplina e controle que age apenas a nível macropolítico22. Todos
os inimigos do império são alvos possíveis de suas ações biopolíticas. A carapuça
criada através do discurso de segurança23 “justifica uma constante ação marcial, tanto
no interior do país quanto no exterior” (ibidem, p. 44). Todas as multidões são inimigas
do Império, não é por confidência que estarmos diante políticas de criminalização da
pobreza e dos movimentos sociais24.
19 “A guerra imperial não cria a ordem pondo um pondo fim à “guerra de todos contra todos”, como pretendia Hobbes, e sim propõe um regime de administração
disciplinar e controle político diretamente baseado em contínuas ações de guerra.” (HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. 2005. p. 44).
20 “Por disciplina entende-se uma forma de governo sobre os indivíduos de maneira singular e repetitiva (…) por controle, no entanto entende-se o governo das
populações por meio de dispositivos que abarcam coletivamente o trabalho, o imaginário, a vida” (NEGRI, Antonio. 2003. p. 104)
21 “Fala-se de biopoder quando o Estado expressa seu comando sobre a vida por meio de suas tecnologias e de seus dispositivos de poder” (NEGRI, 2003, p. 107).
22 Refere-se aqui, a política de Estados e governo.
23 A passagem de políticas de defesa para de segurança, significa a transição uma atitude reativa diante ameaças, para uma atitude ativa, preventiva.
24 Refere-se a práticas políticas que tentam associar a pobreza e os movimentos sociais à ilegalidade. A forma de incursão da polícia nas comunidades carentes no rio de
Janeiro e os esforços de setores da elite nacional para transformar o MST em uma organização criminosa são exemplos desta política.
1.3. As mudanças na esfera econômica.
Ainda no que se refere à exposição da visão de Negri e Hardt sobre a realidade
contemporânea, precisamos abordar seus estudos na área da economia. Pois, para
entender a analise social e política feita por estes pensadores, faz-se importante
acompanhar também as suas ideias sobre as mudanças na base material da sociedade
pós-moderna.
Para Negri, assim como ocorreram grandes mudanças na política mundial,
também ocorreram grandes mudanças na economia. Muitos defendem que estas
mudanças no sistema capitalista foram tão relevantes, que temos de enxergá-lo de
maneira nova para poder entendê-lo de forma eficaz. Pois, o capitalismo teria entrado
em uma nova fase na contemporaneidade, a do capitalismo cognitivo25. Ou seja, uma
forma de capitalismo pós-industrial baseado em novos tipos de relações de produção
que estão relacionados à alta capacidade de comunicação, cooperação e também a
hegemonia do trabalho imaterial. Negri e Hardt, junto a outros pensadores tais como o
filósofo italiano Maurizio Lazzarato, enquadram-se entre os estudiosos que possuem
este entendimento.
Fala-se que entramos na idade do capitalismo cognitivo. (...) Nesta época cognitiva, a produção do valor depende sempre mais de uma atividade intelectual criadora que não só se situa além de qualquer valorização ligada à raridade, como se situa além da acumulação de massa da fábrica etc. (NEGRI, 2003, p. 94).
Nos estudos de Negri, encontramos uma periodização do sistema capitalista que
pode nos servir para evidenciar a amplitude das mudanças econômicas que determinam
o surgimento do capitalismo pós-moderno26. Segundo esta periodização, o
desenvolvimento histórico do capitalismo inicia-se com a manufatura27, atravessa a fase
da grande indústria28 e culmina na forma atual do capital. O período da manufatura,
25 O conceito de capitalismo cognitivo fundamenta-se na ideias de que hoje o trabalho intelectual cooperativo é a forma hegemônica de trabalho, e que o capital age
apropriando de forma privada o valor do que é produzido pelas redes deste trabalho.
assim como o início do período da grande indústria foi estudado por Marx, que
conseguiu alcançar um brilhante entendimento das bases do funcionamento do sistema
capitalista. Posteriormente, outros autores socialistas tais como Lênin, estudaram o
prolongamento da grande indústria e mais recentemente desenvolvem-se trabalhos a
respeito do período pós-industrial.
Para entendermos as especificidades da atual fase do capital, é interessante
entender um pouco do que foi o período precedente. Negri divide o período da grande
indústria em duas fases, que possuem características bem específicas em relação: as
formas de trabalhos, de consumo, de regulamentação do capital e de composição e
organização política dos trabalhadores.
A primeira fase vai de 1870 á Primeira Guerra Mundial, da comuna de Paris à
Revolução Russa de 1917 e se caracteriza pela: 1. hegemonia de uma mão de obra
operária qualificada tecnicamente, que funciona como apêndice das maquinas da
indústria e conhece relativamente o ciclo produtivo29. 2. produção voltada para as
massas, regulada pela capacidade salarial adequada a demanda correlativa. 3.
construção de um capital financeiro30, consolidação de monopólios31 e o
desenvolvimento de políticas imperialistas. 4. agitação política e mobilização dos
trabalhadores através de organizações sindicais e partidárias, vanguardistas32 de caráter
operário.
A segunda fase vai do fim da Primeira Guerra Mundial a 1968 e é caracteriza
por: 1. Formas de trabalho hegemonicamente taylorista, ou seja, mão de obra composta 26 “Falamos de uma passagem do moderno ao pós-moderno justamente para absorver um pouco de todos os “pós” (pós-taylorista, pós-fordista, pós-keynesiano, pós-
socialista ou pós-comunista etc.).” (NEGRI, Antonio. 2006, p 68).
27 Tipo de produção pré-industrial que se caracteriza pela uma rudimentar divisão de trabalhos.
28 Conceito utilizado por Marx para se referir ao período industrial.
29 Entendido como as várias etapas que em conjunto permitem a obtenção de um bem.
30 O Capitalismo Financeiro refere-se a um tipo de economia onde o grande comércio e a grande indústria são controlados pelo poderio econômico dos bancos
comerciais e outras instituições financeiras.
31 Uma situação onde uma empresa detém o domínio total de comercialização de um determinado produto ou serviço.
32 Teoria dualista de organização política, que prevê que deva existir por razões estratégicas e táticas uma divisão organizacional entre massa e vanguarda. Segunda esta
concepção a vanguarda seria composta pelos indivíduos mais esclarecidos, que deveriam compor os quadros representativos das organizações. Enquanto a massa seria composta por
uma gama de indivíduos que ainda não teriam a qualificação ideológica para ocupar importantes cargos nas organizações revolucionárias.
por grandes massas de trabalhadores sem qualificação que inseridos em processos de
trabalho altamente complexos, especializados e alienantes perdem a visão do ciclo
produtivo. 2. Normas de consumo fordistas33, que colocam o salário como antecipação
adequada à aquisição de bens produzidos pela indústria de massa. 3. Um modelo de
regulamentação keynesiano34, onde o Estado intervém na economia para sustentar a
produção, a manutenção do emprego pleno e a assistência social. 4. Um prolongamento
das experiências das organizações de caráter trabalhista e o desenvolvimento de novas
formas de organização críticas aos modelos vanguardistas e centralizados dos
tradicionais partidos políticos e sindicatos, que prezam pela construção de organizações
fundamentadas nas bases que as compõem35.
Nos anos posteriores a 1968 este capitalismo industrial começou a se
transformar e a dar lugar á outra realidade material, onde cada relação social se tornou,
de certa maneira, uma relação produtiva. Com o fim do período da grande indústria, a
sociedade como um todo se tornou um fábrica social. Surge a atual forma do
capitalismo. “Fala-se propriamente de uma terceira transição capitalista, depois da saída
da manufatura e do desenvolvimento da grande indústria.” (ibidem, p. 94)
Nesta forma emergente do sistema do capital, começa a vigorar a automação das
fábricas, a informatização da sociedade e um quadro econômico onde o trabalho
material imediatamente produtivo perde a centralidade no processo de produção. Torna-
se hegemônico o trabalho cooperativo que se realiza através de redes produtivas que
ultrapassam os muros das fábricas e permeiam toda a sociedade. A figura do
trabalhador massa36 do período do taylorista dá lugar ao trabalhador social37, que realiza
33 Entende-se como fordismo o sistema de produção, criado pelo empresário norte-americano Henry Ford, que se caracteriza, sobretudo, pela fabricação em massa de
produtos padronizados.
34 O Keynesianismo é uma teoria econômica que tem como base a crença de que o Estado seja agente indispensável de controle da economia. E assim sendo, deva
conduzir a um sistema de pleno emprego e bem estar social.
35 Construção de cima pra baixo, horizontalização do poder.
36 Utiliza-se este termo para se designar o trabalhador taylorista.
37 Trabalhador que se caracteriza pelo seu alto grau de comunicabilidade e cooperação. Típico das redes de trabalho do capitalismo cognitivo.
atividades abstratas ligadas à subjetividade e que se apresenta como protagonista das
funções de cooperação das redes sociais. Em relação às normas de consumo, vigora a
liberdade de mercado. E com o advento da ideologia neoliberal38 e a sua realização, a
interferência do Estado na economia passa a ser entendida como algo negativo, o que
vem a minar as bases do modelo keynesiano de bem estar social39. A nível global, sobre
tudo nos países periféricos, começa a construir-se uma política de Estados fracos40 que
delegam a sociedade civil, ou melhor, entregam a esfera privada muitas das funções que
antes eram atribuídas exclusivamente ao poder estatal. Em relação à regulação do
capital, vigora a monetarização41 e financeiração da economia que se integram a lógica
da nova ordem mundial do império. Por fim, a composição atual da classe trabalhadora
não encontra uma forma adequada de expressão nos tradicionais partidos políticos e
sindicatos trabalhistas. Estes se demonstram ineficientes ou incapazes responder
consistentemente as políticas de exploração do capital e angariar vitórias para o campo
dos explorados, pois não conseguem entender e muito menos se adequar as inovações
sociais e econômicas do período presente.
Todas as fases do desenvolvimento capitalista possuem características materiais
adequadas ao seu momento histórico. Características que para os defensores da teoria de
capitalismo cognitivo, são determinadas pelo grau de abstração do trabalho dentro dos
processos de produção. Desta forma, o que discerne a nova fase do desenvolvimento do
capital das fases precedentes seria a imaterialidade do trabalho42, que nos atuais
processos produtivos alcançou um patamar nunca antes visto. A base deste
entendimento é uma leitura e interpretação particular dos Grundrisses43, que concluí que
38 Compreende-se como neoliberalismo uma corrente de pensamento e doutrina política desenvolvidas pela Escola de Chicago e difundidas através do consenso de
Washington, que consiste na defesa da liberdade plena do mercado e monetarização e desregulamentação da economia.
39 Entende-se como Estado de bem-estar social um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado como agente de protetor e defensa social.
40 Fraco, no que diz respeito à promoção de bem social.
41 Monetarismo é uma teoria econômica que defende que é possível manter a estabilidade de uma economia através de instrumentos monetários. Este tipo de concepção
esta associada às ideias mais contemporâneas de livre mercado e rejeição de qualquer regulamentação da economia.
42 Conceito que será explicado no decorrer do texto.
43 Manuscrito de Marx não traduzido para o português valorizado por muitos teóricos não ortodoxos que estudam o marxismo.
Marx ao discutir o desenvolvimento das formas de trabalho, já havia apontado que o
trabalho tende a se tornar cada vez mais imaterial, cada vez mais relacionado às
energias intelectuais e aos saberes da ciência. Sendo assim, nos dias de hoje o que
presenciamos é uma radicalização desta tendência de aumento da imaterialidade do
trabalho no desenvolver das relações de produção44.
Como consequência de todas as novidades colocadas pela nova realidade
econômica e social surge um mostro, “que são as transformações da forma de trabalho,
da força produtiva” (ibidem, p. 91). Diante deste, tornam-se insuficientes muitos dos
conceitos utilizados até então para analisar a realidade. Dois pontos aqui são essenciais
em relação a este tema.
Primeiramente, o que se refere à crítica da teoria de valor que é central na
analise dos que crêem no capitalismo cognitivo. Segundo estes, a quantificação do valor
do trabalho através da medida de tempo torna-se ineficaz nos dias de hoje. O trabalho
transformou-se em algo incomensurável, pois ao contrário de previsões de um desfecho
progressista e otimista de incremento do tempo de lazer do trabalhador possibilitado
pelo desenvolvimento das forças produtivas45, efetivou-se nos dias de hoje a extensão
do trabalho (e de sua exploração) a totalidade do tempo de vida. O conceito de “mais-
valia” 46 que foi um essencial para o entendimento da exploração do trabalho no período
da grande indústria, pensado de forma ortodoxa tornou-se obsoleto. É importante ficar
claro, que a exploração do trabalho que é base de todas as teorias de críticas ao
capitalismo não é de forma nenhuma negada por esta concepção crítica da teoria de
valor, muito pelo contrário. O “trabalho sempre será explorado enquanto houver
capitalismo” (ibidem, p.99), o que está sendo afirmado é que mensurar o quanto o
trabalhador é explorado, através do tempo correlativo de trabalho tornou-se impossível
44 Todas as relações estabelecidas pelos indivíduos e grupos de indivíduos durante o processo de produção de bens.
45 Por forças produtivas compreendem-se, os meios que dispõe a sociedade para produzir.
46 Entendida como o valor extraído do trabalho explorado dentro de um tempo mensurável.
graças a novas formas de exploração encontradas pelo capital.
Outro tema é o da teoria de hegemonia do trabalho imaterial. Já foi apontado que
o fator determinante na diferenciação de fases da periodização do desenvolvimento
capitalista é o grau de imaterialidade do trabalho, que a radicalização da imaterialidade
nos processos produtivos contemporâneos é que determina a existência de uma nova
fase do capitalismo, e que o trabalho material imediatamente produtivo perdeu a
centralidade no presente processo de produção. No entanto, resta ainda se ater com mais
propriedade a teoria de trabalho imaterial, que assim como a ideia de crise da teoria de
valor trabalho, também é central nos trabalhos de Negri. Esta teoria consiste na ideia de
que na atual fase do desenvolvimento do capitalismo o trabalho imaterial, ou melhor
dizendo, “o conjunto das atividades intelectuais, comunicativas e afetivas, expressas
pelos sujeitos e pelos movimentos sociais” (ibidem, p. 82) tornou-se a fonte principal de
valor e riqueza da sociedade. Ou melhor, as características essenciais deste tipo de
trabalho, que sempre existiram historicamente, assumiram posição dominante dentro do
processo produtivo. Desta forma, o trabalho imaterial conquistou a hegemonia entre as
formas de trabalho. Alguns esclarecimentos são necessários para que não aconteça um
mau entendimento a cerca deste tema. Primeiro, quando se refere ao termo “imaterial”
não esta se dizendo que o trabalho tornou-se desprovido de sua dimensão material.
O trabalho envolvido em toda produção imaterial continua sendo material – mobiliza nossos corpos e nossos cérebros, como qualquer trabalho. O que é imaterial é o seu produto. Reconhecemos que a este respeito à expressão trabalho imaterial é muito ambígua. Talvez fosse melhor entender esta forma hegemônica de trabalho como “trabalho biopolítico”, ou seja trabalho que não cria apenas bens materiais mas também relações, em última análise, a própria vida social. (NEGRI; HARDT, 2005, p 150).
A escolha do termo “imaterial” parece ser uma estratégia utilizada para facilitar o
entendimento da questão. Pois, optar por outro termo tal como o biopolítico, também
traria alguns problemas conceituais. Sobre esta escolha, diz Negri
A biopolítica apresenta numerosas outras complicações conceituais, de modo que nosso ver o conceito de imaterialidade, apesar de suas ambiguidades, parece
inicialmente mais fácil de aprender. (idem).
Adiciona-se a esta questão, que o trabalho imaterial quase sempre se mistura com
formas materiais de trabalho. Poucos são as vezes que o trabalho imaterial é somente
trabalho intelectual/linguístico47 ou trabalho afetivo48. Em segundo lugar, é preciso
elucidar que afirmar a hegemonia do trabalho imaterial não é defender que a maioria
das pessoas trabalhem para produzir afetos, ou em atividades intelectualmente elevadas.
O trabalho fabril no período da grande indústria foi hegemônico e nunca superou o
trabalho agrícola em termos numéricos. Pois o que determinou sua hegemonia neste
período foi sua capacidade de se colocar como tendência49 sobre todas as outras formas
de trabalho. Da mesma maneira, o trabalho imaterial nos dias de hoje não é a maior
fração das formas vigentes de trabalho, mas se impõe como tendência sobre todas
outras. Ele não acaba com as outras formas de trabalho, nem as supera em termos de
número de trabalhadores, mas tende a “contaminá-las” com o "imaterial". Ou seja,
tornar todas as formas de trabalho comunicativas, informatizadas, afetivas e
cooperativas50.
1.4 Os desafios colocados para as teorias políticas de resistências.
Em um mundo contemporâneo que rompe em diversos aspectos com os
paradigmas modernos, algumas questões são inevitavelmente colocadas. Afinal, como
pensar uma teoria de transformação social não anacrônica? Quem são os sujeitos
políticos potencialmente revolucionários dentro da nova composição social do trabalho?
Como construir novas formas de organizações políticas, que permitam estes sujeitos
47 Entendido como, trabalho que “produz ideias, símbolos, códigos, textos, formas linguísticas, imagens e outros produtos do gênero” (HARDT, Michel; NEGRIT,
Antonio. 2005. p. 149).
48 “Trabalho afetivo, assim, é o trabalho que produz ou manipula afetos como a sensação de bem estar, tranquilidade, satisfação, excitação, paixão. Podemos identificar o
trabalho afetivo, por exemplo, no trabalho de assessores jurídicos, comissários de bordo e atendentes de lanchonete (servir com sorriso).” (ibidem, p. 149).
49 “A indústria era hegemônica na medida em que sugava outras formas para seu vértice: a agricultura, a mineração e até a própria sociedade forçaram-se a industrializar.
Não somente as práticas mecânicas como também o ritmo do trabalho industrial e seu gradualmente transformando todas outras instituições sociais, como a família, a escola e as
forças armadas” (ibidem, p. 148).
50 “Hoje o trabalho e a sociedade têm de se informatizar, tornar-se inteligente, comunicativos e afetivos.” (ibidem, p. 151).
atuarem transformando de forma positiva a sociedade?
A nova ordem mundial do império traz para as teorias criticas da sociedade
capitalista, e ao campo dos atores políticos de resistência problemas e desafios. Se o
Estado-nação deixou de ser o principal regulamentador dos fluxos do capital, sendo
sobreposto por um poder transnacional que se estende a todos os cantos do planeta,
como encontrar um espaço de resistência a este poder? Ou ainda, quais são as opções
diante o processo inevitável de globalização? E o imperialismo, diante da atual
configuração geopolítica, o típico discurso contra o imperialismo norte americano e o
unilateralismo, não seria simplista demais?
Também surgem questões que se relacionam ao regime de biopoder do
capitalismo contemporâneo, ou melhor, a guerra infinita e sem limites promovida pelo
capital visando o controle e a disciplina social. Por exemplo: como resistir frente ao
policiamento global, e a guerra que é promovida contra todos os que não se enquadram
nos planos da nova ordem imperial? É possível resistir?
Por fim, em meio a uma realidade onde vigora a desmobilização e fragmentação
da classe dos trabalhadores, que não encontram uma plataforma de expressão nas
antigas formas de organização trabalhistas e acabam sendo presas fácil do capital.
Colocam as questões: Como poderiam os explorados mobilizar-se? Existiria uma forma
de luta viável e eficaz aos novos sujeitos políticos contemporâneos?
As respostas para estas e outras questões são apontadas nas discussões da teoria
da multidão, que será o foco teórico do próximo capítulo.
CAPÍTULO 2 – A MULTIDÃO COMO ALTERNATIVA AO PODER IMPERIAL.
2.1. O Que é Multidão
Além de nos apresentar uma teoria sobre a forma contemporânea do capitalismo
global, Negri também se propõe a elaborar uma teoria de transformação social
atualizada. No centro desta teoria encontra-se um sujeito social novo que nasce em
meio à nova composição política e econômica dos dias de hoje, a multidão. Se o
império pode ser enfrentado, seu oponente por excelência é a multidão. Este é o
conceito chave para efetivar alternativas, políticas, econômicas e sociais que se
contraponha a ordem mundial de poder do capital. Qualquer “ação política voltada para
a transformação e libertação só pode ser conduzida hoje com base na multidão”
(ibidem, p. 139).
Para fazer entender a teoria de resistência desenvolvida por Negri, ou melhor, à
teoria da multidão, utilizar-me-ei de uma exposição baseada em três momentos: O
primeiro consiste em apresentar o conceito de multidão. Ou melhor, expor sua definição
geral. Em um segundo momento, apontarei algumas de suas características e
especificidades que fazem do conceito de multidão uma inovação frente a outras teorias
de resistência e de sujeitos sociais. E por fim, em um terceiro momento, apresentarei a
discussão de como a multidão pode ser a base para a resposta de muitos dos desafios
colocados pela realidade contemporânea.
2.1.1. Por uma definição para o conceito de multidão.
Depois dos trabalhos de analise de Negri e Hardt sobre a política na
contemporaneidade51, que culminou no desenvolvimento do conceito de império como
nova ordem de poder mundial e a breve apresentação de um contraponto a este, a
multidão. Surge o livro “Multidão: guerra e democracia na era do império”, que
segundo os próprios autores, tem como objetivo responder algumas questões que até
então tinham sido pouco desenvolvidas. Essencialmente definir de maneira mais
concisa o conceito de multidão. A partir deste momento se torna evidente a importância
que é dada por Negri e Hardt a este conceito e também seus esforços para expor de
maneira substancial seu significado.
Em uma palestra no Rio de Janeiro realizada em um encontro sobre psicanálise52
Negri já nos apresentava uma boa definição do conceito de multidão. Segundo a qual a
“multidão se apresenta como uma multiplicidade de singularidades” 53. Multiplicidade
neste contexto deve ser entendida como a capacidade de um agregar que não nega as
diferenças que reúne. Ou melhor, um conjunto que se dê como uma comunidade de 51 Desenvolvido com mais clareza nos livros “Império” e “Cinco Lições sobre o Império”
52 Mais precisamente no evento “Estados Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro Mundial” realizado no mês de outubro do ano de 2003 no Rio de Janeiro.
53 Texto retirado da internet, tradução de Izabel F.M. Borges, a partir da transcrição literal da fala de Antonio Negri no evento Estados Gerais da Psicanálise: Segundo
Encontro Mundial que aconteceu em outubro de 2003 no Rio de Janeiro.
diferenças. Já o termo singularidade da maneira que é utilizado, refere-se a
Um sujeito que participa de um todo sem ser seu produto, de uma determinação que participa de uma classe sem ser uma função sua (...) falamos em singularidades diferentes, nunca identificadas no conjunto e tampouco nunca consubstanciadas como indivíduos separados. (Negri, 2003, p. 158).
Ou seja, quando se diz que a multidão é composta de singularidades, se quer dizer que
cada diferença presente em seu conjunto possui força própria e também que estes
componentes só podem ser como tal dentro de uma dinâmica de relação que permita
construir, paralelamente a si mesmas e ao todo. Sendo assim, podemos dizer que
A multidão não é nem o encontro da identidade, nem pura exaltação da diferença, mas é o reconhecimento de que por de trás de identidades e diferenças, pode existir “algo comum” (…) entendido como proliferação de atividades criativas, relações ou formas associativas diferentes. (ibidem, 2003, p. 148)
Uma metáfora utilizada por Negri pode nos ajudar a entender o significado mais geral
do conceito de multidão. No livro “Multidão”, este utiliza a imagem bíblica da legião
demoníaca para se referir à multidão.
Jesus encontra um homem possuído por demônios e pergunta-lhe seu nome (…) o demônio responde enigmaticamente: “Legião é meu nome, porque somos muito” (NEGRI; HARDT, 2005, p. 186)
O demônio Legião é ao mesmo tempo singular e plural, um eu e um nos. Ele é
poderoso, pois destrói qualquer distinção numérica. Pode ilustrar a multidão, pois assim
como ela é um e muitos ao mesmo tempo.
2.1.2 Multidão como um novo sujeito social.
Para completar o entendimento sobre o conceito de multidão, e fazer entender
como este é uma inovação frente a outras teorias de resistência é preciso avançar para
além da definição geral já exposta e nos ater, mesmo que brevemente, ao estudo de sua
pluralidade de dimensões significativas.
Podemos dizer que sob um aspecto sociológico e econômico a multidão é um
sujeito social novo que se diferencia de outras noções de sujeitos sociais como povo,
massa e classe operária.
O conceito de povo surge na teoria política moderna, relacionado à visão
jusnaturalista54 que entende a formação da sociedade organizada como um contrato
entre indivíduos. Segundo esta concepção de sociedade, os indivíduos vivendo sem um
poder soberano maior do que eles encontrariam-se sob um estado constante de
insegurança55 que impossibilitaria qualquer ordenamento social. Só através de um pacto
social56 onde os indivíduos abdicassem de sua liberdade plena em pró de um poder
soberano protetor maior do que eles, é que a sociedade organizada poderia existir. O
conceito de povo proveniente desta linha de pensamento pode ser entendido como a
unidade que é o resultante deste contrato social. Dizendo melhor, o conceito moderno
de povo prevê que as inúmeras diferenças da população tornem-se uma única
identidade. Negri é bem crítico as ideias colocadas pela filosofia política jusnaturalista,
considerando-a de uma maneira ou de outra uma teoria mistificadora e ultrapassada da
sociedade57. O que de pronto, já compromete toda base teórica que sustenta o conceito
tradicional de povo. No se refere às diferenças entre este conceito e a multidão,
podemos identificar uma diferença fundamental. A multidão é sempre múltipla, as
diferenças que a compõem não podem ser reduzidas à uniformidade de uma identidade.
Na multidão a diferença se mantém e deve manter-se diferente, pois como vimos, ela é
por essência à multiplicidade das diferenças singulares. Outro ponto a se destacar aqui é
que com o advento do poder imperial que transcende e esvazia a soberania da estado-
nação o conceito de povo também é esvaziado. Já que tradicionalmente este conceito
esta relacionado à ideia de um espaço nacional delimitado.
54 Por jusnaturalismo se entende a teoria que defende a existência de um direito, cujo conteúdo é estabelecido pela própria natureza da realidade. Na modernidade esta
linha de pensamento foi desenvolvida por Hobbes e posteriormente por pensadores ligados ao liberalismo.
55 Refere-se à teoria de estado de natureza hobbesiana.
56 Compreende como Pacto social ou contrato social o acordo estabelecido entre os indivíduos para cessar o estado de natureza e construir o Estado.
57 Negri relaciona o pensamento contratualista a pensamentos místicos e puramente abstratos sobre a sociedade. Segundo ele, estes tipo de teoria política se baseia em
hipóteses sem comprovações empíricas ou antropológicas. Além de criticar também o caráter burguês e autoritário das noções de liberdade e representação política oriundas deste tipo
de teoria.
A multidão também se contrasta de outros conceitos que se referem a entidades
coletivas plurais, tais como turba, populacho e massa. Fundamentalmente por duas
características intrínsecas a estes termos. A primeira característica, é que os indivíduos
que constituem estas entidades não são singularidades, pois suas diferenças esvaziam-se
em indiferença. “Todas as cores da população reduzem-se ao cinza” (ibidem, P. 13), a
aglomerados indistintos de gente. Além disto, os componentes destes coletivos não são
capazes de agir por si mesmo, são elementos passivos e desorganizados, força irracional
facilmente manipulável. Precisam ser controlados e moldados por alguma força externa.
Em relação ao termo massa, poderíamos dizer ainda mais. Este conceito está
relacionado a um tipo especifico de forma de trabalho, ou seja, está relacionado às
formas de trabalho da época de hegemonia do trabalhador industrial fordista e
taylorista. Refere-se ao trabalhador massa alienado.
A multidão é radicalmente diferente de turba, populacho e massa. Primeiramente
porque é formada por singularidades que nunca se reduzem à indiferença. A multidão
também se diferencia destas outras entidades coletivas, pois é ativa e organizada.
Dizendo melhor, ela é essencialmente criativa e auto-organizável. Contrastando-a
especificamente ao conceito de massas, podemos dizer que a multidão refere-se à outra
fase do desenvolvimento das formas de trabalho. A Hegemonia do trabalho imaterial,
ao trabalhador social.
Por fim podemos distinguir a multidão também do conceito de classe operária.
Este conceito de origem marxista relaciona-se a teorias políticas ligadas ao período da
grande indústria, que se fundamentam em muitos pilares teóricos específicos deste
momento histórico do desenvolvimento material das formas de trabalho. Para poder
entender o conceito de classe operária, e posteriormente diferenciá-lo do conceito de
multidão, faz-se importante expor aqui algumas das ideias que o cercam.
Primeiramente, podemos dizer que a classe operária pode ser entendida de duas
maneiras: Como uma concepção mais restrita ela refere-se apenas ao trabalho industrial,
já como uma concepção mais ampla refere-se a todos os tipos trabalhadores
assalariados. Podemos dizer também que a classe operária é a classe explorada e
hegemônica do capitalismo industrial. Ela se diferencia não só da classe antagônica a
ela, a burguesia industrial. Mas também de outras formas de trabalho também
exploradas, tais como o campesinato, os trabalhadores do setor de serviços e todos os
tipos de trabalhadores não assalariados58. A exploração que está sujeita pode ser
analisada através da teoria econômica de valor trabalho e do conceito de mais-valia, e
quando entendida como forma hegemônica de trabalho acaba por ser considerado o
elemento primordial dos projetos políticos anticapitalistas. Por fim, podemos dizer
também, que relacionado à concepção de classe operária estão os sindicatos e partidos
operários centralizados59.
A classe operária em muitos pontos é similar ao conceito de multidão, no
entanto esta similaridade de forma nenhuma faz com que elas sejam identificáveis. A
multidão também pode ser entendida como classe, mas de maneira diferente de como se
entende a classe operária. Ela é o novo proletário, “uma concepção expansiva e aberta
de proletariado.” (BROWN; SZEMAN. 2006. p. 105). Ela é o fruto das atuais relações
de produção do capitalismo pós-industrial. E neste cenário contemporâneo, detém o
papel de ator das novas e hegemônicas formas de produção. Pois é o agente ativo das
redes de cooperação social. No entanto esta hegemonia deve ser entendida de maneira
diferente de como foi entendida pelas teorias socialistas a hegemonia da classe operária.
Pois a multidão é formada “por todos aqueles que trabalham sob o domínio do capital”
(Hardt; Negri, p 147), e assim sendo não pode determinar uma prioridade política entre
58 Trabalhador informal, trabalho doméstico e etc.
59 Partidos e sindicatos baseados no centralismo democrático ou em outras concepções de caráter representativo e hierárquica defendido comumente defendido pela
esquerda tradicional.
as diversas formas de trabalho. Afinal “todas as formas de trabalho hoje são produtivas,
produzem o comum e também compartilham um potencial de resistir à dominação do
capital”. O trabalho operário inclusive, se encontra dentro da multidão e continua a ter
sua importância política e social, porém sem deter nenhum privilégio político em
relação aos outros tipos de trabalho. A multidão é também sujeito explorado, porém a
exploração a qual esta submetida tem de ser pensada de maneira nova.
“Sob a hegemonia do trabalho imaterial a exploração já não é primordialmente a expropriação do valor medida pelo tempo de trabalho individual ou coletivo, e sim a captura do valor que é produzido pelo trabalho cooperativo e que se torna cada vez mais comum através de sua circulação nas redes sociais” (ibidem, p. 156).
Ou seja, a exploração que recai sob a multidão não se dá de maneira simples e
mensurável, mas sim através de complexos sistemas de captação que apropriam e
privatizam o valor da produção social comum. Assim sendo, torna-se necessário
abandonar a concepção ortodoxa da lei de mais valia. Para se entender a exploração no
atual mundo do trabalho, é preciso procurar formas de compreender a exploração que
superem a análise puramente estatística e econômica. E considerar que a exploração do
comum “é a nova forma da lei da mais valia” (NEGRI, 2003, p. 252).
2.1.3. A genealogia das formas de resistência.
Por fim resta apresentar a multidão sob o aspecto político. Para isso precisamos
demonstrar como este sujeito social é o resultado fluido do embate entre o campo do
trabalho e do capital, entre os meios de coerção e de libertação. Assim como também,
entender à forma de organização em rede, que é própria da multidão.
Para Negri a resistência detém a primazia dentro do embate entre as forças de
contra-insurgência e as insurgências60. Ou seja, a insurgência vem primeiro que a
contra-insurgência em termos de força e forma. Sendo assim, cabe a contra-insurgência
60 Se entende por insurgência a rebelião contra o poder constituído, e por contra-insurgência as estratégias para combater a insurgência e manter o poder constituído.
reagir e a insurgência e não ao contrário. Dizendo desta maneira, a primazia da
resistência parece evidente. Mas na verdade tal concepção torna necessário pensar a
resistência para além do emprego comum dado a esta mesma palavra. É preciso
desfazer o entendimento da resistência como uma resposta ou reação e começar a
pensá-la no sentido contrário, como o que é “primordial em poder” (HARDT; NEGRI,
2005, p. 98). O reconhecimento da primazia do poder da resistência permite lançar
outro olhar sob a história, que parta de baixo para cima. Baseado nesta concepção de
primazia da resistência, Negri elabora uma genealogia das lutas de libertação que parte
da formação dos exércitos populares e culmina nas formas contemporâneas de luta em
rede. Esta genealogia tal como desenvolvida, possui três princípios orientadores: O
primeiro refere-se à oportunidade histórica, ou seja, a eficácia no combate a uma forma
de poder específico. O segundo refere-se à correspondência entre as formas de
resistência e realidade da produção material que historicamente vigora. E o terceiro
remete-se ao desejo dos homens por liberdade.
Vamos aqui apresentar de maneira breve esta genealogia. A primeira forma de
resistência descrita é a do exercito popular. As forças rebeldes dispersar e irregulares
em determinado momento históricos tornam-se exércitos. Dizendo melhor, os bandos
armados dispersos que se colocavam como os modelos de resistência da época pré-
moderna e do início da modernidade começam a se organizar como exercito popular.
Ou seja, como uma composição unificada e organizada de forças armadas que se
expressam através modelos centralizados e hierárquicos.
Para Negri o surgimento esta forma de resistência possuí duas faces. Por um
lado ela é coerente no que diz respeito à modernização da sociedade, ou melhor,
coincide com o desenvolvimento material da sociedade. E devido a isso, acaba
funcionando motor para a modernização social. Ela também é uma forma eficiente no
que diz respeito à vitória militar. Muitos exércitos de libertação nacional e exércitos
classistas são prova disto.
Por outro, o seu centralismo e hierarquia se colocam como um problema no
cenário pós-guerra. Pois os modelos sociais que surgem como fruto deste tipo de
organização, não são capazes de satisfazer os anseios populares por liberdade e
democracia. O exercito bolchevique é utilizado como o exemplo paradigmático deste
tipo de organização.
A estrutura da guerrilha aparece posteriormente como um modelo mais
promissor de organização. Além de representar em termos de oportunidade histórica um
modelo militar mais difícil de ser enfrentado pelos meios de contra-insurgência,
aparentemente vai de encontro às características de centralização e hierarquização dos
exércitos populares. Pois em si compreende às ideias de descentralização e de
autonomia.
O modelo cubano que serviu como paradigma para diversos movimentos
rebeldes pelo mundo, sobretudo na América latina61, é considerado por Negri o melhor
exemplo desta forma de se organizar. Ele vai de encontro à ortodoxia dos modelos
militares stalinistas que pregavam a total subordinação ao controle do partido
comunista. Afinal os guerrilheiros cubanos só constituíram um partido depois da vitoria
militar. Além disso, os focos guerrilheiros62 podiam atuar com relativa independência
uns dos outros, através de uma estrutura policêntrica e horizontalizadas entre as suas
unidades. Essas características fazem sua forma de guerrilha contrastar bastante das
estruturas de comando verticais e centralizadas dos exércitos tradicionais.
No entanto a natureza democrática e independente da estratégia foquista parece
para Negri extremamente superficial. A autoridade do partido é substituída pela
61 Pensar aqui nas guerrilhas Sandinistas da Nicarágua, na Frente Farabundo Martí de Libertação nacional de El Salvador, nas FARCS na Colombia e etc.
62 Grupos de guerrilheiros que segundo a teoria de guerrilha foquistao contavam com algum grau de autonomia.
autoridade e disciplina interna próprias da guerrilha. O foco guerrilheiro também não é
tão autônomo como pode parecer. Pois ele é uma célula de uma coluna muito maior, e
tende a reduzir-se na prática a uma unidade centralizada, sobretudo depois da tomada
do poder.
Por fim, aparecem às formas de organização em redes que surgem no seio das
lutas políticas dos movimentos sociais. Às redes são o que há de mais atual em termos
de oportunidade histórica. Superam todas às formas de organização políticas anteriores,
que se tornaram vulneráveis às ações de contra-insurgência promovidas pelo capital. A
forma de organização em redes também corresponde perfeitamente ao atual momento
do desenvolvimento histórico material do capitalismo, que hoje se funda na exploração
do trabalho produzido por redes de colaboração social. No entanto, à principal diferença
entre o modelo de organização política em rede e as formas anteriores a ela é seu caráter
democrático e libertário. Os exércitos populares eram claramente hierarquizados e
centralizados, os modelos de guerrilha por mais que aparentassem horizontalização de
poderes também terminavam em alguma centralização e autoritarismo. Já os modelos
de redes, próprios do sujeito social e político da multidão são essencialmente autênticos
neste ponto fraco das formas de organização anteriores. As redes da multidão
possibilitam uma verdadeira horizontalização política, e podem vir a responder
satisfatoriamente os anseios da população por uma democracia real que supere em
termos de liberdade todos os modelos sociedades63 existentes até então.
2.2. O enxame.
É necessário explorar um pouco mais à teoria das lutas em rede para se entender
com propriedade a relação desta forma de se organizar e a multidão. Para Negri, as
redes são à forma isomórfica64 de organização na sociedade contemporânea. Para
63 Pensar aqui nas sociedades pré-capitalistas, nas democracias capitalistas e também nas experiências socialistas.
qualquer direção que se olhe poderemos identificar formas de rede atuando. A ordem
global do império é uma rede, o meio empresarial cada vez mais se utiliza de estratégias
baseadas em redes organizativas, e até mesmo à área tecnológica apropria-se da ideia de
rede para construir robôs que cooperem entre si e complexos sistemas de informação e
de inteligência65.
Como já apontamos que o trabalho nos dias de hoje se dá hegemonicamente
através de redes cooperativas de produção. A exploração e o lucro capitalista também
provêm da apropriação e privatização do que é produzido pelo trabalho cooperativo, ou
melhor dizendo, por estas redes produtivas. E a multidão como classe explorada e
protagonista do processo de produção, está inevitavelmente relacionada à forma de
rede. Pois só este tipo de organização pode garantir que ela seja o que é. Garantir que
um conjunto de sujeitos possa ser composto por múltiplas singularidades.
Uma figura metafórica que pode ajudar a ilustrar a multidão como rede é a do
enxame. No livro “Multidão” podemos encontrar diversas metáforas, tal como a já
apresentada metáfora do legião. No meio da exposição conceitual das formas de
organização em rede encontramos outra metáfora, a do enxame. Esta tenta apresentar as
características fundamentais das organizações em rede, através da imagem de animais
sociais, sobretudo os insetos.
Negri começa dizendo que sob uma observação externa, aparentemente tanto um
enxame de animais como uma rede de atuação política se expressam de forma súbita,
espontânea e caótica. No entanto, mediante uma análise um pouco mais elaborada da
questão é possível perceber que na verdade uma rede disseminada é descentralizada,
organizada, racional e criativa.
64 “Isomorfismos são procedimentos descritivos no sentido de que guardam relação com uma determinada forma de exposição (...). Do ponto de vista ontológico, cada um
desses procedimentos descritivos é dirigido por um motor fundamental, que poderíamos chamar, dependendo do caso, tanto o motor do trabalho vivo quanto o da “marcha da
liberdade”. (NICHOLAS BROWN; IMERE SZEMAN. O que é Multidão? Questões para Michael Hardt e Antônio Negri. Novos Estudos. 2006. n.75, p. 100).
65 A rede da internet é o maior exemplo de sistemas de comunicação e inteligência que funcionam sob este tipo de organização.
Para aprofundar ainda mais à metáfora do enxame, Negri recorre também ao
termo “inteligência de enxame”. Um termo oriundo das ciências exatas que serve para
designar um tipo específico de inteligência artificial, que consiste em uma técnica
coletiva de solução de problemas sem um controle central ou modelo geral predefinido.
Este tipo de tecnologia66 tem como inspiração e fundamento o comportamento coletivo
de animais sociais, tais como cupins, abelhas e formigas. E consiste na ideia de que,
como indivíduos os membros de um enxame não demonstram sinais de inteligência,
mas como coletivo (enxame) formam sistemas realmente inteligentes que funcionam
sem a necessidade de um controle central, o que concede aos mesmos a capacidade de
fazer coisas incríveis. Tais características do enxame de animais sociais, que serviram
para as ciências exatas elaborar à ideia de inteligência de enxame, podem ser
consideradas válidas também para as formas de organização de rede dos movimentos
sociais contemporâneos.
O enxame é a “imagem” propícia para significar as qualidades desejadas e
identificadas nos emergentes movimentos sociais da multidão, tais como a eficácia
organizativa na realidade política pós-moderna, funcionamento descentralizado e
horizontalizado, alto poder de comunicação, mobilidade e aparente intangibilidade
frente ao inimigo.
2.3. O conceito de Multidão e os novos horizontes políticos.
A teoria da multidão elaborada por Negri não pode ser entendida como uma
resposta derradeira aos problemas colocados pela realidade contemporânea. Pois o
conceito de multidão como alternativa ao poder do império, e mesmo o conceito de
império como nova ordem de poder mundial não são conceitos acabados. Negri está
ciente que a realidade política e a configuração do capital, são fluidas. Desta forma,
qualquer alternativa a estas também devem ser. Pois só teorias não cristalizadas sobre a
sociedade podem servir como ferramentas de entendimento e ações não anacrônicas.
No entanto, não podemos dizer que a teoria da multidão e de nova ordem global,
não são favoráveis ao desenvolvimento de um melhor entendimento teórico e de
capacidade prática de intervenção na realidade. A teoria da multidão é de fato, uma
66 Tecnologia conhecida mais amplamente pelo termo “swarm intelligence”.
teoria sobre a possibilidade de transformação social da realidade política
contemporânea.
A multidão surge como um sujeito social que aponta para novos horizontes de
caráter teórico e prático. Sua forma de organizar-se politicamente, ou seja, as redes
disseminadas e horizontalizadas, a torna o que há de mais atual e eficiente em relação
ao enfrentamento do poder do capital. Se a concepção de sujeito político restrita das
teorias marxistas tradicionais não conseguem mais alcançar e entender a complexidade
dos explorados. E os partidos e sindicalizados centralizados e hierarquizados, típicos da
esquerda tradicional, passam por uma crise profunda. A concepção de sujeito e as
formas horizontalizadas e democráticas da multidão podem representar uma alternativa
promissora.
Podemos dizer também que a multidão é promissora no que diz respeito à teoria
do poder global. A multidão não possui limites. Está presente em todo lugar como
protagonista das novas relações de produção. Ela é a base para alternativas a
globalização que é promovida pelo capital, sem se prender a concepções nacionalistas
nostálgicas. Pois nos direciona novamente a busca por uma reconstrução de um
internacionalismo entre os explorados67.
O capitalismo hoje é um sistema de biopoder, toda a sociedade tornou-se de
certa maneira produtiva e explorada. No entanto, se o capital tomou toda vida é porque
o trabalho tomou toda vida. E a primazia do poder dentro das relações de trabalho esta
nas mãos da multidão, que é a protagonista das novas e hegemônicas formas de
trabalho. A multidão é o limite do poder do capital, pois para que o capital lucre através
da captação de valor das redes sociais produtivas, a multidão tem de existir e atuar.
Sendo assim, junto à contradição social e política gerada por esta relação de exploração,
mantém-se viva a esperança e possibilidade de uma transformação política benéfica ao
campo dos trabalhadores e explorados.
A teoria da multidão, sobretudo, diz que a história não acabou. Que a crise das
teorias e organizações políticas tradicionais não é o fim das possibilidades de se
construir um mundo diferente deste que é colocado pelo capital e seus veículos
ideológicos.
67 Para Negri este internacionalismo já tinha sido apontado por Marx no final do manifesto comunista, ganhou formas experimentais nas internacionais comunistas que
reuniram partidos e movimentos comunistas de todo mundo. E agora deve renascer de maneira nova, integrando movimentos sociais e políticos de todo mundo em uma plataforma
comum de enfrentamento ao capital.
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Conclusão
A concepção política de Negri sobre a realidade contemporânea possui várias
dimensões. Em termos macropolítcos, ele nos diz que nos dias de hoje ascende uma
nova ordem mundial de poder denominada império. Esta teoria sobre este poder
transnacional sem limites do capital torna vulnerável muitos dos conceitos políticos
paradigmáticos da modernidade, tais como imperialismo e soberania nacional. Ela
também diz respeito à guerra, que hoje aparece na forma de policiamento. Como uma
das formas que o capitalismo utiliza para manter seu controle sobre a sociedade. Em
termos econômicos o capitalismo contemporâneo também é diferente de como muitas
das teorias clássicas o ilustravam. O trabalho continua sendo a pedra fundamental para
se entender a sociedade. No entanto, temos de pensá-lo de maneira diferente. Hoje toda
vida é alvo da exploração do capital, que se dá como a captação de valor das redes
sociais de produção.
Diretamente relacionada à teoria de império e ao capitalismo cognitivo está à
teoria da multidão. Podemos entender a multidão como um conjunto de singularidades,
que se coloca como um sujeito social novo relacionado a formas de organização em
redes disseminadas e horizontalizadas. No cenário atual estas redes são muito mais
promissoras do que as antigas formas de organização políticas adotadas pelas
insurgências. A multidão também é o protagonista do mundo do trabalho
contemporâneo, o elemento principal das redes sociais de produção. Possui a primazia
dentro do processo produtivo, e por isso constitui o limite da soberania do capital.
Por fim podemos dizer que as teorias do império e multidão nos possibilitam um
entendimento bem elaborado e renovado sobre a constituição do capitalismo
contemporâneo e das formas de alternativas a este. E também que, se precisamos de
teorias e conceitos que funcione como ferramentas eficazes para o entendimento e ação
política nos dias de hoje, a obra política de Negri e de Hardt podem nos ajudar.
Notas